Cartas para Paulo Freire, bell hooks e Frantz Fanon

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

C322

Cartas para Paulo Freire, bell hooks e Frantz Fanon /


Organização Atauan Soares de Queiroz... [et al.]. – São
Paulo: Pimenta Cultural, 2024.

Demais organizadores: Tânia Aparecida Kuhnen,
Marilde Queiroz Guedes, Cacilda Ferreira dos Reis.

Livro em PDF

ISBN 978-85-7221-220-5
DOI 10.31560/pimentacultural/978-85-7221-220-5

1. Carta. 2. Paulo Freire. 3. Bell Hooks. 4. Frantz Fanon.


5. Educação. I. Queiroz, Atauan Soares de (Org.). II.
Kuhnen, Tânia Aparecida (Org.). III. Guedes, Marilde
Queiroz (Org.). IV. Reis, Cacilda Ferreira dos (Org.). V. Título.

CDD 370.866

Índice para catálogo sistemático:


I. Educação - Cartas
Simone Sales • Bibliotecária • CRB ES-000814/O
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.

Copyright do texto © 2024 os autores e as autoras.

Copyright da edição © 2024 Pimenta Cultural.

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Tânia Aparecida Kuhnen
Marilde Queiroz Guedes
Cacilda Ferreira dos Reis

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Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Parecer e revisão por pares

Os textos que compõem esta


obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial
da Pimenta Cultural, bem como
revisados por pares, sendo
indicados para a publicação.
SUMÁRIO
Apresentação.............................................................................................17

Carta-prefácio............................................................................................19

CARTAS PARA PAULO FREIRE

Atauan Soares de Queiroz


Sobre estado de poesia, amor, esperança
e decolonialidade na Educação...........................................................22

Marilde Queiroz Guedes


A extensão no centenário de Paulo Freire:
possibilidades na ausência/presença...................................................................30

Eliana Ayoub
Carta para celebrar a esperança......................................................... 37

Daniella Taveira dos Prazeres


A palavra e o mundo:
ser professora é um ato de resistência!.................................................................45

Grazielle Matos dos Reis


Educação em tempos de incertezas:
uma reflexão crítica para Paulo Freire...................................................................53

Géssica de Souza Canaverde


Ser professor é exercer a humana docência................................... 57
Ivana Cristina Lovo
Do individual ao coletivo para alcançar o ser mais...................... 63

Olivia Rochadel
(Des)envidraçamento no contexto universitário:
a prática libertária de renovação dos instrumentos
de ensino-aprendizagem.....................................................................................71

Cristiane Gomes Oliveira Arraes de Almeida


Carta em homenagem a Paulo Freire................................................ 79

Antônia Maria Prado de Araujo


Carta para Paulo Freire..........................................................................84

Lucinete Teixeira dos Santos Sampaio


A Educação como ato político
de transformação e libertação.............................................................88

Nívia Barreto dos Anjos


Minha aproximação teórica, metodológica,
ética e política com Paulo Feire...........................................................92

Sabrina Gomes dos Santos Costa Leite


Entre o medo e a ousadia....................................................................100

Aúbe Soares de Queiroz Almeida


Minha primeira carta a Paulo Freire................................................. 106

Emilly Monteiro de Alcântara Silva


Tecendo conexões:
uma carta reflexiva a Paulo Freire sobre diálogo e consciência crítica.........................110

Eliara Marli Rosa


Carta a quem ousa esperançar...........................................................115
Kaonny Rodrigues da Silva
Carta aberta de diálogo e reflexão pedagógica........................... 123

Elisângela dos Santos Clementino


Carta de significação ao nosso
querido Paulo Freire!............................................................................. 127

Edinéia Alves Cruz


Sobre ser-me, em persistente esperançar,
atravessada por conscientização,
gentetude e boniteza............................................................................ 133

Marli Vieira Lins de Assis


“Paulo Freire para mim é tudo”!........................................................ 139

Tainara lima
Amor além da leitura............................................................................. 144

Floraci Mariano de Carvalho


Inteligência Artificial na Educação:
é possível negar ou inovar?............................................................................... 148

Ozenilde Santos do Nascimento


Encontro de almas, escritas e aprendizagens:
aprendendo com Paulo Freire............................................................................ 154

Priscila Ferreira de Carvalho


Os desafios atuais para contextualizar
aulas com abordagem freiriana para crianças.............................. 159

Alana Gabriela Barros de Araújo


Diálogo e mediação da aprendizagem escolar............................. 165
Raniely Souza Dourado
Reflexões de uma (quase) pedagoga
com medo da docência........................................................................ 170

