A Louca Da Casa - Rosa Montero

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Rosa Montero

A louca da casa
tradução
Paloma Vidal
Para Martina, que é e não é.
E que, não sendo, tem me ensinado muito.
Capa
Folha de Rosto

Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Catorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove

Pós-escrito
Agradecimentos

Autora
Créditos
Um

Eu me acostumei a ordenar as lembranças da minha vida com um


cômputo de namorados e livros. Os diversos relacionamentos que tive
e as obras que publiquei são as balizas que marcam minha memória,
transformando o barulho informe do tempo em algo organizado. “Ah,
aquela viagem para o Japão deve ter sido na época em que eu estava
com J., pouco depois de escrever Te tratarei como uma rainha”, digo a
mim mesma, e no mesmo instante as reminiscências daquele período,
as pitadas gastas do passado, parecem ficar em ordem. Todos nós,
humanos, recorremos a truques semelhantes; sei de pessoas que
contam sua vida pelas casas nas quais moraram, ou pelos filhos, ou
pelos empregos, e até pelos carros. É possível que a obsessão de
algumas pessoas por mudar de automóvel a cada ano não passe de uma
estratégia desesperada para ter algo a lembrar.
Meu primeiro livro, um volume horrível de entrevistas infestado de
erratas, saiu quando eu tinha vinte e cinco anos; meu primeiro amor
contundente o bastante para marcar época deve ter sido em torno dos
vinte anos. Isso quer dizer que a adolescência e a infância afundam no
magma amorfo e movediço do tempo sem tempo, em uma turbulenta
confusão de cenas atemporais. Lendo a autobiografia de alguns
escritores, costumo ficar pasma com a cristalina clareza com que se
lembram, até o mínimo detalhe, de quando eram crianças. Em
especial os russos, tão rememorativos de uma infância que sempre
parece a mesma, cheia de samovares que lampejam na plácida
penumbra dos salões e de esplêndidos jardins de folhas sussurrantes
sob o quieto sol do verão. Essas paradisíacas infâncias russas são tão
iguais que só se pode supor que sejam uma mera recriação, um mito,
uma invenção.
Coisa que, aliás, acontece com todas as infâncias. Sempre pensei
que a narrativa é a arte primordial dos humanos. Para ser, temos de
narrar a nós mesmos, e nesse contar-se o que não falta são lorotas:
mentimos, imaginamos, enganamos a nós mesmos. O que hoje
relatamos da nossa infância não tem nada a ver com o que relataremos
daqui a vinte anos. E o que a gente lembra da história comum familiar
costuma ser completamente diverso do que nossos irmãos lembram.
Às vezes, minha irmã Martina e eu cruzamos cenas do passado, como
quem troca figurinhas: e o lar infantil que cada uma desenha mal tem
pontos em comum. Seus pais se chamavam como os meus e moravam
em uma rua com nome idêntico, mas sem dúvida eram pessoas
diferentes.
De modo que inventamos nossas lembranças, o que equivale a
dizer que inventamos a nós mesmos, porque nossa identidade reside
na memória, no relato da nossa biografia. Portanto, poderíamos
deduzir que nós, humanos, somos acima de tudo romancistas, autores
de um único romance que levamos a existência inteira para escrever e
no qual nos reservamos o papel de protagonista. É uma escrita, isso
sim, sem texto físico, mas qualquer narrador profissional sabe que se
escreve, sobretudo, dentro da cabeça. É um zum-zum criativo que te
acompanha enquanto você dirige, quando leva o cachorro para
passear, enquanto está na cama tentando dormir. A gente escreve o
tempo todo.
Faz vários anos que venho fazendo anotações em diversos
caderninhos para um ensaio em torno do ofício de escrever. É uma
espécie de mania obsessiva para os romancistas profissionais: se não
morrem prematuramente, todos mais cedo ou mais tarde padecem da
imperiosa urgência de escrever sobre a escrita, de Henry James a
Vargas Llosa, passando por Stephen Vizinczey, Montserrat Roig ou
Vila-Matas, para citar alguns dos livros que mais me agradaram.
Também senti o chamado furioso dessa pulsão ou desse vício, e digo
desde já que fazia muito tempo que eu vinha apontando ideias
quando, pouco a pouco, fui percebendo que não podia falar da
literatura sem falar da vida; da imaginação sem falar dos sonhos
cotidianos; da invenção narrativa sem levar em conta que a primeira
mentira é o real. E, assim, o projeto do livro foi se tornando cada vez
mais impreciso e confuso — coisa, por outro lado, natural —,
conforme foi se misturando com a existência.
A comovedora e trágica Carson McCullers, autora de O coração é
um caçador solitário, escreveu nos seus diários: “Minha vida seguiu a
pauta que sempre seguiu: trabalho e amor”. Acho que ela também
devia contabilizar os dias em livros e amantes, uma coincidência que
não estranho em nada, porque a paixão amorosa e o ofício literário
têm muitos pontos em comum. De fato, escrever romances foi o que
já encontrei de mais parecido a me apaixonar (ou melhor, a única coisa
parecida), com a considerável vantagem de que a escrita não precisa da
colaboração de outra pessoa. Por exemplo, quando você está submerso
em uma paixão, vive obcecado pela pessoa amada, a ponto de pensar
nela o dia todo; ao escovar os dentes, você vê seu rosto flutuar no
espelho; dirigindo, você se confunde de rua porque está obnubilado
com sua lembrança; ao tentar dormir de noite, em vez de deslizar para
o interior do sono, cai nos braços imaginários do amante. Pois então,
quando está escrevendo um romance, vive no mesmo estado de
delicioso alheamento: todo o seu pensamento se encontra ocupado
pela obra e, assim que dispõe de um minuto, você mergulha
mentalmente nela. Você também se engana de esquina quando dirige,
porque, como o apaixonado, tem a alma entregue e em outro lugar.
Outro paralelismo: quando você ama apaixonadamente tem a
sensação de que, no próximo instante, vai conseguir se conectar a tal
ponto com o amado que vocês se tornarão um só; quer dizer, você
intui que o êxtase da união total, a beleza absoluta do amor verdadeiro
estão ao seu alcance. Quando você está escrevendo, pressente que, se
se esforçar e esticar os dedos, vai poder roçar o êxtase da obra
perfeita, a beleza absoluta da página mais autêntica jamais escrita.
Nem é preciso dizer que esse ápice nunca é alcançado, nem no amor
nem na narrativa, mas ambas as situações compartilham a formidável
expectativa de se sentir às vésperas de uma proeza.
E por último, mas na realidade o mais importante, quando você se
apaixona loucamente, nos primeiros momentos da paixão, está tão
cheio de vida que a morte não existe. Ao amar, você é eterno. Do
mesmo modo, quando você está escrevendo um romance, nos
momentos da graça da criação do livro, sente-se tão impregnado da
vida dessas criaturas imaginárias que para você não existe o tempo,
nem a decadência, nem sua própria mortalidade. Você também é
eterno enquanto inventa histórias. A gente sempre escreve contra a
morte.
De fato, acho que nós, narradores, somos mais obcecados pela
morte do que a maioria das pessoas; acredito que percebemos a
passagem do tempo com especial sensibilidade ou virulência, como se
os segundos fizessem tique-taque de maneira ensurdecedora nos
nossos ouvidos. Ao longo dos anos fui descobrindo, através da leitura
de biografias e por conversas com outros autores, que um elevado
número de romancistas teve uma experiência muito precoce de
decadência. Digamos que aos seis, dez ou doze anos viram como o
mundo da sua infância se despedaçava e desaparecia para sempre de
maneira violenta. Essa violência pode ser exterior e objetivável: um
progenitor que morre, uma guerra, uma ruína. Outras vezes é uma
brutalidade subjetiva que só os próprios narradores percebem e da
qual não estão muito dispostos a falar; por isso, o fato de que na
biografia de um romancista não conste essa catástrofe privada não
quer dizer que ela não tenha existido (eu também tenho meu luto
pessoal; e também não o conto).
Assim, os casos dos quais se tem dados objetivos costumam ser
histórias mais ou menos espalhafatosas. Vladimir Nabokov perdeu
tudo com a Revolução Russa: seu país, seu dinheiro, seu mundo, sua
língua, inclusive seu pai, que foi assassinado. Simone de Beauvoir
nasceu sendo uma menina rica e herdeira de uma estirpe de
banqueiros, mas pouco depois sua família faliu e eles foram morar,
pobres, em uma espelunca. Vargas Llosa perdeu seu lugar de príncipe
da casa quando o pai, que ele acreditava morto, voltou para impor sua
violenta e repressiva autoridade. Joseph Conrad, filho de um nobre
polonês revolucionário e nacionalista, foi deportado aos seis anos com
sua família para uma mísera cidadezinha do norte da Rússia em
condições tão duras que a mãe, doente de tuberculose, morreu poucos
meses depois; Conrad continuou morando no desterro com o pai, que
também estava tuberculoso e além disso desesperado (“mais do que
um homem doente, era um homem derrotado”, escreveu o romancista
nas suas memórias); no fim, o pai faleceu, de modo que Conrad, que
então tinha só onze anos, fechou o círculo de fogo do sofrimento e da
perda. Quero crer que aquela dor enorme pelo menos contribuiu para
criar um escritor imenso.
Poderia citar muitos mais, mas mencionarei apenas Rudyard
Kipling, que de uma infância paradisíaca na Índia (tão idealizada como
a dos escritores russos, mas com empregados com turbantes em vez
de bondosos mujiques) se viu lançado, aos seis anos, no pesadelo de
um internato horrível na escura e úmida Inglaterra — embora na
verdade não fosse um internato, e sim uma pensão na qual seus pais o
depositaram, aos cuidados de uma família que se mostrou violenta.

O que havia naquela casa era tortura fria e calculada, ao mesmo


tempo que era religiosa e científica. No entanto, me fez fixar a
atenção nas mentiras que, pouco tempo depois, me foi necessário
dizer: esse é, segundo suponho, o fundamento de meus esforços
literários,

disse o próprio Kipling na sua autobiografia Something of Myself [Algo


sobre mim mesmo], consciente do nexo íntimo dessa experiência com
sua narrativa. Ele explicava isso como ápice de uma estratégia
defensiva; eu já acho que o substancial é que todos os romancistas que
acreditaram perder em algum momento o paraíso escrevem —
escrevemos — para tentar recuperá-lo, para restituir aquilo que se foi,
para lutar contra a decadência e o fim inexorável das coisas. “Da dor
de perder nasce a obra”, diz o psicólogo Philippe Brenot no seu livro
Le génie et la folie [O gênio e a loucura].
Falar de literatura, então, é falar da literatura; da própria vida e da
dos outros, da felicidade e da dor. E é também falar do amor, porque a
paixão é a maior invenção das nossas existências inventadas, a sombra
de uma sombra, a pessoa que dorme sonhando que está sonhando. E,
no fundo de tudo, para além das nossas fantasmagorias e dos nossos
delírios, contida momentaneamente por esse punhado de palavras,
como o dique de areia de uma criança contendo as ondas na praia, a
Morte desponta, tão real, mostrando suas orelhas amarelas.
Dois

O escritor está sempre escrevendo. Na realidade, nisto consiste a


graça de ser romancista: na torrente de palavras que borbulha
constantemente no cérebro. Redigi muitos parágrafos, inúmeras
páginas e incontáveis artigos levando meus cachorros para passear,
por exemplo: dentro da minha cabeça vou mexendo as vírgulas,
substituindo um verbo por outro, afinando um adjetivo. Às vezes,
redijo mentalmente a frase perfeita, e no pior dos casos, se não a anoto
a tempo, em seguida ela escapa da minha memória. Resmunguei e me
desesperei muitas vezes tentando recuperar essas palavras exatas que
iluminaram por um momento o interior do meu crânio, para depois
me submergir na escuridão. As palavras são como peixes abissais que
te mostram só um lampejo de escamas entre as águas negras. Caso se
desprendam do anzol, o mais provável é que você não possa pescá-las
de novo. As palavras são manhosas, e rebeldes, e fugidias. Não gostam
de ser domesticadas. Domar uma palavra (transformá-la em um
tópico) é acabar com ela.
Contudo, no ofício de romancista há algo ainda muito mais
importante do que esse tilintar de palavras, e trata-se da imaginação,
dos devaneios, dessas outras vidas fantásticas e ocultas que todos
temos. Faulkner dizia que um romance “é a vida secreta de um
escritor, o obscuro irmão gêmeo de um homem”. E Sergio Pitol, de
quem peguei a citação de Faulkner (a cultura é um palimpsesto e todos
escrevemos sobre o que os outros já escreveram), acrescenta: “Um
romancista é um homem que ouve vozes, e isso o assemelha a um
demente”. Deixando de lado o fato de que, quando todos os homens
escrevem “homem”, eu tive de aprender a ler também “mulher” (isso
não é menor, e provavelmente eu volte ao assunto mais adiante), acho
que na realidade essa imaginação dissecada nos assemelha mais às
crianças do que aos lunáticos. Acho que todos nós entramos na
existência sem saber distinguir bem o real do sonhado; de fato, a vida
infantil é em boa medida imaginária. O processo de socialização, que
chamamos educar, amadurecer ou crescer, consiste precisamente em
podar as florescências fantasiosas, em fechar as portas do delírio, em
amputar nossa capacidade para sonhar acordados; e ai de quem não
souber selar essa fissura com o outro lado, porque provavelmente será
considerado um pobre louco.
Pois bem, o romancista tem o privilégio de continuar sendo uma
criança, de poder ser um louco, de manter o contato com o informe.
“O escritor é um ser que não chega jamais a se tornar adulto”, disse
Martin Amis no seu lindo livro autobiográfico Experience, e ele deve
saber disso muito bem, pois parece muito um Peter Pan um pouco
enrugado, que se nega empenhadamente a envelhecer. Algum bem
haveremos de fazer à sociedade com nosso crescimento meio
abortado, com nossa maturidade tão imatura, pois de outro modo
nossa existência não seria permitida. Suponho que somos como os
bufões das cortes medievais, aqueles que podem ver o que as
convenções negam e dizer o que as conveniências calam. Somos, ou
deveríamos ser, como aquela criança do conto de Andersen que,
quando passa a pomposa cavalgada real, é capaz de gritar que o
monarca está nu. O ruim é que depois chega o poder, e o deleite com
o poder, e com frequência estraga e perverte tudo.
Escrever, enfim, é estar habitado por um emaranhado de fantasias,
ora preguiçosas, como os lentos devaneios de uma sesta de verão, ora
agitadas e febris como o delírio de um louco. A cabeça do romancista
vai aonde bem entende; está possuída por uma espécie de compulsão
fabuladora, e isso às vezes é um dom e em outras ocasiões é um
castigo. Por exemplo, quem sabe um dia você leia no jornal uma
notícia atroz sobre crianças esquartejadas diante dos pais na Argélia e
não consiga evitar que a maldita fantasia dispare, recriando de maneira
instantânea a cena horripilante, inclusive nos seus detalhes mais
insuportáveis: os gritos, os esguichos, o cheiro pegajoso, o estalo dos
ossos até se quebrarem, o olhar dos verdugos e das vítimas. Ou então,
em um nível muito mais ridículo, mas igualmente incômodo, você vai
atravessar um rio de montanha por uma ponte improvisada com
troncos e, ao pôr o primeiro pé sobre a madeira, a cabeça te oferece,
de maneira súbita, a sequência completa da queda: como você vai
escorregar no limo, como vai agitar estabanada os braços no ar; como
vai enfiar um pé na corrente gelada e, depois, vexame maior ainda,
também o outro pé e até a bunda, porque você vai cair sentada no
riacho. E, voilà, uma vez imaginada a besteira em todos os detalhes (o
choque frio da água, a momentânea desorientação espacial que a
queda produz, o mau jeito doloroso do pé, o arranhão da mão contra a
pedra), fica difícil não cumpri-la. E disso deriva, ao menos no meu
caso, uma irritante tendência a me arrebentar em todos os trechos
rasos de riachos e em todas as ladeiras montanhosas um pouco
ásperas.
Mas esses dissabores são compensados pela fabulação criativa,
pelas outras vidas que vivemos na intimidade da nossa cabeça. José
Luís Peixoto, um jovem narrador português, batizou esses contatos
imaginários de existência como os “e se”. E ele tem razão: a realidade
interior se multiplica e se desencadeia assim que você encosta em um
“e se”. Por exemplo, você está na fila diante do guichê de um banco
quando, em dado momento, uma velha octogenária entra na agência
acompanhada de um menino de uns dez anos. Então, sem mais nem
menos, a mente te sussurra: e se na realidade estivessem vindo roubar
a agência? E se se tratasse de um inadvertido bando de assaltantes
composto da avó e do neto, porque os pais da criança morreram e eles
dois estão sozinhos no mundo, não tendo encontrado outra maneira
de se sustentar? E se ao chegar na frente do guichê sacassem uma
arma improvisada (uma tesoura de poda, por exemplo; ou um
fumigador de jardins carregado de veneno para pulgões) e exigissem a
entrega de todo o dinheiro? E se vivessem em uma casinha baixa que
tivesse ficado isolada entre um nó de viadutos? E se quiserem
expropriá-los e expulsá-los dali, mas eles se negassem? E se para
chegar ao lar tivessem de contornar todos os dias a algaravia de
estradas, produzindo às vezes tremendos acidentes ao passar —
motoristas que tentam se esquivar da velha e se chocam contra o
canteiro central de concreto —, colossais batidas em cadeia que a avó
e a criança nem sequer param para olhar, mesmo que às suas costas
estoure um estrondo horrível de sucata? E se…? E dessa maneira você
vai compondo rapidamente a vida inteira desses dois personagens,
isto é, uma vida inteira, e você vive dentro dessas existências, você é a
velha brigona, mas é também o neto que precisou amadurecer aos
safanões; e nos poucos minutos que você demora em chegar até o
guichê, anos já se passaram no seu íntimo. Em seguida, o caixa te
atende, você pega seus euros, assina os papéis e vai embora, e a
mulher e o menino ficam ali, tão tranquilos, ignorantes das
adversidades que viveram.
O mais provável é que a história acabe ali, que não seja mais do que
isso, um devaneio passageiro e onanista, uma elucubração privada que
jamais roçará a materialidade da escrita e do papel. Mas algumas
dessas fabulações casuais acabarão aparecendo em uma narrativa,
talvez anos mais tarde; normalmente não a peripécia completa, mas
um pedacinho, um detalhe, o desenho germinal de uma personagem.
E, em raras ocasiões, muito de vez em quando, a história se nega a
desaparecer da sua cabeça e começa a se ramificar e te obcecar,
tornando-se um conto ou inclusive um romance.
Porque os romances nascem assim, a partir de algo ínfimo. Surgem
de um pequeno grumo imaginário que denomino “o ovinho”. Esse
corpúsculo primeiro pode ser uma emoção ou um rosto entrevisto em
uma rua. No meu terceiro romance, Te tratarei como uma rainha, o
ovinho brotou de uma mulher que vi em um bar de Sevilha. Era um
lugar absurdo, barato e triste, com cadeiras bambas e mesas de
fórmica. Atrás do balcão, uma loira perto dos quarenta servia as
bebidas aos escassos clientes; era terrivelmente gorda e seus lindos
olhos verdes estavam oprimidos pelo peso de uns cílios postiços que
pareciam de ferro. Quando todos estávamos servidos, o cachalote
tirou o avental pardo, deixando à mostra um vestido de festa de um
tecido sintético azul estridente. Saiu de trás do balcão e atravessou o
bar, flamejando como o fogo de um maçarico dentro do seu traje
apertado de nylon, até se sentar diante de um teclado elétrico, desses
com uma caixa de ritmos embutida que quando você aperta um botão
fazem tum-tum. E foi isso que a loira começou a fazer: tim-bum e
tuche-tuche, enquanto tocava e cantava uma canção depois da outra,
com cara de animadora de hotel de luxo. Mas essa mulher, que agora
pareceria meramente ridícula, sabia tocar piano e, em algum
momento, sonhara sem dúvida com outra coisa. Eu gostaria de ter
perguntado à loira o que tinha acontecido no seu passado, como
chegara até aquele vestido azulado e àquele bar cinzento. Mas, em vez
de cometer a grosseria de interrogá-la, preferi inventar um romance
que contasse sua história.
Isso que eu acabei de explicar é algo muito comum; quer dizer,
muitos romancistas ficam cativos e cativados pela imagem de uma
pessoa que viram só por alguns instantes. Claro que essa visão pode
ser deslumbrante e cheia de sentido, atordoante. É como se ao olhar
para a loira do vestido elétrico eu visse muito mais. Carson McCullers
chamava de iluminações esses espasmos premonitórios daquilo que
você ainda não sabe, mas que já se aglutina nas bordas da sua
consciência. McCullers considerava que essas visões eram “como um
fenômeno religioso”. Uma das suas últimas obras, A balada do café
triste, nasceu também de algumas figuras que ela contemplou quando
passava por um bar do Brooklyn: “Vi um casal extraordinário que me
fascinou. Entre os clientes havia uma mulher alta e forte como uma
giganta e, na sua cola, um corcundinha. Observei-os uma vez só, mas
depois de umas semanas tive a iluminação do romance”.
Às vezes o período de gestação é muito mais longo. Rudyard
Kipling conta nas suas memórias uma viagem pouco feliz que fez à
cidade de Auckland, na Nova Zelândia:
A única lembrança que levei daquele lugar foi o rosto e a voz de
uma mulher que me vendeu cerveja num hotelzinho. Ficou no
sótão da minha memória até que, dez anos depois, num trem local
na Cidade do Cabo, ouvi um suboficial falar de uma mulher na
Nova Zelândia que “nunca se negava a ajudar um pato coxo nem a
esmagar um escorpião com o pé”. Então aquelas palavras me deram
a chave do rosto e da voz da mulher de Auckland, e um conto
intitulado “Mistress Bathurst” deslizou pelo meu cérebro de forma
suave e ordenada.

Outras vezes, contos e romances têm uma origem ainda mais


enigmática. Por exemplo, há narrativas que nascem de uma frase que
de repente se acende dentro da cabeça sem que você sequer tenha
muito claro seu sentido. Kipling escreveu um relato intitulado “O
cativo” que foi construído em torno desta frase: “Uma grande parada
militar que nos sirva de preparação para quando o Apocalipse chegar”.
E o incrível escritor espanhol José Ovejero estava havia um tempo
bloqueado e sem poder levar adiante um romance no qual trabalhara
durante anos quando, no meio de uma viagem rotineira de avião, e
com a intenção de sair do lamaçal, disse a si mesmo: “Relaxe e escreva
qualquer coisa”. E imediatamente lhe ocorreu a seguinte frase: “2001
foi um ano ruim para Miki”. Ele não tinha a menor ideia de quem era
Miki nem por que havia sido um ano ruim para ele, mas esse pequeno
problema de conteúdo não o desalentou nem um pouco. Assim nasceu
um romance que se redigiu sozinho a toda a velocidade em ínfimos
seis meses e que foi intitulado, como é natural, Un mal año para Miki
[Um ano ruim para Miki]. Às vezes tenho a sensação de que o autor é
uma espécie de médium.
Meu cérebro também se iluminou uma vez com uma frase turva e
turbulenta que gerou um romance inteiro. Eu estava passando uma
temporada nos Estados Unidos, nos arredores de Boston, e minha
irmã tinha vindo me visitar. Um amigo nos convidara para jantar na
casa dele em uma parte antiga da cidade. Era um domingo de março e
a primavera pedia gloriosamente passagem entre os retalhos de
inverno. Fomos de manhã no trem para o centro, e comemos
sanduíches de queijo e nozes em um café, e passeamos nos jardins do
Common, e discutimos, como Martina e eu sempre costumamos
discutir, e ficamos jogando migalhas de pão para os esquilos, até que
um deles arrancou com um safanão o pedaço inteiro, em uma incursão
audaz e temerária. Foi um domingo lindo. De tarde, Martina decidiu
que a gente fosse andando até a casa do meu amigo. Nunca
estivéramos ali e o lugar ficava do outro lado da cidade, mas, segundo
o mapa (e Martina se gaba de saber ler mapas), o itinerário era mais ou
menos reto, sem possibilidade de se perder. Não posso dizer que a
ideia de ir a pé até lá me fizesse feliz, mas também não posso dizer
que eu fosse contra ela de uma maneira frontal. Sempre acontece a
mesma coisa com Martina, há algo incerto e indefinido entre nós, uma
relação que carece de sentimentos concretos, de palavras precisas.
Então a gente começou a andar, enquanto o sol se punha e a cidade
opulenta começava a se acender à nossa volta como uma festa.
Começamos a andar seguindo sempre o mapa e o dedo com o qual
Martina ia marcando o mapa.
Pouco a pouco, da maneira mais insidiosamente gradual, nossa
viagem foi se estragando. O sol se pôs, levando com ele sua
pantomima primaveral e entregando o campo de batalha ao duro
inverno. Fazia frio, cada vez mais frio, inclusive começou a chuviscar
um granizo mesquinho que perfurava o rosto como um monte de
agulhas. Ao mesmo tempo, e em uma evolução tão subterrânea e
perniciosa como o desenvolvimento de um tumor, o entorno começou
a se decompor. As ruas lindas e ricas do centro de Boston, inundadas
pelas cataratas de luz das vitrines, deram lugar a ruas mais discretas,
bonitas, residenciais; e estas, a avenidas de trânsito rápido com lojas
fechadas dos dois lados; e as avenidas, a outras ruas mais estreitas e
mais escuras, já sem gente, sem lojas, sem postes; e depois
começaram a aparecer postos de gasolina velhos e abandonados, com
anúncios encardidos de latão que o vento fazia girar rangendo sobre os
eixos; terrenos empoeirados, carcaças de carros destripados, prédios
vazios com as janelas cegadas com tábuas, calçadas quebradas e latas
de lixo queimadas no meio da pista, uma pista negra e brilhosa de
chuva, pela qual nenhum carro transitava. Nem podíamos pegar um
táxi, porque por aquele coração da miséria urbana não circulava
ninguém. Tínhamos nos enfiado no inferno sem perceber, e pelas
esquinas borradas dessa cidade proibida escorriam sombras
imprecisas, figuras humanas que só podiam pertencer ao inimigo, de
modo que assustava muito mais vislumbrar algum indivíduo ao longe
do que atravessar sozinhas aquelas ruas doloridas.
Eu corria e corria, isto é, andava a toda a velocidade que meus
calcanhares e meu pânico permitiam, odiando Martina, xingando
Martina, deixando minha irmã para trás, vários passos para trás, como
o rabo de um cometa. Porque ela, que sempre se gaba de ser corajosa,
queria demonstrar às ruas sinistras, às esquinas sombrias, às janelas
quebradas, que não estava disposta a apressar o passo por um mero
tremor de medo no estômago. E no transcurso da hora interminável
que levamos para atravessar a cidade empestada até alcançar de novo
os bairros burgueses e o apartamento do meu amigo (não aconteceu
nada ruim conosco, além de nos molharmos), acendeu em algum
instante dentro da minha cabeça uma frase candente que parecia ter
sido escrita por um raio, como as leis que os deuses antigos gravavam
com um dedo de fogo sobre as rochas. Essa frase dizia: “Há um
momento em que toda viagem se transforma em um pesadelo”; e
essas palavras se ancoraram na minha vontade e na minha memória e
começaram a me obcecar, como o estribilho de uma canção grudenta
que a gente não consegue largar, por mais que queira. A tal ponto que
tive de escrever um romance em torno dessa frase para me livrar dela.
Foi assim que nasceu Bella y oscura [Bela e obscura].
Vendo aquela situação de hoje, com a perspectiva do tempo, posso
acrescentar sensatas e profusas explicações, porque a razão possui
uma natureza pulcra e diligente, sempre se esforçando para encher de
causas e efeitos todos os mistérios com os quais esbarra, ao contrário
da imaginação (a louca da casa, como Santa Teresa de Jesus a chamava),
que é pura desmesura e deslumbrante caos. E, assim, aplicando a
razão, posso deduzir sem grande esforço que a viagem é uma metáfora
óbvia da existência; que naquela época eu estava chegando mais ou
menos aos quarenta (e Martina também: somos gêmeas e
vertiginosamente diferentes) e que talvez essa frase fosse uma maneira
de expressar os medos ao horror da vida e, sobretudo, da própria
morte, que é uma descoberta dessa idade, porque, quando jovem, a
morte sempre é a dos outros. E, sim, com certeza tudo isso é verdade,
e esses ingredientes fazem parte da construção do livro, mas sem
dúvida há muito, muito mais mesmo, que não pode ser explicado de
modo sensato. Porque os romances, como os sonhos, nascem de um
território profundo e movediço, que está para além das palavras. E
nesse mundo saturnal e subterrâneo reina a fantasia.
Voltamos, assim, à imaginação. A essa louca por momentos furiosa
que mora no sótão. Ser romancista é conviver felizmente com a louca
de cima. É não ter medo de visitar todos os mundos possíveis e alguns
impossíveis. Tendo outra teoria (tenho muitas: um resultado da
frenética laboriosidade da minha razão), segundo a qual os narradores
são seres mais dissociados, ou talvez mais conscientes da dissociação
do que os outros. Isto é, sabemos que dentro de nós somos muitos. Há
profissões que se ajustam melhor do que outras a esse tipo de caráter,
como, por exemplo, ser ator ou atriz. Ou ser espião. Mas para mim
não há nada comparável a ser romancista, porque te permite não só
viver outras vidas, mas, além disso, inventá-las para si mesmo. “Às
vezes tenho a impressão de que surjo do que escrevi como uma
serpente surge de sua pele”, diz Vila-Matas em A viagem vertical. O
romance é a autorização da esquizofrenia.
Um dia do mês de novembro passado, ia dirigindo meu carro em
Madri; era mais ou menos a hora do almoço e me lembro de que eu
estava indo a um restaurante onde tinha combinado de me encontrar
com uns amigos. Era um desses típicos dias de inverno madrilenho,
frios e intensamente luminosos, com o ar límpido e cristalizado, e um
céu esmaltado de laca azul brilhante. Estava passando pela Modesto
Lafuente ou alguma das ruas paralelas, vias estreitas e com obrigação
de dar preferência nos cruzamentos, de modo que não é permitido ir a
mais de quarenta ou cinquenta quilômetros por hora. Assim, andando
devagar, passei ao lado de um prédio antigo de dois ou três andares no
qual jamais reparara. Sobre a porta, umas letras metálicas diziam:
CENTRO DE SAÚDE MENTAL. Devia pertencer a algum órgão público,
pois em cima da placa havia um mastro branco com uma bandeira
espanhola que se agitava ao vento. Enfim, estava passando na frente
desse lugar quando, de repente, sem mais nem menos, uma parte de
mim se desvencilhou e entrou no prédio transformada em um doente
que vinha se internar. E em um fulminante e intenso instante, esse
outro viu tudo: subiu, quer dizer, subi, os dois ou três degraus da
entrada, com os olhos ofuscados pelo reflexo de sol da fachada e
escutando o furioso flamejar da bandeira, sonoro, ominoso e
aturdidor; e passei para o interior, com o coração rígido porque sabia
que era para ficar, e lá dentro tudo era penumbra repentina, e um
silêncio felpudo e irreal, com cheiro de alvejante e naftalina, e um
golpe de calor insano nas bochechas. Essa pequena projeção de mim
mesma ficou ali, no Centro de Saúde Mental, atrás de mim, enquanto
eu continuava no meu itinerário pela rua, a caminho do almoço,
pensando em uma futilidade qualquer, tranquila e impassível depois
desse espasmo de visão angustiante que deslizou sobre mim como
uma gota d’água. Mas, isso sim, agora já sei como é se internar em um
centro psiquiátrico; agora o vivi, e se algum dia tiver que descrevê-lo
em um livro, saberei como fazer, porque uma parte de mim esteve ali
e quem sabe ainda esteja. Ser romancista consiste exatamente nisso.
Não acho que eu seja capaz de explicar melhor.
Três

Nós, romancistas, escribas incontinentes, disparamos e disparamos,


sem cessar, palavras contra a morte, como arqueiros pendurados nas
muralhas de um castelo em ruínas. Mas o tempo é um dragão de pele
impenetrável que devora tudo. Ninguém se lembrará da maioria de
nós daqui a alguns séculos: para todos os efeitos, será como se não
tivéssemos existido. O esquecimento absoluto daqueles que nos
precederam é um manto pesado, é a derrota com a qual nascemos e à
qual nos dirigimos. É nosso pecado original.
Além de disparar palavras, a espécie procria contra a morte, e nisso
é preciso reconhecer que um sucesso relativo foi alcançado. Ao menos
ainda não nos extinguimos como os dinossauros e nossos genes se
multiplicam sobre o planeta com uma abundância de praga. Talvez a
sensação de imortalidade que sentimos quando amamos seja uma
intuição do nosso triunfo orgânico; ou talvez seja tão só um truque
genético da espécie, para nos induzir ao sexo e, portanto, à
paternidade (os genes, coitadinhos, ainda não sabem nada de
camisinhas e pílulas). Depois, com essa nossa habilidade para
complicar tudo, transformamos a pulsão elementar de sobrevivência
no delírio da paixão. E a paixão geralmente não gera filhos, mas
monstros imaginários. Ou, o que dá no mesmo, imaginações
monstruosas.
Sou uma pessoa que se apaixona facilmente e tive umas tantas
vivências sentimentais disparatadas, mas me lembro de uma
especialmente irreal. Tudo começou faz muitos anos, quando eu tinha
vinte e três. Franco estava à beira da morte e eu era mais ou menos
hippie; e espero que esses dois dados bastem para situar a época. A
diretora de cinema Pilar Miró, muito minha amiga naquela época, saía
com um cineasta estrangeiro que estava rodando um filme em Madri.
Certo dia, Pilar me telefonou e propôs que eu fosse jantar com eles e
com M., o protagonista do filme, um ator europeu que tinha acabado
de estourar em Hollywood, razão pela qual se tornara muito famoso.
“Mas ele é um encanto, muito culto, e um homem muito tímido; e
acabou de se divorciar, e está aqui muito sozinho”, Pilar explicou. Era
um dia de junho de um verão tórrido.
De fato, a gente saiu, e é provável que M. fosse inteligente e
encantador, mas, como ele não falava espanhol e eu, naquela época,
também não sabia inglês, não posso dizer com segurança que fosse
capaz de comprová-lo. O que eu sabia é que ele tinha trinta e dois
anos, uns olhos verdes demolidores, um corpo que se adivinhava
prodigioso. Gostei dele, sem dúvida, claro que gostei, mas nossa
relação era atrapalhada pelo nosso blá-blá-blá penoso e entrecortado
de um francês ruim ou de um péssimo italiano. Naquela época, ainda
por cima, eu dava importância demais à palavra; considerava que a
palavra era o meu forte, minha arma secreta: assim como outras
seduziam agitando cabeleiras loiras ou longas pernas, eu sempre me
dava melhor quando contava coisas. Para que um homem me atraísse
de verdade, eu tinha de achar que a gente se comunicava.
Mas era uma noite de sábado, uma dessas densas noites de verão
nas quais Madri parece se eletrizar; e eu tinha vinte e três anos e eram
uns tempos felizes e fáceis, uns tempos sem aids, promíscuos e
carnais. Fomos jantar, fomos beber, fomos dançar; e às quatro da
manhã Pilar e seu namorado foram embora, e eu levei M. para sua casa
no meu carro, um Citroën Mehari de lataria vermelha e de terceira
mão. A produtora alugara para M. um apartamento na Torre de Madri,
o orgulhoso arranha-céu do franquismo, um prédio de uns trinta
andares que nessa época era o mais alto da capital, uma cidade ainda
atarracada, pétrea e tibetana, como Gil de Biedma a definia. No fragor
da noite, estacionei o carro na frente do portão, em cima da calçada,
junto de outra dezena de automóveis que tiveram a mesma ideia.
Atravessamos um hall fantasmal e imenso e subimos em vários
elevadores dos quais era preciso entrar e sair em diferentes andares: a
Torre era um labirinto delirante, uma extravagância estilo anos 1950.
No fim, chegamos ao apartamento de M. e transamos. Não me lembro
nada do apartamento nem do ato sexual: suponho que o primeiro era
mobiliado e sem graça, e o segundo, bastante desmobiliado e
claramente superável, como costumam ser com frequência os
primeiros encontros. Pouco depois, M. adormeceu como uma pedra.
E, para minha desgraça, eu fiquei pensando.
Deitada na cama ao lado dele (disto eu me lembro: a saborosa linha
do seu corpo nu, cada vez mais nitidamente recortado na penumbra,
enquanto o sol se erguia do outro lado das persianas), e submersa na
fragilidade psíquica das noites, no frenesi ruminante das insônias,
comecei a me irritar comigo mesma. O que estou fazendo aqui, disse,
neste apartamento estranho, nesta Torre absurda? Por que transei com
esse cara, com quem não consigo trocar duas frases? Pior ainda, por
que diabos será que ele transou comigo, se na realidade a gente não
consegue se entender, se na realidade não consegui seduzi-lo com o
melhor de mim, que é o que eu falo? Não, o que acontece é que ele
teria dormido com qualquer uma, teria dado no mesmo uma garota ou
outra, os homens são assim: claro, tudo já estava previsto, desde que
combinamos já estava na cara que a gente ia terminar na cama, que
coisa mais convencional e mais estúpida, e ele deve ter se achado,
deve pensar que é irresistível, porque é famoso e gato e estrela de
Hollywood, onde já se viu um cretino desses. E, assim, enquanto o
coitado do M. dormitava que nem um santinho do meu lado, eu fui
me enfezando com umas elucubrações cada vez mais furibundas, até
acabar asfixiada de ira justiceira.
Tendo atingido esse nível de braveza, decidi que não podia passar
nem mais um segundo com um monstro daqueles. Me levantei muito
devagar, me vesti com um cuidado primoroso para não acordá-lo,
peguei minhas coisas e saí na ponta dos pés do lugar, com os sapatos
na mão. Lembro que demorei um tempo infinito para fechar a porta
do apartamento para que a fechadura não estalasse. Depois, me
sentindo enfim livre, como se tivesse escapado de um campo de
prisioneiros, fui descendo pelo zigue-zague de elevadores, com a
cabeleira desgrenhada, a roupa desarrumada, a boca laminada de
cigarro, a maquiagem dos olhos borrada. E quando finalmente cheguei
ao térreo e saí à rua, descobri duas coisas desconcertantes: uma, que
era completa e ofuscantemente dia (nessa hora olhei o relógio e
comprovei que eram dez e meia da manhã) e, duas, que os outros
veículos tinham desaparecido e meu carro estava órfão e abandonado
sobre a calçada, na verdade no meio do parque, porque o que havia na
frente da Torre era um parque cheio de mulheres com carrinhos de
bebê, passeando na plácida manhã de domingo, com meu carro
montado ali, espetacular na sua vermelhidão e na sua solidão.
Mas não, para dizer a verdade, ele não estava sozinho, porque o
Mehari tinha sido rodeado por uma nuvem de policiais (os temíveis
grises do franquismo) e, para minha sobressaltada incredulidade, pelo
meu sério e inflexível pai, com quem naquela época eu passava os dias
brigando, meu pai ex-toureiro, com seu chapéu de abas largas, meu
veemente pai que, sem dúvida, devia estar com um ataque de
veemência, mas que diabos meu pai estava fazendo ali, e ainda bem
que estava de costas para o portão da Torre e não tinha me visto
aparecer.
Chispei a toda a velocidade, dei a volta na esquina da rua Princesa e
fiquei colada no muro como uma mosca, ofegando não pela breve
corrida, mas pelo piripaque, tentando entender o que estava
acontecendo, por que a polícia estava cercando meu carro, se eu
estava mesmo acordada. Pouco a pouco, a ressaca do álcool e do
tabaco, a dor de cabeça e a tontura provocada pela falta de descanso
me convenceram de que eu não estava dormindo. Poucos meses antes,
uma bomba do ETA tinha feito voar pelos ares o sucessor de Franco, o
almirante Carrero, até o telhado de um prédio, e as forças de
segurança continuavam em situação de alerta. Meu carro, estranho e
desengonçado, vaidosamente instalado no parque, deve ter parecido
suspeito, e com certeza telefonaram para a residência que constava no
registro, que era a casa dos meus pais, embora eu não morasse mais
ali. Fiquei horrorizada imaginando a cara do meu pai quando os
guardas ligaram: naquele momento só pensei na sua ira e hoje só
consigo pensar na sua preocupação. Compreendi, afinal, que não
podia fugir sem mais nem menos, largando ali aquele enxame de
policiais. Tentei respirar fundo para me acalmar, limpando a
maquiagem borrada nas olheiras com um dedo molhado de saliva,
alisando os cabelos espetados e clareando a voz de lobo matutino;
depois saí de trás do precário refúgio da minha esquina e fui na
direção do carro com as pernas bambas.
Minha chegada foi uma espécie de anticlímax. Meu pai rugiu um
“Mas o que aconteceu, onde você estava?!”, e eu balbuciei com pouca
convicção as explicações que improvisara: que na noite anterior tinha
saído para jantar com Pilar Miró e outros amigos, que bebi demais e
não quis pegar o carro, que tinha ido dormir na casa da Pilar. Para
minha surpresa, ninguém, nem os policiais nem meu pai, foram
demasiado inquisidores; era óbvio que nenhum deles acreditava em
mim; provavelmente, inclusive, os policiais tivessem me visto sair
correndo da Torre; meu pai estava consternado, reconhecendo em
mim talvez sua juventude farrista (com o agravante de que eu era
mulher e ele era machista), e os guardas mostravam um educado
desvelo diante da sua consternação. De modo que tudo foi
inesperadamente fácil; pediram minha carteira de motorista,
disseram-me para levar o carro, é possível que nem sequer tenham me
multado. Meu pai foi embora sem dizer mais nada, quase sem se
despedir, em direção aos vinte e cinco anos de vida que ainda lhe
restavam pela frente; e ao nosso futuro reencontro, e ao profundo
carinho que tivemos um pelo outro, do qual naquela época eu ainda
não era consciente. Coisa extraordinária: acabei de me dar conta de
que nunca mencionamos esse incidente de novo e agora já é tarde
demais para poder falar disso.
Eu também fui embora a caminho do resto da minha vida, mas por
enquanto na direção do apartamento que dividia com minha amiga Sol
Fuertes na Ciudad de los Periodistas. Ia com um humor tenebroso e
duplamente zangada pelo incidente do carro, que considerei uma
confirmação da minha estupidez. Algumas horas depois, Pilar me
telefonou para perguntar o que tinha acontecido; não quis dar
explicações porque intuí que ela estava ligando a pedido de M. e eu
não queria voltar a falar dele. “Não aconteceu nada”, disse; e ela, que
era uma amiga muito respeitosa, não insistiu; somente me deu o
número de M., caso eu quisesse entrar em contato com ele, e
desligou, desaparecendo desta história rumo à sua morte prematura
vinte e três anos depois. Na semana seguinte, foi o próprio M. quem
me ligou: eu não estava em casa e não liguei de volta. Vários dias
depois chegou uma carta dele em inglês que, naturalmente, não
entendi, e que joguei no lixo com ilustre desdém. Como ainda
continuava enfurecida, pensava que todas essas atenções de M. não
passavam da demonstração do seu orgulho ferido; que ele, ator
mundialmente famoso e blá-blá-blá, não conseguia suportar a ideia de
que uma garota qualquer o tivesse deixado na mão. E é possível que,
de fato, algo assim estivesse em jogo: porque nós, humanos, somos
tão estúpidos que muitas vezes ficamos fascinados com quem nos
maltrata.
Passaram-se assim umas quatro semanas até que um dia tive de ir
não sei por que ao coquetel de uma produtora de cinema. Estava
atravessando a sala abarrotada com uma taça na mão quando, sem
mais nem menos, se aproximou de mim o ator Fernando Rey. “Me
desculpe, Rosa, gostaria de te apresentar um amigo”, ele me disse; e
detrás dele emergiu M., ruborizado como um colegial. Esse rubor foi
minha perdição. O bom Fernando desapareceu discretamente, rumo à
morte que o esperava vinte anos mais tarde; e M. e eu ficamos
olhando um para o outro com uma intensidade atordoada, com as
orelhas em chamas, mergulhados em um pétreo ataque de timidez
fatal. De repente, uma horrível revelação caiu sobre mim como a
língua ardente do Espírito Santo: Mas ele é encantador, pensei. Eu me
enganei.
Balbuciamos umas tantas palavras desconexas em vários idiomas
mal falados. Acreditei ter entendido: “O que aconteceu? Você recebeu
minha carta? Eu fiz algo errado?”, mas me senti incapaz de explicar a
ele o que tinha acontecido, principalmente porque naquele momento
eu não conseguia explicar nem a mim mesma. “Eu me enrolei, não sei
o que me deu, me senti mal, sinto muito”, tentei dizer; vai saber o que
ele entendeu do que eu gaguejei. Presa de uma ansiedade crescente,
propus a ele que a gente se visse outro dia. “Vou embora justamente
amanhã, às onze da manhã”, ele disse. “A filmagem acabou ontem.” E
hoje à noite?, me aventurei, pondo desesperadamente o pé na porta
que estava se fechando. “A equipe toda do filme vai jantar fora de
Madri, na casa de campo do produtor, para se despedir… mas, se você
quiser, se a gente acabar cedo, depois posso te ligar.” Sim, eu quis,
claro, e repeti o número de telefone, caso ele tivesse perdido, e fui
correndo para casa sentar ao lado do aparelho. Uma hora, e duas
horas, e três horas, e quatro. E ele ligou, o mais incrível foi que M.
ligou. Telefonou à uma da madrugada para dizer que ainda estava no
campo, na metade do jantar; e que ele tinha de pegar o avião de manhã
e que a gente não ia poder se ver; e eu, esquentada com a espera e
com minha própria estupidez, caí na desmedida de me irritar e de
gritar com ele: “Como você faz uma coisa dessas comigo?!”. Ao que
ele respondeu, antes de desligar, já furioso também: “Não sei o que
você esperava, depois de desperdiçar um mês inteiro”. Hoje, muitos
anos mais tarde, depois de ter esperado inutilmente um monte de
telefonemas que nunca chegaram de homens que eu tratara com todo
o meu amor e minha delicadeza, me admira que M. tivesse a decência
de me ligar, apesar do meu comportamento desastroso; e só por esse
detalhe eu tendo a pensar que, de fato, era ou é um bom homem.
Mas no momento em que desliguei aquele telefone, não pensava
que M. era um bom homem, mas simplesmente O Homem, que é
algo muito parecido com a praga do Egito, ao menos nos seus efeitos
devastadores. Fulminantemente apaixonada por M. até a mais remota
das minhas sinapses e afundada na miséria por causa da minha cabeça
estragada, que me fizera perder A Oportunidade, mergulhei na lata de
lixo e empreendi uma busca frenética pela carta de M. que eu jogara
desdenhosamente sem olhar umas semanas antes. Talvez eu deva
explicar aqui que, como disse antes, eu era meio hippie; que morava
com uma amiga e que não nos empenhávamos a arrumar o
apartamento ou tirar o lixo com frequência, coisa que, por sua vez,
também não era muito grave, pois naquela casa a gente mal comia uns
queijos, maçãs e ovos cozidos; de modo que o lixo era um amontoado
mais ou menos inerte de páginas datilografadas, embalagens de
chocolate, diversas camadas geológicas de borras de café, um mosaico
de cascas de ovo fragmentadas, dezenas e dezenas de malcheirosas
guimbas de cigarro, vários maços vazios e umas tantas crostas de
queijo em diferentes etapas de fossilização. Removi tudo, enfim,
escrutei tudo, mas não consegui achar rastro da carta: pelo visto duas
semanas era um prazo longo demais até para nosso desleixo, e nesse
intervalo tínhamos jogado fora os dejetos. Lembro-me ainda da
desolação daquela madrugada; ou melhor, do desespero. Alguma coisa
ardia ferozmente dentro de mim, como se tivesse jogado sal no
coração.
Se antes eu inventara um M. desprezível, a partir daquela noite me
dediquei a imaginar um M. extraordinário. Repassava uma e outra vez
na minha cabeça cada um dos seus gestos e das suas palavras,
extraindo peregrinas teorias dessas miudezas, elucubrações sobre seu
caráter, sobre suas emoções, sobre seus sentimentos em relação a
mim. A paixão, sempre tão obsessiva, me fez percorrer as salas de
cinema de Madri em busca dos seus filmes; e ainda bem que na época
não existiam os vídeos ou eu não teria saído de casa durante vários
meses. Ficava angustiada, principalmente, pela nossa falta de
comunicação e pelo equívoco enorme que ela originara. Estava
empenhada em emendar o erro e em demonstrar a ele que, apesar de
tudo, eu podia ser digna de ser amada. Mas para isso eu precisava usar
minha arma secreta, isto é, eu precisava falar com ele, de modo que
comecei a estudar inglês de maneira intensiva. Foi assim que aprendi
essa língua que depois me foi tão útil: é assustador pensar que a gente
vai construindo um destino com bobagens como essas.
Depois de três ou quatro meses, sentindo-me já minimamente
capaz de me expressar, escrevi para ele em inglês uma carta
apaixonada e com certeza delirante, que levei três dias para escrever.
Ainda mais difícil foi encontrar seu endereço, que acabei arrancando
de uma produtora através de mentiras. Enviei-a, com urgência,
registro e remetente, mas nada aconteceu. Depois de um mês, aflita,
liguei para ele: eu também tinha conseguido o número de telefone do
seu agente. M. não estava. Deixei recado. Ele não respondeu.
Telefonei de novo e me confirmaram que tinham dado o recado. Tive
de reconhecer que ele estava me ignorando.
Então, eu me rendi. Depois de lançar, durante seis meses, sobre M.
os holofotes deslumbrantes da paixão, apaguei os refletores e decidi
esquecê-lo. Passei alguns anos procurando em outros homens, sem
querer, a cor dos olhos dele, uns lábios parecidos, o talhe de seu rosto;
e durante uma longa temporada não pude ver um filme de M. sem
sentir na boca um gosto metálico. Então, tudo começou a se perder no
horizonte até ser engolido pela linha do tempo. M. se transformou em
uma lembrança tão remota e pouco pessoal como as ruínas de uma
pirâmide maia. Se eu não me reconhecia mais na moça de vinte e três
anos que um dia fui, como poderia reconhecê-lo, sendo que ele
sempre foi um estranho?
Muito depois, quando eu já tinha quarenta e tantos, me
propuseram que o entrevistasse para o jornal El País. M. seguira uma
excelente carreira e acabara de ganhar um Oscar de ator coadjuvante.
Voei para a cidade na qual ele reside com uma sensação desagradável
de inquietude. Eu já era outra, era uma mulher mais velha que
conhecera a felicidade e o sofrimento, o sucesso e o fracasso, a
irreparável morte de entes queridos; era uma senhora que vivera com
dois homens e que atualmente convivia felizmente com o terceiro, era
uma romancista veterana e uma jornalista com calos nos ouvidos de
tanto escutar entrevistados. Não tinha nada a ver com aquela garota
doida que fugira da Torre de Madri, e não estava nem aí para M., em
quem eu nunca pensava. Mas ali estava eu, com esse ligeiro e chato
tremor no estômago, como alguém na sala de espera do dentista.
Entrei na suíte do hotel onde a entrevista seria realizada com uma
couraça de desenvoltura profissional. Nos cumprimentamos com um
educado aperto de mão, nos sentamos em duas poltronas idênticas,
com um estofado de listras cor de groselha, e começamos a conversa.
Ele, como era de esperar, não me reconheceu; eu, como era natural,
não disse nada. M. tinha cerca de sessenta anos, mas estava bem
conservado. Tão bem, de fato, que suspeitei com certa maldade de
alguma intervenção de cirurgia plástica. As coisas da vida, já se sabe,
quase sempre chegam fora de tempo; e, assim, ainda que agora eu
dominasse o inglês, não estava mais interessada em falar com ele;
tentei fomentar sua loquacidade, como sempre faço nas entrevistas, e
descobri que, agora que o entendia, me parecia um homem
introvertido e tímido, razoavelmente culto, razoavelmente inteligente.
Um cara agradável. A conversa transcorreu com facilidade, sem
grandes achados e também sem entraves; mas, depois de meia hora
falando, vi que ele começava a me olhar de um jeito um pouco
estranho, com certa perplexidade, certa insistência, inclinando a
cabeça para o lado como um bobo curioso, como se uma vaga
lembrança que fugira estivesse arranhando sua memória. Até que
afinal, ao terminar a entrevista, quando desliguei o gravador, não pôde
evitar de me fazer uma pergunta direta: “A gente já se conhecia de
antes?”. Sorri incomodada, e acho até que fiquei vermelha. “Sim, foi,
faz muitos anos… um verão… em Madri… quando o senhor estava
filmando XXX… jantamos com Pilar Miró e com o diretor ZZZ…” Vi
que M. começava também a sorrir, enquanto ia enfocando a
lembrança, enquanto ia se aproximando da pequena luz que acabara
de acender no fundo do seu crânio; até que, de repente, sua memória
se abriu; e vi que o passado atravessava seu rosto como a sombra de
uma nuvem. O gesto se encrespou e ele encolheu levemente a cabeça
entre os ombros, como se quisesse se defender da ameaça de um soco.
E pensei que pensava: Caramba, a louca. Mas depois, em uma
vertigem de clarividência, refleti sobre algo que me escapara e me
perguntei que memória M. guardaria de tudo aquilo; talvez agora ele
não estivesse pensando em mim, mas em si mesmo; nesse mês no
qual ele também tinha escorregado, nessa carta dele que eu não li e
que poderia ter sido tão delirante como a minha. Talvez ele se
lembrasse de si mesmo e não se reconhecesse, da mesma maneira que
eu não me reconhecia naquela garota de vinte e três anos, porque
nenhum daqueles eus remotos fazia mais parte da nossa narrativa
atual. Fosse o que fosse, ali estava M., absorto e tenso, com seus olhos
verdes estranhamente escurecidos, olhando para dentro, para o
passado, e não gostava do que via. Foi assim que ele ficou de pé com
rígidas dificuldades de reumático, pigarreou, engoliu em seco e,
depois de se despedir com apressada e superficial cortesia, se dirigiu
para a porta. Dessa vez foi ele que saiu correndo.
Quatro

