A Louca Da Casa - Rosa Montero
A Louca Da Casa - Rosa Montero
A Louca Da Casa - Rosa Montero
A louca da casa
tradução
Paloma Vidal
Para Martina, que é e não é.
E que, não sendo, tem me ensinado muito.
Capa
Folha de Rosto
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Catorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Pós-escrito
Agradecimentos
Autora
Créditos
Um
Gosto dessa frase porque sempre pensei que, de fato, a visão da obra
tem muito a ver com a visão entrecortada, hipnotizante e quase
aniquiladora, mas linda, daquela baleia do Pacífico. Com a escrita é a
mesma coisa: com frequência, você intui que do outro lado da ponta
dos seus dedos está o segredo do universo, uma catarata de palavras
perfeitas, a obra essencial que dá sentido a tudo. Você se encontra no
próprio umbral da criação e na sua cabeça disparam tramas
admiráveis, romances imensos, baleias grandiosas que só te mostram
o relâmpago do seu dorso molhado, ou melhor, só fragmentos desse
dorso, partes dessa baleia, pitadas de beleza que te deixam intuir a
beleza insuportável do animal inteiro; mas depois, antes que você
tenha tido tempo de fazer alguma coisa, antes de ter sido capaz de
calcular seu volume e sua forma, antes de ter podido compreender o
sentido do seu olhar perfurador, a prodigiosa besta mergulha e o
mundo fica quieto e surdo e tão vazio.
Cinco
Exato, é isso. Releio as linhas de Aira e sei que ele roçou algo
substancial. O detalhamento imaginário, ele diz, começou a lhe
parecer ridículo e infantil. Ou, o que dá no mesmo, Aira estava acima
do jogo narrativo, como quem está acima dos cavalinhos do parque de
diversões: como assim, com vinte anos você ainda quer subir no
carrossel? Que coisa ridícula. O envelhecimento é um processo
orgânico bastante lamentável que mal tem um par de coisas boas (uma
é que, se você se esforçar, aprende algumas coisas; e a segunda é que é
a melhor prova de que você ainda não morreu) e muitas outras
péssimas, como, por exemplo, que seus neurônios são destruídos aos
montes, que suas células se deterioram e oxidam, que a gravidade joga
seu corpo na direção da terra-túmulo, debilitando os músculos e
derrubando as carnes. Pois bem, apesar de todos esses pesares, e
outros que não cito, é possível que se some também uma gastura
opressiva da realidade, a perda progressiva da nossa capacidade de
fantasia, o enrijecimento da imaginação. Ou, o que dá no mesmo, a
morte definitiva da criança que levamos dentro de nós. A gente se
torna velho por fora, mas também por dentro; e deve ser por isso que
os leitores, à medida que crescem, vão deixando majoritariamente de
ser leitores de romances e derivam para outros gêneros mais
instalados no realismo notarial, a biografia, a história, o ensaio. Esse
esgotamento senil da imaginação (da criatividade) pode acontecer com
todos os humanos, mas se você é romancista, isso incomoda
duplamente, porque aí fica sem trabalho. Então, a louca da casa, farta
dos seus desprezos de velho bobo, vai embora com o tio Celerino em
busca de cérebros mais elásticos. Para escrever, enfim, cabe continuar
sendo criança em algum lugar de si mesmo, sem crescer demais.
Quem sabe, talvez seja por isso que admiro tanto os anões.
Oito
Gosto muito de Italo Calvino; gosto da sua prosa limpa, dos seus
romances fantásticos, gosto dos ensaios literários de Seis propostas
para o próximo milênio. Mas há pouco tempo li um livro curioso dele,
Eremita em Paris, que reúne textos diversos, fundamentalmente
autobiográficos, e que fez com que Calvino me parecesse por
momentos um tanto chato. O núcleo do volume é composto de um
diário que ele manteve na sua primeira viagem aos Estados Unidos,
realizada em 1959, por causa de uma bolsa que ganhou. E há
momentos em que ele se mostra tão vaidoso! Por exemplo, escreve
periodicamente para a editora italiana para a qual trabalha (Einaudi),
enviando a cada vez várias páginas com suas reflexões sobre os
Estados Unidos; e explica à receptora das cartas:
Suponho que não tenho escolha a não ser falar sobre o enervante
assunto das mulheres.
Venho há trinta anos fazendo entrevistas com outras pessoas, como
jornalista, e há vinte e cinco anos sendo entrevistada como escritora.
Nesse tempo, houve duas perguntas que me foram feitas até a
exaustão, até o desespero, até a ira. Não estou exagerando: talvez
tenham sido formuladas umas mil vezes, em toda a América Latina,
nos Estados Unidos, na Espanha e no resto da Europa; na mídia ou
durante as conversas dos eventos públicos. Por isso, cada vez que
alguém me pergunta de novo uma dessas duas questões, fico fora de
mim e me vem uma vontade estrondosa de rugir e bufar. Essas duas
fatídicas perguntas são: existe uma literatura de mulheres? E: o que
você prefere, ser jornalista ou escritora? E suponho que, dada a
pertinaz curiosidade que esses temas suscitam, devo fazer um esforço
e respondê-las neste livro.
No transcurso de um simpósio internacional sobre literatura de
mulheres, realizado na Universidade de Lima em 1999, disse pela
primeira vez em público uma frase que depois vi ser repetida por
outras, transformada em um tópico coletivo. Perdoem-me a presunção
(ah, a vaidade) de reivindicar a autoria da frase, mas talvez seja a única
ocasião na qual um pensamento meu tenha adquirido vida própria,
passando a fazer parte dos dizeres anônimos de uma sociedade. E o
que eu disse foi: Quando uma mulher escreve um romance
protagonizado por uma mulher, todo mundo considera que está
falando sobre mulheres; enquanto quando um homem escreve um
romance protagonizado por um homem, todo mundo considera que
está falando do gênero humano.
Não tenho interesse nenhum, absolutamente nenhum, em escrever
sobre mulheres. Quero escrever sobre o gênero humano, mas por
coincidência cinquenta e um por cento da humanidade é do sexo
feminino; e, como pertenço a esse grupo, a maioria das minhas
protagonistas é mulher, do mesmo modo como os romancistas
homens utilizam em geral personagens principais masculinos. E já é
hora de os leitores homens se identificarem com as protagonistas
mulheres, da mesma maneira que nós nos identificamos durante
séculos com os protagonistas masculinos, que eram nossos únicos
modelos literários; porque essa permeabilidade, essa flexibilidade do
olhar, fará de todos nós mais sábios e mais livres.
Mas preciso remontar ao início, até o muito tedioso ABC do
assunto, voltando a contar uma vez mais as mesmas obviedades. Para
começar pela primeira: não, não existe uma literatura de mulheres. A
gente pode fazer a prova de ler para outra pessoa fragmentos de
romances, e estou certa de que o ouvinte não adivinhará o sexo dos
autores para além do mero acerto estatístico. Um romance é tudo o
que o escritor é: seus sonhos, suas leituras, sua idade, sua aparência
física, suas doenças, seus pais, sua classe social, seu trabalho… e
também seu gênero sexual, sem dúvida alguma. Mas isso, o sexo, não
passa de um ingrediente dentre muitos outros. Por exemplo, no
mundo ocidental de hoje, o fato de ser mulher ou de ser homem
impõe menos diferenças de olhar do que o fato de provir de um meio
urbano ou de um meio rural. Portanto, por que se fala de literatura de
mulheres e não de literatura de autores nascidos no campo ou de
literatura de autores com deficiências físicas, para dar um exemplo,
que com certeza te dão uma percepção radicalmente diferente da
realidade? O mais provável é que eu tenha muito mais a ver com um
autor espanhol homem, da minha mesma idade e nascido na grande
cidade, do que com uma escritora negra, sul-africana e de oitenta anos
que tenha vivido no apartheid. Porque as coisas que nos separam são
muitas mais do que as que nos unem.
Eu me considero feminista ou, melhor dizendo, antissexista,
porque a palavra feminista tem um conteúdo semântico equívoco:
parece se opor ao machismo e sugerir, portanto, uma supremacia da
mulher sobre o homem, quando o grosso das correntes feministas não
só não aspira a isso, mas reivindica justamente o contrário: que
ninguém seja submetido a ninguém em razão do seu sexo, que o fato
de ter nascido homem ou mulher não nos confine em um estereótipo.
Mas minha preferência pelo termo antissexista não quer dizer que eu
renegue a palavra feminista, que pode ser pouco precisa, mas está cheia
de história e resume séculos e séculos de esforços de milhares de
mulheres e homens que lutaram para mudar uma situação social
aberrante. Hoje somos todos herdeiros dessa palavra: ela fez com que
o mundo se movesse e eu me sinto orgulhosa de continuar utilizando-
a.
Pois bem, o fato de se considerar feminista não implica que seus
romances o sejam. Detesto a narrativa utilitária e militante, os
romances feministas, ecologistas, pacifistas ou qualquer outro ista que
possa ser pensado, porque escrever para passar uma mensagem trai a
função primordial da narrativa, seu sentido essencial, que é o da busca
do sentido. Escreve-se, pois, para aprender, para saber; e não se pode
empreender essa viagem de conhecimento levando previamente as
respostas com a gente. Mais de um bom autor se estragou pelo seu afã
doutrinário; embora às vezes, em alguns casos especiais, se dê a
circunstância de que o próprio talento salva o escritor da cegueira dos
seus preconceitos, como aconteceu, por exemplo, com Tolstói, que
era um homem extremamente retrógrado e machista. De fato, ele se
propôs a escrever Anna Kariênina como exemplo moral de como a
modernidade destruía a sociedade tradicional russa; pretendia explicar
que o progresso era tão imoral e dissolvente que as mulheres
cometiam até adultério! O romance partiu desse preconceito arcaico,
mas depois o poderoso dom narrativo de Tolstói, seu daimon, seus
brownies, o tiraram do confinamento da sua ideologia e o fizeram se
render à verdade das mentiras literárias. Daí que, no seu romance,
acabasse emergindo o contrário do que pretendia: a hipocrisia social, a
vitimação de Anna, a injustiça do sexismo.