José Nildo de Souza


Letras livres na socioeducação:
inspirações freireanas com jovens em restrição de liberdade................................. 176

Kêmily Alcântara Barreto


Vivências de uma monitoria de ensino............................................ 182

Joilton Lopes de Brito Lemos


Escola como espaço de reprodução
ou de transformação social?............................................................... 188

Lana Lima Pereira


A reexistência do fazer educativo
como prática de liberdade................................................................... 194

Marilza Pereira da Silva


A sombra das minhas memórias....................................................... 199

Terezinha Oliveira Santos


Do dia em que uma turma do 6º ano
silenciou um livro didático.................................................................. 206

Rosimaria Barbosa de Oliveira Moura


Ao grande educador, transmissor
de amor e esperança............................................................................. 210

Saoara Barbosa Costa Sotero


Escrevivências de uma professora-pesquisadora......................... 217

Lucirleide Rosa de Jesus


Do sonho à realidade........................................................................... 223
Elayne Santana Costa
Inclusão:
um olhar atento a partir do diálogo e da educação libertadora.............................. 229

Jaildes Andrade Barreto Rosendo


Gotas pedagógicas de um povo da
educação de jovens e adultos (EJA)................................................ 234

Ananda Lima Silva Arruda


O silêncio da Educação....................................................................... 238

Jônatas Medeiros Júnior


Sobre a desesperança gerada pela prática
conservadora disfarçada de Cristianismo..................................... 246

Adilma Vilela
Carta a Paulo Freire...............................................................................252

Cristino Cesário Rocha


Uma carta a Paulo Freire em tempo
de esperança negra.............................................................................. 256

Camila Trindade Coelho


Descolonizando a vida:
uma carta para Paulo Freire.............................................................................. 265

CARTAS PARA BELL HOOKS

Kátia Luzia Soares Oliveira


E hoje em dia, como dizer eu te amo
no ambiente escolar?............................................................................272

Bruna Moraes Battistelli


A docência como ferramenta de cuidado...................................... 280
Bárbara Magnani Rodrigues
Aprendendo a transgredir.................................................................. 288

Márcia Rasia Figueirêdo


Carta para Bell Hooks.......................................................................... 296

Guilherme Vasco Marques


Ensinando a evoluir.............................................................................. 302

Giovanna de Jesus Camargo


A vida entre o aprender e o ensinar................................................ 306

Danuza Kovaleski Machado


Por uma comunidade amorosa.......................................................... 310

Jenilza Rodrigues dos Santos


Sentidos das experiências vivenciadas
por Bell Hooks......................................................................................... 316

Mariana Almada Viana


É sobre o amor que habita em você
e chega até mim..................................................................................... 323

Thamires Gambôa dos Santos


Carta a uma antiga ancestral............................................................ 329

Maria Eduarda dos Santos


Uma carta sobre uma docência
inspirada em afetos.............................................................................. 336

Maria Ester Alves de Souza


Carta para Bell Hooks:
história de uma vida........................................................................................ 342
Luana Moreira Vieira
Sobre dizer, acolher e combater....................................................... 346

Carolina Cristina dos Santos Nobrega


Sobrevivência? Presente!................................................................... 352

Jacineide Arão dos Santos


Sonhos:
fio condutor do meu estar no mundo................................................................. 360

Margareth Maura dos Santos


Aprender a ser feminista sendo negra
ao erguer minha voz............................................................................. 366

Maria Eduarda Alves Sousa


Carta para Gloria Jean Watkins
em sua versão bell hooks.................................................................... 371

Daniele do Nascimento Silva


Amores em movimento.........................................................................375

Luciana Dantas de Paula


Carta para bell hooks:
educação, liberdade e amor..............................................................................379

Emanuelle da Silva Oliveira


Escolher sentir....................................................................................... 385

Roberta da Silva Gomes


Coletivo bell hooks:
aquilombamento e possibilidade de (re)existência.............................................. 390

Juliana Oliveira Albuquerque de Souza


Sigamos juntas!..................................................................................... 396
Marifainy Mendes da Silva
Reflexões de uma buscadora de sabedoria:
uma carta para bell hooks.................................................................................401

Raiane Medeiros Pinheiro


Registros de uma caminhada:
eterna aluna, eventual professora...................................................................... 404

Taila Jesus da Silva Oliveira


À bell hooks, com carinho:
em defesa do bem-estar em sala de aula............................................................ 412

Quessia Karina Garcia


Trajetórias de aprendizagem inspiradas
por bell hooks:
uma carta reflexiva........................................................................................... 418

CARTAS PARA FRANTZ FANON

Cacilda Ferreira dos Reis


Saúde mental e juventude negra:
uma reflexão a partir de Frantz Fanon.................................................................424

