Psalles,+15+ +Camila+Fresca+p.+309 318
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Camila Fresca
Universidade de São Paulo/ Escola de Comunicações e Artes
camilafresca@gmail.com
Resumo: O presente artigo procura traçar um panorama do gênero canção dentro da produção do
compositor amazonense Claudio Santoro (1919-1989). Um dos maiores compositores brasileiros, Santoro
deixou mais de 500 obras, dentre as quais se encontram cerca de 60 canções, distribuídas ao longo de todo
o seu período produtivo. A partir das canções, é possível acompanhar as diferentes fases criativas pelas
quais Santoro passou. No entanto, com exceção dos dois ciclos feitos em parceria com o poeta Vinícius de
Moraes – as Canções de amor e as Três canções populares – as demais peças permanecem desconhecidas,
já que nunca foram editadas ou gravadas. O artigo parte de uma pesquisa feita para o registro de 31 dessas
canções, sendo 18 em primeira gravação mundial.
Palavras-chave: Canção de câmara brasileira; Claudio Santoro; Música brasileira do séc. XX; Canto e
piano.
Abstract: This article aims a general approach to the song genre within the production of Amazonian
composer Claudio Santoro (1919-1989). One of the greatest Brazilian composers, Santoro left more than
500 works, among which there are about 60 songs, distributed throughout his production period. From the
songs, it is possible to follow the different creative phases that Santoro went through. However, with the
exception of the two cycles composed in partnership with the poet Vinícius de Moraes – Canções de amor
and Três canções populares – the other pieces remain unknown, because they were never edited or
recorded. The article is part of a research done to record 31 of these songs, 18 of them in world première
recording. Keywords: Brazilian chamber song; Claudio Santoro; Brazilian music of the XX century; Voice
and piano.
Afirmar que Claudio Santoro é um dos maiores compositores brasileiros não é algo
que surpreenda. No entanto, apesar da importância de sua produção e do prestígio
internacional que ele desfrutou em vida, hoje pouco de suas obras encontram-se em
circulação. Esse cenário parece estar mudando por conta de seu centenário, em 2019, e
ainda por grandes projetos, como o que envolve a gravação de todas as suas 14 sinfonias1.
1
A integral das sinfonias de Claudio Santoro será gravada pela primeira vez pela Filarmônica de Goiás,
dentro do Projeto Brasil em Concerto, do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores). Os CDs serão
lançados internacionalmente pela gravadora Naxos.
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Com exceção dos dois ciclos feitos em parceria com Vinícius de Moraes, no
entanto, – os dois volumes das Canções de amor e as Três canções populares – as demais
canções nunca haviam sido gravadas. O disco em questão traz, além das 13 canções em
parceria com o poeta, outras 18 em primeira gravação mundial 2.
2
Completam o disco 13 peças para piano solo, incluindo, em primeira gravação mundial, Dança Rústica,
Batucada (No morro das duas bicas), Imitando Chopin e o Estudo n.2.
3
Há apenas mais uma canção composta por Claudio Santoro nessa época: Marguerite, de 1947, com texto
do poeta francês Louis Aragon. Esta peça estava desaparecida e foi localizada em julho de 2019, junto com
outras cinco canções, no acervo do tenor e pianista maranhense Hermelindo Castelo Branco (1922-1996).
A descoberta deveu-se ao trabalho de digitalização desse acervo, feito pelo Instituto Piano Brasileiro.
4
Alessandro Santoro concedeu uma entrevista a autora desse texto em agosto de 2019, para tratar das
canções de seu pai.
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canções, p. 309-318.
Recebido em 27/10/19; aprovado em 18/12/2019
incompletas e, estimulado por sua esposa, Gisèle Santoro, acabou por completá-las.
Curioso é que, ao voltar para terminar essas peças tanto tempo depois, ele se manteve fiel
à estética da época em que foram criadas.
Uma das implicações desse envolvimento foi não poder desfrutar de uma bolsa
concedida pela Fundação Guggenheim – seu visto foi negado pelo governo dos EUA. No
entanto, Santoro acaba agraciado por uma bolsa do governo francês, por recomendação
do regente Charles Münch. Segue para Paris em 8 de setembro de 1947, onde estuda
composição com Nadia Boulanger e regência com Eugène Bigot. É nesse mesmo ano que
compõe Não te digo adeus, primeira canção da chamada fase nacionalista e uma parceria
com outro comunista notório, o escritor Jorge Amado (1912-2001). Também são dessa
mesma fase, mas já na década de 1950, as canções feitas com o jornalista Ary de Andrade
(1913-2002) – Canção da fuga impossível, Irremediável canção e Levavas a madrugada
– e com o escritor e político mineiro Celso Brant (1920-2004) – Meu destino e A uma
mulher.
