O Problema Da Influência Suposta e A Conexão Com o Crime de Burla
O Problema Da Influência Suposta e A Conexão Com o Crime de Burla
O Problema Da Influência Suposta e A Conexão Com o Crime de Burla
N.º 142720024
Mestrado Forense
Lisboa, março de 2022
Ao Professor Germano Marques da Silva pela constante presença, atenção,
disponibilidade e experiência.
À minha mãe, que sempre depositou em mim todos os sonhos do mundo.
À minha irmã Patrícia, a quem devo muito, pelo amor e por me inspirar em todos os
momentos.
Ao meu pai, pelo exemplo de perseverança e trabalho que levo para a vida.
À minha avó, por todo o carinho,
À Filipa, à Marta, à Neuza e à Raquel por acreditarem, incondicionalmente, em mim.
Ao João, pelo amor, compreensão e infinita paciência.
2
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis
3
Palavras-Chave
à Abuso de Influência;
à Crime de Burla;
à Influência Real;
à Influência Suposta;
à Prestígio, Imparcialidade e Bom Nome da Administração Pública.
4
Índice
Jurisprudência ................................................................................................................. 38
5
1. Nota Introdutória
6
2. A Origem e Evolução Histórica do Crime de Tráfico de Influência
A inspiração daquela que é hoje a norma do tráfico de influência, vertida no artigo 335.º
do nosso Código Penal, remonta ao ano de 228 D.C., mais precisamente, ao Direito Romano.
À semelhança de tantas outras normas, foram os romanos quem nos trouxeram a denominada
vendita fumo, quando o Imperador Alexandro Severo se encontrava no poder. Tudo
aconteceu quando surgiu a necessidade de punir1 um cidadão, Vetronio Torino, que vendia a
sua influência na Corte. Para este caso, o Imperador considerou ser imprescindível
demonstrar a sua intolerância para com este tipo de situações, que colocavam em causa a
imagem da sua própria Administração2, e fê-lo condenado Vetronio à morte por inalação de
fumo: puniu-se com a fumaça quem a vendia.3
Tomando este marco como base, em Portugal, somos diretamente transportados para as
Ordenações Manuelinas4 que verteram, no seu Livro V, Título 70, § 1.º, o denominado
“Concerto para Agência”, onde, protegendo-se a imparcialidade do Estado no exercício das
suas funções, se punia a venda de uma influência real e posterior acordo que tivesse como
objetivo “despachar na Corte algum negócio”5 que parecesse, aos demais, de difícil
celebração, mas que, na realidade, não o era.
Já as Ordenações Filipinas alargaram o conceito de “concerto”, passando a prever-se a
incriminação pela compra e venda de desembargos.6 É interessante referir que, à época, se
ampliou a interpretação do conceito por forma a abranger, também, as relações judiciais.7
1
Como fonte legitimadora desta punição tem-se o texto de Papiniano que já condenava “quem tivesse recebido
dinheiro com o pretexto de o entregar ao juiz para assim obter sentença favorável”, cfr. MARGARIDA SILVA
PEREIRA, Direito Penal. Direito do Risco. Comparticipação Criminosa. Tráfico de Influência, Quid Juris,
Lisboa, 2012, p. 125.
2
Apensar do objeto da tutela se encontrar numa zona cinzenta, parece que podemos concluir que os romanos
quiseram aproximar este crime da vertente pública em detrimento da vertente privada, dando mais ênfase ao
facto de ser um crime contra a Autoridade do que o interesse patrimonial do lesado.
3
Diz-se que foram proferidas as seguintes palavras: “fumum punitur qui vendit fumum”.
4
Nenhuma referência é feita ao longo das Ordenações Afonsinas, como nos diz MARGARIDA SILVA
PEREIRA, in ob. cit., p. 114.
5
Como nos ensina PEDRO CAEIRO, Anotação ao Artigo 335º do Código Penal, Comentário Conimbricense
do Código Penal, Jorge Figueiredo Dias (coord.), Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 275.
6
Encontramos a punição no Livro 4.º, título 14.
7
Vemos neste ponto um argumento a favor da tese que, aos dias de hoje, entende que o crime de tráfico de
influência pode ser praticado sob qualquer pessoa, inclusivamente, por isso, sob magistrados. Desenvolveremos
infra.
7
Avançando no tempo, chegamos ao ano de 1823, altura em que o Professor Pascoal de
Mello Freire considerou ser necessário acolher, junto com o crime de Prevaricação8, o crime
de tráfico de influência no seu projeto do Código Penal.
Ao contrário do que seria, eventualmente, de esperar, não foi este o rumo seguido pelo
Código Penal de 1852. Com ele, desapareceu qualquer referência ao acordo para exercer uma
influência real. Separando-se, formalmente, do crime de burla, tomou-se apenas em
consideração que a ideia de mercadejar influência é crime9. É neste contexto que Luís Osório
afirma que “o nosso código protege aqui apenas o interesse patrimonial10 e reenvia para os
crimes de injúria e difamação a proteção do funcionário público”11 ao passo que Silva Ferrão,
contrariando-o, aponta o caráter pluriofensivo do tipo e, por isso, a sua complexidade.
Embora pareça indiscutível a necessidade político-criminal de o contemplar, toda esta
incerteza em volta do que tratava, afinal, o crime de tráfico de influência levou a que a sua
relevância perdesse terreno e fosse mesmo eliminado da redação do Código Penal de 1982.
Assim foi até 1995, altura em que surgiu, verdadeiramente, o crime de tráfico de influência.
8
Cfr. PASCOAL DE MELLO FREIRE, Ensaio do Código Criminal, Lisboa, 1823, in
https://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/7700.pdf e MARGARIDA SILVA PEREIRA in ob. cit., p. 116.
9
A exata expressão escolhida pela lei foi “pretextar”, que significa a “razão aparente que se alega para encobrir
o verdadeiro motivo por que se fez ou deixou de fazer alguma coisa”, cfr.
https://dicionario.priberam.org/pretexto; i.e., a lei referia-se a uma mentira, a uma influência meramente
suposta.
10
Entenda-se, do lesado. Efetivamente, todo o contexto parece apontar para que estivesse em causa um
verdadeiro crime contra o património, dada a relevância dada ao dano patrimonial. Não obstante,
MARGARIDA SILVA PEREIRA reflete e conclui que não parece despropositado afirmar que estaria em causa,
também, e mesmo que tenuemente, um crime contra a Administração, estando a razão do lado de Silva Ferrão.
11
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, in ob. cit., p. 118.
8
possíveis compradores de influência que, mediante um determinado pagamento, acediam a
uma vantagem. Daniel Wilson foi, então, acusado pelo crime de corrupção tendo, todavia,
sido absolvido em virtude da natureza própria do crime que fazia com que o único sujeito
passível de ser agente do mesmo fosse o Presidente, por ser ele quem detinha o poder de
conferir, ou não, as condecorações desejadas.
Este desfecho fez com se tornasse premente introduzir na legislação francesa os artigos
177.º e 178.º que passaram a prever, especificamente, as vantagens relacionadas com
condecorações, medalhas, distinções, recompensas, lugares, funções e empregos.
Este crime vigora12, atualmente, nos artigos 432.º-11, 433.º-1 e 433.º-2 e contempla
tantos os casos de influência real como os casos de influência meramente suposta, sendo um
crime comum, de acordo com a definição portuguesa.
12
No entanto, França foi um dos países que optou por apor uma reserva ao artigo 12.º da Convenção do
Conselho da Europa para a Corrupção, justificando tal decisão com a preservação das empresas e nacionais
franceses, que ficariam em desvantagem se assim não fosse, uma vez que nem todos os países aplicam as
mesmas regras no que a este crime diz respeito. Cfr. https://www.coe.int/fr/web/conventions/full-
list?module=declarations-by-treaty&numSte=173&codeNature=0 ; https://dre.pt/dre/detalhe/aviso/61-2016-
74774854 .
