Administrador, Texto Do Caderno 40
Administrador, Texto Do Caderno 40
Administrador, Texto Do Caderno 40
Linha de Pesquisa
A CONDIÇÃO HUMANA NA MODERNIDADE
*Eduardo Viola - Nasceu em Buenos Aires, 1949. Em 1976 emigrou para o Brasil e em
1989 naturalizou-se brasileiro. É Doutor em Ciência Política pela Universidade de São
Paulo, 1982, e pós-doutorado em economia e política ambiental pela Universidade de
Colorado, 1991. Atualmente é professor titular de relações internacionais da Universidade
de Brasília e pesquisador sênior do CNPq. É autor de mais de 80 artigos, publicados em
livros e revistas especializadas em Brasil, EUA, Argentina, Reino Unido, Holanda, França,
Espanha, México, Israel e Venezuela. Foi professor das universidades de Stanford,
Amsterdam, Colorado at Boulder, Notre Dame, UNICAMP, Federal de Santa Catarina,
Federal de Rio Grande do Sul, San Martin e Buenos Aires.
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Mudanças na direção de uma globalização multidimensional complexa
I.
Nas últimas duas décadas do século XX todos os estados, povos e indivíduos do planeta
tornaram-se progressivamente parte de um mundo global.1 Da mesma forma que aconteceu
em outros momentos de grandes mudanças históricas, as relações entre as diversas partes
do todo sofreram profundas alterações com a chegada da nova ordem global. A
globalização foi extraordinariamente acelerada pelo fim da Guerra Fria e o colapso da
União Soviética. A década de 1990 foi marcada simultaneamente pela intensificação da
globalização econômica e pela erosão da governabilidade baseado nos estados nacionais.
De acordo com a teoria da globalização multidimensional, elaborada por D. Held, A.
McGrew, D. Goldbatt & J. Perraton (Held et al, 1999; ver também R. Keohane & J. Nye,
2001), a globalização não deve ser pensada como uma condição singular, mas como um
processo ou conjunto de processos interconectados que se desenvolvem em varias
dimensões (basicamente: econômica, política, militar, ecológica, social e cultural). Não
surpreende então que em diversos momentos do processo essas dimensões adquiram
relevância diferenciada. Assim como na década de 1990 se verificou que a ordem mundial
girou, praticamente, em torno da economia, deve ser assumido que, após os atentados
terroristas do 11 de setembro de 2001, está produzindo-se uma reestruturação da ordem que
levará as questões de segurança e governabilidade a comandar as relações internacionais.
Na última década do século XX, no mundo constituído pelos países desenvolvidos de renda
alta e os países emergentes de renda média houve uma aceleração simultânea das quatro
sub-dimensões da globalização econômica: comercial (grande crescimento do comercio
internacional), financeira (grande expansão de mercados financeiros de escopo global),
produtiva (transnacionalização crescente das cadeias produtivas intra-corporativas e inter-
corporativas) e tecnológica (extraordinária onda de inovação tecnológica com grande
crescimento da produtividade sistêmica da economia). A aceleração da globalização
econômica manteve o alto nível de integração social das sociedades desenvolvidas. Nas
sociedades de renda média (como Brasil e várias outras da América Latina), a aceleração da
globalização tendeu a manter ou aumentar a marginalidade/exclusão de vastos setores da
população. A maior parte dos países de renda baixa se mantiveram excluídos da
globalização econômica, tendo havido neles um extraordinário crescimento do sofrimento
humano.
Nos anos 90, simultaneamente com a intensificação da globalização econômica, houve uma
significativa erosão da governabilidade no mundo produzida por uma combinação de sete
fenômenos interligados, que são apresentados a seguir:
1
Para referencias complementarias sobre o tema da globalização na obra dos autores, ver: Viola & Leis,
2001a e 2001b.
3
1) O fracasso ou colapso do estado nacional em vastas regiões, as quais passaram a
constituir áreas de caos econômico, pobreza crescente e guerra civil (maior parte da
África subsahariana, partes da Ásia Central, Colômbia, Haiti, Iugoslávia etc.).
2) A considerável erosão do estado nacional em áreas que sofreram significativo retrocesso
econômico e social de suas populações (Rússia, Ucrânia, Bielorússia, Bulgária,
Romênia, região Andina, grande parte de América Central, Indonésia, Paquistão etc.).