Ontem reservei o dia inteiro para escrever. E quando digo escrever


assim, sozinho, sem adjetivos, estou me referindo a textos meus,
pessoais: contos, romances, este livro. Como também sou jornalista,
escrevo muitas outras coisas; na realidade, passo o dia amarrada à tela
do computador, como galeota acorrentada ao remo. Mas o jornalismo
pertence ao meu ser social, ao contrário da narrativa, que é uma
atividade íntima e essencial. Quando faço jornalismo, portanto, estou
trabalhando. Nunca teria dito: “Ontem reservei o dia inteiro para
escrever” se tivesse em mente fazer uma entrevista ou um artigo.
O caso é que ontem pensava em dedicar o dia ao livro A louca da
casa e me regozijava só de imaginar o monte de horas que ia poder
aproveitar para isso. Sentei-me na frente do computador por volta das
dez da manhã, sem compromissos na hora do almoço, sem
compromissos na hora do jantar, sem ter de resolver nada nem ir a
lugar nenhum, do alto de uma jornada longa e vazia, perfeita para ser
dedicada à escrita. Liguei a tela. Me acomodei bem na cadeira. De
repente me ocorreu que fazia pelo menos uns dois meses que não
respondia às cartas recebidas no meu site e abri a pasta na qual as
guardo, para dar uma olhada. Eram muitas, muitas mesmo. Comecei a
responder. Passaram-se horas. Parei só vinte minutos para comer
alguma coisa. Retomei a tarefa. Terminei de responder umas oito da
noite, acabada, com dor de cabeça e o pescoço duro de tanto teclar.
Liguei para Carmen García Mallo, uma das minhas melhores amigas,
com o ânimo sombrio e furibundo:
— Hoje eu queria escrever, tinha o dia todo, e joguei no lixo
respondendo e-mails.
— Por quê?
— Não sei. Às vezes a gente evita começar a trabalhar. É uma coisa
estranha.
— Por preguiça?
— Não, não.
— Por quê?
— Por medo.
Não soube explicar a ela, mas ontem, no desamparo extremo da
noite, na claridade alucinada da noite, compreendi exatamente o que
eu queria dizer. Por medo de tudo o que você não escreve quando
passa à ação. Por medo de concretizar a ideia, de encarcerá-la, de
deteriorá-la, de mutilá-la. Enquanto se mantêm no limbo rutilante do
imaginário, enquanto são só ideias e projetos, os livros são
absolutamente maravilhosos, os melhores livros que alguém jamais
escreveu. E é depois, quando vão sendo pregados na realidade, palavra
por palavra, como Nabokov pregava as coitadas das suas borboletas
sobre a cortiça, que se transformam em coisas inevitavelmente
mortas, em insetos crucificados, por mais que sejam recobertos por
um triste pó de ouro.
Há dias em que essa derrota da realidade importa menos. De fato,
há dias em que você se sente tão inspirada, tão repleta de palavras e de
imagens, que escreve com uma sensação de leveza, escreve como
quem sobrevoa o horizonte, surpreendendo a si mesma com o que
escreve: mas o que é isso? Como fui capaz de redigir esse parágrafo?
Às vezes acontece que você está escrevendo muito acima da sua
capacidade, muito melhor do que você sabe escrever. E você não quer
se mexer da cadeira, não quer respirar, nem piscar, nem muito menos
pensar, para que o milagre não se rompa. Escrever, nesses estranhos
acessos de lepidez, é como dançar com alguém uma valsa muito
complicada, dançando com perfeição. Você gira e gira nos braços do
seu parceiro, trançando intricados e belíssimos passos, e o mundo à
sua volta é uma crepitação de lustres de cristal e candelabros de prata,
de sedas reluzentes e sapatos brilhosos, e a dança está beirando a mais
completa beleza, uma volta e outra, e você continua sem quebrar o
compasso, é prodigioso, embora você tema perder o ritmo, pisar no
seu parceiro, ser mais uma vez desajeitada e humana; mas você
consegue continuar mais um passo e outro e quem sabe outro, voando
nos braços da sua própria escrita.
Já disse que nos momentos de graça você procura, acima de tudo,
não pensar, porque, de fato, o pensamento racional e a consciência do
eu destroem a criatividade, que é uma força que deve fluir tão livre
como a água e abrir seus próprios caminhos, sem que nisso
intervenham o conhecimento ou a vontade. No seu interessante
discurso de posse na Academia de la Lengua, a historiadora Carmen
Iglesias contou uma pequena fábula que reflete à perfeição esse caráter
inconsciente e autônomo que o impulso criativo possui. Uma barata
má e invejosa, irritada porque a centopeia tinha muito mais patas do
que ela, disse-lhe um dia, olhando-a com bajulação malévola: “Que
maravilhosa graça você tem ao caminhar, que incrível coordenação,
não sei como você consegue se mexer tão sinuosa e facilmente com
todas essas patas, poderia me explicar como faz?”. A centopeia,
lisonjeada, estudou a si mesma e depois detalhou com boa vontade o
procedimento: “É muito fácil; é só mexer para a frente as cinquenta
patas do lado direito enquanto você mexe para trás, de maneira
sincronizada, as cinquenta patas do lado esquerdo, e vice-versa”. A
barata fingiu admiração: “Que incrível! Você poderia me fazer uma
demonstração?”. E a centopeia não conseguiu se mexer nunca mais.
A arte está alumbrada por essa mesma graça cega que faz o pobre
inseto andar. É um dom que Rudyard Kipling chama de daimon, seu
demônio, embora se trate de um desses demônios greco-romanos ou
védicos que são gênios tutelares, espíritos intermediadores dos
humanos com o além; e aconselha os jovens escritores: “Quando o
seu daimon estiver no comando, não tente pensar conscientemente.
Vá à deriva, espere e obedeça”. Como é evidente, Kipling também
dançava a valsa furiosamente de vez em quando.
E é isto que dá medo, que aterroriza: pôr-se a escrever e não
conseguir se encontrar com seu daimon, que está dormindo, que foi
viajar, que está zangado com você, que não está a fim de te tirar para
dançar. Você teme não voltar a se mexer, como a centopeia. Às vezes,
você trabalha durante dias e dias, durante semanas, quem sabe meses,
na aridez da escrita como ofício, sem conseguir sequer um pequeno
sapateado, sem conseguir estremecer nem uma só vez pela presença
intuída de algo lindo. Nessas épocas amargas, você tem de se arrastar
dia após dia até o computador, você leva a si mesma amarrada pelo
pescoço como quem transporta um gatinho para fora de casa; e é
nesses momentos que você sente que está ganhando um lugar no céu
da obra terminada, pois sem dúvida está atravessando o purgatório.
Ainda assim, o medo maior não é o mal-estar próprio, nem a aflição
de passar dia após dia sem poder desfrutar do seu trabalho. O que te
espanta de verdade é o resultado desse trabalho, isto é, escrever
palavras, mas palavras ruins, textos inferiores à sua própria
capacidade. Você teme estragar a ideia redigindo-a de maneira
medíocre. É claro que depois você pode e deve reescrevê-la,
emendando as falhas mais evidentes, até tirando partes inteiras de um
romance e começando de novo. Mas uma vez que você delimitou sua
ideia com palavras, você a manchou, fazendo-a descer à tosca
realidade, e é muito difícil ter de novo a mesma liberdade criativa que
antes, quando tudo ainda estava voando pelos ares. Uma ideia escrita é
uma ideia ferida e escravizada a uma certa forma material; por isso é
que dá tanto medo de se sentar e trabalhar, porque é algo de algum
modo irreversível.
Uma das experiências mais lindas que já vivi ocorreu na costa oeste
do Canadá, perto de Vitória. Foi no início de um mês de setembro, faz
mais de dez anos. Dois alemães, Pablo e eu subimos em um pequeno
Zodiac com capacidade para seis pessoas e saímos para o Pacífico para
observar baleias. É uma atividade turística que ficou famosa nessas
águas e, ao que parece, ultimamente o mar está tão abarrotado de
gente que os cetáceos mal se aproximam da costa. Naquele momento,
no entanto, estávamos sozinhos. Navegamos durante certo tempo até
ficarmos entre umas ilhotas; ali, o responsável desligou o motor e
ficamos quietos, sendo balançados como bebês por um mar manso.
Era uma manhã morna e luminosa, as ilhotas brilhavam de verdor no
horizonte e o silêncio pousava sobre nossos ombros como um véu,
magnificado pela água que lambia o Zodiac ou o berro passageiro de
uma gaivota. Ficamos assim, sem nos mexermos nem dizer uma só
palavra, durante mais de quinze intermináveis minutos. E, de repente,
sem aviso prévio, aconteceu. Um estouro assustador agitou o mar do
nosso lado; era um jato d’água, o jato de uma baleia, poderoso,
enorme, espumante, uma tromba que nos encharcou e que fez o
Pacífico ao nosso redor ferver. E o barulho, esse som incrível, esse
bramido primordial, uma respiração oceânica, o sopro do mundo. Essa
sensação foi a primeira: ensurdecedora, cegante; e logo em seguida a
baleia emergiu. Era uma baleia jubarte, uma das maiores; e começou a
sair à superfície do nosso mesmo lado, a apenas dois metros da borda,
porque os cetáceos são seres curiosos e querem investigar os
estranhos. E, assim, primeiro tirou as “narinas”, que logo mergulhou
debaixo d’água; e depois todo o resto foi deslizando, em uma onda
imensa, em um arco colossal de carne sobre a superfície, carne e mais
carne, brilhante e escura, viscosa e ao mesmo tempo pétrea, e em
dado momento o olho passou, um olho redondo e inteligente que se
fixou em nós, um olhar intenso do abismo; e depois desse olho
comovedor, muita baleia ainda continuou passando, um musculoso
muro eriçado de crustáceos e de algas barbudas, até que por fim,
quando já estávamos sem ar diante da enormidade do animal, ela
ergueu lá no alto a cauda gigantesca e afundou com elegante lentidão
na vertical; e em todo esse deslocamento do seu tremendo corpo não
levantou sequer uma ondinha, não produziu o menor respingo, não
fez nenhum barulho além do suave sussurro da sua carne monumental
acariciando a água. Quando desapareceu, imediatamente depois de ter
mergulhado, foi como se nunca tivesse estado ali.
O peruano Julio Ramón Ribeyro diz que em certas ocasiões o
escritor tem a sensação de que suas melhores obras foram perdidas:

Pouco tempo atrás, lendo Cervantes, passou por mim um sopro


que não tive tempo de captar (por quê? Alguém me interrompeu, o
telefone tocou, sei lá), infelizmente, pois lembro que me senti
impulsionado a começar alguma coisa… Depois tudo se dissolveu.
Todos nós guardamos um livro, talvez um grande livro, mas que no
tumulto de nossa vida interior é raro que emerja ou o faz tão
rapidamente que não temos tempo de capturá-lo.

Gosto dessa frase porque sempre pensei que, de fato, a visão da obra
tem muito a ver com a visão entrecortada, hipnotizante e quase
aniquiladora, mas linda, daquela baleia do Pacífico. Com a escrita é a
mesma coisa: com frequência, você intui que do outro lado da ponta
dos seus dedos está o segredo do universo, uma catarata de palavras
perfeitas, a obra essencial que dá sentido a tudo. Você se encontra no
próprio umbral da criação e na sua cabeça disparam tramas
admiráveis, romances imensos, baleias grandiosas que só te mostram
o relâmpago do seu dorso molhado, ou melhor, só fragmentos desse
dorso, partes dessa baleia, pitadas de beleza que te deixam intuir a
beleza insuportável do animal inteiro; mas depois, antes que você
tenha tido tempo de fazer alguma coisa, antes de ter sido capaz de
calcular seu volume e sua forma, antes de ter podido compreender o
sentido do seu olhar perfurador, a prodigiosa besta mergulha e o
mundo fica quieto e surdo e tão vazio.
Cinco

Concordamos que o escritor deveria ser como aquela criança que


grita, quando passa o cortejo real, que o rei está nu. Mas acontece que
com frequência não só não lhe ocorre dizer isso, como ele nem
mesmo é um espectador. Com frequência, o escritor é um integrante
da comitiva. Vejo-o marchar ali, marcando o passo de ganso, parrudo
de pompa e ostentação, embora na sua realidade física seja um
mequetrefe. Mas como fica cheio de si quando desfila.
Todos passamos a vida buscando nosso particular ponto de
equilíbrio com o poder. Não queremos ser escravos e, em geral,
também não queremos ser tiranos. Além disso, o poder não é um
indivíduo, não é uma instituição, não é uma estrutura firme e única,
mas antes uma teia de aranha pegajosa e confusa que suja todos os
campos da nossa existência. E, assim, temos de encontrar a relação
precisa de poder com nosso companheiro, nossos filhos, nosso chefe,
nossos colegas de trabalho, nossos pais, com todos e cada um dos
nossos amigos; com as autoridades, com a sociedade, com o mundo, e
até com Deus, para aquele que acredite na sua existência.
O que ocorre é que esse conflito costuma ficar mais evidente em
nós, escritores. Em primeiro lugar, porque a crítica ou a análise
honesta das relações de poder faz parte do nosso ofício, da mesma
maneira que construir móveis bons faz parte do ofício do carpinteiro.
Por isso, quando nos traímos, quando nos acovardamos, quando nos
vendemos, somos duplamente notórios nas nossas avacalhações.
Porque, além disso, todos os poderes precisam de arautos e porta-
vozes; todos precisam de intelectuais que inventem para eles uma
legitimidade histórica e um álibi moral. Esses, os intelectuais
orgânicos, do meu ponto de vista são os piores. São os mandarins, e
esse papel cheio de si de grande buda não se exerce impunemente.
Paga-se em criatividade e substância literária, como, quem sabe, possa
ser comprovado na trajetória de um Cela, por exemplo. Mas nenhum
de nós é puro. Inclusive, desconfio dos puros: me dão pânico. Dessa
pureza fictícia nascem os linchadores, os inquisidores, os fanáticos.
Não é possível ser puro sendo humano. De modo que todos nós
vamos nos ajeitando na nossa relação mutável e escorregadia com o
poder. Vamos buscando nosso equilíbrio, como patinadores sobre um
lago congelado e rachado, com perigosas placas de gelo muito fino.
Alguns patinam muito bem e se viram para não cair; outros estão
quase o tempo todo enfiados na água. Ou seja, falando claro e
deixando de metáforas: uns são muito mais dignos e outros
incomparavelmente mais indignos. Às vezes, uma mesma pessoa pode
manifestar comportamentos diversos: pode ser heroico diante de
alguns desafios e miserável em outros. O celebérrimo manifesto de
Zola a favor do judeu Dreyfus é sempre citado como exemplo de
engajamento social e moral do escritor, e sem dúvida Émile precisou
ser valente para redigir seu iracundo Eu acuso, quase em absoluta
solidão contra os conformistas. Mas esquecemos que, três anos antes,
esse mesmo Zola se negou a assinar o manifesto de apoio a Oscar
Wilde, condenado a dois anos de detenção nas desumanas prisões
vitorianas só por ser homossexual. Mas, claro, naquela época,
defender um sodomita, como eram chamados, era ainda mais difícil
do que defender um judeu, e demonstrava uma liberdade intelectual
muito maior. Henry James também não assinou: apenas André Gide o
fez. Gide era homossexual e sem dúvida isso fez com que ele
compreendesse o drama de Wilde em toda a sua brutalidade, mas essa
circunstância só incrementa, do meu ponto de vista, seu heroísmo;
apoiar um gay sendo gay devia ser naquela época algo muito duro, da
mesma maneira que apoiar um judeu sendo judeu nos tempos de
Hitler podia ser muito perigoso.
Na realidade, o que fez o bom do Zola se perder nesse caso foi o
preconceito. E acontece que nossos preconceitos nos prendem,
diminuem nossa cabeça, nos idiotizam; e quando esses preconceitos
coincidem, como costuma acontecer, com a convenção majoritária,
nos tornam cúmplices do abuso e da injustiça, como no caso de
Wilde. Para mim, o famoso engajamento do escritor não consiste em
pôr suas obras a favor de uma causa (o utilitarismo panfletário é a
máxima traição do ofício; a literatura é um caminho de conhecimento
que deve ser empreendido carregado de perguntas, não de respostas),
mas em se manter sempre alerta contra o tópico geral, contra o
preconceito próprio, contra todas essas ideias herdadas e não
contrastadas que nos enfiam insidiosamente na cabeça, venenosas
como o cianureto, como o chumbo, péssimas ideias que induzem à
preguiça intelectual. Para mim, escrever é uma maneira de pensar; e
há de ser um pensamento o mais limpo, o mais livre, o mais rigoroso
possível.
Por isso eu gosto mais de Voltaire do que de Zola, por exemplo.
Voltaire também teve seu caso Dreyfus. Aconteceu quase um século e
meio antes, em 1762, quando o filho de um comerciante protestante
de Toulouse, chamado Jean Calas, se suicidou. A sociedade francesa
da época, agressivamente católica, decidiu que o comerciante
assassinara o próprio filho porque ele desejava se converter ao
catolicismo; a lei acatou esse delírio, sem dispor de provas, sendo Jean
Calas condenado à pena capital e executado com o suplício da roda,
quer dizer, torturado até a morte. Poucos meses depois, Voltaire
publicou seu Tratado sobre a tolerância em torno da morte de Jean Calas,
em que acusava os jesuítas da tropelia; com isso, ele não conseguiu
devolver a vida ao pobre Calas, mas sim a revisão do processo e a
reabilitação da família; além de tudo, tornou a sociedade francesa mais
consciente dos excessos do fanatismo e das manipulações dos
poderosos. Não deve ter sido fácil enfrentar todo mundo para
defender uma pobre família de párias. Ir contra a corrente é algo
extremamente incômodo. É possível que a maioria das misérias
morais e intelectuais seja cometida por isto: por não contradizer as
ideias dos seus patrões, vizinhos, amigos. Um pensamento
independente é um lugar solitário e ventoso.
E também há, claro, os pequenos benefícios, as ambições lícitas e
ilícitas, o esnobismo, o medo, a vaidade… A gente pode vender a alma
ao poder por tantas coisas. E o que é pior: por um valor tão baixo. Por
exemplo, não sei como dizer isso, mas não me parece nada apropriado
que um escritor da estatura de García Márquez receba de presente de
Fidel Castro uma casa, uma incrível mansão em Siboney, a região dos
antigos ricos de Havana. Para começar, não acho que os escritores
devam deixar que chefes de Estado os obsequiem com opulentos
chalés; que, nesse caso, o chefe de Estado seja um ditador e o país
paupérrimo acrescenta mais inconvenientes à questão.
Um dos relatos mais comoventes e delirantes dessa venda no varejo
das miudezas da alma é a história de Goethe, do grande Wolfgang
Goethe, que ele próprio revela, aparentemente sem se dar conta do
que está dizendo, na sua autobiografia Poesia e verdade. Como se sabe,
Goethe nasceu em Frankfurt em 1749; em 1774, com vinte e cinco
anos, publicou Os sofrimentos do jovem Werther, um livro que o tornou
famoso; e um ano mais tarde foi convidado pelos arquiduques de
Weimar para residir na sua minúscula corte como intelectual a serviço
deles. Goethe não abandonaria essa corte de opereta até sua morte,
em 1832, quando estava com oitenta e três anos. Trabalhou como um
velhaco durante todo esse tempo nos serviços oficiais, como
conselheiro, como ministro da Fazenda, como leva e traz do
arquiduque, inspecionando minas, supervisionando planos de
irrigação ou até organizando os uniformes do pequeno Estado. Nunca
se aposentou; sendo octogenário, continuava como empregado.
Quando morreu, ostentava o cargo de supervisor dos Institutos de
Arte e Ciência.
Durante todos esses anos, Goethe continuou escrevendo e
publicando grandes obras, mas não resta dúvida de que sua frenética
atividade cortesã, e o espírito de reverência que implicava, devem ter
tirado tempo e potência do seu labor literário. Ortega y Gasset e
outros bons pensadores consideram que Goethe se perdeu ao ir para
Weimar; que feriu seu enorme dom, que o desperdiçou, que não o
respeitou como deveria. O próprio Wolfgang algumas vezes se
queixava, nas cartas pessoais e nos textos biográficos: “Não tenho
nada mais a te dizer a não ser que me sacrifico por minha profissão”,
escreveu certa vez, sendo que a profissão, naturalmente, era seu
trabalho oficial; e em outro momento disse que, a partir da sua
chegada à corte, “deixei de pertencer a mim mesmo”.
Em Poesia e verdade, Goethe explica que aceitou a oferta de
Weimar porque queria se afastar de um amor frustrado (um noivado
rompido com a bela Lili) e porque o ambiente provinciano de
Frankfurt o asfixiava e ele aspirava a algo mais cosmopolita e refinado;
mas lendo sua autobiografia, a gente percebe que, além disso, Goethe,
um burguesinho, filho de um jurista aposentado, era bastante esnobe,
o que hoje chamaríamos de um almofadinha, preocupadíssimo com
suas roupas, seu aspecto, seu lugar social e sua reputação. Era louco
para ser íntimo da aristocracia e a nobreza o encantava. É que até os
grandes homens (e as grandes mulheres) têm buracos de estupidez e
de miséria.
Vendeu-se barato, de todas as formas, porque Weimar era uma
corte de meia-tigela; mas é claro que ele conseguiu aquelas lasquinhas
de poder que pretendia. Foi-lhe concedido um título de nobreza, e os
retratos de Goethe na maturidade o representam com toda a
parafernália solene das fitas de seda, as faixas, as honrarias, as
ostentosas condecorações. Um completo mandarim. E, ainda por
cima, quando o septuagenário Goethe se apaixonou como um cão por
Ulrike, uma garota de dezesseis anos, e pediu sua mão em casamento,
o arquiduque, para ajudar seu conselheiro, prometeu à garota que,
caso se casasse com Wolfgang, lhe outorgaria uma elevada renda
vitalícia ao enviuvar. E isso também é poder. Mais ainda, esse tipo de
intervenção na esfera do privado é a prova mais manifesta de como se
dar bem ou não com o poder pode nos facilitar ou dificultar a vida.
Nesse caso, de todas as formas, não funcionou: Ulrike não se deixou
comprar. Quer dizer, fez o contrário do que Goethe fizera na sua
juventude.
A história da venda da sua alma (não deve ser por acaso que esse
homem seja o autor do formidável Fausto) vem relatada com todo o
seu ridículo detalhe no final de Poesia e verdade. Um dia os
arquiduques de Weimar passaram por Frankfurt e convidaram Goethe
para se unir à corte. Tudo isso é contado pelo escritor com grandes
floreios de adjetivos; os duques são corteses, amáveis, benevolentes, e
o jovem Wolfgang (vinte e seis anos) manifesta em relação a eles um
“veemente agradecimento”. A coisa seria feita do seguinte modo: um
cavalheiro da corte, que ficara para trás, em Karlsruhe, à espera de que
lhe trouxessem um landau construído em Estrasburgo, ia chegar a
Frankfurt poucos dias mais tarde. Goethe devia preparar suas coisas e
partir com o cavaleiro e o landau para Weimar.
O arranjo caiu como uma luva para Wolfgang e ele se apressou para
fazer as malas “sem esquecer meus textos inéditos” e se despedir dos
seus conhecidos; imagino o orgulho com o qual o jovem pedante deve
ter comunicado a todo mundo que no dia tal viriam buscá-lo da parte
dos arquiduques para levá-lo à corte. Mas eis que o dia chegou sem
que o cavaleiro ou o landau aparecessem; e Goethe, morto de
vergonha, se trancou na casa dos pais e permaneceu ali escondido e
sem botar a cara nas janelas, para que as pessoas acreditassem que ele
tinha ido embora. Ele conta isso com um eufemismo engraçado,
dizendo que o fez “para não ter que me despedir pela segunda vez e,
em geral, para não ser sobrecarregado com concorrências e visitas”; e
tem a desfaçatez de acrescentar que, como a solidão e o aperto sempre
lhe haviam sido muito favoráveis, aproveitou o confinamento a sete
chaves no seu quarto para escrever, tentando oferecer uma imagem
senhorial de si mesmo, um artista tranquilo que utiliza o atraso de um
cavaleiro para ir adiante com sua obra.
Mas a realidade devia ser bem diferente. Para dissimular a pressa
que sentia, Goethe atribui a própria angústia ao coitado do seu pai,
dizendo que ele, à medida que os dias passavam e ninguém chegava, ia
ficando cada vez mais nervoso, a ponto de acreditar que “tudo era uma
mera invenção, que essa coisa de landau novo não existia, que o
cavaleiro atrasado era apenas uma quimera”, e que se tratava de “uma
simples travessura cortesã, que tinham se permitido fazer comigo
como consequência das minhas tropelias, com a intenção de me
ofender e me envergonhar no momento em que constatasse que, no
lugar daquela honra esperada, receberia um protesto vexatório”. Essa
martirizante lamentação, que era sem dúvida a suspeita que
assombrava Goethe, revela muitas coisas sobre suas relações com o
poder. O grande Wolfgang era um pobre puxa-saco, um infeliz que
desde o primeiro momento começou a deixar pedacinhos da sua
dignidade na sua árdua ascensão pela escala social. Os humanos são
umas criaturas tão paradoxais que ao lado do talento mais sublime
pode coexistir a debilidade mais teimosa e mais vulgar.
“Foi assim que transcorreram oito dias e não sei quantos mais, e
aquele confinamento completo foi se tornando cada vez mais difícil.”
Desesperado e nervosíssimo, a toupeira do Goethe começou a sair na
escuridão da noite, encoberto por uma espécie de capa, para evitar ser
reconhecido; e assim, fantasiado, dava voltas de madrugada pela
cidade, como um preso que estica as pernas no pátio da prisão.
Passaram-se ainda mais dias, e a essa altura o jovem Wolfgang já estava
tão “torturado pela inquietação” que nem sequer era capaz de
escrever. Profundamente humilhado e incapaz de encarar seus
vizinhos e amigos, depois de ter cometido a suprema tolice de se
esconder, Goethe e seu pai decidiram que ele precisava ir embora de
qualquer maneira; e o compreensivo progenitor prometeu-lhe bancar
uma estadia na Itália se ele partisse imediatamente. Coisa que Goethe
fez, na encolha, arrastando seus pertences a caminho de Heidelberg. E
em Heidelberg foi alcançado, precisamente, pela ansiada carta cheia
de selos. Foi tal a emoção que Goethe ficou um bom tempo sem abrir
a missiva. Era do cavaleiro, informando-o de que se atrasara porque o
landau não fora enviado a tempo, mas que finalmente tinha ido pegá-
lo. E lhe rogava que voltasse logo para Frankfurt para que pudessem
partir sem lhe causar o constrangimento de chegar a Weimar sem ele.
“De repente foi como se uma venda caísse dos meus olhos”, diz o
exultante Goethe. “Toda a bondade, benevolência e confiança
precedentes apareceram de novo vivamente diante de mim e fiquei a
ponto de me envergonhar da minha fuga.” Os arquiduques eram
magnânimos; a glória cortesã, plenamente alcançável; a vida, um
minueto cheio de promessas honoríficas. E, de fato, Wolfgang voltou
com sua bagagem a Frankfurt, abanando o rabo como um cão
agradecido; e partiu imediata e eternamente para Weimar. E aí, justo
aí, termina sua autobiografia, um grosso volume que, na minha edição
(Alba Editorial), tem oitocentas e trinta e cinco páginas, um texto que
Goethe escreveu durante vinte anos, os últimos vinte anos da sua
vida. Sendo octogenário, Wolfgang pôs aí o ponto-final do relato das
suas memórias, como se sua existência tivesse acabado ao sair em
direção à corte do arquiduque. É impossível que se trate de um remate
casual; debaixo dos bordados, das condecorações e das sedas, Goethe
sabia. Todos nós percebemos quando nos vendemos.
Seis

Às vezes eu me pergunto o que terá sido daquelas pessoas reais que


foram a origem de um personagem literário. Por exemplo, o que teria
acontecido com a gigantona e o corcundinha de Carson McCullers? O
que terá sido da vida deles depois de saírem daquele bar no Brooklyn?
Continuaram juntos? Quem sabe se apaixonaram? Tiveram uns filhos
enormes e um pouco curvados? E que fim terá levado minha
tremenda loira de olhos verdes, que distribuía taças e interpretava
canções naquele boteco sevilhano? A gigantona e o corcundinha com
certeza estão mortos: passou tempo demais. Mas minha loira deve
estar na casa dos sessenta. Eu me pergunto se ter extraído deles uma
das suas existências imaginárias acabou afetando-os de algum jeito; e
não estou falando de que se reconheçam nos livros, mas de uma
espécie de efeito colateral. No pior dos casos, a faísca vital que
acendeu a personagem supõe alguma perda da sua substância íntima.
Apenas uma vez introduzi uma criatura real em uma das minhas obras
de maneira literal, usando inclusive seu próprio nome; tratou-se do
meu cachorro Bicho, que fez uma aparição estelar em O ninho dos
sonhos, um romance curto para crianças. Um mês depois de publicado
o livro, Bicho morreu de um infarto de forma suspeita e prematura,
como se não pudessem coexistir no tempo e no espaço ambas as
versões do mesmo animal.
Não acredito em magia, não sou supersticiosa e não pretendo dizer
que a gente não pode utilizar a escrita de um romance para fazer vodu
com um inimigo. Mas acredito no mistério, quer dizer, acredito que a
vida é um mistério descomunal, do qual nem sequer arranhamos a
casquinha, apesar das nossas pretensões de grandes cérebros. Na
realidade, não sabemos quase nada; e a pequena luz dos nossos
conhecimentos está rodeada (ou antes sitiada, como diria Conrad) por
um tumulto de agitadas trevas. Também acredito, continuando com
Conrad, na linha de sombra que separa a luz da escuridão; em
margens confusas e fronteiras incertas. Em coisas inexplicáveis que
parecem mágicas só porque somos uns ignorantes. O romance se
move em uma zona turva e escorregadia; em torno de um romance
sempre acontecem as coisas mais estranhas. Como, por exemplo, as
coincidências.
Embora cada autor tenha seu ritmo, a redação de um romance é
um processo muito lento; eu costumo demorar três ou quatro anos.
Desse tempo, a metade é empregada desenvolvendo a história dentro
da minha cabeça, fazendo anotações à mão em uma infinidade de
caderninhos. Quando acredito já ter o romance inteiro, e sei até o
número de capítulos e do que cada um deles vai tratar, chega o
momento de me sentar diante do computador e começar a escrita em
si. E no trajeto dessa segunda etapa a história se transforma de modo
considerável. Os romances evoluem o tempo todo. São organismos
vivos.
Durante o longo período de execução, você vive a meio caminho
entre sua existência real e a imaginária, entre a cotidianidade e o
romance; mas, à medida que avança no trabalho, a esfera do narrativo
vai se apropriando de um espaço maior. Até que chega um dia em que
o romance já está muito adiante, em que as paredes que separam
ambos os mundos parecem começar a se fundir. Chamo isso de etapa
do funil, porque é como se fosse disposto um funil em cima do
romance, de modo que tudo o que ocorre na vida cotidiana começa a
cair sobre o que você escreve, em uma explosão de coincidências.
Ainda que, olhando bem, pode ser que esteja acontecendo justamente
o contrário; na realidade, o fenômeno parece mais como uma
inundação: o romance cresce e cresce até encharcar o território do
real.
Por exemplo: eu estava escrevendo O coração do tártaro, cujo título
se refere ao inferno greco-romano, o centro do Hades, ali onde brilha
escura a lagoa Estige e late desesperado o cão Cérbero; já alcançara a
reta final do romance, os últimos e intensos meses do funil, e um dia
fui ao dentista e, na sala de espera, folheei entediada uma dessas
horrorosas revistas médicas cheias de propagandas dos laboratórios
farmacêuticos. Pois eis que, na metade do volume, destacado entre os
anúncios de remédios contra as hemorroidas, me deparei,
precisamente, com uma reportagem de página dupla sobre o Tártaro,
cheia de citações dos autores clássicos.
Esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Se sua personagem tem
uma cicatriz no rosto, de repente você não para de encontrar homens
com bochechas cortadas; se você está escrevendo sobre um alpinista,
no aniversário de uma amiga você conhece um senhor que acabou de
chegar ao topo do Annapurna. O romance transborda de tal modo
seus limites de papel, ou a realidade se empenha em copiar a fantasia,
que eu não acharia nada estranho se fosse redigir uma cena sobre uma
revolta na selva e, ao erguer a cabeça do teclado, visse passar na frente
da janela um elefante trotando.
Esse frenesi de coincidências não é o único mistério que rodeia a
escrita. Há muitos enigmas desse teor, mas uma das peculiaridades
mais curiosas é a ditadura dos fantasmas. Os fantasmas de um escritor
são aqueles personagens ou detalhes ou situações que perseguem o
autor, como cães de caça, ao longo de todos os seus livros. São
imagens que para o romancista têm um conteúdo simbólico profundo,
um significado que normalmente ele não entende, porque os
fantasmas são arteiros, além de obcecados, e se ocultam com tanta
manha entre as dobras do subconsciente que o escritor com
frequência nem sequer é capaz de saber que estão lá; e assim, pode
acontecer, por exemplo, que um autor costume incluir nos seus livros
personagens coxos, mas que não tenha se dado conta de que faz isso.
No seu celebérrimo parágrafo de García Márquez: História de um
deicídio sobre a origem da narrativa, o grande Vargas Llosa diz que a
vontade de criar nasce da insatisfação diante da vida: “Esse homem,
essa mulher, em um dado momento se viram incapacitados de admitir
a vida tal como a entendiam em seu tempo, sua sociedade, sua classe
ou sua família, e se descobriram em discrepância com o mundo”. Ele
chama as causas ou razões que alienam o escritor do seu entorno de
“os demônios do romancista”. E acrescenta esta frase maravilhosa: “O
processo de criação narrativa é a transformação do demônio em tema”.
Os fantasmas fazem parte desses demônios; são os diabinhos mais
subterrâneos, os mais mascarados, os mais revoltosos. Os fantasmas
são como parasitas da imaginação.
Sempre senti um fraco especial por anões. Pelos deformados de
cabeça achatada; e pelos perfeitos liliputianos mínimos. Sinto-me
identificada com eles de maneira estranha; eles me comovem, me
agradam, eu os aprecio. Coleciono frases sobre anões, como a famosa
de Augusto Monterroso: “Os anões têm uma espécie de sexto sentido
que lhes permite se reconhecer à primeira vista”; e fotos de anões,
como o emocionante retrato de Lucía Zárate, uma liliputiana do
século XIX que era exibida nos circos, e cujo rosto ferido pela dor foi
outra das sementes de Bella y oscura. Também recopilo anedotas de
anões, como esta história supostamente verdadeira que o genial
jornalista mexicano Pedro Miguel me contou: um cara se separou e
cedeu o domicílio familiar para sua ex-mulher. Ele estava precisando
de um lugar para ficar e, por economia, foi embora para um vilarejo
perto da cidade e alugou uma casa. Era uma construção de um andar
que pertencera antes a um anão e, no interior, tudo conservava as
dimensões mínimas: tetos baixos, dintéis para proteger a testa, lavabo
à altura dos joelhos. E o homem dizia: “Não me bastava que acabei de
me separar e estou tão deprimido, ainda preciso andar agachadinho…”.
Faz uns dez anos, depois de escrever Bella y oscura, descobri que
meus textos estavam cheios de anões. Não pude deixar de perceber
isso, porque a protagonista desse romance é uma liliputiana chamada
Airelai, um dos personagens que mais amo de todos que imaginei.
Assombrada por não ter notado essa assiduidade dos pequenos,
comecei a refletir sobre o porquê dessa mania. Minha laboriosa razão
propôs várias explicações razoáveis, como, por exemplo, o fato de que
o anão é um ser crepuscular e fronteiriço, no meio do caminho entre a
infância e a maturidade, uma indeterminação temporal que, pelo
visto, simboliza muito para mim. Com essa e outras ajuizadas
considerações arquivei o assunto, no convencimento de que, uma vez
descoberto o fantasma, e depois de tê-lo instalado no nível consciente,
não voltaria a imaginar mais nenhum anão, porque já dissemos que a
criação precisa sair lá do fundo, fluir sem razão e sem travas do
informe. “A escrita vem do âmago do artista”, diz Martin Amis.
Passaram-se lentamente quatro anos e durante todo esse tempo
estive idealizando e construindo o romance seguinte, A filha do
canibal. Enfim, terminei a obra, entreguei o original, corrigi as provas,
lancei o livro e comecei a divulgação. Dois ou três meses depois da
publicação, um belo dia, para meu total espanto, percebi que tinha
feito de novo. Que enfiara um anão mais uma vez no livro. Lucía, a
protagonista do romance, é uma mentirosa compulsiva. Ela começa o
livro descrevendo a si mesma como uma gata, alta, de olhos cinza;
mas, dois capítulos à frente, ela diz que tinha mentido, que não é uma
mulher bonita, mas comum; e que não é exatamente alta, porém mais
para baixa; bom, muito baixinha. Tão extremamente baixa, na
realidade, que precisa se vestir na seção de crianças das lojas de
departamento. Eu havia passado quatro anos construindo essa
personagem sem me dar conta de que, mais uma vez, os anões tinham
escalado ao papel protagonista. Isso pode dar uma ideia da
impetuosidade dos fantasmas, do seu caráter tirânico e indomável.
Eles fazem o que bem entendem com você.
No meu romance seguinte, O coração do tártaro, amedrontada pelo
empenho liliputiano, decidi mencionar de forma consciente um anão,
para ver se desse modo conjurava sua aparição clandestina. Assim, no
final do romance, citei Perry, um dos assassinos reais de A sangue frio,
o maravilhoso livro de Truman Capote. Perry, que sofrera um acidente
na adolescência, tinha as pernas muito curtas: quando se sentava, elas
balançavam no ar sem roçar o chão. Era uma espécie de anão, na
realidade um substituto traumático dele.
E de novo estive longos anos escrevendo o livro, de novo corrigi as
provas, de novo passei pela barafunda de publicá-lo. Estava havia um
mês fazendo a divulgação quando fui a um programa de rádio. “Já
encontrei seu anão neste livro”, me cutucou a jornalista Consuelo
Berlanga, com quem eu falara sobre o assunto dos fantasmas no
romance anterior. “Sim, claro”, respondi, “eu mencionei Perry de
maneira consciente e proposital.” E então a lúcida Consuelo me
deixou estupefata: “De que Perry você está falando? Sua anã é
Martillo”. Ela tinha razão; Martillo é uma personagem secundária,
uma adolescente suburbana diminuta e doentia, que parece uma
menina, mas não é; que vive na ilegalidade como se fosse adulta, mas
ainda não cresceu. É uma anã perfeita e eu também não tinha tido
consciência da sua natureza.
No outono de 2000, fui à cidade alemã de Colônia para participar
de um festival literário. Certa noite, estava no meu quarto estreito e
limpo (todos os hotéis econômicos da Alemanha têm uns quartos tão
estreitos e tão limpos como a cela de um monge), deitada vestida
sobre a cama e zapeando entediada a TV, porque não entendo uma
palavra de alemão e todos os canais eram germanos, quando aconteceu
algo extraordinário. No segundo canal, estava passando um
documentário; era um bom documentário, isso era evidente pela
impecável elaboração da imagem. Tratava-se, ou isso acreditei
entender, dos circos na Alemanha durante os anos 1930, sob o
nazismo. Maravilhosas filmagens em preto e branco e abundante
material fotográfico mostravam o ambiente circense, com mulheres
barbudas, gigantes cabeçudos, anões vestidos de palhaços, seres muito
afastados do terrível ideal físico da raça ariana e, por conseguinte,
todos eles, presumivelmente, material descartável para Hitler.
E de repente eu a vi.
Me vi.
Era uma liliputiana perfeita, loira, muito coquete, uma indubitável
estrela do espetáculo, porque falavam muito dela e porque aparecia em
uma infinidade de fotos e filmes, com sua cabeleira lisa e apurada, sua
coroa ou diadema na cabeça, suas pulcras roupinhas de equilibrista
circense, o corpete de cetim bem ajustado, a sainha curta e esticada
dos lados, como um tutu de bailarina. Tinha um tipo muito
harmônico, fino, como uma menina, e um rosto com traços regulares.
Poderia ter sido confundida com uma criança, não fosse algo
definitivamente deslocado no seu semblante, a idade sem idade do
liliputiano, essa inquietante expressão de velha no rosto pueril, o
sorriso sempre tenso demais, os olhos desconjuntados sob
sobrancelhas de falsa loira. Tinha um aspecto muito triste com sua
fantasia de festa. Dava um pouco de angústia. Dava um pouco de
medo.
E essa anã era eu. O reconhecimento foi instantâneo, um raio de
luz que queimou meus olhos. Tenho uma foto dos meus quatro ou
cinco anos em que sou exatamente igual à liliputiana alemã. Foi uma
breve época na qual minha mãe (que eu amo muito, apesar disso)
resolveu clarear meu cabelo e me deixar loira; de maneira que eu tinha
a cabeleira igual à da anã, também esticada para trás ou com diadema,
e com as mesmas pupilas pretas e sobrancelhas retintas. Eu vestia
igualmente roupinhas curtas de cancã e tules, parecidas em tudo com
as dela. Mas o mais espetacular é a expressão, o sorriso forçado um
pouco sinistro, um rosto de velha acaçapado atrás do rosto infantil, os
olhos sombrios. Não sou eu, sou ela.
Essa foto minha sempre me espantou. “Mas você está muito
linda!”, diz minha mãe (e por isso a amo tanto, dentre outras razões:
por esse amor cego inabalável). Mas eu não entendia a estranha
criança do retrato, não a reconhecia, não conseguia assumi-la.
Suponho que na negrura do meu olhar despontava já, sem que
ninguém soubesse, a doença: padeci de tuberculose dos cinco aos
nove anos. Mas não era isso que me angustiava no instantâneo, era
algo a mais, algo indefinível, como o vago eco de uma dor que você
sabe que sofreu e não consegue lembrar. No entanto, agora que sei
que ela é uma anã, me reconciliei totalmente com a menina da foto.
Inclusive a coloquei, emoldurada, sobre a mesa do meu escritório,
aqui na frente. Tentei localizar o documentário sem sucesso: queria
tirar um instantâneo dela, da outra, para pô-lo junto do meu: e
traduzir o programa, para ver se diziam quem foi essa comovente
liliputiana no inferno nazista; se acabou na câmara de gás, como tantas
outras criaturas “não perfeitas”, ou se a utilizaram para seus terríveis
experimentos médicos, uma possibilidade ainda mais aterrorizante
que, infelizmente, cabe em cheio no possível. Quem sabe que tragédia
ela viveu, vivemos. Afinal de contas, a frase de Monterroso possui um
significado literal: “Os anões têm uma espécie de sexto sentido que
lhes permite se reconhecerem à primeira vista”. É verdade. Ele tem
razão. Comigo aconteceu exatamente isso em um hotel de Colônia.
Sete

