Cosmopolitismo e Performatividade

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EDUR • Educação em Revista.

2019; 35:e203727
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698203727
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

ARTIGO

COSMOPOLITISMO E PERFORMATIVIDADE: CATEGORIAS PARA UMA


ANÁLISE DAS COMPETÊNCIAS NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

ALESSANDRO DE MELO I *
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6119-5081

ANA CLAUDIA MAROCHI II **


ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1863-0233

I Universidade Estadual do Centro-Oeste, Guarapuava, Paraná, Brasil.


II Instituto Federal do Paraná, campus Irati, Paraná, Brasil.

RESUMO: O artigo discute as categorias de conformação das subjetividades


adaptadas ao cenário social de crise do capital, especificamente as categorias
cosmopolitismo e performatividade, e como a categoria de competências,
enfatizada na Base Nacional Comum Curricular, se relaciona com elas. As
reformas educativas neoliberais possuem o papel de produzir conformismo
por meio da formação unilateral para o trabalho e para uma cidadania
adequada às características deste tempo: precariedade do trabalho e aumento
do desemprego, competitividade, repressão do Estado e o aniquilamento
das resistências da classe trabalhadora e, como pano de fundo ideológico, o
processo de deslocamento das responsabilidades para o âmbito individual.
As competências são uma forma de adaptação do projeto educacional a
este tipo de sociabilidade, que esvazia as qualificações profissionais para
percursos laborais individuais, inseguros, sujeitos a constantes avaliações.
Assim, o cosmopolita, como empreendedor de si mesmo, é o projeto de
formação humana adequada ao espírito performático neoliberal.
Palavras-chave: Cosmopolitismo. Performatividade. Competências. BNCC.

Alessandro de Melo - Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da


Universidade Estadual do Centro-Oeste – PPGE/UNICENTRO. Líder do Grupo de Pesquisa em Trabalho,
Educação e História – UNICENTRO. E-mail:<alessandrodemelo2006@hotmail.com>.

Ana Claudia Marochi - Mestra em Educação – PPGE/UNICENTRO. Doutoranda em Educação - PPGE/


UFSC. Professora de Biologia da Rede Estadual de Educação do Paraná. Pedagoga do Instituto Federal de
Educação do Paraná, campus Irati. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Trabalho, Educação e História
– UNICENTRO e do Grupo de Estudos sobre Trabalho, Educação e Infância - GETEI/UFSC.
E-mail:<anacmarochi@hotmail.com>.

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COSMOPOLITANISM AND PERFORMATIVITY: CATEGORIES FOR AN ANALYSIS OF THE


COMPETENCIES ON THE NATIONAL CURRICULAR COMMON BASE

ABSTRACT: The article discusses the categories of conformation of the


subjectivities adapted to social scenario of the capital crisis, specifically
the categories cosmopolitanism and performativity, and as the category of
competences, emphasized on the National Curricular Common Base, relates to
them. The neoliberal education reforms have the role of producing conformity
by means of unilateral training for work and for a proper citizenship at this
time features: job insecurity and rising unemployment, competitiveness, State
repression and the annihilation of the resistance of the working class and, as
ideological backdrop, the process of shifting responsibilities to the individual
scope. The competences are a form of adaptation of the educational project
to this kind of sociability, which empties the professional qualifications for
individual employment pathways, insecure, subject to constant evaluation.
Thus, the cosmopolitan, as an entrepreneur himself, is the design of suitable
human formation to the neoliberal performance spirit.
Keywords: Cosmopolitanism. Performativity. Competences. BNCC.

____

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende levantar discussões sobre uma relação


bastante profícua para a compreensão de como determinadas categorias
teóricas verdadeiramente ganham vida por meio das reformas
educativas neoliberais, no sentido de colocar os projetos educativos
numa posição de subordinação (como ontologicamente o é de fato)
ao capital em crise na contemporaneidade. Nesse sentido, o papel da
educação é a formação de subjetividades adaptadas e adaptáveis ao
cenário da crise social e econômica, para o que concorrem as categorias
cosmopolitismo e performatividade, e em relação às quais se referencia
a categoria competência presente na Base Nacional Comum Curricular
– BNCC, que é a Resolução CNE-CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017.
Popkewitz (2009) é a referência quanto à categoria
cosmopolitismo, e é por este autor que compreendemos que a
formação cosmopolita é aquela de sujeitos que não apenas se adaptem
ao sistema, mas que, verdadeiramente, queiram isso, ou seja, trata-se
de inculcar processos de conformismos e aceitação ativa do sistema
de competitividade, naturalizado pelo sujeito cosmopolita, fruto da
luta hegemônica das classes dominantes, em um momento de crise
estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2011).
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Ball (2005), por sua vez, é nossa referência para o estudo da


performatividade, que se trata de uma “tecnologia política”, conforme os
preceitos foucaultianos do autor. O ambiente social no qual o cosmopolita
habita é um cenário repleto de julgamentos, comparações públicas de
resultados, controles e avaliações contínuas, que exigem a todo o momento
a atenção à produtividade e à relação custo-benefício das ações.
As competências, entendidas como a capacidade de mobilizar
conhecimentos,habilidadesevalores,referem-seàresoluçãodeproblemas
num ambiente caracterizado, como vimos, pelo cosmopolitismo e
performatividade, que é um cenário típico da sociabilidade neoliberal
(ANDERSON, 2003; WATKINS, 2012; ROSS, GIBSON, 2007;
RAMOS, 2001; SILVA, 2008; ZIBECHI, 2014). É por esta via da
análise categorial das reformas educativas neoliberais (MELO, 2016), e
tomando a BNCC especificamente, que se desenvolveu- este trabalho
em três partes. Na segunda parte tratar-se-á das categorias fundantes
da construção das subjetividades da sociabilidade neoliberal, que são
o cosmopolitismo e a performatividade. Na terceira parte será tratada
especificamente a categoria competência da BNCC, tratando-a como
síntese ideológica de uma reforma educativa neoliberal, cujo objetivo é
a formação de subjetividades adaptadas e adaptáveis ao cenário de crise
do capital na especificidade brasileira.