Edvânio Campos Macedo


Letras negras, crítica branca:
o eu, a zona do não-ser e uma pesquisa encarnada............................................. 434

Maria Divina Pereira Bomfim


Um dedo de prosa com Fanon.......................................................... 438

Helder Souza da Silva


Reflexões decolonais de luta
e resistência em Frantz Fanon.......................................................... 445
Pedro Neves Gonçalves Franco de Carvalho
Raça, classe e rap nas subjetividades
das gerações passadas, presente e futuras................................... 451

Olga Maciel Ferreira


Humanidade incerta:
dificuldades na construção do eu de uma pessoa racializada............................... 458

Vitor Igor Fernandes Ramos


“Mamãe, olhe... um negro”:
carta a um amigo ancestral.............................................................................. 462

Marília Claudia Favreto Sinãni


Por uma práxis revolucionária em diálogo
com Frantz Fanon................................................................................. 469

Paula Machava
Tributo a Fanon:
emancipação e consciência em Moçambique......................................................476

Eliane Costa Santos


Carta a Fanon......................................................................................... 480

Áquila da Anunciação Camargo


Sangue negro, pele clara.....................................................................487

Sobre os organizadores e as organizadoras.................................. 492


APRESENTAÇÃO
Com muita alegria, compartilhamos esta obra1 que home-
nageia três grandes pessoas autoras do pensamento crítico - Paulo
Freire, bell hooks2 e Frantz Fanon - por meio da produção de cartas
reflexivas, autorais e criativas.

Freire, hooks e Fanon deixaram legado incomensurável no


campo das Ciências Humanas e Sociais, contribuindo para o desen-
volvimento do pensamento crítico e revolucionário e para as lutas
sociais. A escrita de cartas foi uma prática constante na vida des-
ses/a autores/a, inclusive com publicações que se tornaram bastante
conhecidas, como Cartas a Guiné-Bissau, de Paulo Freire, e a Carta à
juventude africana, de Frantz Fanon. Por isso, elegemos esse gênero
textual, profundamente dialógico e mágico, para homenageá-los/a e
para compor os capítulos do e-book.

As setenta e nove cartas reunidas nesta publicação compar-


tilham leituras, práticas e experiências que problematizam/contes-
tam sistemas de opressão relacionados à raça, etnia, classe, gênero,
corporalidade, nacionalidade, geração, entre outros marcadores
sociais. Acreditamos que o pensamento crítico e decolonial é um
caminho viável para corazonarmos as epistemologias dominantes e
para construirmos e vislumbrarmos práticas de resistência, de reexis-
tência, de (auto)cuidado, do bem viver e do bem comum.

1 Esta obra foi financiada com recurso da Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação do
Instituto Federal da Bahia (Edital n. 10/2024/PRPGI/IFBA).
2 bell hooks assina seu nome com letras minúsculas para sugerir movimento e, também, para se
distanciar da identidade que mais se apega, que é Gloria Watkins (nome verdadeiro), criando um
outro eu (Hooks, 2013).

SUMÁRIO 17
Docentes da educação básica e do ensino superior, profis-
sionais da educação, pesquisadoras/es e estudantes da graduação
e da pós-graduação produziram as cartas reflexivas que compõem
esta obra. Por meio das cartas reflexivas, as pessoas autoras con-
tam para Paulo Freire, bell hooks e Frantz Fanon, suas experiências
pessoais, profissionais e acadêmicas, focalizando a produção de
inéditos viáveis, a construção dos processos de descolonização de
conhecimentos em diferentes contextos, os movimentos e as ações
contra diferentes formas de discriminação e opressão, e o estabele-
cimento do amor e da esperança como elementos centrais e sulea-
dores da vida social.

O e-book é uma ação conjunta do Grupo de Estudo e


Pesquisa em Linguagens e Educação, vinculado ao Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Geline/IFBA); do
Marginais: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre Minorias e
Exclusão, vinculado à Universidade Federal do Oeste da Bahia
(Marginais/UFOB); e da Academia Barreirense de Letras (ABL).
Para nós, é uma honra assumir a organização desta publicação3. Por
meio desta obra, buscamos incentivar o exercício da reflexão crítica,
da imaginação, da criatividade, da escrita colaborativa e do diálogo
transgressivo para a transformação social.