Por que um escritor se perde? O que acontece para que um


romancista maravilhoso afunde para sempre no silêncio como quem
afunda em um pântano? Ou algo ainda pior, mais inquietante: a que se
deve o fato de que um bom narrador comece de repente a escrever
obras horríveis?
Muitos, sem dúvida, se curvam diante do fracasso. O ofício literário
é paradoxal demais: é verdade que você escreve em primeiro lugar
para si mesmo, para o leitor que você carrega no seu íntimo, ou
porque não tem outra saída, porque é incapaz de suportar a vida sem
entretê-la com fantasias; mas, ao mesmo tempo, você precisa, de
maneira indispensável, ser lido; e não apenas por um leitor, por mais
requintado e inteligente que seja, por mais que você confie no seu
critério, mas por mais pessoas, muitas mais, para dizer a verdade,
muitíssimas mais, uma horda robusta, porque nossa fome de leitores é
uma avidez profunda que nunca se sacia, uma exigência sem limites
que beira a loucura e que sempre me pareceu muito curiosa. Vai saber
de onde é que sai essa necessidade absoluta que torna todos os
escritores eternos indigentes do olhar alheio.
Saia de onde sair, afinal, a verdade é que precisamos de certo
reconhecimento público; e não só para continuar escrevendo, mas
inclusive para continuar sendo. Quero dizer que um escritor
fracassado costuma se tornar um monstro, um louco, um doente. Seja
como for, um ser infinitamente infeliz. Como aconteceu, por
exemplo, com Herman Melville, o autor do maravilhoso Moby Dick,
um romance que hoje, um século e meio depois da sua publicação,
continua sendo editado e reverenciado, mas que na sua época não
agradou absolutamente ninguém, nem sequer os amigos mais fiéis de
Melville, que consideraram que era um livro dos mais estapafúrdios,
com todas aquelas descrições dos hábitos das baleias espermáticas.
Moby Dick não vendeu nem duas dúzias de cópias e foi objeto de vaia
geral; Melville nunca se recuperou desse fracasso e, embora tenha
vivido quase mais quarenta anos, mal voltou a escrever: só um
romanção ilegível, uns tantos poemas e alguns textos breves, como
sua genial novela Bartleby, o escrevente, que demonstra que seu talento
continuava intacto apesar do desterro de silêncio em que vivia. E
apesar do seu desespero crescente, da sua frustração, da ferocidade
com a qual arrastava sua dor de escritor incompreendido. Porque
Melville tornou sua própria vida e a dos que tinha próximos
impossível. Quando, aos quarenta e sete anos, se viu obrigado a
aceitar um miserável emprego de inspetor de alfândega, tão tedioso
como mal pago, para poder manter a família, a obviedade do seu
fracasso como romancista deve ter estourado como um obus na sua
cabeça. Ele ficou meio maluco, consumido pela ira, atuando com
enorme violência, talvez inclusive batendo nos filhos e na mulher, que
pensou seriamente em se separar dele: e estamos falando de 1867, uma
época em que os casais simplesmente não se separavam, o que pode
nos dar uma ideia da dimensão do inferno em que viviam. De fato, foi
também em 1867 que o filho mais velho de Herman se trancou no
quarto e estourou os miolos com um tiro. Chamava-se Malcolm e
tinha dezoito anos: talvez tenha se suicidado para fugir do ambiente
doméstico irrespirável. Esses são os horrores que podem chegar a
acontecer quando um escritor se sente frustrado e derrotado. O que
me faz pensar que quem sabe sejamos uns loucos furiosos mais ou
menos dissimulados e que não deixaremos de manifestar nossa
loucura enquanto a sociedade continuar indo atrás de nós.
Outros autores fracassados, provavelmente a maioria, dirigem a
violência da sua dor contra si mesmos e se desajustam por completo.
Estou pensando no pobre Robert Walser, um escritor suíço cinco anos
mais velho do que Kafka e autor de romances tão interessantes como
Os irmãos Tanner. Hoje é um escritor cultuado, um nome importante,
embora não popular, na literatura contemporânea em alemão; mas a
verdade é que, enquanto esteve vivo (nasceu em 1878, morreu em
1956), ninguém lhe deu a menor bola. Sua tragédia, horrorosa e
ridícula ao mesmo tempo, aparece muito bem contada no livro O
autor e seu editor, de Siegfried Unseld, que foi o último editor de
Walser na Alemanha e conheceu o escritor nos seus derradeiros anos.
Robert Walser morou em Zurique de 1896 a 1906; durante essa
década, mudou de emprego sete vezes, e de casa, dezessete. Com
vinte anos, era auxiliar de escritório; trabalhou em bancos e
companhias de seguro, mas o que ele queria, o que sempre quis,
desde que aos catorze anos escreveu sua primeira obrinha, era ser
escritor. Em 1902, começou a publicar pequenas coisas em revistas e a
levar seus textos aos editores, que os rejeitaram. Naquela época, ainda
cheio de esperanças, escrevia: “A intranquilidade e a incerteza, assim
como a intuição de um destino singular, talvez tenham me levado a
tomar a pena para tentar refletir a mim mesmo”. Que parágrafo
interessante, e como descreve bem essa pulsão idiota que leva todos
nós à escrita. Primeiro, a intranquilidade e a incerteza, quer dizer, a
falta de concordância com o entorno, o incômodo, a inadaptação à
qual também se referia Vargas Llosa; depois vem a “intuição de um
destino singular”, frase comovedoramente vaidosa (da vaidade do
escritor falaremos mais tarde) e patética no seu desconhecimento do
humano, porque todas as pessoas, literatos ou não, percebem essa
ânsia da singularidade do nosso destino, o grito do eu que se sente
único. E, por último, a tentativa de refletir a si mesmo, porque,
efetivamente, a gente escreve para se expressar, mas também para se
olhar no espelho e poder se reconhecer e se entender.
Por fim, em 1905, o jovem Walser conseguiu que seu primeiro livro
fosse publicado e, inclusive, que assinassem um contrato para o
segundo. Esse feito, que deve ter sido um dos momentos mais felizes
da sua vida, implicou, no entanto, sua perdição. Walser,
entusiasmado, deixou seu trabalho como auxiliar de escritório assim
que assinou o contrato, decidido a se dedicar profissionalmente à
escrita, mesmo antes de que fosse lançada sua primeira obra, e sem
levar em conta o sucesso que poderia ter. Ou melhor, que não teve,
pois ela foi um fracasso completo. Recebeu ótimas críticas, uma delas
assinada por Herman Hesse, mas o livro, com uma tiragem de mil e
trezentos exemplares, vendeu apenas quarenta e sete cópias, e o
editor se acovardou e decidiu não cumprir o acordo, não publicando a
segunda obra. “É uma verdadeira desgraça quando um escritor não faz
sucesso com seu primeiro livro, como aconteceu comigo”, escreveu o
irritado, mas ainda arrogante Walser, “porque então qualquer editor
se acha capacitado para lhe dar conselhos de como alcançá-lo pelo
método mais rápido. Essas melodias sedutoras destruíram mais de
uma natureza fraca.”
Na realidade, ele não era nada forte, como a vida se encarregaria de
lhe demonstrar de modo cruel; e também não sei se é completamente
verdade o que esse parágrafo orgulhoso implica, a saber, que Walser
teria podido escrever um livro de sucesso se tivesse querido se
rebaixar a isso. É verdade que há obras horríveis e horrivelmente
fáceis, que são vendidas como rosquinhas entre um setor do público
leitor pouco exigente, mas escrever um romance muito ruim e muito
popular é algo que também não está ao alcance de qualquer um, é
preciso ter uma desfaçatez especial ou ser verdadeiramente um pouco
simplório, é preciso não se importar em ser um trapaceiro e bajular os
instintos baixos das pessoas, e isso nem todo mundo sabe fazer. Quer
dizer, tenho a sensação de que o bom escritor só sabe escrever bem,
da mesma maneira que o ruim só é capaz de escrever mal. Cada um
escreve como pode, porque a literatura é mais uma das funções
orgânicas, por exemplo, suar, e a gente não controla o suor, há pessoas
que pingam ao menor esforço e as que sempre se mantêm secas. Para
mim, Walser nunca teria conseguido escrever uma obra popular por
mais que se esforçasse; e, de fato, acho que mais tarde ele tentou, sem
sorte alguma, é claro.
Dois anos mais tarde, em 1907, conseguiu que outra editora
publicasse Os irmãos Tanner; e depois lançou outro romance, O
ajudante, que foi o maior sucesso da sua carreira: três edições de mil
exemplares cada uma. Tudo isso, que não é grande coisa, foi
conseguido com grandes esforços, e acabou com sua magra reserva de
sorte. Os editores começaram a perder seus manuscritos (sinal do
pouco interesse que ele despertava), e os outros livros que publicou,
poemas e um romance, foram fracassos absolutos. Uma após a outra,
as editoras iam se livrando dele como uma batata quente. Logo se
encontrou em uma situação muito pior do que no início da sua
carreira: antes não queriam publicá-lo porque não o conheciam, mas
agora não queriam publicá-lo porque o conheciam. Walser destruiu
três romances porque não encontrou quem os editasse. Em 1914, um
manuscrito seu conseguiu ganhar o Prêmio Frauenbund, que
acarretava a publicação, e de fato o livro, um volume de prosas
poéticas, saiu às ruas. Mas vendeu tão pouco que esse novo editor
também o abandonou.
Desesperado, o pobre Walser enviava agônicas cartas a todos os
diretores de editoras, tentando vender suas obras:

Acabei de terminar um novo livro em prosa intitulado


Kammermusik, no qual encadeei, com esmerado trabalho, vinte e
sete peças […]. Acredito poder dizer que o livro forma um todo
sólido, redondo e atraente […]. Me agrada pensar que posso lhe
recomendar seriamente a publicação de Kammermusik, pois
considero que é um dos meus melhores livros.

Ainda bem que hoje existem os agentes e que o escritor não é


obrigado a se rebaixar pessoalmente de tal modo! Embora as agências
também não queiram escritores como Walser. A carta é a versão
literária do pregão do vendedor ambulante: por favor, compre este
livro tão bom, tão bonito e tão barato… Que diferente esse texto de
súplica, humilhado e ansioso, daquele primeiro parágrafo ainda
orgulhoso sobre as naturezas fracas. No pedregoso caminho, Robert
Walser fora deixando a dignidade, porque o escritor, sobretudo o
escritor bom, está curiosamente disposto a se desonrar pela sua obra,
se necessário.
E é claro que as humilhações eram contínuas. Por exemplo: como
não tinha um tostão, um amigo conseguiu para ele uma conferência
no Círculo de Leitura. Para não gastar dinheiro, foi a pé de Biel, onde
morava, até Zurique, onde tinha de falar. O presidente do Círculo,
que não conhecia esse escritor estapafúrdio, pediu uma prévia da
conferência; Walser foi mal e o presidente o substituiu por outro
conferencista, dizendo ao público que o autor tinha ficado doente.
Na realidade, o estavam deixando doente. Passou cinco anos sem
poder publicar nada, e já nem sequer aceitavam seus textos nas
revistas. Escreveu com amargura a Max Brod: “Os escritores, que aos
olhos dos editores não passam de um bando de esfarrapados, deveriam
tratá-los como porcos tinhosos”. Em 1929, foi internado em uma
clínica psiquiátrica e sentenciaram que ele era esquizofrênico.
“Hölderlin pensou que era oportuno, quer dizer, prudente, renunciar
à sua sanidade com quarenta anos. Será que acontecerá o mesmo
comigo?”, perguntava-se Walser. E anotou também: “As pessoas não
têm confiança no meu trabalho (querem que eu escreva como Hesse).
E essa é a razão pela qual acabei na clínica”. Ainda assim, e apesar de
estar confinado no hospital, continuou escrevendo durante quatro
anos: oitenta e três peças de prosa e setenta e oito poemas. E também
anotou pensamentos tão amargos como este: “Os críticos, conscientes
do seu poder, enroscam-se em volta dos autores como uma jiboia,
amassando-os e asfixiando-os como e quando bem entendem”. Mas,
em 1933, foi transferido de hospital psiquiátrico, e no novo não
escreveu mais. Morreu ali vinte e três anos mais tarde, engolido pelo
silêncio.
Que o fracasso adoece, que o fracasso mata, é algo fácil de
entender; mas o caso é que o sucesso também pode acabar com você,
como acabou com Truman Capote. Eis aqui um perfeito exemplo de
um escritor enorme que perdeu a cabeça pelo sucesso e acabou
escrevendo coisas horríveis. Capote tinha um talento descomunal;
seus contos me deixam louca, acho seu Bonequinha de luxo perfeito,
seu A sangue frio é um disparo no coração. Como é possível que um
autor tão potente possa ter se deteriorado tanto a ponto de escrever os
textos medíocres de Súplicas atendidas, seu último e inacabado livro?
Provavelmente porque traiu a si mesmo; e porque se angustiou.
O sucesso angustia, porque não é um objeto que se possa possuir
nem trancar em um cofre. De fato, o sucesso é um atributo do olhar
dos outros, que, de repente, e de maneira bastante arbitrária, na
realidade, decidem te contemplar com placidez e agrado, outorgando
a você o incerto presente de ser considerado bem-sucedido. Uma vez
situados sob esse feixe de luz, procedente do olhar dos outros,
costumamos desejar que o holofote não se apague, e isso nos deixa em
uma situação de debilidade e dependência, pois não sabemos muito
bem o que temos de fazer para que o refletor continue brilhando.
Acho que essas tribulações, que me parecem comuns a qualquer tipo
de sucesso, são ainda piores no caso dos escritores; primeiro porque,
como já dissemos, somos uns coitados especialmente necessitados do
olhar alheio e, em segundo lugar, porque quando começamos a
escrever para tentar agradar esse olhar em vez de seguir os ditados do
daimon, todo o nosso possível talento, pequeno ou mediano, vai pelo
ralo, e o que escrevemos se torna lixo.
E uma última reflexão sobre por que triunfar pode destruir de
maneira superlativa os romancistas; porque o sucesso, na sociedade
midiática de hoje, não está mais relacionado com a glória, mas com a
fama; e a fama é a versão mais barata, instável e artificial do triunfo. A
fama, “essa soma de mal-entendidos que se concentram ao redor de
um homem”, como dizia Rilke, é um vertiginoso jogo de espelhos
deformantes que te devolvem milhões de imagens, todas elas falsas e
alienantes, e essa multiplicação de eus mentirosos pode se mostrar
especialmente danosa para alguém que, como já dissemos que
acontece com o romancista, é um ser que tem as costuras da sua
identidade um pouco rasgadas e que tende a se sentir dissociado.
Isso foi o que aconteceu com Capote. Ele se descosturou.
Truman desejou demais o sucesso. Desde pequeno ansiou com
desespero ser rico e famoso, e esteve disposto a vender sua alma para
conseguir isso. E, de fato, a vendeu; já era muito conhecido (triunfou
como escritor sendo muito jovem) quando empreendeu a que seria
sua opera magna, a reportagem romanceada A sangue frio, uma
reconstrução magistral do absurdo assassinato de uma família de
agricultores, o pai, a mãe e os filhos adolescentes, pelas mãos de dois
rapazes de uns vinte anos, meio idiotas, com uma vida tão triste e tão
precária que nem sequer tinham chegado a desenvolver de modo
suficiente sua consciência do mal. Capote investigou o caso durante
três anos; conheceu os assassinos, que estavam na prisão condenados
à morte, e ficou íntimo deles. Escreveu a obra quase toda e depois
esperou alguns anos até executarem os criminosos, para acrescentar o
capítulo final e publicar o livro. Durante todo esse tempo, Capote se
encontrava e se correspondia com os condenados, que lhe enviavam
cartas angustiadas pedindo que intercedesse por eles diante das
autoridades, que pedisse o indulto, que ajudasse a salvar sua pele. Ele
respondia com palavras educadas e assegurou que chegara a sentir
carinho por eles, mas no fundo mais obscuro de si mesmo estava
desejando que os juízes rejeitassem todos os seus recursos e que os
matassem de uma vez, para poder lançar seu livro e desfrutar da
glória, porque ele sabia que era o melhor que tinha feito. Capote
escreveu à sua amiga Mary Louise: “Como possivelmente você soube,
a Suprema Corte rejeitou as apelações (pela terceira maldita vez),
então pode ser que logo algo aconteça em um sentido ou outro. Já me
decepcionei tanto que quase não me atrevo a confiar. Mas me deseje
sorte!”. Truman não fez nada por Dick e Perry, e o certo é que ficou
horrorizado, mas também se regozijou quando por fim foram
enforcados; e não acredito que essa miséria moral possa ser alcançada
impunemente.
Esta deve ter sido, portanto, uma das causas da queda de Capote:
sacrificou a vida de dois homens ao bárbaro idolozinho da sua própria
fama, e isso é de deixar o ânimo revirado. Decerto nunca entendi
muito bem por que ele se enfiou nessa lixeira emocional e por que
esperou até o cumprimento da pena capital para publicar o livro, pois
A sangue frio não precisava terminar com a execução para ser uma obra
redonda; de fato, o que Truman escreveu depois da morte dos
assassinos é, de longe, a pior parte do relato, que poderia ter
terminado (e teria ficado melhor) com Dick e Perry no corredor da
morte. Mas, provavelmente, ele se perdeu de novo na ambição, quer
dizer, no excesso de ambição: Capote quis fazer O Melhor Livro do
Mundo, e deve ter enfiado na cabeça que, para ser perfeito, precisava
terminar com a agonia dos assassinos, da mesma maneira que tinha
começado com a agonia dos agricultores. Mas ele se enganou.
Enganou-se eticamente e, o que para ele era ainda pior, também
literariamente.
Desde o primeiro momento da publicação, A sangue frio foi um
tremendo sucesso. Capote estava no melhor da vida, tinha escrito um
livro maravilhoso, as pessoas o compravam que nem água, o dinheiro
entrava aos montes, ele tinha se tornado aquele garoto riquíssimo e
famosíssimo que sempre quis ser. E o que aconteceu então?
Aconteceu que ele se afundou com muito alarde. Viveu mais de nove
anos depois da publicação de A sangue frio, mas durante esse tempo
publicou o punhadinho de contos de Música para camaleões. A todo
mundo dizia que estava trabalhando em um romance monumental
intitulado Súplicas atendidas, o romance perfeito que o transformaria
no novo Proust, mas quando ele morreu foram encontrados só três
capítulos e, é claro, não eram dignos nem de Proust nem do próprio
Capote. Nesses anos finais de bloqueio e angústia, Truman se
transformou em um alcoólatra e ingeriu todos os comprimidos do
mundo. Estava drogado, embrutecido, enlouquecido, desesperado.
Morreu aos cinquenta e nove anos, tão deteriorado como um
octogenário malcuidado. Pouco antes do fim, declarou:
Mil vezes me perguntei: por que foi que isso me aconteceu? O que
fiz de errado? E acho que alcancei a fama jovem demais. Forcei
demais, cedo demais. Eu gostaria que alguém escrevesse o que de
verdade significa ser uma celebridade […] só serve para que
aceitem seu cheque em uma cidade. Os famosos às vezes se tornam
tartarugas viradas para cima. Todo mundo pega na tartaruga: a
mídia, pretensos amantes, todo mundo, e ela não consegue se
defender. É muito difícil para ela virar-se novamente.

(Tudo isso é recolhido por Gerard Clarke na sua incrível biografia


sobre Capote).
Pois é, com certeza a fama teve sua parte de culpa na destruição de
Capote, assim como o supremo egocentrismo com o qual ele
despachou Dick e Perry. Mas, além disso, houve um terceiro motivo
pelo qual Truman se quebrou; e é que, depois do enorme sucesso de
público e de vendas de A sangue frio, os críticos, essas estranhas
criaturas com frequência tão invejosas, tão equivocadas e tão esnobes,
decidiram que algo que triunfava não podia ser bom nem digno dos
seus gostos requintados e, consequentemente, não deram a Capote
nem o National Book Award nem o Pulitzer, os dois prêmios mais
prestigiosos do ano. De fato, depois se soube que um dos jurados do
National, Said Maloff, crítico da Newsweek e uma dessas jiboias às
quais Walser se referia, convenceu os outros jurados de que o prêmio
deveria ir para um livro menos “comercial” do que A sangue frio. No
entanto, alguns anos mais tarde não tiveram problema algum em
outorgar ambos os prêmios a Norman Mailer por Os exércitos da noite,
um livro medíocre que imita de algum modo o tratamento realista de
A sangue frio.
Não resta dúvida de que o tratamento que Capote recebeu por
parte da crítica oficial foi estúpido e injusto, mas, por outro lado,
Truman deixou que esse sucesso miserável o afetasse demais. Isto é,
enfiou-se nesse poço sem fundo da vaidade que nunca se sacia, com
exigências intermináveis, e não foi suficiente o sucesso monumental
que seu livro tivera. Capote queria mais. Queria tudo. E querer tudo é
igual a não querer nada; é algo tão grande que não se pode abarcar.
“Quando vi que não me dariam aqueles prêmios, disse a mim mesmo:
vou escrever um livro que deixará todos envergonhados de si mesmos.
Verão o que um escritor de verdade, dotado de verdade, consegue
fazer quando se dedica”, explicou anos depois Capote. E aí está
definido todo o seu inferno. A vaidade do escritor não passa na
realidade de um vertiginoso buraco de insegurança; se a gente se enfia
nesse abismo, não deixa de descer até chegar ao centro da Terra. Se
cai no poço, dá no mesmo que dois milhões de leitores te digam que
adoraram seu romance: basta que um crítico cretino da Folha Paroquial
de Cafundó escreva que seu livro é horroroso para que você se sinta
pra lá de angustiado. Eu não sei de onde vem essa fragilidade idiota,
essa necessidade constante de um olhar que te aceite, mas é
semelhante à cegueira do apaixonado que se sente só, infeliz e mal-
amado quando o objeto do seu amor não lhe dá bola, embora tenha ao
seu redor vinte mulheres que estão perdidamente apaixonadas por
ele; mas essas ele nem leva em consideração, essas não contam. Seja
como for, Capote, para conseguir o amor impossível da crítica
esquiva, decidiu fazer um livro maravilhoso que a deixasse pasma,
enganando-se em dobro: primeiro, porque pôs a barra tão alto que
tudo o que escrevesse necessariamente lhe pareceria insuficiente; e
segundo, porque tentou escrever o que supunha que os críticos
queriam ler, em vez de confiar no seu daimon. E sabemos que essa é a
melhor maneira de se perder.
Mas o sucesso ou o fracasso não são as únicas causas que destroem,
silenciam ou idiotizam um narrador. O poder, como vimos antes,
também corrompe facilmente os escritores. Tenho a sensação de que a
gente não pode escrever bem se transforma a vida em uma mentira; há
autores que na sua existência foram uns verdadeiros miseráveis e, no
entanto, produziram obras maravilhosas, mas provavelmente não
mentiam para si mesmos: deviam ser malvados, mas consequentes;
quer dizer, é possível que a mentira seja o verdadeiro antídoto da
criação. Embora talvez seja o contrário: quem sabe o que acontece é
que sua vida vai por água abaixo quando você transforma sua obra em
uma mentira.
Sem dúvida há muitas razões para que um romancista emudeça.
Enrique Vila-Matas investiga o tema em um livro fascinante, Bartleby e
companhia, no qual divide os autores entre escritores do sim e
escritores do não; e estes últimos terminam mergulhados no silêncio.
Por que será que deixam de escrever os muitos autores que deixam de
escrever? “É que o tio Celerino, que era quem me contava as
histórias, morreu”, desculpava-se Juan Rulfo quando lhe perguntavam
porque não publicava nenhum outro livro. E ele devia ter razão:
morreu ou se calou quem sussurrava ficções dentro da sua cabeça.
Todos nós, narradores, temos um tio Celerino dentro da gente; e
tomara que ele não morra nunca.
Mas foi o argentino César Aira que, no seu lúcido livrinho
Cumpleaños [Aniversário], fez a reflexão que me parece mais atinada
sobre por que um escritor de repente é atacado pelo desânimo, pelo
bloqueio, pelo desalento, pela seca (como dizia Donoso), pela mudez
definitiva ou passageira. Concordemos primeiro, para entender a
análise de Aira, que romancear consiste em grande medida em vestir
narrativamente o que você conta, em inventar mundos tangíveis. O
Prêmio Nobel V. S. Naipaul explicou isso muito bem a Paul Theroux
quando lhe disse: “Escrever é como praticar prestidigitação. Se você
se limita a mencionar uma cadeira, evoca um conceito vago. Se você
diz que está manchada de açafrão, de repente a cadeira aparece, torna-
se visível”. Pois bem, Aira já escrevia fazia algumas décadas quando,
perto dos cinquenta, começou a sentir essa falta de vontade criativa
que tanto se parece com uma doença física. E explica em Cumpleaños:

Com o tempo, percebi onde estava o problema: no que se chamou


de a invenção dos traços circunstanciais, quer dizer, os dados precisos
do lugar, a hora, as personagens, a roupa, os gestos, o cenário
propriamente dito. Começou a me parecer ridículo, infantil, esse
detalhamento da fantasia, essas informações de coisas que na
realidade não existem. E sem traços circunstanciais não há
romance, ou há, mas abstrato e desencarnado, e não vale a pena.

Exato, é isso. Releio as linhas de Aira e sei que ele roçou algo
substancial. O detalhamento imaginário, ele diz, começou a lhe
parecer ridículo e infantil. Ou, o que dá no mesmo, Aira estava acima
do jogo narrativo, como quem está acima dos cavalinhos do parque de
diversões: como assim, com vinte anos você ainda quer subir no
carrossel? Que coisa ridícula. O envelhecimento é um processo
orgânico bastante lamentável que mal tem um par de coisas boas (uma
é que, se você se esforçar, aprende algumas coisas; e a segunda é que é
a melhor prova de que você ainda não morreu) e muitas outras
péssimas, como, por exemplo, que seus neurônios são destruídos aos
montes, que suas células se deterioram e oxidam, que a gravidade joga
seu corpo na direção da terra-túmulo, debilitando os músculos e
derrubando as carnes. Pois bem, apesar de todos esses pesares, e
outros que não cito, é possível que se some também uma gastura
opressiva da realidade, a perda progressiva da nossa capacidade de
fantasia, o enrijecimento da imaginação. Ou, o que dá no mesmo, a
morte definitiva da criança que levamos dentro de nós. A gente se
torna velho por fora, mas também por dentro; e deve ser por isso que
os leitores, à medida que crescem, vão deixando majoritariamente de
ser leitores de romances e derivam para outros gêneros mais
instalados no realismo notarial, a biografia, a história, o ensaio. Esse
esgotamento senil da imaginação (da criatividade) pode acontecer com
todos os humanos, mas se você é romancista, isso incomoda
duplamente, porque aí fica sem trabalho. Então, a louca da casa, farta
dos seus desprezos de velho bobo, vai embora com o tio Celerino em
busca de cérebros mais elásticos. Para escrever, enfim, cabe continuar
sendo criança em algum lugar de si mesmo, sem crescer demais.
Quem sabe, talvez seja por isso que admiro tanto os anões.
Oito

No seu fantástico livro A sombra de Naipaul, Paul Theroux fala das


duplas de irmãos escritores e diz que, curiosamente, um sempre é
inferior ao outro, o que, pensando bem, é um comentário um pouco
absurdo, porque seria bastante estranho que ambos alcançassem
exatamente a mesma grandeza literária, sem contar que não sei como
se mede essa grandeza ou o que devemos levar mais em consideração
na hora de valorizá-la: o sucesso em vida ou o triunfo póstumo, ou as
honras e os prêmios recebidos, ou a quantidade de leitores, ou a
influência na sua época. A qualidade literária é um dos valores mais
subjetivos e mais dificilmente mensuráveis que conheço; se você é
engenheiro e faz uma ponte, por exemplo, pode estar mais ou menos
certo da sua capacidade profissional na medida em que ela não cair;
mas se você é romancista e escreve um manuscrito, quem garante que
essa resma de páginas impressas, esse monte de mentirinhas infantis e
ridículas, como dizia Aira, são de verdade um romance e têm de
verdade algum sentido? A história demonstra que nem o sucesso em
vida, nem os prêmios, nem, pelo contrário, o fracasso e o
aborrecimento dos críticos têm sido uma prova fiável da qualidade de
uma obra. E nem mesmo o tempo põe as coisas no lugar, como
queremos crer porque precisamos de certezas: às vezes caíram nas
minhas mãos, por puro acaso, romances de autores antigos totalmente
esquecidos e fora de catálogo que, no entanto, achei muito bons e
que, previsivelmente, nunca voltarão do cemitério. Quero dizer que
escrevemos na escuridão, sem mapas, sem bússola, sem sinais
reconhecíveis do caminho. Escrever é flutuar no vazio.
Mas estávamos falando dos irmãos escritores e da teoria
competitiva de Theroux, segundo a qual em toda dupla de autores
fraternais há um que se destaca e outro que vai mal. E, como
exemplos, cita William e Henry James, James e Stanislaus Joyce,
Thomas e Heinrich Mann (que são os que menos se ajustam à sua
proposição, porque Heinrich foi um autor importante), Anton e
Nikolai Tchékhov e Lawrence e Gerald Durrell. Mais uma vez, como
em tantas outras ocasiões, fico atônita com a ausência de nomes de
mulheres, sobretudo considerando que os irmãos escritores mais
célebres da história são irmãs, a saber, as Brontë, que, além disso,
tinham a graça de ser três em vez de duas, ou seja, eram um
verdadeiro derramamento de fraternidade literária. Mas já se sabe que,
embora as coisas tenham melhorado muito, o feminino continua
sendo o rosto ensombrecido da lua.
Desse comentário passageiro de Theroux, interessou-me a
rivalidade entre irmãos que insinua. Mas não acho que seja apenas
uma questão literária; de fato, acho que o âmbito fraternal é o
primeiro lugar onde você se mede como pessoa; para ser você, de
algum modo você tem de ser contra seus irmãos; eles são seus outros
eus possíveis, espelhos de madrasta nos quais você se contempla, e
fico achando que talvez essa espécie de desestruturação pessoal, essa
falta de construção do eu que alguns adolescentes atuais parecem
mostrar, pode se dever também, entre outras coisas, ao fato de muitos
garotos de hoje serem filhos únicos e estarem portanto privados do
reflexo desse outro que poderia ter sido você, mas que é
suficientemente diferente a ponto de permitir sua existência.
Parece bastante natural que os romancistas, sendo como são
inclinados à dissociação, tendem a se obcecar nos seus irmãos, esses
outros eus de similaridade genética, sobretudo se forem gêmeos,
ainda mais se forem gêmeos, muito mais se os irmãos morreram. Na
sua fascinante biografia sobre o escritor de ficção científica Philip K.
Dick, Emmanuel Carrère conta como Dick, um paranoico furioso e
autor de Androides sonham com ovelhas elétricas?, o romance que deu
origem ao filme Blade Runner, viveu a vida toda obcecado pela morte
da sua irmã gêmea, Jane, que morreu de fome um mês e pouco depois
de nascer, pois a mãe não tinha leite suficiente para os dois bebês
(talvez por isso, para expiar sua culpa terrível, Philip tenha sido a vida
toda gordo e barrigudo). O livro narra uma história ainda mais
inquietante sobre Mark Twain, que, já velho, contou a um jornalista
que tivera um irmão gêmeo, Bill, com quem era tão parecido que
ninguém conseguia distingui-los, até o ponto que tinham de amarrar
barbantes coloridos nos pulsos para saber quem era quem. Pois bem,
um dia os deixaram sozinhos na banheira e um deles se afogou.
E, como os barbantes tinham se desamarrado, “nunca se soube qual
dos dois tinha morrido, se Bill ou eu”, explicou Twain placidamente ao
jornalista.
Minha irmã Martina, felizmente, está muito viva, e não somos
gêmeas idênticas, e não nos parecemos nem um pouco. Ela tem três
filhos (dois deles gêmeos), eu não tenho nenhum; ela está felizmente
há vinte anos com o mesmo homem ou, pelo menos, estão sempre
juntos e ela nunca se queixa (é bem verdade que ela fala muito pouco),
enquanto eu tive sei lá quantos companheiros e costumo reclamar de
todos eles. Ela é de uma eficácia colossal, trabalha com competência
como gerente de uma empresa de informática, cuida dos filhos, toca a
casa como um general intendente tocaria uma ofensiva, cozinha como
um chefe premiado pelo guia Michelin, resolve todos os problemas
burocráticos e legais com facilidade inumana e sempre está tranquila e
relaxada, como se sobrassem horas no seu dia; já eu não sei cozinhar,
tenho um escritório que é que nem um chiqueiro, arrumar um
armário me parece um desafio insuperável, nunca lembro onde deixei
os óculos (já cheguei a localizá-los, depois de árduas horas de busca,
dentro da geladeira), corro agitadíssima pela casa e pela vida como se
tivessem roubado um dia do meu calendário e acho que a única coisa
que sei fazer é escrever. Martina é tão corajosa que beira a
inconsciência, enquanto eu sou bastante covarde (mas sempre
acreditei que a valentia física anda de mãos dadas com a falta total de
imaginação, com a incapacidade de representar mentalmente o perigo
e, por conseguinte, quanto mais fantasioso você é, mais medo você
tem). Martina tem um dom para criar ambientes, para construir um
entorno de plácida domesticidade, para fazer que as lâmpadas da sua
casa difundam uma luz dourada e feliz, para conseguir que onde ela
está seja um lar (“Onde Eva estava era o Paraíso”, escreveu o
desconsolado Mark Twain na lápide da sua saudosa esposa, que devia
ser como minha irmã), enquanto eu nunca consegui acertar a
iluminação de nenhuma das minhas casas, sempre há luz demais ou
sombras demais, da mesma maneira que sempre faz calor demais ou
frio demais, estranhas correntes nos corredores, cantos intransitáveis
ou desaprazíveis, e uma sensação geral de lugar de passagem, porque
meu lar é o interior da minha cabeça. Martina, por fim, é uma
fazedora, e eu sou só palavras.
Mas é a palavra que nos torna humanos.
É justamente por isso que as histórias que beiram o silêncio
absoluto me angustiam, o silêncio da falta de comunicação, de uma
incompreensão total que desfaz a convenção salvadora da palavra.
Como a história do papagaio dos atures. No século XVIII, o naturalista
alemão Humboldt viajou para a Venezuela à frente de uma expedição
científica; em dado momento do périplo, chegaram ao vilarejo dos
indígenas atures e descobriram que fora queimado até as bases fazia
poucas semanas pelos agressivos caribes; os restos já começavam a ser
cobertos pela selva. Buscaram e buscaram, mas não havia nenhum
sobrevivente. Só encontraram um confuso papagaio de cores
brilhantes, morando entre as ruínas, que repetia sem parar longas falas
em uma língua incompreensível. Era a fala dos atures, mas não restara
ninguém que pudesse compreendê-la.
Ou esse outro caso, autêntico e terrível, de um mendigo da cidade
de Nova York que foi recolhido da rua pelo serviço social, já não me
lembro bem por quê, talvez tenha desmaiado de frio ou sofrido um
leve atropelamento sem consequências. Seja como for, foi submetido a
uma análise superficial e consideraram que tinha um parafuso a
menos: não falava, não dava sinais de reconhecer nada do que diziam,
bramava e se agitava furiosamente… Um juiz determinou que ele
podia ser um perigo para si mesmo e para os outros, ordenando sua
internação em um hospital psiquiátrico. Passou dez anos trancado em
um manicômio, até que alguém descobriu que não era louco, mas
mudo, analfabeto e romeno, um imigrante ilegal recém-chegado ao
país quando fora detido. Não entendia o que diziam e não conseguia
se expressar, sendo sua fúria a angústia de quem se sabe
incompreendido.
Mas as duas histórias mais atrozes que conheço, ambas verídicas,
são protagonizadas, respectivamente, por uma criança e uma
chimpanzé. O primeiro se chamava Hurbinek e era um menino que
morreu em Auschwitz quando tinha três anos de idade. Estava
sozinho, sem pai nem mãe. Tinha as pernas deformadas e paralisadas,
passara pelas sádicas mãos de Mengele e não sabia dizer nenhuma
palavra, embora não fosse mudo. Talvez não falasse porque ninguém
lhe ensinou. Talvez o tivessem amarrado e martirizado nos
laboratórios durante meses ou anos (o dr. Mengele estava levando a
cabo uma meticulosa pesquisa sobre a dor e fazia testes com crianças
judias). Provavelmente Hurbinek nascera no campo de concentração.
Quer dizer, passou a vida toda no inferno. E não conseguiu sequer
contar o que acontecera, o que fizeram com ele. Essa história terrível
foi incluída por Primo Levi em A trégua, mas fiquei sabendo dela em
El comprador de aniversarios, o demolidor romance de Adolfo García
Ortega.
Quanto à chimpanzé, ela se chamava Lucy e não me lembro bem
de onde era, suponhamos que do Quênia. Ela fora adotada por um
casal de biólogos ingleses, que a recolheram ainda bebê e a criaram
dentro da sua casa como se fosse humana, ensinando-lhe a linguagem
dos surdos-mudos, o que, por si só, não é nada extraordinário, pois
muitos primatas aprendem a entender e usar esse código gestual.
Passaram-se, assim, bastantes anos, talvez quinze ou vinte, e os
biólogos se aposentaram e tiverem de voltar para Londres. Era
impossível levar Lucy com eles, de modo que a deixaram em um
zoológico. Novamente se passaram muitos anos; e depois desse
tempo, um professor de crianças com deficiência, que estava passando
as férias na África, foi visitar o zoológico e se deparou com uma
chimpanzé que, aferrada às grades da sua jaula, fazia gestos absurdos e
frenéticos para todo aquele que se aproximava. O professor, curioso,
também se aproximou; e ficou paralisado ao comprovar que entendia
o que o animal estava dizendo. Era Lucy, que, na linguagem dos
surdos-mudos, pedia desesperadamente para todo mundo: “Me tire
daqui, me tire daqui, me tire daqui…”.
“Que língua ouve o surdo-mudo?”, pergunta-se brilhante e
inquietantemente Barbara Tuchman (Um espelho distante).
“O traumático não é sempre o que faz barulho, mas o que fica mudo”,
diz Carmen García Mallo, amiga e além disso psicanalista. “E a partir
do silêncio faz barulho.”
Martina e eu tínhamos oito anos quando um dia minha irmã
desapareceu. Com exceção dos primeiros meses da minha
tuberculose, que nos separaram, normalmente estávamos sempre
juntas; brincávamos juntas, brigávamos juntas, dormíamos a sesta
juntas, a contragosto, nas longas tardes de verão. Era um fim de tarde
de agosto e estávamos no bulevar da Reina Victoria, nossa rua,
brincando de catar tampinhas de garrafa. Devia ser domingo, porque
meu pai estava com a gente. Ele tinha sentado a uma mesa do
barzinho para beber uma cerveja e ler o jornal. De repente, fiquei com
vontade de tomar um sorvete. Não sei se eu já tinha o dinheiro, não
sei se papai me deu; seja como for, ele deixou que eu fosse comprar.
Martina não queria sorvete. Também não queria vir comigo.
Estávamos aborrecidas, me lembro bem. Sempre nos aborrecíamos
por qualquer coisa. Então andei pelo bulevar empoeirado, entre as
grandes árvores torturadas pela tarde, até a barraquinha dos picolés,
que ficava na outra ponta do passeio, a uns duzentos metros, e
comprei um biscoito com sorvete de creme e morango. Lembro-me
de tudo com precisão e com um estranho distanciamento, como se
fosse um filme visto vinte vezes. E voltei devagar, dando milimétricas
lambidas no sorvete (era preciso chupar esse tipo de sorvete com
muito método para que o perímetro diminuísse de forma equilibrada)
e curtindo o momento. Não sei quanto demorei nisso tudo: quem sabe
uns dez minutos. Quando voltei até o barzinho, Martina não estava.
Não fiquei preocupada, nem mesmo surpresa. Pensei que a bobona
tinha se escondido para me chatear; então nem mesmo olhei à minha
volta para ver onde ela estava, pois não queria que ela me pegasse
procurando. Sentei-me à mesa com meu pai e acabei de devorar meu
sorvete devagar. Muito devagar. Devem ter se passado mais uns dez
minutos. E Martina continuava sem aparecer. Comecei a espiar o
bulevar para cima e para baixo, para ver se a encontrava. Os postes se
acenderam e, com a chegada da luz elétrica, a noite caiu de supetão
sobre nós. Papai dobrou o jornal, ergueu a cabeça e olhou para mim:
— Vamos para casa. Cadê sua irmã?
— Não sei.
— Como assim, você não sabe?
E essa pergunta abriu um abismo dentro da minha cabeça. De
repente, entendi que eu tinha me enganado; que minha irmã não
estava se escondendo, mas havia desaparecido; que alguma coisa
muito grave estava acontecendo; que eu era em parte culpada pelo que
estava acontecendo por não ter avisado meu pai a tempo. Comecei a
chorar, horrorizada. Em um milésimo de segundo, todo o meu mundo
estável, doméstico e seguro tinha se transformado em um pesadelo.
— Achei que ela queria me irritar! — balbuciei entre lágrimas.
A partir desse momento, a nitidez das minhas lembranças se borra.
Só sei que meu pai procurou por ela freneticamente pelo bulevar, pela
avenida; sei que gritamos seu nome e que perguntamos aos outros
clientes do barzinho. Ninguém a vira. Então me pai segurou minha
mão, muito zangado, e disse:
— Ela deve estar em casa.
Mas eu sabia que isso não era possível, porque não nos deixavam
atravessar a rua sozinhas. Subimos no elevador sem dizer uma palavra:
entramos em casa. O corredor escuro e silencioso. A cozinha, onde
minha mãe preparava o jantar. Martina não estava. Sente-se, meu pai
disse para minha mãe. Ela, achando estranho, puxou uma das cadeiras
que estavam encostadas na mesa e desabou nela; e então meu pai lhe
contou. Suponho que houve gritos, suponho que houve lágrimas; só
lembro que a cadeira de madeira sem verniz estava manchada de
açafrão ali onde minha mãe, que tinha as mãos sujas de cozinhar, a
segurara. A mancha alaranjada com forma de borboleta ocupava toda a
minha visão, toda a minha cabeça. Suponho que não queria ou não
conseguia pensar em mais nada.
O que veio depois não passa de uma bruma confusa na minha
memória. Fui afastada da zona candente, como os adultos sempre
fazem com as crianças nos momentos de crise; fui mandada para
Cuatro Caminos, com meus avós. Mas a distância do conflito não
alivia as crianças, antes o contrário, porque elas têm ainda uma
imaginação rica e florida, e o medo imaginário costuma ser pior do
que o perigo e a dor real. Passaram-se três dias de agonia e sussurros,
disso eu me lembro: uma casa na penumbra e meus avós falando
muito baixinho, para que eu não ouvisse. Até que certa manhã minha
avó veio e me disse:
— Martina apareceu e está bem, graças a Deus. Se arrume e vamos
para casa.
— O que aconteceu com ela? — perguntei.
— Seus pais já vão te contar.
E aqui vem o mais estranho e inquietante de tudo: nunca me
contaram. Cheguei em casa e encontrei Martina brincando de recortar
na mesa de jantar, como se nada tivesse acontecido; pior ainda, como
se ela fosse a filha atenta e boa, a que sempre tinha ficado em casa, e
eu, a que tinha voltado depois de três dias de ausência, depois de ter
desaparecido, depois de ter me perdido, depois de ter sido expulsa
sabe-se lá para qual exílio. O que aconteceu?, me apressei a perguntar
assim que entrei. Nada, não aconteceu nada, uma besteira, já passou,
não há nada para contar nem para falar, me responderam; e me
fizeram sentar com ela para brincar de recortar. Minha irmã quem
sabe estivesse um pouco pálida, mas tinha uma cara boa, e inclusive
me pareceu perceber nela uma expressão altiva, de quem estava se
achando, ou de gozação, ou de triunfo. Perguntei também a ela umas
cem vezes sobre o que tinha acontecido, nesse mesmo dia e nas
semanas seguintes, abertamente ou na intimidade, quando estávamos
sozinhas; e nunca consegui outra resposta além de uma bufada de
pedantismo ou um sorriso malicioso. Dentro de poucos meses, o tema
do desaparecimento da minha irmã se tornara um desses tabus que
tanto abundam nas famílias, lugares apertados e secretos, pelos quais
ninguém transita, como se esse acordo tácito de não revisão e não
menção fosse a base da convivência ou inclusive da sobrevivência dos
membros do grupo familiar. E esses tabus, esses poços de realidade
intocável e indizível são tão poderosos que, de fato, podem perdurar
durante gerações sem nunca serem nomeados, até que desaparecem
da memória dos descendentes. No nosso caso concreto, depois
daquelas primeiras semanas de ansiedade, não perguntei de novo nem
para minha irmã nem para meus pais sobre o estranho incidente do
desaparecimento; nem mesmo agora, sendo já tão velhos como
somos, me ocorreu interrogá-los sobre o que aconteceu nesses três
dias. Talvez esteja escrevendo este livro justamente para perguntar o
que aconteceu, afinal. Talvez na realidade todos os escritores escrevam
para cauterizar com suas palavras os impensáveis e insuportáveis
silêncios da infância.
Nove