3) A expansão das redes criminais globais dedicadas ao tráfego de drogas, armas,
migrantes, animais silvestres, prostituição e órgãos humanos. Essas redes criminais
criaram meios efetivos de lavagem do dinheiro (vindo de suas atividades ilícitas) dentro
da economia legal, seja através dos paraísos fiscais, seja no próprio coração da economia
dos países desenvolvidos e emergentes. As redes criminais globais promoveram a
expansão do crime entre as populações marginalizadas dos países de renda média e
baixa, criando problemas gravíssimos de segurança pública nestes países.
4) O desenvolvimento de um novo tipo de estado totalitário que objetiva manter a
legitimidade frente a suas populações e seu lugar no mundo com o desenvolvimento de
armas de destruição em massa. Iraque e Coréia do Norte são os principais expoentes
destes estados. Irã, que se incluía nesta categoria no inicio da década de 1990, está tendo
um importante processo de democratização desde 1996 que está mudando a
característica do estado. Irã é hoje uma sociedade e estado profundamente divididos,
entre, de um lado, um presidente e um legislativo orientados para a democracia e a
secularização (apoiados fundamentalmente pela população mais jovem), e, de outro
lado, um Conselho Revolucionário e um Poder Judiciário controlados pelo clero que
rejeitam fortemente a democracia e os valores ocidentais.
5) O crescimento de um sentimento antiamericano em vastos setores da população mundial,
derivado do papel central dos EUA no sistema mundial. Esta rejeição está misturada,
muitas vezes, com sentimentos ambíguos de admiração e desejo de imitação. O perfil
específico do sentimento antiamericano varia muito por países e setores sociais (dentro
de cada país), mas podemos diferenciar pelo menos três “justificativas” associadas a este
antiamericanismo: 1- a riqueza e sucesso americano são produto da exploração do resto
do mundo; 2- os EUA impõem seus valores e seu estilo de vida destruindo os de outras
sociedades; e, 3- os EUA não assumem as responsabilidades globais derivadas de seu
papel central no mundo. Mais recentemente, esses sentimentos foram acentuados pela
política externa unilateralista iniciada pelo presidente Bush que levou a: retirada do
Protocolo de Kyoto para redução das emissões de gases estufa; retirada do protocolo de
verificação do tratado contra a proliferação de armas biológicas; retirada da conferência
da ONU, em Durban, contra o racismo e a xenofobia; e disposição de denunciar o
tratado ABM de proibição de mísseis antibalísticos. É evidente que a política do governo
Bush reforçou o já existente sentimento antiamericano, em graus variáveis de
intensidade, em vastas regiões do mundo, com uma maior concentração no mundo
islâmico, e inclusive à emergência onde antes quase não existia, como no caso da
Europa.
6) A rápida expansão do fundamentalismo islâmico como principal movimento
antiocidental. Ainda quando continue sendo uma minoria no conjunto dos mais de um
bilhão de adeptos da religião islâmica, o fundamentalismo islâmico tem crescido no
último quarto do século 20 devido a seis fatores: 1- expansão do capitalismo e da
democracia no mundo (o setor do islamismo mais conectado com as origens medievais
se sente extremamente ameaçado pela modernidade ocidental, em geral, e o liberalismo,
4
em particular); 2- apoio de potências ocidentais a regimes economicamente
conservadores e corruptos no mundo árabe; 3- apoio incondicional de EUA a Israel; 4-
revolução islâmica radical no Irã em 1979; 5- presença ostensiva de vasto contingente de
forças armadas americanas na região do Golfo Pérsico desde 1990; e 6- regime de
sanções econômicas contra Iraque (desde 1991), que tem contribuído muito para agravar
o sofrimento do povo iraquiano e servido pouco para combater o regime de Saddam
Hussein. Deve ser observado que, no momento do 11 de setembro, o fundamentalismo
islâmico era muito poderoso em vários países: Afeganistão, Paquistão, Sudão, Egito,
Argélia, Palestina, Irã, Líbano, Síria, Yemen, Arábia Saudita. Em alguns destes países,
como Egito e Arábia Saudita, regimes autoritários pró-americanos encontram-se
ameaçados de ser derrubados pelo fundamentalismo islâmico. De outro lado, como uma
mostra de que não existe incompatibilidade entre islamismo e democracia, a Turquia é
um país islâmico que tem hoje um regime democrático relativamente estável, e
Indonésia, Bangladesh, Albânia e Senegal são países islâmicos com regimes
democráticos incipientes.