Prof. Dr. Atauan Soares de Queiroz


Profa. Dra. Tânia Aparecida Kuhnen
Profa. Dra. Marilde Queiroz Guedes
Profa. Dra. Cacilda Ferreira dos Reis

3 Esta obra também apresenta textos resultantes do projeto de pesquisa Práticas discursivas para
o bem viver, cadastrado e homologado na PRPGI/IFBA, no módulo Pesquisa da Plataforma SUAP,
em conformidade com Edital nº 16/2021/PRPGI, de 14 de outubro de 2021 (Edital de Pesquisa/
Inovação Contínuo).

SUMÁRIO 18
CARTA-PREFÁCIO
Lleida, 9 de mayo 2024

Querid@ lector@,

Las cartas son mágicas. No sólo permiten comunicarnos en la


distancia, sino que, además, actúan como un vehículo de producción
de la subjetividad y creación de interconexiones personales, profe-
sionales, políticas e intelectuales. Conexiones que las convierten en
un instrumento de vivencias, diálogos, aprendizajes, resistencias, y
emancipaciones infinitas, como infinitas son las cadenas de cartas
que forman los diálogos epistolares.

Es desde la magia de la carta que te doy la bienvenida, en


nombre de la comunidad de afectos que lo tejen, a este viaje epis-
tolar que, a lo largo de sus páginas, rinden homenaje a tres figuras
fundamentales del pensamiento crítico: Paulo Freire, bell hooks y
Frantz Fanon. Representantes de la lucha en pro de la negritud, la
decolonialización, la justicia y la liberación, también encarnan el com-
promiso para con la educación como herramienta de transformación,
inclusión, equidad, y justicia. A través de sus cartas, los remitentes
de esta comunidad exploran, en forma de diálogo epistolar dirigido
a estos pensadores, sus existencias, super/vivencias, incertezas,
desafíos, miedos, sueños y esperanzas proyectadas en el poder
emancipante de la educación. Cada carta es una ventana abierta a la
intimidad y la sabiduría del pensamiento reflexivo y crítico de quienes
la firman, pero también es una llamada a la imaginación, a la osadía,
y a la acción, individual y colectiva.

SUMÁRIO 19
Déjate llevar por este periplo epistolar, intelectual y emocional,
que, cobrando vida a través de papel, te hará descubrir y recorrer trayec-
torias personales y profesionales militantes, cotidianas y perseverantes.
Al embarcarte en esta aventura, te invito a que te conviertas en parte
de esta conversación, haciéndonos llegar tus cartas para perpetuar
la magia de la epistolaridad.

Con cariño y desde el cuidado, deseo que disfrutes de la travesía,

Meritxell Simon-Martin

SUMÁRIO 20
CARTAS PARA
PAULO FREIRE
Atauan Soares de Queiroz

SOBRE ESTADO DE POESIA,


AMOR, ESPERANÇA
E DECOLONIALIDADE
NA EDUCAÇÃO
Caro Paulo Freire,

Escrevo-lhe para quebrar esses longos anos de silêncio


envolvido nas elucubrações suscitadas pela leitura de suas obras.
Embora não me conheça, achei que seria do seu agrado ler um
pouco sobre como se deu meu encontro com você e de como esse
encontro me tocou e me transforma.

Meu primeiro diálogo com seus textos foi antes da virada do


milênio, quando cursava o magistério aqui em Barreiras, cidade do
interior da Bahia. Lembro-me como se fosse hoje de folhear aquelas
páginas um pouco amareladas de uma das edições de Pedagogia
da Autonomia (Freire, 1996). Sua expertise e sabedoria foram os
elementos composicionais da obra que mais me marcaram naquele
momento. A impressão que tinha era de que estava lendo uma ode
prosopoética filosófica sobre teoria do ensino. Como seria possível
teorizar de forma tão sensível o exercício do magistério, com lições
potentes sobre ética e esperança, unindo amor e política? Lembro-me
de cor de alguns dos saberes necessários à prática educativa: “ensi-
nar exige rigorosidade metódica”, “ensinar exige a corporeificação da
palavra pelo exemplo”, “ensinar exige estética e ética” e “ensinar exige
querer bem aos educandos”.

Aquela escrita prosopoética, ancorada de forma complexa em


bases epistemológicas de natureza materialista e fenomenológica,
era bastante provocativa. Reflexões sofisticadas sobre os efeitos do
capitalismo na educação e reflexões existencialistas dialógicas sobre
alteridade e subjetividade. Lembro-me que até a foto da criança com
olhar distante na capa do livro me fazia interrogar várias questões
relacionadas ao campo da Educação, sobretudo sobre as funções
socioculturais da escola e o papel do/a professor/a na construção
dos projetos de vida das pessoas. Eu pensava que tudo que seu livro
queria era mudar a expressão daquela criança. Não sei se haveria
alguma expressão ideal. Certamente não era aquela.