COSMOPOLITISMO E PERFORMATIVIDADE: A FORMAÇÃO HUMANA UNILATERAL


EM TEMPOS DE CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL

As reformas educativas neoliberais, impulsionadas pelos Estados


nacionais e influenciadas por agentes privados nacionais e internacionais,
trazem em seu bojo um projeto de radical mercantilização da educação,
tanto no sentido clássico, de formação do capital humano, do trabalhador
produtivo, como uma fronteira para a realização do capital, tanto como
investimento para a produção e promoção da mercadoria-educação,
quanto pela luta pelo reparto dos fundos públicos.
De fato, as reformas educativas são parte constituinte das
formas de regulação social e, logo, de dominação. Portanto, tocam
relações de poder e, especificamente, entre saber e poder. O objetivo
central parece ser o da produção do conformismo, tal como aclara
Gramsci em clássica síntese presente no Caderno 13, parágrafo 7, dos
Cadernos do Cárcere, quando analisa a obra O Príncipe, de Maquiavel.
Questão do ‘homem coletivo’ ou do ‘conformismo social’. Missão educativa e
formativa do Estado, que sempre tem o fim de criar novos e mais elevados tipos
de ‘civilização’ e a moralidade das massas populares mais vastas às necessidades

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de contínuo desenvolvimento do aparato econômico de produção, e, portanto, de


elaborar inclusive fisicamente tipos novos de humanidade. (GRAMSCI, 1998, p.21).

Dado este objetivo de produção do conformismo, no entanto,


ele nunca está pronto e acabado. Trata-se de uma relação em suspenso,
em equilíbrio instável, que produz um “conflito subjacente” (HARVEY,
2014), o que explica que neste ponto haja uma forte interferência estatal
no sistema educacional, no sentido de dar a ele uma organicidade e
funcionamento de tal forma que aparente ser um projeto de todos e
para todos, no sentido de um “pacto social” (FARIA, MELO, 2014).
No entanto, a forte presença estatal no sistema educativo se
dá em um contexto de subordinação dos Estados nacionais ao amplo
poder das corporações multinacionais e pela característica financeira
do capitalismo, representados por organismos internacionais
igualmente poderosos, com destaque para a Organização Mundial do
Comércio – OMC, o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco
Mundial – BM, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico – OCDE entre outros.
Assim, na prática, o que vemos são os Estados nacionais se
convertendo em agências para a reprodução capitalista, tal como
denunciou Mészáros (2011) em relação à crise de 2008 e o socorro
que os EUA deram às grandes corporações financeiras daquele país.
O setor financeiro, improdutivo, acaba por influir diretamente na
crise do setor produtivo da economia.
Como resultado do desenvolvimento histórico sob a regra do capital na sua
crise estrutural, na nossa própria época atingimos o ponto em que devemos ser
submetidos ao impacto destrutivo de uma simbiose entre a estrutura legislativa
do Estado da nossa sociedade e o material produtivo, bem como da dimensão
financeira da ordem reprodutiva societária estabelecida. (MÉSZÁROS, 2011, p.25)

É neste cenário de dominação acachapante do capital em crise


que advém as políticas neoliberais em geral e as políticas educacionais
em particular. Assim, o eixo fundante da sociabilidade neoliberal é a
transferência das responsabilidades da comunidade para os indivíduos
(ROOS, GIBSON, 2007), que se atrela umbilicalmente à crença ideológica
nas liberdades individuais e na livre iniciativa, que politicamente se
reveste da ideia de “Estado mínimo”, acaba se transformando em uma
fórmula mistificadora, haja vista a presença forte do Estado em vários
setores, tal como comenta Gerson (2012, p.100).
O Estado reivindicou sua força para garantir o lucro e a privatização por meio
da desregulamentação dos negócios (bancos, corporações, escolas charter)
e a eliminação das regulações do projeto de direitos básicos das pessoas
(trabalho, estudantes, professores, manifestantes, imigrantes etc.), enquanto
simultaneamente, aumentava a regulação da punição e disciplina das pessoas.

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No que tange ao papel coercitivo do Estado, este nada tem de


mínimo. E, também, nada de mínimo tem o Estado nas mediações
que faz junto ao capital financeiro e produtivo, no sentido de transferir
recursos para a iniciativa privada.1
Justamente neste período de ascensão da repressão às formas
de resistência social (ZIBECHI, 2014), as políticas neoliberais
consumam outra faceta fundamental: a precarização do trabalho
(ALVES, 2000; 2007; ANTUNES, 2004; 2005; CAVALCANTE,
2018; GOUNET, 1999; HARVEY, 2002; HOLANDA, 2001;
KUENZER, 2007). A condição de precariedade é intrínseca à relação
sociometabólica do capital, ou seja, a constituição como trabalho
livre e assalariado já comporta em si esta condição, já que é, e sempre
será, sob o sistema do capital, trabalho explorado. No entanto, a atual
precariedade avança sobre as formas de trabalho que historicamente
recebiam da parte dos Estados nacionais certa proteção social. A crise
estrutural contemporânea, cujos marcos históricos remetem à crise
do petróleo de 1973 e se perpetua até hoje, tem como característica o
enfraquecimento das resistências da classe trabalhadora e, com isso,
um avanço sobre o que antes eram direitos trabalhistas.
O processo de precarização do trabalho é, assim, um processo de supressão dos
obstáculos constituídos pela luta de classes em relação à voracidade do capital. A
precarização possui um sentido de perda de direitos acumulados no decorrer dos anos
pelas mais diversas categorias de assalariados [...] é, assim, uma forma de ser sócio-
histórico da condição ontológica da força de trabalho como mercadoria. Enquanto
existir precariedade, isto é, enquanto existir subsunção do trabalho em relação ao
capital, haverá possibilidade objetiva de precarização. (CAVALCANTE, 2018, p.26).

A faceta empírica desta condição sociometabólica do trabalho


no sistema do capital é a enorme quantidade de desempregados e uma
parcela significativa de contratos de trabalho por tempo determinado,
por tempo parcial, por jornada de trabalho ou mesmo informal, sem
nenhuma garantia estatal.
Portanto, em grandes linhas, é este o cenário social no qual
são inseridas as reformas educativas e, consequentemente, é neste
contexto que se procura produzir as subjetividades adaptadas à crise
do capital, cujas principais características são o cosmopolitismo e a
performatividade, que serão tratadas a seguir.