13
O Código Penal espanhol de 1928 já havia acolhido o crime de tráfico de influências tendo sido suprimido
pelo Código de 32.
14
À semelhança do que se passava em Portugal, era uma prática muito comum à data, tal como nos ensina
GABRIEL GARCÍA PLANAS, El nuevo delito de tráfico de influencias, disponível in
http://ibdigital.uib.es/greenstone/collect/cuadernosFacultadDerecho/index/assoc/Cuaderno/s_1992v0/18p019.
dir/Cuadernos_1992v018p019.pdf .
15
Podem ser consultados em https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-25444&p=20211109&tn=1
- a430 ..
9
a troco de uma vantagem. No caso, “dádivas, presentes o cualquier outra remuneración”.
Enquanto, do lado ativo- o único punido-, o artigo 428.º contempla o tráfico de influência
exercido por um funcionário público sobre um outro funcionário público; o artigo 429.º
incrimina o tráfico exercido por um particular, que se aproveita da relação pessoal que possui
com um qualquer funcionário público ou autoridade, para sobre ele exercer a sua influência
e retirar uma vantagem.
Por último, importa deixar a seguinte nota: o legislador espanhol optou por considerar
como penalmente relevantes apenas os casos em que existe uma verdadeira influência,
deixando de fora os casos de influência suposta. Considerou, por isso, que estes não
colocavam em causa o bem jurídico tutelado pela incriminação: a imparcialidade,
objetividade e igualdade no exercício das funções administrativas16.
Em Itália, desde cedo, mais concretamente, desde o primeiro Código da Itália unida- o
Código Zanardelli de 1889- que se verificou uma confusão no que ao crime de tráfico de
influências respeita. Para Zanardelli, era premente incriminar as situações que “atraem os
ignorantes e os crédulos, extorquindo os, dinheiro e outras coisas para proveito próprio ou
alheio, e porque, e é o que mais importa, fazem atroz ofensa à autoridade pública, fazendo
crer que recebem donativo ou mercês para estimular os funcionários a cumprir os seus
deveres, e para compensá-los.”17
Surgiu, desta forma, a millantato credito, deixando para trás o alvoroço dos trabalhos
preparatórios que confundiam o exercício da influência suposta com o crime de burla e que
colocavam à margem os casos em que a influência era real, desconsiderando-a. E, assim,
vingou a tese que pretendia tutelar o bom nome da Administração italiana, punindo-se o
16
Cfr. GABRIEL GARCÍA PLANAS, in ob. cit., p. 23: “Si apoyamos la tesis de que los bienes jurídicos,
considerados como valores dignos de protección penal, son los recogidos en la Constitución, entendemos que
el trafico de influencias en general, atenta a los principios de igualdad, de libre concurrencia, y como dice el
Prof. Mufioz Conde a lo establecido en el artículo 103 de la Constitución Espafiola, ya que supone el anteponer
los intereses privados a los públicos.”. Assim entende a parte da doutrina espanhola.
17
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, in ob. cit., p. 129.
10
funcionário que divulga deter influência, verdadeira ou não, sobre o decisor e que, para agir
de determinada forma, se vende.
É curioso que alguns autores, como Vicini, já vislumbravam semelhanças entre o Código
italiano e o português de 52, do qual também se havia eliminado qualquer referência à
influência real; embora, contrariamente ao que acontecia em Itália, se enquadrasse
sistematicamente o crime no âmbito dos crimes patrimoniais e não dos crimes contra a
Administração.
Depois de serem várias as críticas tecidas ao artigo 346.º do Código Penal italiano, e de
existir, pelo menos, uma proposta de alteração18 que assegurava a conformidade com os
instrumentos internacionais, a Legge spazzacorrotti, n.º 3/2019, veio revogá-lo, mantendo
apenas o artigo 346-bis, numa tentativa de promover a transparência na política, combatendo
a corrupção. Com ele, pune-se a ostentação do vendedor de influência que, ao pretender
receber uma vantagem do comprador, explora as relações que efetivamente detém ou que
alega deter com um decisor público. Note-se que a lei tanto pune aquele que pretende obter
uma decisão lícita como aquele que pretende obter uma decisão ilícita. Aliás, a pena é
agravada neste último caso, em que o ato praticado é contrário aos deveres do cargo19.
18
Disponível in: https://www.senato.it/japp/bgt/showdoc/frame.jsp?tipodoc=Ddlpres&leg=16&id=311625
19
Art. 346-bis: “Le pene sono altresì aumentate se i fatti sono commessi in relazione all'esercizio di attività
giudiziarie o per remunerare il pubblico ufficiale o l'incaricato di un pubblico servizio o uno degli altri soggetti
di cui all'articolo 322-bis in relazione al compimento di un atto contrario ai doveri d'ufficio o all'omissione o al
ritardo di un atto del suo ufficio”, disponível in https://www.altalex.com/documents/news/2014/10/14/dei-
delitti-contro-la-pubblica-amministrazione
11
instituições por ele tuteladas motivada por diferentes escândalos e, também, pela ideia da
cunha, colocando em causa a credibilidade da Administração pública.
A inserção deste crime no nosso ordenamento jurídico “destinou-se a colmatar eventuais
lacunas na incriminação de condutas manifestamente censuráveis e que poderiam escapar à
punição por impossibilidade de subsunção a tipos afins, designadamente aos de corrupção,
de burla e de abuso de autoridade por funcionário”20. Tendo presente esta contextualização,
a origem deste crime difere quando comparada com a maioria dos restantes preceitos
introduzidos pela Reforma Penal de 1995. Enquanto estes tiveram a sua origem na proposta
de Lei de Autorização Legislativa n.º 35/94, de 15 de setembro, e, consequentemente, no
Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, o crime de tráfico de influência resultou da discussão
e subsequente acordo conseguido entre os partidos com assento parlamentar.21 Na verdade,
a sua previsão não constava, sequer, do Projeto de Revisão elaborado pela Comissão de
Revisão, ou da Proposta governamental.
Sucede que a Lei de Autorização Legislativa estabeleceu, como é comum, os exatos
termos em que o Governo deveria legislar. No entanto, este legislou num sentido distinto do
autorizado, o que conduziu a uma contraposição de ideias e a um desencontro de vontades.
Ao contrário do que se encontrava estipulado na proposta, o Governo não contemplou a
“mera solicitação de vantagem” e restringiu a incriminação às condutas que visassem a
obtenção de decisões ilegais. Não obstante, o ponto mais relevante, e objeto da maior
controvérsia entre a doutrina portuguesa respeita à influência. Isto é: se, numa primeira fase,
o tipo legal de crime estava pensado para que houvesse punição tanto nos casos em que a
influência exercida fosse real ou suposta; o texto final foi no sentido de haver punição apenas
por influência real.
Esta constitui uma das fragilidades iniciais do tema, na medida em que existem opiniões
discordantes na doutrina quanto à bondade desta decisão.
O texto da Lei n.º 65/98 trouxe uma redação mais ampla do que a anterior, incluindo a
“interposta pessoa” e prevendo, expressamente, a possibilidade de a influência a ser exercida
20
Cfr. MAIA GONÇALVES, Código Penal Português: anotado e comentado, Legislação complementar, 18.º
Edição, Almedina, p. 1030.
21
Tal como resulta da alínea 192) do art. 3.º da Lei n.º 35/94, de 15 de setembro.
12
ser verdadeira ou não. Para além disso, os bens abrangidos são patrimoniais ou não
patrimoniais, deixando de limitar o objeto do acordo aos primeiros.