SUMÁRIO 23
Nosso diálogo se manteve franco e honesto ao longo dos
anos. Às vezes mais intenso, às vezes mais tímido. Sempre havia
também, aqui e acolá, alguma colega de trabalho ou profissional
da educação que dialogava com suas obras, em reuniões pedagó-
gicas, encontros de sindicato, conversas no corredor da escola ou
comentários em eventos. Trazer suas ideias para esses encontros
dialógicos era uma espécie de convite para dar continuidade à lei-
turas de seus textos.

Para mim, qualquer pessoa que citasse Paulo Freire estava


muito bem acompanhada. Quando isso acontecia, a impressão que
eu tinha era que o discurso saía do status de mera retórica. Não digo
isso para que fique orgulhoso, até porque imagino que você deve
afastar reação dessa natureza, mas para dizer-lhe que quem o lê e
o cita constrói um ethos discursivo de si engajado e sensível, que
sempre toca a pessoa ouvinte ou leitora.

Meus anos se passaram cheios de projetos, metas e afazeres,


e meu diálogo teórico, político e amoroso com suas obras se fortale-
ceu, de fato, por conta própria e, principalmente, na pós-graduação,
quando conheci pessoas muito queridas, na Universidade Federal
da Bahia (UFBA) e na Universidade de Brasília (UnB). Essas pes-
soas, sempre, de algum modo, te traziam para o debate acadêmico,
a escrita de teses e dissertações, a elaboração de algum seminário, a
conversa no café ou restaurante. Achava esse movimento de revisitar
sua obra criticamente na pós-graduação muito coerente e necessá-
rio. Apesar de o forte discurso de relevância e atualidade em relação
às publicações predominar no contexto universitário, estávamos
fazendo um movimento insurgente e interessante: revisitar obras de
décadas anteriores, extraindo delas ensinamentos e reflexões para
entendermos o mundo hoje.

Saiba que suas ideias, obras e projetos continuam reverbe-


rando por aqui, no Brasil e no mundo, apesar de os tempos atuais
estarem muito estranhos. Horror, barbárie e morte banalizados em

SUMÁRIO 24
diversos cantos do mundo. Surpreendemente, o capitalismo neo-
liberal tem, na atualidade, sustentado um casamento trágico com
forças reacionárias e conservadoras. Isso mostra, também, que o
capitalismo é tanto um projeto econômico de destruição do planeta
e de precarização da existência, quanto um barco que fica à deriva e,
de repente, estaciona em portos inóspitos. Não vou esmiuçar esses
processos violentos que, em última instância, capturam até mesmo
nossas forças vitais. Fiz somente para circunstanciar minha escrita e
para situá-lo um pouco sobre o atual estado das coisas. Nessas pou-
cas linhas, acho melhor falar de como você nos incentiva a pensar,
mesmo em tempos difíceis, em práticas de resistência, reexistência
e em decolonização4.

Sua obra, caro Paulo, tem sido uma fonte de inspiração para
mim, como professor, pesquisador e cidadão, subsidiando-me a
aprofundar a compreensão sobre debates sociais e culturais mais
amplos, de forma crítica e emancipatória. Atualmente, tenho investi-
gado e escrito sobre o pensamento decolonial, sobretudo no campo
da Educação. Colonialidade tornou-se uma palavra-chave para
entendermos melhor o modo como o capitalismo se apresenta hoje e
como a modernidade se constitui. Toda vez que explano sobre o pen-
samento decolonial, trago suas obras como leituras indispensáveis.

Algumas pessoas dizem que você é um autor pós-colonial.


Sem dúvida, não se trata de dar uma suposta “classificação” para
você e suas obras, em termos teóricos, e sim de entender com quais
ferramentas se constrói sua crítica, suas ideias e sua luta. As refle-
xões em Pedagogia do Oprimido (Freire, 1968), por exemplo, conti-
nuam atuais e necessárias para problematizarmos a colonialidade

4 Utilizo a forma decolonial, sem a letra “s”, conforme reflexão de Catherine Walsh (2013, p. 25),
em Pedagogías Decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir e (re)vivir: “coloco em
evidência que não existe um estado nulo da colonialidade, mas posturas, posicionamentos,
horizontes e projetos de resistir, transgredir, intervir, insurgir, criar e incidir. O decolonial denota,
então, um caminho de luta contínua na qual se pode identificar, visibilizar e encorajar “lugares” e
construções alter-(n)ativas” (tradução livre).

SUMÁRIO 25
do saber-poder-ser e suas consequentes ressonâncias no campo
da Educação. Vejo tal obra como originariamente decolonial:
uma reflexão crítica do Sul global para o mundo, produzida por
um professor progressista, nordestino, de um país violentamente
colonizado por europeus.