COSMOPOLITISMO: HISTÓRIA DE SALVAÇÃO INDIVIDUAL NO CONTEXTO DE UMA SOCIABILIDADE


NEOLIBERAL
No âmbito da sociabilidade neoliberal, o projeto educativo
torna-se projeto de subordinação da formação humana às demandas do
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mercado. A figura típica comumente encontrada é a do “empreendedor”,


que nada mais é que o sujeito não conformado com sua situação e
que, movido pela crença no sistema capitalista, age voluntariamente
para melhor se colocar tanto no mercado, como empresário (até de si
mesmo), quanto no mercado de trabalho. Para isso age racionalmente,
nos limites possíveis dados pelo acesso às informações disponíveis, a
fim de se qualificar, e se coloca sempre em posição de proatividade nos
contextos laborais em que se encontra (WOLF, MELO, 2014).
O projeto educativo neoliberal, tal como expressa pela BNCC
e a categoria competência, obedece aos preceitos dos projetos
empresariais, que assim é resumido por Melo (2010, p.188) na sua
análise da Confederação Nacional da Indústria – CNI.
Para os empresários interessa que os trabalhadores atuem para uma adaptação
constante, visando sua empregabilidade, pois isso se reflete em maior
produtividade; mas também interessa a estes empresários que os trabalhadores,
nas empresas, sejam empreendedores no sentido de não se acomodar com as
situações dadas e buscar constantemente melhorias nos processos de trabalho,
liderança nas equipes entre outras características do ‘intraempreendedor’, ou seja,
do trabalhador empregado empreendedor.

Aquele deslocamento das responsabilidades para os


indivíduos ganha assim um substrato concreto na formação do perfil
empreendedor, que se responsabiliza por sua formação inicial e
continuada, bem como pela manutenção e desenvolvimento de sua
carreira e/ou negócio.
Cêa (2007, p. 313) nos apresenta uma excelente síntese do
empreendedorismo e o papel que este, como forma de salvação
individual, representa em tempos de crise do capital.
Primeiro, o enfrentamento da problemática do desemprego, no atual contexto
de relações capitalistas de produção, requer uma dupla condição: que os sujeitos
busquem deliberadamente, formas próprias e autônomas de sobrevivência, e que
os mesmos se proponham a tomar a iniciativa de empresariar suas individualidades.
Segundo, na medida em que a pobreza e a miséria se aprofundam como elementos
estruturais do movimento econômico e político em curso, é necessário que sejam
administradas, papel que cabe ao Estado, uma vez que o mercado se constitui no
espaço, por excelência, do laissez faire.

É neste quadro que o projeto burguês de educação visa


inculcar o cosmopolitismo, forma de salvação individual, numa
teia social esgarçada tanto pela crise do capital quanto pelas formas
ideológicas de convivência da mesma e, também, pelas propostas
burguesas de superação.
A educação é uma parte da longa engrenagem da produção
e reprodução ampliada do capital, e como já dissemos, seu principal
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papel é o de produzir conformismos. Podemos dizer que o


aprendizado de “resolução de problemas” é uma forma privilegiada
que as reformas educativas neoliberais encontraram para isso, tal
como defende Fullan (2002).
Um crítico a este fundamento neoliberal das reformas
educativas é Popkewitz (2009), para quem a resolução de problemas
possui duas funções: a primeira é o desenvolvimento de procedimentos
de ensino que desenvolvam uma mentalidade adaptada à racionalidade
pragmática, visando respostas objetivas. Mas é quanto à segunda
função que a resolução de problemas se aproxima do cosmopolitismo.
A resolução de problemas rege os princípios de conduta como princípios morais,
que se relacionam mais com o cosmopolitismo inacabado que com o raciocínio
matemático per se. A resolução de problemas não trata somente de solucionar
problemas! Uma instrução efetiva deve conseguir que as crianças ‘queiram’, além
de que eles sejam ‘capazes de’. (POPKEWITZ, 2009, p.159).

Antes de prosseguir com a questão da resolução de problemas,


importante destacar que o cosmopolitismo é uma herança da
Ilustração, da racionalidade moderna, da formação do chamado
“cidadão do mundo”, que nasce com a modernidade. Este sujeito
racional, que age conforme finalidades (WEBER,1977), calcula riscos
e aposta em estratégias e táticas para a sua vida, de modo individual,
em conformidade com o advento da sociedade civil burguesa, que
fragmenta as relações, individualizando as condutas e objetivos. O
cosmopolita, portanto, é aquele que se guia por seus objetivos em
meio a uma selva de muitos outros cosmopolitas que estão na mesma
situação, e cujas histórias de salvação particular podem se chocar com
a sua, impelindo à concorrência hobbesiana.
Portanto, a capacidade de resolver problemas apresenta esta dupla
dimensão: de desenvolver a racionalidade, que se expressa nas condutas,
na internalização e naturalização de modos de ser, em um mundo de
incertezas e inseguranças derivadas da crise estrutural do capital.
Outra face do cosmopolitismo é o que Popkewitz (2009)
denomina como “gestos duplos”, que é o movimento duplo de
inclusão e exclusão pela mediação da normalização. “Normalizar
significa uma tecnologia política e social de separação dos que
possuem os requisitos cosmopolitas dos que não os possuem”
(MELO, 2016, p.50). Em nível mundial o que produz este tipo de
sociabilidade são processos de exclusões dos mais dramáticos, pois
atingem, prioritariamente, as populações cujas lógicas de vida e
sociabilidade não se adequam ao cosmopolitismo. “O sistema do
capital, afinal de contas, não cria apenas mais mercadorias do que
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o necessário para o consumo, mas também faz com que milhões de


pessoas sejam ‘sobrantes’ [...].” (MELO, 2016, p.51).
A normalização social é também refletida na escola e no sistema
educacional. e As reformas educativas neoliberais são expressões
deste processo. A educação escolar é uma agência normalizadora,
afinando o que é e deve ser uma pessoa formada, o que é e deve ser
o trabalhador produtivo, qual deve ser o currículo e o que não deve
nele estar presente, como conteúdos e práticas educativas. Assim, a
escola tanto ajusta os que são adaptados ao cosmopolitismo, quanto
isola e exclui os que não possuem os requisitos para ser cosmopolitas,
afinal: “A função manifesta da escola moderna é ensinar às crianças
princípios cosmopolitas sobre a razão”. (POPKEWITZ, 2009, p.20).
A normatividade separa os empreendedores e os que não o
são; separa os que o mercado pode capturar como força de trabalho
e os que não se adaptam às suas exigências, ou que “sobram”. E em
épocas de crise, esta seleção social torna nossa realidade ainda mais
dramática. Segundo a OCDE, que classificamos como uma agência
do cosmopolitismo.
Na medida em que as economias da OCDE baseiam-se cada vez mais no
conhecimento, espera-se que os jovens tenham competências básicas sólidas
para participar ativamente na sociedade e no mercado de trabalho. Os sistemas
educativos devem garantir que os jovens alcancem um nível mínimo de
competências transferíveis e úteis, não somente nas profissões e nos trabalhos, mas
também em outros âmbitos, como a família e a vida social. (OCDE, 2015, p. 76).