Além disso, nenhum daimon parece disposto a salvar críticos,
acadêmicos, enciclopedistas e demais personagens da cultura oficial
dos seus preconceitos. Quero dizer que, embora no mundo ocidental
a situação tenha melhorado demais, a cultura oficial continua sendo
machista. Nos congressos, as escritoras costumam ainda ser citadas
como um capítulo à parte, um paragrafozinho anexo à conferência
principal (“E, quanto à literatura de mulheres…”); mal aparecemos nas
antologias, nos sisudos artigos universitários, nos resumos de final de
ano ou década ou século que a mídia costuma fazer de vez em quando.
Não estamos suficientemente representadas nas academias ou nas
enciclopédias nem costumam nos encomendar as apresentações sérias
nos encontros internacionais. Os críticos são tremendamente
paternalistas e mostram uma inquietante tendência a confundir a vida
da escritora com sua obra (coisa que não acontece com os romancistas
homens), a ver em todos os romances de mulheres uma literatura
contemplativa e sem ação (mesmo sendo o thriller mais trepidante) e,
é claro, como dizíamos no início, a pensar que aquilo que uma mulher
escreve trata só de mulheres e é, por conseguinte, material humano e
literário de segunda. Por sorte, essa cultura oficial retrógrada vai
também se feminilizando; cada dia há mais eruditas, críticas e
professoras universitárias, e isso está mudando a situação; mas
algumas dessas profissionais se empenham em fazer resenhas,
antologias e estudos literários desaforadamente feministas, quer dizer,
ideologizados até o dogmatismo e, do meu ponto de vista, quase tão
sexistas e contraproducentes como o preconceito machista. Embora
partam da margem contrária, elas também pensam que o que uma
mulher escreve trata tão só de mulheres.
Lembremos que as mulheres viviam em um vertiginoso abismo de
desigualdade até faz muito pouco tempo. Não nos foi permitido
sequer estudar na universidade até bem avançado o século XX; não nos
foi permitido votar até uns setenta anos atrás (na França, em 1944, por
exemplo); durante muitíssimo tempo, enfim, não podíamos trabalhar,
nem viajar sozinhas, nem ter autonomia legal. Viemos do inferno, de
um horror muito próximo que parecemos ter esquecido; e estou
falando apenas do mundo ocidental, que foi o que evoluiu; em países
menos desenvolvidos, a mulher continua sendo um ser carente de
direitos.
Com um panorama como esse, é natural que houvesse muito
poucas escritoras. Já se sabe que, segundo as modernas teorias, é
bastante provável que muitas das obras anônimas sejam produto
literário de uma mulher, que não podia dar a conhecer sua autoria; por
outro lado, um bom número de escritoras se amparou em
pseudônimos masculinos para poder trabalhar e publicar. Como
George Eliot, ou George Sand, ou nossa Fernán Caballero, ou a
própria Isak Dinesen; ou usaram o nome do marido, tornando-se
assim suas sofridas ghost-writers literárias, como no caso dos
primeiros livros de Colette, assinados por Willy, ou toda a obra da
nossa María Lejárraga, publicada sob o nome de Martínez Sierra, o
inútil cônjuge, que fingiu durante todo o século XX (a fraude foi
descoberta faz pouco tempo) ser um autor teatral de grande sucesso.
Sendo, como eram, excepcionais no seu entorno, a maioria delas
tentava escrever como homenzinhos. Nas suas obras jornalísticas,
George Sand, por exemplo, chegava a falar de si mesma como se fosse
homem, em uma espécie de travestismo narrativo, pois não havia
modelos expressivos femininos que ela pudesse utilizar. Se ela tivesse
posto a si mesma como mulher, o texto teria parecido estridente
demais, chocante demais para os leitores, teria saído da convenção
narrativa do momento. Isto é importante: durante muitos anos, não
tendo modelos literários e artísticos femininos, a mulher criadora
tendeu a mimetizar o olhar masculino.
Esse olhar, por outro lado, é também nosso em grande medida. É
evidente que mulheres e homens de uma mesma época e de uma
mesma cultura compartilham uma infinidade de coisas, com mitos e
fantasmas comuns. No entanto, nós, mulheres, temos um pequeno
núcleo de vivências específicas pelo fato de sermos mulheres, da
mesma maneira que os homens possuem um canto especial. Por
exemplo: os homens passaram milênios construindo literariamente
uns modelos de mulher que, na realidade, não correspondem a como
nós somos, mas a como eles nos veem, através das diversas fantasias
do seu subconsciente: a mulher como perigo (a vampira que suga a
energia e a vida do homem), a mulher terra-maga-mãe, a mulher
garota-gata-boba estilo Marilyn… Não há nada a ser objetado em tudo
isso, porque esses protótipos existem de verdade dentro da cabeça dos
homens, e trazê-los à luz enriquece a descrição do mundo e o
entendimento do que todos somos.
Pois então, agora cabe a nós, mulheres, fazer o nosso mundo.
Juntas estamos também pondo para fora nossas imagens míticas dos
homens. Eles nos veem assim, mas e nós, como os vemos no nosso
subconsciente? E que forma artística é possível dar a esses
sentimentos? E esse não é o único tema especificamente feminino.
Citarei outro assunto que está emergindo das profundezas da mente
das mulheres: como nos sentimos de verdade, lá no fundo, que sonhos
e que medos se ocultam aí, e como podemos expressá-los? Só mais
um exemplo: a menstruação. Acontece que as mulheres sangram de
modo espalhafatoso e às vezes com dor todos os meses, e acontece
que essa função corporal, tão espetacular e vociferante, está
diretamente relacionada com a vida e com a morte, com a passagem
do tempo, com o mistério mais impenetrável da existência. Mas essa
realidade cotidiana, tão carregada de ingredientes simbólicos (por isso
os povos chamados primitivos costumam rodear a menstruação de
ritos muito complexos), é, no entanto, silenciada e absolutamente
ignorada na nossa cultura. Se os homens menstruassem, a literatura
universal estaria cheia de metáforas do sangue. Pois então, são essas
metáforas que as escritoras precisam criar e pôr em circulação na
torrente geral da literatura. Agora que, pela primeira vez na história,
pode haver tantas escritoras quanto escritores; agora que não somos
mais exceções, agora que nossa participação na vida literária se
normalizou, dispomos de total liberdade criativa para nomear o
mundo. E há umas pequenas zonas da realidade que só nós podemos
nomear.
E estamos fazendo isso. É um processo natural, acumulativo,
automático. Todos os escritores tentam definir, descrever, arrumar
com palavras seu espaço; e à medida que o entorno no qual você vive
muda, o relato difere. Por exemplo, para poder construir pela primeira
vez um arquétipo cultural do que é a vida em alto-mar, do que é se
perder no oceano e lutar contra a enormidade e as inclemências, você
precisa ter conhecido isso. Melville foi marinheiro; alistou-se em
alguns barcos baleeiros, um deles tão atroz que ele desertou. Por isso
soube contar. Por isso conseguiu inventar Moby Dick. Pois bem:
quando gerações e gerações de escritores conseguiram dar forma
pública e literária a um tema, quando conseguiram transformá-lo em
um mito expressivo, essa realidade passa a ser material comum de
todos os humanos. Porque ler é uma forma de viver. Quero dizer que
eu, que detesto andar de barco, que nunca estive em alto-mar e fico
enjoada até no vaporetto de Veneza, poderia, no entanto, escrever uma
narrativa que incluísse ingredientes marinhos, pois o conheço graças
às minhas leituras; e não estou falando do jargão técnico, de saber o
que é o amantilho ou onde fica o cordame, mas de algo profundo, do
sentimento que o oceânico desperta no coração dos humanos. Da
mesma maneira, à medida que nós, mulheres romancistas, vamos
completando essa descrição de um mundo que antes só existia dentro
de nós, vamos transformando-o em patrimônio de todos; e os homens
também poderão utilizar as metáforas sangrentas como se fossem
deles ou tentarão se adaptar aos nossos modelos de homens, como
muitas mulheres tentam se parecer com os modelos de mulher que
eles inventaram. Tão poderosa assim é a imaginação.