7) Por último, intimamente vinculado ao fator anterior, se registra o nascimento e
desenvolvimento de redes terroristas globais predominantemente ligadas ao
fundamentalismo islâmico e objetivando combater as democracias ocidentais
(principalmente Israel e EUA). A principal rede terrorista global ainda é a Al Qaeda de
Bin Laden, que tinha como principal base territorial o Afeganistão do regime Talibã (um
dos mais totalitários e repressivos do século 20), irradia-se por vários países islâmicos
tolerantes com o fundamentalismo e chega a atingir vários países ocidentais (no total
está presente em aproximadamente 30 países). A Al Qaeda foi escalando os seus
objetivos de guerra, indo primeiro contra as forças armadas americanas, depois contra o
conjunto da população americana e, finalmente, contra a civilização judaico-cristã. As
várias redes de terrorismo global procuram maximizar seu poder produzindo eventos de
terrorismo catastrófico, como o de 11 de setembro, ou eventos de terrorismo biológico,
nuclear ou químico.
Compreender a complexidade do mundo do inicio de século XXI nos demanda ir além dos
principais enfoques teóricos das relações internacionais – o neo-realismo e o
institucionalismo liberal – diferenciando quatro grandes dimensões de clivagem e
alinhamento: interestatal, civilizatória, democracia versus não democracia, e dentro da
democracia, liberalismo versus comunitarismo.
Em primeiro lugar temos a clássica clivagem entre os estados nacionais que continua sendo
uma fonte fundamental de competição e cooperação, com uma diminuição do peso relativo
do conflito e um aumento do peso da cooperação (comparado com o período da Guerra
Fria) devido à intensificação da interdependência econômica e tecnológica. Na ordem
interestatal os EUA ocupam uma posição de superpotencia, sendo que na sub-dimensão
militar ocupam uma posição de altíssima centralidade e na sub-dimensão econômica
compartem a centralidade com a União Européia e Japão. A seguir vem as potencias
regionais: Rússia, China, Índia e Brasil. Pela eficácia e eficiência de sua governabilidade os
estados podem ser classificados em Desenvolvidos, Emergentes, Semi-fracassados e
Fracassados.
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Na segunda dimensão temos a diferenciação entre as grandes civilizações, do qual a obra de
Huntington (1997) tornou-se referencia fundamental, a saber: Ocidental, Latino-americana,
Eslava, Japonesa, Confuciana, Islâmica, Hinduísta e Africana. A civilização Ocidental
ocupa definidamente o lugar de vanguarda do processo civilizatorio porque a combinação
da economia de mercado, o individualismo, o estado de direito e a democracia
representativa produziram uma sociedade muito superior no domínio da natureza e na
construção de uma tecnosfera. A civilização Japonesa já convergiu plenamente com a
Ocidental. A civilização Latino-americana apresenta hoje alta heterogeneidade, indo desde
a bastante convergência com Ocidente, nos caso de Chile, Costa Rica, Uruguai, Brasil e
México até a máxima distância, nos casos de Cuba, Haiti, Nicarágua, Guatemala e
Honduras. A civilização Eslava inicia apenas em 1989 o processo de aproximação com
Ocidente, sendo que essa aproximação é cheia de avanços e retrocessos. Desde o 11 de
setembro a liderança de Putin na civilização Eslava está produzindo uma aceleração da
convergência com Ocidente. A civilização Confuciana é impulsionada na direção da
convergência com Ocidente por causa do vetor tecnológico e é impulsionada para tomar
distancia com Ocidente pelo vetor sócio-psicológico. A civilização Hinduísta mantem-se
muito distante de Ocidente na medida que conserva o regime de castas, mas aproxima-se de
Ocidente por causa do vetor tecnológico e pela democracia política. A civilização Islâmica
está em processo de confronto com a civilização Ocidental e, em menor medida, com as
civilizações Hinduísta, Eslava e Chinesa. A civilização Africana depois de ter sido
parcialmente ocidentalizada durante o período colonial de meados do século 19 a meados
do século 20 está em processo de devastadora regressão, sendo território fértil para o
avanço do Islamismo.
II.