Por esta exposição da OCDE percebe-se o caráter cosmopolita


da reforma educativa, que estimula a adaptação ativa das novas
gerações à economia capitalista, naturalizada como “sociedade do
conhecimento” e de formação de subjetividades racionais, adaptadas
e adaptáveis tanto ao mundo do trabalho, quanto para a vida social.
Trata-se de incluir os “competentes” e, por consequência, excluir ou
marginalizar os “incompetentes”, inadaptados e culpabilizados por
não ser cosmopolitas.
Neste processo ocorre como um “desencantamento”
(WEBER, 1992) da educação, reduzida a processos de mercantilização,
de formação humana como “capital” para as empresas. A educação
deixa de ser um fim em si mesma, passa a ser meio de encontrar os
projetos de salvação particular. Muñoz (2002, p.192) resume assim
este clima do projeto cosmopolita de educação.
Nesta rede de qualidades pela metade e eficácias empiricamente documentáveis
e mensuráveis, a educação como experiência valiosa em si mesma; como espaço
de desenvolvimento social e pessoal em sua mais ampla acepção e tradição é

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esvaziado ou seriamente alterado. E, assim, hipotecado e instrumentalizado, a


serviço de resultados, dos produtos, dos diplomas mais rentáveis e resgatáveis no
mercado de trabalho ou em outras transações pessoais e sociais.

Este “desencantamento”, pela via da desertificação neoliberal,


(ANTUNES, 2004) encontra, na categoria performatividade, um
importante reflexo e continuidade.

PERFORMATIVIDADE E O IMPÉRIO DO CONTROLE SOCIAL SOBRE OS SUJEITOS


Nesta parte do texto vamos focar os esforços na compreensão
da performatividade, entendendo-a como expressão de uma
forma de dominação social que afeta diretamente a educação. A
performatividade, segundo Ball (2005), é uma tecnologia política, uma
cultura organizacional e um método de regulação social, ou seja, ela:
emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito
e mudança. Os desempenhos de sujeitos individuais ou de organizações servem de
parâmetros de produtividade ou de resultado, ou servem ainda como demonstrações
de ‘qualidade’ ou ‘momentos’ de promoção ou inspeção. (BALL, 2005, p. 543).

Desde já se explicita o fato de que nesta base assentada por


Ball separam-se e hierarquizam-se os sujeitos que detém ferramentas,
poder e/ou legitimidade de classificar, e aqueles que são classificados.
No caso das reformas educativas neoliberais, os Estados são os grandes
avaliadores dos sistemas educacionais, ou seja, são os “auditores” do
sistema, mesmo que nem sempre os critérios sejam autonomamente
construídos, dado o grau de dependência das agências internacionais
como a OCDE e o PISA (MELO, 2016). E, ainda, o órgão de
avaliação central nem sempre contribui com os meios disponíveis para
a performance dos indivíduos e instituições avaliadas.
Voltando ao cerne da citação de Ball, a performatividade
se assenta em juízos de valor heterogestados, ou seja, produzidos à
revelia dos sujeitos avaliados. Estes juízos de valor são os julgamentos
e, sobretudo, as comparações, estas sim a característica fundamental
da performatividade. A comparação de resultados é a lógica mercantil
deslocada para a avaliação performática dos sistemas, escolas e
indivíduos na educação.
A performatividade é alcançada mediante a construção e publicação de
informações e de indicadores, além de outras realizações e materiais institucionais
de caráter promocional, como mecanismos para estimular, julgar e comparar
profissionais em termos de resultados: a tendência para nomear, diferenciar e
classificar. (BALL, 2005, p. 544).

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Soma-se ao já anteriormente assinalado a característica


performática da publicização dos resultados e comparações. Este
cenário performático expõe sujeitos e instituições pela via dos
resultados alcançados, sem, necessariamente, levar em consideração
o processo e as limitações que acometem os sujeitos e instituições no
seu processo de produzir resultados. No caso concreto das reformas
educativas, todo o peso das avaliações acaba por recair sobre os
professores e sobre as escolas.
Ademais, neste clima performático, acabam surgindo medidas
como as famosas premiações de professores e escolas, que favorecem
a criação de meios obscuros de alcance de resultados competitivos,
gerando fraudes e processos cotidianos nem sempre saudáveis nas
relações educativas. Assim sintetiza Ball (2005, p. 549).
É o efeito generalizado da visibilidade da avaliação que, penetrando em nossa maneira
de pensar a respeito de nossa prática, produz a performatividade. Muitas vezes, as
exigências de tais sistemas geram práticas inúteis ou até mesmo danosas que, no
entanto, satisfazem os requisitos de desempenho. No âmbito de uma matriz de
avaliações, comparações e incentivos relacionados com o desempenho, os indivíduos
e as organizações farão o que foi necessário para se distinguir ou sobreviver.

O que temos aqui é a transformação de uma complexa relação


educativa, que envolve subjetividades mediadas pelas relações sociais
e por conteúdos curricularizados, em apenas números, porcentagens
colocadas em quadros de comparação. No entanto, o mesmo esforço
performático não é dado para a construção de um clima saudável nas
escolas. Como afirma Ball (2005) o que passa a importar é apenas nossos
desempenhos, não que nos importemos uns com os outros. E, acrescenta:
“[...] que ofereçamos nossa contribuição para a construção de espetáculos
e ‘produtos’ institucionais convincentes.” (BALL, 2005, p. 557).
Por fim, a própria relação pedagógica fundamental é pervertida,
a relação entre professores e alunos. O trabalho pedagógico não é
mais “para” as crianças, por exemplo, mas é aplicado “nas” crianças,
para que estas produzam os resultados esperados nos exames de larga
escala. Ball (2005) traduz estas como “relações inautênticas”, que
desvirtua o caráter formativo da educação escolar.
Resulta inclusive que o próprio “ser professor” passa pelo
processo de inautenticidade, já que sua ação cotidiana se guia por
mandatos externos (“faço o que me mandam fazer”), que prescindem da
crença no que se faz (“não acredito nisso, mas faço”). Ademais, perde-se
neste processo muito mais que isso, não sem custo, como nos diz Ball
(2001, p.156): “Não se costuma levar em conta o custo para o trabalhador
da realização de maior eficácia (intensificação, perda de autonomia,
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supervisão e avaliação mais diretas, falta de participação na tomada de


decisões, carência de desenvolvimento pessoal através do trabalho). ”
Assim, o ambiente performático, que é a materialização da
dominação burocrática em contextos de crise do capital, desanima,
desilude e adoece o professorado. E, ainda, introduz um elemento
diferente do controle clássico, o panóptico de Bentham, que é a
instabilidade e a incerteza sobre os parâmetros avaliativos. O limite
sempre pode ser mudado, ampliado sem um controle daqueles que
estão na berlinda. Os resultados dependem da performance de
outros, e as comparações publicizadas geram resultados que não
se poderia antecipar, o que gera ansiedades e temores. A escala é
dada no próprio momento da publicização, e esta gera nos sujeitos e
instituições determinadas reações nem sempre contornáveis.