Quanto à outra pergunta repetitiva e tediosa, “o que você prefere,
ser jornalista ou escritora?”, devo dizer que, de saída, está mal
formulada. Há muitos tipos de jornalismo: de direção e de edição, de
televisão, de rádio… E esses trabalhos são muito diferentes do que eu
faço. O jornalismo ao qual me dedico, que é o escrito, de pena, de
articulista e repórter, é um gênero literário como qualquer outro,
equiparável à poesia, à ficção, ao drama, ao ensaio. E pode alcançar
cotas de excelência literária tão altas como um livro de poemas ou um
romance, como demonstra A sangue frio, de Truman Capote, essa obra
monumental que na realidade não passa de uma reportagem. Por
outro lado, é muito raro um escritor que cultive só um gênero; o
habitual é ser, por exemplo, poeta e ensaísta, narrador e dramaturgo…
Eu me considero uma escritora que cultiva a ficção, o ensaio e o
jornalismo. Não sei por que parece surpreender as pessoas que se
combine jornalismo e narrativa, quando é algo para lá de comum. Se
repassamos a lista dos escritores dos últimos séculos, pelo menos a
metade, quem sabe mais, foi jornalista. E não me refiro a Hemingway
e García Márquez, que são os nomes sempre citados, mas a Balzac,
George Eliot, Oscar Wilde, Dostoiévski, Graham Greene, Dumas,
Rudyard Kipling, Clarín, Mark Twain, Italo Calvino, Goethe, Naipaul
e muitos outros, tantos que a listagem não acabaria nunca.
De fato, essa pergunta só pode ter sido formulada no século XX,
mais ainda, na segunda metade do século XX, pois antes as fronteiras
entre o que era jornalístico e o que era narrativo eram extremamente
borradas. Os escritores realistas e naturalistas do século XIX
documentavam seus romances com a mesma meticulosidade que o
jornalista de hoje se documenta para uma reportagem. Dickens se
apresentou em vários internatos ingleses, fingindo-se de tutor de um
possível pupilo, para se inteirar das condições de vida dessas
instituições e poder descrevê-las em A vida e as aventuras de Nicholas
Nickleby; e Zola fez uma viagem a Lourdes no sórdido trem dos
enfermos (e anotou tudo, do nome e sintomas das doenças à rotina
ferroviária da peregrinação) e a descreveu ponto por ponto em um
romance. Naquela época, as pessoas liam os livros de ficção como
quem lê um jornal, convencidas de que estavam lendo verdades
literais, ou seja, desse tipo de verdades que poderiam ser autenticadas
por um notário. Foi a chegada da sociedade da informação e da
imagem, foi a irrupção da fotografia, do cinema, dos documentários e,
sobretudo, da televisão, que mudou o sentido da narrativa e
estabeleceu fronteiras mais ou menos precisas entre o jornalismo e a
ficção, tornando-os gêneros literários diferenciados.
Todos os gêneros têm suas normas e, em princípio, seria
necessário se ater a essas regras para realizá-los bem. Não é possível
escrever uma obra de teatro como se fosse um ensaio, porque
provavelmente seria chatíssima; e não se deve escrever um ensaio
como se fosse poesia, pois é muito possível que fique faltando rigor.
Do mesmo modo, não é possível escrever um romance como se fosse
jornalismo, ou você fará um romance ruim, nem jornalismo como se
fosse ficção, porque você fará jornalismo ruim. Depois, claro, todos
esses limites podem ser ignorados e ultrapassados centenas de vezes,
porque, além disso, hoje a literatura está vivendo um tempo
especialmente híbrido no qual predomina a confusão de gêneros: este
livro mesmo que estou escrevendo é um exemplo disso. Mas para
poder romper os moldes é preciso conhecê-los previamente, da
mesma maneira que, para poder fazer cubismo, antes era preciso saber
pintar de modo convencional (Picasso dixit).
E, assim, é preciso que fique muito claro que o jornalismo e a
narrativa são gêneros muito diferentes e inclusive antitéticos. Por
exemplo, no jornalismo, a clareza é um valor: quanto menos confusa e
menos equívoca for uma peça jornalística, melhor será. Já no romance,
o que vale é a ambiguidade. Quem sabe possamos dizer, para resumir
a diferença fundamental, que no jornalismo você fala do que sabe e, na
narrativa, do que não sabe que sabe. Pessoalmente, afinal, eu me sinto
sobretudo romancista. Comecei escrevendo ficções, uns contos
horrorosos de ratinhos que falavam, aos cinco anos de idade; e, se me
tornei jornalista, foi para ter uma profissão que não me afastasse
demais da minha paixão de narradora. Posso me imaginar facilmente
sem ser jornalista, mas não me concebo sem os romances. Se esse
tumulto de devaneios narrativos acabasse para mim, como me viraria
para continuar me levantando da cama todos os dias?
Catorze
Aos dezoito anos de idade, morando ainda na casa dos meus pais, uma
noite conheci a escuridão. Foi depois de jantar; eu continuava sentada
à mesa, que já tinha sido retirada; sozinha na sala, contemplava a
televisão com tédio. E então, sem aviso prévio, aconteceu. A realidade
se afastou de mim, ou melhor, eu saí da realidade. Comecei a ver o
cômodo alheio a mim, fisicamente distante, inalcançável, como se
estivesse contemplando o mundo com uma luneta (isso, depois fiquei
sabendo, se chama efeito túnel). De repente, eu estava fora das coisas,
tinha caído da vida. Imediatamente senti, como é natural, um pânico
terrível. Acho que nunca experimentara tanto medo na vida. Meus
dentes batiam e os joelhos tremiam, de tal modo que mal podia ficar
de pé. Eu não entendia nada, não sabia o que estava acontecendo
comigo, só conseguia pensar que estava louca, o que aumentava meu
pavor. E, além disso, era incapaz de explicar o que me ocorria: como?
Dizendo o quê? Para quem? Os outros tinham ficado muito longe, do
outro lado do túnel do meu olhar. Era uma situação que rompia todas
as convenções expressivas, um pesadelo diurno e inefável. Eu, que
sempre vivera em um ninho de palavras, ficara capturada no silêncio.
A sensação aguda de alheamento passou em uns minutos, mas
deixou o mundo coberto por um véu de irrealidade, como se a
essência das coisas tivesse se debilitado; e eu fiquei muito assustada,
morta de medo de que o medo voltasse. Voltou, é claro: nos meses
seguintes tive mais algumas crises, sozinha no meio da rua, ou em
uma aula da universidade, ou enquanto estava com amigos… Deixei
de ir ao cinema e a lugares públicos grandes e barulhentos, porque
estimulavam a sensação de estranhamento. E eu continuava sem
poder falar sobre isso com ninguém. Na minha época e na minha
classe social, nem me ocorreu ir a um psicólogo e, é claro, não tomei
nenhum remédio. Minha mãe, vendo que eu estava péssima, me
recomendou que deixasse de beber café, coisa que fiz. Foi um
conselho sensato, afinal de contas, embora não servisse para grande
coisa. Pouco a pouco, com o passar do tempo, voltei à normalidade.
Nesse meio-tempo, decidira estudar psicologia na universidade, para
tentar entender o que tinha acontecido comigo. Isso é algo muito
habitual: eu diria que a imensa maioria dos psiquiatras e psicólogos
que há no mundo são indivíduos que tiveram problemas mentais, o
que não me parece necessariamente negativo, pois essa experiência
pode dar a eles uma sensibilidade maior para seu trabalho. O ruim é
que muitos não se tornam psiquiatras ou psicólogos para desentranhar
o que acontece, mas para se protegerem dos seus medos, no pueril
convencimento de que, sendo os que curam, não podem ser, ao
mesmo tempo, os doentes.
De modo que estudei psicologia e, com efeito, acabei entendendo
o que tinha me acontecido. Eu tivera um ataque de angústia, a
desordem psíquica mais habitual; agora costumam chamá-la,
eufemisticamente, de estresse, sendo uma verdadeira vulgaridade de
tanto que abunda. Saber que era bastante comum me ajudou muito;
voltei a ter uma época de crise em torno dos vinte e dois anos e outra
ainda, a última, lá pelos trinta, mas ambas foram bem menos agudas
do que a primeira. Acabei perdendo o medo do medo e aceitando que
a vida tem uma porcentagem de trevas com a qual é preciso aprender
a conviver. Hoje chego a considerar aquelas crises como um
verdadeiro privilégio, porque foram uma espécie de excursão
extramuros, uma pequena viagem de turismo pelo lado selvagem da
consciência. Minhas angústias me permitiram vislumbrar a escuridão;
e só se você já esteve ali, mesmo de modo tão superficial e breve como
eu, é possível entender o que supõe viver no outro lado, exilado da
realidade comum, confinado no silêncio e em você mesmo. Minhas
angústias, enfim, me tornaram mais sábia.
Os chamados loucos são aqueles indivíduos que residem de modo
permanente no lado sombrio: não conseguem se inserir na realidade e
carecem de palavras para se expressar, ou então suas palavras
interiores não coincidem com o discurso coletivo, como se falassem
uma linguagem alienígena que nem mesmo pode ser traduzida. A
essência da loucura é a solidão. Uma solidão psíquica absoluta que
produz um sofrimento insuportável. Uma solidão tão superlativa que
não cabe dentro da palavra solidão e que não pode ser imaginada se
não se conheceu. É como estar no interior de um túmulo, enterrado
vivo.
* Tradução de Sérgio Molina para a Editora 34 (São Paulo, 2023). [N. T.]