Gosto muito de Italo Calvino; gosto da sua prosa limpa, dos seus
romances fantásticos, gosto dos ensaios literários de Seis propostas
para o próximo milênio. Mas há pouco tempo li um livro curioso dele,
Eremita em Paris, que reúne textos diversos, fundamentalmente
autobiográficos, e que fez com que Calvino me parecesse por
momentos um tanto chato. O núcleo do volume é composto de um
diário que ele manteve na sua primeira viagem aos Estados Unidos,
realizada em 1959, por causa de uma bolsa que ganhou. E há
momentos em que ele se mostra tão vaidoso! Por exemplo, escreve
periodicamente para a editora italiana para a qual trabalha (Einaudi),
enviando a cada vez várias páginas com suas reflexões sobre os
Estados Unidos; e explica à receptora das cartas:

Daniele, isso é uma espécie de periódico para uso dos amigos


italianos […] guarde tudo junto em uma pasta, à disposição de
todos os colegas e também dos amigos e visitantes que tenham
vontade de lê-lo, e cuidado para que não se perca, mas que seja
lido, de modo que o tesouro de experiências que acumulo seja um
patrimônio de toda a nação.

E por que só da nação? Por que não do mundo inteiro? Que


prepotência tão absurda a desse parágrafo. Por certo, as reflexões
sobre os Estados Unidos são bastante simplórias e o tesouro de
experiências é antes uma pequena gaveta de bugigangas. A favor de
Calvino é preciso dizer que, quando anos mais tarde lhe propuseram
publicar esse diário, ele se negou, pensando, com razão, que carecia
da qualidade suficiente (a publicação foi póstuma), de maneira que
cabe a esperança de que a gente vá melhorando à medida que
envelhece.
Naquela viagem, Calvino era, é claro, jovem, mas nem tanto: trinta
e dois anos. Um dos seus livros saíra em inglês um pouco antes de ele
chegar aos Estados Unidos, e Calvino escreve: “Meu livro está
exposto nas livrarias, nas vitrines ou nos mostradores? Não, nem
sequer em uma”. De modo que vai conversar com seu editor e
“arranca” dele a promessa de mandar alguém falar do seu livro com os
livreiros… Eis aqui de novo a vaidade despontando dos seus olhinhos
ansiosos e, além disso, uma vaidade perfeitamente reconhecível,
porque todos nós, escritores, somos vítimas desse narcisismo louco,
só que alguns talvez sejamos mais conscientes do ridículo e
procuremos nos reprimir e aguentar, enquanto outros vivem sua
vaidade como uma longa viagem sem volta. Todos os escritores se
sentem tentados a entrar nas livrarias para comprovar se há um livro
seu e se está bem exposto, e o pior é que muitos autores o fazem,
entram em todas as livrarias que encontram no caminho e em outras
pelas quais passam de propósito, à procura das suas obras, e acham
que estão mal dispostas, e depois martirizam seus editores e seus
agentes com telefonemas angustiados e indignados.
Ah, a vaidade do escritor… Podemos chegar a ser uma autêntica
maldição. Talvez seja pela nossa especial dependência do olhar alheio
ou porque a falta de critérios objetivos na hora de julgar um romance
faz com que sempre nos sintamos um pouco inseguros, sempre um
pouco no ar; mas o certo é que a vaidade é, para nós, como uma droga
pesada, um pico de reconhecimento exterior que, como toda droga,
nunca sacia a necessidade de aprovação de que padecemos. Ao
contrário: quanto mais cedemos à vaidade (quanto mais nos
injetamos), mais precisamos dela. Vejo-a em mim mesma e ao meu
redor, e tento aprender com isso: vejo que todos queremos sempre
mais, muito mais, independentemente da nossa situação. Aqueles que
têm sucesso de crítica anseiam pelo sucesso de público; aqueles que
vendem montes de livros se queixam porque não acreditam ter
suficiente sucesso de crítica; e aqueles que triunfaram tanto nas
vendas como no reconhecimento dos mandarins da cultura,
respeitável público, também choram! Porque de alguma maneira
acham que todos os prêmios que ganharam não são suficientes, que os
muitos leitores que têm deveriam ser ainda mais, que há uns críticos
que olharam para eles de mau jeito. Enfim, como a vaidade é para nós
uma droga, a única maneira de não virar escravo dela é se abster do
uso o máximo possível. Algo verdadeiramente difícil, porque o mundo
atual fomenta a vaidade até o paroxismo.
Já se sabe que hoje os livros fazem parte do mercado e são vendidos
com técnicas comerciais tão agressivas como as empregadas por
fabricantes de refrigerantes ou de carros, o que tem coisas ruins, mas
também algumas boas: por exemplo, que os livros chegam até mais
gente; ou que, ao estar dentro do mercado, estão dentro da vida,
porque hoje tudo é mercado, e se a literatura permanecesse
totalmente à margem talvez se transformasse em uma atividade
elitista, artificiosa e pedante. Mas as coisas ruins que essa situação
acarreta são, é claro, muito ruins: como, por exemplo, que os livros de
tiragem pequena mal podem subsistir, porque, para vender três mil
exemplares de um título, a obra teria de estar um ano nas lojas, umas
cópias aqui, outras cópias ali; mas acontece que hoje esses livros são
devolvidos e guilhotinados aos quinze dias, porque as livrarias
carecem de lugar onde expô-los, abarrotadas do jeito que estão com as
transbordantes torres de best-sellers. É uma tragédia porque a
literatura e a cultura de um país precisam dessas obras de três mil
exemplares que hoje estamos perdendo.
Essa é uma consequência da obrigatoriedade do sucesso comercial,
que se tornou uma necessidade quase frenética. Ao que parece, a
única medida do valor de um livro hoje é a quantidade de cópias que
ele vende, uma apreciação em todo caso absurda, porque há obras que
vendem a rodo e livros incríveis que mal circulam (o que não quer
dizer, naturalmente, que os livros bons sejam por definição os que não
vendem e os livros ruins os que sim: essa é outra estupidez do mesmo
calibre que esteve na moda há alguns anos). Hoje tudo te impele, te
seduz, te induz, te urge a vender e vender e vender, porque, caso
contrário, você não existe. E, assim, autores e editores mentem no
número de cópias vendidas, e seus amigos, parentes e inimigos leem
as listas de best-sellers com a avidez de quem lê um romance policial.
Até sua mãe liga para te dizer, muito compungida: “Filha, você desceu
três lugares na lista!”. O que faz com que, quando por fim desaparece
da maldita lista, você sinta um alívio melancólico semelhante ao
experimentado quando arranham pela primeira vez seu carro novo.
Releio o que acabei de escrever e fico com vergonha: o que será
que sentem, então, aqueles escritores excelentes que nunca chegaram
a estar em uma lista de best-sellers? E os escritores péssimos que
também não estiveram, e que sem dúvida sofrem exatamente igual aos
bons? Nos nossos melhores momentos, quando a insegurança não nos
corrói demais, todos nós nos achamos maravilhosos. Há muitos anos
entrevistei Erich Segal, o autor de Love Story, aquele romancinho
sentimental que vendeu horrores no mundo todo. Segal tinha acabado
de escrever um livro novo, The Class [A aula], um tijolão, do meu
ponto de vista, também horroroso, com o qual aspirava ganhar o
reconhecimento da crítica sisuda (porque, naturalmente, o sucesso
comercial não lhe bastava); e lembro que Segal, de quem eu gostei e
me pareceu um cara legal, começou a ler para mim parágrafos do seu
romance, emocionado até as lágrimas com o que ele mesmo dizia,
embora os parágrafos fossem de uma vulgaridade horripilante. Céus,
pensei, muito incomodada: não resta dúvida de que ele acredita que o
que está lendo é lindo, será que a mesma coisa não pode acontecer
comigo e que, no meu delírio, eu acredite ser uma escritora?
“Descobri, não sem pesar, que qualquer mentecapto era capaz de
escrever”, disse Rudyard Kipling, referindo-se aos seus primeiros anos
como narrador. E Goethe inclui uma anotação muito divertida na sua
autobiografia Poesia e verdade, ao narrar a época da sua infância:
As crianças celebravam encontros dominicais nos quais cada um de
nós tinha de compor seus próprios versos. E nesses encontros me
aconteceu algo singular que me deixou intranquilo durante muito
tempo. Fossem como fossem, o caso é que eu sempre me via
obrigado a considerar que meus próprios poemas eram os
melhores, só que de repente me dei conta de que meus
competidores, que geravam produtos muito insossos, se
encontravam na mesma situação e não consideravam a si mesmos
piores do que eu. E o que me pareceu ainda mais suspeito: um bom
rapaz com quem, aliás, eu me dava bem, mesmo sendo incapaz de
realizar semelhantes trabalhos e fazendo seu preceptor compor as
rimas para ele, não só considerava que seus versos eram os
melhores de todos, mas estava completamente convencido de que
ele em pessoa os escrevera […]. Como podia ver claramente diante
de mim tal erro e desvario, um dia comecei a me preocupar que eu
próprio pudesse me encontrar no mesmo caso; se aqueles poemas
seriam realmente melhores do que os meus e se não poderia ser
que eu parecesse àqueles garotos, com razão, tão alienado como
eles pareciam para mim. Essa questão me inquietou em grande
medida e durante muito tempo, e era-me completamente
impossível encontrar uma manifestação externa da verdade.

Como eu já disse, sempre há lugar para duvidar sobre se o que a gente


faz tem algum sentido. Daí provém em grande medida nossa
fragilidade.
Além disso, escrever ficção é trazer à luz um fragmento muito
profundo do seu inconsciente. Os romances são os sonhos da
humanidade, sonhos diurnos que o romancista percebe de olhos
abertos. Quero dizer que ambas as coisas, os sonhos e os romances,
surgem do mesmo estrato da consciência. Às vezes, inclusive, os
autores literalmente sonharam suas criações. É o celebérrimo caso de
Mary Shelley e seu lindo e comovente monstro de Frankenstein, que
apareceu inteiro dentro da sua cabeça no transcurso de uma noite
alucinada. E Anthony Burgess se levantou uma manhã e encontrou na
parede da sua sala de jantar

os seguintes versos rabiscados com batom: Que suas carbônicas


gnoses se ergam orgulhosas/ E guiem a grei inteira na direção da
sua luz (Let his carbon gnoses be up right/ And walk all followers to his
light). A letra era minha e o batom, da minha mulher.

No fim do século XVIII, Coleridge escreveu o famoso e longuíssimo


poema Kubla Khan depois de ter sonhado suas centenas de versos em
uma espécie de sesta… E depois há Stevenson, que sonhou inteirinho
O médico e o monstro em uma noite de febre e doença; levantou-se da
cama, escreveu o romance em três dias como um louco, jogou-o no
fogo e em outros três dias o escreveu de novo em sua forma definitiva.
A ensaísta Sadie Plant, no seu apaixonante livro Escrito com drogas,
sustenta que muitos desses supostos sonhos criativos eram, na
realidade, delírios induzidos por diferentes substâncias alucinógenas
ou estimulantes; e, aliás, assegura que Stevenson tirou seu O médico e
o monstro não de um sonho mais ou menos inquieto, mas natural, e
sim de uma dose massiva de cocaína. Seja como for, a própria Sadie
Plant recupera um texto publicado por Stevenson em 1888 intitulado
“Um capítulo sobre o sonho”, em que o escritor refletia sobre a
importância da vida onírica e falava dos brownies, ou pequenos
duendes, personagens que, segundo Stevenson, sonhavam os
romances por ele e os sopravam no seu ouvido, mantendo
frequentemente o próprio autor na ignorância de para onde se dirigia
a história. Esses pequenos duendes são como o daimon de Kipling, e é
verdade que todos os narradores, à margem do nosso maior ou menor
talento, têm em algum momento essa sensação, a inquietante
percepção, quase a certeza, de que o romance está sendo inventado
por outro, está sendo ditado por outra, porque você não sabia que
sabia o que está escrevendo.
E esse outro ou essa outra é sua imagem refletida no espelho de
Alice, é o inverso de você mesmo, é sua outra dimensão. Estou
convencida de que, durante as noites, quando dormimos e
começamos a sonhar, na realidade entramos em outra vida, em uma
experiência paralela que guarda sua própria memória, sua
continuidade, sua causalidade tortuosa. Por exemplo, eu sei que no
mundo das minhas noites e dos meus sonhos tenho um irmão que se
chama Pascual, embora nesta vida real eu só tenha minha irmã
Martina. Esse outro eu onírico está muito mais relacionado com o
subconsciente do que nós; e quanto mais nosso outro eu descer até
esses estratos do ser aonde as palavras já não chegam, a esses abismos
vulcânicos em que ferve o magma primitivo das imagens, mais se
aproximará dos medos e dos desejos coletivos; porque no fundo de
nós, muito no fundo, todos somos iguais. Por isso Stevenson, que
tinha uma relação muito fluida com seus brownies, conseguiu sonhar
seu O médico e o monstro, uma história que hoje todo mundo conhece,
embora na atualidade quase ninguém tenha lido o romance. E por que
esse relato foi tão importante, por que passou a fazer parte da cultura
popular, da representação convencional do mundo? Ora, porque com
seu livro Stevenson descreveu o que todos intuíamos mas não
conseguíamos saber, pois não tínhamos palavras para nomear: que
nós, humanos, somos muitos dentro de nós, que estamos dissociados;
que, como diz Henri Michaux em uma frase formidável, “o eu é um
movimento na multidão”. Isto é o que o romancista verdadeiramente
talentoso faz: pesca imagens do subconsciente coletivo e traz à luz,
para que entendamos um pouco melhor o obscuro mistério da nossa
vida. “Do que não se pode falar, é preciso calar”, disse Wittgenstein
na sua celebérrima frase do Tractatus. Não, do que não se pode falar é
preciso imaginar, é preciso sonhar, é preciso alinhavar os contos
substanciais com o que contamos a nós mesmos. Desde o início dos
tempos, o mito foi a melhor maneira de combater o silêncio.
De modo que escrever romances é uma atividade incrivelmente
íntima, que te submerge no âmago de você mesmo e traz à tona os
fantasmas mais ocultos. Como não se sentir frágil depois de um
exibicionismo tão desaforado? Às vezes penso que publicar um
romance é como arrancar um pedaço do nosso fígado e deixá-lo em
cima de uma mesa na frente da qual os outros vão passando e
comentando impiedosamente o que acham: “Mas que víscera mais
feia”, pode dizer um; “mas que cor horrível ele tem, sem falar na
textura, que é um nojo”, talvez comente outro. E você, que
naturalmente se identifica com seu fígado, ouve essas coisas e quer
morrer. Por isso (conta Theroux), Naipaul disse certo dia a um
entrevistador: “Não consigo me interessar pelas pessoas que não
gostam do que eu escrevo, porque ao não gostar do que eu escrevo
você está me desprezando”. É uma frase egocêntrica e bárbara, mas a
verdade é que eu a entendo… Inclusive, acho que a gente pode sentir
a tentação de compartilhá-la, só que nos corrigimos e reprimimos, da
mesma maneira que reprimimos outros vícios reprováveis, como, por
exemplo, enfiar o dedo no nariz. Nós, escritores, costumamos pensar
que nossos livros são o melhor de nós e, se isso é desprezado, como
você, que é muito pior do que suas obras, não vai ser desprezado?
Quando alguém não gosta dos seus romances, você tende a se sentir
rejeitado globalmente como pessoa. Por isso Gore Vidal, sempre tão
lúcido e tão malvado, disse que o melhor elogio que se pode fazer a
um escritor consiste em enaltecer sua obra que teve menos sucesso. E
por isso também você costuma manifestar uma estranha tendência a
pensar que as pessoas que gostam do que você escreve são muito
inteligentes, enquanto aquelas que mostram ressalvas é possível que,
afinal de contas, não sejam tão atinadas como você achava que eram.
Tudo isso, como é natural, não favorece nem um pouco as relações
dos escritores com os críticos. Nem mesmo com os bons críticos, que
certamente existem, embora sejam poucos. É verdade que todos os
escritores sonham em encontrar o crítico perfeito, aquela pessoa que,
com respeito, admiração, sensibilidade e inteligência, nos assinale os
erros, nos incentive calorosamente os acertos e nos encoraje a seguir
pelo bom caminho; mas essa criatura singular pertence ao gênero do
fabuloso e é tão irreal como o unicórnio, porque o certo é que, mesmo
que topássemos com alguém assim, nos custaria bastante aceitar os
julgamentos negativos. As críticas negativas incultas, malévolas e
cheias de preconceitos, que são a maioria, indignam e desesperam. E
as críticas negativas inteligentes e bem-feitas enchem de insegurança
e deprimem. Por outro lado, também as críticas positivas não são um
mar de rosas. A maioria das críticas positivas é inculta, malévola e
cheia de preconceitos. Por conseguinte, embora façam bem, não
servem de nada, não preenchem aquela necessidade de
reconhecimento. Frequentemente a sensação é de que estão falando
de um livro que você não conhece.
Estou me referindo às críticas dos jornais, tão entremeadas de
interesses econômicos e pessoais; os trabalhos acadêmicos costumam
ser melhores; pelo menos seus autores empregaram mais esforço para
fazê-los e não são obrigados a dizer que tal obra é boa ou ruim, mas
preferem dissecar e analisar o livro, e em mais de uma ocasião te
ensinam algo interessante. Mas as críticas da mídia, enfim, são um
conflito perpétuo. Um bom número de autores, Martin Amis entre
eles, sustenta que os críticos são, na sua vasta maioria, escritores
frustrados que tentam se vingar daqueles que conseguiram escrever. Já
eu acho que acontece o contrário, que o problema é que não desejam
escrever, que não têm ambições suficientes, porque a crítica é um
gênero literário e eles poderiam criar uma grande obra se aspirassem a
isso. Mas quase nenhum o cogita. Acho que a maioria se contenta em
deter seu pequeno poder, aspirando a ser os deusinhos da sua mínima
parcela de influências, esse vai se ver comigo, aquela vai ver quando
sair minha crítica, enfim, essas coisas sujas e pequenas em que se
perdem e se barateiam tantos destinos humanos. O exemplo clássico
do crítico poderoso, metido, miserável e cretino é o francês Sainte-
Beuve (1804-69), que era a autoridade literária mais importante da sua
época, mas não fez nem uma resenha sequer do maravilhoso Stendhal.
Sainte-Beuve ignorou um dos mais importantes autores do seu tempo
porque, poucos meses antes de Stendhal publicar sua obra-prima O
vermelho e o negro, ele enviou ao romancista um exemplar dos seus
poemas (anteriormente, Saint-Beuve já publicara três livros de versos,
os três grandes fracassos) e Stendhal lhe respondeu cortesmente com
uma carta cautelosa e moderada na qual o pior que dizia era: “Acredito
que o senhor está chamado a destinos literários maiores, mas
encontro ainda certa afetação nos seus versos”. E esse foi o fim do
romancista para Sainte-Beuve.
Mesmo se o crítico tenta ser honesto e rigoroso, é difícil que se
evada dos preconceitos do seu entorno, desses lugares-comuns do
pensamento nos quais todos caímos. No mesmo livro de Italo Calvino
que citei antes, recupera-se um comentário horrendo. Durante alguns
anos, logo depois da Segunda Guerra, Calvino pertenceu ao Partido
Comunista. Depois saiu, porque sua inclinação era mais aberta, mais
inconformista, menos dogmática do que a dos comunistas da sua
época, mas sempre se manteve mais ou menos próximo. Quando
viajou para os Estados Unidos em 1959 não era mais militante; nessa
época, anotou no seu diário que, quando saíram seus primeiros
romances fantásticos, “no lado comunista, estourou uma pequena
polêmica sobre o realismo”; com isso, Calvino se queixava,
prudentemente, da estreiteza mental dos seus antigos camaradas, que
consideravam que o gênero fantástico era uma traição à classe
operária; claro que, como Calvino de qualquer maneira continuava
sendo um companheiro de viagem, logo acrescentava uma frase
totalmente ortodoxa: “Mas não faltaram autorizados consensos
equilibradores”. Pois bem, esse homem, que experimentara na própria
pele o dogmatismo crítico, se deparou com o grande sucesso de O
leopardo nos Estados Unidos. O leopardo é a primeira e última obra do
príncipe Giuseppe Tomasi de Lampedusa, que, anteriormente, não
escrevera nada além de cartas. Aos cinquenta e oito anos escreveu seu
único romance e durante anos tentou publicá-lo sem conseguir. Foi
rejeitado nas editoras Einaudi e Mondadori, porque o que saía naquela
época era a chamada literatura engajada, ou seja, realismo socialista, e
a belíssima obra de Lampedusa não tinha nada a ver com isso, para
sorte nossa, seus leitores. Finalmente, a Feltrinelli a lançou em 1957,
mas o coitado do príncipe morrera poucos meses antes, sem sequer
saber se seria publicada. Dois anos mais tarde, enfim, Calvino
encontrou nos Estados Unidos a esteira do grande sucesso que, com
razão, o romance colhia; e escreveu nas suas cartas e no seu diário este
parágrafo obtuso, próprio de um comissário político: “A exaltação de
O leopardo (que não duvidam em pôr no mesmo plano que Manzoni),
toda ela por motivos reacionários, me confirma a enorme importância
desse livro na atual involução ideológica do Ocidente”. Nem mesmo
as cabeças boas se livram do tópico alienante.
Uma vez que as opiniões dos outros são filtradas e pervertidas,
assim como as nossas, pelos interesses, pelo narcisismo e pelos
preconceitos, seria mais conveniente que nós, escritores, tentássemos
ser mais fortes, superando nossa patética vaidade, e não
dependêssemos tanto do que os outros dizem. Seria necessário
alcançar esse desapego oriental, essa sabedoria taoista, a
imperturbabilidade estoica de quem nada deseja. Mas o problema é
que, para ser um bom escritor, é preciso desejar sê-lo e, além do mais,
desejar de uma maneira febril. Sem a ambição disparatada e soberba
de criar uma grande obra, jamais será possível escrever nem mesmo
um romance mediano. De modo que, por um lado, seria preciso tentar
alcançar a impassibilidade, certa ausência beatífica de desejos e
emoções; mas, por outro, é preciso arder até se tornar cinzas na
paixão pela literatura e no afã de criar algo sublime. É a quadratura do
círculo, uma contradição aparentemente sem saída. Se conhecerem
algum escritor que a tenha resolvido, por favor, me digam.
Dez

“Amar apaixonadamente sem ser correspondido é como andar de


barco e ficar tonto: você sente que vai morrer, mas os outros acham
graça”, disse-me um dia com acachapante lucidez o escritor Alejandro
Gándara. É verdade: os achaques amorosos costumam provocar nos
espectadores um sorrisinho meio gozador, meio apiedado. No
entanto, a dor de cotovelo é tão aguda! É um desespero que adoece,
uma desolação que esvazia. É curioso que os amigos levem tão pouco a
sério um sofrimento que para você é tão profundo; e é ainda mais
curioso que você também não se comova muito quando é a vez de
seus amigos sofrerem. Por que será que, quando não estamos
mergulhados no martírio do desamor, não damos tanta importância a
essa infelicidade? Será que, no fundo da nossa consciência, sabemos
que a paixão amorosa é uma invenção, um produto da nossa
imaginação, uma fantasia? E que, portanto, essa dor que nos abrasa é
de algum modo irreal? Claro que todos os psiquiatras sabem que um
doente imaginário, por exemplo, pode acabar morrendo de verdade:
pode criar um câncer, uma embolia cerebral, uma doença física. Mas
os hipocondríacos também são objeto de gozação. A louca da casa às
vezes é assim: brinca perversamente conosco, fazendo-nos
experimentar uma dor destrutiva e autêntica diante das suas miragens.
Como sou uma pessoa apaixonada, vivi repetidas vezes essa dor
amorosa insuportável que depois sempre se acaba suportando. Mas
houve uma situação especialmente absurda que parece ter saído de um
romance ruim de peripécias e equívocos. Aconteceu faz muito tempo,
no verão de 1974, nos últimos tempos do franquismo. Eu tinha vinte e
três anos, trabalhava na revista de cinema Fotogramas, dividia um
apartamento com uma amiga jornalista, Sol Fuertes, e vivia
alegremente a incendiária vida do início dos anos 1970, que foram uns
anos desmedidos e inconstantes. Era a época do amor livre, da cultura
psicodélica, dos shows de rock empesteados pelo cheiro doce e
embriagante da maconha. Também era a época das manifestações
antifranquistas e das corridas na frente dos grises, mas disso eu não
tenho a menor saudade; sempre detestei o abuso da força da ditadura,
e a estupidez da ditadura, e o medo que a gente passava; e o tempo
não me fez mitificar toda aquela nojeira. Viver contra Franco não era
melhor de nenhuma maneira; o que eu gostava e ainda gosto daqueles
anos era do que não pertencia nem ao franquismo nem ao
antifranquismo; o que eu gostava era da liberdade cotidiana que
começava a ser construída debaixo do regime que estava
desmoronando, e da contracultura, e da música ensurdecedora, e do
espírito aventureiro e inovador que pulsava no ar, e da incrível
sensação de que seríamos capazes de mudar o mundo. As noites
ardiam naquela Madri do verão de 1974. Embora o mais provável seja
que as noites sempre ardam quando a gente acaba de fazer vinte e três
anos.
Em uma dessas noites tórridas e eternas, fui jantar com Pilar Miró.
Ela estava saindo com um diretor de cinema estrangeiro que naquele
momento rodava um filme na Espanha. O protagonista do filme era
M., um ator europeu que tinha acabado de estourar em Hollywood e
naqueles anos era muito famoso. Separado recentemente de uma
estrela estadunidense, chegara à Espanha perseguido por uma nuvem
de jornalistas sensacionalistas. Pilar tinha me telefonado alguns dias
antes para me falar dele: “É um cara ótimo, embora bastante estranho,
introvertido, tímido. Está muito sozinho aqui e um pouco deprimido.
Você não quer vir jantar com a gente e com M. no sábado? Vai gostar
dele, você vai ver. Vou explicar a M. que, embora você trabalhe numa
revista, não é como os outros… É que ele odeia os jornalistas, sabe,
teve muitas experiências ruins com eles e nisso é um pouco chato”.
Disse que sim, por diversão, por curiosidade, porque era um homem
muito gato e, sobretudo, porque sempre tive um fraco enorme pelos
caras estranhos. De modo que saímos, nós quatro, Pilar, o namorado
da Pilar, M. e eu. Fomos jantar na Casa Lucio, tomamos um café no
Oliver e bebemos várias taças no Boccaccio. Tudo funcionou
razoavelmente bem: M. não falava espanhol e eu, naquela época, mal
arranhava duas palavras de inglês, de modo que conversávamos
engasgada e precariamente em um penoso francês ou em um horrível
italiano. Mas, na realidade, não precisávamos do idioma para nos
entendermos: nossos corpos falavam, nossos feromônios falavam, a
pele roçando, os olhares gulosos. Ele tinha os olhos verdes mais lindos
que eu jamais vira, umas mãos grandes e ossudas, uns ombros macios,
uns quadris sólidos e esbeltos, como de um dançarino. O ar entre nós
soltava faíscas; por alguma razão maravilhosa, era evidente que eu o
atraía; agora que sei bem mais sobre o ser humano, penso que
naquelas circunstâncias ele teria se sentido atraído por qualquer
garota. Passei a noite flutuando a dois palmos do chão, desfrutando da
progressiva construção do desejo, do deleite da expectativa, dessa
deliciosa sensação que consiste em arder de ânsia sexual sabendo que
dali a poucas horas você vai poder satisfazê-la.
Afinal, por volta das quatro da manhã, a gente se despediu de Pilar
e seu parceiro e se encaminhou no meu carro para a casa de M. Sua
produtora tinha alugado para ele um apartamento mobiliado na Torre
de Madri, um arranha-céu de uns trinta andares que naquela época era
o prédio mais alto da cidade. A Torre, construída nos anos 1950, fora o
orgulho do franquismo, um delírio fálico e um pouco abestalhado de
modernidade. Eu nunca entrara nela e naquela noite fiquei surpresa
com o aspecto antiquado de tudo. Havia um tétrico vestíbulo com um
porteiro cochilando atrás de um balcão, deprimentes luzes de neon e
um alvoroço de elevadores que pareciam subir cada um para um andar
diferente. Para chegar ao apartamento de M., situado na parte alta do
prédio, era preciso mudar várias vezes de elevador e inclusive de
nível, abrindo portas, atravessando escadas. Um verdadeiro labirinto.
Mas enfim chegamos. O apartamento era uma extravagância que
parecia ter saído de um filme estadunidense dos anos 1950, com
cadeiras de fórmica com três pezinhos de metal, um balcão de bar na
sala, uma parede revestida de pastilhas verdes e cortinas com
desenhos de palmeiras. Depois de nos beijarmos e nos mordermos e
rirmos da horrorosa decoração, e nos mordermos e nos amassarmos
de novo, ainda de pé e junto da porta, M. me perguntou se eu queria
beber algo e se dirigiu para o bar. Ele se agachou para tirar alguma
coisa embaixo do balcão, depois se levantou e, de repente, parou de
falar, levou a mão aos olhos, empalideceu, soltou uma espécie de
suspiro, ou de grito surdo, ou de fungada, e desabou como um fracote.
Ele bateu no chão com um barulho horrível; no chão e em algum
objeto, porque, quando me lancei aterrorizada sobre ele, vi que, na sua
queda, devia ter se chocado com algo: havia sangue no rosto, sobre o
olho. Eu mal me atrevia a olhá-lo, eu mal me atrevia a tocá-lo.
Comecei a chamá-lo, mas ele não me respondia, continuava
desmaiado no chão e jorrando sangue. Agora eu via que um corte
tinha se aberto na sobrancelha ou quem sabe na testa, não devia ser
grave, sendo a sobrancelha sempre tão espalhafatosa para as
hemorragias, tentei me animar; mas o pior não era o golpe, o pior era
que ele tinha desmaiado antes mesmo de cair e não estava tão bêbado
para isso, podia ter tido um ataque, quem sabe estivesse doente,
muito doente, não respondia às minhas palavras, não se mexia e eu
não podia fazer nada com ele com minhas forças escassas, era um
homão de talvez um metro e noventa e devia pesar pelo menos
noventa quilos, e agora estava estatelado no chão como um boneco
quebrado.
Ajeitei uma almofada debaixo da sua cabeça, mas logo temi que ele
pudesse ter machucado o pescoço ao cair e tirei; molhei a testa dele
com água fria — a parte oposta à do corte — e espalmei suas mãos,
mas os minutos passavam, ou para mim pareciam passar, e M. não
voltava a si. Procurei o telefone para chamar a emergência, mas
quando tirei o fone do gancho não consegui escutar nada; sem dúvida
o aparelho estava conectado a uma central e era preciso discar algum
número para conseguir linha, mas, por mais que experimentasse,
primeiro com o zero, depois com o nove, depois com cada uma das
cifras, não consegui que o maldito telefone funcionasse. Desesperada,
decidi descer em busca do porteiro. Como não sabia onde M. tinha
deixado as chaves da casa (sem dúvida poderia tê-las localizado com
facilidade, mas suponho que eu estava tão histérica que não
raciocinava muito bem), deixei a porta do apartamento totalmente
aberta para que não se fechasse. Desci todas as escadas e elevadores,
chegando diante do balcão da recepção como uma enxurrada. O
porteiro era um cara grandão de uns quarenta anos. Estava meio
dormindo e ficou pasmo diante da minha aparição e da minha
algazarra. Tive de repetir duas ou três vezes o que tinha acontecido
para me fazer entender.
— Tudo bem, tudo bem, fique tranquila — grunhiu o homem
afinal. — Em que andar é?
E foi aí que me dei conta do meu erro: não sabia nem o andar nem
o número do apartamento. Não sabia nada.
— Não sei, não reparei, mas é onde M., o ator famoso, está
hospedado, você deve conhecê-lo, com certeza você sabe quem é…
— Você disse M.? Não faço ideia. Não sei quem é. Eu não trabalho
aqui, sou folguista, estou aqui porque é sábado, não conheço nem vi
ninguém. Além disso, não quero confusão. Tudo isso é muito
estranho.
Pensei que eu ia ter um ataque de ansiedade, que ia desmaiar que
nem M. Ainda me lembro da angústia que senti naquela madrugada;
do que não me lembro é de como consegui convencer o porteiro de
que me acompanhasse para tentarmos encontrar o apartamento.
Aquele homem era em si mesmo um bruto desconfiado e antipático,
mas, além disso, o franquismo avivava o receio de caras como ele: sob
a ditadura, qualquer coisa podia ser de fato suspeita, e as pessoas
medrosas e acomodadas sempre evitavam “se meter em confusões”.
Mas, como já disse, consegui sei lá como convencê-lo e ele me
seguiu, embora bastante relutante, no meu périplo pela zona alta da
Torre, em busca da porta que eu deixara aberta. Começamos pelo
último e fomos descendo andar por andar; e, para meu desespero, não
a encontramos. Tentei lembrar se as janelas do apartamento estavam
abertas: achei que sim e pensei que uma corrente de ar poderia ter
feito com que a porta se fechasse. Chegamos até o oitavo andar, onde
já começavam os escritórios, e que era evidentemente diferente
daquele no qual eu estivera, sem ter conseguido nada. Eu não podia
acreditar: me sentia dentro de um pesadelo. Quem também não podia
acreditar era o porteiro, que se mostrava cada vez mais irritado e
desconfiado. No fim, começou a sugerir que eu estava mentindo, que
talvez eu o tivesse obrigado a sair da portaria para que algum comparsa
meu cometesse um delito. E assim que essa ideia lhe ocorreu, ficou
muito nervoso, e me disse para ir embora e que ele ia chamar a polícia.
Fui embora, porque ninguém queria ter problemas com a polícia
franquista. Ainda bem que eu levava minha bolsa a tiracolo e isso me
impedira de deixá-la no apartamento; nisso, pelo menos, eu tivera
sorte.
Todo o resto foi uma catástrofe: eram seis da manhã e, em algum
lugar daquela Torre adormecida, daquela colmeia labiríntica, M. podia
estar morrendo. Para piorar, era domingo, de modo que eu não podia
ligar para a produtora para que me ajudassem. Quanto a Pilar, eu sabia
que tinha ido dormir no chalé que seu namorado alugara em algum
lugar impreciso fora da cidade. Desesperada, fui para minha casa e
comecei a ligar para todos os meus conhecidos do mundinho do
cinema, de atores a jornalistas, para ver se algum deles tinha o número
do namorado da Pilar ou de alguém da produtora. Por fim, às onze da
manhã, depois de passar quase quatro horas no telefone, consegui
falar com a costureira do filme, que me prometeu se encarregar de
tudo. Roguei a ela que me mantivesse informada do que estava
acontecendo e que me dissesse qual era o apartamento quando
soubesse, para eu poder ligar (quando ficou de dia, eu tentara ligar
para a Torre, mas a operadora também não conhecia o número de M.:
pelo visto, ele fora registrado com outro nome para despistar os
jornalistas). Passei o dia roendo as unhas ao lado do aparelho, mas
ninguém ligou. Até as onze da noite, que foi mais ou menos quando
Pilar telefonou. Sua voz soava estranha, preocupada.
— M. está furioso — disse, de cara.
— M.? Você falou com ele? Como ele está? — eu perguntei, ainda
obcecada por sua saúde.
— Já te disse, furioso.
— Furioso? Então ele está bem? — repeti bobamente, sem
entender nada.
— Não! Como você quer que ele esteja bem? Está fora de si.
Demorei para entender, mas afinal consegui reconstruir a história
dentro da minha cabeça. Ao que parece, M. simplesmente sofrera uma
lipotimia: por excesso de trabalho, ou porque o vinho tinha caído mal,
ou por qualquer razão menor e sem consequências. Ao desmaiar, de
fato, tinha cortado a sobrancelha, mas isso também não era nada
grave, além da chatice que o hematoma e o inchaço implicariam para a
filmagem, que talvez tivesse de ser suspensa por alguns dias. Ele deve
ter voltado a si assim que saí em busca do porteiro; confuso e
perplexo, assustado pelo espetáculo do seu próprio sangue, começou a
pensar que algo ruim acontecera. Não conseguia entender meu
desaparecimento e, quando viu a porta do apartamento totalmente
aberta, fechou-a e correu para olhar sua carteira, temendo ter sido
roubado. Ao que parece, era um cara bastante paranoico, coisa que até
então eu não sabia; mas, por outro lado, também é preciso reconhecer
que, do seu ponto de vista, a situação era muito estranha. Humilhado
e inquieto, lavou o corte, deitou e dormiu, até que ao meio-dia foi
acordado pela assistente de produção, muito preocupada,
perguntando pela sua saúde, porque tinha sido alertada pelo
profissional encarregado do making of, que, por sua vez, fora avisado
pela costureira. Com tantos intermediários, ignoro o que a assistente
de produção teria explicado a ele sobre minha versão do incidente,
mas, seja como for, isso não foi o que o deixou furioso. O que
verdadeiramente o enfureceu aconteceu horas depois, por volta das
nove da noite, quando a assistente de produção telefonou de novo a
M. e lhe disse que as rádios e a televisão tinham acabado de dizer que
ele, M., estava agonizando.
Eu não tinha ficado sabendo de nada até o telefonema da Pilar, mas
na mesma hora deduzi o que havia acontecido. Naquela manhã,
quando comecei a telefonar desesperadamente para todos os meus
conhecidos do entorno cinematográfico, falei também com vários
jornalistas. Como eles estavam sendo acordados em uma hora
inusitada, eu me senti na obrigação de contar por alto a razão pela qual
estava ligando. E algum deles (podia suspeitar concretamente de dois)
decidira pôr a notícia em circulação. Mas, claro, M. não sabia de nada
disso. Ele achou que era eu quem tinha comercializado a história; isto
é, sua primeira intuição fora acertada e eu o roubara de algum modo.
Com o agravante de tê-lo abandonado desmaiado e ferido. Um
verdadeiro abutre da imprensa, desses que ele odiava. Horrorizada,
apressei-me a relatar o imbróglio todo a Pilar (em quem detectei certa
suspeita inicial em relação a mim: de modo que a paranoia de M.
parecia bastante convincente, afinal de contas), que, por sua vez,
tentou falar com M. para me desculpar. Mas ele não quis nem ouvir.
— Já vai passar e então a gente conta para ele. Agora ele também
está zangado comigo porque eu disse que você era confiável — me
contou Pilar com seu humor habitual em um novo telefonema, depois
de me explicar o fracasso da sua gestão.
Mas não passou, porque a coisa ficou cada dia pior. Na segunda, o
jornal vespertino Pueblo publicou uma reportagem de duas páginas e
uma manchete na primeira página contando que, depois de um
tempestuoso divórcio com a diva de Hollywood, o famoso ator M.
tinha tentado se suicidar em um hotel madrilenho e estava em estado
muito grave. Era pleno verão, a mídia atravessava uma tediosa seca de
notícias e se lançou sobre o embuste com fruição. Os leitores com
idade suficiente talvez se lembrem daquele mísero escândalo estival,
daquela breve vertigem de sórdidas fofocas, e possam identificar quem
era, quem é, M. A história se reproduziu na imprensa internacional e,
inclusive, alguns repórteres estrangeiros vieram a Madri. A produtora
fez um comunicado oficial em que explicava que o ator sofrera uma
lipotimia e tinha machucado levemente uma sobrancelha, mas como
M. não apareceu na filmagem durante uma semana (o tempo que
demorou para ficar curado) e como, além disso, se negou
rotundamente a receber qualquer jornalista, durante sua ausência os
paparazzi ficaram inventando um monte de lorotas. Disseram que ele
estava morto; que ele estava perfeitamente bem, mas que abandonara
a filmagem para voar a Los Angeles e dar uma surra na ex-mulher; que
não queria lhe dar uma surra, mas, pelo contrário, implorar de joelhos
que voltasse para ele; que era um viciado e tiveram de interná-lo em
uma clínica; que tinha ficado deprimido e tiveram de interná-lo em
uma clínica; que era alcoólatra e tinha quebrado a cara no meio de
uma bebedeira; que a produtora espanhola ia processá-lo por danos e
prejuízos porque não estavam conseguindo finalizar o filme… Nem
preciso dizer que isso não ajudou nossas inexistentes relações a
melhorarem. Depois de sete dias, M. voltou para a filmagem e o
escândalo se desvaneceu na mesma velocidade em que se erguera.
Mas ele jamais me perdoou. Não quis saber mais nada de mim.
Eu estava no inferno.
Se há algo realmente insuportável para uma pessoa que tende à
dissociação é que outra pessoa finja ser ela ou que a acusem de ter
feito algo que ela não fez. Ambas aconteceram comigo e as duas
produzem uma inquietação imensa. Mas, além disso, com M. a
angústia tinha se multiplicado até o paroxismo porque, de repente,
como sempre acontece nessas desgraças, eu havia me descoberto
fatalmente apaixonada por ele. Ainda que talvez fosse o contrário, a
paixonite tivesse se multiplicado até o paroxismo pelo estímulo da
angústia: como se sabe, a paixão engorda com a impossibilidade e com
o equívoco. Pior ainda, a paixão é puro equívoco. Já dizia Platão:
“Amar é dar o que não se tem a quem não é”. Ou seja, uma deplorável
desordem de identidades confusas, um erro perpétuo de apreciação.
E, então, M. se enganava ao acreditar que eu tinha me comportado
como uma sem-vergonha e eu me enganava ao pensar que M. era o
homem dos meus sonhos. Um ser maravilhoso que eu perdera para
sempre por azar, por nervosismo e pela minha falta de jeito.
Tentei de todos os jeitos lhe explicar minha versão ou que alguém
lhe explicasse, mas nem minhas cartas (traduzidas para o inglês por
um profissional) nem meus intermediários conseguiram chegar até
ele. Durante várias semanas queimei de desespero pelo mal-
entendido. Não conseguia suportar a ideia de que Ele, precisamente
Ele, O Homem da Minha Vida, pensasse de mim, por um simples
erro, as coisas mais horrendas. Não suportava a mim mesma. Queria
morrer. De fato, fiquei doente: passei não sei quantos dias vomitando.
Depois, quando a filmagem acabou e M. foi embora da Espanha, tive
de me resignar à inevitabilidade da catástrofe; a partir de então, o
desespero pelo equívoco abriu passagem para uma pura dor
desesperada. A dor do desamor se chocou contra mim como a onda
gigante de um maremoto. Eu era perseguida pela lembrança dele.
Seus olhos, tão verdes, tão penetrantes, me assolavam; e eu
rememorava uma e outra vez todos os (poucos) beijos que trocáramos,
cada uma das carícias e dos toques. Todo esse esplendor, esse corpo
duro e cálido, essa pele perturbadora, esse cheiro inebriante de
homem, todo esse banquete da carne estivera ao meu alcance, na
ponta do meu coração e dos meus dedos; meu desejo rugia, a
frustração me afogava. Como eu ainda era muito jovem, estava
convencida de que nunca mais encontraria nenhum homem que eu
amasse tanto. Os demais homens da Terra desapareceram para os
meus olhos: um bilhão de seres que se apagaram de repente. Era um
sofrimento tão obsessivo que, pelas manhãs, quando eu acordava, o
primeiro pensamento que me assaltava era a imagem de M. e a
desolada certeza de tê-lo perdido. Doía tanto que tive de me esforçar
para não pensar nele. Não via seus filmes nem falava de M. com
ninguém. Lidava com minha dor como se estivesse atravessando um
campo minado: quando pensava em outra coisa, a vida seguia com
normalidade, quase feliz. Mas, de vez em quando, algo me lembrava
de M., isto é, pisava sem querer em uma das minas: e a explosão me
deixava com as tripas de fora durante certo tempo.
Mas a vida é tão tenaz que, passados alguns meses, inclusive essa
dor inesgotável se esgotou. Os três bilhões de homens terrícolas se
materializaram de novo sobre o planeta e me apaixonei e me
desapaixonei por alguns deles diversas vezes. Durante vários anos, a
lembrança de M. continuou produzindo em mim uma espécie de
desagradável beliscão na memória. Depois chegou uma hora em que
não pensei mais nele; e se, por acaso, seu nome ou sua imagem
apareciam na minha frente (em um filme antigo, em uma notícia), a
estrambótica história daquele encontro me parecia uma farsa teatral,
algo que alguém me contara, não que tinha acontecido de verdade
comigo.
Faz quatro ou cinco anos, tive de viajar para uma cidade europeia
para lançar um dos meus romances, cuja tradução acabara de ser
publicada naquele país. Participariam do evento meu editor e um
conhecido crítico literário; depois eu falaria e, para fechar, uma atriz
leria alguns fragmentos da tradução. Para minha surpresa, quando
cheguei ao lugar onde aconteceria o evento, encontrei M.; de fato,
quase esbarrei com ele na porta. Ele não me reconheceu e eu, por
pouco, também não. Duas longas décadas tinham se passado desde os
acontecimentos de Madri, e foram uns tempos bastante duros para M.
Sua carreira tinha ido ladeira abaixo de maneira incontrolável, de um
filme ruim a outro pior, até ele desaparecer completamente das telas.
Pelo visto, tivera graves problemas de depressão, drogas e álcool: quer
dizer, tinha se transformado em tudo que os jornalistas disseram
naquele verão venenoso. Todas essas ruínas interiores, além da dureza
do tempo, tinham destruído seu físico incrível. Estava meio careca,
com a pele cinzenta pendendo molemente das maçãs do rosto e uma
triste pelanca formando uma papada. Parecia fraco; tinha perdido
aqueles músculos macios que antes o faziam parecer tão atlético, e
uma pequena barriga, redonda e constrangedora, despontava por cima
do cinto, um cinto, aliás, todo descascado, pois suas roupas estavam
velhas e descuidadas. Sua jaqueta horrível com estampa pied de poule,
totalmente fora de moda, exibia alguma mancha arcaica e uma lapela
ressecada. Ele parecia um ancião e, no entanto, era só nove anos mais
velho do que eu. O que quer dizer que ele tinha, então, apenas
cinquenta e quatro ou cinquenta e cinco anos. Ele me foi apresentado
rapidamente e, com expressão ausente, M. atravessou meu rosto com
uns olhos que pareciam incapazes de fixar o olhar, fora de foco,
avermelhados, lacrimejantes, o túmulo daqueles extraordinários olhos
verdes perdidos para sempre no passado.
— É que a atriz ficou doente, então recorremos a M… — explicou
meu editor em um apressado aparte. — Você se lembra dele? Agora
não está em um bom momento, mas foi um ator muito famoso. E você
vai ver que voz linda ele tem.
E, de fato, tinha. Eu não me lembrava, mas ele tinha. Uma voz
cálida como o bronze, uma voz maravilhosa com a qual leu
maravilhosamente meu romance, recuperando por uns instantes a
dignidade e a força, quase uma mágica.
Mas logo o evento acabou e M. caiu sobre mim como uma praga.
Antes, quando nos apresentaram, não percebera que eu era a
escritora, e agora estava disposto a emendar sua mancada me dando
toda a bola do mundo. Não que ele tivesse gostado do meu livro (na
verdade, como descobri depois, ele tinha lido apenas os fragmentos
que haviam sido destacados para que fizesse a leitura) e, é claro,
também não me reconhecera; mas obviamente considerava que eu era
uma figura de suficiente poder e influência para que ele investisse boa
parte das suas energias em me adular. Da mesma maneira que adulava
abjetamente meu editor e o crítico e os jornalistas. Oh, sim, esse
homem que em outros tempos odiava a imprensa e fugia dela, agora se
enfeitava como um velho pavão com as penas quebradas para tentar
chamar a atenção dos repórteres. Sem dúvida devia estar muito
necessitado: de atenção, mas também de trabalho. E de dinheiro.
Tudo aquilo me parecia muito triste e, em princípio, poderia ter me
comovido facilmente. Mas o pior é que não comovia. Nem mesmo
isso M. conseguia: porque era um verdadeiro chato. E tão idiota! No
tempo que transcorrera desde nosso encontro em Madri, eu
aprendera a falar bem inglês; e isso acabou sendo fatal para meu
julgamento sobre ele. Comecei a pensar que parte da minha louca
paixonite daquela época devia ter se originado no fato de não ter
entendido nenhuma palavra do que ele dizia. Agora que o entendia
perfeitamente, ele me parecia atroz. Claro que o álcool, a depressão e
as drogas acabam aplanando o cérebro; talvez em 1974 M. não fosse
tão estúpido como me pareceu naquela noite.
Que foi, aliás, uma noite longa e chata. Depois do evento, todos
fomos jantar. M. bebeu bastante e seus olhos ficaram ainda mais
lacrimejantes, suas bochechas mais trêmulas, seus raciocínios mais
confusos. Ele impediu qualquer conversa organizada, sua voz de
bronze ficou estridente e desagradável, ele repetiu as mesmas
anedotas idiotas sete vezes e acabou perseguindo de maneira ignóbil
Mia, a assessora de imprensa da editora, uma moça ruiva e atraente
que passou umas horas amargas tentando escapulir das suas ávidas
mãos. Em resumo, M. estragou o jantar. No fim, meu editor
literalmente o raptou e o levou embora em um táxi; os demais
participantes se despediram com uma pressa aliviada. Eu me dirigi a
pé para o hotel, em companhia de Mia, pelas ruas escuras e
silenciosas. Chovera enquanto estávamos no restaurante e a noite
estava fresca e limpa, um pouco melancólica, agradável. A coitada da
Mia estava furiosa:
— Esse M. é o homem mais nojento, repugnante e desagradável
que eu já vi na vida… Nunca mais organizo nada com ele. Que
tipinho! Não entendo como Z., tão linda e maravilhosa, pode ter se
casado com ele. O que será que ela viu nele? Como pode ter se
apaixonado por alguém assim? Acho um horror.
Fiquei em silêncio. Olhei para Mia, tão zangada, com razão, e tão
segura do seu critério, como todos os jovens, sem razão. Tentei
calcular a idade dela: talvez tivesse vinte e três anos, como eu tive
algum dia, como eu tinha naquela época. E pensei: se você soubesse a
quantidade de vidas diferentes que pode haver em uma só vida… Mas
não disse isso a ela. Para quê?
Onze