AS COMPETÊNCIAS NA BNCC

Nesta parte do artigo vamos discutir a categoria competência


tal como ela aparece na Resolução n. 2, aprovada pelo Conselho
Pleno do Conselho Nacional de Educação e publicada no Diário
Oficial da União em 22 de dezembro de 2017, que “Institui e orienta
a implantação da Base Nacional Comum Curricular, a ser respeitada
obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no
âmbito da educação básica” (BRASIL, 2017).2
No entanto, antes de adentrar especificamente o texto da
BNCC, na primeira parte vamos trazer as principais características
da categoria competência segundo a literatura da área trabalho e
educação (RAMOS, 2001; SILVA, 2008).

AS COMPETÊNCIAS COMO CATEGORIA DA PEDAGOGIA BURGUESA


A esta altura da análise podemos entrar na categoria
de competência, entendendo-a como derivação das categorias
anteriormente delineadas, cosmopolitismo e performatividade,
compondo com elas as formas sociais de produção das subjetividades
adaptadas e adaptáveis à sociedade capitalista em crise, ou, se
quisermos, ao período neoliberal. Isso porque não se compreende
a categoria competência sem levar em conta as determinações
sociais para os indivíduos neste período de crise, no qual as histórias
de salvação particular passam a ser as formas predominantes e
naturalizadas; período em que o emprego precário ou o desemprego
são uma fronteira cada vez mais próxima para a classe trabalhadora;
um período de instabilidade laboral, que coloca em extinção as antigas
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relações profissionais, validadas social e coletivamente pela identidade


profissional e, em seu lugar, colocam relações laborais pautadas pelas
relações individuais capital e trabalho, ou por percursos flexíveis e
construídos individualmente, enfraquecendo as formas de resistência
do trabalho frente ao capital, mediado, inclusive, pela desvalorização
social das antigas profissões; um período onde todas as relações
educativas perecem como valor em si e passam a ser subordinadas à
racionalidade instrumental do capital, que transforma toda formação
humana em unilateral formação do capital humano para as empresas
e para a produtividade (RAMOS, 2001; SILVA, 2008).
A categoria competência possui, por assim dizer, várias camadas
para serem desnudadas. A sua primeira, externa, é aquela que a coloca
como mediadora das relações sociais. Como já foi dito, a ascensão das
competências no campo laboral se deve ao deslocamento ideológico, bem
ao gosto neoliberal, das qualificações profissionais, típicas do período
fordista, para o conceito de competências, que é a forma assumida pelo
trabalho precarizado flexível no toyotismo (RAMOS, 2001).
As profissões eram regidas por relações sociais definidas,
com corpo de conhecimentos e práticas profissionais delimitadas,
reconhecidas socialmente e protegidas por representações sindicais e por
legislações trabalhistas. Claro está que sempre houve as profissões não
regulamentadas, não reconhecidas como tais e, portanto, socialmente
desvalorizadas. No entanto, sob a época fordista pode-se dizer que a
organização trabalhista ainda possuía uma posição de enfrentamento ao
capital, que gerou conquistas importantes no Brasil e no mundo ocidental.3
O que ocorre na atualidade é que a condição de precariedade
avança para todas as ocupações, o que implica, entre outras, a
fragmentação das identidades profissionais e, logo, da unidade nas
lutas do trabalho contra o capital, que se dá em meio à precariedade
das condições da vida material em geral, que leva ao isolamento dos
indivíduos em suas vidas particulares, reguladas pela cotidianidade
(HELLER, 2008; SCHVARZ, 2016). Ao esvaziamento das profissões
e suas qualificações deu-se o avanço de um mundo do trabalho
precarizado e pautado pelas competências.
As competências, a partir de procedimentos de avaliação e de validação, passam
a ser consideradas como elementos estruturantes da organização do trabalho
que outrora era determinada pela profissão. Enquanto o domínio de uma
profissão, uma vez adquirido, não pode ser questionado (no máximo, pode ser
desenvolvido), as competências são apresentadas como propriedades instáveis
dentro e fora do exercício do trabalho. Isso quer dizer que uma gestão fundada
nas competências encerra a ideia de que um assalariado deve se submeter a uma
validação permanente, dando constantemente provas de sua adequação ao posto
de trabalho e de seu direito a uma promoção. (RAMOS, 2008).

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Portanto, o elemento da instabilidade e da individualização,


tal como aparecem nas categorias matrizes, cosmopolitismo e
performatividade, são também os fundamentos da passagem das
qualificações para as competências. Daí a identidade das competências
com as reformas educativas neoliberais, que, justamente, fazem
concretizar projetos de salvação particular, concatenadas
ideologicamente com processos de enfraquecimento das ações
coletivas da classe trabalhadora.
Um segundo marco das competências, ainda em relação
às qualificações profissionais, é o esvaziamento dos conteúdos
formativos em nome de uma série de competências tácitas e
comportamentais, que se tornam o objetivo da educação escolar e
das reformas educativas neoliberais. Os anos 90 viram a ascensão
das competências no centro das reformas educativas brasileiras, após
a inserção do país ao acordo internacional denominado Declaração
Mundial de Educação para Todos, conhecida como Conferência de
Jontiem – Tailândia, 1990, no qual se estabeleceram as chamadas
“Necessidades Básicas de Aprendizagem”. É neste documento que
se inspiraram as nossas reformas educativas daquele período e é a
estes pressupostos que a atual BNCC retorna.
Observa-se neste documento seminal a lógica das competências
(e, logo, do cosmopolitismo e performatividade) em ação, pela
centralidade na “aprendizagem” tal como ali delineada no Artigo 4:
1. A tradução das oportunidades ampliadas de educação em desenvolvimento
efetivo - para o indivíduo ou para a sociedade - dependerá, em última instância,
de, em razão dessas mesmas oportunidades, as pessoas aprenderem de fato, ou
seja, apreenderem conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio, aptidões e
valores. Em consequência, a educação básica deve estar centrada na aquisição e
nos resultados efetivos da aprendizagem, e não mais exclusivamente na matrícula,
frequência aos programas estabelecidos e preenchimento dos requisitos para a
obtenção do diploma. Abordagens ativas e participativas são particularmente
valiosas no que diz respeito a garantir a aprendizagem e possibilitar aos
educandos esgotar plenamente suas potencialidades. Daí a necessidade de definir,
nos programas educacionais, os níveis desejáveis de aquisição de conhecimentos
e implementar sistemas de avaliação de desempenho. (CONFERÊNCIA, 1990).