6
Das circunstancias do mundo atual podem ser extraídas várias conclusões. Hoje, por
exemplo, não apenas se verificam alterações no peso relativo de cada um dos estados, de
acordo com sua inserção e capacidade de ação no novo contexto, mas também se assiste a
uma tremenda aceleração e intensificação das mudanças que acontecem dentro da nova
ordem. Assim, e possível encontrar estados que pulam vários escalões e outros que
praticamente caem da escada (como foi o caso de Rússia tempo atrás, e como está sendo o
caso de Argentina, mais recentemente). Porem, ninguém fica de fora da globalização, todos
os estados, povos e indivíduos do planeta, de um modo ou outro, contribuem e são afetados
pelas transformações globais em curso.
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curiosamente, não é capturada pelas visões mais radicais, sejam negativas ou positivas, da
globalização.2
Essa potencialidade para oportunidades e efeitos inesperados gera uma grande quantidade
de tendências contraditórias. Talvez as duas mais visíveis da globalização sejam a de
integração e fragmentação. Rosenau (1997) inventou o termo de fragmigration para chamar
a atenção, precisamente, para efeitos que levam simultaneamente para uma maior
integração e uma maior fragmentação da vida social contemporânea. De fato, na ordem
política da globalização encontramos que a ordem e a desordem sempre aparecem juntas.
Esta circunstancia pode ser observada facilmente no nível dos estados, que de antigos
organizadores soberanos da ordem mundial passaram agora a ter suas funções e
competências reorganizadas pela ordem mundial. No passado, os estados exerciam um
poder político decisivo sobre a vida de populações e territórios nacionais, e era dessas
mesmas populações e territórios nacionais que os estados derivavam sua autoridade e
poder. Mas no mundo da globalização estão emergindo progressivamente fatores que
afetam a vida social do planeta como um todo e que não estão baseados exclusivamente em
poderes estritamente políticos sobre territórios e populações nacionais. Seja, através de
empresas, corporações científicas, movimentos sociais, organizações não-governamentais
legais e ilegais (máfias, terrorismo), o mundo contemporâneo está sendo desafiado e
redefinido em forma rápida e intensa por uma multiplicidade de fatores e atores globais
que se entrecruzam e vinculam de forma criativa e constante com a política. A atual
reorganização das relações de poder a nível global é assim um fenômeno complexo que tira
aos estados de sua indiferenciação formal, colocando a responsabilidade pelos
acontecimentos num conjunto hierarquizado de atores estatais, econômicos e societais. Por
isto, o foco da governabilidade política contemporânea não pode residir num
2
Utilizando a terminologia e análise propostos por Held et al. (1999:10) verifica-se que nem os
hiperglobalistas, nem os céticos, conseguem captar essa novidade.
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multilateralismo estatal de tipo “horizontalista”, senão num multilateralismo hierarquizado
que englobe ao conjunto dos sistemas político, econômico e social.
Não deve existir dúvida sobre o caráter complexo da política no mundo atual. Imaginar que
partindo da noção de soberania nacional os estados têm condições de atender a todos os
problemas mundiais é hoje uma utopia maior ainda do que era na primeira metade do
século XX. As profundas transformações acontecidas na época da globalização não negam
aos estados a responsabilidade que lhes cabe na construção da governabilidade. Mas a alta
fluidez dos acontecimentos no contexto da globalização nos obriga a pensar a política
mundial de acordo com a capacidade real (e não simbólica) dos estados; do mesmo modo
que nos obriga a pensar a governabilidade a partir de atores e valores realmente vigentes.
Apesar dos estados serem ainda atores fundamentais da política mundial, eles já não
conseguem impedir a emergência de atores (não-estatais) com crescente capacidade de ação
global. Ainda os pequenos atores que se posicionam contra a globalização (pensemos, por
exemplo, nos diversos grupos de ativistas que assistem às reuniões de cúpula do Grupo dos
Sete ou do FMI expressando sua cólera contra a globalização) possuem uma concepção e
prática global da política. Portanto, não é relevante o tamanho ou a relevância histórica dos
atores, nem que sejam nacionais ou sub-nacionais, ou que estejam a favor ou em contra da
globalização, todos eles são parte do mesmo cenário global da política contemporânea, em
maior ou menor grau. Esta circunstância traz importantes conseqüências que não são fáceis
de registrar pelos observadores tradicionais da política mundial. O fato que hoje qualquer
ator se insere num cenário globalizado faz que a governabilidade global tenha que ser
concebida como uma governabilidade democrática, porém precária. Isto quer dizer que a
governabilidade funciona ainda com regras pouco consolidadas, as quais precisam ser mais
firmemente estabelecidas e, inclusive, impostas pela força àqueles que não as aceitem. A
grande quantidade de transições para a democracia, havidas no mundo nas últimas duas
décadas, assim como o significativo aumento da vigência do direito internacional sobre a
vida das nações e indivíduos, são fatos positivos vinculados à globalização que, em muitos
casos, não teriam acontecido se não fosse através de algum tipo de pressão ou violência por
parte dos países mais comprometidos com a governabilidade global (são exemplos disto
tanto Kosovo como Afeganistão).