A alteração seguinte foi promovida pela necessidade de adaptação do direito interno ao
direito internacional, concretamente, à Convenção Penal sobre a Corrupção, do Conselho da
Europa que entraria em vigor no ano de 2005. Assim, com a alteração promovida pela Lei
n.º 108/2001, de 28 de novembro, eliminou-se a enumeração exemplificativa dos atos
relevantes para efeitos de influência e passou a punir-se, também, o comprador de influência
e a venda de influência para obtenção de uma decisão lícita.
À data de hoje, a redação do artigo é muito mais ampla do que a originalmente formulada
pela Assembleia da República, indo ao encontro das necessidades crescentes das populações
no que a estes temas diz respeito, bem como dos novos valores que pautam a sociedade.
Ainda assim, cumpre ressalvar que a aplicação pelos tribunais é, ainda, bastante residual tanto
pela complexidade do tipo, como pela probatio diabolica que implica.
22
Cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal: Parte Geral, Tomo I, 2.a Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007,
p. 114.
13
isso, o bem jurídico não só legitima como limita a ação penal, que sabemos ser a ultima ratio
da política social.
Não se considera ser este o momento adequado para discorrer sobre a evolução do
conceito de bem jurídico, mas é importante clarificar que, para além dos bens jurídicos
individuais, são reconhecidos bens jurídicos supra-individuais. Até aos anos 80 do século
passado, eram frequentes os “crimes sem vítima” que emergiam de uma trapaça elaborada
entre a Administração e o cidadão: uma das formas mais conhecidas de se conseguir obter
determinada vantagem indevida era através da ideia da cunha que, prejudicando apenas o
Estado, não era moralmente censurável.
Com a crescente força do Estado Social, deu-se o ponto de viragem: o acentuar do dano
coletivo e do bem jurídico supra-individual. Estes emergem das novas preocupações sociais
que não se limitam apenas ao próprio indivíduo, alargando-se aos novos riscos da sociedade
atual relacionados com o ambiente, economia e outros. Estes são, portanto, passíveis de
serem fruídos individualmente, mas, também, se estendem a uma comunidade. É o que aqui
acontece.
Vejamos: uma vez interpretada a norma, o entendimento dominante hoje é que o bem
jurídico supra-individual subjacente ao crime de tráfico de influência é a proteção da
autonomia intencional do Estado23, visando acautelar a execução da atividade administrativa,
evitando que os destinatários nela interfiram.
Nesta medida, pretende-se evitar que o agente “abuse da sua influência junto de um
decisor público, de forma a obter dele uma decisão, criando o perigo de que a influência
abusiva venha a ser exercida e, consequentemente, de que o decisor venha a colocar os seus
poderes funcionais ao serviço de interesses diversos do interesse público”. 24
Este entendimento não é consensual, em Portugal, mas também noutros países do mundo,
o que resulta, desde logo, do facto de a norma portuguesa não descrever “em regra, os bens,
mas tão só os factos lesivos desses bens” pelo que “o pluralismo hermenêutico permite
23
Entendimento acompanhado por Margarida Silva Pereira, Pedro Caeiro, Victor de Sá Pereira, Alexandre
Lafayette e pela Jurisprudência, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de junho
de 2020, Proc. n.º 3902/13.0JFLSB-3, disponível in http://www.dgsi.pt.
24
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de setembro de 2011, 169/03.2JACBR.C, disponível in
http://www.dgsi.pt.
14
leituras diversificadas na identificação dos possíveis interesses ou bens que constituem o fim
da tutela de cada norma incriminadora”. 25
Desta forma, a doutrina que se debruçou sobre esta questão dividia-se: inicialmente,
considerava-se que o bem jurídico protegido pelo tipo legal era a proteção do património
individual do particular, a proteção dos administrados, em linha com o crime de burla, e não
a proteção da legalidade, prestígio e imparcialidade da Administração26- como surgiu,
inicialmente, em Itália.
As sucessivas alterações legislativas não apaziguaram o debate, que se estende até aos
dias de hoje. Assim, na esteira de Paulo Pinto de Albuquerque, o que se tutela neste crime é
a “preservação do estado de direito tal como ele se encontra estabelecido na Constituição da
República Portuguesa, na sua vertente de liberdade de ação das entidades públicas”.27 De
facto, a liberdade de atuação da Administração Pública termina quando tal implica a prática
de atos contrários à lei28, constituindo o crime de tráfico de influência um exemplo disso
mesmo.
Ora, neste tipo de crime, quando a influência é efetivamente exercida ou quando existe o
perigo de que venha a ser, coloca-se em causa, nomeadamente, o princípio da igualdade
contemplado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa que visa tutelar a
confiança dos cidadãos em que serão tratados com igualdade de oportunidades e,
consequentemente, a credibilidade das instituições públicas que se regem (ou deveriam reger)
por processos de atuação justos, imparciais e transparentes29. É, por isso, a atuação contrária
aos deveres do cargo que se pretende incriminar por forma a tutelar o Estado de direito, bem
25
Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português. Teoria do Crime, Universidade Católica
Editora, Lisboa, 2012, p. 27.
26
Contra, PEDRO CAEIRO, in ob. cit., p. 276: “Afastadas devem ser também as perspetivas que vêem aqui
uma tutela da honra ou prestígio da Administração Pública (...)”.
27
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição
da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotação ao artigo 335º, p. 1085.
28
O que decorre do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo, bem como do n.º 1 do artigo
269.º da Constituição da República Portuguesa. Também a jurisprudência reafirma isto mesmo, dizendo-nos
que “A doutrina caracteriza o bem jurídico protegido nesta incriminação com a necessidade de assegurar aos
cidadãos que qualquer serviço que envolva a prestação de uma atividade pública funciona de acordo com a lei,
respeitando o ordenamento jurídico, sendo eficaz na sua atuação”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 24 de junho de 2020, disponível in http://www.dgsi.pt.
29
Número 1 do art. 266.º da Constituição da República Portuguesa.
15
como a “moralização e credibilização constantes”30 das instituições públicas. De facto, como
nos ensina Germano Marques da Silva, não se pode fazer do cargo um estabelecimento de
vantagens. Por conseguinte, percebemos que a incriminação do tráfico de influência reside
“no interesse da Administração Pública no sentido de preservar o bom andamento, prestígio,
confiança e moralidade, na proteção da legalidade e imparcialidade”.31
Com a devida vénia, não vemos como se possa defender que em causa esteja a autonomia
intencional do Estado uma vez que esta engloba, também, a autonomia do próprio funcionário
da Administração. No entanto, a verdade é que, ao contrário de outros crimes,32 o funcionário
pode não ter qualquer papel ativo na sua prática. Tal acontecerá sempre que A se propuser
perante B a resolver um qualquer assunto que este tenha pendente na Câmara do Porto, a
troco de uma vantagem. Ora, neste caso, os funcionários da Câmara não são “perdidos nem
achados”. O que sucede é que B, ao divulgar este acordo, passará a imagem de que os
funcionários são influenciáveis, que tudo se resolve através de cunhas, violando-se o
princípio da igualdade, o que, em suma, transmite a ideia de que não podemos confiar na
Administração Pública. Assim sendo, a razão está, pensamos, com Germano Marques da
Silva e o crime de tráfico de influência consuma-se inteiramente à margem da Administração
pelo que em causa apenas poderá estar a pretensão de tutelar o seu prestígio.33 Até porque,
ponto crucial, o A pode nem sequer chegar a exercer qualquer influência, caso em que
estaremos perante um caso de influência suposta.
Acompanhamos ainda a visão de Pedro Caeiro na parte em que entende que, pela inserção
sistemática da norma na Secção dos crimes contra a realização do Estado de direito, é de
30
Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa, no seu discurso de tomada de posse como Presidente da República Portuguesa
de 9 de março de 2016, disponível in https://www.presidencia.pt/atualidade/toda-a-
atualidade/2016/03/discurso-de-tomada-de-posse-do-presidente-da-republica/. Neste sentido, MANUEL
CAVALEIRO DE FERREIRA, Crimes de Corrupção e Concussão, in Scientia Juridica, Tomo X, n.º 51,
Editorial Scientia & ARS, 1961, p. 210.