Aqui está, em síntese, toda a gama de características desta


forma de educação adaptada aos tempos de crise do capital e
sintetizada no conceito de “educação para todos” e nas “necessidades
básicas de aprendizagem”. Em primeiro lugar, vemos as características
do cosmopolitismo na ideia de que o aprendizado deve seguir a
racionalidade pragmática, de utilidade para a vida social naturalizada e
descontextualizada do seu caráter de classe, bem como a possibilidade
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de mobilizar estes conhecimentos, habilidades em situações práticas da


vida, que significa, neste contexto, a “efetividade” das aprendizagens.
Por outro lado, a forma de fazer isso é centralizar o aprendizado na
própria ação dos indivíduos, papel que cabe às pedagogias ativas,
capturadas pelo ideário neoliberal e que esvaziam, com isso, o papel
do profissional professor, ou seja, esvazia o papel do ensino, central
para a profissão de professor (esvaziamento este que gera, atualmente,
a crise desta profissão). E, por fim, o texto traz a característica da
performatividade, com a centralidade da avaliação de desempenho dos
estudantes e sistemas, segundo os critérios anteriormente adotados.
Silva (2008, p.16) resume bem este cenário das competências
na educação:
Uma primeira hipótese decorrente do quadro conceitual da noção de
competências foi definida com base na ideia de que ela é portadora de uma
concepção instrumental da formação humana e esta se faz presente nos
dispositivos normativos da reforma curricular. Essa hipótese é explorada
tomando por referência o pressuposto de Bernstein, segundo o qual as teorias
da competência levam a uma compreensão de que a formação humana dá-se
pelo simples contato entre o indivíduo e o meio, independentemente das práticas
culturais que diferenciam indivíduos e grupos e independentemente também, dos
significados que derivam dessas práticas.

Novamente temos aqui a crítica às competências por serem estas


uma expressão das histórias de salvação particular, bem como pelas
suas racionalidades instrumentais, de resolver problemas pertinentes
à naturalização das relações sociais capitalistas. No âmbito de uma
avaliação social, tratam-se as competências de expressão funcionalista
de adaptação dos indivíduos às suas funções sociais em tempos de crise.
Para ratificar o que se disse acima sobre a centralidade das
competências nas reformas educacionais nos anos 90, trazemos
a seguir um trecho de um importante documento empresarial,
denominado “Educação básica e formação profissional”, formulado
pela CNI em 1993, mesmo período em que as ideias da Conferência de
Jontiem estavam penetrando nosso país. Neste documento, que para
qualquer observador mais atento se transformou na base das reformas
educacionais do Estado brasileiro naquele período, os empresários
indicam as competências básicas requeridas para os trabalhadores:
Além da modernização quantitativa, é necessário que a escola desempenhe o
papel pedagógico de aguçar no estudante a elaboração crítica, a independência
e a capacidade de organização do próprio trabalho. Seriam, estas, em síntese,
as competências básicas a serem priorizadas nos currículos de educação geral e
formação profissional. A necessidade aponta para um sistema educacional que
dê conta de uma formação de novo tipo, para um homem criador da sua própria

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história, capaz de agir sob determinadas condições, escolhendo, livremente, as


alternativas que lhe forem apresentadas pelo mundo do trabalho, seja na empresa
em particular, seja no setor produtivo como um todo. (CNI, 1993, p. 14-15).

Em primeiro lugar, e retomando sinteticamente tudo o que já


foi dito, é preciso compreender que a competência não é uma categoria
neutra, mas em disputa social, e, portanto, mediadora das lutas
hegemônicas na sociedade sobre os projetos de formação humana.
Neste contexto, os empresários desde os anos 40, pelo menos, vêm
disputando socialmente o projeto educativo brasileiro (RODRIGUES,
1998), e, no caso em tela, percebe-se que existe uma adaptação do
projeto empresarial para os tempos do capitalismo em crise, no qual as
histórias de salvação particular, aí expressas em forma cristalina, são a
forma de adaptação funcional dos indivíduos ao sistema.
Por aí percebemos que as competências básicas não se
relacionam ao domínio de conteúdos (a “elaboração crítica” aparece
como algo etéreo, sem significado real), mas a comportamentos
(independência) e ações cotidianas (organização do próprio
trabalho), o que está em perfeita sintonia com a ideia já apresentada
do esvaziamento das profissões e da instabilidade no campo laboral.
Na segunda parte da citação acima os empresários
determinam um projeto de educação escolar claramente vinculada
ao cosmopolitismo, ao tratar da formação de um novo ser humano,
que constrói sua própria história, buscando soluções individuais,
o que também está em perfeita consonância com o já dito sobre
a fragmentação do mundo do trabalho e a individualização dos
trabalhadores em suas relações com o capital.
Apesar de este ser um tema extremamente instigante e complexo,
pensamos ter dado as pistas para a compreensão das competências
como eixo ideológico das reformas educacionais no atual período.
A seguir, pautado por tudo isso, vamos analisar brevemente
como as competências aparecem na atual reforma educativa, a BNCC.