Quinze
Tenho certeza de que Iván Tubau sabe o que diz quando conta tudo
isso (sem dúvida esse homem pertence ao gênero memorioso, que
sujeito), mas, quando li, fiquei horrorizada, pois não me lembrava de
absolutamente nada. Sei que no momento da morte de Franco eu
estava cobrindo o festival de Benalmádena para a revista Fotogramas;
sei que o festival foi interrompido pelo luto oficial de alguns dias;
lembro-me perfeitamente de Juan Ignacio e Iván, dois caras incríveis
com quem eu saía bastante naquela época, e guardo, inclusive, a vaga
memória de um almoço feliz ao sol com amigos, na varanda de algum
pé-sujo, devorando peixinhos fritos e aproveitando uma sensação de
liberdade e alívio, de emocionada e borbulhante expectativa. Mas
daquela ida à praia não resta o menor rastro na minha cabeça; não
tenho a menor ideia de quem seriam esses dois sevilhanos, nem tinha
ciência de que houvessem tirado uma foto minha nesse dia. No
entanto — e para maior arrepio meu —, era uma data única, um
acontecimento histórico. Tenho certeza de que, enquanto brindava
com champanhe junto ao plácido mar, dizia a mim mesma: “Nunca
mais vou me esquecer disso”. É assim que vão se perdendo os dias e a
vida, no precipício da desmemória. A morte não só te espera no final
do caminho, mas também te devora pelas costas.
Enfim, como diz a famosa frase, “quem se lembra dos anos 1970 é
porque não os viveu”. Acho que eu os vivi bastante a fundo e quem
sabe por isso me lembre deles tão mal. Além disso, às vezes também
recorro a uma teoria pessoal provavelmente sem sentido, mas
consoladora: penso que talvez a imaginação dispute com a memória
para se apoderar do território cerebral. É possível que a gente não
tenha cabeça suficiente para ser ao mesmo tempo memorioso e
fantasioso. A louca da casa, inquilina diligente, limpa as salas de
lembranças para ficar mais à vontade.
Há um tempo, um frenesi rememorativo tomou conta de mim. De
repente, senti uma necessidade imperiosa de voltar a ver a casa da
minha infância, um apartamento modesto e alugado no qual morei
com minha família dos cinco aos vinte e um anos, idade em que me
emancipei. Pouco depois, meus pais e Martina se mudaram. Outras
pessoas chegaram e moraram ali; eu não tinha voltado a ver a casa
durante vinte e cinco anos. Mas agora precisava voltar; embora o lugar
estivesse muito mudado, as paredes continuavam existindo, bem
como o estreito pátio que eu contemplava da janela do meu quarto; e
talvez algum pedacinho do meu antigo eu flutuasse ainda por ali como
o ectoplasma de um fantasma. De modo que escrevi uma carta dirigida
aos “inquilinos atuais”, pois ignorava tudo sobre os ocupantes, na qual
explicava que eu tinha morado ali e pedia que por favor me deixassem
visitá-los. Pouco depois recebi por e-mail a resposta generosa e amável
dos donos do apartamento, José Ramón e Esperanza, e combinei uma
data para ir vê-los. Não sei o que esperava encontrar: talvez minha
memória perdida de perfeita amnésica, talvez minha ignorância
infantil ou o silêncio da família. Marcamos ao meio-dia; a portaria
continuava igual, inclusive com as mesmas faixas pintadas nas
paredes, mas o elevador era novo; já nos meus tempos era uma lata-
velha que vivia quebrada. Subi na pequena caixa do elevador, metálica,
de cor verde hospital, e de fato me sentia como se estivesse entrando
em um e fosse fazer uma pequena cirurgia: extirpar uma
reminiscência, suturar uma lembrança. O apartamento, no sétimo e
último andar, conservava a estrutura original, mas, como é natural,
não tinha nada a ver com a casa da minha infância. O piso, antes de
lajotas, era de madeira; as velhas janelas de madeira tinham sido
substituídas por molduras metálicas. O banheiro e a cozinha eram
bonitos e modernos, quando na minha infância haviam sido tétricos e
escuros. Era uma casa iluminada e feliz, a casa dos outros, a vida dos
outros. José Ramón e Esperanza, um casal da minha idade, com duas
filhas de uns vinte anos, foram afetivos, compreensivos, encantadores.
Esperanza, com fina intuição, chegou a dizer: “Deveríamos deixá-la
sozinha”. É verdade que eu os sentia como intrusos; aquela casa era
minha, porque era a casa da minha infância. Pouco importava que eu
só tivesse morado ali durante dezesseis anos e eles, durante vinte e
cinco; ou que eles a tivessem comprado e reformado, enquanto nós só
a alugávamos. Qualquer consideração racional me parecia absurda:
aquela casa era MINHA. E, por outro lado, o que esses arrivistas tinham
feito com ela, onde estava meu velho lar, onde estava eu, o que
acontecera conosco? Tentei voltar a me pôr nos meus antigos olhos de
menina para ver o mundo dali, mas não consegui. O passado não
existe, por mais que Marcel Proust diga o contrário. Quando estava
prestes a ir embora, depois de ter bebido umas cervejas com eles e de
ter conversado naquela sala alheia, Esperanza me disse que, debaixo
da madeira, se mantinham intactas as lajotas velhas. O piso original,
com sua faixa geométrica em torno das paredes! Esse desenho fizera
parte de muitas das minhas brincadeiras infantis, aparecera em uma
cena do meu romance Te tratarei como uma rainha e fora a origem de
outro livro, Temblor [Tremor]. Fiquei impressionada e imediatamente
minha imaginação encenou uma fantasia: eu voltando de noite de
modo furtivo e arrancando as tábuas de madeira para trazer à luz a
única coisa que restava da minha infância: umas lajotas feias de
varanda barata. E esse devaneio foi um verdadeiro alívio.
O romance é um artefato temporal, como a vida mesma. Essa é
outra das características que unem a narrativa e a cidade; como se
sabe, o conceito moderno do tempo nasceu mais ou menos no século
XII, com os primeiros núcleos urbanos. O romance é uma rede para
caçar o tempo, como as que Nabokov levava para caçar borboletas;
embora, infelizmente, tanto os lepidópteros como os fragmentos de
temporalidade morram assim que são capturados.
Alguns autores são realmente geniais na hora de capturar o frágil
borboletear do tempo. Lembro-me, por exemplo, dessa obra-prima
que é Espelho partido, de Mercé Rodoreda. O romance abarca sessenta
ou setenta anos da vida de uma família burguesa catalã; no primeiro
terço do livro, um dos personagens, ainda jovem e inocente,
contempla a rua por uma janela e percebe, de passagem, uma pequena
imperfeição no vidro, uma bolha que o deforma, a mancha do açafrão
que faz com que essa janela adquira realidade. Muitos anos e muitas
páginas depois, envelhecido e decadente, contempla de novo o mundo
por outra janela. Mas eis que esse vidro também tem um defeito,
também mostra uma pequena bolha, que lembra ao protagonista
alguma coisa, embora ele não saiba o quê. Onde foi que ele viu antes
algo parecido? Ele espreme a cabeça, mas não consegue lembrar,
embora a bolha de ar o inquiete e o arrepie, trazendo de volta paraísos
perdidos, promessas traídas, felicidades rompidas. É um mensageiro
do passado, carregado de dor e de melancolia. E o maior, o mais
maravilhoso, o truque admirável dessa delicada prestidigitadora que
foi Rodoreda é que o leitor sente a mesma coisa que o personagem;
também rememora vagamente outra bolha cristalina que aparecera
antes no romance e, embora não lembre quando nem por quê, sente
que estava relacionada com um tempo de alegria que agora acabou.
Consequentemente, o leitor também experimenta a nostalgia infinita,
a amarga tristeza da perda.
Todos os escritores almejam capturar o tempo, desacelerá-lo pelo
menos por alguns momentos em uma pequena armadilha de castor
construída com palavras; às vezes o tempo forma ao seu redor um
redemoinho e permite contemplar uma ampla e vertiginosa paisagem
ao longo dos anos. Lembro que senti algo assim, por exemplo, lendo
Eremita em Paris, livro autobiográfico de Italo Calvino. Como já disse,
o volume inclui o diário que Calvino escreveu em 1959, aos trinta e
dois anos, durante sua primeira viagem aos Estados Unidos. A viagem
fazia parte de um programa cultural americano intitulado Young
Creative Writers, que se encarregava de levar para lá “jovens
escritores criativos” da Europa. Os outros beneficiados com a bolsa
naquele ano tinham sido Claude Ollier, francês, trinta e sete anos,
representante do insuportável nouveau roman; Fernando Arrabal,
espanhol, vinte e sete anos, “baixinho, com cara de menino, franja e
barba na forma de colar”, e Hugo Claus, belga flamenco, trinta e dois
anos. Além disso, havia outro convidado, Günter Grass, alemão, trinta
e dois anos, mas ele não passou no exame médico porque tinha
tuberculose e naquela época ninguém podia entrar nos Estados
Unidos com o bacilo de Koch.
No seu diário, Calvino descreve os colegas, que ninguém ou quase
ninguém conhecia naquela época. De Ollier quase não diz nada, o que
não me estranha. De Arrabal (me assombra comprovar que esse
homem tenha sido jovem) anota que “é extremamente agressivo,
piadista de maneira obsessiva e lúgubre, e não se cansa de me
bombardear com perguntas sobre como é possível que eu me
interesse pela política e também sobre o que pode fazer com as
mulheres”. E de Hugo Claus diz que
Quando comecei a imaginar este livro, pensava que seria uma espécie
de ensaio sobre a literatura, sobre a narrativa, sobre o ofício do
romancista. Projetava escrever, enfim, mais uma dessas inúmeras
obras tautológicas que consistem em escrever sobre a escrita. Depois,
como os livros têm vida própria, suas necessidades e seus caprichos, a
coisa foi se transformando em algo diferente, ou melhor, outro tema
foi sendo acrescentado ao projeto original: eu não só trataria da
literatura, mas também da imaginação. E, de fato, esse segundo ramo
se tornou tão poderoso que, de repente, se apoderou do título do
livro. A gênese do título de uma obra é um processo muito
enigmático. Se tudo funciona bem, o título aparece um dia no meio do
caminho do desenvolvimento do texto; manifesta-se de repente
dentro da cabeça, deslumbrante, como a língua de fogo do Espírito
Santo, e esclarece e ilumina o que você está fazendo. Diz coisas sobre
seu livro que você antes ignorava. Eu fiquei sabendo que estava
escrevendo sobre a imaginação quando caiu sobre mim a frase de
Santa Teresa.