31
Cfr. ÁLVARO MAYRINK DA COSTA, Criminalidade na Admnistração Pública, Peculato, Corrupção,
Tráfico de influência e Exploração de Prestígio, in Revista da EMERJ, vol. 13, n.º 52, 2010, p. 64, disponível
in https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista52/Revista52_39.pdf. Assumidamente
contra, MARGARIDA SILVA PEREIRA, dizendo que “a tese do prestígio da Administração, como o bem que
aqui se salvaguarda, não tem como vingar (...) no Direito português.” in ob. cit., p. 141.
32
Como sejam os presentes nos artigos 372º, 373º e 374º do Código Penal.
33
Vejamos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de junho de 2020, Proc. n.º 3902/13.0JFLSB-3
também neste sentido: “tutelando um bem que, face à distância da efetiva lesão do bem “autonomia intencional
do Estado”, se aproxima mais da honorabilidade, dignidade e respeitabilidade da função estatal, não estando a
sua consumação dependente, sequer, de quaisquer démarches efetivas junto do decisor público”, disponível in
http://www.dgsi.pt.
16
excluir o pensamento segundo o qual se tutelaria, aqui, um qualquer património particular.
Destarte, este tipo de situações encontram-se, hoje, sob a alçada do tipo de burla. Ademais,
como bem explica o autor, “é propósito expresso da norma abarcar as situações em que o
agente vende uma influência real que vem a realizar- caso em que o comprador não será
prejudicado”34.
Pensamos que, com esta linha de pensamento, resolvemos a questão gritante com a qual
se debatem todos aqueles que vêem aqui a tutela da autonomia intencional do Estado. De
facto, a doutrina dominante é levada a concluir pela inconstitucionalidade do crime de tráfico
de influência, quando está em causa uma influência meramente suposta. Isto porque, se o
traficante passivo não detém uma verdadeira influência, “já não se vislumbra aí uma réstia
de perigo penalmente relevante”. Por isso, considera-se que “é necessário que o agente
realmente detenha influência sobre o decisor no momento em que celebra o acordo (não
importa se vem a perdê-la, num momento posterior, antes de poder exercê-la), não bastando
que a alardeia (caso em que cometerá quando muito uma tentativa impossível)”35. Nesta
esteira segue também, Margarida Silva Pereira que nos diz que “a perigosidade inscrita no
tráfico é muito duvidosa. E, portanto, suscita um problema de legitimação do bem jurídico.
Um bem jurídico de contornos vagos não tem sustento constitucional”36.
Sucedânea da discussão sobre o bem jurídico é a questão de saber se esta incriminação
se trata de um crime de perigo ou de um crime de dano. Ora, como sabemos, o Direito Penal
surgiu enquanto direito do dano, com o Iluminismo. Isto é, para que existisse crime, tinha
que existir uma conduta ilícita. Posteriormente, passou também a contemplar os crimes de
perigo, que antecipam a tutela do bem jurídico. Aqui, tem-se em consideração a forma como
o bem jurídico é colocado em causa. Quando “a realização do tipo tem como consequência
uma lesão efetiva do bem jurídico”37, estamos perante um crime de dano. Já nos crimes de
perigo, “o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha
efetivamente sido posto em perigo”.38
34
PEDRO CAEIRO, in ob. cit., p. 276.
35
Na tentativa de explicarem a posição sufragada por Pedro Caeiro, cfr. VICTOR DE SÁ PEREIRA e
ALEXANDRE LAFAYETTE, Código Penal Anotado e Comentado. Legislação Conexa e Complementar, 2ª
Edição, Quid Iuris, Lisboa, 2014, p. 900.
36
MARGARIDA SILVA PEREIRA, in ob. cit., p. 149.
37
FIGUEIREDO DIAS, in ob. cit., p. 309.
38
FIGUEIREDO DIAS, ibidem.
17
Face ao exposto, importa ressalvar que a conclusão a que aqui se chega está relacionada
com o bem jurídico que defendemos. Por isso, não acompanhamos a corrente que vê nesta
norma um crime de perigo abstrato39 segundo a qual existiria aqui uma presunção inelidível
de perigo, sendo a conduta do agente punida quer se tenha conseguido ou não a lesão efetiva
do bem jurídico, havendo uma antecipação da tutela.40
Não entendemos assim. Parece-nos ser suficiente insistir-se na ideia da cunha ou na
afirmação de uma, mesmo que suposta, influência para que se transmita a ideia de que a
Administração não se submete, apenas, à lei. Neste sentido, tal basta para que o Estado de
direito saia beliscado, incutindo-se a desconfiança nos cidadãos. Por isso, trata-se de um
crime de dano porque a lesão do bem jurídico ocorre com a mera proclamação do poder de
influência.
Quanto ao objeto da ação, um crime pode ser classificado como de mera atividade ou de
resultado. Neste caso, trata-se de um crime de mera atividade uma vez que o tipo de ilícito
se realiza integralmente através da execução de um determinado comportamento, não se
exigindo, para além deste, um evento material associado que se demarque no tempo e no
espaço. Em suma, é irrelevante que a influência venha a ser exercida.
39
E não de perigo concreto uma vez que o perigo não é elemento do tipo, mas apenas motivo da proibição, o
que se insere na definição de perigo abstrato.
40
Por isso, no caso da influência suposta, em que os defensores desta tese concluem que não se chegou a colocar
em causa o funcionamento imparcial da Administração, o que se tutela é a potencialidade de lesão do bem
jurídico por ser, em si mesma, perigosa.
41
Defendida, designadamente, por Margarida Silva Pereira e Pedro Caeiro.
18
material entre o crime elencado no art. 335.º do Código Penal e os restantes, da mesma
Secção. Desta forma, defendem que teria sido preferível colocá-lo junto dos crimes
cometidos no exercício das funções públicas, à semelhança do crime de corrupção ativa que,
embora- tal como aqui- não exija que o seu agente exerça funções públicas, se encontra aí
inserido.
Desconsideramos esta corrente uma vez que nem todos os restantes crimes inseridos nesta
Secção diferem deste, desde logo porque, por exemplo, nem todos envolvem algum tipo de
violência42, propriamente dita, sendo exemplo disso mesmo o artigo 332.º Código Penal.
Além deste último argumento inspirar, também, a nossa posição, a verdade é que a mesma
resulta clara por estar relacionada com o que defendemos quanto ao bem jurídico em causa.
Para nós, o facto do bem jurídico em causa ser o prestígio da administração e do Estado de
direito legitima a inserção sistemática do artigo 335.º nesta Secção.
6.1. O Agente
Um dos elementos do tipo objetivo de ilícito é o agente do crime. Analisando o tipo, nos
seus números 1 e 2, facilmente depreendemos que estamos perante um daqueles crimes que
pode ser praticado por qualquer pessoa43, pertencendo, por isso, à categoria dos denominados
crimes comuns, por oposição aos crimes específicos que surgem quando a lei determinada
que o crime só pode ser cometido por certas pessoas, possuidoras de “uma certa qualidade
ou sobre as quais recai um dever especial”.44
Por isso, diz-se que o agente é um extraneus. No entanto, Pedro Caeiro assinala que
sempre existirá “um círculo natural de agentes”. Tendemos a concordar com esta afirmação.
De facto, no caso da influência real, existe um conjunto de pessoas que, pelas suas
características naturais, não infligem no outro a convicção de que são capazes de influenciar
num determinado sentido. No entender de Alexandre Lafayette, Pedro Caeiro e Victor de Sá
Pereira, os potenciais detentores dessa influência serão, à partida, “os titulares de cargos
42
Este é um dos argumentos apontados pela doutrina para reforçar a posição segundo a qual a inserção
sistemática do artigo 335.º não é a mais correta.