COMPETÊNCIAS COMO FUNDAMENTO FORMATIVO DA BNCC: FORMAÇÃO UNILATERAL


PARA UMA SOCIABILIDADE COSMOPOLITA E PERFORMÁTICA
Nesta última parte do artigo vamos descrever e analisar
brevemente como as competências aparecem no texto da Resolução
n. 2, de 22 de dezembro de 2017, que “Institui e orienta a implantação
da Base Nacional Comum Curricular”. Não será possível avaliar
a BNCC em sua integralidade, no entanto, para sintetizar as críticas
mais gerais a esta reforma curricular neoliberal, expressamos aqui os
principais tópicos a serem aprofundados em outros estudos: a BNCC
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significa um rompimento no pacto federativo, no sentido de centralizar


toda a política educacional de currículos e avaliação (o que pode ser
evidenciado nos Art. 5; 7; 16 e 18); regressão em temas da diversidade,
como a inclusão da Religião como área do conhecimento e o adiamento
da introdução da questão de gênero e diversidade sexual na BNCC (o
que está presente nos Art.14; 22 e 23); a formação de professores deve
se atrelar à BNCC (Art.17); todos os programas e projetos do MEC
devem se referenciar à BNCC (Art.19), incluindo o PNLD (Art.20).
A questão específica das competências aparece assim definida
no Art. 3:
No âmbito da BNCC, competência é definida como a mobilização de
conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas cognitivas e
socioemocionais), atitudes e valores, para resolver demandas complexas da vida
cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Parágrafo Único: Para os efeitos desta Resolução, com fundamento no caput do art.
35-A e no §1º do art. 36 da LDB, a expressão “competências e habilidades” deve ser
considerada como equivalente à expressão “direitos e objetivos de aprendizagem”
presente na Lei do Plano Nacional de Educação (PNE). (BRASIL, 2017, p.04).

Em primeiro lugar nos remetemos aqui às considerações


trazidas à baila anteriormente por Silva (2008), para a qual as
competências reduzem a formação humana a uma mera relação entre
o indivíduo e o meio, no sentido de resolver problemas, encontrar
soluções para a complexidade da vida cotidiana e do trabalho, de forma
individual, trazendo muito pouco da formação como apropriação
da cultura, socialmente considerada, esvaziando a escola do ensino.
É justamente isso que encontramos na caracterização oficial de
competências neste artigo da BNCC, e que remete imediatamente
para a formação cosmopolita já largamente tratada neste texto.
A redução de direitos de aprendizagem às competências e
habilidades4 significa, nada menos, que a faceta pragmatista, cosmopolita
e performática desta reforma, cuja centralidade, ao uniformizar os
direitos de aprendizagem em nível nacional pelas avaliações em larga
escala, nada mais querem do que implementar um sistema performático.
Isso fica claro no Parecer n. 15 de/2017, que aprovou a BNCC no
Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação.5
a organização da Educação Básica em etapas e modalidades diferenciadas, com
a indicação das competências gerais e habilidades específicas em cada área de
conhecimento, permitirá, de um lado, o ajuste das matrizes das avaliações em
larga escala e, de outro, que cada instituição ou rede de ensino possa elaborar suas
próprias matrizes de avaliação processual formativa para apoiar o trabalho dos
professores. (BRASIL, 2017a, p. 30).

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Ou seja, no fim das contas, as competências uniformizadas


têm o interesse de melhorar a eficácia das avaliações em larga escala,
que de fato constituem a centralidade das reformas neoliberais. E
não é sem razão que a vertente mais importante das críticas aos
sistemas educacionais em geral, que levou Ross e Gibson (2007) a
falarem da “fabricação” da crise educacional como falácia ideológica
no processo de transferência de responsabilidades do Estado para os
indivíduos. Portanto, competências na BNCC é uma categoria imersa
na complexa teia de relações categoriais da sociabilidade neoliberal,
que reduz a educação a uma formação unilateral para a vida em uma
sociedade “naturalmente” competitiva e individualista.
Por fim, o Art. 4 da Resolução n. 2, de 22 de dezembro de 2017,
explicita as 10 competências ou direitos de aprendizagem. Para os objetivos
que aqui nos propusemos analisar, podemos dizer que pelo menos oito
destes objetivos se relacionam direta ou indiretamente ao cosmopolitismo,
sendo eles os objetivos 1, 2, 5, 6, 7, 8, 9 e 10, e destes os objetivos 2, 5 e 9
se relacionam diretamente à resolução de problemas e conflitos. Vamos
destacar quatro destas competências ou direitos de aprendizagem.
1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre
o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade,
continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva;
2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências,
incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para
investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar
soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de
conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias
do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu
projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade,
resiliência e determinação, tomando decisões, com base em princípios éticos,
democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. (BRASIL, 2017, p. 4-5).

Com relação ao primeiro item, a competência cosmopolita


se averigua na formação cidadã, racional e portadora de projeto de
futuro, ou seja, o “cidadão do mundo”, numa concepção claramente
voltada para a geração de consenso social sobre o projeto burguês
de educação, afinal, ao trazer a ideia de participação, sociedade
justa, democrática e inclusiva, o texto oficial se aproxima de um
discurso sedutor para o senso comum social, agregando com
isso a simpatia. No entanto, esta característica não pode ser lida
isoladamente das demais.
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O segundo objetivo de aprendizagem já recua desta


generalização e traz para a educação o objetivo de formar cidadãos
capazes de utilizar conhecimentos, investigação, curiosidade e
criatividade para resolver problemas, que é a típica formação
cosmopolita, que inserida no ideário neoliberal coloca os sujeitos,
individualmente, para serem os gerenciadores de suas próprias
vidas. No sexto objetivo isso se incorpora com as apropriações
pragmaticamente dirigidas para as escolhas pessoais, para a
consecução de projetos de vida individuais, responsabilizando-se
por eles. E, por fim, no último objetivo de aprendizagem o que se
vê é a consolidação deste ideário cosmopolita da racionalidade do
indivíduo responsável pela tomada de decisões, resiliente para o
enfrentamento de dificuldades e para superá-las.6
Chegados a este ponto da análise, podemos sintetizar
afirmando que a BNCC, ao contemplar as competências como
“direitos de aprendizagem”, e, portanto, como parte das reformas
neoliberais brasileiras do tempo atual, é mais um capítulo da
subordinação do projeto educacional estatal aos ditames mercantis
de formação unilateral, para uma vida social naturalizada como
instável, competitiva, cujas portas devem ser acessadas pelos
esforços individuais, pela resiliência e pelo esforço, constantemente
comparáveis, esvaziando de sentido próprio a educação e
instrumentalizando a formação escolar para o desenvolvimento de
competências úteis para resolver problemas e sobreviver na selva
cosmopolita e performática típica da sociabilidade neoliberal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de análise que trouxemos foi a consideração de