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alto-mar / Sabias que a rubra estrela já não tarda: aí está / Luz que venceu a procela nosso
povo guiará”, dizem os versos iniciais de Levavas a madrugada.
“Pour Lia”
5
Para maiores detalhes, conferir o recém lançado livro editado por Alessandro Santoro, com a integral dos
prelúdios para piano de Claudio Santoro (cf. bibliografia).
6
A informação consta na dissertação de Michele Salgado (p.27-28) e foi confirmada em depoimento por
Alessandro Santoro.
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FRESCA, Camila. A trajetória de Claudio Santoro a partir de suas
canções, p. 309-318.
Recebido em 27/10/19; aprovado em 18/12/2019
Claudio Santoro deixa a URSS e vai para Paris, onde espera inutilmente que Lia
consiga fugir para se juntar a ele. Trocam cartas apaixonadas, mas o plano não dá certo.
Enquanto aguarda, angustiado, a possível chegada de Lia, Santoro escrevia as tocantes
Canções de amor em parceria com o poeta e diplomata Vinícius de Moraes (1913-1980),
que também se encontrava na cidade. Além das dez canções, divididas em dois volumes,
a dupla também comporia as Três canções populares, igualmente tratando de amor (mais
tarde o próprio compositor afirmaria que a divisão em dois ciclos se deu com objetivo
meramente comercial).
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No que diz respeito ao texto, no entanto, é interessante perceber que nas letras das
Canções de amor Vinícius de Moraes utiliza ideias que seriam exploradas em seguida em
algumas das canções mais famosas da Bossa Nova. Em Bem pior que a morte (primeiro
volume do ciclo) o eu lírico afirma: “Oh, vem comigo / Lá onde existe a grande paz / O
amor em paz”. A ideia de “amor em paz” seria o título de uma canção célebre, O amor
em paz, parceria com Antonio Carlos Jobim, de 1960, na qual ele desenvolve a temática:
“Foi então / Que da minha infinita tristeza / Aconteceu você / Encontrei em você / A razão
de viver / E de amar em paz”.
Também o texto de Jardim noturno (segundo volume das Canções de amor) guarda
semelhança, sobretudo no início, com uma canção popular posterior: Primavera, de
7
A noite nunca está completa. /Sempre existe desde que eu o diga, / Desde que eu o afirme, / No final da
tristeza, / uma janela aberta / uma janela iluminada. / Há sempre um sonho antes, / desejo de preencher, /
com fome de satisfazer, / um coração generoso, / uma mão estendida, / uma mão aberta, / olhos atentos, /
uma vida: a vida para compartilhar [tradução nossa].
8
Uma análise mais aprofundada da relação harmônica entre as Canções de amor e a Bossa Nova pode ser
encontrada na dissertação de Michele Salgado, Canções de Amor de Cláudio Santoro: análise e
contextualização da obra (cf. bibliografia).
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canções, p. 309-318.
Recebido em 27/10/19; aprovado em 18/12/2019
Carlos Lyra, com texto do mesmo Vinícius de Moraes e composta em 1962 como uma
das canções do musical “Pobre menina rica”: “O meu amor sozinho/ É assim como um
jardim sem flor”, inicia-se o lamento de Primavera. Em Jardim noturno, temos: “Se meu
amor distante/ Eu sou como um jardim noturno”.
Com relação ao ciclo Três canções populares, outra parceria com Vinícius, vale
ainda registrar uma curiosa afinidade entre a Cantiga do ausente e a Toada pra você, de
Lorenzo Fernandez, escrita em 1928 a partir de texto de Mário de Andrade. A semelhança
está no ritmo inicial e no desenho melódico do piano de ambas as canções. Na Toada, a
figura (semicolcheia-colcheia-mínima) é um ostinato que organiza toda a peça. Na
Cantiga do ausente, a figura (colcheia-semínima-semibreve) que marca a introdução ao
piano volta em alguns momentos. Seria uma citação consciente, espécie de homenagem
de Santoro? Não custa lembrar que Lorenzo Fernandez foi seu primeiro professor de
harmonia no Rio de Janeiro.