43
“Quem, (...)”, cfr. Art. 335.º do Código Penal.
44
Cfr. FIGUEIREDO DIAS in ob. cit., p. 304.
19
políticos45 e os dirigentes da Administração Pública e, de um modo geral, aqueles que são
portadores de uma qualidade ou relação especial perante a Administração e, por isso,
obrigados a um especial dever de fidelidade”.46 Tal não obsta à qualificação como crime
comum na medida em que, não só não se excluem do tipo quaisquer outros sujeitos47, como
também a simples pertença à Administração pública não é suficiente para efeitos de tráfico
de influência. Relevante é que o agente se coloque uma posição de superioridade
hierárquica48 face ao decisor, que será uma entidade pública.
Pelo exposto, não conseguimos identificar um conjunto de qualidades tipo do agente de
tráfico de influências. No entanto, sabemos que nem todos terão capacidade “para abusar da
sua influência”.
Sabemos que, neste crime, o traficante de influência solicita ou aceita uma vantagem por
forma a abusar da sua influência sobre uma entidade pública. Torna-se pertinente indagar o
que se entende por entidade pública.
Seguindo o entendimento de Margarida Silva Pereira, dever-se-ia, neste ponto, remeter
para o conceito jurídico- penal de funcionário, vertido no artigo 386.º Código Penal, sendo,
no entanto, de excluir a magistratura em virtude da forma como se encontra construído o tipo
legal. No seu entender, não seria possível exercer influência sobre esta classe dado que
aqueles que se movem “no topo do Estado de Direito Democrático não se vulnerabilizam
como as outras entidades”.49
45
Tomemos em consideração, para estes casos, os artigos 2.º e 5.º da Lei n.º 34/87.
46
Cfr. VICTOR DE SÁ PEREIRA/ALEXANDRE LAFAYETTE in ob. cit., p. 899; PEDRO CAEIRO in ob.
cit., pp. 279 e 281.
47
Como sejam os profissionais liberais.
48
Neste sentido, MARGARIDA SILVA PEREIRA: “o funcionário situado em baixo nível de hierarquia da
função pública não é um credível autor de tráfico de influência”. Desde logo porque “poderá usar
conhecimentos, relações pessoais e através deles determinar o sentido de uma decisão alheia. Mas isso não
significa condicionar, exercer poder sobre outrem” in ob. cit., p. 154.
49
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA in ob. cit., p. 91. Também Damião da Cunha segue em sentido
semelhante, incluindo no conceito apenas as pessoas coletivas de caráter administrativo público, excluindo, por
isso, a função política e, parece, jurisdicional. Cumpre ressalvar que este entendimento precede a entrada em
vigor da Lei 35/2015 de 22 de abril.
20
À semelhança da doutrina maioritária, parece-nos ser um entendimento difícil de
acompanhar. Como nos ensina, e bem, Pedro Caeiro, “entidade pública” e “funcionário” não
são conceitos equivalentes. O que se trata, no artigo 386.º do Código Penal é da identificação
das pessoas humanas que ocupam determinadas profissões; ao passo que o conceito de
entidade pública é mais amplo, sendo integrado pelos agentes enumerados no artigo,
identificando-se com “qualquer pessoa física ou coletiva”50 que exerça funções políticas,
administrativas, jurisdicionais, entre outras.51 Nesta medida, atendendo ao elemento
teleológico, “o conceito de entidade pública a que faz referência nunca pode corresponder à
natureza da entidade sobre a qual vai abusar-se da influência, mas sim por referência aos
poderes que exerce. Ou seja, no caso de exercer poderes públicos, são estes os relevantes
para a qualificação de uma entidade como entidade pública para efeitos penais".52
Assim, relevante para o preenchimento do conceito de entidade pública é que esta vise a
prossecução do interesse público, por oposição à prossecução de interesses particulares que
é no fundo o que se pretende, precisamente, tutelar com a incriminação.
Cumpre fazer uma breve referência à alteração operada pela Lei n.º 32/2010, de 2 de
setembro, que alargou o conceito de funcionário abrangido pelo artigo 386.º do Código Penal,
passando a incluir, também, os funcionários nacionais de outros Estados. Tal é relevante na
medida em que, indiretamente, influi no crime em apreço.
6.3. Consumação
50
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in ob. cit., p. 1086.
51
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de março de 2019, Proc. n.º 3212/18.7T8BRG.G1
disponível in http://www.dgsi.pt.
52
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de setembro de 2011, Proc. n.º 618/07, disponível in
http://www.dgsi.pt.
53
Cfr. FIGUEIREDO DIAS, in ob. cit., p. 322.
21
Antecipamos que, para nós, o preenchimento do tipo de ilícito não depende de um
qualquer acordo54 entre as Partes, verificando-se assim que uma das Partes manifeste a sua
vontade de realizar o negócio e, portanto, quando a solicitação ou aceitação da vantagem
chegam ao conhecimento da outra Parte. Neste sentido, “a conduta incriminada é unilateral”,
bastando, por isso, a “solicitação do traficante passivo e a promessa do traficante ativo”. 55
Na mesma linha de pensamento segue, desde logo, Almeida Costa, explicando que a
consumação do crime se dá “logo que o funcionário emita uma declaração de vontade de que
resulte a inequívoca intenção de mercadejar com o cargo”56.
Pensamos, assim, que este é o momento em que se dá a lesão do bem jurídico57,
independentemente das consequências que existam, ou não.
Poderia contra-argumentar-se que tanto a conduta de aceitar como a de dar pressupõem
uma certa bilateralidade o que pressuporia que existisse a aceitação da dádiva para que se
pudesse falar em consumação do crime. Não existindo aceitação da dádiva, temos uma mera
proposta. Acompanhamos Germano Marques da Silva quando ensina que não teria sentido
útil que “a mera promessa consume o crime e a proposta não tenha o mesmo efeito, dado que
uma e outra podem não ser aceites”.58 Impõe-se, assim, uma interpretação praeter legem
neste ponto.
Não entende assim Paulo Pinto de Albuquerque. O Professor entende ser pertinente
diferenciar o tráfico de influência ativo do passivo- distinção que, ressalvamos, o legislador
escolheu não fazer. Assim, quanto ao último, nada haveria a acrescentar face à nossa
interpretação, justificando-se a antecipação da tutela penal de que falámos. Já no que ao
tráfico de influência ativo respeita, i.e., quando estejam em causa as condutas de dar ou
prometer, entende que a primeira “implica a transferência da vantagem e, portanto, a
54
Neste sentido também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de setembro de 2011, Proc. n.º
169/03.2JACBR.C1, disponível in http://www.dgsi.pt.
55
Cfr. Pensamento ilustrado por GERMANO MARQUES DA SILVA nas suas lições policopiadas, sobre os
crimes em especial, distribuídas aos alunos.
56
Cfr. ALMEIDA COSTA, Sobre o crime de corrupção, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo
Correia, Vol. I, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.º especial, Coimbra, 1984, p.
146. Neste sentido segue, também, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in ob. cit., p. 1086.
57
Este entendimento parece-nos lógico desde as alterações convocadas pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro,
onde se incriminava a mera solicitação ou aceitação de vantagem.
58
Pensamento ilustrado nas lições policopiadas, sobre os crimes em especial, distribuídas aos alunos.
22
aceitação”.59 Por isso, seria necessário um acordo prévio, expresso ou tácito, consumado
com a transferência da vantagem. Seguindo esta linha de pensamento, a consumação do crime
de tráfico de influência ocorre em dois momentos distintos: quanto ao traficante da
influência, basta que este solicitasse a vantagem, mas, quanto ao comprador, já será
necessário um acordo para o exercício da influência.