duas categorias, cosmopolitismo e performatividade, como eixos das
reformas educativas neoliberais do tempo presente, em especial do
Brasil. Este par categorial remete à crítica das relações sociais capitalistas
e da construção de subjetividades adaptadas e adaptáveis ao contexto de
crise do capital, período no qual o deslocamento das responsabilidades
coletivas para os indivíduos se torna mais contundente. Daí a necessidade
de naturalizar a competitividade (a performatividade) como elemento da
sociabilidade e, logo, o mérito, corolário deste, como objetivo individual,
que então move o cidadão cosmopolita a escolher entre possibilidades
os caminhos para a sua melhor adaptação a esta realidade.
Assim, temos uma sociedade altamente performática, ou
seja, que coloca os indivíduos em constante competição e, com
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isso, a formação de subjetividades que se adaptem a esta situação,


formulando racionalmente saídas para uma melhor colocação social.
O cosmopolita, o cidadão racional, que age individualmente para se
integrar, é aquele que aceita a performatividade como princípio e se
coloca na arena social, na selva competitiva junto a outros cosmopolitas.
A educação no projeto burguês e na BNCC, em particular,
como parte deste projeto, tem o papel de proporcionar as competências
para o cosmopolita poder escolher e se responsabilizar tanto pelos
caminhos percorridos quanto pelos resultados alcançados. Também
seu papel é o de legitimar este sistema de competição individual e
de deslocamento das responsabilidades, bem como naturalizar
esta situação. Para isso a escola, principal agente cosmopolita e
performático, é esvaziada dos conteúdos historicamente produzidos
e foca, por meio das reformas neoliberais, nas competências úteis
e transferíveis para a vida, de modo a proporcionar aos indivíduos
ferramentas para a vida social nestes termos já referidos.
Fazendo isso, as reformas neoliberais e a BNCC reduzem a
formação humana à unilateralidade da adaptação ao sistema capitalista,
ao trabalho cada vez mais precarizado e à obediência social, inculcando
mecanismos de autocontrole e de discriminação (o “eu”, cosmopolita
e performático, e os “outros” que estão fora desta definição).
Para a resistência contra este processo, é necessária a consciência
dos mecanismos utilizados nas reformas educativas neoliberais e
formulação de projetos educativos emancipadores, que levem em
conta a volta aos valores comunitários/sociais, de integração social,
da valorização de princípios de solidariedade que se contraponham à
exacerbação do individualismo na sociedade e na educação.

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NOTAS
1 Mészáros (2011) cita o caso da nacionalização das dívidas das companhias Fannie Mae e
Freddie Mac, que somavam 5,4 trilhões de dólares, pelo governo George W. Bush.

2 Embora não seja nossa intenção explícita deste trabalho em particular, não podemos
deixar de mencionar que a trajetória da BNCC é resultado das pressões de grupos
empresariais, até de caráter monopolista, que ganharam força a partir da organização do
Movimento Todos pela Educação, e, especialmente, do Movimento Pela Base. Remetendo
às reflexões iniciais deste artigo, essa faceta da BNCC a coloca como projeto formativo
unilateral, nos moldes aqui tratados. Sobre este tema nos referenciamos aos trabalhos de
Neves e Piccinini (2018) e Rabelo, Jimenez e Segundo (2015) entre outros.

3 O cinema ilustra muito bem esta questão no filme Revolução em Dagenham (2011. Direção
de Nigel Cole. 1h53min.). O filme conta um fato real, a greve das mulheres trabalhadoras na
planta da fábrica Ford na cidade de Dagenham, Inglaterra, que lutava por igualdade salarial e
melhores condições de trabalho, no ano de 1968. A força da greve levou o sindicato a grandes
negociações (e contradições no processo de negociação pelas burocracias sindicais) chegando
até às altas cúpulas do Ministério do Trabalho. Ao final, as mulheres conquistaram, em 1970, a
igualdade salarial pretendida. Pela época em que se passa o filme, ou seja, no período pré-crise
do petróleo, pode-se dizer que o filme demonstra a força do sindicalismo na época fordista
clássica, bem como nos mostra o período do welfare state inglês, justamente o lócus da experiência
neoliberal que se iniciaria uma década depois, com Margareth Tatcher.

4 “As habilidades podem ser entendidas como esquemas rotinizados – os hábitos ou o


saber-fazer – e fazem parte da competência. Nas palavras de Perrenoud (1999), as habilidades
são esquemas com uma certa complexidade que existem no estado prático procedente,
em geral, de um treinamento intensivo, cujos gestos tornaram-se uma segunda natureza e
fundiram-se no habitus. Como tal, o saber-fazer existe no estado prático, sem estar sempre
ou imediatamente associado a um conhecimento procedimental.” (RAMOS, 2001, p. 236).

5 Registra-se, como fez Luiz Carlos de Freitas em seu Blog (FREITAS, 2017), os votos
contrários das seguintes Conselheiras: Aurina de Oliveira Santana, Malvina Tania Tuttman e
Marcia Ângela da Silva Aguiar.

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6 É, mais uma vez, Freitas (2018) que traz a discussão da relação entre a BNCC e a resiliência,
apontando os fundamentos ideológicos desta concepção, sem utilizar, no entanto, as categorias
aqui propostas, mas se aproximando ao que aqui vimos discutindo sobre a relação da BNCC com
o cosmopolitismo e a performatividade. Ele faz a análise de uma reportagem do jornal O Estado
de São Paulo, de 4 de março de 2018, cujo título é o seguinte: “Apenas 2,1% dos alunos pobres do
país têm bom desempenho escolar”. A reportagem pauta-se no estudo da OCDE, cujo resultado
demonstra que a média dos países participantes da pesquisa foi de 25,2% de estudantes resilientes,
o que demonstraria a crise de nosso sistema, que coloca o Brasil na 62ª colocação entre 71 países
investigados. A concepção de resiliente se dá para os estudantes dos países pobres que conseguem
chegar ao nível 3 do exame PISA, que significa, no score desta avaliação, o mínimo para que se tenha
“oportunidades de aprendizagem”. Melo (2016) demonstra, para o caso espanhol, como a OCDE
e seus pressupostos que instalam artificialmente uma crise dos sistemas educacionais, foi adotada
para argumentar a favor da reforma de 2013. Como contraponto ao uso neoliberal da resiliência,
Marochi (2017) faz uma análise da categoria resiliência de um ponto de vista crítico, colocando-a
como ferramenta de resistência na vida das mulheres trabalhadoras/estudantes do EJA.

Submetido: 14/06/2018
Aprovado: 09/06/2019

Contato:
Universidade Estadual do Centro-Oeste
Programa de Pós-Graduação em Educação
Campus Santa Cruz
Rua Salvatore Renna, 875 - Santa Cruz
Guarapuava|PR|Brasil
CEP 85.015-430

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