Certamente, suas obras nos ajudam a entender a coloniali-


dade e a fabular/construir práticas de decolonização. Afinal, precisa-
mos decolonizar escolas, universidades, currículo, práticas pedagó-
gicas, identidades, subjetividades, sexualidades, agências, sistemas
de conhecimento e relações sociais (Queiroz, 2024). Você nos dá
pistas valiosas de como fazer isso a partir da Educação.

Creio que um dos maiores desafios nesse processo de deco-


lonização é decolonizar o inconsciente, esse labirinto com poucas
portas de saída. Na esteira de Suely Rolnik (2018), suspeito que uma
das formas de decolonizar o inconsciente está exatamente nas artes,
na literatura e na poesia. Como Paulo é um autor crítico, mas tam-
bém um autor-poesia, vejo que você tem mais pistas ainda para nos
dar. As artes, a literatura e a poesia, podem ser portas de saída do
labirinto do inconsciente, o princípio da decolonização.

Trago o tema da arte neste momento, também, porque ulti-


mamente tenho estado em estado de poesia. Sempre que me reco-
necto profundamente comigo entro nesse estado. Diria que se trata
de um processo reflexivo baseado numa ética poética. No mês pas-
sado (agosto), completei quarenta voltas ao redor do sol e isso me
tem deixado continuamente reflexivo, mais do que o habitual. Sinto
que, cada vez mais, acolho aquela criança que me habita ao passo
que reconheço/abandono paulatinamente as máscaras construídas
ao longo da vida. Daí tenho pensado em decolonização e poesia.
Decolonizar pela poesia para pensar amor e esperança em nossa
vida, em nosso tempo. Penso que o estado de poesia é um estado
de pergunta e de contemplação que nos coloca no limiar do mate-
rial e do espiritual, entre sonho e realidade, instinto e consciência,

SUMÁRIO 26
individualidade e coletividade, linhas duras e linhas flexíveis. Linhas
de fuga. Esse estado de poesia interroga nossa garganta, ninho da
palavra, como dizem os guaranis, e faz a alma a falar.

Surpreso fiquei e surpreso continuo porque nem a rotina que,


muitas vezes, ganha matizes de cinza nem as burocracias do coti-
diano me fizeram esquivar do prazer que é estar em estado de poe-
sia. O estado de poesia me acompanha na observação do detalhe,
no falar-abraço, tocar-ventania, escutar-janela e sentir-rio. Tateando
sentidos ocultos, enveredando pelas camadas mais profundas dos
textos e vendo o que o senhor dos destinos ora me entrega, construo
portas de saída no labirinto para me decolonizar paulatinamente.

Baseando-me em suas premissas decoloniais, caro Freire,


em seu diálogo criativo com Sartre e com Marx, não procuro pontes
nem muros. Não. Chega disso ou daquilo. “O que procuro ainda não
tem nome,” como diria Clarice. Nem sei se terá, seja aqui e agora ou
nos próximos quarenta anos. Nesse exercício reflexivo e ético-poé-
tico de decolonizar o inconsciente, escrevi, no dia do meu aniversá-
rio, num livre exercício de escrita, espécie de fluxo de consciência, as
palavras que seguem:

A vida me tem ensinado a não abrir portas, mas a construir


portas, janelas, becos e desvios. Por que não trens que atravessam
rios e barcos que furam montanhas? O avesso do avesso? Vida é
tatuagem sem decalque, com calma e com tempo, sem receio de
ferir. Vida é paradoxo sem fim. Nebulosa que acolhe e convida: “trou-
xeste a chave?” Qual chave? A do tamanho? Ou aquela que abriu
o cavalo de troia? Não, aquela que abre mistério. Resposta é vazio.
Pergunta é o que importa.

Estado de poesia faz isso com as pessoas. Embaralha e


confunde para explicar. Não inventemos de procurar explicações.
Essas, inclusive, ficaram para os 20, 30 anos. O que me inquieta e
me move está na busca pelo que não sei: pedagogia da pergunta.

SUMÁRIO 27
Estado de poesia é assim, prazer irremediável pela fabricação de
sentidos abertos e inconclusos. As metáforas sombreiam o caminho
e de repente da garganta brota a palavra seminal, potente, desejosa
de papel ou tela. Só quer vir para este mundo. Gestação e parto ao
mesmo tempo. Talvez a gestação seja do poeta, o verbo sempre esteve
lá, não imóvel, muda de lugar e de forma também. Não esperemos
previsibilidades. Estado de poesia só joga com o imprevisível. Desenha
caminhos do “desver”.