Contra a posição que aqui defendemos encontramos Victor de Sá Pereira, Alexandre
Lafayette e a maioria da jurisprudência.60 Segundo esta corrente, a consumação ocorrerá com
o acordo entre os agentes do crime, que deve preceder os atos constitutivos do abuso. O que
entendemos é que criar a necessidade deste acordo tornaria o tráfico de influência num crime
de participação necessária, o que não foi intenção do legislador. No entanto, convergimos
com os Autores quando dizem ser irrelevante que qualquer influência venha ou não a ser
exercida.61
Também Margarida Silva Pereira e Pedro Caeiro se encontram contra a posição que aqui
defendemos. No seu entender, a “especificidade do perigo causado pelo tráfico de influência
reside no pactum sclereris, (...) pois só por isso se compreende que o tipo vise proibir o
negócio, e não, muito simplesmente, o abuso (desinteressado) da influência”.62 Por este
motivo, Pedro Caeiro conclui que incriminar a mera solicitação de vantagem, enquanto
momento anterior ao pactum, sabendo que este provoca apenas um perigo abstrato para o
bem jurídico, corresponde a extravasar o permitido pela lei constitucional, pelo que existiria
uma violação do princípio da necessidade penal, consagrado nos artigos 1º e 18º da
Constituição da República Portuguesa. O mesmo entendimento se desenvolve a propósito da
incriminação dos casos de influência suposta.63
59
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in ob. cit., p. 1191.
60
Tomemos como exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27 de abril de 2010, Proc. n.º 31/08,
disponível in http://www.dgsi.pt./
61
Cfr. parágrafos 43 e 66 do Explanatory Report to the Criminal Law Convention on Corruption de 1999,
disponível in
https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=09000016800c
ce44.
62
Cfr. PEDRO CAEIRO, in ob. cit., p. 278.
63
Tal como veremos infra no ponto 7.
23
6.4. Da Contrapartida: a Vantagem
Ora, da mesma forma que nullum crimen sine lege, podemos afirmar que tão pouco se
verifica o crime de tráfico de influência sem a existência de uma vantagem perfeitamente
determinada. Esta vantagem é dada ou prometida sempre com o intuído de que o traficante
abuse da sua influência sobre o decisor público. Trata-se, por isso, do proveito que o
traficante, ou um terceiro, pretende obter e daquilo que o comprador estará disposto a ceder.
Atendendo à ratio da incriminação, torna-se simples concluir que o conhecimento e o
acordo sobre esta vantagem sempre precederão a prática da conduta (i)lícita. Sem esta relação
negocial subjacente, não haverá preenchimento do tipo uma vez que “não se pode desprender
o fundamento incriminatório do tráfico dessa outra relação negocial”.64
A intenção do legislador resulta, hoje, expressa no texto da lei: a vantagem de que falamos
pode ou não extravasar o domínio económico.65 Relevante é que a solicitação dessa vantagem
“nunca está a coberto de uma cláusula de adequação social”66 e, por isso, nunca seria devida.
Já a aceitação dessa mesma vantagem poderá ser socialmente adequada. Sê-lo-á sempre
que, de acordo com a teoria da adequação social, desenvolvida por Hanz Wezel, o
recebimento da vantagem, conduta que, abstrata e formalmente, caberia no escopo da
incriminação, seja socialmente tolerável e, por isso, não lese o bem jurídico protegido.
Concretizando, será socialmente adequada desde que o valor recebido- no caso de ser uma
vantagem patrimonial- seja diminuto67, nos termos da alínea c) do artigo 202.º do Código
Penal. Estes casos, pela sua pequenez, não integram a conduta típica e, por isso, não
preenchem o tipo legal.
64
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, Acerca do novo tipo de tráfico de influência in Jornadas sobre a
Revisão do Código Penal, Maria Fernanda Palma e Teresa Pizarro Beleza (org.), Lisboa, AAFDL, 1998, p. 293.
65
Tal como a lei refere, estará em causa uma vantagem patrimonial- portanto, suscetível de avaliação
pecuniária- ou não patrimonial. No entendimento de CEZAR ROBERTO BITENCOURT, uma vantagem não
patrimonial poderá ser de índole “moral, ou, inclusive, sexual” , in Uma Revisão Conceitual do crime de Tráfico
de Influência: Criminologia e Sistemas jurídico-Penais Contemporâneos, (coord. Ruth Chittó Gauer),
EDIPURCS, 2008, disponível em
https://books.google.pt/books?id=ZbPfFQmfy3IC&pg=PA184&lpg=PA184&dq=cezar+roberto+bitencour+t+
relação+triangular+entre+sujeito+ativo&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false.
66
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in ob. cit., p. 1180, a propósito do comentário ao artigo 372º do
Código Penal.
67
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in ob. cit., p. 1180, a propósito do comentário ao artigo 372º do
Código Penal.
24
6.5. Da Influência: Real ou Suposta
68
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, in Direito Penal. Direito do Risco. Comparticipação Criminosa.
Tráfico de Influência, Quid Juris, Lisboa, 2012, p. 134. Neste seguimento, a Professora afirma ainda que “a
influência verdadeira é uma probatio diabolica, que tem vocação para o fracasso”.
69
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, ibidem, p.135.
70
Contrariamente ao que acontece no art. 163.º do Código Penal em que o que se pune é a agressão à vontade,
liberdade e autodeterminação de uma pessoa, tal como nos explica Margarida Silva Pereira.
25
Por um lado, uma parte da doutrina71 cinge a aplicação do ato de influenciar às relações
estritamente profissionais. Segundo este entendimento, para que se verifique um verdadeiro
abuso de influência deve verificar-se o constrangimento da vontade da entidade pública e a
adesão à vontade do influenciador motivada não por uma “qualquer relação objetivamente
desigual entre duas partes”72, mas por um “constrangimento “funcional”, relativo ao
exercício do cargo público; poder pessoal do traficante para provocar efeitos que o decisor
tema (...)”.73
Não entendemos ser esta a voz certa a atribuir ao artigo 335.º do Código Penal.
Analisando a letra da lei, verificamos que esta nada diz quanto à natureza das relações em
causa, o que constitui, desde logo, um argumento a favor da tese que aqui defendemos.
Pensamos que, se fosse esse o seu intuito, o legislador teria expressamente limitado o âmbito
do abuso de influência às relações pessoais. Assim sendo, entendemos que os amigos, os
familiares, os credores são perfeitamente capazes de influenciar outrem na tomada de uma
determinada decisão, detendo um verdadeiro e forte ascendente sobre muitos de nós, mesmo
que não pertençam “ao mundo da decisão administrativa, não possam conferir ou retirar
benesses profissionais ao intraneus a quem recorrem”.74
Para além do exposto, note-se que a natureza das relações em nada influi sobre o bem
jurídico tutelado. Facto é que, qualquer que seja a natureza do desequilíbrio social presente,
o bem jurídico em causa, leia-se, o prestígio da Administração pública, sairá imediatamente
beliscado assim que o influenciador procure influenciar.
Concluindo, pensamos que a razão se encontra com Germano Marques da Silva, Paulo
Pinto de Albuquerque e José Mouraz Lopes pelo que influenciar “será prevalecer-se desse
facto- relação pessoal, familiar, profissional ou outra- para a obtenção de uma vantagem”.75
71
Constituída, designadamente, por Alexandre Lafayette, Margarida da Silva Pereira, Pedro Caeiro e Victor de
Sá Pereira.
72
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, in ob. cit., p.137.
73
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, ibidem, p.138.
74
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA, ibidem, p.137.
75
Cfr. JOSÉ MOURAZ LOPES, Sobre o novo tipo de tráfico de influência (art. 335.º do Código Penal), in
Revista do Ministério Público, n.º 64, ano 16, outubro-dezembro, 1995, p. 64.