Flávio Josefo era um general judeu do século I a.C. que estava


guerreando contra os romanos. As coisas deram errado e Josefo e seu
exército foram sitiados em um vilarejo. Incapazes de resistir ao cerco
por mais tempo, o general pensou em se render e mandou um
emissário ao inimigo. Está bem, disseram a ele: se você se render,
pouparemos sua vida, mas não a de seus soldados nem dos habitantes
do lugar. Josefo consultou outros membros do conselho judeu, com
quem estava entrincheirado em um porão; falou com eles sobre a
oferta romana e disse-lhes que, se se entregassem, provavelmente
poderia conseguir também salvar a pele dos conselheiros. Nem
pensar, responderam com grandeza os notáveis: todos eles, inclusive
Josefo, tinham de seguir o destino do seu povo e morrer com os seus.
Para isso, decidiram se matar entre si, depois de tirar na sorte quem
acabaria com quem e a ordem das execuções; e o último homem vivo
teria de se suicidar. Assim foi feito e o porão se encheu de sangue.
Mas Josefo roubara no sorteio, conseguindo ser o último. Quando só
restavam de pé Josefo e o homem que ele deveria assassinar, o general
falou com o homem e conseguiu convencê-lo a se entregarem. Os
romanos entraram no vilarejo e acabaram com todos, mas perdoaram a
vida do general. Josefo foi morar em Roma e ali escreveu a história da
guerra judia. Graças a ele conhecemos a versão daquela batalha do
ponto de vista dos hebreus, assim como o sórdido relato do que
aconteceu naquele sótão. Porque Josefo contou sua própria miséria.
Talvez o tenha feito para purgar sua culpa. Para dar uma justificativa a
si mesmo do seu comportamento.
Que personagem curioso, esse Josefo; e que inquietante conflito
ele propõe. É melhor morrer com dignidade, mas não dar testemunho
do que aconteceu, ou é preferível viver a qualquer preço e, em troca
disso, contar, recordar, denunciar? Há algo de verdadeiramente
repugnante na traição de Josefo, na sua sobrevivência comprada à
força com um custo exorbitante de vidas e de dor. E não estou falando
só de seus companheiros de porão, mas de todo esse povo que ele está
entregando ao verdugo quando se rende. De fato, os judeus o
consideram um personagem abjeto, o exemplo do traidor por
excelência. Mas, por outro lado, a guerra estava perdida, o lugar não
podia ser defendido e cairia de todos os modos em mãos romanas,
produzindo-se a matança de qualquer maneira… Quão tentador e
quão eloquente é o instinto de sobrevivência: com certeza ele
sussurrou todas essas considerações ao general Josefo naquele obscuro
subterrâneo. Pessoalmente, acho que ele é um miserável; mas, ao
mesmo tempo, é tão humano! Seu desejo de viver; seu desejo de
contar. Talvez tenha contado só para se redimir. Com certeza não
conseguia mais suportar suas lembranças e foi por isso que escreveu a
história. Não acho que se escolha viver para poder contar: na
realidade, nos aferramos cegamente à vida por sermos um
animalzinho aterrorizado pela morte. E a decisão de narrar vem
depois. De maneira que, se eu tivesse de julgar Josefo (que mania de
julgar os humanos têm e como ficamos desassossegados e
desconcertados por aqueles casos moralmente ambíguos nos quais
não é possível distinguir com precisão a luz da sombra!), diria que seu
desejo posterior de dar testemunho foi bom e sua traição primeira foi
ruim. Porque não acredito apenas na eloquência das palavras, mas
também em certos atos; e tenho a sensação de que os
comportamentos decentes, embora sejam anônimos e passem quase
despercebidos, constroem as paredes do nosso mundo. Sem esses atos
belos, atos justos, atos bons, a existência seria insuportável.
Vou contar outra história de sobrevivência e de palavras, embora
muito diferente. Para isso, precisamos nos transportar para os confins
gelados da Grande Peste de 1348, uma das maiores pandemias da
história. O mal começou na Ásia, de onde não se tem dados
confiáveis, embora sem dúvida tenha causado uma carnificina
horrível. Daí passou para a Europa e calcula-se que, em menos de um
ano, entre um e dois terços da população morreu. Na Espanha de
hoje, por exemplo, isso suporia entre treze milhões e vinte e seis
milhões de vítimas em menos de doze meses. Paris perdeu a metade
dos seus cidadãos. Veneza, dois terços. Florença, quatro quintos… Os
vivos não bastavam para enterrar os mortos. Os pais abandonavam os
filhos agonizantes por medo do contágio, os filhos abandonavam os
pais, a miséria moral se espalhou. Era um mundo cheio de cadáveres
em decomposição, de moribundos soltando alaridos, porque morriam
de peste bubônica, uma doença atroz, deformadora, muito dolorosa,
que te fazia apodrecer em vida, suando sangue.
Muitos vilarejos desapareceram para sempre, os campos cultivados
foram engolidos pelo mato, os rebanhos morreram de abandono, as
estradas se encheram de assassinos e bandoleiros, houve fome e caos.
E, sobretudo, houve uma tristeza indizível, o luto descomunal pelo
que foi perdido. Agniola di Tura, um cronista de Siena, cidade em que
mais da metade da população sucumbiu, escreveu: “Enterrei com
minhas próprias mãos cinco filhos em um túmulo só… Não houve
sinos. Nem lágrimas. Isso é o fim do mundo”. Naquele tempo
crepuscular e assustador, viveu também John Clyn, um frade menor
que residia em Kilkenny, na Irlanda. Clyn viu morrer, um depois do
outro, com sofrimentos cruéis, todos os seus irmãos de congregação.
Então, na sua solidão de sobrevivente momentâneo, escreveu em
detalhes tudo o que aconteceu, “para que as coisas memoráveis não se
desvaneçam na lembrança dos que virão depois de nós”. E no final do
seu trabalho deixou um espaço em branco e acrescentou: “Deixo
pergaminho a fim de que esta obra seja continuada, se porventura
alguém sobreviver e algum da estirpe de Adão burlar a pestilência e
prosseguir a tarefa que iniciei”. Clyn também caiu abatido pela
doença, como uma mão anônima se encarregou de anotar nas margens
do manuscrito; mas a estirpe de Adão sobreviveu e hoje conhecemos
o que foi a Grande Peste, entre outras coisas, graças ao minucioso
trabalho de John Clyn. Isto é a escrita: o esforço de transcender a
individualidade e a miséria humana, a ânsia de nos unirmos com os
outros em um todo, o afã de nos sobrepormos à escuridão, à dor, ao
caos e à morte. Nas trevas mais profundas, Clyn manteve uma
pequena faísca de esperança e por isso se pôs a escrever. Não foi
possível fazer nada para deter a peste; no entanto, da sua humilde
maneira, esse frade irlandês conseguiu vencê-la com palavras.
Mas o exemplo mais comovente e emocionante que eu conheço
dessa luta das palavras contra o horror é a história de Victor
Klemperer, o célebre linguista alemão, nascido em 1881. Ele era
especializado em línguas românicas e tinha uma cátedra na
Universidade de Dresden quando Hitler chegou ao poder. Klemperer,
que era judeu, foi expulso da universidade em 1933 e, a partir de
então, começou a viver uma terrível agonia sob o terror nazista. O
professor Klemperer era casado com uma mulher ariana, Eva, que teve
a coragem imensa de não repudiá-lo, como fizeram, abatidos pelos
maus-tratos e pelas ameaças, quase todos os cônjuges arianos casados
com judeus. A germanidade da mulher fez com que os Klemperer não
fossem levados nos primeiros tempos aos campos de extermínio. Eles
foram transferidos a “casas de judeus”, careciam de cartões de
racionamento, foram obrigados a trabalhar em horários aniquiladores
nas fábricas essenciais para o regime, cuspiam neles, eram golpeados e
humilhados, morriam de fome, mas, apesar de tudo, sobreviviam,
enquanto observavam como, ao seu redor, todos os judeus iam
desaparecendo. Em seguida, no fim do regime, no último ano da
Segunda Guerra, as coisas já estavam tão mal para os nazistas que eles
começaram a mandar para as câmaras de gás todos os judeus que
restavam, tivessem ou não família ariana; mas nesse momento fatal os
aliados bombardearam Dresden e destruíram completamente a cidade.
Os Klemperer, que escaparam vivos por milagre entre os escombros
da urbe arruinada, arrancaram a estrela de davi das suas roupas e
fingiram ser refugiados de Dresden que tinham perdido tudo,
inclusive os documentos, com o bombardeio. Fugiram para o campo,
como outros sobreviventes, e vagaram de forma épica e clandestina
pelo país durante meses, sem dinheiro, sem posse alguma, já bastante
velhos (em 1945, Klemperer tinha sessenta e quatro anos),
depauperados e debilitados depois de tantos anos de inferno, até que
finalmente a Alemanha se rendeu e a guerra acabou.
Dois anos mais tarde, Klemperer publicou um livro maravilhoso
intitulado LTI: A linguagem do Terceiro Reich, que, por um lado, é uma
reflexão linguística sobre como o totalitarismo de Hitler deformou a
linguagem e, por outro, é uma espécie de diário autobiográfico dos
anos passados sob o nazismo. E é uma obra que deslumbra, atinge a
cabeça e o coração, como se Klemperer tivesse sido capaz de roçar
essa zona de luz cegadora da sabedoria total, da beleza absoluta, do
entendimento. Porque, sem o entendimento de nós mesmos e dos
outros, sem essa empatia que nos une aos outros, não pode haver
sabedoria alguma, beleza alguma.
Para mim, a fome de conhecimentos tem muito a ver com o amor
pela vida e pelos seres humanos; e Klemperer queria saber, queria
tentar explicar para si mesmo o inexplicável. Embora seu livro tenha
sido publicado em uma data precoce como 1947, o texto deslumbra
pela ausência de violência vingativa, pela sua compaixão e sua
generosidade, pelo seu doloroso amor pelo humano, apesar de tudo. E
nesse tudo estão incluídos sofrimentos indizíveis que Klemperer vai
deixando cair sem estrondo, sem vitimismos, em um relato sóbrio,
depurado, sobre a escalada de repressão contra os judeus. Foram
demitidos dos seus trabalhos; impedidos de dirigir, de adquirir roupa
nova, de escutar rádio e de comprar ou pedir emprestado qualquer
tipo de livro ou de jornal… Inclusive, chegou-se a proibir que os
judeus tivessem animais domésticos, com o argumento de que os
contaminavam de impurezas; de modo que, de um dia para o outro,
confiscaram todos os seus cachorros, gatos, peixes e passarinhos, e os
mataram. Essas coisas aconteceram antes mesmo de a Segunda
Guerra começar.
Não sei bem por que essas medidas me espantam de tal modo,
quando sei de sobra que os nazistas acabaram com seis milhões de
judeus e transformaram as crianças em barras de sabonete. Mas é
nesses detalhes em que se pode entrever a perversão mais extrema do
regime, o coração mais obscuro da maldade. Pois não é
particularmente brutal a proibição de adquirir livros e jornais? Não
afeta nossa capacidade de pensamento, nossos sonhos, a liberdade
interior, esse último baluarte da dignidade e da humanidade? E a
matança dos animais de estimação, uma ninharia dentro da matança
geral, não é uma tortura de um refinamento enlouquecedor pelo que
tem de absolutamente gratuito? Inclusive Klemperer, sempre tão
contido em sua expressão, fala da especial crueldade dessa medida (ele
perdeu seu gato). Os verdugos sabiam o que faziam; não queriam só
exterminar fisicamente os judeus, mas também pretendiam lhes
roubar a alma. Daí as humilhações constantes, as cuspidas, os golpes
que Klemperer e sua mulher tiveram de suportar durante anos. Para
assassinar em massa, primeiro é preciso despojar em massa as vítimas
da sua condição humana, como quem descasca uma laranja.
Por isso me aterrorizam especialmente essas orgias delirantes de
desumanização às quais os regimes totalitários se entregam. No
esplêndido livro autobiográfico Cisnes selvagens, de Jung Cheng, que
reflete a vida de três gerações de mulheres chinesas da época imperial
até Mao, Cheng fala de execuções, espancamentos e torturas; mas o
que mais me impressionou foi uma passagem na qual conta que,
quando sua mãe foi detida como suspeita antirrevolucionária, nos
duros interrogatórios, que duraram meses, não pôde ficar sozinha
nem por um segundo. Suas carcereiras chegavam a dormir na mesma
cama que ela, de modo que a vítima não podia se permitir sequer
chorar de madrugada, porque essa debilidade teria sido considerada
burguesa e uma prova inequívoca da sua culpa. Imagino que, para não
chorar, a mãe de Cheng teria de tentar não pensar. Intumescer por
dentro. Isto é o que os maoistas perseguiam: asfixiar até essa pequena
liberdade, a minúscula pulsação de um pensamento próprio sepultado
no interior da cabeça.
Já contei como Klemperer se virou para sobreviver fisicamente ao
nazismo, mas como conseguiu resistir dentro de si, como pôde evitar
que sua cabeça e seu coração se despedaçassem? Pois bem, da maneira
mais radicalmente humana: pensando, escrevendo mentalmente,
disparando palavras na escuridão, como séculos antes fizera o frade
John Clyn. Durante todos esses anos miseráveis, Klemperer, privado
dos seus livros e de seus papéis, foi elaborando dentro da cabeça essa
obra formidável que depois publicou em 1947: um trabalho sobre a
língua dos verdugos, quer dizer, sobre o pensamento dos verdugos; e
sobre como uma tal aberração chega a tocar a alma humana.
“As palavras pesam e dizem mais do que dizem”, escreve
Klemperer no seu livro. “A linguagem do vencedor é falada
impunemente.” Por isso, ele se dedicou a desmontá-la, como quem
desarma um artefato explosivo, para não ser devorado pela linguagem
totalitária, para que não se intumescessem sua pequena liberdade, sua
pequena dignidade, entrincheiradas no fundo do seu cérebro. E
termina denunciando “a hipocrisia afetiva do nazismo, o pecado
mortal da mentira consciente empenhada em transladar para o âmbito
dos sentimentos as coisas subordinadas à razão, o pecado mortal de
arrastar essas coisas para a lama da obnubilação sentimental”. É uma
lúcida advertência de perigo: as palavras, quando mentem lambuzadas
de sentimentalismo, podem ser tão letais como as balas de um
assassino. Lendo LTI: A linguagem do Terceiro Reich, pensei inúmeras
vezes no abertzale basco; isto é, reconheci a linguagem do ETA e do
Batasuna. Todos os totalitarismos se parecem.
Como também nós, humanos, nos parecemos na nossa fragilidade
e insignificância. Klemperer conta no seu livro uma historinha
maravilhosa a esse respeito:
Lembro a travessia que realizamos há vinte e cinco anos de
Bornholm a Copenhague. Durante a noite, a tempestade e as
tonturas tinham nos transtornado; na manhã seguinte, protegidos
pela costa e com o mar calmo, desfrutávamos do sol na coberta e
ansiávamos pelo café da manhã. Nisso, uma menina que estava
sentada em uma extremidade do longo banco se levantou, correu
até o parapeito e vomitou. Um segundo mais tarde, sua mãe,
sentada ao seu lado, se levantou e vomitou também. Em seguida,
foi a vez de um homem sentado ao lado da mãe. Depois um rapaz e
assim, sucessivamente… O movimento avançava com regularidade
e rapidez, seguindo a linha do banco. Ninguém ficou de fora.
Faltava muito para chegar à nossa ponta: ali, as pessoas observavam
com interesse, riam, faziam cara de zombaria. Os vômitos foram se
aproximando, as risadas diminuindo e as pessoas começaram a
correr até o parapeito também na nossa ponta. Eu observava com
atenção e observava a mim com igual atenção. Eu dizia a mim
mesmo que existia algo assim como uma observação objetiva, como
uma vontade férrea, e ansiava pelo café da manhã… Nisso, chegou
minha vez e me vi obrigado a me aproximar do parapeito, como
todo mundo.

Isso é importante. Talvez o mais comovente de Klemperer seja


precisamente isto, a grandeza emocional e intelectual que ele
conseguiu desenvolver no meio do inferno, quando na realidade o
linguista podia ser tão pouco grandioso e tão cheio de misérias como
todos nós somos. Em uma conferência do estupendo hispanista
alemão Hans Neuschäfer, fiquei sabendo que Klemperer viera à
Espanha com sua mulher em 1926, com uma bolsa de três meses que
não chegou a completar, porque nosso país lhe pareceu tão horroroso
(principalmente o azeite de oliva) que foi embora depois de sessenta
dias, de barco e para Gênova. E quando chegou à Itália, que nessa
época já estava sob o regime fascista, escreveu:
Em nenhum lugar da Espanha encontrei uma civilização tão clara e
tão grande. Aqui na Itália o Renascimento continua vivo, livre de
qualquer mistura africana. Que reina aqui o fascismo? Que importa
isso? A Itália é um país de cultura, é o berço da cultura europeia e
essa cultura vive; já a Espanha pouco tem a ver com a Europa. E,
além disso, aqui não fede a azeite.

Provavelmente em 1926 a Espanha tinha pouco a ver com a Europa,


com efeito, mas o parágrafo está cheio dessa irracionalidade emocional
que ele denunciará mais tarde, o que é alentador, porque demonstra
que, mesmo sendo desajeitados e arbitrários como somos, podemos
nos elevar até sermos quase deuses.
A realidade é sempre assim: paradoxal, incompleta, desajeitada. Por
isso meu gênero literário preferido é o romance, aquele que se dobra
melhor à matéria alquebrada da vida. A poesia aspira à perfeição; o
ensaio, à exatidão; o drama, à ordem estrutural. O romance é o único
território literário no qual reina a mesma imprecisão e desmesura que
há na existência humana. É um gênero sujo, híbrido, alvoroçado.
Escrever romances é um ofício que carece de glamour; somos os
operários da literatura, tendo de pôr tijolo após tijolo, sujar nossas
mãos e cansar as costas, no esforço de erguer uma humilde parede de
palavras que, no pior dos casos, desaba. Redigir um romance dá um
trabalho gigantesco, em geral tedioso, frequentemente desesperador;
por exemplo, você pode gastar uma tarde inteira lutando para fazer
alguém entrar ou sair de um cômodo, quer dizer, para algo
verdadeiramente bobo, circunstancial, como diria Aira, em aparência
desnecessário. Acontece que os romances estão cheios de material
inerte e, mesmo que você escreva sob a férrea aspiração de não pôr
uma palavra a mais e de fazer uma obra substancial e precisa, um
verdadeiro romance sempre terá algo que sobra, algo irregular e
desalinhado (os crustáceos grudados na baleia), porque é uma imitação
da vida e a vida nunca é exata. De modo que mesmo os melhores
romances da história, os grandes romanções maravilhosos, têm
páginas ruins, enfraquecimentos de tensões, carências óbvias. Eu
gosto disso. Me reconheço nisso; quer dizer, reconheço o sopro
titubeante das coisas.
Falando de paradoxos: Klemperer inclui no seu livro uma cena
maravilhosa que reflete a natureza profundamente equívoca da
realidade. Nos últimos meses da guerra, quando estão fugidos e vagam
aterrorizados pelo campo, Klemperer e sua mulher se escondem em
um bosque próximo da cidade de Plauen, que está sendo
bombardeada periodicamente pelos aliados. É o mês de março e,
embora ainda haja neve, a primavera começa a despontar no ambiente.
Mas, para Klemperer, o bosque tem um inequívoco aspecto natalino,
porque os galhos dos pinheiros estão cheios de cintilantes fitas de
papel prateado jogadas pelos aviões aliados para confundir os radares
alemães. E, assim, escondidos nesse bosque brilhando com enfeites,
tão lindo e festivo, os Klemperer, alemães mas também judeus e
vítimas de Hitler, escutam como os aviões dos inimigos do seu país
passam por cima da cabeça deles para semear a morte da pobre
Plauen.
Doze

Lembro-me da primeira vez que compreendi que a morte existia. Eu


devia ter uns cinco anos e estava lendo O gigante egoísta, o lindo conto
infantil de Oscar Wilde. Acabei a história, olhei a orelha e fiquei
sabendo que a pessoa que escrevera aquilo tinha morrido muitos anos
atrás. É claro que eu não conseguia entender a medida daqueles anos,
mas eu sabia que significava tempo demais: de fato, ele morrera antes
de eu nascer. E morrer, entendi de repente, era não estar mais em lugar
nenhum. Nem escondido, nem dormindo, nem em outro quarto, nem
em outra casa. Ele simplesmente não estava e nunca mais estaria de
novo. Era uma coisa impossível, impensável, mas que acontecia. No
entanto, esse homem que não estava mais continuava me contando
seu lindo conto. Eu podia continuar lendo-ouvindo suas palavras.
Imagino que essa foi outra das razões pelas quais me tornei escritora.
Já sabemos que se escreve contra a morte, mas a verdade é que
sempre me surpreendeu e me divertiu a ânsia de posteridade que
muitos escritores têm. Para sermos exatos, é um defeito
eminentemente masculino: em muito poucas mulheres romancistas
encontrei vestígios desse afã. Talvez seja porque as mulheres acalmam
essa fome elementar de sobrevivência com sua capacidade
reprodutora; quem sabe a exigência genética de não perecer fique
suficientemente saciada com o ordálio milagroso da gravidez e do
parto. Mas, então, onde se enquadram as mulheres que, como eu, não
tiveram filhos e fabricaram para si mesmas uma biografia
aparentemente pouco feminina? Minha irmã Martina, a fazedora, diz
que eu não sou uma mulher, sou uma mutante; mas também não
percebo entre nós, as escritoras mutantes, esse mesmo frenesi para
deixar rastros que é possível perceber em tantos homens.
E é uma ambição que não afeta só os idiotas. Ou seja, não só
unicamente os escritores mais vaidosos, mais egocêntricos e mais
insuportáveis imaginam seu nome nas enciclopédias para conforto e
proveito das gerações vindouras. Tenho amigos literatos estupendos,
gente talvez um pouco narcisista, mas encantadora, que fica
arrebatada pela posteridade. Logo fazem doações das suas cartas para
alguma biblioteca, arrumam seus papéis com datas e esclarecimentos à
margem, prevendo futuros biógrafos, rasgam as fotos nas quais não
gostam da sua aparência, realizam anotações em diários privados que,
na verdade, só são feitas para serem lidas algum dia publicamente…
Fico fascinada com essa ansiedade de perdurar, porque me parece
estapafúrdia. O tempo tritura tudo, deforma e apaga tudo, e há autores
e autoras importantíssimos que se perderam para sempre na memória
do mundo. Por exemplo, a maravilhosa George Eliot, para mim uma-
um dos maiores romancistas da história, é praticamente uma
desconhecida no mundo hispânico, e no anglo-saxão, em que é um
clássico escolar, ninguém a lê. E Eliot ainda tem sorte, porque no fim
das contas entrou no panteão literário da língua mais poderosa do
planeta. Pior e muito mais comum é o caso de milhares de escritores e
escritoras cujos nomes ignoramos, porque o rastro da sua vida e das
suas obras se apagou por completo da face da Terra. Esse é o destino
reservado praticamente para todos nós. Aspirar a outra coisa é
bastante ridículo.
Mesmo assim, há uma inquietação difícil de superar, que é a
curiosidade ou a preocupação com a imagem que ficará da gente na
primeira ressaca depois da morte, quer dizer, nesses meses ou
inclusive anos nos quais ainda se lembrarão de você depois de
falecido. O que dirão? Como fecharão a narração da sua vida? Posto
que nossa existência é uma história que vamos contando a nós
mesmos à medida que crescemos, adaptando-a e mudando-a segundo
as circunstâncias, é chato pensar que a versão final dessa narrativa será
redigida pelos outros.
Gay Talese, no seu clássico e substancioso livro Fama e anonimato,
conta o caso de Lowell Limpus, um repórter do Daily News de Nova
York, encarregado de escrever os artigos necrológicos para o jornal e
que redigiu seu próprio necrológio. Limpus morreu em 1957 e, no dia
seguinte, o Daily publicou um texto com sua assinatura que começava
dizendo: “Esta é a última das oito mil e setecentas histórias escritas
por mim que aparecerá no News. Tem de ser a última, uma vez que eu
morri ontem… Escrevi meu próprio necrológio porque conheço
melhor do que ninguém o sujeito em questão e prefiro que a história
seja mais sincera do que floreada”. É claro que um artigo assim é um
fim de festa bem-sucedido, mas tenho minhas dúvidas sobre a
precisão do que ele diz. Porque, por um lado, é verdade isso de que
conhecemos a nós mesmos melhor do que ninguém? Não estamos
todos submetidos, em maior ou menor grau, a certa idealização, certo
aprimoramento da nossa pessoa? Eu pelo menos topei com um bom
punhado de pessoas tão convencidas que não pareciam ter a mais
mínima ideia de como eram. E quanto a preferir que seja mais sincera
do que floreada, isso é crível? Uma autobiografia pode ser sincera?
Não estão todas impregnadas, inclusive as mais autocríticas e as mais
honestas, de uma boa dose de imaginação?
Seja como for, todos nós gostaríamos de ditar do além nosso
retrato póstumo. Claro que a gente pode fazer como Limpus e
preparar o próprio necrológio antecipadamente, mas não é a mesma
coisa, porque então o artigo pode se transformar em um simples
enunciado de desejos. Por exemplo, se eu escrevesse hoje meu texto
final, talvez dissesse algo assim: “Nesta madrugada, enquanto dormia,
morreu a escritora Rosa Montero por causa de uma parada cardíaca.
Montero, de oitenta e três anos, acabara de voltar de Vancouver, onde
lançara seu último romance, e estava trabalhando em um livro de
contos. Ativa, curiosa, vital e inquieta até o fim, a escritora fazia
ginástica todos os dias, estava cursando história medieval na
Universidade Complutense de Madri, continuava viajando com
frequência e mantinha um ritmo de vida que seus numerosos amigos
costumavam qualificar de ‘trepidante’…”. E assim por diante. Enfim.
Devaneios pueris à parte, o certo é que parece curioso pensar em
como gostaríamos que se lembrassem de nós, não mais do ponto de
vista pessoal, de nossos amigos e nossa família, que têm uma
lembrança emocional, mas da perspectiva profissional, do exterior.
Isto é, o que eu gostaria que dissessem de mim como escritora?
Um dia em que eu andava muito desesperada porque o romance
que estava escrevendo resistia a mim, Jorge Enrique Adoum, o célebre
autor equatoriano, me enviou por e-mail uma eloquente frase que me
consolou, fazendo com que eu entendesse melhor a natureza do
trabalho narrativo. É dos irmãos Goncourt e diz assim: “A literatura é
uma facilidade inata e uma dificuldade adquirida”. E sim, é verdade, é
exatamente isso. Suponho que possa ser aplicada a todas as atividades
artísticas e não só à literatura, mas, seja como for, é algo que a
narrativa cumpre completamente. Todos os romancistas que me
interessam lutaram a vida toda contra essa facilidade. A construção da
própria obra é um esforço constante para escrever da fronteira do que
não se sabe. É preciso fugir do que a gente domina, dos lugares-
comuns pessoais, do conhecido: “A única influência da qual é preciso
se defender é da própria”, dizia com toda razão Bioy Casares. E
Rudyard Kipling aconselhava os escritores principiantes: “Assim que
vir suas faculdades aumentando, tente alguma coisa que pareça
impossível”. Não há nada mais penoso do que um romancista que
copia a si mesmo.
Isaiah Berlin diz que há dois tipos de escritores, os porcos-
espinhos e as raposas. Os primeiros se enroscam e dão voltas em
torno do mesmo tema, enquanto as raposas são animalejos itinerantes
que avançam sem parar por assuntos diferentes. Não é uma divisão
valorativa, apenas descritiva. Quer dizer, um autor raposa não precisa
ser necessariamente melhor do que um autor porco-espinho, porque
ruminar sem trégua a mesma coisa não implica uma repetição forçada;
antes o contrário, os bons escritores porcos-espinhos se aprofundam e
se aprofundam no tema, como quem enfia um berbequim na madeira.
Um exemplo é Proust, esse porco-espinho total, sempre feito um
novelo na sua eterna cama de hipocondríaco, sempre perambulando
nos arredores da sua única obra, primeiro com Jean Santeuil, que é só
um ensaio geral, juvenil e fracassado, e depois com a monumental e
maravilhosa Em busca do tempo perdido.
Uma vez esclarecido isso, devo confessar que eu me considero cem
por cento raposa, da trufa do meu focinho preto às minhas patinhas
andarilhas. Ando e ando, de romance em romance, descobrindo
paisagens inesperadas. E tento não me conformar, não me repetir. O
que faz com que cada livro seja mais difícil de escrever do que o
anterior. Não sei se aguentarei nessa fronteira por muito tempo: é um
lugar incômodo e os humanos, incluindo os de espírito raposino, são
uns bichos bastante fracos. Por isso, se penso hoje no que gostaria que
escrevessem no meu necrológio, acho que me bastaria se pudessem
dizer: “Nunca se contentou com o que sabia”.
Treze