Um aspecto civilizatório fundamental para ser incorporado na ordem futura passa pela
reversão parcial do altíssimo poder que os mercados tiveram para organizar as sociedades
durante a década de 1990. Esta alternativa é possível e provável, mas demandará de uma
forte dose de decisionismo político a fim de impor uma estrutura de estados pós-
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westfalianos hierarquizados, agindo como agentes de segurança e justiça global. Essa
estrutura de estados hierarquizados deverá ter no seu topo os EUA, em segundo lugar a
União Européia, Japão, Rússia, China e Índia, e a seguir todos os outros estados integrados
na economia globalizada. Esse sistema de segurança e justiça global tenderá a ser
predominantemente intergovernamental (incluindo componentes trans-governamentais) e
estará baseado no poder real dos países no inicio do século XXI, expressado como uma
combinação dos seguintes fatores: consolidação e projeção do estado de direito, tamanho e
dinamismo da economia, intensidade do desenvolvimento científico-tecnológico, tamanho
da população, recursos naturais disponíveis (terras agriculturaveis, água, biodiversidade,
petróleo etc.), eficácia da governabilidade, recursos militares disponíveis e capacidade de
projeção de poder. Esse enfraquecimento parcial dos mercados não implicará uma volta aos
keynesianismo dominante até a década de 1980 (embora exista no curto prazo, um novo
intervencionismo para diminuir os efeitos da crise sobre os setores econômicos diretamente
afetados pelos atentados, como as companhias aéreas), mas acarretará uma expansão da
esfera estatal (aumento da proporção do setor segurança pública no conjunto da economia)
e o desenvolvimento de uma arquitetura de governabilidade global orientada a aumentar a
segurança dos indivíduos e das sociedades menos dependente dos mercados, como a
existente hoje.
10
países emergentes e pobres, que lhes evite ser sugados pelas forças especulativas do
mercado mundial.
3
O conceito de condição humana é entendido, seguindo em sentido amplo uma interpretação arendtiana, não
como uma natureza ou essência predeterminada, mas como o conjunto de atividades específicas dos seres
humanos que tem seu cume na ação política realizada em liberdade (Arendt, 1958).
11
interesses particulares do estado-nação, a cosmopolitismo aceitará então o desafio de
harmonizar valores e preferências particulares e universais dentro de um continuum
político, social, ecológico e moral, com nuanças e diferenças internas (Linklater, 1998;
Held, 1997). Mas não se deve entender o cosmopolitismo como uma idéia abstrata, quase
hegeliana. A aceleração e a compressão de tempo e espaço, na época da globalização, nos
convoca a deixar de pensar em termos abstratos. Assim, o cosmopolitismo também deverá
ser pensado em termos concretos, em relação a fatos históricos e possibilidades reais, invés
de utópicas.
III.
Como se deduz claramente dos comentários anteriores, nestas últimas décadas houve
mudanças significativas em relação ao papel dos diferentes atores e às características dos
regimes associados aos diversos problemas internacionais. Da mesma forma que nos anos
70 houve um papel destacado dos estados e nos anos 80 esse papel foi compartilhado com a
sociedade civil, nos anos 90 o eixo da governabilidade se deslocou gradualmente para o
campo do mercado e seus atores. A governabilidade global se baseia, certamente, num
sistema de atores misto que funciona de forma poliárquica, mas isto não supõe que em cada
momento histórico a responsabilidade de cada ator seja sempre a mesma. Projetar para o
presente o papel que os estados tiveram nos anos 70 ou a sociedade civil nos 80 seria,
portanto, um anacronismo. A governabilidade global supõe um sistema de atores misto que
não pode estar enviesado por pressupostos ideológicos ou utópicos.