26
7. O Tipo Subjetivo
7.1. O Dolo
É do tipo subjetivo de ilícito doloso que nos vamos agora ocupar, sendo entendimento
dominante na doutrina que a ação que subjaz ao crime de tráfico de influência é
necessariamente dolosa76, comportando qualquer das modalidades: dolo direto, necessário
ou eventual.77
O dolo tem-se como o “conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de
ilícito”78 o que, no presente caso, e do lado do vendedor de influência, se traduz na tomada
de conhecimento do significado da sua ação- abuso de influência junto da entidade pública-,
querendo-o, por forma a obter uma determinada vantagem- patrimonial ou não patrimonial.
Do lado do comprador de influência, este quer e sabe o resultado do abuso de influência.
7.2. A Tentativa
Um agente tenta praticar um crime quando, nos termos do art. 22.º do Código Penal
pratica atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue, todavia, a
consumar-se, por algum motivo externo ao agente. O legislador enumera três situações que
preenchem o conceito de “atos de execução”.
O que desde logo se depreende é que a punibilidade da tentativa só se dá relativamente a
certos tipos de crimes: aqueles cuja pena, nos termos do art. 23.º do Código Penal, seja
superior a 3 anos de prisão.
Tendo o supramencionado por base, a posição que aqui se adote encontra-se
correlacionada com a posição adotada quanto ao bem jurídico tutelado e quanto ao momento
da consumação.
76
PEDRO CAEIRO ressalva um aspeto relevante quando nos ensina que “se o agente acreditar erroneamente
que a decisão pretendida pode ser tomada de acordo com a lei, o dolo do tipo deverá ter-se por excluído”, in ob.
cit. p. 284.
77
Nos termos do artigo 14.º do Código Penal.
78
Cfr. FIGUEIREDO DIAS, in ob. cit., p. 349.
27
Desta forma, para as vozes que entendem que a consumação ocorre no momento em que
existe um verdadeiro acordo entre as Partes, a tentativa é punível e verifica-se no momento
em que a vantagem é solicitada. “O mesmo se diga de todas as diligências e negociações
efetuadas até à obtenção, por parte do traficante, de uma vantagem ou da sua promessa- até
que se possa falar de um acordo”.79 Por sua vez, sempre que o traficante celebre o acordo
supondo que a decisão pretendida é ilegal, haverá tentativa impossível80, nos termos do
número 3 do artigo 23.º do Código Penal.
Defendemos uma posição distinta. Para nós, a consumação do crime ocorre com a
solicitação da vantagem pelo que, assim que ocorra uma tentativa- por não ser bem sucedida-
de solicitação, preenche-se o artigo 22.º do Código Penal.
Acrescenta-se, como nota, que, neste caso, a desistência relevante para efeitos do artigo
24.º do Código Penal ocorre sempre que o traficante de influência desista, voluntariamente,
da prática do crime, sem que as Partes tenham chegado a um acordo “sobre o montante ou a
espécie da vantagem em causa”.81
Nos termos do número 1 do artigo 335.º do Código Penal, pune-se a conduta da pessoa
que solicita ou aceita uma vantagem ou promessa, patrimonial ou não patrimonial, para
abusar da sua influência junto de qualquer entidade pública e, nos termos do número 2, a da
pessoa que prometa ou dê a vantagem. Desta forma, há quem entenda que se deveria
diferenciar entre a conduta ativa (de quem dá ou promete) e passiva (de quem recebe), à
semelhança do que acontece no crime de corrupção. No entanto, não tendo sido essa a opção
do legislador, também não vislumbramos razão para argumentar dessa forma.
79
Cfr. PEDRO CAEIRO, in ob. cit., p. 284. A sua posição decorre, desde logo, do facto de o Autor entender
que a punição da simples solicitação a título de consumação é inconstitucional por violação do princípio da
necessidade penal.
80
“Quem parte erroneamente, no seu comportamento, de circunstâncias que, se fossem verdadeiras,
preencheriam um tipo de crime, comete uma tentativa impossível”, de acordo com FIGUEIREDO DIAS, in ob.
cit., p. 719.
81
Cfr. PEDRO CAEIRO, in ob. cit., p. 284.
28
De facto, o que sempre se pretende com o abuso da influência é a obtenção de uma
decisão favorável, i.e., que coincida “com os interesses do comprador- mesmo que tal
82
interesse resida, exclusivamente num prejuízo de terceiro, sem benefício próprio”. Esta
decisão pode, desde 2001, ser lícita ou ilícita 83, variando a medida da pena, sendo elemento
essencial que seja obtida de forma abusiva constituindo, desta forma, sempre um crime.
Quanto à inserção da figura da influência suposta no ordenamento jurídico português,
deu-se com a entrada em vigor da Lei n.º 65/98, de 02 de setembro. Até então, para que fosse
possível a incriminação de um agente por tráfico de influência, a sua capacidade de influência
teria que ser efetiva, real. Esta alteração legislativa mereceu algumas críticas, mas tentemos
entender, primeiro, em que consiste o conceito de influência suposta.
Ora, esta ocorre sempre que o traficante anuncia a promessa ou a dádiva de uma
influência que é, afinal, inexistente. Para tal, faz uso da sua capacidade de persuasão,
utilizando todos os meios para alcançar o seu fim: induzir no comprador a convicção de que
será capaz de abusar da sua influência.
Naturalmente que, para que o seu objetivo seja cumprido com sucesso, não basta que o
vendedor de influência anuncie, em tom jocoso ou desafiador, na descontração de uma saída
à noite, que detém este poder. Mesmo que a lei não exija uma real influência, é necessário ir
mais além. Tal resulta do entendimento que adotámos supra quando dissemos que existe um
“círculo natural de agentes”. Pretendíamos culminar precisamente neste sentido: é necessário
que o agente seja credível. Sê-lo-á aquele que possa efetivamente demonstrar a sua condição:
seja através da sua profissão- i.e. que, por ter uma maior e forte proximidade com a entidade
pública, seja mais fácil completar o objetivo a que se propôs-, seja através das suas soft skills
(determinação, firmeza, capacidade de persuasão). Desta forma, excluem-se, no nosso
entender, todos aqueles que sejam, pura e simplesmente, insolentes.
Só desta forma se poderá colocar em risco o prestígio da Administração, bem jurídico
que defendemos ser tutelado pela incriminação.
82
Cfr. PEDRO CAEIRO, in ob. cit., p. 283.
83
No caso do “traficante passivo”, i.e., no caso do número 1, do artigo 335.º do Código Penal. Já o “traficante
ativo” só é punido no caso de pretender obter uma decisão ilícita favorável para si ou para terceiro, nos termos
do número 2 do artigo 335.º do Código Penal.
29
No entanto, a circunstância da lei expressamente consagrar esta situação não parece ser
suficiente para que a totalidade da doutrina a aceite. Por isso mesmo, entendem alguns
autores que a incriminação da influência meramente suposta é inconstitucional, por violação
do princípio da necessidade da lei penal84, previsto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da
República Portuguesa. Esta crítica advém da seguinte questão: A alardeia, junto de B, a sua
influência sobre C; no entanto, verifica-se, posteriormente, que não a detinha realmente. Ora,
argumentam os autores que se A, traficante, não detinha uma verdadeira influência, mas
apenas suposta, não seria capaz de abusar da sua influência, colocando em causa o bem
jurídico protegido pela norma no artigo 335.º do Código Penal. Mais uma vez, a crítica
dirigida relaciona-se com a identificação do bem jurídico tutelado.