Mas as coisas não terminaram aí. Continuei com meu caminho de
palavras, com essa longa andança que é a construção de um texto, e
um dia, faz relativamente pouco tempo, percebi que eu não só estava
escrevendo sobre a literatura e sobre a imaginação, mas que este livro
também trata de outro tema fundamental: a loucura. Claro, disse a
mim mesma quando me dei conta, era algo evidente, tinha de ter
ficado mais atenta, tinha de ter escutado todos os ensinamentos que
derivam do título. A louca da casa. Não é uma frase casual e,
sobretudo, não é uma frase banal. Sem dúvida, a imaginação está
estreitamente aparentada com o que chamamos loucura, e ambas com
qualquer tipo de criatividade. E agora vou propor uma teoria
alucinada. Suponhamos que a loucura é o estado primigênio do ser
humano. Suponhamos que Adão e Eva viviam na loucura, que é a
liberdade e a criatividade total, a exuberância imaginativa, a
plasticidade; a imortalidade, porque carece de limites. O que
perdemos, ao perder o paraíso, foi a capacidade de contemplar essa
enormidade sem nos destruírmos. “Se das estrelas agora chegasse o
anjo, imponente/ e descendesse até aqui/ os golpes do meu coração
me abateriam”, dizia Rilke, o qual sabia que nós, humanos, somos
incapazes de olhar a beleza (o absoluto) de frente. O castigo divino foi
cair no cárcere do nosso próprio eu, na racionalidade manejável, mas
empobrecida e efêmera.
Por isso os seres humanos usaram drogas desde o princípio dos
tempos: para tentar escapar da prisão estreita da cultura, dando uma
espiada no paraíso. Até nosso arquiavô Noé desmaiava de tanto beber!
Lembro-me agora de Aldous Huxley, que, no seu leito de morte,
agonizante, pediu que lhe injetassem uma dose de LSD. Sempre me
horrorizou essa ideia macabra e arriscada de morrer sob efeito de
ácido. Mas, além disso, se ao falecer estava para lá de drogado, será
que chegou a experimentar de verdade seu fim? Não estaria já do
outro lado, nessa realidade imensa onde ninguém morre? De fato,
dizem que, com ou sem LSD, em todo falecimento acontece algo
parecido; o cérebro libera uma descarga massiva de endorfinas e
drogamos a nós mesmos, daí que todas as pessoas que voltaram das
fronteiras da morte contem vivências semelhantes: a intensidade, a
amplitude de percepção, a própria existência vislumbrada na sua
totalidade, como se iluminada por um raio sobre-humano de
entendimento… É uma espécie de delírio, mas é também a sabedoria
sem travas. É a baleia contemplada inteira. Por isso, muitos povos
consideraram os loucos como seres iniciados no segredo do mundo.
Seja como for, não é preciso morrer nem se transformar em um
louco oficial, sendo trancado em um manicômio, nem se drogar como
o junkie mais largado, para vislumbrar o paraíso. Em todo processo
criativo, por exemplo, se toca essa visão descomunal e alucinante. E
também entramos em contato com a loucura primordial cada vez que
nos apaixonamos intensamente. Eis outro tema sobre o qual este livro
trata: a paixão amorosa. Ele está intimamente relacionado com os
outros três, porque a paixão talvez seja o exercício criativo mais
comum da Terra (quase todos nós já nos inventamos algum dia um
amor) e porque é nossa via mais habitual de conexão com a loucura.
Em geral, nós, humanos, não nos permitimos outros delírios, mas o
amoroso, sim. A alienação passageira da paixão é uma maluquice
socialmente aceita. É uma válvula de segurança que nos permite
continuar sendo lúcidos em todo o resto.
É que as histórias amorosas podem chegar a ser francamente
estrambóticas, verdadeiros paroxismos da imaginação, melodramas
românticos de paixões confusas. Ao longo da minha vida inventei
umas tantas relações assim e agora vou me permitir narrar uma delas,
como exemplo de até onde a fantasia (e a loucura) pode te levar.
Aconteceu faz muito tempo, tempo demais, pouco antes da morte do
ditador. Eu tinha vinte e três anos e colaborava de Madri na revista
Fotogramas. Meu guarda-roupa era composto de dois pares de calças
jeans, uma saia florida desleixada, umas botas rústicas um tanto
encardidas, quatro ou cinco camisas indianas transparentes e uma
grande bolsa com franja. Quero dizer que eu era mais para hippie,
tanto quanto era possível ser hippie em 1974 na Espanha de Franco, o
que significava que eu estava mais ou menos convencida de que, todos
juntos, podíamos mudar o mundo de cima a baixo. Era preciso tomar
drogas psicodélicas para romper com a visão burguesa e convencional
da realidade; era preciso inventar novas formas de se amar e de se
relacionar, mais livres e mais sinceras; era preciso viver com uma
bagagem leve, com poucas posses materiais, sem se apegar ao
dinheiro.
Aquele mês de julho de 1974 foi especialmente calorento, com um
sol saariano que derretia até o último fio de cabelo. De noite, o corpo
se recuperava da tortura diurna e começava a irradiar fome de vida.
Essas noites do verão de 1974, com Franco já muito velho, estavam
carregadas de eletricidade e de promessas. Em uma dessas noites, saí
para jantar com minha amiga Pilar Miró, com seu namorado daquela
época, um cineasta estrangeiro que estava rodando um filme na
Espanha, e com M., o protagonista desse filme, um ator europeu
muito famoso que triunfara em Hollywood. M. tinha trinta e dois
anos; não era muito alto, talvez um metro e setenta e cinco, mas era
um dos homens mais lindos que eu já vira. Seus olhos eram tão azuis e
abrasadores como um maçarico; as maçãs do seu rosto eram altas e
marcadas; sua constituição era atlética e seu peito, uma rígida
almofada de borracha (o que percebi ao apoiar ligeiramente a mão
quando lhe dei os beijos de boas-vindas), esses deliciosos peitorais
sólidos e elásticos. Além disso, era tímido, calado, melancólico. Ou
isso me explicou Pilar quando ligou para me perguntar se eu queria
jantar com eles:
— O coitado do M. está muito triste e muito sozinho. Como você
sabe, ele acabou de se separar da mulher e, mesmo sendo tão lindo,
não consegue ficar com ninguém. É um cara muito reservado, mas
encantador.
De maneira que, na realidade, eu fui para o jantar como possível
objeto de pegação; foi um encontro tacitamente arranjado. Fui numa
boa, curiosa e divertida, intrigada com as descrições de Pilar. M., de
fato, falava bem pouco, mas era impossível discernir se seu laconismo
era uma questão de caráter ou uma consequência do fato de que a
gente não conseguia se entender, porque ele não falava espanhol e
meus conhecimentos de inglês naquela época se reduziam a algumas
canções de Dylan e dos Beatles, balbuciadas de ouvido, soltando
barbarismos. Apesar dessa dificuldade monumental, a noite
transcorreu bastante bem, com Pilar e seu namorado carregando a
conversa nas costas. Jantamos opiparamente, depois fomos beber e
acabamos a noite em uma discoteca. A essas alturas da madrugada e da
dança, já não era necessário conversar: nossos corpos assumiram todo
o diálogo. Presa nos seus braços, afundando o nariz no cheiro febril e
macio do seu peito gostoso, eu gozava desse momento mágico que
consiste em se sentir desejada por um homem que você deseja
ardentemente. Toda a minha consciência estava inundada pela
sensação de plenitude, mas por baixo, agora me dou conta, também se
agitava uma vaga inquietude, um pequeno incômodo que preferi
ignorar.
Pilar e seu namorado afinal foram embora e nós, sem nem
precisarmos perguntar nada, fomos no meu carro, o velho Mehari
mencionado por Iván Tubau, para o apartamento que a produtora
alugara para M. na Torre de Madri, o orgulhoso arranha-céu do
franquismo. Era sábado e, quando chegamos à Plaza de España, havia
um monte de veículos estacionados sobre a calçada. A duras penas,
encontrei um pequeno buraco entre eles e também deixei o carro ali.
Apesar da hora, os jardins da praça estavam cheios de gente, como se
fosse um dia de feriado. Era o calor e o veneno delicioso das noites de
julho. Subi até o apartamento de M., mais embriagada pela
intensidade da noite do que pelo álcool. Demoramos para chegar: o
interior da Torre era um labirinto de elevadores e de escadas, e o
apartamento ficava em um dos últimos andares. Lembro que
estávamos com tanto tesão que mal deu tempo de fecharmos a porta;
lembro que jogamos a roupa pelo chão e que nós mesmos rodamos
pelo carpete durante um longo tempo antes de nos arrastarmos até a
cama. Lembro, como frequentemente acontece em um primeiro
encontro, sobretudo quando há muito desejo, quando se é tímido,
quando se é jovem e quando não existe muita comunicação, que o ato
sexual foi desajeitado, cheio de cotoveladas e pernas no lugar errado.