12
Chegado neste ponto, o pesquisador deverá perguntar-se se é possível imaginar algum tipo
de governabilidade dos problemas internacionais agendados, dado o contexto de
complexidade, imprevisibilidade e particularismos do mundo globalizado atual.
Certamente, não é possível imaginar padrões fixos de governabilidade que venham a
resolver qualquer tipo de problemas. Mas sim é possível imaginar uma governabilidade
focalizada em problemas concretos, cujo sucesso dependerá em cada caso das
características e complexidade do problema abordado. Assim como não existe uma única
dimensão para o processo de globalização, também os processos de governabilidade global
não podem ser pensados de uma forma unidimensional. De fato, em cada caso temos um
contexto diferente de governabilidade. Não é o mesmo pensar a governabilidade no caso do
conflito no Médio Oriente, que no caso da mudança climática. Assim, a governabilidade
global deve ser pensada como um processo complexo, integrado por numerosos processos
que às vezes convergem, ás vezes divergem, dependendo da capacidade dos atores
envolvidos para interagir de forma democrática, realista e racional. Isto significa, em
outras palavras, que a maior ou menor realização da governabilidade global, em
determinado momento histórico, dependerá da orientação dos atores numa direção mais
cosmopolita que nacional, mais liberal que utópica e mais realista que formal.
Não pode existir governabilidade global num contexto onde os atores colocam seus
interesses nacionais por cima de qualquer outra coisa. Do ponto de vista histórico, resulta
evidente que os Estados Unidos e as democracias liberais, em geral, foram os mais
comprometidos com a manutenção de um sistema internacional de base pluralista.
Gostemos ou não, não existe nenhuma alternativa de evolução realista para posições
cosmopolitas que não partam das democracias liberais capitalistas. Sobre este ponto não
pode haver confusão. A governabilidade global demanda dos atores uma visão democrática
e cosmopolita do direito e da política, tanto como uma visão liberal da sociedade e da
economia. Obviamente, isto não implica que todos os países e grupos sociais do mundo
devam aceitar a visão de mundo ocidental em todos seus detalhes. Mas sim implica que a
base para desenvolver um sistema de atores de orientação democrática e cosmopolita, capaz
de garantir a governabilidade global, se encontra na dinâmica das democracias capitalistas
mais avançadas de Ocidente. Mais uma vez, isto não quer dizer que se deva confundir a
governabilidade com o capitalismo; existem numerosos exemplos de capitalismo (chamado
às vezes de “selvagem”) que testemunham uma forte contribuição à in-governabilidade.
Mas tão evidente quanto isto é o fato de que a tradição democrática está associada
intimamente à historia do capitalismo, não do socialismo ou do comunismo. Em outras
palavras, a governabilidade global não pode ser pensada fora dos marcos de um capitalismo
global de base liberal, que progressivamente adote valores cosmopolitas. Fora do
capitalismo liberal temos forças nacionalistas e neofeudais que são intrinsecamente
contrárias a qualquer hipótese de governabilidade global. Estas forças não são recém
chegadas à estrutura do sistema político internacional, mas sua força vem crescendo
rapidamente a partir da globalização. Os atores neofeudais minam qualquer perspectiva
democrática a partir de sua adesão a múltiplas lealdades e poderes no interior do estado,
assim como pela sua associação com a corrupção e o crime. Se as forças cosmopolitas são o
melhor suporte para a governabilidade global, as neofeudais são o pior (estando as forças
nacionalistas e liberais no meio do espectro entre ambas).
13
IV.
14
mais íntima do que se pensava antes, se torna crítica quando pensada desde o eixo do
estado. Países da solidez econômica e social de Rússia (ex-URSS), no início dos 90, ou de
Argentina, mais recentemente, mostram quanto é efêmero o sucesso nessas áreas quando
não vem acompanhado por um estado de bases sólidas.
V.
15
em relação à globalização e a Ocidente (tal como ficara evidente nas mostras de simpatia
com “os motivos” que levaram aos atentados de 11 de setembro, por parte de importantes
setores da opinião pública da região).
Apesar dos importantes vínculos que América Latina mantêm permanentemente com os
Estados Unidos e os países de Europa Ocidental, sua dinâmica não apenas mostra uma
enorme dificuldade de transformar seus valores de origem, mas também não conseguiu
evitar a aquisição dos preconceitos próprios da sub-cultura latino-americana. Importantes
setores dos estados e das sociedades civis dos países latino-americano continuam ainda
situando suas estratégias de ação social e políticas de desenvolvimento num contexto de
confusas idéias utópicas de fundo anticapitalista e anti-globalizante, onde os principais
atores são as organizações da sociedade civil e o estado nacional.
Comparado com o início da década de 1990, no início do século XXI tem se fortalecido
uma cultura antiliberal que atribui as dificuldades e fracassos porque passa o continente às
reformas econômicas liberalizantes. Devido a seu legado histórico (marxismo e estatismo
nacionalista) esta corrente tem extrema dificuldade para perceber que na maioria dos países
latino-americanos as reformas liberalizantes foram feitas apenas a medias. O déficit fiscal
diminui mas continuou sendo muito grande, segundo os parâmetros internacionais, e os
governos sub-nacionais diminuíram sua capacidade de emissão secundaria de moeda (o
principal instrumento eram os bancos estaduais e provinciais), mas ainda conseguem
transferir para a nação fortes déficits. Os estados foram apenas parcialmente reformados
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nos melhores casos e nos piores continuaram como antes, sendo fonte de improdutividade e
parasitismo. Os sistemas tributários continuaram tendo um alto custo transacional e tiveram
um desempenho pobre no combate a evasão. Em vários países as privatizações envolveram
significativas doses de corrupção, a substituição de monopólios estatais por monopólios
privados e deficiências nos novos marcos regulatórios. Em muitos países não foram criados
regimes monetários, cambiais e fiscais que trouxerem credibilidade e previsibilidade ao
funcionamento da economia. Um banco central independente, crucial para a modernidade
capitalista globalizada, continua sendo um sonho longinquo na maioria dos países latino-
americanos. Às dificuldades acima mencionadas produto do caráter limitado das reformas
liberalizantes, agregam-se outras dificuldades provenientes do funcionamento do
capitalismo contemporâneo, como a vulnerabilidade da região frente a mercados
financeiros globais com baixa regulação e políticas protecionistas no setor agrícola dos
países desenvolvidos.
De acordo com a classificação inicial dos estados nações, segundo a eficiência e eficácia de
sua governabilidade, se conclui que os únicos estados desenvolvidos da América Latina são
Chile e Costa Rica. Os estados emergentes são México, Brasil, Uruguai, Panamá e El
Salvador. México devido a sua alta integração com a economia americana não está
ameaçado significativamente de regressão. Já Brasil e Uruguai estão num equilíbrio
instável devido que suas dividas públicas são muito altas e em trajetória de crescimento,
alem de terem poderosos partidos políticos de esquerda, cujo compromisso com as regras
da modernidade capitalista é no mínimo duvidosa. No caso do Brasil agregam-se os
problemas do crescimento do crime organizado e ineficiências do arranjo federativo. No
caso do Uruguai agrega-se o problema da baixa competitividade do seu sistema produtivo.
Panamá e El Salvador também estão num equilíbrio precário já que a variável
estabilizadora é a crescente integração com a economia americana.
Nos estados fracassados temos uma proporção muito alta da população na pobreza
totalmente distanciados da modernidade capitalista e com baixíssimas perspectivas de
melhora: Bolívia, Paraguai, Guyana, Suriname, Nicarágua, Honduras, Guatemala e Haiti.
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A principal questão para a dinâmica de América Latina na presente década está relacionada
á situação do Brasil. Este país pode consolidar-se como estado emergente avançando na
direção de estado desenvolvido, continuar como estado emergente em equilíbrio precário
ou cair para estado semi-fracassado. Em qualquer dos três cenários seu impacto sobre
América Latina será muito forte: como estado emergente consolidado poderia co-liderar
junto com Chile um Mercosul ampliado ao conjunto de América do Sul ou uma rápida
formação da ALCA (em ambos casos favorecendo a governabilidade dos outros estados da
sub-região), como estado emergente precário continuará desempenhando o papel de uma
força que incorpora alta incerteza no sistema, e como estado semi-fracassado levará ao
resto da América do Sul (exceto Chile) a um forte deterioro que provavelmente poderia ser
imaginada como uma realidade que combine as atuais Colômbia e Argentina.
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Site Brasileiro de Referência em Relações Internacionais, Departamento de Relações Internacionais
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