Suponho que não tenho escolha a não ser falar sobre o enervante
assunto das mulheres.
Venho há trinta anos fazendo entrevistas com outras pessoas, como
jornalista, e há vinte e cinco anos sendo entrevistada como escritora.
Nesse tempo, houve duas perguntas que me foram feitas até a
exaustão, até o desespero, até a ira. Não estou exagerando: talvez
tenham sido formuladas umas mil vezes, em toda a América Latina,
nos Estados Unidos, na Espanha e no resto da Europa; na mídia ou
durante as conversas dos eventos públicos. Por isso, cada vez que
alguém me pergunta de novo uma dessas duas questões, fico fora de
mim e me vem uma vontade estrondosa de rugir e bufar. Essas duas
fatídicas perguntas são: existe uma literatura de mulheres? E: o que
você prefere, ser jornalista ou escritora? E suponho que, dada a
pertinaz curiosidade que esses temas suscitam, devo fazer um esforço
e respondê-las neste livro.
No transcurso de um simpósio internacional sobre literatura de
mulheres, realizado na Universidade de Lima em 1999, disse pela
primeira vez em público uma frase que depois vi ser repetida por
outras, transformada em um tópico coletivo. Perdoem-me a presunção
(ah, a vaidade) de reivindicar a autoria da frase, mas talvez seja a única
ocasião na qual um pensamento meu tenha adquirido vida própria,
passando a fazer parte dos dizeres anônimos de uma sociedade. E o
que eu disse foi: Quando uma mulher escreve um romance
protagonizado por uma mulher, todo mundo considera que está
falando sobre mulheres; enquanto quando um homem escreve um
romance protagonizado por um homem, todo mundo considera que
está falando do gênero humano.
Não tenho interesse nenhum, absolutamente nenhum, em escrever
sobre mulheres. Quero escrever sobre o gênero humano, mas por
coincidência cinquenta e um por cento da humanidade é do sexo
feminino; e, como pertenço a esse grupo, a maioria das minhas
protagonistas é mulher, do mesmo modo como os romancistas
homens utilizam em geral personagens principais masculinos. E já é
hora de os leitores homens se identificarem com as protagonistas
mulheres, da mesma maneira que nós nos identificamos durante
séculos com os protagonistas masculinos, que eram nossos únicos
modelos literários; porque essa permeabilidade, essa flexibilidade do
olhar, fará de todos nós mais sábios e mais livres.
Mas preciso remontar ao início, até o muito tedioso ABC do
assunto, voltando a contar uma vez mais as mesmas obviedades. Para
começar pela primeira: não, não existe uma literatura de mulheres. A
gente pode fazer a prova de ler para outra pessoa fragmentos de
romances, e estou certa de que o ouvinte não adivinhará o sexo dos
autores para além do mero acerto estatístico. Um romance é tudo o
que o escritor é: seus sonhos, suas leituras, sua idade, sua aparência
física, suas doenças, seus pais, sua classe social, seu trabalho… e
também seu gênero sexual, sem dúvida alguma. Mas isso, o sexo, não
passa de um ingrediente dentre muitos outros. Por exemplo, no
mundo ocidental de hoje, o fato de ser mulher ou de ser homem
impõe menos diferenças de olhar do que o fato de provir de um meio
urbano ou de um meio rural. Portanto, por que se fala de literatura de
mulheres e não de literatura de autores nascidos no campo ou de
literatura de autores com deficiências físicas, para dar um exemplo,
que com certeza te dão uma percepção radicalmente diferente da
realidade? O mais provável é que eu tenha muito mais a ver com um
autor espanhol homem, da minha mesma idade e nascido na grande
cidade, do que com uma escritora negra, sul-africana e de oitenta anos
que tenha vivido no apartheid. Porque as coisas que nos separam são
muitas mais do que as que nos unem.
Eu me considero feminista ou, melhor dizendo, antissexista,
porque a palavra feminista tem um conteúdo semântico equívoco:
parece se opor ao machismo e sugerir, portanto, uma supremacia da
mulher sobre o homem, quando o grosso das correntes feministas não
só não aspira a isso, mas reivindica justamente o contrário: que
ninguém seja submetido a ninguém em razão do seu sexo, que o fato
de ter nascido homem ou mulher não nos confine em um estereótipo.
Mas minha preferência pelo termo antissexista não quer dizer que eu
renegue a palavra feminista, que pode ser pouco precisa, mas está cheia
de história e resume séculos e séculos de esforços de milhares de
mulheres e homens que lutaram para mudar uma situação social
aberrante. Hoje somos todos herdeiros dessa palavra: ela fez com que
o mundo se movesse e eu me sinto orgulhosa de continuar utilizando-
a.
Pois bem, o fato de se considerar feminista não implica que seus
romances o sejam. Detesto a narrativa utilitária e militante, os
romances feministas, ecologistas, pacifistas ou qualquer outro ista que
possa ser pensado, porque escrever para passar uma mensagem trai a
função primordial da narrativa, seu sentido essencial, que é o da busca
do sentido. Escreve-se, pois, para aprender, para saber; e não se pode
empreender essa viagem de conhecimento levando previamente as
respostas com a gente. Mais de um bom autor se estragou pelo seu afã
doutrinário; embora às vezes, em alguns casos especiais, se dê a
circunstância de que o próprio talento salva o escritor da cegueira dos
seus preconceitos, como aconteceu, por exemplo, com Tolstói, que
era um homem extremamente retrógrado e machista. De fato, ele se
propôs a escrever Anna Kariênina como exemplo moral de como a
modernidade destruía a sociedade tradicional russa; pretendia explicar
que o progresso era tão imoral e dissolvente que as mulheres
cometiam até adultério! O romance partiu desse preconceito arcaico,
mas depois o poderoso dom narrativo de Tolstói, seu daimon, seus
brownies, o tiraram do confinamento da sua ideologia e o fizeram se
render à verdade das mentiras literárias. Daí que, no seu romance,
acabasse emergindo o contrário do que pretendia: a hipocrisia social, a
vitimação de Anna, a injustiça do sexismo.
Além disso, nenhum daimon parece disposto a salvar críticos,
acadêmicos, enciclopedistas e demais personagens da cultura oficial
dos seus preconceitos. Quero dizer que, embora no mundo ocidental
a situação tenha melhorado demais, a cultura oficial continua sendo
machista. Nos congressos, as escritoras costumam ainda ser citadas
como um capítulo à parte, um paragrafozinho anexo à conferência
principal (“E, quanto à literatura de mulheres…”); mal aparecemos nas
antologias, nos sisudos artigos universitários, nos resumos de final de
ano ou década ou século que a mídia costuma fazer de vez em quando.
Não estamos suficientemente representadas nas academias ou nas
enciclopédias nem costumam nos encomendar as apresentações sérias
nos encontros internacionais. Os críticos são tremendamente
paternalistas e mostram uma inquietante tendência a confundir a vida
da escritora com sua obra (coisa que não acontece com os romancistas
homens), a ver em todos os romances de mulheres uma literatura
contemplativa e sem ação (mesmo sendo o thriller mais trepidante) e,
é claro, como dizíamos no início, a pensar que aquilo que uma mulher
escreve trata só de mulheres e é, por conseguinte, material humano e
literário de segunda. Por sorte, essa cultura oficial retrógrada vai
também se feminilizando; cada dia há mais eruditas, críticas e
professoras universitárias, e isso está mudando a situação; mas
algumas dessas profissionais se empenham em fazer resenhas,
antologias e estudos literários desaforadamente feministas, quer dizer,
ideologizados até o dogmatismo e, do meu ponto de vista, quase tão
sexistas e contraproducentes como o preconceito machista. Embora
partam da margem contrária, elas também pensam que o que uma
mulher escreve trata tão só de mulheres.
Lembremos que as mulheres viviam em um vertiginoso abismo de
desigualdade até faz muito pouco tempo. Não nos foi permitido
sequer estudar na universidade até bem avançado o século XX; não nos
foi permitido votar até uns setenta anos atrás (na França, em 1944, por
exemplo); durante muitíssimo tempo, enfim, não podíamos trabalhar,
nem viajar sozinhas, nem ter autonomia legal. Viemos do inferno, de
um horror muito próximo que parecemos ter esquecido; e estou
falando apenas do mundo ocidental, que foi o que evoluiu; em países
menos desenvolvidos, a mulher continua sendo um ser carente de
direitos.
Com um panorama como esse, é natural que houvesse muito
poucas escritoras. Já se sabe que, segundo as modernas teorias, é
bastante provável que muitas das obras anônimas sejam produto
literário de uma mulher, que não podia dar a conhecer sua autoria; por
outro lado, um bom número de escritoras se amparou em
pseudônimos masculinos para poder trabalhar e publicar. Como
George Eliot, ou George Sand, ou nossa Fernán Caballero, ou a
própria Isak Dinesen; ou usaram o nome do marido, tornando-se
assim suas sofridas ghost-writers literárias, como no caso dos
primeiros livros de Colette, assinados por Willy, ou toda a obra da
nossa María Lejárraga, publicada sob o nome de Martínez Sierra, o
inútil cônjuge, que fingiu durante todo o século XX (a fraude foi
descoberta faz pouco tempo) ser um autor teatral de grande sucesso.
Sendo, como eram, excepcionais no seu entorno, a maioria delas
tentava escrever como homenzinhos. Nas suas obras jornalísticas,
George Sand, por exemplo, chegava a falar de si mesma como se fosse
homem, em uma espécie de travestismo narrativo, pois não havia
modelos expressivos femininos que ela pudesse utilizar. Se ela tivesse
posto a si mesma como mulher, o texto teria parecido estridente
demais, chocante demais para os leitores, teria saído da convenção
narrativa do momento. Isto é importante: durante muitos anos, não
tendo modelos literários e artísticos femininos, a mulher criadora
tendeu a mimetizar o olhar masculino.
Esse olhar, por outro lado, é também nosso em grande medida. É
evidente que mulheres e homens de uma mesma época e de uma
mesma cultura compartilham uma infinidade de coisas, com mitos e
fantasmas comuns. No entanto, nós, mulheres, temos um pequeno
núcleo de vivências específicas pelo fato de sermos mulheres, da
mesma maneira que os homens possuem um canto especial. Por
exemplo: os homens passaram milênios construindo literariamente
uns modelos de mulher que, na realidade, não correspondem a como
nós somos, mas a como eles nos veem, através das diversas fantasias
do seu subconsciente: a mulher como perigo (a vampira que suga a
energia e a vida do homem), a mulher terra-maga-mãe, a mulher
garota-gata-boba estilo Marilyn… Não há nada a ser objetado em tudo
isso, porque esses protótipos existem de verdade dentro da cabeça dos
homens, e trazê-los à luz enriquece a descrição do mundo e o
entendimento do que todos somos.
Pois então, agora cabe a nós, mulheres, fazer o nosso mundo.
Juntas estamos também pondo para fora nossas imagens míticas dos
homens. Eles nos veem assim, mas e nós, como os vemos no nosso
subconsciente? E que forma artística é possível dar a esses
sentimentos? E esse não é o único tema especificamente feminino.
Citarei outro assunto que está emergindo das profundezas da mente
das mulheres: como nos sentimos de verdade, lá no fundo, que sonhos
e que medos se ocultam aí, e como podemos expressá-los? Só mais
um exemplo: a menstruação. Acontece que as mulheres sangram de
modo espalhafatoso e às vezes com dor todos os meses, e acontece
que essa função corporal, tão espetacular e vociferante, está
diretamente relacionada com a vida e com a morte, com a passagem
do tempo, com o mistério mais impenetrável da existência. Mas essa
realidade cotidiana, tão carregada de ingredientes simbólicos (por isso
os povos chamados primitivos costumam rodear a menstruação de
ritos muito complexos), é, no entanto, silenciada e absolutamente
ignorada na nossa cultura. Se os homens menstruassem, a literatura
universal estaria cheia de metáforas do sangue. Pois então, são essas
metáforas que as escritoras precisam criar e pôr em circulação na
torrente geral da literatura. Agora que, pela primeira vez na história,
pode haver tantas escritoras quanto escritores; agora que não somos
mais exceções, agora que nossa participação na vida literária se
normalizou, dispomos de total liberdade criativa para nomear o
mundo. E há umas pequenas zonas da realidade que só nós podemos
nomear.
E estamos fazendo isso. É um processo natural, acumulativo,
automático. Todos os escritores tentam definir, descrever, arrumar
com palavras seu espaço; e à medida que o entorno no qual você vive
muda, o relato difere. Por exemplo, para poder construir pela primeira
vez um arquétipo cultural do que é a vida em alto-mar, do que é se
perder no oceano e lutar contra a enormidade e as inclemências, você
precisa ter conhecido isso. Melville foi marinheiro; alistou-se em
alguns barcos baleeiros, um deles tão atroz que ele desertou. Por isso
soube contar. Por isso conseguiu inventar Moby Dick. Pois bem:
quando gerações e gerações de escritores conseguiram dar forma
pública e literária a um tema, quando conseguiram transformá-lo em
um mito expressivo, essa realidade passa a ser material comum de
todos os humanos. Porque ler é uma forma de viver. Quero dizer que
eu, que detesto andar de barco, que nunca estive em alto-mar e fico
enjoada até no vaporetto de Veneza, poderia, no entanto, escrever uma
narrativa que incluísse ingredientes marinhos, pois o conheço graças
às minhas leituras; e não estou falando do jargão técnico, de saber o
que é o amantilho ou onde fica o cordame, mas de algo profundo, do
sentimento que o oceânico desperta no coração dos humanos. Da
mesma maneira, à medida que nós, mulheres romancistas, vamos
completando essa descrição de um mundo que antes só existia dentro
de nós, vamos transformando-o em patrimônio de todos; e os homens
também poderão utilizar as metáforas sangrentas como se fossem
deles ou tentarão se adaptar aos nossos modelos de homens, como
muitas mulheres tentam se parecer com os modelos de mulher que
eles inventaram. Tão poderosa assim é a imaginação.
Quanto à outra pergunta repetitiva e tediosa, “o que você prefere,
ser jornalista ou escritora?”, devo dizer que, de saída, está mal
formulada. Há muitos tipos de jornalismo: de direção e de edição, de
televisão, de rádio… E esses trabalhos são muito diferentes do que eu
faço. O jornalismo ao qual me dedico, que é o escrito, de pena, de
articulista e repórter, é um gênero literário como qualquer outro,
equiparável à poesia, à ficção, ao drama, ao ensaio. E pode alcançar
cotas de excelência literária tão altas como um livro de poemas ou um
romance, como demonstra A sangue frio, de Truman Capote, essa obra
monumental que na realidade não passa de uma reportagem. Por
outro lado, é muito raro um escritor que cultive só um gênero; o
habitual é ser, por exemplo, poeta e ensaísta, narrador e dramaturgo…
Eu me considero uma escritora que cultiva a ficção, o ensaio e o
jornalismo. Não sei por que parece surpreender as pessoas que se
combine jornalismo e narrativa, quando é algo para lá de comum. Se
repassamos a lista dos escritores dos últimos séculos, pelo menos a
metade, quem sabe mais, foi jornalista. E não me refiro a Hemingway
e García Márquez, que são os nomes sempre citados, mas a Balzac,
George Eliot, Oscar Wilde, Dostoiévski, Graham Greene, Dumas,
Rudyard Kipling, Clarín, Mark Twain, Italo Calvino, Goethe, Naipaul
e muitos outros, tantos que a listagem não acabaria nunca.
De fato, essa pergunta só pode ter sido formulada no século XX,
mais ainda, na segunda metade do século XX, pois antes as fronteiras
entre o que era jornalístico e o que era narrativo eram extremamente
borradas. Os escritores realistas e naturalistas do século XIX
documentavam seus romances com a mesma meticulosidade que o
jornalista de hoje se documenta para uma reportagem. Dickens se
apresentou em vários internatos ingleses, fingindo-se de tutor de um
possível pupilo, para se inteirar das condições de vida dessas
instituições e poder descrevê-las em A vida e as aventuras de Nicholas
Nickleby; e Zola fez uma viagem a Lourdes no sórdido trem dos
enfermos (e anotou tudo, do nome e sintomas das doenças à rotina
ferroviária da peregrinação) e a descreveu ponto por ponto em um
romance. Naquela época, as pessoas liam os livros de ficção como
quem lê um jornal, convencidas de que estavam lendo verdades
literais, ou seja, desse tipo de verdades que poderiam ser autenticadas
por um notário. Foi a chegada da sociedade da informação e da
imagem, foi a irrupção da fotografia, do cinema, dos documentários e,
sobretudo, da televisão, que mudou o sentido da narrativa e
estabeleceu fronteiras mais ou menos precisas entre o jornalismo e a
ficção, tornando-os gêneros literários diferenciados.
Todos os gêneros têm suas normas e, em princípio, seria
necessário se ater a essas regras para realizá-los bem. Não é possível
escrever uma obra de teatro como se fosse um ensaio, porque
provavelmente seria chatíssima; e não se deve escrever um ensaio
como se fosse poesia, pois é muito possível que fique faltando rigor.
Do mesmo modo, não é possível escrever um romance como se fosse
jornalismo, ou você fará um romance ruim, nem jornalismo como se
fosse ficção, porque você fará jornalismo ruim. Depois, claro, todos
esses limites podem ser ignorados e ultrapassados centenas de vezes,
porque, além disso, hoje a literatura está vivendo um tempo
especialmente híbrido no qual predomina a confusão de gêneros: este
livro mesmo que estou escrevendo é um exemplo disso. Mas para
poder romper os moldes é preciso conhecê-los previamente, da
mesma maneira que, para poder fazer cubismo, antes era preciso saber
pintar de modo convencional (Picasso dixit).
E, assim, é preciso que fique muito claro que o jornalismo e a
narrativa são gêneros muito diferentes e inclusive antitéticos. Por
exemplo, no jornalismo, a clareza é um valor: quanto menos confusa e
menos equívoca for uma peça jornalística, melhor será. Já no romance,
o que vale é a ambiguidade. Quem sabe possamos dizer, para resumir
a diferença fundamental, que no jornalismo você fala do que sabe e, na
narrativa, do que não sabe que sabe. Pessoalmente, afinal, eu me sinto
sobretudo romancista. Comecei escrevendo ficções, uns contos
horrorosos de ratinhos que falavam, aos cinco anos de idade; e, se me
tornei jornalista, foi para ter uma profissão que não me afastasse
demais da minha paixão de narradora. Posso me imaginar facilmente
sem ser jornalista, mas não me concebo sem os romances. Se esse
tumulto de devaneios narrativos acabasse para mim, como me viraria
para continuar me levantando da cama todos os dias?
Catorze

Aos dezoito anos de idade, morando ainda na casa dos meus pais, uma
noite conheci a escuridão. Foi depois de jantar; eu continuava sentada
à mesa, que já tinha sido retirada; sozinha na sala, contemplava a
televisão com tédio. E então, sem aviso prévio, aconteceu. A realidade
se afastou de mim, ou melhor, eu saí da realidade. Comecei a ver o
cômodo alheio a mim, fisicamente distante, inalcançável, como se
estivesse contemplando o mundo com uma luneta (isso, depois fiquei
sabendo, se chama efeito túnel). De repente, eu estava fora das coisas,
tinha caído da vida. Imediatamente senti, como é natural, um pânico
terrível. Acho que nunca experimentara tanto medo na vida. Meus
dentes batiam e os joelhos tremiam, de tal modo que mal podia ficar
de pé. Eu não entendia nada, não sabia o que estava acontecendo
comigo, só conseguia pensar que estava louca, o que aumentava meu
pavor. E, além disso, era incapaz de explicar o que me ocorria: como?
Dizendo o quê? Para quem? Os outros tinham ficado muito longe, do
outro lado do túnel do meu olhar. Era uma situação que rompia todas
as convenções expressivas, um pesadelo diurno e inefável. Eu, que
sempre vivera em um ninho de palavras, ficara capturada no silêncio.
A sensação aguda de alheamento passou em uns minutos, mas
deixou o mundo coberto por um véu de irrealidade, como se a
essência das coisas tivesse se debilitado; e eu fiquei muito assustada,
morta de medo de que o medo voltasse. Voltou, é claro: nos meses
seguintes tive mais algumas crises, sozinha no meio da rua, ou em
uma aula da universidade, ou enquanto estava com amigos… Deixei
de ir ao cinema e a lugares públicos grandes e barulhentos, porque
estimulavam a sensação de estranhamento. E eu continuava sem
poder falar sobre isso com ninguém. Na minha época e na minha
classe social, nem me ocorreu ir a um psicólogo e, é claro, não tomei
nenhum remédio. Minha mãe, vendo que eu estava péssima, me
recomendou que deixasse de beber café, coisa que fiz. Foi um
conselho sensato, afinal de contas, embora não servisse para grande
coisa. Pouco a pouco, com o passar do tempo, voltei à normalidade.
Nesse meio-tempo, decidira estudar psicologia na universidade, para
tentar entender o que tinha acontecido comigo. Isso é algo muito
habitual: eu diria que a imensa maioria dos psiquiatras e psicólogos
que há no mundo são indivíduos que tiveram problemas mentais, o
que não me parece necessariamente negativo, pois essa experiência
pode dar a eles uma sensibilidade maior para seu trabalho. O ruim é
que muitos não se tornam psiquiatras ou psicólogos para desentranhar
o que acontece, mas para se protegerem dos seus medos, no pueril
convencimento de que, sendo os que curam, não podem ser, ao
mesmo tempo, os doentes.
De modo que estudei psicologia e, com efeito, acabei entendendo
o que tinha me acontecido. Eu tivera um ataque de angústia, a
desordem psíquica mais habitual; agora costumam chamá-la,
eufemisticamente, de estresse, sendo uma verdadeira vulgaridade de
tanto que abunda. Saber que era bastante comum me ajudou muito;
voltei a ter uma época de crise em torno dos vinte e dois anos e outra
ainda, a última, lá pelos trinta, mas ambas foram bem menos agudas
do que a primeira. Acabei perdendo o medo do medo e aceitando que
a vida tem uma porcentagem de trevas com a qual é preciso aprender
a conviver. Hoje chego a considerar aquelas crises como um
verdadeiro privilégio, porque foram uma espécie de excursão
extramuros, uma pequena viagem de turismo pelo lado selvagem da
consciência. Minhas angústias me permitiram vislumbrar a escuridão;
e só se você já esteve ali, mesmo de modo tão superficial e breve como
eu, é possível entender o que supõe viver no outro lado, exilado da
realidade comum, confinado no silêncio e em você mesmo. Minhas
angústias, enfim, me tornaram mais sábia.
Os chamados loucos são aqueles indivíduos que residem de modo
permanente no lado sombrio: não conseguem se inserir na realidade e
carecem de palavras para se expressar, ou então suas palavras
interiores não coincidem com o discurso coletivo, como se falassem
uma linguagem alienígena que nem mesmo pode ser traduzida. A
essência da loucura é a solidão. Uma solidão psíquica absoluta que
produz um sofrimento insuportável. Uma solidão tão superlativa que
não cabe dentro da palavra solidão e que não pode ser imaginada se
não se conheceu. É como estar no interior de um túmulo, enterrado
vivo.

Quando, segundo se conta, o tsar Pedro I pronunciava contra


algum inimigo de sua poderosa nobreza a sentença: Eu te torno
louco, o poder da palavra e a palavra do poder, nesse caso, acabavam
transformando-o em tal, pois, ao ser tratado por todos os outros
como demente, o desgraçado vivia a realidade da ausência de razão
e perdia toda sensatez,

explicou Carmen Iglesias no já mencionado discurso de posse na


Academia. E é um exemplo perfeito. A loucura é viver no vazio dos
outros, em uma ordem que ninguém compartilha.
Durante muito tempo, acreditei que escrever podia te resgatar da
dissolução e da escuridão, porque supõe uma ponte sólida de
comunicação com os outros e anula, portanto, a solidão mortífera: por
isso, é preciso publicar e ser lido; por isso, o fracasso total pode
aniquilar o escritor, como aniquilou Robert Walser. Depois
compreendi que aqueles que chamamos de loucos estão
frequentemente para além de todo resgate (a não ser, quem sabe, o
resgate químico: as novas drogas estão fazendo milagres) e que a
literatura só podia proteger aqueles de nós que nos encontramos deste
lado ou então na zona fronteiriça, como talvez fosse o caso de Walser.
Por último, faz alguns anos, comecei a pensar que, em algumas
ocasiões excepcionais, a literatura poderia inclusive resultar
prejudicial para o autor. Isso acontece quando o que se escreve
começa a fazer parte do delírio; quando a louca da casa, em vez de ser
uma inquilina hospedada no nosso cérebro, torna-se o edifício inteiro,
e o escritor, um prisioneiro dentro dele.
Isso aconteceu, por exemplo, com Arthur Rimbaud, esse poeta
deslumbrante que escreveu toda a sua obra antes de completar vinte
anos. Foi excêntrico e estranho desde pequeno e se comportou como
um autêntico pirado: em 1871, com dezesseis anos, não se lavava, não
se penteava, andava vestido como um mendigo, gravava blasfêmias
com a ponta de uma faca nos bancos do parque, perambulava pelos
cafés como um lobo sedento na tentativa de que alguém lhe
convidasse para tomar uma bebida, contava aos berros como se
deleitava sexualmente com cadelas vira-latas e tinha sempre um
cachimbo com o fornilho para baixo. Pouco depois disso, mudou-se
para Paris e conheceu Paul Verlaine, outro poeta requintado e um
perfeito idiota, alcoólatra e violento. Eles se apaixonaram tórrida e
venenosamente e, durante alguns anos, fizeram de tudo para tornar a
vida do outro impossível. Espancavam-se, insultavam-se, ameaçavam-
se, esfaqueavam-se as mãos nos cafés. E, ao mesmo tempo, escreviam
sem parar. Rimbaud desenvolveu a teoria literária do Vidente. “Eu sou
outro”, dizia, e com isso talvez tentasse transformar seu sentimento
íntimo de alheamento em uma clarividência homérica, em um dom
sagrado e redentor. Passava o dia estudando livros de ocultismo e
chegou a acreditar que podia se fundir em Deus com ajuda das drogas
e da magia. Além disso, incluiu sua escrita no delírio. Para piorar,
tomava uns pileques incríveis de absinto e mascava haxixe a toda hora
(naquela época, a droga ainda não era fumada); fazia isso aplicada e
deliberadamente, ansioso para romper os laços com a pouca
racionalidade que lhe restava, para poder dar o salto para a divindade.
Tudo isso o levou a um estado de constante confusão: via salões
rutilantes no fundo dos lagos e acreditava que as fábricas da periferia
de Paris eram mesquitas orientais.
Tanto a relação amorosa como o estado dos poetas foram se
deteriorando rápido. Em 1873, Verlaine tentou matar Rimbaud, dando
três tiros nele; só acertou um, e na mão. Rimbaud acabou no hospital,
Verlaine na prisão (onde passou dois anos) e o escândalo estragou a
vida de ambos, porque tornou pública e notória sua
homossexualidade, coisa inadmissível naquela época; até os amigos de
Verlaine, poetas e supostamente boêmios, o excluíram da antologia de
versos parnasianos que estavam preparando, como castigo pela sua
condição de sodomita. Rimbaud, que se apressou a publicar seu livro
Um tempo no inferno para ver se recuperava algum prestígio, foi
completamente ignorado por aquela Paris cruel e repressora. Sua
teoria do Vidente falhara: não só ele não se transformara em Deus,
mas se encontrava mais enterrado do que nunca no demoníaco. Em
novembro de 1875, Arthur Rimbaud queimou seus manuscritos e
deixou de escrever para sempre. Tinha vinte e um anos.
Muito tempo depois, sua irmã lhe perguntou por que ele
abandonara a escrita e Rimbaud respondeu que continuar com a
poesia o teria deixado maluco. Por isso não lhe bastou o silêncio, mas,
depois de ter sido todo palavras (e de que as palavras multiplicassem
seu delírio), tentou ser só atos e somente atos. Quer dizer, tentou se
transformar em um fazedor. Quis encontrar a sanidade através de uma
vida básica, desse tipo de vida que, por ser mais nua e difícil, parece
mais real. Foi capataz de pedreiras e mestre de obras no Chipre; viajou
pela Somália e pela Etiópia, sendo que no Harar foi empregado de
uma empresa de comerciantes de café. Trabalhava como galeote e era
de uma austeridade estarrecedora: mal comia e só bebia água.
Explorou regiões africanas desconhecidas; tornou-se traficante de
armas e há quem diga que também traficou escravizados. Era uma
personagem conradiana, torturado e enigmático, que fugia de si
mesmo. Mas não conseguiu correr o suficiente. Em 1891, em um
canto remoto da África, começou a sentir umas dores horríveis no
joelho. Era um câncer nos ossos. Amputaram sua perna na virilha
(mutilaram o poeta mutilado), mas não serviu de nada. O tumor o
deixou praticamente paralisado e não demorou a devorá-lo em nove
agônicos meses, que Rimbaud passou se derramando em lágrimas, em
parte pelo insuportável sofrimento físico, mas também pela pena de
ter vivido uma vida dessas. Quando morreu, tinha apenas trinta e sete
anos.
De modo que escrever deixava o belo e destemido Rimbaud louco.
Claro que no seu caso estamos falando de poesia, não de narrativa. O
romance é um artefato literário muito mais sensato. O romance
constrói, estrutura, organiza. Põe em ordem o caos da vida, como diz
Vargas Llosa. É muito mais difícil que um romance contribua para
enlouquecer seu autor. Ainda assim, há também romances que
acabam sendo uma alucinação. O formidável Philip K. Dick acabou
acreditando que seus romances faziam parte de um plano mundial
complicadíssimo e que Deus os enfiara na sua mente para lhe revelar
que a humanidade estava capturada em uma miragem, pois na
realidade ainda vivíamos no Império Romano. E ele começou a atuar
conforme o que escrevera nos seus livros anteriores.
Mas acho que a desordem psíquica mais comum entre os
romancistas é a mitomania. Alguns escritores parecem não saber
diferenciar as mentiras dos romances daquelas que eles contam na
vida real. Esses autores costumam enfeitar a própria biografia com
fatos portentosos, todos falsos, transformando a si mesmos nas
personagens mais elaboradas, saídas das suas fantasias. Como
aconteceu com André Malraux, segundo conta Olivier Todd. Malraux
inventou sua própria vida; falseou, por exemplo, seu currículo escolar,
dizendo que sabia grego e sânscrito e que fizera uns estudos orientais,
tudo produto da sua imaginação. Além disso, fabricou para si uma
reputação de magnífico combatente da Resistência francesa, quando
na realidade se uniu a ela quase no final da guerra. Malraux enfeitava
tudo; a tudo acrescentava brilho e épica. A mesma coisa fazia
Hemingway, um mitômano fanfarrão e desagradável, que assegurava
que lutara na Primeira Guerra Mundial com as prestigiosas tropas de
choque italianas, mas o certo é que foi ferido depois de passar poucas
semanas no front e sempre como motorista de ambulâncias; e mentiu
como um velhaco negando os conselhos, a ajuda e a enorme influência
que seu amigo Fitzgerald tivera nos seus primeiros livros. Outro
exemplo é Emilio Salgari, que escreveu dezenas de romances cheios
de trepidantes aventuras exóticas, de mares bravios e travessias épicas,
mas foi um pobre coitado que quis ser marinheiro e não conseguiu,
pois foi suspenso na academia; que só subiu umas poucas vezes em
um barco em toda a sua vida, mal tendo saído da França. Teve uma
existência tristíssima: foi devorado pelas dívidas, sua mulher
enlouqueceu e ele era depressivo. Acabou se suicidando, mas o mais
terrível é que sua mitomania o levou a imitar os heróis orientais que
ele tanto admirava: abriu a barriga de cima a baixo com um estilete
mínimo e depois rasgou a garganta, em uma atroz encenação da morte
por haraquiri dos samurais.
Ainda assim, continuo pensando que escrever salva a vida. Quando
tudo mais falha, quando a realidade apodrece, quando sua existência
naufraga, sempre é possível recorrer ao mundo narrativo. Pensando
bem, talvez não tenha sido por acaso que minhas crises de angústia
desapareceram pouco depois de eu ter começado a publicar meus
romances, completando assim um circuito de comunicação com o
mundo; eu vinha publicando na imprensa desde os dezoito anos, mas
o jornalismo carece dessa capacidade estruturadora. “Se você não
escrevesse, ficaria maluco”, disse Naipaul a Paul Theroux no início da
sua amizade. Acho que a maioria de nós, romancistas, percebe que
nosso equilíbrio depende de algum modo da nossa obra. Que esses
livros, quem sabe medíocres ou péssimos, como os de Erich Segal,
fazem parte da nossa substância mais constante e mais sólida. A
escrita é um esqueleto exógeno que te permite continuar de pé
ortopedicamente quando, sem isso, você seria uma gelatina derrotada,
uma massa mole esmagada no chão (claro que meu amigo Alejandro
Gándara deu um dia uma inquietante volta nesse argumento ao
responder: “Não, a literatura pode ser uma desculpa para continuar
sendo uma gelatina sem fazer nada para remediar isso”).
É curioso que a escrita possa funcionar com um dique das derivas
psíquicas, porque, por outro lado, te põe em contato com essa
realidade enorme e selvagem que está para além da sensatez. O
escritor, assim como qualquer outro artista, tenta dar uma olhada fora
das fronteiras dos seus conhecimentos, da sua cultura, das convenções
sociais; tenta explorar o informe e o ilimitado, e esse território
desconhecido parece muito com a loucura. Quando crianças, todos
estamos loucos; isto é, todos estamos possuídos por uma imaginação
sem domesticar e moramos em uma zona crepuscular da realidade na
qual tudo parece possível. Educar uma criança supõe limitar seu
campo visual, empequenecer o mundo e dar a ele uma forma
determinada, para que se adapte às normas específicas de cada cultura.
Já se sabe que a realidade não é algo objetivo; na Idade Média, a
realidade convencional incluía a existência de anjos e demônios e, por
conseguinte, os cidadãos viam anjos e demônios; mas se hoje nosso
vizinho nos dissesse que acabara de encontrar com o diabo na escada,
acharíamos que ele é um pirado total. A realidade não passa de uma
tradução redutora da enormidade do mundo, e o louco é aquele que
não se acomoda a essa linguagem.
Portanto, crescer e adquirir a sensatez do cidadão adulto implica de
algum modo deixar de saber coisas e perder esse olhar múltiplo,
caleidoscópico e livre sobre a vida monumental, sobre essa vida total
que é grande demais para poder ser manejada, como a baleia é grande
demais para poder ser vista completamente. Já disse James M. Barry, o
autor de Peter Pan: “Não sou jovem o bastante para saber tudo”. Pois
bem, os escritores, os artistas e em geral os criadores de todo tipo (e
há muitas maneiras de criar, das muito modestas às muito
importantes) mantêm certo contato com o vasto mundo de
extramuros; uns simplesmente se debruçam no parapeito e dão uma
olhada rápida, outros realizam comedidas excursões pelo exterior, e
alguns empreendem longas e arriscadas viagens de exploração das
quais talvez não voltem nunca.
E isso me faz pensar em John Nash, esse matemático genial cuja
vida inspirou o filme Uma mente brilhante, protagonizado por Russell
Crowe. Como se sabe, na década de 1950, sendo ainda muito jovem, o
estadunidense Nash inventou uma teoria do jogo revolucionária que
se tornou a base da matemática de competição. Mas então, aos trinta
anos, quando seu destino se prenunciava esplêndido, ele colapsou em
um delírio esquizofrênico paranoico. Isto é, tornou-se um louco
oficial. Durante anos foi internado à força em diversos hospitais
psiquiátricos e submetido a métodos terapêuticos tão brutais como o
choque insulínico. Passou praticamente trinta anos fora do mundo,
presa de furiosos delírios e sem poder se valer de si mesmo. Mas
afinal, pouco a pouco, foi se liberando das suas alucinações ou talvez
se acostumando de maneira heroica a conviver com elas. Seja como
for, recuperou sua cotidianidade mais ou menos normal e um posto de
professor na Universidade de Princeton. Pouco depois, em 1994,
ganhou o Prêmio Nobel de Economia, obtendo-o pelos seus trabalhos
de juventude, antes do colapso; mas o certo é que, mesmo durante os
anos de loucura, Nash foi capaz de fazer achados matemáticos de vez
em quando. Os fármacos de nova geração talvez tenham contribuído
para a remissão dos seus sintomas, mas só o fato de ele ter sobrevivido
como pessoa a um histórico de psiquiatrização como o seu é algo
prodigioso. Sua linda e poderosa mente o conduziu à catástrofe, mas
também o ajudou a se salvar.
O mais emocionante dessa tremenda história é o que Nash
escreveu na sua autobiografia, um longo texto redigido em 1994, por
ocasião da concessão do Prêmio Nobel. Primeiro ele reconhece com
humildade que passou vários anos vivendo no engano paranoide e na
alucinação fantasmagórica, até que no fim foi aprendendo a rejeitar
intelectualmente, com grande esforço da vontade, esse submundo de
sombras devastadoras: “De maneira que, nestes momentos, parece
que estou pensando de novo racionalmente, do modo como fazem os
cientistas”, explica Nash com prudência. Mas acrescenta: “No
entanto, isso não é algo que me preencha com uma alegria plena,
como aconteceria no caso de estar doente fisicamente e recuperar a
saúde. Porque a racionalidade do pensamento impõe um limite no
conceito cósmico que a pessoa tem”. E dá o exemplo de Zaratustra,
que pode ser considerado um lunático por aqueles que não acreditam
nos seus ensinamentos; mas foram precisamente esses ensinamentos,
quer dizer, essa piração, que permitiram a ele ser Zaratustra e passar à
posteridade, criando uma maneira de contemplar o mistério do
mundo. Nash, afinal, continuava comovedoramente orgulhoso da sua
loucura, dessa explosão de imaginação indomada que era a chave do
universo; se ele abandonara suas alucinações, era apenas porque
doíam demais. Sem dúvida, quando estava alienado era incapaz de
discernir a realidade e de controlar sua vida, sofrendo enormemente
com tudo isso; mas, ao mesmo tempo, seus delírios eram a outra cara
da sua genialidade, da sua criatividade desenfreada e maravilhosa,
como se fizessem parte do mesmo lote, como se se tratasse de um
dom muito lindo, mas também perverso, dos deuses. “Quando
recupero a razão, fico louco”, disse Julio Ramón Ribeyro nos seus
diários: quando você abandona os delírios criativos, as fantasmagorias
da imaginação, a realidade se torna insuportável.
Por isso dom Quixote prefere morrer. Cervantes fecha sua obra
com um desenlace aparentemente convencional e retrata um fidalgo
doente que, nas suas últimas horas, renega sua imaginação
transbordante. No momento da verdade da agonia, ele teria visto a luz
da Razão. Mas o que na realidade está acontecendo é o contrário: não
é que ele esteja morrendo e por isso recupere o juízo, mas que
renunciou à imaginação, daí que morra. Seus desvarios doem demais,
como a Nash, e ele não tem mais forças para continuar com eles. Mas,
ao contrário do matemático, também não tem forças para continuar
sem eles. Uma fala do lúcido Sancho Pança revela pateticamente qual
é a verdadeira tragédia à qual estamos assistindo:

— Ai! — respondeu Sancho aos prantos. — Não morra vossa


mercê, senhor meu, e tome o meu conselho de viver muitos anos,
porque a maior loucura que pode um homem fazer nesta vida é
deixar-se morrer sem mais nem mais, sem que ninguém o mate
nem outras mãos o acabem senão as da melancolia. Deixe de
preguiça e levante dessa cama, e vamos para o campo vestidos de
pastores, como já temos concertado; quem sabe atrás de uma moita
achamos a senhora D. Dulcineia desencantada.*

Em algum lugar do seu peito ossudo, dom Quixote devia estar


orgulhoso dos seus delírios.
É que nós, humanos, não apenas somos menores do que nossos
sonhos, mas também do que nossas alucinações. A imaginação
desenfreada é como um raio na metade da noite: abrasa, mas ilumina o
mundo. Enquanto durar essa faísca deslumbrante, tentamos
vislumbrar a totalidade, isso que alguns chamam Deus e que para mim
é uma baleia ornada de crustáceos. Afinal de contas, talvez Rimbaud
não escorregasse tanto quando aspirava a se fundir no divino. Na
pequena noite da vida humana, a louca da casa acende velas.

* Tradução de Sérgio Molina para a Editora 34 (São Paulo, 2023). [N. T.]
Quinze

Não conheço nenhum romancista que não padeça do vício desmedido


da leitura. Somos, por definição, bichos leitores. Roemos as palavras
dos livros de maneira incessante, assim como o cupim empenha todo
o seu ser em devorar a madeira. Além disso, para aprender a escrever,
é preciso ler muito: por exemplo, George Eliot possuía uma cultura
vastíssima e lia Homero e Sófocles em grego, e Cícero e Virgílio em
latim: sou incapaz de proeza semelhante, e essa pode ser uma das
razões pelas quais escrevo pior do que ela. Em seu lindo ensaio Letra
herida, Nuria Amat propõe aos escritores uma pergunta cruel que
consiste em decidir entre duas mutilações, duas catástrofes: se, por
alguma circunstância que não vem ao caso, você tivesse de escolher
entre nunca mais escrever ou nunca mais ler, o que escolheria? Nos
últimos anos, fiz essa inquietante pergunta, como uma brincadeira, a
quase todos os autores com os quais fui topando pelo mundo e
descobri duas coisas interessantes. A primeira é que uma esmagadora
maioria, pelo menos noventa por cento e talvez mais, escolhe
(escolhemos: eu também) continuar lendo. E a segunda é que essa
brincadeira em aparência inocente é uma boa reveladora da alma
humana, pois tenho a sensação de que muitos daqueles escritores que
dizem preferir a escrita são pessoas que cultivam mais sua própria
personagem do que a verdade.
E como a gente pode se virar para viver sem a leitura? Deixar de
escrever pode ser a loucura, o caos, o sofrimento; mas deixar de ler é a
morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem
atmosfera, que nem Marte. Um lugar impossível, inabitável. De
maneira que muito antes da escrita está a leitura, e nós romancistas
não passamos de leitores dispersos e transbordados da nossa ansiosa
fome de palavras. Há pouco tempo escutei em público, em Gijón, a
escritora argentina Graciela Cabal, em uma intervenção divertidíssima
e memorável. Ela disse (embora se expressasse melhor do que eu) que
um leitor tem a vida muito mais longa do que o resto das pessoas, pois
não morre até acabar de ler o livro que está lendo. Seu pai mesmo,
explicava Graciela, tinha demorado muito a falecer, porque quando o
médico ia visitá-lo e, balançando com tristeza a cabeça, assegurava:
“Desta noite não passa”, o pai respondia: “Não, o que é isso, não se
preocupe, não posso morrer, porque tenho que terminar O outono do
patriarca”. E, assim que o galeno ia embora, o pai dizia: “Traga um
livro mais gordo”.
— Enquanto isso, os colegas do papai que estavam para lá de sãos
só faziam morrer, como, por exemplo, um coitado de um senhor que
foi ao médico para fazer um check-up e não saiu mais — acrescentou
Graciela. — É que a morte também é leitora, por isso aconselho a
levar sempre um livro na mão, pois assim, quando a morte chega e vê
o livro, dá uma espiada no que você está lendo, como eu faço no
ônibus, e então se distrai.
Graciela tem razão: a gente não só escreve, mas também lê contra a
morte. Os relatos mais maravilhosos que conheço sobre o sentido da
narrativa incluem sempre essa dimensão fantasmagórica do
enfrentamento contra a indesejada das gentes. Como a história-
moldura de As mil e uma noites, a de Sherazade que conta histórias. Por
certo, estou convencida de que esse livro caótico, maravilhoso e
imenso, que compreende umas três mil páginas escritas ao longo de
um milênio, oculta mais de uma mulher entre seus diversos autores
anônimos. Porque, junto com passagens estremecedoramente
machistas (as mulheres de As mil e uma noites são açoitadas, chutadas,
escravizadas, degoladas, narcotizadas, espancadas, insultadas, raptadas
e violadas aos montes), há numerosos relatos muito feministas, como
as aventuras de Ibriza, a princesa guerreira, ou a bela e culminante
história de Sherazade, que sem dúvida deveria ser nomeada a santa
padroeira dos romancistas.
Recordemos a história: Sharyar era um monarca sassânida que
reinava nas ilhas da Índia e da China, onde quer que isso seja. Seu
irmão mais novo, Shahzaman, era o rei de Samarcanda, que pelo
menos tem a vantagem de ser um lugar que sabemos onde fica. Um
dia, Shahzaman descobriu que sua esposa o enganava com um
escravizado negro (todas as Noites estão cheias do terror e da potência
sexual dos escravizados negros) e, depois de executar ambos, foi
embora ver seu irmão. Ali constatou que a esposa de Sharyar também
o traía com o conhecido servo negro. Então os dois irmãos,
desesperados, saíram pelo mundo. Chegando à beira-mar, viram sair
das águas um ifrite, quer dizer, um gênio, que transportava um baú na
cabeça. O ifrite abriu o cofre, deixou sair uma dama belíssima e depois
caiu no sono. A dama descobriu os dois reis e os obrigou a fazer amor
com ela (“alanceiem-me com uma potente lança”), com a ameaça de
acordar o gênio caso se negassem. Depois pediu a eles os anéis,
acrescentando-os a um colar no qual já estavam enfileirados outros
quinhentos e setenta; e então explicou que o ifrite a raptara e que a
mantinha prisioneira no fundo do mar enfiada em um baú; mas que
ela, para se vingar, fazia amor com todos os homens que encontrava,
porque “quando uma mulher deseja algo, consegue”.
Sharyar e Shahzaman voltaram para a corte do primeiro
horrorizados diante da maldade feminina; que o ifrite se dedicasse a
raptar e violar donzelas, pelo contrário, os deixou imperturbados.
Assim que voltaram, o rei Sharyar degolou convenientemente a esposa
e seu amante, decidindo não voltar a confiar nas mulheres. De modo
que todas as noites desflorava uma jovem virgem e pela manhã
mandava matá-la. Transcorreram três anos nessa terrível tarefa e as
pessoas do seu reino “estavam desesperadas e fugiam com suas filhas,
não restando nem uma moça”. Chegou um dia em que o vizir foi
incapaz de encontrar uma nova virgem para seu rei, então temeu que
sua hora tivesse chegado. Nesse momento, apareceu em cena a filha
do vizir, Sherazade, uma moça que somava à sua beleza uma enorme
cultura, porque “lera livros, histórias, biografias dos antigos reis e
crônicas das nações antigas. Conta-se que chegara a reunir mil
volumes”.
Essa inteligente donzela se ofereceu para passar a noite com o rei
assassino: “Se eu viver, tudo dará certo e, se morrer, servirei de
resgate para as filhas dos muçulmanos e serei a causa da sua liberação”.
Ela se propôs a contar histórias ao monarca e deixar a narração no
momento do clímax, de modo que o rei, movido pela curiosidade,
adiasse sua execução. Para isso, requereu a ajuda da sua irmã mais
nova, Dunyazade, que em outras versões é a ama de leite do rei, e que
ficou encarregada de pedir a Sherazade que contasse uma história.
Dunyazade representa a solidariedade das mulheres, essa
cumplicidade fraternal feminina mediante a qual Sherazade aspirava
liberar as mulheres. Pois o que a princesa pretendia era salvar a nós
todas, e não só da degola decretada pelo rei, mas da incompreensão
dos homens, da brutalidade e da violência. Nem é preciso dizer que,
depois das mil e uma noites de conversa e de convivência, o rei tivera
três filhos com Sherazade, se apaixonara por ela e superara seu
horrível instinto assassino. De modo que a imaginação não só pode
vencer a morte (ou ao menos conquistar um adiamento da pena), mas
também cura, recupera, tornando-nos melhores e mais felizes.
Há outro conto-emblema, outro conto-metáfora, de que eu gosto
demais, sobre a capacidade salvadora da imaginação; quem me
recomendou que o lesse foi Clara Sánchez, coisa que ainda lhe
agradeço. Trata da pintura e não da narrativa, mas no fundo dá no
mesmo. É um conto de Marguerite Yourcenar intitulado “Como
Wang-Fô se salvou” e é inspirado em uma antiga lenda chinesa. O
pintor Wang-Fô e seu discípulo Ling erravam pelos caminhos do reino
de Han. O velho mestre era um artista excepcional; ele ensinara Ling
a ver a autêntica realidade, a beleza do mundo. Porque toda arte é a
busca dessa beleza capaz de engrandecer a condição humana.
Certo dia, Wang e Ling chegaram à cidade imperial e foram detidos
pelos guardas, que os conduziram diante do imperador. O Filho do
Céu era jovem e belo, mas estava cheio de uma cólera fria. Ele
explicou a Wang-Fô que passara a infância trancado dentro do palácio
e que, durante dez anos, só conhecera a realidade exterior através dos
quadros do pintor.

Aos dezesseis anos, vi se abrirem as portas que me separavam do


mundo; subi até o terraço do palácio para olhar as nuvens, mas
eram menos lindas do que as de seus crepúsculos […]. Você mentiu
para mim, Wang-Fô, velho impostor: o mundo não passa de um
amontoado de manchas confusas, lançadas ao vazio por um
insensato, apagadas sem cessar por nossas lágrimas. O reino de
Han não é o reino mais lindo e eu não sou o imperador. O único
império no qual vale a pena reinar é aquele em que você penetra.