Seu corpo era um banquete, mas acho que a coisa não deu muito
certo.
Depois M. cochilou, enquanto do outro lado das janelas amanhecia.
Deitada ao seu lado, suada e desconfortável, presa por um braço de M.
que amassava meu pescoço, eu contemplava o quarto enquanto ia
sendo inundado por uma luz leitosa; e na nudez dessa claridade tão
insípida, no frenesi obsessivo das insônias, comecei a me sentir
francamente mal. Você desempenhou o papel mais convencional, mais
burguês do mundo, disse a mim mesma: a tonta que fica com o
famoso. Se a gente nem sequer se entende! O que diacho ele pode ter
gostado em mim? É que, nessa época, como acontece com tantos
jovens, eu era uma pessoa muito insegura sobre meu corpo e
acreditava que minha única atração eram as palavras. Mas se a gente
mal tinha se falado, por que ele tinha ficado comigo? Porque estava
previsto, respondi; porque eu era essa garota, uma garota qualquer,
dessas que vão para a cama com figurões como ele. M. não era um
homem reservado e um grande tímido, mas um machista insensível e
um cretino. Comecei a me sentir tão idiota que teria batido com a
cabeça na parede.
Em vez de fazer isso, decidi fugir e, contorcendo-me como um
fenômeno de circo, consegui sair de debaixo do pesado abraço de M.
sem que ele acordasse. Descalça e sigilosa, catei a roupa do chão e me
vesti rapidamente. Dois minutos depois, estava fechando a porta do
apartamento atrás de mim, cansada e confusa, com a boca pastosa e o
ânimo pelo chão. Desci pelos diversos elevadores como um autômato
e, ao chegar à rua, o dia bateu em mim com todo o seu esplendor.
Eram dez e pouco da manhã e o sol perfurava o asfalto. Diante de
mim, sobre a ilha central da Plaza de España, meu Mehari vermelho
era um berro de ilegalidade. Não restava nenhum outro veículo na
calçada: só minha pequena lata-velha, desengonçada e suspeitamente
contracultural, com a lona do capô empoeirada e rasgada. Em torno do
Mehari, um enxame de grises, os temíveis policiais franquistas,
farejavam e libavam como abelhões. Primeiro acreditei que fosse uma
miragem, um delírio induzido pelo sol que me cegava. Depois tive de
admitir que era real. Meus joelhos falharam. Meus joelhos sempre
tremiam diante dos grises durante o franquismo.
Fiz rápidas conjecturas, tentando encontrar alguma saída para a
situação. Mais tarde compreendi que seria melhor se tivesse ido
embora na ponta dos pés e depois denunciado o desaparecimento do
carro, como se tivesse sido roubado. Mas eu estava sem dormir, minha
cabeça explodia, me sentia tonta e meu cérebro funcionava em câmara
lenta. De modo que tomei a decisão de me aproximar e foi fatal.
Assim que os cumprimentei e observei como os policiais me
olhavam, comecei a intuir que tinha me enganado. Eu não levara em
conta minha aparência, que, no melhor dos casos, era suspeita, pois
no franquismo tudo era suspeito (como meus jeans surrados, a camisa
indiana semitransparente sem nada por baixo, o cabelo frisado com
uma permanente afro), e que agora, além disso, apresentava um
inequívoco toque macilento das noites de farra, com o cabelo
ressecado e restos de maquiagem sujando o rosto. Meus confusos
balbucios também não melhoraram a impressão produzida:
— Estacionei aqui ontem de noite, estava cheio de carros, não
percebi que era proibido, bebemos um pouco, fui dormir na casa de
uma amiga…
Os grises tinham a expressão tão cinzenta quanto seus uniformes.
Desde que uma bomba do ETA havia estourado Carrero Blanco meio
ano antes, as forças de segurança estavam especialmente paranoicas.
— Documentos — grunhiram.
Enfiei a mão na bolsa com franja e, apesar do calor crescente da
manhã, um arrepio gelado começou a descer pela minha espinha. Não
encontrei nem a carteira nem as chaves. Lembrei que, quando entrei
no apartamento de M. umas horas antes, estava com as chaves na mão
e devo ter perdido no frenesi e na urgência da carne. Quanto à
carteira, eu também jogara a bolsa no carpete de qualquer maneira
(antes de sair a peguei do chão) e, como a bolsa não tinha fecho,
certamente a pesada carteira cheia de moedas rolara para fora. Ao ir
embora do apartamento, em meio ao sigilo, à fúria, ao atordoamento e
à penumbra das persianas baixas, não percebera nada faltando.
— Pois então… é que agora não estou encontrando a carteira…
Nem as chaves… Acabei… acabei de visitar um amigo ali na Torre de
Madri e devo ter deixado lá. Posso atravessar e subir para pegar —
pigarreei com a garganta seca.
Os grises se encapotaram um pouco mais. Por momentos ficavam
mais altos, carrancudos e temíveis.
— Não acabou de dizer que dormiu na casa de uma amiga? E agora
está dizendo que esteve aqui em frente, com um amigo? —
argumentou um deles com um tonzinho sarcástico e ares de agudo
detetive: — Quem é esse amigo e onde ele mora?
Eu já estava achando bastante calamitoso ter de aparecer de novo
na casa de M. para pegar minhas coisas, mas com a pergunta do
policial me dei conta de outro pequeno detalhe catastrófico: não sabia
qual era o apartamento nem em que andar ficava. Devo ter
empalidecido. Gemi, gaguejei, sem ar, e expliquei como pude que ele
era um ator muito famoso (não conhecem?) e que só precisávamos
perguntar para o porteiro e subir, para recuperar minhas coisas e me
identificar, pagando a multa pelo estacionamento proibido,
obviamente, e irmos cuidar da nossa vida com tranquilidade.
Acho que não colou muito, porque dois dos policiais me
acompanharam até a Torre, sendo que um deles me segurava
firmemente pelo antebraço. Eu me aproximei do porteiro, que nos
observava com notória desconfiança atrás de um balcão de mármore
verde-escuro sinistro, estilo panteão de El Escorial. Perguntei por M.
Não o conhecia. Descrevi M. com riqueza de detalhes, enumerando
todos os filmes estreados na Espanha, dei o nome da produtora. Ele
não fazia ideia. Era folguista, vinha só nos fins de semana, estava
trabalhando desde as seis da manhã e não me vira entrar no prédio. E
sair? Sem dúvida tinha me visto sair, vinte minutos antes. Ah, disso
não tinha registro. Como era natural, não se preocupava tanto com os
que saíam quanto com os que entravam, por uma questão de
segurança. A essa altura, o porteiro do prédio, um quarentão teimoso,
já tinha estabelecido uma relação de confiança com os dois policiais.
Eram colegas e os três estavam contra mim, cada vez mais inquietos e
suspicazes. Nas ditaduras, você é sempre culpado, e é sua inocência
que você precisa demonstrar.
De modo que o guarda que me segurava pelo braço me arrastou de
volta para o carro. No intervalo, mais grises tinham aparecido; agora
eram pelo menos uma dezena, sendo que um dos recém-chegados
devia ser um chefe importante, porque todos se dirigiam a ele com
muitos obséquios. Começaram a lhe contar respeitosamente minha
peripécia: “Diz que esqueceu a carteira e os documentos em um
apartamento… Diz que não lembra qual apartamento… Incorreu em
contradições…”. Essa era a conversa quando um dos policiais mais
jovens, um rapazinho rústico que mal tinha vinte anos, desses que na
universidade chamávamos paternalistamente de desertores do arado,
começou a revistar meu carro, no qual, aliás, não havia muito para ver.
Era uma espécie de jipe de plástico vermelho; como era verão, eu
tinha tirado as portas e as lonas laterais, sobrando só o capô do teto.
O jovem policial abriu o porta-luvas, que, embora tivesse chave, estava
quebrado, e verificou que não havia nada escondido ali. Depois enfiou
as mãos debaixo dos assentos e tirou vários punhados de poeira. Por
último, e em um ímpeto de genialidade, procedeu a desenroscar a bola
do câmbio das marchas. O câmbio era uma alavanca de metal,
rematada com uma bola de plástico preto de uns seis centímetros de
diâmetro. Curiosamente, a bola era oca e dividida pela metade, sendo
que ambas as partes se enroscavam uma na outra, suponho que para
que a alavanca pudesse ser montada e desmontada facilmente. Essa
modesta peça de Meccano foi a que o jovem guarda abriu,
encontrando lá dentro uma minúscula pedra de haxixe bastante
ressecada, embrulhada em papel-celofane, que mal dava para um par
de baseados, as sobras de uma viagem recente a Amsterdam, um
pequeno depósito de abastecimento do qual eu praticamente me
esquecera.
Tive muita sorte. Fiquei presa apenas uns dias e não me deram
nenhuma bofetada, coisa que, naqueles tempos duros do franquismo,
era algo extraordinário. Suponho que minha profissão de jornalista na
ativa, que logo verificaram, deve ter contido sua fúria repressora; isso
e minha condição evidente de trouxa, de pessoa que não tinha relação
com nada subversivo de verdade. Tive de pagar uma pequena fiança e
abriram um processo que nunca deu em nada, porque prescreveu, foi
arquivado ou o que quer que seja em uma das anistias do pós-
franquismo. Na manhã seguinte da minha prisão, minha irmã Martina
veio até a delegacia e trouxe minha carteira de identidade e as chaves
do carro. M. ligara para minha casa (a casa dos meus pais, a que
constava na minha identidade e na qual minha irmã continuava
morando com eles; essa casa distante que agora visitei e que esconde
antigas lajotas debaixo do piso de madeira) e levara meus pertences.