Que tal, caro Paulo? Creio que está sorrindo dos meus deva-
neios poético-caóticos. Mas não é do caos que surge a estrela dan-
çante, como diria o filósofo? Esse lampejo prosopoético me parece
ajudar a refletir de forma pragmática sobre a decolonização do
inconsciente. Nunca duvidei das forças dos movimentos micropolí-
ticos para sacudir a pasmaceira do cotidiano. Na verdade, cada vez
mais aposto nas potências das microrresistências no plano micros-
social, as quais vão gerando microrressonâncias nas macropolíticas
e no cenário macrossocial.

A Educação, sem dúvida, é uma área da vida onde podemos


construir movimentos micropolíticos efetivos de decolonização.
Decolonizar, poeticamente, a formação humana é um dos caminhos
incontornáveis para fazermos justiça cognitiva e para enfrentarmos,
com pés no chão, o racismo e o sexismo epistêmico, as situações de
desvantagem social, as discriminações e as opressões. Reabitar suas
ideias, afetuosamente, é fundamental para que isso aconteça.

Ler você hoje, Paulo, é mais que necessário, por diferentes


razões. A grandeza do seu pensamento contribuiu e contribui muito
para a construção de uma humanidade outra. Você é um pensador
essencial para descortinarmos novas formas de fazer educação e para
compreendermos criticamente a necessidade de uma ética poética
amorosa de/para/sobre o bem viver, o bem comum, a humanização e
a libertação. Sua produção intelectual possibilita a formação de leito-
res e leitoras sensíveis e abertos/as para se compreenderem melhor
e compreenderem o outro, o mundo e o atual estado das coisas.

SUMÁRIO 28
Certamente, precisamos estar sempre imbuídos no exercício de pro-
blematizar, ressignificar e reinventar suas ideias. Sabemos que era
exatamente isso que você defendia, a recriação das ideias, situando
socio-historicamente as práticas de libertação e de decolonização.

Caro Paulo, seguimos esperançando por um mundo com


mais livros e mais poesia, na luta pelo livre desenvolvimento inte-
lectual, político, ético, estético e poético da humanidade. Seguimos
esperançando por vidas vivíveis e pelo bem viver.

Um abraço afetuoso.

Atauan

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 39.ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2009 (1996).

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 [1968].

QUEIROZ, A. S. O que é decolonialidade? Por que e para que decolonizar? O giro


decolonial na Educação. In: QUEIROZ, A. S. (et al). Práticas discursivas para o bem
viver: decolonizando saberes. São Paulo: Pimenta cultural, 2024.

ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. 2.ed. São
Paulo: n-1 edições, 2018.

SUMÁRIO 29
Marilde Queiroz Guedes

A EXTENSÃO
NO CENTENÁRIO
DE PAULO FREIRE:
POSSIBILIDADES
NA AUSÊNCIA/PRESENÇA
Caríssimo professor Paulo Freire,

Essa pequenina carta é para externar a minha admiração


e carinho pelo ser humano, educador, referência mundial da edu-
cação humanizadora e libertadora, que fostes, és e serás. Antes do
conteúdo específico, uma revelação pessoal: sou escriba desde que
me alfabetizei, nos idos dos anos de 1960 do Século XX. Lembras
do filme Central do Brasil, lançado em 1998, direção de Walter
Salles? Me vi na personagem Dora, interpretada pela atriz Fernanda
Montenegro, mas nunca cobrei, como fazia a personagem. Adoro
fazer cartas. E mais, as uso como recurso metodológico na minha
prática docente e pedagógica.

Como posto no título, sua ausência/presença continua muito


forte entre nós. De igual modo, para lhe falar do Projeto de Extensão
que estamos desenvolvendo há três anos. Em 2023, na terceira edi-
ção, tem foco especial sobre a vossa pedagogia. Todavia, nessa pri-
meira carta, porque escreverei outras tantas, vou me deter na primeira
edição realizada em 2021, data do centenário do seu nascimento.

Essa data histórica, para a educação brasileira, foi o ponto de


partida para continuarmos lendo, relendo, revivendo, reinterpretando,
reinventando suas ideias, seus ensinamentos e sua amorosidade.
Afinal, este é o pedido que sempre nos fez. Além do que, não pode-
ria deixar de lhe prestar homenagens nessa data tão especial, data
em que o Brasil e tantos outros países, mundo a fora, renderam-lhe
celebrações, comemorações, irmanados pelos sentimentos de espe-
rança, fé, união, luta que nos impulsionam, a partir do seu legado.