Por esse desengano, por essa amarga descoberta de um universo que,


sem a ajuda da arte e da beleza, se mostra caótico e insensato, o
imperador decidiu arrancar os olhos e cortar as mãos de Wang-Fô. Ao
escutar a pena, o fiel Ling tentou defender seu mestre, mas foi
interceptado pelos guardas e degolado na mesma hora. Quanto a
Wang-Fô, o Filho do Céu ordenou que, antes de ser cegado e
mutilado, terminasse um quadro inacabado seu que havia no palácio.
Trouxeram a pintura ao salão do trono: era uma bela paisagem da
época de juventude do artista.
O ancião pegou os pincéis e começou a retocar o lago que aparecia
no primeiro plano. E logo o pavimento de jade do salão começou a se
umedecer. Agora o mestre desenhava uma barca e, ao longe, ouviu-se
um bater de remos. Na barca, vinha Ling, perfeitamente vivo e com a
cabeça bem colada ao pescoço. O entorno do trono se enchera de
água: “As tranças dos cortesãos submersos ondulavam na superfície
como serpentes, e a cabeça pálida do imperador flutuava como um
lótus”. Ling chegou à beira da pintura; deixou os remos,
cumprimentou o mestre e o ajudou a subir na embarcação. E ambos se
afastaram docemente, desaparecendo para sempre “naquele mar de
jade azul que Wang-Fô acabara de inventar”.
Só mais uma história, uma lenda belíssima, contada por Italo
Calvino em seu livro de ensaios literários Seis propostas para o próximo
milênio. Calvino a tirou de um caderno de anotações do escritor
romântico francês Barbey d’Aurevilly, que, por sua vez, a tirou de um
livro sobre magia; a cultura é sempre assim, camada após camada de
citações sobre citações, de ideias que provocam outras ideias,
crepitantes carambolas de palavras através do tempo e do espaço. A
história diz o seguinte: o imperador Carlos Magno, sendo já muito
velho, se apaixonou por uma moça alemã e começou a caducar de
maneira penosa. Estava tão arrebatado de paixão pela jovem que
descuidava dos assuntos de Estado e passava vergonha, com o
conseguinte escândalo na corte. De repente, a moça morreu, coisa
que encheu de alívio os nobres. Mas a situação só fez piorar: Carlos
Magno ordenou que embalsamassem o cadáver e o levassem ao seu
aposento, e não se separava da sua morta nem um instante. O
arcebispo Turpin, espantado diante do macabro espetáculo, suspeitou
que a obsessão do seu senhor tivesse uma origem mágica e examinou
o corpo da garota; debaixo da língua gelada encontrou, efetivamente,
um anel com uma pedra preciosa. O arcebispo tirou a joia do cadáver
e, assim que o fez, Carlos Magno ordenou que enterrassem a moça e
perdeu todo o interesse por ela; em vez disso, experimentou uma
fulminante paixão pelo arcebispo, que era quem agora possuía o anel.
Então o atribulado e acossado Turpin decidiu jogar a joia encantada no
lago de Constança. E o imperador se apaixonou pelo lago e passou o
resto da vida à margem dele.
Calvino conta essa lenda como exemplo de uma história bem
narrada, breve, substancial e direta. Mas o que eu realmente gosto no
relato é que se trata de um símbolo perfeito da necessidade de
transcendência dos humanos, dessa ânsia de sair de nós mesmos e nos
fundir no absoluto: um afã impossível, mas esplêndido, que basta para
justificar uma vida. Inclusive a grande vida de um grande imperador.
Nossa imaginação, esse talismã secreto que se oculta — que
coincidência — sob a língua, investe de beleza o que toca. Sonhamos,
escrevemos e criamos para isso, para tentar roçar a beleza do mundo,
que é tão inalcançável como o lago de Constança. Imagino o velho
Carlos Magno, sentado em uma encosta, junto à margem, envolto em
um antigo manto imperial para se proteger do úmido sopro das águas
e mergulhado na melancólica contemplação do seu lago-baleia. Assim
passamos a vida, almejando aquilo que é maior do que nós, o pó das
estrelas que um dia fomos.
Dezesseis

Por certo, se falamos de mulheres, não podemos deixar de mencionar


as esposas dos escritores, uma antiga instituição literária que,
felizmente, está em franco processo de extinção; e digo felizmente
não porque tenha alguma coisa contra essas esposas, mas porque sua
existência é a consequência de um mundo machista e arbitrário no
qual as mulheres, em vez de ser algo por si mesmas, têm de se
conformar em ser uma espécie de apêndice dos seus companheiros.
Ou o que dá na mesma: em vez de viver para seu próprio desejo,
vivem para o desejo dos outros. No Ocidente, esse esquema sexista
está evoluindo em grande velocidade, e hoje há muito mais escritoras
do que mulheres de escritores, uma mudança radical que, curiosamente,
não deu origem ao espécime esposo de escritora. Os cônjuges das
autoras, salvo raras exceções que provavelmente pertençam mais ao
reino do fabuloso, fazem o que bem entendem e passam longe de
colaborar no empenho criativo das suas mulheres (quando não
competem diretamente com elas pelo tempo que investem no tolo
hobby literário). Uma atitude que, afinal de contas, talvez não seja tão
má e contribua para o equilíbrio do casal, mas que às vezes é um
pouco desoladora e cansativa. Quero dizer que em mais de uma
ocasião teria gostado de ter uma esposa.
Por outro lado, nem todas as mulheres que estão casadas com um
literato pertencem, nem de longe, a essa categoria de antigamente. A
esposa do escritor é aquela senhora usualmente capaz e bem-dotada que
decidiu empenhar toda a sua inquietude artística e ambição (que
costumam ser muito grandes) no enaltecimento do marido. Sua
própria glória, como a de um satélite, dependerá do reflexo da luz do
homem e, por conseguinte, ela persevera em pôr o marido sob os
holofotes. A esposa do escritor, enfim, é uma criatura formidável capaz
de desdobrar múltiplos talentos. Então passa a limpo os textos do
marido (incompreensíveis, caóticos, ilegíveis para todos menos para
ela), antigamente à mão, depois à máquina, agora no computador, um
trabalho sempre tedioso e abnegado, assim como negocia astuta e
ferreamente os interesses do seu homem com editores, agentes ou
banqueiros. Ocupa-se das finanças literárias, de exigir pagamentos, de
renovar contratos, arrumar as edições, vigiar as traduções, organizar
as viagens, acompanhando o marido nos seus deslocamentos no papel
de um manager on road. Encarrega-se das relações públicas, atende a
imprensa, lida com os acadêmicos que propõem conferências e com
os estudantes que pretendem escrever teses. Envia fotos, livros com
dedicatórias, currículos, cartas, textos para a orelha dos livros, faxes,
e-mails, atende o telefone, bloqueia e regula o acesso ao escritor,
rodeando-o de uma bolha protetora, para que o Grande Homem possa
dedicar todo o seu tempo e energia à Grande Obra. Além disso, lê
uma e outra vez, todos os dias, de maneira fervorosa e incansável,
todas as sucessivas versões de todos os textos do Grande Homem,
comentando-os convenientemente, oferecendo seu apoio, sua
admiração, seu entusiasmo e às vezes, inclusive, algum bom conselho
literário. E, ainda por cima, ocupa-se de todo o resto, a saber, do
serviço e governança da casa, de que o Grande Homem coma e durma
bem, sem ser incomodado enquanto escreve; das crianças, se houver,
e dos bichos de estimação das crianças. Algumas até compram a roupa
do marido. Só de tentar enumerar suas tarefas me sinto extenuada.
As esposas dos escritores são frequentemente o terror dos agentes,
dos editores, dos jornalistas, dos acadêmicos e às vezes até dos amigos
do autor. Todos eles costumam resmungar pelas suas costas (têm
muito medo delas) que Fulaninha é boa de briga e que Fulaninho, seu
marido, está quase sequestrado. Por exemplo, de Mercedes, a mulher
de García Márquez, cheguei a ler em um jornal ser ela “a leoa que o
guarda”. Leoas ou gatas, defendem com ferocidade seus direitos,
duramente adquiridos com o suor da sua face. Só faltava, depois de ter
dedicado toda a sua vida e inteligência a fazer crescer a obra e o nome
do marido (como quem faz crescer uma plantação de milho ou cria
uma vaca), os outros tentarem derrubá-lo ou ignorá-lo. Digo isso de
verdade: acho justo que a esposa do escritor possua de algum modo o
escritor, porque entre os dois construíram um animal simbiótico, o
que não implica que todas as mulheres que pastoreiam um literato
sejam pessoas incríveis; de fato, algumas dessas esposas superlativas
são umas senhoras terríveis. Mas nunca é menos terrível o cavaleiro
parasitado por elas, que se beneficia da questão, fomentando-a.
No entanto, a fama ruim quem leva são sempre elas, em geral da
maneira mais injusta. Estou pensando, por exemplo, em Fanny
Vandegrift, a mulher de Robert Louis Stevenson, que passou para a
posteridade com a imagem de uma velha bruxa (era onze anos mais
velha do que ele), de uma louca idiota que se apropriou do marido
doente e o torturou com seu afã de posse e suas manias, quando a
verdade é que era uma senhora fascinante e formidável, que
provavelmente salvou a vida do escritor. Basta se aproximar da
realidade e investigar um pouco os dados históricos (como fez
Alexandra Lapierre na sua interessantíssima biografia sobre Fanny)
para perceber que sua imagem ruim carece de base e é antes um
produto do machismo, dos ciúmes e da incompreensão suscitada pela
personalidade inovadora dessa mulher, nascida nos Estados Unidos
em 1840, que foi capaz de se divorciar do seu primeiro marido quando
ninguém se divorciava, de vir para a Europa e aprender pintura em um
meio boêmio, de se apaixonar por um homem mais jovem e se casar
com ele contra a opinião de todo mundo.
Fanny era incrível. Aos dezesseis anos foi embora do Oeste
selvagem com seu primeiro marido, um mentecapto que comprara
uma mina de prata. Na região, havia só cinquenta e sete mulheres
brancas para quatro mil mineiros rudes e, como se isso não bastasse,
de vez em quando sofriam incursões violentas dos indígenas
shoshones. Durante vários anos, Fanny foi uma pioneira agreste que
fumava sem parar, manuseava cartas como um jogador e levava no
cinto uma pistola enorme, com a qual era capaz de explodir a cabeça
de uma cascavel a muitos metros de distância. Quanto a Stevenson,
quando se casaram, em 1880 (ela tinha quarenta anos; ele vinte e
nove), depois de inúmeros sofrimentos e aventuras, o escritor era um
doente terminal, pesando apenas quarenta e cinco quilos e com
hemorragias pulmonares gigantes que o impediam de falar. De fato,
ele parecia tão moribundo que o advogado de Fanny deu a eles, como
presente de casamento, uma sinistra urna funerária.
Mas ele não morreu, graças, sem dúvida, aos especiais cuidados
que sua mulher lhe reservava. Durante oito anos moraram na Grã-
Bretanha e dessa época provém o ódio que os amigos de Stevenson
desenvolveram por Fanny. Porque ela era uma enfermeira muito
zelosa: obrigava todos os visitantes a mostrar seu lenço e não deixava
passar ninguém que apresentasse sintomas de estar acatarrado. Era
uma atitude extrema, mas ajuizada, pois o menor contágio
desencadeava nele hemorragias terríveis que poderiam ser mortais. O
ruim é que, como naquela época ainda não se demonstrara que as
doenças podiam ser transmitidas através de micróbios, os amigos a
consideraram uma louca obsessiva.
Stevenson não só conseguiu sobreviver graças à sua mulher, mas,
além disso, com ela foi capaz de escrever todas as suas obras
importantes, como A ilha do tesouro e O médico e o monstro. Inclusive,
Fanny criticou a primeira versão de O médico e o monstro como carente
de profundidade alegórica e sugeriu que ele reforçasse a dualidade do
personagem. Stevenson ficou uma fera, xingando-a, porque, além de
ter esse amor-próprio em carne viva habitual em todos os escritores,
brigava frequentemente com a esposa (os dois tinham uma
personalidade inflamada); mas logo depois voltou para a sala e lhe deu
razão; e, após atirar o rascunho no fogo, redigiu o romance inteiro de
novo. Eles viveram juntos, afinal, durante quinze anos, até a precoce e
súbita morte de Robert Louis na ilha de Samoa, em consequência de
uma hemorragia cerebral, em 1894. Oito anos mais tarde, a viúva
Fanny voltou a refazer a vida com o dramaturgo e roteirista de
Hollywood Ned Field, um rapaz esperto e bonito de vinte e três anos
(ela tinha sessenta e três). Viveram felizes juntos durante onze anos,
até a morte de Fanny; digo isso por causa da sua reputação de “bruxa
velha”. Pelo visto, na realidade foi uma mulher muito atraente e
conservou seu encanto mesmo muito velha.
Outro caso clamorosamente injusto é o da coitada da Sofia Tolstói,
que conseguiu conviver durante quarenta e oito anos com o
energúmeno do Liev Tolstói, que era um louco feio, um indivíduo
insuportável e messiânico, sem dúvida genial, mas também brutal, um
profundo reacionário, um machista feroz: “Sua atitude com as
mulheres é de uma hostilidade teimosa. Nada lhe apraz tanto quanto
maltratá-las”, disse dele Maksim Górki. Sem dúvida Tolstói maltratou
Sofia, que, apesar de tudo, o amava. Cuidava dele como uma escrava,
suportava seu desprezo e seus xingamentos, passava a limpo todos os
seus escritos (milhares de páginas ilegíveis), dava a ele conselhos
literários, recebia-o todas as noites na sua cama, engravidando dele
dezesseis vezes. Sofia, que era uma grande leitora, estava certa de que
o marido era um gênio e essa convicção adoçava sua vida, de resto
amarga.
Seu casamento sempre foi desastroso, mas o cúmulo é que piorou.
Aos quarenta e nove anos, Tolstói padeceu sua famosa crise; sofreu
uma tremenda depressão, entrou em uma espécie de delírio
iluminado, transformou-se em um guru e começou a pregar a
abstinência sexual (embora continuasse engravidando sua mulher) e a
pobreza absoluta (embora continuasse morando na sua fazenda como
um paxá). Além disso, caiu nas mãos de Tchertkov, um personagem
sinistro, charmoso e frio, vinte anos mais jovem do que Tolstói, que se
tornou o primeiro discípulo do guru. À medida que o escritor
envelhecia, Tchertkov conseguiu realizar suas vontades; é possível que
Tolstói tenha se apaixonado platonicamente por ele. O intrigante
Tchertkov queria se livrar de Sofia, que atrapalhava seus planos de
manipulador, de maneira que malquistou e mentiu. Conseguiu que
Tolstói entregasse a ele seus diários íntimos, nos quais recolhia todos
os detalhes da sua longuíssima vida com Sofia e as impertinentes
críticas que o escritor egocêntrico dedicava a sua mulher.
Como é natural, Sofia se desesperou: toda essa intimidade traída
com um estranho, pior ainda, com um inimigo! Ela achava que tinha o
direito de guardar esses diários: afinal de contas, eram a compensação
de toda a sua vida dedicada a Tolstói, de uma existência de submissão.
E, além disso, havia o problema da posteridade: porque Sofia sabia que
haveria uma posteridade, sabia que a fama do marido sobreviveria a
ela. Tinha medo de que Tchertkov usasse essas anotações ferinas de
Liev contra ela, para deixá-la em maus lençóis, e o pior é que tinha
razão, porque durante muitos anos, e ainda hoje, Sofia foi e é
considerada uma megera, o tormento do pobre Tolstói; para
compreender que foi exatamente o contrário, recomendo o belíssimo
livro de William L. Shirer, Amor e ódio. Enfim, resumindo um longo e
triste relato, direi que, por consequência de tudo isso, Sofia ficou
psiquicamente doente. Tólstoi já estava pirado havia muito tempo,
mas, como era o grande Tolstói, um personagem público e um famoso
guru, não era possível que estivesse louco. De modo que foi ela quem
se transformou na louca oficial. Durante dois anos ficou perseguindo
Tolstói, desabando nua nos campos gelados, ameaçando se envenenar
com ópio e amoníaco. No fim, o ancião escritor, desesperado, fugiu de
casa. Andou durante cinco dias no frio inverno, pegou uma
pneumonia e morreu. Assim que o marido desapareceu, Sofia deixou
de estar louca. Viveu mais nove anos, administrando com sensatez as
propriedades da família, escrevendo suas memórias e litigando contra
Tchertkov para recuperar a posse dos papéis de Tolstói. Acabou
ganhando.
Imagino que, quando essas mulheres escolhem com incrível olfato
escritores de mérito, para colar neles e começar a regá-los e podá-los,
com o fim de que cresçam bem lindos, o que têm em mente é um
projeto muito mais romântico e cor-de-rosa. Imagino que o que a
típica esposa de escritor deseja é se tornar sua musa e iluminar de
dentro, como um farol, páginas sublimes que eles deveriam redigir
pensando nela. Só que depois a realidade, como sempre acontece, faz
com que a vida vá por outro caminho e, em vez de ser sua musa, a
esposa do escritor se torna sua mãe, sua enfermeira, sua secretária,
sua empregada, sua motorista, sua ajudante, sua agente, sua public
relations e sabe-se lá quantas outras coisas, todas elas bastante banais e
corriqueiras, mas na realidade muito mais importantes.
É que eu não acredito na existência das musas. Em primeiro lugar,
penso que o murmúrio da criatividade, o sussurro do daimon e dos
brownies, sempre se alcança na base do esforço (como dizia Picasso, é
melhor que a inspiração te pegue trabalhando); e, além disso, estou
convencida de que os musos e as musas mais efetivos não são os
amados reais, mas as ilusões passionais. Quer dizer, a pura fabulação.
Quanto mais distante, mais frustrada, mais impossível, mais irreal,
mais inventada for a relação sentimental, mais possibilidade tem de
servir de incentivo literário. O que se imagina aviva a imaginação,
enfim, enquanto a realidade pura e dura, o ruído imediato da própria
vida, é uma péssima influência literária.
Dezessete

O romance, como se sabe, é um gênero fundamentalmente urbano. As


cidades são verborrágicas, cheias de explicações, de instruções
administrativas, de narrações, enquanto no campo impera o silêncio;
por isso, acho que o laconismo substancial da poesia está mais
relacionado com o meio rural, daí que a lírica tenha entrado em crise
na sociedade ocidental, cada vez mais citadina.
O romance, assim como a cidade, possui um afã de ordem e
estrutura. O urbanista desenha quadras de ruas retas, dá nomes e
instala placas, desenha planos e fixa sinais nas esquinas, no esforço de
controlar a realidade; e o narrador tenta vislumbrar o desenho final do
labirinto e ordenar o caos, dando às histórias uma aparência mais ou
menos inteligível, com seu começo e seu fim, com suas causas e
consequências, embora todos saibamos que na realidade a vida é
incompreensível, absurda e cega. É verdade que o romance mudou
muito: é um gênero vivo e, por conseguinte, em perpétua evolução.
Hoje não tem sentido escrever um desses formidáveis romanções do
século XIX: são firmes demais, convencionais demais para a
sensibilidade atual. O século XX demoliu a certeza do real: cientistas e
filósofos, de Freud a Einstein, de Heisenberg a Husserl, nos
explicaram que não podíamos nos fiar no que víamos ou sentíamos, e
que nem mesmo estamos certos dos pilares básicos da nossa
percepção, como o tempo, o espaço e o próprio eu. Para que o
romance funcione hoje em dia, para que acreditemos nele, precisa
refletir essa incerteza e essa descontinuidade e, por isso, o romance
atual propõe uma ordem menos férrea do que a do século XIX. Mas,
ainda assim, continua ordenando o mundo; continua limitando entre
suas páginas a realidade, os personagens, os destinos. Continua
tornando apreensível a enormidade confusa, da mesma maneira que o
plano de uma cidade pretende domesticar a superfície das coisas. Essa
qualidade de flor no asfalto que a narrativa tem é o que fez dela o
gênero literário preferido da época contemporânea, por mais que a
cada dois dias surja alguém proclamando de maneira sisuda a morte do
romance (que enfadonhos).
Com essa obsessão por ordenar, enfim, tão própria do ser humano
em geral e da narrativa em particular, a quase todo mundo ocorreu
alguma vez uma maneira de classificar os escritores. Os professores de
literatura e demais eruditos universitários inventaram um monte de
etiquetas, em geral, me perdoem, chatérrimas. Contudo, os escritores
também adoram fazer classificações, que certamente são mais
arbitrárias, porém costumam ser mais divertidas. Por exemplo, Italo
Calvino divide os autores entre os escritores da chama e do cristal. Os
primeiros constroem sua obra a partir das emoções; os segundos, da
racionalidade. O húngaro Stephen Vizinczey diz que há duas classes
básicas de literatura: “Uma ajuda a compreender, a outra ajuda a
esquecer; a primeira ajuda a ser uma pessoa e um cidadão livre, a outra
ajuda as pessoas a manipular os outros. Uma é como a astronomia; a
outra, como a astrologia” (esse parágrafo me lembra aquela frase que
Kafka disse com vinte anos: “Se o livro que lemos não nos acorda,
como um punho que atinge o crânio, para que o lemos?”).
De novo Calvino, que era muito prolífico nessas coisas: os
escritores podem se dividir entre aqueles que usam a leveza da palavra
e aqueles que usam o peso da palavra (Cervantes pertenceria ao setor
leve). Já citei a incrível comparação zoológica de Isaiah Berlin, que
divide os autores entre raposas e porcos-espinhos. Juan José Millás
propõe outra engenhosa classificação animal e diz que os escritores
podem ser insetos ou mamíferos. Para sermos exatos, são as obras que
entram nessas categorias e, embora os autores pertençam
majoritariamente a um ou outro registro, também podem escrever às
vezes um livro do outro tipo; como por exemplo Tolstói, que era um
elefante enorme, mas escreveu A morte de Ivan Ilitch, um pequeno e
lindo livro-inseto. E a essa altura suponho que já vai ficando claro a
que Millás se refere com suas ordens animais; são mamíferos aqueles
romances enormes, pesados, potentes, com erros evolutivos que não
servem para nada (rabos atrofiados, sisos absurdos e coisas assim),
mas, no conjunto, grandiosos e magníficos; enquanto os insetos são
aquelas criações exatas, perfeitas, pequenas, enganosamente simples,
essenciais, nas quais nunca sobra nem falta nada. E oferece dois
exemplos: A metamorfose, de Kafka, que é evidentemente um
escaravelho, e o Ulysses, de Joyce, que Millás elege como mamífero
emblemático e que para mim é mais um réptil, um crocodilo rasteiro
que mal consegue se levantar sobre as quatro patas, sendo um
romance que só me interessa, e não muito, como artefato modernista.
Existem centenas de classificações além dessas, tantas que seria
impossível enumerar todas. Eu também inventei minhas próprias
categorias: uma delas, por exemplo, é a que divide os escritores entre
memoriosos e amnésicos. Os primeiros são aqueles que ficam fazendo
alarde constante da sua memória; provavelmente são seres nostálgicos
do seu passado, quer dizer, da sua infância, que é o passado primordial
e originário; seja como for, os memoriosos compartilham um estilo
literário mais descritivo, reminiscente, cheio de móveis, objetos,
cenários carregados de significado para o autor e desenhados por ele
nos mínimos detalhes, pois se referem a coisas reais petreamente
instaladas na lembrança: cadeiras entalhadas, vasos venezianos,
merendas de verão, em parques aprazíveis.
Já os autores amnésicos não querem ou não conseguem lembrar;
decerto fogem da sua própria infância e sua memória é como um
quadro mal apagado, cheio de borrões incompreensíveis; nos seus
livros há poucas descrições detalhadas e costumam ter um estilo mais
seco, mais cortante. Concentram-se mais na atmosfera, nas sensações,
na ação e na reação, no que é metafórico e emblemático. Um autor
obviamente memorioso é o grande Tolstói (um escritor tão
monumental que pode servir como exemplo de muitas coisas); um
autor amnésico é o maravilhoso Conrad de O coração das trevas, um
romance que, apesar de reproduzir quase ponto por ponto uma
experiência real do escritor, não tem nada a ver com a rememoração
autobiográfica: quando Conrad fala da selva não está descrevendo a
selva do Congo Belga, mas A Selva, como categoria absoluta, e nem
sequer isso, pois essa mata enigmática e horrivelmente ubérrima
representa a escuridão do mundo, a irracionalidade, o mal fascinante,
a loucura.
Adoro ambos os autores, mas se um dia um ifrite bondoso me
concedesse o dom do gênio literário, preferiria mil vezes escrever
como Conrad a como Tolstói, provavelmente porque me sinto muito
mais próxima da sua maneira de contemplar o mundo. Também sou
uma amnésica perdida; do que se deduz, suponho, que também estou
fugindo da minha infância. Seja por essa razão, ou apenas porque
meus neurônios estão deteriorados, a verdade é que minha memória é
uma catástrofe, a ponto de que chego a me assustar com meus
esquecimentos. Livros lidos, pessoas e situações que conheci, filmes
vistos, dados que algum dia aprendi, tudo se confunde e se embaralha
aqui dentro. De fato, transcorrido certo tempo, digamos vinte anos,
de algo de que me lembro, às vezes me é difícil distinguir se o vivi,
sonhei, imaginei ou quem sabe escrevi (o que indica, por outro lado, a
força da fantasia: a vida imaginária também é vida).
Em Matar a Víctor Hugo: Memoria de periodista, o primeiro volume
das suas memórias, o jornalista e poeta Iván Tubau conta que a morte
de Franco o pegou no festival de cinema de Benalmádena. O também
jornalista Juan Ignacio Francia bateu na porta do seu quarto às seis e
meia da manhã; vinha lhe comunicar que o general havia morrido e
pedir a garrafa de champanhe que os amigos tinham colocado na
geladeira de Tubau, prevendo o acontecimento. No livro, Francia diz
ao sonolento Iván:

Vamos à praia festejar. Com a Rosa Montero, que já está pronta. E


os dois sevilhanos. Combinamos de pegá-los no apartamento dele,
um pouco mais embaixo na ladeira, tá? No seu Citroën ou no
Mehari da Rosa. Acho que nós cinco vamos caber melhor no
Mehari.

E Tubau continua dizendo:

Fomos os cinco para a praia no Mehari da Rosa, fumamos uns


baseados, bebemos champanhe, tiramos fotos com a câmera de um
dos sevilhanos. Nunca os vimos de novo. Nem vimos as fotos.
Talvez seja melhor assim, mas às vezes me bate uma curiosidade.
Acho que em uma das fotos Rosa e eu, ou Ignacio e eu — em
qualquer uma das hipóteses eu, mea-culpa —, fazemos o V da
vitória. Ainda me dá vergonha cada vez que penso nisso.

Tenho certeza de que Iván Tubau sabe o que diz quando conta tudo
isso (sem dúvida esse homem pertence ao gênero memorioso, que
sujeito), mas, quando li, fiquei horrorizada, pois não me lembrava de
absolutamente nada. Sei que no momento da morte de Franco eu
estava cobrindo o festival de Benalmádena para a revista Fotogramas;
sei que o festival foi interrompido pelo luto oficial de alguns dias;
lembro-me perfeitamente de Juan Ignacio e Iván, dois caras incríveis
com quem eu saía bastante naquela época, e guardo, inclusive, a vaga
memória de um almoço feliz ao sol com amigos, na varanda de algum
pé-sujo, devorando peixinhos fritos e aproveitando uma sensação de
liberdade e alívio, de emocionada e borbulhante expectativa. Mas
daquela ida à praia não resta o menor rastro na minha cabeça; não
tenho a menor ideia de quem seriam esses dois sevilhanos, nem tinha
ciência de que houvessem tirado uma foto minha nesse dia. No
entanto — e para maior arrepio meu —, era uma data única, um
acontecimento histórico. Tenho certeza de que, enquanto brindava
com champanhe junto ao plácido mar, dizia a mim mesma: “Nunca
mais vou me esquecer disso”. É assim que vão se perdendo os dias e a
vida, no precipício da desmemória. A morte não só te espera no final
do caminho, mas também te devora pelas costas.
Enfim, como diz a famosa frase, “quem se lembra dos anos 1970 é
porque não os viveu”. Acho que eu os vivi bastante a fundo e quem
sabe por isso me lembre deles tão mal. Além disso, às vezes também
recorro a uma teoria pessoal provavelmente sem sentido, mas
consoladora: penso que talvez a imaginação dispute com a memória
para se apoderar do território cerebral. É possível que a gente não
tenha cabeça suficiente para ser ao mesmo tempo memorioso e
fantasioso. A louca da casa, inquilina diligente, limpa as salas de
lembranças para ficar mais à vontade.
Há um tempo, um frenesi rememorativo tomou conta de mim. De
repente, senti uma necessidade imperiosa de voltar a ver a casa da
minha infância, um apartamento modesto e alugado no qual morei
com minha família dos cinco aos vinte e um anos, idade em que me
emancipei. Pouco depois, meus pais e Martina se mudaram. Outras
pessoas chegaram e moraram ali; eu não tinha voltado a ver a casa
durante vinte e cinco anos. Mas agora precisava voltar; embora o lugar
estivesse muito mudado, as paredes continuavam existindo, bem
como o estreito pátio que eu contemplava da janela do meu quarto; e
talvez algum pedacinho do meu antigo eu flutuasse ainda por ali como
o ectoplasma de um fantasma. De modo que escrevi uma carta dirigida
aos “inquilinos atuais”, pois ignorava tudo sobre os ocupantes, na qual
explicava que eu tinha morado ali e pedia que por favor me deixassem
visitá-los. Pouco depois recebi por e-mail a resposta generosa e amável
dos donos do apartamento, José Ramón e Esperanza, e combinei uma
data para ir vê-los. Não sei o que esperava encontrar: talvez minha
memória perdida de perfeita amnésica, talvez minha ignorância
infantil ou o silêncio da família. Marcamos ao meio-dia; a portaria
continuava igual, inclusive com as mesmas faixas pintadas nas
paredes, mas o elevador era novo; já nos meus tempos era uma lata-
velha que vivia quebrada. Subi na pequena caixa do elevador, metálica,
de cor verde hospital, e de fato me sentia como se estivesse entrando
em um e fosse fazer uma pequena cirurgia: extirpar uma
reminiscência, suturar uma lembrança. O apartamento, no sétimo e
último andar, conservava a estrutura original, mas, como é natural,
não tinha nada a ver com a casa da minha infância. O piso, antes de
lajotas, era de madeira; as velhas janelas de madeira tinham sido
substituídas por molduras metálicas. O banheiro e a cozinha eram
bonitos e modernos, quando na minha infância haviam sido tétricos e
escuros. Era uma casa iluminada e feliz, a casa dos outros, a vida dos
outros. José Ramón e Esperanza, um casal da minha idade, com duas
filhas de uns vinte anos, foram afetivos, compreensivos, encantadores.
Esperanza, com fina intuição, chegou a dizer: “Deveríamos deixá-la
sozinha”. É verdade que eu os sentia como intrusos; aquela casa era
minha, porque era a casa da minha infância. Pouco importava que eu
só tivesse morado ali durante dezesseis anos e eles, durante vinte e
cinco; ou que eles a tivessem comprado e reformado, enquanto nós só
a alugávamos. Qualquer consideração racional me parecia absurda:
aquela casa era MINHA. E, por outro lado, o que esses arrivistas tinham
feito com ela, onde estava meu velho lar, onde estava eu, o que
acontecera conosco? Tentei voltar a me pôr nos meus antigos olhos de
menina para ver o mundo dali, mas não consegui. O passado não
existe, por mais que Marcel Proust diga o contrário. Quando estava
prestes a ir embora, depois de ter bebido umas cervejas com eles e de
ter conversado naquela sala alheia, Esperanza me disse que, debaixo
da madeira, se mantinham intactas as lajotas velhas. O piso original,
com sua faixa geométrica em torno das paredes! Esse desenho fizera
parte de muitas das minhas brincadeiras infantis, aparecera em uma
cena do meu romance Te tratarei como uma rainha e fora a origem de
outro livro, Temblor [Tremor]. Fiquei impressionada e imediatamente
minha imaginação encenou uma fantasia: eu voltando de noite de
modo furtivo e arrancando as tábuas de madeira para trazer à luz a
única coisa que restava da minha infância: umas lajotas feias de
varanda barata. E esse devaneio foi um verdadeiro alívio.
O romance é um artefato temporal, como a vida mesma. Essa é
outra das características que unem a narrativa e a cidade; como se
sabe, o conceito moderno do tempo nasceu mais ou menos no século
XII, com os primeiros núcleos urbanos. O romance é uma rede para
caçar o tempo, como as que Nabokov levava para caçar borboletas;
embora, infelizmente, tanto os lepidópteros como os fragmentos de
temporalidade morram assim que são capturados.
Alguns autores são realmente geniais na hora de capturar o frágil
borboletear do tempo. Lembro-me, por exemplo, dessa obra-prima
que é Espelho partido, de Mercé Rodoreda. O romance abarca sessenta
ou setenta anos da vida de uma família burguesa catalã; no primeiro
terço do livro, um dos personagens, ainda jovem e inocente,
contempla a rua por uma janela e percebe, de passagem, uma pequena
imperfeição no vidro, uma bolha que o deforma, a mancha do açafrão
que faz com que essa janela adquira realidade. Muitos anos e muitas
páginas depois, envelhecido e decadente, contempla de novo o mundo
por outra janela. Mas eis que esse vidro também tem um defeito,
também mostra uma pequena bolha, que lembra ao protagonista
alguma coisa, embora ele não saiba o quê. Onde foi que ele viu antes
algo parecido? Ele espreme a cabeça, mas não consegue lembrar,
embora a bolha de ar o inquiete e o arrepie, trazendo de volta paraísos
perdidos, promessas traídas, felicidades rompidas. É um mensageiro
do passado, carregado de dor e de melancolia. E o maior, o mais
maravilhoso, o truque admirável dessa delicada prestidigitadora que
foi Rodoreda é que o leitor sente a mesma coisa que o personagem;
também rememora vagamente outra bolha cristalina que aparecera
antes no romance e, embora não lembre quando nem por quê, sente
que estava relacionada com um tempo de alegria que agora acabou.
Consequentemente, o leitor também experimenta a nostalgia infinita,
a amarga tristeza da perda.
Todos os escritores almejam capturar o tempo, desacelerá-lo pelo
menos por alguns momentos em uma pequena armadilha de castor
construída com palavras; às vezes o tempo forma ao seu redor um
redemoinho e permite contemplar uma ampla e vertiginosa paisagem
ao longo dos anos. Lembro que senti algo assim, por exemplo, lendo
Eremita em Paris, livro autobiográfico de Italo Calvino. Como já disse,
o volume inclui o diário que Calvino escreveu em 1959, aos trinta e
dois anos, durante sua primeira viagem aos Estados Unidos. A viagem
fazia parte de um programa cultural americano intitulado Young
Creative Writers, que se encarregava de levar para lá “jovens
escritores criativos” da Europa. Os outros beneficiados com a bolsa
naquele ano tinham sido Claude Ollier, francês, trinta e sete anos,
representante do insuportável nouveau roman; Fernando Arrabal,
espanhol, vinte e sete anos, “baixinho, com cara de menino, franja e
barba na forma de colar”, e Hugo Claus, belga flamenco, trinta e dois
anos. Além disso, havia outro convidado, Günter Grass, alemão, trinta
e dois anos, mas ele não passou no exame médico porque tinha
tuberculose e naquela época ninguém podia entrar nos Estados
Unidos com o bacilo de Koch.
No seu diário, Calvino descreve os colegas, que ninguém ou quase
ninguém conhecia naquela época. De Ollier quase não diz nada, o que
não me estranha. De Arrabal (me assombra comprovar que esse
homem tenha sido jovem) anota que “é extremamente agressivo,
piadista de maneira obsessiva e lúgubre, e não se cansa de me
bombardear com perguntas sobre como é possível que eu me
interesse pela política e também sobre o que pode fazer com as
mulheres”. E de Hugo Claus diz que

começou a publicar com dezenove anos e desde então escreveu


uma quantidade enorme de coisas, sendo para a nova geração o
escritor, dramaturgo e poeta mais famoso da área linguística
flamenco-holandesa. Ele mesmo diz que muitas dessas coisas não
valem nada, mas é um pouco menos estúpido e antipático, um
homenzão loiro, com uma belíssima mulher, atriz de revista.
É muito curioso se deparar com essas aparições juvenis de pessoas
com as quais você teve contato tantos anos mais tarde. Com o tempo,
Arrabal foi se tornando menor e mais barbudo, estabelecendo relações
com a Virgem; já Hugo Claus continua sendo um figurão, perpétuo
candidato ao Prêmio Nobel. Eu o conheci faz alguns anos, estivemos
juntos em algum jantar e em algum evento literário, e agora é um
simpático e enérgico septuagenário de cabelos brancos que deve ter
colecionado várias belas mulheres. Mas o mais fascinante é que,
durante a travessia que os levava aos Estados Unidos, se produziu o
lançamento do primeiro Sputnik; e Calvino conta, de passagem, que,
quatro horas depois do acontecimento, Hugo Claus já escrevera um
poema sobre o satélite “que imediatamente saiu na primeira página de
um jornal belga”. Pois então, essa pequena referência foi para mim
como a madeleine proustiana ou a bolha vítrea de Mercé Rodoreda:
imediatamente situei o período temporal e fui introduzida na
memória alheia. Porque uma das lembranças mais belas da minha
infância está datada no Natal de 1959. Eu tinha oito anos e ainda
convalescia da tuberculose, mas naquele dia saí para a rua, embrulhada
em um cachecol e bem agasalhada, porque era véspera de Natal e
íamos jantar na casa da minha avó. Estava subindo pela Reina Victoria
de mãos dadas com minha mãe, com meu pai e minha irmã Martina
do lado, quando, de repente, paramos e contemplamos o céu. Quer
dizer, a rua toda parou e olhou para cima. Era noite fechada, uma noite
gelada, quieta e cristalina, com o céu abarrotado de estrelas. De
repente, a mão de um homem se ergueu e um dedo apontou, e em
seguida outras mãos se ergueram, talvez a do meu pai, talvez inclusive
a minha; e todos os dedos apontaram a mesma coisa, uma estrela mais
brilhante que atravessava o céu, uma estrelinha redonda que corria e
corria, só que não se tratava de uma estrela, mas de um satélite
artificial, de algo maravilhoso e monumental que nós, humanos,
fizéramos; e nesse exato momento, enquanto eu derretia de deleite
contemplando essa magia e sonhava em viajar algum dia em um
Sputnik, o jovem Hugo Claus, quem eu conheceria velho, escrevia um
poema sobre a estrela errante, e o jovem Calvino, que já morreu,
escrevia sobre o poema que Claus escrevia, e o jovem Günter Grass,
tuberculoso como eu e deprimido por ter perdido sua bolsa,
certamente contemplava o satélite com olhos admirados, sem saber
que um dia faria um grande romance sobre um anão (justamente um
anão) e que ganharia o Nobel, chegando pelo menos aos setenta e
cinco anos, que é a idade que ele tem agora, enquanto escrevo isto.
Mas naquela noite de 1959 eu ignorava tudo, naquele noite eu
simplesmente olhava o céu absorta, junto com meus pais e minha irmã
e outros dois milhões de madrilenhos; e as estrelas derramavam sobre
nós uma luz provavelmente fantasmal, a luz de estrelas mortas faz
trilhões de anos e que ainda nos chega palpitando através do espaço
negro e frio; essa mesma luz que talvez continue passando por nós
daqui a muito tempo, quando nosso Sol já tiver se apagado e a Terra
for um rijo pedregulho. E essa luz impassível e impossível, que, por
sua vez, algum dia também se extinguirá, levará aceso, como um
sopro, o reflexo infinitamente imperceptível do meu olhar.
Dezoito

Quando comecei a imaginar este livro, pensava que seria uma espécie
de ensaio sobre a literatura, sobre a narrativa, sobre o ofício do
romancista. Projetava escrever, enfim, mais uma dessas inúmeras
obras tautológicas que consistem em escrever sobre a escrita. Depois,
como os livros têm vida própria, suas necessidades e seus caprichos, a
coisa foi se transformando em algo diferente, ou melhor, outro tema
foi sendo acrescentado ao projeto original: eu não só trataria da
literatura, mas também da imaginação. E, de fato, esse segundo ramo
se tornou tão poderoso que, de repente, se apoderou do título do
livro. A gênese do título de uma obra é um processo muito
enigmático. Se tudo funciona bem, o título aparece um dia no meio do
caminho do desenvolvimento do texto; manifesta-se de repente
dentro da cabeça, deslumbrante, como a língua de fogo do Espírito
Santo, e esclarece e ilumina o que você está fazendo. Diz coisas sobre
seu livro que você antes ignorava. Eu fiquei sabendo que estava
escrevendo sobre a imaginação quando caiu sobre mim a frase de
Santa Teresa.
Mas as coisas não terminaram aí. Continuei com meu caminho de
palavras, com essa longa andança que é a construção de um texto, e
um dia, faz relativamente pouco tempo, percebi que eu não só estava
escrevendo sobre a literatura e sobre a imaginação, mas que este livro
também trata de outro tema fundamental: a loucura. Claro, disse a
mim mesma quando me dei conta, era algo evidente, tinha de ter
ficado mais atenta, tinha de ter escutado todos os ensinamentos que
derivam do título. A louca da casa. Não é uma frase casual e,
sobretudo, não é uma frase banal. Sem dúvida, a imaginação está
estreitamente aparentada com o que chamamos loucura, e ambas com
qualquer tipo de criatividade. E agora vou propor uma teoria
alucinada. Suponhamos que a loucura é o estado primigênio do ser
humano. Suponhamos que Adão e Eva viviam na loucura, que é a
liberdade e a criatividade total, a exuberância imaginativa, a
plasticidade; a imortalidade, porque carece de limites. O que
perdemos, ao perder o paraíso, foi a capacidade de contemplar essa
enormidade sem nos destruírmos. “Se das estrelas agora chegasse o
anjo, imponente/ e descendesse até aqui/ os golpes do meu coração
me abateriam”, dizia Rilke, o qual sabia que nós, humanos, somos
incapazes de olhar a beleza (o absoluto) de frente. O castigo divino foi
cair no cárcere do nosso próprio eu, na racionalidade manejável, mas
empobrecida e efêmera.
Por isso os seres humanos usaram drogas desde o princípio dos
tempos: para tentar escapar da prisão estreita da cultura, dando uma
espiada no paraíso. Até nosso arquiavô Noé desmaiava de tanto beber!
Lembro-me agora de Aldous Huxley, que, no seu leito de morte,
agonizante, pediu que lhe injetassem uma dose de LSD. Sempre me
horrorizou essa ideia macabra e arriscada de morrer sob efeito de
ácido. Mas, além disso, se ao falecer estava para lá de drogado, será
que chegou a experimentar de verdade seu fim? Não estaria já do
outro lado, nessa realidade imensa onde ninguém morre? De fato,
dizem que, com ou sem LSD, em todo falecimento acontece algo
parecido; o cérebro libera uma descarga massiva de endorfinas e
drogamos a nós mesmos, daí que todas as pessoas que voltaram das
fronteiras da morte contem vivências semelhantes: a intensidade, a
amplitude de percepção, a própria existência vislumbrada na sua
totalidade, como se iluminada por um raio sobre-humano de
entendimento… É uma espécie de delírio, mas é também a sabedoria
sem travas. É a baleia contemplada inteira. Por isso, muitos povos
consideraram os loucos como seres iniciados no segredo do mundo.
Seja como for, não é preciso morrer nem se transformar em um
louco oficial, sendo trancado em um manicômio, nem se drogar como
o junkie mais largado, para vislumbrar o paraíso. Em todo processo
criativo, por exemplo, se toca essa visão descomunal e alucinante. E
também entramos em contato com a loucura primordial cada vez que
nos apaixonamos intensamente. Eis outro tema sobre o qual este livro
trata: a paixão amorosa. Ele está intimamente relacionado com os
outros três, porque a paixão talvez seja o exercício criativo mais
comum da Terra (quase todos nós já nos inventamos algum dia um
amor) e porque é nossa via mais habitual de conexão com a loucura.
Em geral, nós, humanos, não nos permitimos outros delírios, mas o
amoroso, sim. A alienação passageira da paixão é uma maluquice
socialmente aceita. É uma válvula de segurança que nos permite
continuar sendo lúcidos em todo o resto.
É que as histórias amorosas podem chegar a ser francamente
estrambóticas, verdadeiros paroxismos da imaginação, melodramas
românticos de paixões confusas. Ao longo da minha vida inventei
umas tantas relações assim e agora vou me permitir narrar uma delas,
como exemplo de até onde a fantasia (e a loucura) pode te levar.
Aconteceu faz muito tempo, tempo demais, pouco antes da morte do
ditador. Eu tinha vinte e três anos e colaborava de Madri na revista
Fotogramas. Meu guarda-roupa era composto de dois pares de calças
jeans, uma saia florida desleixada, umas botas rústicas um tanto
encardidas, quatro ou cinco camisas indianas transparentes e uma
grande bolsa com franja. Quero dizer que eu era mais para hippie,
tanto quanto era possível ser hippie em 1974 na Espanha de Franco, o
que significava que eu estava mais ou menos convencida de que, todos
juntos, podíamos mudar o mundo de cima a baixo. Era preciso tomar
drogas psicodélicas para romper com a visão burguesa e convencional
da realidade; era preciso inventar novas formas de se amar e de se
relacionar, mais livres e mais sinceras; era preciso viver com uma
bagagem leve, com poucas posses materiais, sem se apegar ao
dinheiro.
Aquele mês de julho de 1974 foi especialmente calorento, com um
sol saariano que derretia até o último fio de cabelo. De noite, o corpo
se recuperava da tortura diurna e começava a irradiar fome de vida.
Essas noites do verão de 1974, com Franco já muito velho, estavam
carregadas de eletricidade e de promessas. Em uma dessas noites, saí
para jantar com minha amiga Pilar Miró, com seu namorado daquela
época, um cineasta estrangeiro que estava rodando um filme na
Espanha, e com M., o protagonista desse filme, um ator europeu
muito famoso que triunfara em Hollywood. M. tinha trinta e dois
anos; não era muito alto, talvez um metro e setenta e cinco, mas era
um dos homens mais lindos que eu já vira. Seus olhos eram tão azuis e
abrasadores como um maçarico; as maçãs do seu rosto eram altas e
marcadas; sua constituição era atlética e seu peito, uma rígida
almofada de borracha (o que percebi ao apoiar ligeiramente a mão
quando lhe dei os beijos de boas-vindas), esses deliciosos peitorais
sólidos e elásticos. Além disso, era tímido, calado, melancólico. Ou
isso me explicou Pilar quando ligou para me perguntar se eu queria
jantar com eles:
— O coitado do M. está muito triste e muito sozinho. Como você
sabe, ele acabou de se separar da mulher e, mesmo sendo tão lindo,
não consegue ficar com ninguém. É um cara muito reservado, mas
encantador.
De maneira que, na realidade, eu fui para o jantar como possível
objeto de pegação; foi um encontro tacitamente arranjado. Fui numa
boa, curiosa e divertida, intrigada com as descrições de Pilar. M., de
fato, falava bem pouco, mas era impossível discernir se seu laconismo
era uma questão de caráter ou uma consequência do fato de que a
gente não conseguia se entender, porque ele não falava espanhol e
meus conhecimentos de inglês naquela época se reduziam a algumas
canções de Dylan e dos Beatles, balbuciadas de ouvido, soltando
barbarismos. Apesar dessa dificuldade monumental, a noite
transcorreu bastante bem, com Pilar e seu namorado carregando a
conversa nas costas. Jantamos opiparamente, depois fomos beber e
acabamos a noite em uma discoteca. A essas alturas da madrugada e da
dança, já não era necessário conversar: nossos corpos assumiram todo
o diálogo. Presa nos seus braços, afundando o nariz no cheiro febril e
macio do seu peito gostoso, eu gozava desse momento mágico que
consiste em se sentir desejada por um homem que você deseja
ardentemente. Toda a minha consciência estava inundada pela
sensação de plenitude, mas por baixo, agora me dou conta, também se
agitava uma vaga inquietude, um pequeno incômodo que preferi
ignorar.
Pilar e seu namorado afinal foram embora e nós, sem nem
precisarmos perguntar nada, fomos no meu carro, o velho Mehari
mencionado por Iván Tubau, para o apartamento que a produtora
alugara para M. na Torre de Madri, o orgulhoso arranha-céu do
franquismo. Era sábado e, quando chegamos à Plaza de España, havia
um monte de veículos estacionados sobre a calçada. A duras penas,
encontrei um pequeno buraco entre eles e também deixei o carro ali.
Apesar da hora, os jardins da praça estavam cheios de gente, como se
fosse um dia de feriado. Era o calor e o veneno delicioso das noites de
julho. Subi até o apartamento de M., mais embriagada pela
intensidade da noite do que pelo álcool. Demoramos para chegar: o
interior da Torre era um labirinto de elevadores e de escadas, e o
apartamento ficava em um dos últimos andares. Lembro que
estávamos com tanto tesão que mal deu tempo de fecharmos a porta;
lembro que jogamos a roupa pelo chão e que nós mesmos rodamos
pelo carpete durante um longo tempo antes de nos arrastarmos até a
cama. Lembro, como frequentemente acontece em um primeiro
encontro, sobretudo quando há muito desejo, quando se é tímido,
quando se é jovem e quando não existe muita comunicação, que o ato
sexual foi desajeitado, cheio de cotoveladas e pernas no lugar errado.
Seu corpo era um banquete, mas acho que a coisa não deu muito
certo.
Depois M. cochilou, enquanto do outro lado das janelas amanhecia.
Deitada ao seu lado, suada e desconfortável, presa por um braço de M.
que amassava meu pescoço, eu contemplava o quarto enquanto ia
sendo inundado por uma luz leitosa; e na nudez dessa claridade tão
insípida, no frenesi obsessivo das insônias, comecei a me sentir
francamente mal. Você desempenhou o papel mais convencional, mais
burguês do mundo, disse a mim mesma: a tonta que fica com o
famoso. Se a gente nem sequer se entende! O que diacho ele pode ter
gostado em mim? É que, nessa época, como acontece com tantos
jovens, eu era uma pessoa muito insegura sobre meu corpo e
acreditava que minha única atração eram as palavras. Mas se a gente
mal tinha se falado, por que ele tinha ficado comigo? Porque estava
previsto, respondi; porque eu era essa garota, uma garota qualquer,
dessas que vão para a cama com figurões como ele. M. não era um
homem reservado e um grande tímido, mas um machista insensível e
um cretino. Comecei a me sentir tão idiota que teria batido com a
cabeça na parede.
Em vez de fazer isso, decidi fugir e, contorcendo-me como um
fenômeno de circo, consegui sair de debaixo do pesado abraço de M.
sem que ele acordasse. Descalça e sigilosa, catei a roupa do chão e me
vesti rapidamente. Dois minutos depois, estava fechando a porta do
apartamento atrás de mim, cansada e confusa, com a boca pastosa e o
ânimo pelo chão. Desci pelos diversos elevadores como um autômato
e, ao chegar à rua, o dia bateu em mim com todo o seu esplendor.
Eram dez e pouco da manhã e o sol perfurava o asfalto. Diante de
mim, sobre a ilha central da Plaza de España, meu Mehari vermelho
era um berro de ilegalidade. Não restava nenhum outro veículo na
calçada: só minha pequena lata-velha, desengonçada e suspeitamente
contracultural, com a lona do capô empoeirada e rasgada. Em torno do
Mehari, um enxame de grises, os temíveis policiais franquistas,
farejavam e libavam como abelhões. Primeiro acreditei que fosse uma
miragem, um delírio induzido pelo sol que me cegava. Depois tive de
admitir que era real. Meus joelhos falharam. Meus joelhos sempre
tremiam diante dos grises durante o franquismo.
Fiz rápidas conjecturas, tentando encontrar alguma saída para a
situação. Mais tarde compreendi que seria melhor se tivesse ido
embora na ponta dos pés e depois denunciado o desaparecimento do
carro, como se tivesse sido roubado. Mas eu estava sem dormir, minha
cabeça explodia, me sentia tonta e meu cérebro funcionava em câmara
lenta. De modo que tomei a decisão de me aproximar e foi fatal.
Assim que os cumprimentei e observei como os policiais me
olhavam, comecei a intuir que tinha me enganado. Eu não levara em
conta minha aparência, que, no melhor dos casos, era suspeita, pois
no franquismo tudo era suspeito (como meus jeans surrados, a camisa
indiana semitransparente sem nada por baixo, o cabelo frisado com
uma permanente afro), e que agora, além disso, apresentava um
inequívoco toque macilento das noites de farra, com o cabelo
ressecado e restos de maquiagem sujando o rosto. Meus confusos
balbucios também não melhoraram a impressão produzida:
— Estacionei aqui ontem de noite, estava cheio de carros, não
percebi que era proibido, bebemos um pouco, fui dormir na casa de
uma amiga…
Os grises tinham a expressão tão cinzenta quanto seus uniformes.
Desde que uma bomba do ETA havia estourado Carrero Blanco meio
ano antes, as forças de segurança estavam especialmente paranoicas.
— Documentos — grunhiram.
Enfiei a mão na bolsa com franja e, apesar do calor crescente da
manhã, um arrepio gelado começou a descer pela minha espinha. Não
encontrei nem a carteira nem as chaves. Lembrei que, quando entrei
no apartamento de M. umas horas antes, estava com as chaves na mão
e devo ter perdido no frenesi e na urgência da carne. Quanto à
carteira, eu também jogara a bolsa no carpete de qualquer maneira
(antes de sair a peguei do chão) e, como a bolsa não tinha fecho,
certamente a pesada carteira cheia de moedas rolara para fora. Ao ir
embora do apartamento, em meio ao sigilo, à fúria, ao atordoamento e
à penumbra das persianas baixas, não percebera nada faltando.
— Pois então… é que agora não estou encontrando a carteira…
Nem as chaves… Acabei… acabei de visitar um amigo ali na Torre de
Madri e devo ter deixado lá. Posso atravessar e subir para pegar —
pigarreei com a garganta seca.
Os grises se encapotaram um pouco mais. Por momentos ficavam
mais altos, carrancudos e temíveis.
— Não acabou de dizer que dormiu na casa de uma amiga? E agora
está dizendo que esteve aqui em frente, com um amigo? —
argumentou um deles com um tonzinho sarcástico e ares de agudo
detetive: — Quem é esse amigo e onde ele mora?
Eu já estava achando bastante calamitoso ter de aparecer de novo
na casa de M. para pegar minhas coisas, mas com a pergunta do
policial me dei conta de outro pequeno detalhe catastrófico: não sabia
qual era o apartamento nem em que andar ficava. Devo ter
empalidecido. Gemi, gaguejei, sem ar, e expliquei como pude que ele
era um ator muito famoso (não conhecem?) e que só precisávamos
perguntar para o porteiro e subir, para recuperar minhas coisas e me
identificar, pagando a multa pelo estacionamento proibido,
obviamente, e irmos cuidar da nossa vida com tranquilidade.
Acho que não colou muito, porque dois dos policiais me
acompanharam até a Torre, sendo que um deles me segurava
firmemente pelo antebraço. Eu me aproximei do porteiro, que nos
observava com notória desconfiança atrás de um balcão de mármore
verde-escuro sinistro, estilo panteão de El Escorial. Perguntei por M.
Não o conhecia. Descrevi M. com riqueza de detalhes, enumerando
todos os filmes estreados na Espanha, dei o nome da produtora. Ele
não fazia ideia. Era folguista, vinha só nos fins de semana, estava
trabalhando desde as seis da manhã e não me vira entrar no prédio. E
sair? Sem dúvida tinha me visto sair, vinte minutos antes. Ah, disso
não tinha registro. Como era natural, não se preocupava tanto com os
que saíam quanto com os que entravam, por uma questão de
segurança. A essa altura, o porteiro do prédio, um quarentão teimoso,
já tinha estabelecido uma relação de confiança com os dois policiais.
Eram colegas e os três estavam contra mim, cada vez mais inquietos e
suspicazes. Nas ditaduras, você é sempre culpado, e é sua inocência
que você precisa demonstrar.
De modo que o guarda que me segurava pelo braço me arrastou de
volta para o carro. No intervalo, mais grises tinham aparecido; agora
eram pelo menos uma dezena, sendo que um dos recém-chegados
devia ser um chefe importante, porque todos se dirigiam a ele com
muitos obséquios. Começaram a lhe contar respeitosamente minha
peripécia: “Diz que esqueceu a carteira e os documentos em um
apartamento… Diz que não lembra qual apartamento… Incorreu em
contradições…”. Essa era a conversa quando um dos policiais mais
jovens, um rapazinho rústico que mal tinha vinte anos, desses que na
universidade chamávamos paternalistamente de desertores do arado,
começou a revistar meu carro, no qual, aliás, não havia muito para ver.
Era uma espécie de jipe de plástico vermelho; como era verão, eu
tinha tirado as portas e as lonas laterais, sobrando só o capô do teto.
O jovem policial abriu o porta-luvas, que, embora tivesse chave, estava
quebrado, e verificou que não havia nada escondido ali. Depois enfiou
as mãos debaixo dos assentos e tirou vários punhados de poeira. Por
último, e em um ímpeto de genialidade, procedeu a desenroscar a bola
do câmbio das marchas. O câmbio era uma alavanca de metal,
rematada com uma bola de plástico preto de uns seis centímetros de
diâmetro. Curiosamente, a bola era oca e dividida pela metade, sendo
que ambas as partes se enroscavam uma na outra, suponho que para
que a alavanca pudesse ser montada e desmontada facilmente. Essa
modesta peça de Meccano foi a que o jovem guarda abriu,
encontrando lá dentro uma minúscula pedra de haxixe bastante
ressecada, embrulhada em papel-celofane, que mal dava para um par
de baseados, as sobras de uma viagem recente a Amsterdam, um
pequeno depósito de abastecimento do qual eu praticamente me
esquecera.
Tive muita sorte. Fiquei presa apenas uns dias e não me deram
nenhuma bofetada, coisa que, naqueles tempos duros do franquismo,
era algo extraordinário. Suponho que minha profissão de jornalista na
ativa, que logo verificaram, deve ter contido sua fúria repressora; isso
e minha condição evidente de trouxa, de pessoa que não tinha relação
com nada subversivo de verdade. Tive de pagar uma pequena fiança e
abriram um processo que nunca deu em nada, porque prescreveu, foi
arquivado ou o que quer que seja em uma das anistias do pós-
franquismo. Na manhã seguinte da minha prisão, minha irmã Martina
veio até a delegacia e trouxe minha carteira de identidade e as chaves
do carro. M. ligara para minha casa (a casa dos meus pais, a que
constava na minha identidade e na qual minha irmã continuava
morando com eles; essa casa distante que agora visitei e que esconde
antigas lajotas debaixo do piso de madeira) e levara meus pertences.
— O que aconteceu? Por que você foi embora assim do
apartamento desse cara, tão apressada e deixando tudo? — me
perguntou Martina sem rodeios.
A gente nunca tinha compartilhado confidências de namorados,
nem nada na realidade. Vivíamos como se o grande silêncio nos
ensurdecesse. Dei de ombros. Eu me sentia humilhada pela noite com
M., pela minha própria atitude, por ter sido presa de um jeito tão
estúpido. Não queria nem lembrar das minhas trapalhadas.
— Sei lá. Na realidade não aconteceu nada. É só que ele é um
machista e um babaca. Não quero mais saber dele.
É preciso ter muito cuidado com a formulação dos desejos, porque
acontece de se cumprirem. De fato, não soube mais de M., pelo
menos durante algumas semanas. Depois um dia abri o jornal Pueblo e,
na coluna de fofocas de verão, me deparei com uma nota jornalística
que dizia: “A namorada espanhola de M.”. E ali estava ele, retratado
em um instantâneo ruim tirado de surpresa na saída de alguma loja,
com um braço sobre os ombros de Martina.
Da minha irmã.
Naquele dia fui jantar na casa dos meus pais, mas Martina não
estava. Me demorei por lá para ver se ela chegava, mas nunca chegou;
de modo que voltei de novo no dia seguinte, na hora do almoço, para
surpresa e delícia da minha mãe. Martina estava lá, com olheiras e
menos arrumada do que de costume (sempre foi mais clássica para se
vestir), mas muito bonita. Irradiava essa mágica exuberância que o
sexo bom proporciona. Assim que a vi, comecei a sofrer. E que
sofrimento tão violento. Eu não estava preparada para sentir algo
assim. Foi como pegar uma virose. Foi a peste bubônica.
Adquiri o hábito, ou antes a angustiosa necessidade, de ir jantar
todos os dias na casa dos meus pais. Martina às vezes estava, às vezes
não. Quando estava, nunca dizíamos nada, nunca o mencionávamos. A
mim, bastava vê-la para sentir a mais refinada das torturas, e mesmo
esse tormento era melhor do que nada. O desejo, como se sabe, é
triangular. Huizinga diz isso em O outono da Idade Média, referindo-se
aos cavaleiros que resgatam damas em apuros: “Mesmo se o inimigo
for um cândido dragão, sempre ressoa no fundo o desejo sexual”.
Amei desesperadamente M. através da minha irmã. Ela era a fazedora,
portanto fez; eu pus e ponho palavras no nada.
Quando a via, sentia o cheiro dele. Imaginava-a lambendo seu peito
macio. Mordiscando seu pescoço delicioso. A essa altura, minha ideia
sobre M. tinha mudado completamente. Agora estava convencida de
que era um homem encantador, alguém reservado e sensível, como
Pilar me dissera. Fora eu que desperdiçara tudo. Que tinha ficado
paranoica e idiota.
Um dia, cheguei ao prédio dos meus pais junto com minha irmã.
Ela estava saindo de um carro grande dirigido por uma pessoa
desconhecida; sem dúvida era um carro da produção e tinham ido até
ali para deixar Martina, antes de se dirigir para a filmagem. M. se
debruçou na janela de trás e acenou para minha irmã com a mão;
depois seus olhos cruzaram por acaso com os meus. Seu meio-sorriso
se apagou; ele franziu as sobrancelhas; quando o carro acelerou, ainda
estávamos nos olhando. Seus olhos eram como uma queimadura.
Como o fósforo ardente de um palito que tivesse colado na carne e a
perfurasse. Entrei consternada pelo portão, atrás da minha irmã, que
estava me esperando no elevador. Subimos na velha e imunda caixa de
madeira. Eu devia estar obviamente tão mal que, quando paramos no
sétimo andar, Martina pôs uma mão no meu braço e murmurou:
— Você disse que ele era um babaca e não queria saber dele.
Não respondi.
— Você está com um incêndio na cabeça, e por isso as coisas
queimam — acrescentou minha irmã, com certa aspereza.
Continuei calada. Não conseguia articular palavra alguma. Agora
era minha irmã que falava e eu caíra no silêncio.
De todo modo, não dissemos mais nada. Parei de ir comer na casa
dos meus pais e me dediquei a sofrer intensamente todas e cada uma
das horas do dia. Estava obcecada. Ainda não era consciente disso,
mas M. tinha a Marca, isto é, reunia todos os ingredientes fatais que
fazem com que um homem me prenda, como a armadilha prende a
raposa itinerante. Tenho a teoria de que o desejo sexual e passional se
constrói em algum momento muito cedo na existência e sobre pautas
mais ou menos estáveis. É como o que Konrad Lorenz, o pai da
etologia, contava sobre seus patinhos. Quando o patinho sai da casca,
escolhe como mãe o primeiro ser vivo que vê perto dele. Isso se
chama imprinting: esse primeiro ser vivo se imprime com o conteúdo
emocional do conceito de mãe e assim permanecerá identificado para
sempre, engastado no coração do pato filho (Lorenz se aproveitava
dessa circunstância para que ninhadas inteiras de minúsculos patos o
perseguissem por toda parte, transidos de amor filial por ele).
Pois bem, acho que no desejo e na paixão acontece algo
semelhante. Em algum instante remoto da nossa consciência se
produz o imprinting do objeto amoroso, com características às vezes
físicas, às vezes psíquicas, às vezes de ambos os tipos: você gosta dos
gordos, dos magros, do seu próprio sexo ou do sexo oposto… Cada
pessoa tem um desenho secreto do amor, uma forma presa no
coração. São coisas sutis: em geral é dificílimo reconhecer o padrão,
porque os amores podem ser aparentemente muito diversos. Eu
comecei a descobrir minha fórmula faz uns dez anos. Agora já sei
como funciona; vejo a Marca e disparo.
Os homens dos quais gosto ou, melhor dizendo, os homens que
são minha perdição, todos eles, que eu saiba, reúnem três condições
concretas. Em primeiro lugar, são bonitos: me dá vergonha
reconhecer isso, mas é assim. Segundo, são inteligentes: se o homem
mais bonito do mundo diz uma besteira, torna-se um pedaço de carne
sem substância. E agora vem o ingrediente fundamental, o terceiro
elemento que fecha o ciclo da sedução como quem fecha um cadeado:
são indivíduos com uma patologia emocional que os impede de
demonstrar seus sentimentos. Isto é, são os caras duros, frios,
reservados, ariscos, nos quais acredito adivinhar um interior de
ternura formidável que não consegue encontrar a via de saída. Sempre
sonho em resgatá-los deles mesmos, em liberar essa torrente de afeto
enclausurado. Mas isso nunca dá certo. E o que é ainda pior: suspeito
que, se algum dia um desses rapazes duros chegasse a se transformar
em um indivíduo afável e carinhoso, o mais provável é que eu deixasse
de gostar dele. A Marca é assim: uma tirana.
Para minha desgraça, e embora eu não soubesse naquela época, M.
possuía a Marca. Era bonito, parecia inteligente (pelo menos não dizia
besteiras, e o fato de não nos entendermos ajudava bastante) e, sem
dúvida, era um cara emocionalmente encouraçado. Fui capturada por
ele, ou pela imagem dele, ou pela invenção que fizera dele, como a
mosca que fica grudada no merengue. Durante dois ou três meses,
fiquei obcecada pela sua ausência. Não conseguia escrever, não
conseguia ler, só pensava nele e no que eu tinha perdido. Não foi uma
dor amorosa: foi uma doença. Evitei Martina durante o resto do ano:
não nos vimos de novo até o Natal. Depois fiquei sabendo que minha
irmã estivera com M., suponho que felizmente (nunca falamos sobre
isso: eis aqui outro silêncio), até que a filmagem acabou e ele foi
embora do país. Então se separaram com toda tranquilidade e cada um
continuou sua vida. Martina se dedicou a pavimentar sua carreira,
conseguir um namorado, casar, ter filhos, construir um lar que sempre
parece acolhedor. Para isso é uma fazedora. Que eu saiba, nunca mais
se encontraram. Mas a verdade é que não sei nada.
Fui me recuperando pouco a pouco, como quem se recupera de
uma amputação. Durante alguns anos não me atrevi sequer a ver seus
filmes. Mas depois, com o tempo, não só a dor foi se apagando, como
também a cicatriz, e começou a ser difícil acreditar que eu tivesse
perdido a cabeça por ele. Se eu nem o conhecia. Se era um perfeito
estranho.
Os anos se passaram, tive vários amores e diversos namorados,
escrevi alguns livros, deixei de ser hippie, troquei a maconha pelo
vinho branco e meu guarda-roupa se tornou incomensuravelmente
maior. E não só o guarda-roupa: minha casa se encheu de uma
infinidade de coisas desnecessárias. É uma das características da
idade: à medida que se envelhece, a casa começa a se tornar um
cemitério de objetos inúteis. Assim estava, instalada já
definitivamente na idade madura, quando, faz pouco tempo, me
convidaram para ser jurada de um festival internacional de cinema que
seria celebrado em Santiago do Chile. O júri era composto de nove
pessoas: atores, diretores de cinema, escritores. Tinham me
comunicado previamente os nomes de todos, mas quando cheguei ao
aeroporto de Santiago alguém comentou comigo que houvera várias
mudanças. Os jurados se reuniriam naquela noite pela primeira vez no
restaurante do hotel; no dia seguinte, começaria a competição. Acabei
dormindo e fui a última a chegar à mesa reservada para o jantar,
confusa e morta de vergonha. Ocupei o primeiro lugar livre que
encontrei e os organizadores começaram a nos apresentar. O terceiro
nome que disseram foi o de M., e eu gelei. Virei a cabeça e ele estava
sentado do meu lado. Nossos olhos se cruzaram, mas seu olhar já não
queimava como um fósforo. Trocamos um pequeno sorriso formal,
sem dar nenhuma demonstração de nos conhecermos. Eu estava certa
de que ele não se lembrava de mim, o que era um alívio.
Amparada no meu anonimato, me dediquei a estudá-lo de modo
furtivo. Acredito lembrar que naquela época eu tinha quarenta e cinco
anos; então, ele devia ter cinquenta e quatro. Seus olhos continuavam
sendo pouco comuns, embora agora parecessem menores, quem sabe
porque as pálpebras estavam um tanto descoladas e porque o branco já
não era tão branco, e sim mais avermelhado e aquoso. De saída, enfim,
não parecia espetacular; não era mais um homem que capturava os
olhares só de aparecer em algum lugar. O tempo não costuma ser
piedoso com os bonitos; já aqueles de nós que nunca fomos belos
podemos adquirir certa graça com os anos. Quero dizer que agora
estávamos mais à altura um do outro, que já não existia essa distância
física que antes me fizera sentir tanta insegurança. M. estava grisalho
e enrugado. E tinha uma expressão cansada ou melancólica. Havia
envelhecido de maneira natural e aparentava sua idade; era evidente
que, ao contrário de outros divos de Hollywood, não fizera nenhuma
plástica. Conseguira manter uma carreira bastante boa, porém muito
mais modesta, de tipo europeu, de ator profissional e não de estrela.
Fizera filmes e teatro; e nos últimos anos escrevera algumas peças
dramáticas que haviam sido representadas em diversos países com um
sucesso razoável. Eu vira uma delas em Madri. Não estava mau.
Mas o mais surpreendente de tudo foi que nos falamos. A essa
altura eu já sabia inglês e não tivemos problema algum para nos
entender. M. se comportou com uma extraordinária cortesia; me
perguntou uma infinidade de coisas sobre minha vida e conseguiu que
parecesse que as respostas lhe interessavam. No fim do jantar, eu
estava invadida por essa esvoaçante excitação que se sente quando se
acabou de conhecer alguém, de quem a gente se sentiu muito
próxima, desejando se aproximar muito mais. Ou seja, fiquei sedutora,
que é um estado delicioso. Gostava da sobriedade dele, da sua
amabilidade um pouco rígida e dessa tristeza de fundo, tão hermética.
Sem dúvida M. continuava tendo a Marca.
Dizem que a felicidade não tem história. Mas tem, sim, o que
acontece é que quando a gente conta soa ridícula. Nos festivais de
cinema, onde os jurados se veem forçados a conviver durante vários
dias, muitas vezes acontece de se criarem dois grupos, às vezes
asperamente indispostos. No nosso caso, houve também uma ou outra
tentativa de enfrentamento, mas, coisa extraordinária, M. e eu
concordávamos sempre. Formamos um núcleo de uma solidez
inquebrantável, ao qual aderiam de forma passageira um ou outro
membro do júri; e, no fim, conseguimos que fossem premiados nossos
filmes, quer dizer, aquelas produções nas quais apostávamos. Rimos
muito, nos apoiamos muito; alcançamos uma enorme cumplicidade,
uma estranha intimidade de equipe diante dos outros. Tomávamos
café juntos, passávamos o dia todo juntos, jantávamos juntos,
bebíamos juntos e nos separávamos apenas durante as seis horas de
sono de noite. À medida que passavam os dias, segurávamos o braço
um do outro, roçávamos nossas mãos, roçávamos tudo o que dava,
mantendo a aparência de um toque casual ou de uma demonstração de
puro afeto amistoso. Foram uns dias frenéticos.
No fim, na jornada de encerramento, na nossa última noite, nós
dois sabíamos o que ia acontecer sem necessidade de dizer nada. Essa
é uma das poucas vantagens da idade: nos poupamos de bastante
palavrório. Fugimos da cerimônia de entrega dos prêmios, fomos para
meu quarto e pedimos um jantar opíparo no room service. Não
comemos nada. Outra das vantagens da idade: não é preciso fingir
orgasmos, não há os gritinhos desnecessários e, em geral, a gente já
sabe onde pôr os cotovelos e os joelhos. Nenhuma articulação ficou
sobrando naquela noite. Poderíamos ter transado vários dias antes,
mas desfrutamos do adiamento, da promessa tácita, dos toques
crescentes, do oferecimento desse corpo que é um tesouro guardado
para nós, do desejo que se tensiona e se exacerba. Eu me deleitei
revelando cada centímetro da pele de M. Seu corpo magro, menos
musculoso do que antes; sua carne madura, mais descolada e mole;
porém também mais eloquente. Gostei dos seus quadris de homem
mais velho, da maneira como cediam sob meus dedos, da longa
história pessoal que sua pele me contava. Fizemos amor com
ferocidade e ânsia adolescente, e depois com a lentidão gulosa dos
adultos, e depois com a sensualidade obsessiva e intemporal. Raras
vezes senti tanto um homem. Foi um banquete.
De manhã, pouco antes de nos despedirmos para cada um tomar
seu voo, entrelaçados ainda na cama revirada e mortos de sono, meio
empanturrados, meio famintos, passei o dedo pela enorme cicatriz
que agora fendia o peito de M. de cima a baixo, do buraco do pescoço
até o estômago. Isso também acontece com a idade: você vai
acumulando cicatrizes, só que algumas são visíveis e outras, não.
— E isto? — perguntei me sentindo um pouco ridícula: porque
havia tantas coisas para perguntar a ele.
— Um coração de má qualidade — respondeu ele em tom leve.
Como Pilar Miró, lembrei: ela também tinha uma cicatriz
semelhante.
— Como Pilar Miró — soltei em voz alta. — Você se lembra dela?
— Pilar, sim, claro. Uma mulher incrível. Me impressionou muito
que morresse tão jovem. A gente se via nos festivais de vez em quando
— M. respondeu.
E depois se ergueu sobre um cotovelo e olhou para mim, com a
cabeça um pouco de lado:
— Então era você — ele disse. — Eu suspeitava havia vários dias,
mas não tinha certeza.
Acho que fiquei vermelha.
— Então você se lembrava de mim — perguntei, incrédula.
— É claro. Perfeitamente. Lembrei de você várias vezes durante
esses anos.
Não está falando de mim, pensei. Está falando de minha irmã. Mas
ela e eu não nos parecemos em nada fisicamente.
— Tem certeza que você se lembrava de mim? — insisti,
sublinhando o pronome.
Ele começou a rir.
— De você, Rosa, de você… De quem, se não…?
Não disse de quem. Não nomeei meu fantasma.
Mas devo ter lhe enviado uma mensagem mental, porque M.
perguntou:
— Que fim levou sua irmã?
— Ah, está muito bem. Tem uma empresa própria de informática,
casou, tem três filhos…
M. sorriu:
— Ela continua fumando baseados?
Uma espécie de câimbra percorreu minha mandíbula, fazendo
meus dentes rangerem. Não sabia o que dizer e optei por uma
resposta pouco comprometedora.
— Não. Deixou faz tempo.
M. suspirou:
— Sim, claro, a essa altura, todos nós já deixamos quase tudo.
Pois bem: que eu soubesse minha irmã, sempre tão arrumada, tão
racional, tão fazedora e tão asseada, nunca tinha fumado baseados, de
modo que M. devia estar se referindo a mim. Mas, por outro lado, será
que eu conhecia e conheço de verdade minha irmã? E se existir outra
Martina que não tem nada a ver com a que eu percebo, e se na
juventude ela passasse a vida chapada? A quem M. se referia na
realidade? Em quem ele estava pensando, quem estava vendo quando
olhava para mim? Não quis continuar me perguntando e é claro que
não quis perguntar nada a ele. Os minutos passavam, tínhamos de ir
embora e sabíamos que não faríamos nada para nos vermos de novo.
Ambos tínhamos parceiros nos nossos respectivos países e, de
qualquer modo, a história tinha sido linda demais para estragá-la com
a cotidianidade. Ou com dúvidas de identidade. Ou com perguntas.
Outra das coisas que a gente aprende com a idade é a tomar as coisas
como elas vêm. E inclusive agradecer.
Dezenove

Também poderia dizer que escrevo para suportar a angústia das


noites. No desassossego febril das insônias, enquanto você se vira e
revira na cama, é preciso pensar em alguma coisa, para que a
escuridão não se encha de ameaças. E você pensa nos seus livros, no
texto que está escrevendo, nos personagens que vão se desenvolvendo
dentro de você. A escritora e acadêmica Ana María Matute sempre diz
que, de noite, imagina formidáveis aventuras até adormecer. Uma das
suas aventuras preferidas é cavalgar pela estepe transformada em
cossaco. E, assim, na cama, enquanto o breu a ronda com seus passos
furtivos, ela galopa sem parar, sempre jovem, em um tumulto de vida
e ferocidade.
Que extraordinário estado é a desproteção noturna. Não acontece
sempre, mas às vezes, quando deitamos, o medo cai sobre a gente
como um predador. Então as dimensões das coisas ficam
desencaixadas; problemas que durante o dia são só pequenas
chateações crescem como sombras expressionistas, até adquirirem um
tamanho sufocante e descomunal. Era a isso que Martin Amis se
referia quando escreveu o romance A informação: a essa voz que
sussurra de noite que você vai morrer, mensagem que a gente nunca
escuta durante o dia, mas que na modorra ensurdece. Caberia se
perguntar, no entanto, onde está a verdade, onde se está mais perto
do real, se nas angústias noturnas ou na narcose relativa dos dias.
No desamparo das noites, enfim, quando me agonia a lembrança
dos Mengele que torturam crianças ou o espanto modesto e egoísta da
minha própria morte, que já é bastante horrível por si só, recorro à
louca da casa e tento alinhavar palavras belas e inventar outras vidas
para mim. Embora às vezes eu pense que não as invento, que essas
outras vidas estão aí e eu simplesmente deslizo para dentro delas. A
essa altura da história, todos sabemos que somos seres múltiplos.
Basta pensar nos nossos sonhos, para não abandonar a cama em que
comecei este capítulo, para intuir que temos outras existências, além
da que nossa biografia oficial determina. Eu já disse que muitos dos
nossos sonhos estão relacionados entre si: que do outro lado eu tenho
um irmão, uma casa, uns hábitos determinados e constantes. Por
acréscimo, quando sofro com um pesadelo, muitas vezes tenho
consciência de que estou sonhando, isto é, de que tenho uma vida em
outro lugar que poderia me salvar desse aperto. E então no meu sonho
inventei o maravilhoso truque de ligar para mim mesma, para ser
acordada com o barulho da campainha. Empreguei esse recurso
inúmeras vezes (busco uma cabine, um celular, o que for, e disco meu
número, ouço o tuuu-tuuu pausado e repetitivo), embora, para minha
frustração e desconcerto, nunca tenha conseguido meu objetivo: ainda
não encontrei um jeito para que, efetivamente, meu telefonema do
outro lado se conecte com a Telefónica ou a Vodafone, minhas
operadoras da vida daqui. O que quero dizer com isso é que meu eu
que dorme sabe que existe um eu acordado, da mesma maneira como
meu eu diurno conhece a existência desse eu sonhado.
Na sua biografia sobre Philip K. Dick, Emmanuel Carrère conta
que o famoso escritor de ficção científica entrou um dia no banheiro e
começou a apalpar distraidamente a escuridão, em busca de um
cordão de luz que havia à direita, junto do batente da porta. Ele tateou
um bom tempo, sem conseguir encontrá-lo, e afinal seus dedos se
depararam casualmente com um interruptor; e então Dick percebeu
que nunca houvera no banheiro um cordão para ligar a lâmpada, mas
um simples interruptor na parede. Pior ainda: nunca na sua vida, em
nenhuma das suas casas anteriores, nem nos lugares de trabalho, nem
no primeiro lar da mais remota infância, Dick tivera um cordão de luz
desse tipo. No entanto, seu corpo e sua mente guardavam uma
memória, uma rotina cega e repetitiva, absolutamente doméstica e
próxima, desse cordão inexistente. Como é natural, Philip, muito
dado à divagação esquizoide, ficou muito impressionado com o
acontecimento e acabou escrevendo um romance, O tempo
desconjuntado, sobre um escritor de ficção científica que não encontra
o cordão de luz do banheiro, coisa que ele acaba conseguindo explicar
através de um argumento muito complexo de vidas paralelas e
realidades virtuais.
Nunca experimentei algo tão inquietante, mas sou capaz de
reconhecê-lo e de compreendê-lo. De fato, a maioria das pessoas
devem se sentir identificadas com esse tipo de vivências
escorregadias, ou não fariam tanto sucesso as obras em que a
multiplicidade do real abunda, dos romances do próprio K. Dick a
filmes tão populares como Matrix. A vida não passa de um enredo de
enganosas sombras platônicas, um sonho calderoniano, uma placa
movediça de um gelo muito frágil. Todos experimentamos estranhos
déjà-vus e sabemos que nossa existência depende de mínimos acasos.
E se minha mãe não tivesse perdido naquele dia seu ônibus habitual e
não tivesse encontrado meu pai? Talvez levemos dentro outras
possibilidades de ser; talvez inclusive as desenvolvamos de algum
modo, inventando e deformando o passado mil e uma vezes. Talvez
cada um dos acontecimentos da nossa existência tenha podido se dar
de dez maneiras diferentes. Parafraseando Paul Éluard, há outras
vidas, mas elas estão na nossa.
Ao jogar com o “e se”, o romancista experimenta com essas vidas
potenciais. Imagine que um dia você acorda e descobre que sua mão
direita, por exemplo, está atravessada por uma enorme cicatriz que
você não tinha na noite anterior. Você esfrega os olhos com
incredulidade, aproxima seu nariz do dorso da mão para esquadrinhar
a sutura, não entende nada. É uma cicatriz antiga, um remendo
medíocre que o tempo escureceu. Assustada, você vai até a cozinha
com a mão estendida no ar, diante de você, como se se tratasse de um
animal perigoso. Ali você encontra com seu parceiro, ou com sua
irmã, ou com sua mãe, que quem sabe está cozinhando uma paella e
manchando de açafrão alguma cadeira. Eles se surpreendem ao te ver
com a mão exposta, como se levada em uma procissão. Você menciona
a cicatriz com expressão atônita; eles, sem dar maior importância ao
assunto, comentam: “Sim, claro, sua cicatriz, é de quando você teve
aquele acidente horrível de moto, por que você está dizendo isso?”.
Mas você não se lembra de ter sofrido nenhum acidente, e nem
sequer tem ou jamais teve uma moto e, o que é pior, ontem você se
deitou com a mão intacta. “Que estranha você está, aconteceu alguma
coisa?”, sua mãe te diz, ou sua irmã, ou seu parceiro, ao te ver tão
desconcertada e absorta. E você não sabe como explicar que os
estranhos são eles. Estranha é a vida. Se tivessem dito a M. aos trinta
anos que ele teria uma cicatriz descomunal partindo seu peito ao
meio, não teria lhe parecido tão fantasmagórica e irreal como a sutura
imaginária na minha mão?
O que um romancista faz é desenvolver essas múltiplas alterações,
essas irisações da realidade, do mesmo modo como o músico compõe
diversas variações sobre a melodia original. O escritor pega um
autêntico grumo da existência, um nome, um rosto, uma pequena
anedota, e começa a modificá-lo mil e uma vezes, substituindo os
ingredientes ou lhes dando outra forma, como se tivesse aplicado um
caleidoscópio sobre sua vida e estivesse fazendo girar indefinidamente
os mesmos fragmentos para construir mil figuras diferentes. E o mais
paradoxal de tudo é que, quanto mais você se distancia, com o
caleidoscópio, da sua própria realidade, quanto menos você consegue
reconhecer sua vida no que escreve, mais você costuma estar se
aprofundando dentro de você. Por exemplo, suponhamos por um
momento que eu menti e não tenho nenhuma irmã. E que, por
conseguinte, aquele estranho incidente da nossa infância, aquele
desaparecimento inexplicável de Martina, minha obscura irmã gêmea,
como diria Faulkner, jamais aconteceu. Suponhamos que inventei
tudo, assim como se inventa uma história. Pois bem, ainda assim esse
capítulo da ausência da minha irmã e do silêncio familiar seria o mais
importante deste livro todo para mim, o que mais me ensinou,
informando-me sobre a existência de outros silêncios abismais na
minha infância, buracos calados que sei que estão aí, mas aos quais
não teria conseguido aceder com minhas lembranças reais, que, por
outro lado, também não são tão fiáveis.
Por isso não gosto dos narradores que falam de si mesmos; e com
isso me refiro àqueles que tentam vingar ou justificar sua peripécia
pessoal por meio dos seus livros. Acho que a maturidade de um
romancista passa ineludivelmente por um aprendizado fundamental: o
da distância do que é narrado. O romancista não só precisa saber, mas
também sentir que o narrador não pode se confundir com o autor.
Alcançar a distância exata do que se conta é a maior sabedoria de um
escritor; você tem de conseguir que o que você narra te represente,
enquanto ser humano, de modo simbólico e profundo, assim como os
sonhos o fazem; mas tudo isso não deve ter nada a ver com as
anedotas da sua pequena vida. “Os romancistas não escrevem sobre
seus assuntos, mas em torno deles”, diz Julian Barnes. E Stephen
Vizinczey arredonda esse pensamento com uma frase precisa e
luminosa: “O autor jovem sempre fala de si mesmo, mesmo quando
fala dos outros, enquanto o autor maduro sempre fala dos outros,
inclusive quando fala de si mesmo”.
Por outro lado, e para complicar ainda mais as coisas, muitos
leitores caem no erro de acreditar que o que estão lendo aconteceu de
verdade com os romancistas. “Puxa, mas você é bastante alta!”, me
disseram mais de uma vez, meio surpresos, meio decepcionados,
quando fui a alguma palestra depois de publicar meu romance A filha
do canibal, protagonizada por uma narradora muito baixinha. Me dá
nos nervos quando leitores ou jornalistas extraem absurdas deduções
autobiográficas dos meus livros, mas tento me consolar pensando que
é um preconceito habitual e que, inclusive, foi sofrido pelo grande
Vladimir Nabokov, apesar de seus livros serem óbvios e sofisticados
artefatos ficcionais. Depois da publicação de Lolita, por exemplo, o
coitado recebeu uma abundante correspondência na qual era xingado
e criticado por perverter meninas pequenas. “Qualificar um relato de
história verídica é um insulto à arte e à verdade”, indignava-se
Nabokov.
A narrativa é, ao mesmo tempo, uma mascarada e um caminho de
liberação. Por um lado, mascara seu eu mais íntimo, com a desculpa da
história imaginária; ou seja, você fantasia sua verdade mais profunda
com a roupagem multicolor da mentira romanesca. Mas, por outro,
conseguir que a louca da casa flua com total liberdade não é coisa
fácil… O daimon pode se ver preso ou enrijecido pelo medo do
fracasso, ou dos próprios fantasmas, ou do descontrole; ou pelo temor
do que possam pensar ou entender seus familiares quando o lerem. As
mães, os pais, as esposas, os maridos, os filhos impõem
frequentemente, sem querer, uma ansiedade, uma censura sobre o
devaneio. Por exemplo, há autores que só atingem sua verdadeira voz
depois da morte de um pai rigoroso e onipresente demais. O barulho
da própria vida sempre entorpece. Por isso é preciso se afastar.
“Ser escritor é se tornar um estranho, um estrangeiro: você tem de
começar a traduzir a si mesmo. Escrever é um caso de impersonation,
de suplantação de personalidade: escrever é se fazer de outro”, diz
Justo Navarro. E Julio Ramón Ribeyro chega ainda mais longe: “A
verdadeira obra deve partir do esquecimento ou da destruição da
própria pessoa do escritor”. O romancista fala da aventura humana, e a
primeira via de conhecimento que possui dessa matéria é a observação
da sua própria existência. Mas o autor precisa sair de si mesmo e
examinar sua própria realidade de fora, com o meticuloso desapego
com o qual o entomólogo estuda um escaravelho. Ou o que dá no
mesmo: você não escreve para que os outros entendam sua posição no
mundo, mas para tentar se entender. Além disso, não dissemos que os
romancistas são seres especialmente inclinados à dissociação,
especialmente conscientes da multiplicidade interior, especialmente
esquizoides? Pois sejamos até o fim, potencializemos essa divisão
pessoal, completemos nossa esquizofrenia até sermos capazes de nos
analisar demolidoramente do exterior.
E isso não se faz só nos romances e para os romances, mas em
todos os momentos da existência. Não estou falando apenas de livros,
e sim de uma maneira de viver e de pensar. Para mim, a escrita é um
caminho espiritual. As filosofias orientais preconizam algo parecido: a
superação dos limites mesquinhos do egocentrismo, a dissolução do
eu na torrente comum dos outros. Só transcendendo a cegueira do
individual podemos entrever a substância do mundo.
O romancista José Manuel Fajardo me contou uma história que,
por sua vez, havia sido contada a ele pela minha admirada Cristina
Fernández Cubas, que, ao que parece, sustentava que era um fato real,
algo que acontecera a uma tia sua, ou talvez a uma amiga de uma tia. O
caso é que havia uma mulher, que vamos chamar de Julia, que vivia na
frente de um convento de freiras de clausura; o apartamento, situado
no terceiro andar, tinha um par de varandas que davam sobre o
convento, uma sólida construção do século XVII. Um dia Julia
experimentou as rosquinhas que as freiras faziam e gostou tanto delas
que se habituou a comprar uma caixa todos os domingos. A
assiduidade das suas visitas a fez travar certa amizade com a irmã
porteira, que, é claro, jamais vira, mas com quem falava através do
torno de madeira. Conhecendo os rigores da clausura, um dia Julia
disse à irmã que ela morava bem em frente, no terceiro andar, nas
varandas que davam sobre a fachada; e que ela não hesitasse em
solicitar sua ajuda se precisasse de qualquer coisa do mundo exterior,
que levasse uma carta, recolhesse um pacote, fizesse um favor
qualquer. A freira agradeceu e ficou por isso mesmo. Passou um ano,
passaram três anos, passaram trinta anos. Uma tarde, Julia estava
sozinha em casa quando chamaram à sua porta. Ela abriu e se deparou
com uma freira pequenina e idosa, muito arrumada e enrugada. Sou a
irmã porteira, disse a mulher com sua voz familiar e reconhecível; há
muitos anos, você me ofereceu sua ajuda, caso eu precisasse de
alguma coisa do exterior, e agora eu preciso. Pois é claro, respondeu
Julia, diga. Eu queria lhe pedir, disse a freira, que você me deixasse
olhar da sua varanda. Surpresa, Julia deixou a anciã passar, levou-a
pelo corredor até a sala e saiu para a varanda com ela. As duas ficaram
ali, quietas e caladas, contemplando o convento durante um bom
tempo. Por fim, a freira disse: É lindo, não é? E Julia respondeu: Sim,
muito lindo. Dito isso, a irmã porteira voltou de novo para seu
convento, previsivelmente para não sair nunca mais.
Cristina Fernández Cubas contava essa belíssima história como
exemplo da maior viagem que um ser humano pode realizar. Mas para
mim ela é algo mais, é o símbolo perfeito do que significa a narrativa.
Escrever romances implica se atrever a completar esse monumental
trajeto que te tira de você e permite que você se veja no convento, no
mundo, no todo. E depois de fazer esse esforço supremo de
entendimento, depois de roçar por um instante a visão que completa e
fulmina, voltamos claudicantes à nossa cela, ao confinamento da nossa
estreita individualidade, tentando nos resignar a morrer.
Pós-escrito

Tudo que eu conto neste livro sobre outros livros ou outras pessoas é
verdade, quer dizer, responde a uma verdade oficial documentalmente
verificável. Mas temo que eu não possa assegurar o mesmo sobre
aquilo que toca minha própria vida. É que toda autobiografia é
ficcional e toda ficção é autobiográfica, como dizia Barthes.
Agradeço os comentários afetuosos e inteligentes de Malén Aznárez,
José Manuel Fajardo, Alejandro Gándara, Enrique de Hériz, Isabel
Oliart, José Ovejero e Antonio Sarabia; e especialmente, como
sempre, os de Pablo Lizcano.
Asís G. Ayerbe

Um dos principais nomes da literatura espanhola contemporânea,


Rosa Montero nasceu em Madri, em 1951. Jornalista, ficcionista e
ensaísta, é autora de diversos livros aclamados mundialmente, como A
ridícula ideia de nunca mais te ver, Nós, mulheres, A boa sorte e O perigo
de estar lúcida, todos publicados pela Todavia.
La loca de la casa © Rosa Montero, 2003

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Luciana Facchini
ilustração de capa
Carla Barth
preparação
Silvia Massimini Felix
revisão
Jane Pessoa
Ana Alvares
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Montero, Rosa (1951-)


A louca da casa [recurso eletrônico] / Rosa Montero ; Tradução Paloma Vidal. —
1. ed. — São Paulo: Todavia, 2024.
Dados eletrônicos (1 ePub).

Título original: La loca de la casa


ISBN 978-65-5692-743-5
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub

1. Literatura espanhola. 2. Autoficção. 3. Não ficção. I. Vidal, Paloma. II. Título.

CDD 860

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura espanhola 860

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB-10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br

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