— O que aconteceu? Por que você foi embora assim do
apartamento desse cara, tão apressada e deixando tudo? — me
perguntou Martina sem rodeios.
A gente nunca tinha compartilhado confidências de namorados,
nem nada na realidade. Vivíamos como se o grande silêncio nos
ensurdecesse. Dei de ombros. Eu me sentia humilhada pela noite com
M., pela minha própria atitude, por ter sido presa de um jeito tão
estúpido. Não queria nem lembrar das minhas trapalhadas.
— Sei lá. Na realidade não aconteceu nada. É só que ele é um
machista e um babaca. Não quero mais saber dele.
É preciso ter muito cuidado com a formulação dos desejos, porque
acontece de se cumprirem. De fato, não soube mais de M., pelo
menos durante algumas semanas. Depois um dia abri o jornal Pueblo e,
na coluna de fofocas de verão, me deparei com uma nota jornalística
que dizia: “A namorada espanhola de M.”. E ali estava ele, retratado
em um instantâneo ruim tirado de surpresa na saída de alguma loja,
com um braço sobre os ombros de Martina.
Da minha irmã.
Naquele dia fui jantar na casa dos meus pais, mas Martina não
estava. Me demorei por lá para ver se ela chegava, mas nunca chegou;
de modo que voltei de novo no dia seguinte, na hora do almoço, para
surpresa e delícia da minha mãe. Martina estava lá, com olheiras e
menos arrumada do que de costume (sempre foi mais clássica para se
vestir), mas muito bonita. Irradiava essa mágica exuberância que o
sexo bom proporciona. Assim que a vi, comecei a sofrer. E que
sofrimento tão violento. Eu não estava preparada para sentir algo
assim. Foi como pegar uma virose. Foi a peste bubônica.
Adquiri o hábito, ou antes a angustiosa necessidade, de ir jantar
todos os dias na casa dos meus pais. Martina às vezes estava, às vezes
não. Quando estava, nunca dizíamos nada, nunca o mencionávamos. A
mim, bastava vê-la para sentir a mais refinada das torturas, e mesmo
esse tormento era melhor do que nada. O desejo, como se sabe, é
triangular. Huizinga diz isso em O outono da Idade Média, referindo-se
aos cavaleiros que resgatam damas em apuros: “Mesmo se o inimigo
for um cândido dragão, sempre ressoa no fundo o desejo sexual”.
Amei desesperadamente M. através da minha irmã. Ela era a fazedora,
portanto fez; eu pus e ponho palavras no nada.
Quando a via, sentia o cheiro dele. Imaginava-a lambendo seu peito
macio. Mordiscando seu pescoço delicioso. A essa altura, minha ideia
sobre M. tinha mudado completamente. Agora estava convencida de
que era um homem encantador, alguém reservado e sensível, como
Pilar me dissera. Fora eu que desperdiçara tudo. Que tinha ficado
paranoica e idiota.
Um dia, cheguei ao prédio dos meus pais junto com minha irmã.
Ela estava saindo de um carro grande dirigido por uma pessoa
desconhecida; sem dúvida era um carro da produção e tinham ido até
ali para deixar Martina, antes de se dirigir para a filmagem. M. se
debruçou na janela de trás e acenou para minha irmã com a mão;
depois seus olhos cruzaram por acaso com os meus. Seu meio-sorriso
se apagou; ele franziu as sobrancelhas; quando o carro acelerou, ainda
estávamos nos olhando. Seus olhos eram como uma queimadura.
Como o fósforo ardente de um palito que tivesse colado na carne e a
perfurasse. Entrei consternada pelo portão, atrás da minha irmã, que
estava me esperando no elevador. Subimos na velha e imunda caixa de
madeira. Eu devia estar obviamente tão mal que, quando paramos no
sétimo andar, Martina pôs uma mão no meu braço e murmurou:
— Você disse que ele era um babaca e não queria saber dele.
Não respondi.
— Você está com um incêndio na cabeça, e por isso as coisas
queimam — acrescentou minha irmã, com certa aspereza.
Continuei calada. Não conseguia articular palavra alguma. Agora
era minha irmã que falava e eu caíra no silêncio.
De todo modo, não dissemos mais nada. Parei de ir comer na casa
dos meus pais e me dediquei a sofrer intensamente todas e cada uma
das horas do dia. Estava obcecada. Ainda não era consciente disso,
mas M. tinha a Marca, isto é, reunia todos os ingredientes fatais que
fazem com que um homem me prenda, como a armadilha prende a
raposa itinerante. Tenho a teoria de que o desejo sexual e passional se
constrói em algum momento muito cedo na existência e sobre pautas
mais ou menos estáveis. É como o que Konrad Lorenz, o pai da
etologia, contava sobre seus patinhos. Quando o patinho sai da casca,
escolhe como mãe o primeiro ser vivo que vê perto dele. Isso se
chama imprinting: esse primeiro ser vivo se imprime com o conteúdo
emocional do conceito de mãe e assim permanecerá identificado para
sempre, engastado no coração do pato filho (Lorenz se aproveitava
dessa circunstância para que ninhadas inteiras de minúsculos patos o
perseguissem por toda parte, transidos de amor filial por ele).
Pois bem, acho que no desejo e na paixão acontece algo
semelhante. Em algum instante remoto da nossa consciência se
produz o imprinting do objeto amoroso, com características às vezes
físicas, às vezes psíquicas, às vezes de ambos os tipos: você gosta dos
gordos, dos magros, do seu próprio sexo ou do sexo oposto… Cada
pessoa tem um desenho secreto do amor, uma forma presa no
coração. São coisas sutis: em geral é dificílimo reconhecer o padrão,
porque os amores podem ser aparentemente muito diversos. Eu
comecei a descobrir minha fórmula faz uns dez anos. Agora já sei
como funciona; vejo a Marca e disparo.
Os homens dos quais gosto ou, melhor dizendo, os homens que
são minha perdição, todos eles, que eu saiba, reúnem três condições
concretas. Em primeiro lugar, são bonitos: me dá vergonha
reconhecer isso, mas é assim. Segundo, são inteligentes: se o homem
mais bonito do mundo diz uma besteira, torna-se um pedaço de carne
sem substância. E agora vem o ingrediente fundamental, o terceiro
elemento que fecha o ciclo da sedução como quem fecha um cadeado:
são indivíduos com uma patologia emocional que os impede de
demonstrar seus sentimentos. Isto é, são os caras duros, frios,
reservados, ariscos, nos quais acredito adivinhar um interior de
ternura formidável que não consegue encontrar a via de saída. Sempre
sonho em resgatá-los deles mesmos, em liberar essa torrente de afeto
enclausurado. Mas isso nunca dá certo. E o que é ainda pior: suspeito
que, se algum dia um desses rapazes duros chegasse a se transformar
em um indivíduo afável e carinhoso, o mais provável é que eu deixasse
de gostar dele. A Marca é assim: uma tirana.
Para minha desgraça, e embora eu não soubesse naquela época, M.
possuía a Marca. Era bonito, parecia inteligente (pelo menos não dizia
besteiras, e o fato de não nos entendermos ajudava bastante) e, sem
dúvida, era um cara emocionalmente encouraçado. Fui capturada por
ele, ou pela imagem dele, ou pela invenção que fizera dele, como a
mosca que fica grudada no merengue. Durante dois ou três meses,
fiquei obcecada pela sua ausência. Não conseguia escrever, não
conseguia ler, só pensava nele e no que eu tinha perdido. Não foi uma
dor amorosa: foi uma doença. Evitei Martina durante o resto do ano:
não nos vimos de novo até o Natal. Depois fiquei sabendo que minha
irmã estivera com M., suponho que felizmente (nunca falamos sobre
isso: eis aqui outro silêncio), até que a filmagem acabou e ele foi
embora do país. Então se separaram com toda tranquilidade e cada um
continuou sua vida. Martina se dedicou a pavimentar sua carreira,
conseguir um namorado, casar, ter filhos, construir um lar que sempre
parece acolhedor. Para isso é uma fazedora. Que eu saiba, nunca mais
se encontraram. Mas a verdade é que não sei nada.
Fui me recuperando pouco a pouco, como quem se recupera de
uma amputação. Durante alguns anos não me atrevi sequer a ver seus
filmes. Mas depois, com o tempo, não só a dor foi se apagando, como
também a cicatriz, e começou a ser difícil acreditar que eu tivesse
perdido a cabeça por ele. Se eu nem o conhecia. Se era um perfeito
estranho.
Os anos se passaram, tive vários amores e diversos namorados,
escrevi alguns livros, deixei de ser hippie, troquei a maconha pelo
vinho branco e meu guarda-roupa se tornou incomensuravelmente
maior. E não só o guarda-roupa: minha casa se encheu de uma
infinidade de coisas desnecessárias. É uma das características da
idade: à medida que se envelhece, a casa começa a se tornar um
cemitério de objetos inúteis. Assim estava, instalada já
definitivamente na idade madura, quando, faz pouco tempo, me
convidaram para ser jurada de um festival internacional de cinema que
seria celebrado em Santiago do Chile. O júri era composto de nove
pessoas: atores, diretores de cinema, escritores. Tinham me
comunicado previamente os nomes de todos, mas quando cheguei ao
aeroporto de Santiago alguém comentou comigo que houvera várias
mudanças. Os jurados se reuniriam naquela noite pela primeira vez no
restaurante do hotel; no dia seguinte, começaria a competição. Acabei
dormindo e fui a última a chegar à mesa reservada para o jantar,
confusa e morta de vergonha. Ocupei o primeiro lugar livre que
encontrei e os organizadores começaram a nos apresentar. O terceiro
nome que disseram foi o de M., e eu gelei. Virei a cabeça e ele estava
sentado do meu lado. Nossos olhos se cruzaram, mas seu olhar já não
queimava como um fósforo. Trocamos um pequeno sorriso formal,
sem dar nenhuma demonstração de nos conhecermos. Eu estava certa
de que ele não se lembrava de mim, o que era um alívio.
Amparada no meu anonimato, me dediquei a estudá-lo de modo
furtivo. Acredito lembrar que naquela época eu tinha quarenta e cinco
anos; então, ele devia ter cinquenta e quatro. Seus olhos continuavam
sendo pouco comuns, embora agora parecessem menores, quem sabe
porque as pálpebras estavam um tanto descoladas e porque o branco já
não era tão branco, e sim mais avermelhado e aquoso. De saída, enfim,
não parecia espetacular; não era mais um homem que capturava os
olhares só de aparecer em algum lugar. O tempo não costuma ser
piedoso com os bonitos; já aqueles de nós que nunca fomos belos
podemos adquirir certa graça com os anos. Quero dizer que agora
estávamos mais à altura um do outro, que já não existia essa distância
física que antes me fizera sentir tanta insegurança. M. estava grisalho
e enrugado. E tinha uma expressão cansada ou melancólica. Havia
envelhecido de maneira natural e aparentava sua idade; era evidente
que, ao contrário de outros divos de Hollywood, não fizera nenhuma
plástica. Conseguira manter uma carreira bastante boa, porém muito
mais modesta, de tipo europeu, de ator profissional e não de estrela.
Fizera filmes e teatro; e nos últimos anos escrevera algumas peças
dramáticas que haviam sido representadas em diversos países com um
sucesso razoável. Eu vira uma delas em Madri. Não estava mau.
Mas o mais surpreendente de tudo foi que nos falamos. A essa
altura eu já sabia inglês e não tivemos problema algum para nos
entender. M. se comportou com uma extraordinária cortesia; me
perguntou uma infinidade de coisas sobre minha vida e conseguiu que
parecesse que as respostas lhe interessavam. No fim do jantar, eu
estava invadida por essa esvoaçante excitação que se sente quando se
acabou de conhecer alguém, de quem a gente se sentiu muito
próxima, desejando se aproximar muito mais. Ou seja, fiquei sedutora,
que é um estado delicioso. Gostava da sobriedade dele, da sua
amabilidade um pouco rígida e dessa tristeza de fundo, tão hermética.
Sem dúvida M. continuava tendo a Marca.
Dizem que a felicidade não tem história. Mas tem, sim, o que
acontece é que quando a gente conta soa ridícula. Nos festivais de
cinema, onde os jurados se veem forçados a conviver durante vários
dias, muitas vezes acontece de se criarem dois grupos, às vezes
asperamente indispostos. No nosso caso, houve também uma ou outra
tentativa de enfrentamento, mas, coisa extraordinária, M. e eu
concordávamos sempre. Formamos um núcleo de uma solidez
inquebrantável, ao qual aderiam de forma passageira um ou outro
membro do júri; e, no fim, conseguimos que fossem premiados nossos
filmes, quer dizer, aquelas produções nas quais apostávamos. Rimos
muito, nos apoiamos muito; alcançamos uma enorme cumplicidade,
uma estranha intimidade de equipe diante dos outros. Tomávamos
café juntos, passávamos o dia todo juntos, jantávamos juntos,
bebíamos juntos e nos separávamos apenas durante as seis horas de
sono de noite. À medida que passavam os dias, segurávamos o braço
um do outro, roçávamos nossas mãos, roçávamos tudo o que dava,
mantendo a aparência de um toque casual ou de uma demonstração de
puro afeto amistoso. Foram uns dias frenéticos.
No fim, na jornada de encerramento, na nossa última noite, nós
dois sabíamos o que ia acontecer sem necessidade de dizer nada. Essa
é uma das poucas vantagens da idade: nos poupamos de bastante
palavrório. Fugimos da cerimônia de entrega dos prêmios, fomos para
meu quarto e pedimos um jantar opíparo no room service. Não
comemos nada. Outra das vantagens da idade: não é preciso fingir
orgasmos, não há os gritinhos desnecessários e, em geral, a gente já
sabe onde pôr os cotovelos e os joelhos. Nenhuma articulação ficou
sobrando naquela noite. Poderíamos ter transado vários dias antes,
mas desfrutamos do adiamento, da promessa tácita, dos toques
crescentes, do oferecimento desse corpo que é um tesouro guardado
para nós, do desejo que se tensiona e se exacerba. Eu me deleitei
revelando cada centímetro da pele de M. Seu corpo magro, menos
musculoso do que antes; sua carne madura, mais descolada e mole;
porém também mais eloquente. Gostei dos seus quadris de homem
mais velho, da maneira como cediam sob meus dedos, da longa
história pessoal que sua pele me contava. Fizemos amor com
ferocidade e ânsia adolescente, e depois com a lentidão gulosa dos
adultos, e depois com a sensualidade obsessiva e intemporal. Raras
vezes senti tanto um homem. Foi um banquete.
De manhã, pouco antes de nos despedirmos para cada um tomar
seu voo, entrelaçados ainda na cama revirada e mortos de sono, meio
empanturrados, meio famintos, passei o dedo pela enorme cicatriz
que agora fendia o peito de M. de cima a baixo, do buraco do pescoço
até o estômago. Isso também acontece com a idade: você vai
acumulando cicatrizes, só que algumas são visíveis e outras, não.
— E isto? — perguntei me sentindo um pouco ridícula: porque
havia tantas coisas para perguntar a ele.
— Um coração de má qualidade — respondeu ele em tom leve.
Como Pilar Miró, lembrei: ela também tinha uma cicatriz
semelhante.
— Como Pilar Miró — soltei em voz alta. — Você se lembra dela?
— Pilar, sim, claro. Uma mulher incrível. Me impressionou muito
que morresse tão jovem. A gente se via nos festivais de vez em quando
— M. respondeu.
E depois se ergueu sobre um cotovelo e olhou para mim, com a
cabeça um pouco de lado:
— Então era você — ele disse. — Eu suspeitava havia vários dias,
mas não tinha certeza.
Acho que fiquei vermelha.
— Então você se lembrava de mim — perguntei, incrédula.
— É claro. Perfeitamente. Lembrei de você várias vezes durante
esses anos.
Não está falando de mim, pensei. Está falando de minha irmã. Mas
ela e eu não nos parecemos em nada fisicamente.
— Tem certeza que você se lembrava de mim? — insisti,
sublinhando o pronome.
Ele começou a rir.
— De você, Rosa, de você… De quem, se não…?
Não disse de quem. Não nomeei meu fantasma.
Mas devo ter lhe enviado uma mensagem mental, porque M.
perguntou:
— Que fim levou sua irmã?
— Ah, está muito bem. Tem uma empresa própria de informática,
casou, tem três filhos…
M. sorriu:
— Ela continua fumando baseados?
Uma espécie de câimbra percorreu minha mandíbula, fazendo
meus dentes rangerem. Não sabia o que dizer e optei por uma
resposta pouco comprometedora.
— Não. Deixou faz tempo.
M. suspirou:
— Sim, claro, a essa altura, todos nós já deixamos quase tudo.
Pois bem: que eu soubesse minha irmã, sempre tão arrumada, tão
racional, tão fazedora e tão asseada, nunca tinha fumado baseados, de
modo que M. devia estar se referindo a mim. Mas, por outro lado, será
que eu conhecia e conheço de verdade minha irmã? E se existir outra
Martina que não tem nada a ver com a que eu percebo, e se na
juventude ela passasse a vida chapada? A quem M. se referia na
realidade? Em quem ele estava pensando, quem estava vendo quando
olhava para mim? Não quis continuar me perguntando e é claro que
não quis perguntar nada a ele. Os minutos passavam, tínhamos de ir
embora e sabíamos que não faríamos nada para nos vermos de novo.
Ambos tínhamos parceiros nos nossos respectivos países e, de
qualquer modo, a história tinha sido linda demais para estragá-la com
a cotidianidade. Ou com dúvidas de identidade. Ou com perguntas.
Outra das coisas que a gente aprende com a idade é a tomar as coisas
como elas vêm. E inclusive agradecer.
Dezenove
Tudo que eu conto neste livro sobre outros livros ou outras pessoas é
verdade, quer dizer, responde a uma verdade oficial documentalmente
verificável. Mas temo que eu não possa assegurar o mesmo sobre
aquilo que toca minha própria vida. É que toda autobiografia é
ficcional e toda ficção é autobiográfica, como dizia Barthes.
Agradeço os comentários afetuosos e inteligentes de Malén Aznárez,
José Manuel Fajardo, Alejandro Gándara, Enrique de Hériz, Isabel
Oliart, José Ovejero e Antonio Sarabia; e especialmente, como
sempre, os de Pablo Lizcano.
Asís G. Ayerbe
capa
Luciana Facchini
ilustração de capa
Carla Barth
preparação
Silvia Massimini Felix
revisão
Jane Pessoa
Ana Alvares
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD 860