Neste sentido, Pedro Caeiro escreve que “nem se diga que com a inclusão do abuso de
influência suposta no tipo se atalha a eventuais problemas de prova que redundariam, as mais
das vezes, na aplicação do princípio in dubio pro reo e, portanto, na absolvição do agente,
pois essa ratio político criminal não pode sobrepor-se à exigência constitucional da
necessidade da lei penal para proteger um bem jurídico”. Por isso, coloca em causa a própria
legitimidade da incriminação, configurando esta ação como “inócua para o bem jurídico”.85
Para nós, a questão não se coloca. Para os defensores da tese que acabámos de explicitar,
sendo o bem jurídico tutelado a autonomia intencional do Estado, não seria possível defender
a incriminação da influência suposta, num sistema penal e constitucional como o nosso: ao
tratar-se de uma influência suposta, a conduta do traficante não chegaria a produzir um perigo
grave ou um resultado lesivo para o bem jurídico. Por isso, o artigo 335.º do Código Penal
será, sempre, parcialmente inconstitucional.
No entanto, tal como argumenta Margarida Silva Pereira, “a afetação de valimento
inexistente sempre se ligou à proteção de outros bens jurídicos, nomeadamente (...) o
prestígio da Administração”.86 É por este motivo que a nossa argumentação não levanta
dúvidas. De facto, ao defendermos, junto com Germano Marques da Silva, Cavaleiro Ferreira
84
Este consubstancia-se na inexistência de outro tipo de remédio que permitisse proteger, eficazmente, o bem
jurídico bem como na adequação e proporcionalidade entre a ação ilícita cometida e a sanção aplicável:
“minimis non curat praetor”.
85
Cfr. PEDRO CAEIRO, in ob. cit., p. 278.
86
Cfr. PEDRO CAEIRO, ibidem.
30
e Paulo Pinto de Albuquerque87, que o bem jurídico protegido é o prestígio da Administração,
torna-se consequente afirmar que a mera proclamação de influência, real ou suposta, a
existência ou não de um acordo prévio, o coloca em causa, preenchendo a conduta típica do
artigo 335.º do Código Penal. Toda a estrutura da Administração fica beliscada assim que A
incute em B a descrença nas instituições, na igualdade entre os cidadãos, por intermédio da
sua capacidade de abusar da sua influência.
Consideramos, assim, que o legislador decidiu bem ao prever os casos de influência real
e suposta.
Outra discussão que nos despertou interesse desde cedo foi a possível relação entre o
crime de tráfico de influência e o crime de burla. Esta ligação existirá sempre que A promete
exercer a sua influência, B paga o valor acordado, mas, afinal, não vê a sua vantagem
concretizada. O que está aqui em causa é a situação em que B fica colocado, uma vez que
confiou que A ia usar da sua influência em seu benefício, mas foi enganado: ou porque A
vendeu uma influência que não detinha ou, por e simplesmente, porque não cumpriu com o
acordado. De qualquer das formas, sempre está em causa uma atitude enganadora que frustra
as expectativas de B que, por sua vez, pretende, assim, que A responda pelo crime de burla,
p.e.p. pelo número 1 do artigo 217.º do Código Penal88 por considerar estarem reunidos os
elementos estruturais deste crime bem como os requisitos que determinam a intervenção do
direito penal. Recorde-se que já Luís Osório referia que o tráfico de influência era uma
espécie de burla.89
Desde logo, a doutrina que vê na incriminação da suposta influência uma
inconstitucionalidade, afasta qualquer tipo de concurso entre as duas normas: sendo
87
Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in ob. cit., p. 1086 ensinando-nos que a incriminação da
influência suposta “não viola os princípios da necessidade e da mínima intervenção do direito penal, afigurando-
se como um instrumento fundamental na defesa do Estado de Direito”.
88
Nos termos deste artigo, “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por
meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe
causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena
de multa”.
89
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA in ob. cit., p. 118.
31
necessário para o preenchimento do tipo que a influência realmente exista, o que se verifica
é, na verdade, uma relação de alternatividade entre os dois preceitos. Esta doutrina
acrescenta, contudo que “pode existir um concurso efetivo ideal dos dois crimes se o
traficante que detém real influência utilizou artifícios fraudulentos para convencer o
comprador de que iria exercer efetivamente a sua influência quando na verdade nunca teve
tal intenção”90.
Siga-se ou não a corrente que defende a inconstitucionalidade da norma nesta ou numa
outra parte, parece que devemos deixar claro que o concurso de crimes se dá “sempre que no
mesmo processo penal o comportamento global imputado ao agente preenche mais do que
um tipo legal de crime, previsto em mais do que uma norma concretamente aplicável, ou
preenche várias vezes o mesmo tipo legal de crime”.91 É lógico que o crime de tráfico de
influência difere do crime de burla.
Desde logo, quanto ao bem jurídico tutelado que, no primeiro, é a credibilidade e o
prestígio da Administração e, no segundo, é a proteção do património do lesado.
Também Margarida Silva Pereira, a propósito do Código Penal de 82, já explicava que
na burla está sempre em causa uma lesão patrimonial, algo que o artigo 335.º do Código
Penal não exige92.
Coisa que não se exige é, ademais, o elemento subjetivo, relevantíssimo no caso da burla:
nada na letra da lei nos indica esse caminho o que significa que “o pretexto de influência
prescinde de manobras fraudulentas, ou sequer de astúcia”.93
Ao nos debruçarmos um pouco mais sobre o crime de burla, entendemos ainda que este
crime não prescinde da concretização do dano patrimonial94 ao passo que, como já sabemos,
o crime de tráfico de influência consuma-se assim que a vantagem é dada ou prometida, não
sendo necessário que a influência seja verdadeiramente exercida.
Para Germano Marques da Silva, Paulo Pinto de Albuquerque e Manuel Lopes Maia
Gonçalves, nestes casos, em que não existia qualquer influência, ou esta não foi exercida, o
que existe é uma relação de concurso aparente, sendo de aplicar a sanção mais grave, na
90
Cfr. PEDRO CAEIRO in ob. cit., p. 284.
91
Cfr. FIGUEIREDO DIAS in ob. cit., p. 1005.
92
Na verdade, estarão em causa todo o tipo de vantagens: patrimoniais e não patrimoniais.
93
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA in ob. cit., p. 131.
94
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA ibidem.
32
ponderação entre as duas normas. Ora, configura-se uma situação de concurso aparente
sempre que, embora exista um conjunto de normas potencialmente aplicáveis, se possa
concluir que “os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se
conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de tal forma que se deva concluir
que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por
95
um sentido (...) predominante (...).” É esta linha de pensamento que se adequa ao caso,
verificando-se “uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma
pluralidade de crimes efetivamente cometidos”96 porquanto existe um sentido de ilicitude
dominante que se reconduz à unidade do facto.
Mesmo que todos estes elementos não se considerem suficientes existe um que, para nós,
é gritante e que não pode ser ignorado. De que forma, com que legitimidade, se pode
argumentar que B, o nosso indivíduo enganado pode alegar ter sido vítima do crime de burla
quando, verdadeiramente, ele próprio entregou dinheiro ao vendedor de influência para a
prática de um crime? Note-se que as intenções de B, ilícitas, não se concretizam apenas por
razões totalmente alheias à sua vontade; e que, no tipo de burla, protege-se o património do
lesado uma vez que este aceitou o acordo imbuído de boa fé, tanto na sua formação como na
sua execução. Por isso mesmo, neste crime, a lei não só não o pune, como o protege,
considerando-o como vítima, mesmo quando, como nos ensina Beleza dos Santos, tem
“também um final ilícito em vista, quando aceita como verdadeira a falsa aparência que o
burlão lhe apresenta” dado que isso “não altera o caráter criminoso dos factos quanto ao
agente do crime.”97
Todos estes aspetos marcam, em nosso entender, a fronteira que distingue as duas
matérias em causa dado que a burla não resulta de um acordo de influência que lese os
interesses das funções pública.
95
Cfr. FIGUEIREDO DIAS in ob. cit., p. 1011.
96
Cfr. FIGUEIREDO DIAS ibidem., p. 1012.
97
Cfr. MARGARIDA SILVA PEREIRA in ob. cit., p. 131.
33
10. Conclusão
35
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Jurisprudência
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