****
Durante o prolífico período nacionalista, foram compostas diversas outras canções,
que não integraram o projeto do CD. São elas Poema (texto de Nair Batista, 1950); Elegia
(texto de Lila Ripoi, 1951); Chanson de la liberté (texto de Claudio Santoro, composta
em Berlim para a comemoração da revolução soviética, 1957); Chanson de la
melancholie (texto de Claudio Santoro, 1958); Berceuse (s/ autor identificado, 1958); O
cavalinho de pau (s/ autor identificado, 1958); Volar y volar (texto de Nicolas Guillén,
1958); La prière du marchand de sable (texto de Françoise Jonquière, 1958); Chanson
du marron (texto de Françoise Jonquière, 1959); No meio-fio da rua 9 (texto de Jeannete
H. Alimonda, 1960); e Tu vais ao mar (texto de Claudio Santoro, 1961).
9
No meio-fio da rua é outra das canções que estava desaparecida e foi localizada no acervo de Hermelindo
Castelo Branco, através do trabalho do Instituto Piano Brasileiro.
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É em 1960 que Claudio Santoro conhece a bailarina Gisèle, com quem se casaria
dali a três anos e que seria sua companheira até o final da vida. A empatia, no entanto,
parece ter sido imediata, já que é do mesmo ano uma canção de ambos: Meu amor me
disse adeus. Claudio Santoro usaria essa mesma música na ópera Alma, de 1985 – como
um dueto no terceiro ato e de forma instrumental ao final do quarto ato. Mais uma vez,
nos prelúdios para piano, encontram-se refletidos os momentos da vida do compositor –
as quatro últimas peças da mesma Segunda Série / Primeiro Caderno (Nos 9 a 12) são
“para Gisèle”.
Musicalmente, Meu amor me disse adeus ainda se insere no universo tonal, no que
pode ser considerado o final de sua fase nacionalista, que logo daria lugar a experiências
com música aleatória e eletrônica. Cronologicamente, a canção seguinte registrada no
disco é Eu não sei de 1966, parceria com o jurista e escritor Ribeiro da Costa (1897-
1967) 10. Mas, nesse momento, o compositor já caminha claramente em outra direção,
deixando para trás essa estética.
10
O magistrado Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa foi ministro do Supremo Tribunal Federal a partir de
1946. Em outubro de 1965, enquanto presidente do STF, escreveu artigo no qual afirmava que, em regimes
democráticos, não cabia aos militares "o papel de mentores da nação". A declaração foi o estopim para que
o governo militar baixasse o Ato Institucional nº 2, que aumentava de 11 para 16 o número de ministros do
STF.
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Recebido em 27/10/19; aprovado em 18/12/2019
Coerente com tais experimentações, Santoro escreve o Ciclo Brecht, composto por
cinco canções com texto de Bertold Brecht, sendo duas para voz e piano e três para voz
acompanhada por fita magnética. Essa é uma parte de sua produção que ainda aguarda
recuperação para que possamos conhecê-la, pois algumas das partes vocais precisam ser
localizadas e as fitas, restauradas 11.
Novamente, as canções têm papel proeminente – entre 1980 e 89, ano de sua morte,
foram compostas cerca de 20 canções para voz e piano, incluindo o hino oficial do estado
do Amazonas. São dessa fase, além do hino, Náiades (texto de Camões) e as nove canções
do ciclo O soldado, escritas em 1988 a partir do livro homônimo do escritor grego Alexis
Zakythinos (1934-1992)12.
Data de 1982 uma parceria com o poeta santista Cassiano Nunes (1921-2007), que
estudou na Universidade de Heidelberg, onde também lecionou literatura brasileira, além
de ter dado aulas na Universidade de Brasília. O ciclo Quatro canções da madrugada é
composto por quatro breves peças que tratam de amor.
Musicalmente, todas essas canções do último período são densas, escuras, e mesmo
pesadas. Não estamos mais no terreno da tonalidade – é possível falar em um pós-
11
Parte desse trabalho de recuperação começou a ser feito com o aparecimento das partes vocais de quatro
das canções do ciclo, também localizadas no acervo de Hermelindo Castelo Branco.
12
Estas peças não integram o CD que motivou esta pesquisa.
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tonalismo, uma estética madura e de grande originalidade. O período é marcado por certo
ecletismo, mesclando linguagens musicais desenvolvidas anteriormente.
Referências
NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.
PICCHI, Achille. A intenção nacionalista na canção de câmera: Toada pra você de Oscar Lorenzo
Fernandez. Música Theorica. Salvador: TeMA, 2017, p. 95-111.
SANTORO, Alessandro. Entrevista concedida à autora do texto em agosto de 2019. São Paulo,
áudio
SANTORO, Claudio. Prelúdios para piano: edição integral. Alessandro Santoro (editor).
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018.
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