Professor Freire, desde que passei a atuar no ensino supe-


rior, e faz um bom tempo, precisamente em 1990, compreendo com
mais clareza o imbricamento do tripé ensino-pesquisa-extensão, e
procuro aproximar minha prática pedagógica de forma a manter este
tripé integrado organicamente e em evidência, ambos se retroali-
mentando. Parto da ideia freireana que “ensinar é uma especificidade

SUMÁRIO 31
humana que exige segurança, competência profissional e generosi-
dade” (Freire, 1996, p. 102). Assim, comungo com a ideia que o ensino
deve estar voltado para uma concepção formativa, que articule indis-
sociavelmente a teoria e a prática, dentro de uma visão sócio-histó-
rica, emancipadora e inclusiva.

Ademais, a pesquisa é a base da compreensão da docência


e da produção de conhecimentos para produção de novos saberes.
Quanto à extensão, é uma dimensão indissociável da pesquisa, com
o potencial de possibilitar a integração universidade escola. É um
procedimento formativo, cultural, integrador e dialógico, necessário
ao desenvolvimento do sujeito político, ético e cidadão. Outrossim,
oportuniza aos estudantes aprofundamento de sua formação acadê-
mica, vivências em programas que podem melhorar seu desenvol-
vimento e as condições de vida de uma dada comunidade. Aprendi
tudo isso, inclusive o linguajar, nas várias obras que publicastes.

Com essa visão, por ocasião do centenário, supramencionado,


lancei no interior do componente curricular: Currículo, no curso de
Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Campus IX,
o Projeto de Extensão intitulado: Esperança, Diálogo e Amorosidade:
categorias reflexivas do Centenário de Paulo Freire, com o objetivo de
refletir com professores, pesquisadores e estudantes da graduação,
em especial, sobre essas categorias, à luz do vosso pensamento, na
perspectiva de busca permanente de uma educação humanizadora,
dialógica e libertadora.

Considero de suma relevância manter viva sua presença


entre nós, porém, isso só é possível com ações concretas de rein-
venção do que sempre defendestes: uma educação democrática
e humanizadora em que a esperança, o diálogo e a amorosidade
sejam seus fundamentos básicos.

Sabemos que o diálogo é um elemento intrínseco à natureza


humana, tão bem explicitado em seus escritos, como processo de
humanização dos sujeitos. Por isso, todas as suas obras trazem o

SUMÁRIO 32
diálogo como preocupação permanente. O diálogo com respeito
às diferenças de ideias e posições, quanto a necessidade humana
de comunicação social é um imperativo na prática freireana. Pois, o
diálogo, em suas palavras, “nasce de uma matriz crítica e gera cri-
ticidade. Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da
confiança (...). Só o diálogo comunica” (Freire, 1989, p. 107). Nesta
citação, percebo o entrelaçamento do diálogo com a esperança e a
amorosidade, categorias também presentes no Projeto.

Desculpa-me, professor Paulo, sinto necessidade de rati-


ficar, a atividade extensionista nos oportunizou celebrar, comemo-
rar, rememorar sua memória, seu legado, seus ensinamentos, suas
pedagogias (do oprimido, da indignação, da pergunta, da escuta,
da tolerância, da correspondência, da autonomia, da esperança,
dos sonhos possíveis).

Essa é uma forma que encontrei de tornar sua ausência em


presença em nosso meio. Como pontua seu grande amigo e suces-
sor, na gestão da educação de São Paulo, nos anos 1989-1991, Mário
Sérgio Cortella (2008, p. 17-18), “comemorar antes de mais nada é
celebrar (...) algo que se deseja que fique célebre, que fique na nossa
história”. Freire é um pensador que faz parte da história da educação
brasileira, e de tantos outros países mundo a fora.

Há que se destacar a vitalidade e a atualidade da sua obra,


professor, em tempos tão difíceis como os que temos vividos nos
últimos anos, temporalmente, (2016-2022) do Século XXI, em que a
educação e suas instituições e profissionais têm sofrido ataques de
várias naturezas, os discursos de ódio, obscurantismo, negação da
ciência e desprezo pela vida têm ecoado fortemente, por parte de
muitos governantes e lideranças políticas. No entanto, resistimos, na
defesa de um mundo mais justo socialmente.

Por isso, na minha percepção, a importância de revisitar-


mos o teu pensamento, e pensarmos no “Inédito Viável”, como pos-
sibilidade de pensar e construir um outro futuro para as próximas

SUMÁRIO 33
gerações. “Esse foco no “inédito viável”, aquilo que ainda não é, mas
pode e deve ser, na visão freireana tem como única possibilidade o
potiron, ou seja, de mãos juntas”. (Cortella, 2008, p. 20). