Você Brinca de Boneca, Mas É Menino
Você Brinca de Boneca, Mas É Menino
Você Brinca de Boneca, Mas É Menino
ISSN 1981-2582
revista quadrimestral
Porto Alegre, v. 40, n. 2, p. 250-262, maio-ago. 2017 http://dx.doi.org/10.15448/1981-2582.2017.2.23571
Resumo
Analisou-se como as relações de gênero são estabelecidas em atividades lúdicas de um currículo e seus efeitos na
subjetividade de meninos e meninas. A pesquisa foi desenvolvida em escola de município sergipano, durante três
meses, em uma turma composta por crianças com 5 anos. No cenário observado, as relações de gênero têm suas
bases firmadas na heterossexualidade. A equipe escolar e os(as) próprios(as) alunos(as) carregam consigo concepções
de feminino e de masculino bem definidas. Há, também, intensa vigilância da sexualidade das crianças, na busca
de estimular a heterossexualidade como norma a ser seguida e, ao mesmo tempo, contê-la. Porém, nem sempre
o currículo analisado conseguiu normatizar os sujeitos, e outras possibilidades puderam ser construídas. O mais
significativo foi evidenciar como o currículo escolar exerce fortes marcas na constituição de seus sujeitos.
Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Educação infantil.
Abstract
We analyze how gender relations are established in play activities of a curriculum and its effects on subjectivity of
boys and girls. The research was conducted in Sergipe municipality of school for three months in a group composed
of children aged 5 years. The observed scenario, gender relations have their bases signed in heterosexuality. The
school staff and the students carry with female conceptions and well defined male. There is also intense surveillance
of the sexuality of children, seeking to encourage heterosexuality as the norm to be followed and at the same time,
contain it. However, the analyzed curriculum not always managed to regulate the subjects where other possibilities
could be built. The most significant was to show how the school curriculum exerts strong brands in the constitution
of its subjects.
Keywords: Gender. Sexuality. Early childhood education.
Resumen
Analizamos cómo se establecen las relaciones de género en las actividades de juego de un plan de estudios y sus
efectos en la subjetividad de los niños y niñas. La investigación se realizó en la escuela durante tres meses en un
grupo compuesto por niños de 5 años. El escenario observado, las relaciones de género han firmado sus bases en
la heterosexualidad. El personal de la escuela y los alumnos llevar con concepciones femeninos y masculinos bien
definido. También hay una intensa vigilancia de la sexualidad de los niños, tratando de animar a la heterosexualidad
como la norma a seguir y, al mismo tiempo, lo contienen. Sin embargo, el plan de estudios analizados no siempre se
las arregló para regular los temas en los que se podrían construir otras posibilidades. El más importante fue mostrar
cómo el plan de estudios de la escuela ejerce fuertes marcas en la constitución de sus temas.
Palabras clave: Género. Sexualidad. Educación infantil.
** Professora do Departamento de Educação (DEDI) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal de Sergipe. Líder
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Científica (GEPEC) da referida instituição. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação,
Conhecimento e Inclusão Social, na Linha de Pesquisa Educação Escolar: Instituições, Sujeitos e Currículos. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Currículos e Culturas (GECC) na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: <livinha.bio@gmail.com>.
** Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Sergipe. Professora da Rede Particular de Ensino de Sergipe. E-mail: <thegirl_danny@hotmail.com>.
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional,
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação
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Você brinca de boneca, mas é menino 251
Percebe-se, entretanto, que a ênfase maior quando o masculino e o feminino já são percebidas quando se
se trata de gênero está na questão biológica. É a partir observa a equipe docente, principalmente na educação
daí que se nomeiam seres do sexo masculino e feminino, infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. A
definem-se características próprias e únicas para cada um, maioria dos(as) professores(as) desses níveis de ensino
determinam-se papéis, profissões, posições sociais e de é do sexo feminino, devido ao processo histórico de
poder, delimitam-se espaços, concebendo assim o gênero “feminização do magistério” (LOURO, 2009).
“como uma característica exclusivamente biológica, que Ao considerar tais conceitos de gênero e de
explica os comportamentos femininos e masculinos como sexualidade, bem como os seus modos de operação,
estaticamente determinados e definidos desde a concepção” passa-se a apresentar momentos analíticos neste artigo.
(TAUFER, 2009, p. 9). Nessa visão binária de homem e No primeiro deles, discute-se a produção de diferenças
de mulher, surgem as dicotomias: produção-reprodução, entre meninos e meninas nas atividades lúdicas e o
força-fragilidade, domínio-submissão, público-privado, quanto as vestimentas e os acessórios contribuem para
razão-sentimento (LOURO, 1997). A proposta torna-se, a construção da identidade das crianças. No segundo
então, desconstruir os binarismos e pluralizar os gêneros. momento, analisa-se a vigilância exercida pelas monitoras
Afinal, o conceito de gênero é marcado fortemente e pela professora sobre as crianças e que tem o objetivo
pelo caráter social, e “a inscrição dos gêneros – de evitar os contatos físicos e “desvios de conduta” de
feminino ou masculino – nos corpos é feita, sempre, meninos e meninas. No terceiro momento, discute-se
no contexto de uma determinada cultura e, portanto, a reiteração incessante das atitudes, comportamentos
com as marcas dessa cultura” (LOURO, 2000, p. 11). e papéis generificados das crianças da creche para que
A heteronormatividade, na cultura ocidental, tem elas não ultrapassem as fronteiras determinadas para seu
servido como o regulador dos gêneros em sua conexão gênero. Por fim, tecem-se algumas considerações finais
com os sexos. Tal conceito é entendido como em torno das análises empreendidas.
meninas brincavam com bonecas, ursinhos de pelúcia e brincando com boneca é algo inaceitável nesse currículo!
álbuns de figurinhas. Percebeu-se nitidamente que havia Nesse contexto, os garotos e suas masculinidades infantis
separação dos brinquedos e que, segundo a professora, as são severamente vigiados, para que estas sejam garantia
monitoras e, até mesmo, os(as) próprios(as) alunos(as), das masculinidades adultas. O mesmo investimento
existiriam brinquedos destinados aos meninos e outros não ocorre em relação às garotas. Afinal, os meninos
às meninas. De acordo com Silva (2004), espera-se são ensinados a não achar conveniente compartilhar
que a escolha dos brinquedos aconteça “naturalmente” momentos de interação com as meninas, o que reforça
e se direcione segundo o sexo; se isso não ocorre, o(a) a separação entre eles/elas (FELIPE, GUIZZO, 2004).
professor(a) orienta os(as) alunos(as) na seleção do Em consequência disso, percebeu-se que meninos
brinquedo “apropriado” para cada gênero. Comprovou-se trazem consigo um discurso repreendedor quando
esse argumento no período da observação na creche: as meninas tentam brincar com eles: “Saia, você não é
educadoras, a todo instante, tentavam direcionar a escolha homem”; “carrinho é brinquedo de homem, mulher não
das crianças para brinquedos que seriam “compatíveis” pode brincar” (Diário de Campo, 28/02/2014). Em uma
com seus gêneros. situação na qual dois meninos brincavam de carrinho no
Nas entrevistas, ficou mais evidente a visão que as pátio, enquanto aguardavam os pais, e uma das meninas
entrevistadas tinham da divisão de brinquedos por gênero. se aproximou e pegou o carrinho de um deles, um desses
Quando perguntada sobre essa questão, a monitora B falou: garotos disse rapidamente: “Solte meu carrinho; isso não
“Em minha opinião, está certo. Menino tem que brincar é brinquedo de menina”. Ao ser questionado, então, sobre
com bola e com outros brinquedos, e as meninas, sempre sua afirmação, ele respondeu que carrinho é brinquedo de
de bonequinha, que a gente não vai misturar, brinquedos menino (Diário de Campo, 27/02/2014).
de meninos têm que ser diferente”. Ela disse, ainda, que, A divisão generificada de brinquedos, predeterminada
se os meninos brincassem com boneca, influenciaria na socialmente, já está impregnada nos adultos e, ao terem
identidade deles. A professora, ao responder à mesma essa visão, eles transmitem para as crianças aquilo que
questão, disse: “Eu concordo que tanto a menina pode é tido como o correto, levando-as a acreditar que cada
brincar com carrinho como o menino pode brincar com uma deve brincar com os brinquedos definidos para seu
boneca, desde que essa criança seja trabalhada a conhecer gênero. Caso contrário, são repreendidas e corrigidas. Em
que o brincar é o brincar, não pode levar para o lado uma das situações presenciadas, um dos meninos da turma
pessoal: você brinca de carrinho, mas você é menina; pegou a boneca da colega que estava sobre a mesa, e a
você brinca de boneca, mas você é menino”. professora, com um tom irônico, perguntou: “Vai brincar
Com a frase inicial, “a menina pode brincar com de boneca, é?” (Diário de Campo, 21/02/2014). Pode-se
carrinho como o menino pode brincar com boneca”, dizer que falta às crianças liberdade de agir, escolher com
observa-se que a docente aparenta apropriar-se do que desejam brincar, de que maneira desejam se expressar
discurso da diferença, o que indicaria um respeito aos e, como resultado disso, “quem brinca vive a tensão das
desejos das crianças em escolherem seus brinquedos e escolhas, dos conflitos, dos limites, do fazer e desfazer
brincadeiras independentemente de seus sexos ou gêneros. das ações e imaginações, [...] experimenta o equilíbrio
Com a argumentação que se seguiu, de que brinquedo e e o desequilíbrio, o contraste e o semelhante, a união e a
brincadeira não devem ser levados para o pessoal – no desunião” (PIRES, 2004, p. 54).
sentido da subjetividade ou da construção da identidade No que diz respeito às brincadeiras, não foi notada
–, porém, evidencia-se apenas que há o reconhecimento muita preocupação da professora e das monitoras em
de que deixar cada um(a) brincar com o que quiser é separar meninos e meninas. Quando elas desenvolviam as
algo que o discurso pedagógico deve apropriar-se para brincadeiras, geralmente, ficavam todas juntas. Brincavam
estar de acordo com as demandas contemporâneas que de “pega-pega”, de “corre lagartixa”, de “trenzinho”, de
são colocadas para os currículos escolares. Assim, em “roda”, cantavam. As monitoras e a professora não viam
meio a tantas lutas dos movimentos feministas e LGBT, problema em misturar meninos e meninas e, de acordo
a reiteração da norma é atualizada nesse currículo para com a professora, “devem brincar todos juntos, tem que
produzir efeitos normativos. Além disso, grande parte incluir, que juntar, sem diferenciar um do outro”, mas
dos episódios que se desenrolaram nas observações de sempre estar muito atenta” às atitudes de uns/umas com
professoras e monitoras, ao contrário do que afirmavam, os(as) outros(as). O tal “perigo” não estava no desenvolver
não aceitavam com tranquilidade que os brinquedos das brincadeiras, no brincar em conjunto. Mas, sim, no
fossem diversificados entre meninos e meninas. contato entre meninos e meninas, que deveria ser vigiado
Observou-se, nesse sentido, que há uma preocupação para que eles(as) não escapassem das normas.
maior com os meninos, com os brinquedos que eles estão No momento em que as crianças eram colocadas
utilizando, principalmente em relação à boneca. Garotos para brincar livremente, no entanto, ocorria a divisão que
elas mesmas faziam: os meninos formavam grupinhos aparece como um possível “treino” para as práticas futuras
e brincavam de “luta”, de “pedra-papel-tesoura”, de de homens e mulheres, algo que está ocorrendo natural e
“pique-esconde”, de “pega-pega”; brincadeiras que instintivamente e que resultará na concretização do que
lembram velocidade, ação, força. As meninas, por prega o discurso construído socialmente.
sua vez, separadamente, formavam outros grupinhos No decorrer das observações, presenciou-se uma
e brincavam de “mãe e filha” – entre elas mesmas ou situação que parecia “fugir” do que até então estava sendo
com as bonecas sendo suas filhas –, de “adoleta”, de observado: três meninos e uma menina brincavam juntos
“maquiagem”. Todas essas brincadeiras remetem à com um carrinho e um boneco, brinquedos tidos como
maternidade, ao lar, à beleza. Assim, as próprias crianças de menino (Diário de Campo, 06/03/2014). Em nenhum
governavam os seus comportamentos sem necessidade da momento, foi notada reação de repreensão por parte deles
presença do(a) educador(a). Em um episódio observado, mesmos ou da professora. Ou a cena passou despercebida,
duas meninas estavam sentadas à mesa, antes do café, ou de alguma maneira não provocou nenhuma estranheza.
com atitudes interessantes. Então, foram perguntadas pela Acredita-se que, por se tratar de uma menina brincando
pesquisadora o que estavam fazendo. Elas disseram que de carrinho e não um menino brincando de boneca, a
estavam brincando de maquiagem. Com o dedo, as garotas professora e as monitoras não acreditem que isso seja
fingiam que estavam passando sombra, batom, pó, blush algo preocupante e inaceitável, como seria para um
(Diário de Campo, 21/02/2014). Induzidas pela família menino. Nesse episódio, fica evidente que as brincadeiras
e pela escola, as garotas acabam por reproduzir o que podem se configurar como um movimento constante de
essas instituições sociais pregam através dos discursos subjetividades, em que “a cultura infantil se depara com
que produzem sobre feminilidade e beleza. velhas regras, velhos jogos, velhas histórias e, ao mesmo
Em outro episódio, estavam sentados(as) juntos(as) tempo, arquiteta o novo, dá uma nova forma e constrói
duas meninas e um menino, quando uma delas disse: novas possibilidades de interação” (OLIVEIRA PINTO
“Estou maquiando o José para o casamento” e fez gestos e LOPES, 2009, p. 882).
no rosto do menino. A menina que estava com ela disse: A separação entre meninos e meninas é percebida
“Está maquiando ele? Mas ele não é mulher!”. Então, a também nas roupas, acessórios e material escolar.
outra respondeu: “Só vou passar pó e perfume” (Diário Quando não estavam com o uniforme da creche, as
de Campo, 06/03/2014). Ao analisar o modo como garotas desfilavam com seus vestidos, blusas e saias, na
estavam brincando, essas garotas mostraram saber o maioria das vezes, de cor rosa, com desenhos de bonecas
que é socialmente permitido a elas e o que é permitido e princesas; sapatos e sandálias também da mesma cor,
aos garotos e separam de maneira impressionante cada enfeitados com laços e flores. Suas mochilas e cadernos
detalhe do que pertence a um e a outro. Talvez, se a também seguiam o mesmo padrão de cor e com imagens
primeira menina não tivesse sido questionada pela outra, de personagens infantis femininos. Já os garotos sempre
ela teria continuado a maquiar o colega. Isso evidencia estavam com os super-heróis da “cabeça aos pés”. Alguns
que “os modos possíveis de as crianças construírem usavam ainda camisa de time de futebol, com imagens de
e assumirem o gênero não decorrem de uma inerência carrinhos e, em suas mochilas e cadernos, predominavam
biológica concreta, ou de uma inerência social abstrata, as cores verde e azul. É nítida a influência cultural que
mas do confronto e jogo em ações situadas, as quais sofrem essas crianças, o quanto a aparência corporal diz
são múltiplas, complexas, contraditórias e dinâmicas” sobre a identidade de cada um(a). Além disso, “vestir
(BUSS-SIMÃO, 2013 p. 193). esse corpo masculino e feminino faz com que haja
O discurso presente nas entrelinhas do brincar, das uma identificação e um sentimento de pertencimento
brincadeiras distintas tanto dos garotos quanto das garotas diferenciado de acordo com o gênero” (CARVALHAR,
não é algo inventado ou criado na atualidade, mas sim 2009, p. 71). Vale destacar, ainda, o papel que as mídias e
derivam de um discurso generificado disseminado há seus personagens – filmes, desenhos animados, revistas –
muito tempo, que ganhou força nos chamados Anos possuem na vida das crianças, constituindo-se em “modos
Dourados, entre 1945 e 1964. Na ideologia desse de subjetivação que são direcionados às pessoas em geral
período, “a vocação prioritária para a maternidade e a de forma a governá-las” (CARDOSO, 2016, p. 479).
vida doméstica seriam marcas de feminilidade, enquanto Ao tratar das vestimentas, no dia em que estavam
a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a comemorando o carnaval na creche, a professora levou
força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade” várias fantasias para as meninas e máscaras de super-
(BASSANEZI, 2009, p. 609). Nota-se a perpetuação, ao heróis para os meninos. Uma das fantasias era de bruxa,
longo do tempo, da divisão generificada de masculino e e todas as meninas se recusaram a vesti-la pelo valor
feminino que se reflete até na maneira de brincar e nas pejorativo que esse personagem tem nas histórias infantis:
atividades lúdicas desenvolvidas pelas crianças. O brincar não casam, provocam o mal alheio, não têm um final feliz
e, como afirma Sabat (2004, p. 103), “representa uma pessoas. Às meninas, dar-se-ia a oportunidade de utilizar
identidade que está na zona da anormalidade, da abjeção os brinquedos tidos como masculinos, com o objetivo
reunindo qualidades que não devem ser desejadas pelas de ampliar as possibilidades de se desenvolverem de
crianças”. Sem muita alternativa, uma das meninas teve maneira mais completa, principalmente em relação ao
de se vestir de bruxa e foi motivo de zombaria entre os(as) corpo. Esse seria um passo relevante para se iniciar um
colegas (Diário de Campo, 28/02/2014). processo de desmistificação de preconceitos e diferenças,
A divisão está definida: por um lado, as meninas levando os(as) educadores(as), a equipe escolar e,
sonham em ser princesas e tentam de diversas maneiras consequentemente, a família a reverem suas opiniões e
imitá-las, preocupando-se com a beleza, usando roupas e ações quanto aos padrões generificados e predeterminados
acessórios que as remetem e também agindo como elas. pela sociedade que eles(as) acabam por transmitir ou até
Por outro lado, os meninos dizem ser super-heróis e estão mesmo impor às crianças.
sempre se exibindo e comentando entre eles sobre seus Além de controlar e regular as crianças quanto aos
“poderes” e qual personagem cada um é. Isso porque os brinquedos que devem utilizar e às brincadeiras que
garotos têm o conhecimento de que “os heróis [...] têm devem praticar, para que sejam divididos e delimitados
poder, sempre se dão bem no final da história e, na maioria de acordo com o gênero que cada aluno(a) deve
das vezes, até conseguem uma companheira. Ou seja, eles desempenhar, exatamente como preveem os padrões
têm todos os atributos valorizados para a figura masculina sociais, a professora e as monitoras também realizam uma
em nossa sociedade” (CARVALHAR, 2009, p. 84). Por grande vigilância da chamada “sexualidade” de meninos
isso, os meninos são induzidos, desde muito cedo, a se e meninas. Assim, para que não ocorram os indesejáveis
compararem a super-heróis. Certa vez, durante as idas escapes à norma, estratégias são produzidas no currículo
à creche, em momento no qual fotografava os materiais analisado. Esse é o assunto apresentado e discutido no
das crianças, um dos meninos se aproximou e disse, mos- próximo tópico.
trando a sua mochila: “Tia, minha mochila é do Ben 10.
Eu sou o Ben 10” (Diário de Campo, 13/04/2014). Vigilância das sexualidades nas
Nota-se, portanto, que os heroicos personagens, seus brincadeiras
superpoderes e, consequentemente, seus sucessos
compõem as subjetividades infantis. Durante o período de observação realizada na
As crianças da instituição investigada sofreram e instituição de educação infantil pesquisada, foi percebida
sofrem a influência da visão binária de homem e mulher uma grande preocupação das monitoras e da professora
que paira sobre a sociedade, tanto por parte de seus com o que elas dizem ser a sexualidade das crianças.
familiares quanto por parte da professora e da equipe Sexualidade é aqui entendida e analisada como “aquilo
escolar. Para esses adultos, os meninos e as meninas que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio
apenas devem reproduzir o que lhes é passado, não há da inteligibilidade cultural” (BUTLER, 2010, p. 155).
necessidade de que entendam de forma clara o porquê de Nessas análises, importa entender “como as características
poderem brincar com isso e não poderem com aquilo, o sexuais são compreendidas e representadas ou, então,
porquê de vestirem roupas dessa cor e não daquela outra. são trazidas para a prática social e tornadas parte do
Por isso, não é dada àquelas crianças a oportunidade de processo histórico” (LOURO, 1997, p. 22).
conhecer e vivenciar de maneira plural as experiências, de Para as professoras observadas, era necessário se
fazer aquilo que têm vontade, que desejam, sem se sentirem manterem vigilantes quanto às atitudes de meninos e
pressionadas a seguir um padrão imposto, preestabelecido. meninas a fim de evitar situações de contato mais próximo
Esquecem-se, porém, de que os garotos e as garotas são entre crianças do mesmo sexo e, em alguns casos, proibia-
formadores(as) de saberes e já possuem conhecimentos se também o contato físico de crianças de sexos distintos.
diversos que os(as) possibilitam criar e recriar, agir e reagir Por exemplo, na hora do banho, primeiro as garotas e
diante das mais distintas situações. São crianças, e por esse depois os garotos; no momento das refeições, a monitora
motivo devem ter possibilidades múltiplas de interagir com B separava de um lado da mesa os meninos e do outro as
o mundo, de desvendá-lo livremente. meninas; nas atividades, garotos em uma mesa e garotas
Como afirma Azevedo (2003), seria interessante, em outra. A professora, porém, fazia diferente, colocando
ao invés de retirar este ou aquele brinquedo dos dois meninos e duas meninas na mesma mesa por causa
garotos ou das garotas, permitir que eles utilizassem os da conversa, segundo ela. Mesmo tendo tal atitude, a
brinquedos tidos como femininos com o intuito de que professora, em entrevista, falou que “tem que ficar muito
tivessem possibilidades e incentivos para desenvolver atenta com as coisas que acontecem, porque eles(as) (as
a competência de cuidar, e quando adultos tivessem crianças) estão voltados(as) muito para o amor, para o
uma relação mais empática e afetiva com as demais namoro”. Ela disse ainda que, apesar de serem inocentes,
não saberem por que estão fazendo aquilo, eles(as) gostam Ao falar das meninas, a situação era um tanto distinta.
muito de se beijar, por isso é preciso ficar alerta para que Havia contato físico maior, e elas não eram repreendidas
isso não ocorra. por isso. Porém, se o contato fosse com um menino, a
Pode-se dizer que, considerando a fala da educadora situação mudava um pouco. As monitoras e a professora
e as situações observadas, acredita-se que as crianças já já ficavam atentas e faziam questão de separá-los(as)
possuem uma sexualidade aflorada e que esta deve ser imediatamente. Essa atitude de vigilância com as meninas,
vigiada para não ser exposta, pois ainda não é o momento presente no fazer pedagógico dessas profissionais, é
certo; afinal, trata-se de meninos e meninas ainda de resultado de um discurso difundido ao longo da história,
pouca idade. Isso quer dizer, em outras palavras, que presente também no século XIX, em um período em que
“a sexualidade deverá ser adiada para mais tarde, para as mulheres, ao aparecerem com mais frequência em
depois da escola, para a vida adulta. É preciso manter a ambientes públicos, tinham sua conduta e comportamento
‘inocência’ e a ‘pureza’ das crianças” (LOURO, 2007, vigiados pelo marido, pelo pai e também pela sociedade,
p. 26). Desse modo, é comum negar a “singularidade tendo de aprender a se comportar adequadamente
da criança, esquecendo-se de que a sexualidade é uma (D’INCAO, 2009). Além disso, pregava-se que “desde
dimensão da existência que não tem idade; de que a muito cedo a mulher devia ter seus sentimentos
criança elabora suas próprias teorias sobre a sexualidade devidamente domesticados e abafados” (ARAÚJO, 2009,
de acordo com suas vivências, imersas em contextos p. 51) para que, assim, pudesse ser mantido o equilíbrio
culturais os mais diversos, manifestando sua sexualidade social. Tal vigilância e controle dos comportamentos e da
diferentemente do adulto” (RIBEIRO, 2011, p. 606). sexualidade feminina ultrapassam as fronteiras do tempo
Ao tratar da vigilância da sexualidade das crianças, e sobrevivem até os dias atuais, em algumas situações de
nota-se também uma diferença entre meninos e meninas: maneira camuflada, mas, certamente, com consequências
apesar de a escola regular e controlar crianças tanto do sexo significativas no desenvolvimento social e interacional
feminino quanto do sexo masculino, há uma preocupação das garotas, futuras mulheres.
maior com os meninos, com sua heterossexualidade. Em um momento específico, no entanto, não houve
Assim, estes são vigiados e controlados de maneira mais preocupação com relação ao contato entre meninos e
rigorosa. Segundo Carvalhar (2010, p. 32), quando se trata meninas. Isso aconteceu na festa em comemoração ao
dos meninos, “a maior vigilância recai sobre a conduta carnaval. Todos(as) fantasiados(as), reuniram-se em uma
heterossexual, pois há um medo da homossexualidade única sala para dançar as músicas de carnaval. Forma-
masculina. Essa é vista como um perigo a ser enfrentado e ram-se dois pares, dois garotos dançando com duas
uma conduta a ser corrigida”. Três episódios no currículo garotas, sem que alguém sugerisse. E a dança se estendeu
analisado, mais especificamente, exemplificam isso. durante toda a manhã. Quando paravam de dançar, os
No primeiro deles, os garotos estavam sentados na garotos e as garotas saíam de mãos dadas pela creche e,
porta do banheiro, aguardando as garotas terminarem em nenhum momento, foi notada reação das monitoras
o banho, quando Ariel colocou a mão no ombro de ou das professoras. Pelo contrário, depois de um tempo,
Henrique, próximo ao pescoço, e logo foi repreendido as próprias educadoras começaram a formar pares
pela monitora B: “Tire o braço daí, que amizade é de meninos e meninas para dançar (Diário de Campo,
essa? Estou de olho em vocês dois” (Diário de Campo, 28/02/2014).
21/02/2014). No segundo episódio, antes do café, todos Ao refletir sobre esse e sobre os demais episódios,
sentados à mesa, João abraça Fabrício e a monitora A em que se relacionavam com a proibição do contato ou
fala: “Pare de agarrar ele, não se agarra homem não, tem com o estímulo à heterossexualidade como norma a ser
que agarrar é mulher” (Diário de Campo, 28/02/2014). seguida, percebeu-se que havia o incentivo para que os
A terceira situação aconteceu durante uma brincadeira: meninos exibissem suas masculinidades e o controle
a monitora B pede que os alunos façam uma roda para das meninas para que fossem quietas e recatadas em
cantar e dançar e, por sempre separar meninos de um lado relação aos meninos. Então, a forma de sexualidade
e meninas do outro, logo é questionada por Ariel: “Tia, que se ensina é, sim, a heterossexualidade, e a educação
é para ficarem os garotos separados das garotas, é?” e aqui estabelecida é um meio “para naturalizar identi-
ela responde ironicamente: “Não, são todos juntos! Vai dades de gênero e sexuais através de múltiplas estratégias,
dançar homem com homem, é Ariel?” (Diário de Campo, quase sempre baseadas no (auto)governo, no (auto)con-
27/02/2014). Esses, dentre outros discursos “divulgados trole e na (auto)regulação” (SABAT, 2004, p. 98).
desde cedo para as crianças de forma tão ‘natural’, têm Porém, “a escola [...] precisa se equilibrar sobre um
importantes efeitos de gênero e sexualidade sobre os fio muito tênue: de um lado, incentivar a sexualidade
comportamentos e sobre as identidades das crianças” “normal” e, de outro, simultaneamente, contê-la”
(CARVALHAR, 2010, p. 35). (LOURO, 2007, p. 26).
Além das monitoras e da professora, alertas quanto rigoroso para que não aconteça nenhum escape à norma:
à sexualidade das crianças, ocorreram duas situações em os meninos devem apresentar posturas tidas como
que as famílias (nesses casos específicos, a mãe) também masculinas, sem contato físico com os demais garotos
se fizeram vigilantes quanto ao agir dos(as) filhos(as) em e sem demonstrar interesse por objetos e acessórios do
relação à sexualidade. Ambas as situações tiveram como mundo feminino. As meninas, diferentemente, devem se
protagonista uma menina, a Carla, de 5 anos. Na primeira manter longe dos meninos, pois esse não é o momento
delas, um garoto se aproximou e perguntou se ela queria de contato afetivo e devem ainda “esconder” seus
brincar. Carla respondeu: “Saia de perto de mim! Minha sentimentos. E as regras não param por aqui. Há também
mãe disse que não posso brincar com meninos” (Diário de na creche observada uma preocupação em reiterar os
Campo, 11/02/2014). No segundo episódio, na hora de ir comportamentos e os papéis de cada gênero, com o
para casa, Carla saiu abraçando todas as colegas de classe objetivo de manter os padrões sociais. Os argumentos
para despedir-se. Quando ela abraçou Maria, demorou-se apresentados e discutidos a seguir têm como ponto central
no abraço, e a sua mãe, que estava esperando-a, disse: essa questão.
“Está bom, menina! O que é isso, hein?” (Diário de
Campo, 27/02/2014). De acordo com a mãe, Carla não Reiteração de comportamentos
pode ter contato próximo dos meninos, porque esse não é generificados
o momento, e isso deve ocorrer só depois, na fase adulta.
Mas, também, ela não pode ficar próxima demais de Seja nas brincadeiras, seja nas atividades lúdicas
outras meninas para não desviar da norma, do que está ou nas tarefas escolares diárias, garotos e garotas são
preestabelecido socialmente para ela: ser heterossexual, incessantemente direcionados(as) a agir, a ter condutas
casar-se e ser mãe. que se enquadrem com o que foi socialmente estabelecido
Ao analisar todos os casos, constatou-se o quanto as para seu gênero, a exercer seus papéis generificados. Há
crianças são objetos de ações regulatórias que partem, uma inquietação por parte da professora e das monitoras
inicialmente, de seus familiares e, depois, da equipe da creche investigada em ratificar esses comportamentos
escolar. À escola, dentre as demais atribuições, “é e papéis. Elas têm como atribuição fixá-los de maneira
conferida a formação dos educandos a partir de uma intensa e insistente para que nenhum garoto e nenhuma
matriz heterossexual, para informações voltadas a práticas garota ultrapassem as fronteiras definidas para cada um(a).
de reprodução da espécie e cuidados com a saúde [...], que Essas fronteiras podem ser borradas em três situações
formam um currículo formal e “normal” da sexualidade” principais: “Não se portam como meninas quietas,
(SILVA, 2004, p. 88). A todo instante, meninos e meninas calmas e doces”, “quando meninos não correspondem
são impedidos(as) de tomar essa ou aquela atitude, são a um padrão de masculinidade violenta, competitiva
vigiados(as), regulados(as) e controlados(as) de forma e inquieta” e “além de não corresponder a um suposto
intensa, sem, porém, entenderem o motivo real das padrão de masculinidade, gostar do que é culturalmente
proibições e de tanto controle. definido como feminino” (CARDOSO, PARAÍSO, 2015,
Identifica-se claramente o empenho da escola e da p. 164-165). Se isso ocorre, no entanto, a repreensão é
família em “garantir que seus meninos e meninas se logo colocada em prática.
tornem homens e mulheres ‘verdadeiros’, o que significa Duas situações semelhantes revelam muito bem tal
dizer homens e mulheres que correspondem às formas repreensão, com uma ressalva: meninas são repreendidas
hegemônicas de masculinidade e feminilidade” (LOURO, com comentários que apontam maus comportamentos,
1998, p. 31). As instituições sociais esquecem-se, considerados como sendo masculinos. Na primeira delas,
no entanto, “de considerar que os meninos e meninas a aluna Júlia começou a bater com o lápis na mesa e a
estão construindo seus próprios saberes, que eles e elas monitora B a advertiu: “O que é isso? Está parecendo
produzem e consomem uma cultura” (LOURO, 1998, um moleque” (Diário de Campo, 11/02/2014). O outro
p. 93). Além disso, eles(as) têm acesso a um vasto leque de episódio teve como protagonista a Ana. Durante uma
artefatos culturais: mídia, propagandas, músicas, roupas, atividade, ela começou a fazer sons com a boca. Ao
dentre outros, que estão impregnados de referências ouvi-los, a monitora B disse: “O que é isso, hein, Ana?
sexuais (LOURO, 1998). Por isso, faz-se necessário Parece um moleque. Só aprende o que não presta. Vou falar
problematizar essas questões tão relevantes no processo com sua mãe para tirar esses costumes feios seus” (Diário
de construção de identidade e de gênero de garotos e de Campo, 19/02/2014). Percebe-se, ao analisar as falas
garotas e não apenas impor normas que podem não ter da monitora, que ela tem uma concepção definida também
sentido algum para as crianças. para o gênero masculino. De acordo com ela, bater com
Na instituição escolar investigada, portanto, os(as) o lápis na mesa e fazer barulhos com a boca são atitudes
alunos(as) passam por um processo de vigilância bastante erradas realizadas por meninos e que as meninas não
podem reproduzir. São comportamentos característicos as garotas incorporam-nas. Pouco a pouco, elas vão se
dos garotos, que, por sua vez, são adjetivados como autovigiando, aprendendo a se comportar (D’INCAO,
bagunceiros, agitados, desorganizados. As garotas, porém, 2009). Apesar desses escapes, Carla se governa. Em uma
devem se portar de maneira diferente, ter características cena interessante, posteriormente aos últimos episódios
próprias do seu gênero: ser quietinhas, sensíveis, dóceis. narrados, ela sentou-se, cruzou e pôs a mão sobre as pernas,
Busca-se, mais uma vez nesse currículo, identificar pois estava de saia. Então, percebe-se que ela internalizou
nas crianças “um conjunto de atributos diferenciados, aquelas atitudes e está se comportando exatamente como
classificados em função da suposta ‘natureza’ de cada “dizem que é para ser”. Além da autovigilância e do
gênero” (SILVA, 2004, p. 91). autocontrole, as próprias garotas vigiam e ensinam as
Há, porém, alguns adjetivos com valor negativo outras o modo adequado de agir. Em um episódio, durante
que são utilizados para descrever o gênero feminino a troca de roupa após o banho, Rebeca vestiu a saia e ficou
nesse currículo. A aluna Maria, em distintas situações, mostrando um pouco da calcinha. Então, veio a Carla,
foi chamada de inquieta, fofoqueira e conversadeira pela abaixou a saia dela e disse: “Está mostrando a calcinha
professora e pelas monitoras A e B (Diário de Campo, mulher, abaixe a saia” (Diário de Campo, 21/02/2014).
18/02 e 21/02/2014). E a aluna Ana também foi chamada Com os meninos, a situação não é diferente.
de fofoqueira pela monitora B, que enfaticamente disse: Também é possível encontrar cenas de advertências de
“Nunca vi alguém tão fofoqueiro na face da terra” (Diário ações reprovadas pelas monitoras. Na primeira cena,
de Campo, 12/03/2014). A explicação para isso é que Ariel estava conversando com um colega, e a monitora
“tagarelice e fofoca estão desde sempre relacionadas ao A fez um comentário: “Até Ariel, um cavalão desses, é
feminino, o que torna as mulheres agentes extraoficiais um viçoso, fala mansinho. Já disse para ele parar com
de notícias e novidades [...], tendo na narrativa a única isso, porque ele já está grande, um homem” (Diário de
forma possível de trocar experiências e informações” Campo, 19/02/2014). Na outra cena, Henrique não quis
(WARNER, 1999 apud SABAT, 2004, p. 104). Até a fazer a atividade, e a monitora B falou: “Esse é lento, viu
atualidade, essa descrição permanece e é utilizada em preguiçoso, só é bom para bagunçar, mas para estudar
diversas situações quando se trata de críticas ao universo não” e pediu para ele fazer o dever quietinho (Diário de
feminino. No entanto, deseja-se e reitera-se a todo Campo, 27/02/2014). Para a monitora A, essas “situações
instante que as meninas não devem ter tais atributos. que escapam do natural” podem ser traduzidas como
Afinal, é “dispensável para uma mulher a conversa, a fala, preocupantes na medida em que, “normalmente”, são
o raciocínio” (SABAT, 2004, p. 104). indicativas de que esses alunos apresentam “desvios de
As repreensões foram presenciadas em diferentes conduta” (SILVA, 2004, p. 91). Afinal, falar mansinho,
momentos, e a aluna Ana foi a mais advertida no período ser lento, preguiçoso não são atributos esperados para
em que se esteve na creche. Em duas situações, a Ana garotos. Esses, de acordo com os padrões generificados,
sentou-se e deixou uma das pernas levantadas sobre a devem falar grosso, ser naturalmente mais ágeis e gostar
cadeira; a monitora B, com um olhar que detectava os de movimento, ação.
mínimos detalhes, olhou para ela e disse: “Abaixe e feche É nítida em todas as situações vistas e analisadas
as pernas Ana, que feiura” (Diário de Campo, 19/02/ e a concepção de gênero que norteia o fazer pedagógico
27/02/2014). A aluna Carla também foi repreendida. das profissionais da creche. Como consequência dessa
Certa vez, ela estava vestida com uma saia e, sentada, concepção, elas “acabam por reproduzir as desigualdades
fazendo as atividades, deixou as pernas um pouco de gênero existentes na sociedade, a partir de concepções
abertas. A monitora A falou: “Esqueceu que você está essencialistas, pautadas em uma ‘natureza’ capaz de
de saia, foi? Sente direito, vamos!” (Diário de Campo, determinar irremediavelmente os comportamentos
12/03/2014). Novamente, espera-se que meninas tenham masculinos e femininos” (FELIPE, GUIZZO, 2004,
um comportamento adequado para seu gênero: sentar-se, p. 32). A partir dessa visão, deseja-se que meninos
cruzar as pernas, manter a postura, porque “para se tornar e meninas apresentem condutas que “naturalmente”
uma mulher exemplar, a menina precisa se comportar eles(as) possuem e, se algum(a) demonstra estar fugindo
bem. Se seguir a norma, como prêmio, ela será linda, das normas, entra em ação a reiteração, o reforço dos
se casará e constituirá uma família” (CARVALHAR, seus papéis e as atitudes para mantê-los(as) no padrão
2010, p. 35). Vale destacar que “os discursos de ideal de desejado.
feminilidade parecem afetar mais as meninas justamente Durante o período de observação, notou-se que
pelas várias pedagogias de gênero que interagem desde as crianças conhecem quais são seus papéis sociais
que nascem” (XAVIER FILHA, 2011, p. 601). generificados, sabem o que a sociedade espera delas.
A regulação, a vigilância, a ratificação de atitudes Esse conhecimento é fruto de um processo de repetição
ocorre tão intensamente na instituição investigada que contínua, porque “o processo de representação, de
ficar/ Lava, lava, lava, menina/ Passa, passa, passa o escolar, formado pelas práticas pedagógicas, atividades,
pente fino”. Essa música tem, nitidamente, um objetivo brinquedos, músicas, posicionamentos das crianças,
pedagógico de mostrar a importância da higiene corporal. exerce fortes marcas na constituição de seus sujeitos.
Ela está, porém, direcionada apenas para as meninas. Nesse sentido, às instituições escolares, possuidoras de
Então, a professora, que era quem mais cantava junto relevante papel no desenvolvimento humano, cultural e
com as crianças, foi perguntada sobre o motivo de ser social de seus(as) alunos(as), caberia a função de iniciar
direcionada somente às meninas. Ela disse que não sabia um processo de problematização e desmistificação
o motivo da música e, mesmo sem entender, continuava a do uso generificado dos brinquedos, a fim de colocar
cantá-la, fazendo das garotas o motivo de zombaria para em discussão as questões de gênero, proporcionando
os garotos. Desse modo, independentemente do artefato oportunidades iguais a todos e a todas, sem distinção ou
cultural ou da estratégia utilizada, para as profissionais da exclusão baseadas nos gêneros. Ao assumirem o papel
instituição pesquisada, o que importa é corrigir “desvios de de constituidores da identidade de meninos e meninas,
conduta”, ratificando atitudes, papéis e comportamentos os currículos precisam ser pensados de modo a permitir
considerados adequados, pois “é necessário reforçar o que meninos e meninas vivenciem múltiplas experiências,
discurso hegemônico de modo a forçar uma identidade que tenham vivências significativas, tanto na sala de aula
definitiva e, de algum modo, tentar eliminar as “marcas” quanto nas atividades lúdicas.
da diferença” (SABAT, 2004, p. 98). Considera-se que Não se pode desconsiderar, porém, que as professoras
a repetição dos discursos generificados tem “efeito e as monitoras desse currículo investigado foram
de verdade” (TAUFER, 2009) e traz consequências formadas e ainda se constituem no mesmo regime de
relevantes na formação identitária de meninos e meninas, verdades que agora disponibilizam às suas crianças.
promovendo desigualdades das relações entre gêneros, e O que faz repensar o papel que os cursos de formação
causa a acentuação do preconceito entre eles(as). inicial e continuada de professores e professoras têm
desempenhado nas universidades em relação às questões
Considerações finais de gênero e de sexualidade. Isso é ainda mais significativo,
se pensarmos na formação daqueles(as) que atuam nos
No cenário observado, as relações de gênero estão primeiros anos da vida escolar. Por vezes deixada de lado
compostas e tem suas bases firmadas nos padrões nos cursos de Pedagogia, por estar mais associada ao
estabelecidos pela sociedade e perpetuados ao longo dos cuidado do que com o pedagógico, a educação infantil
tempos. Há, assim, somente dois gêneros, o feminino é responsável pelas primeiras instruções, pelas primeiras
e o masculino, e apenas uma forma de sexualidade, a visões de mundo, pelas primeiras socializações e pelos
heterossexualidade. Além disso, a professora, a equipe primeiros aprendizados em torno da diferença. Uma
escolar e até mesmo os(as) próprios(as) alunos(as) da sociedade que busca constituir sujeitos da diversidade
instituição investigada se mostram subjetivados(as) precisa empreender investimentos na construção de seus
por esses discursos generificados e heteronormativos, currículos infantis.
carregando consigo concepções de feminino e de A pesquisa que se propõe a ficar na espreita, destrinchar,
masculino bem definidas. Por isso, pode-se dizer que desnaturalizar o olhar e desconstruir um currículo
na creche há produção de diferenças entre meninos e escolar específico produz tencionamentos (o significado
meninas, seja na escolha e na utilização dos brinquedos, é imprimir força? então o correto é “tensionamentos”)
seja na prática de brincadeiras. Há, também, uma intensa significativos naquilo que é considerado rotineiro em
vigilância da sexualidade das crianças, com atitudes e falas pátios, cantinas, banheiros e salas de aula. Entender
repressoras, na busca de estimular a heterossexualidade como funcionam os currículos, e seus efeitos subjetivos,
como norma a ser seguida e, ao mesmo tempo, contê-la. através de pesquisas no chão das escolas, faz colocar
Existe, ainda, a utilização de um discurso de reiteração em cheque diversas práticas discursivas regulatórias,
por parte da professora e das monitoras com o intuito que tolhem os sujeitos e que pouco contribuem para
de fixar e reforçar os comportamentos, as condutas, os borrar as fronteiras de gênero. Ao analisar currículos que
papéis que cabem a cada gênero e que devem ser seguidos acontecem diariamente nas escolas, além dos múltiplos e
à risca. Afinal, os denominados “desvios de conduta” infindáveis questionamentos, encontram-se caminhos que
devem ser totalmente abolidos da instituição e, por que potencializam a busca de outras produções, reinvenções
não, da sociedade. e multiplicidades. Que tantas outras Carlas, Josés e
Como se viu, nem sempre o currículo analisado Marias possam experimentar seus corpos em brinca-
conseguiu normatizar os sujeitos, e outras possibilidades deiras de maquiagens, bruxarias, manicures, bonecas,
puderam ser construídas, mesmo que timidamente. aviações, fantasias, pega-pega, ultrapassando o ser
O mais significativo foi evidenciar como o currículo menino-menina.
TAUFER, Isabel C. B. Representações de gênero no livro Rev. Estud. Fem., v. 19, n. 2 p.591-603, 2011. Disponível em:
didático de ciências nos anos iniciais do ensino fundamental. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010
Dissertação (Especialização em Educação, Sexualidade e 4026X2011000200019&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-026X.
Relações de Gênero) – Faculdade de Educação, Universidade http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2011000200019
Federal do Rio Grande do Sul, 2009.
XAVIER FILHA, Constantina. Era uma vez uma princesa e um Recebido em 07-04-2016.
príncipe...: representações de gênero nas narrativas de crianças. Aprovado em 04-04-2017.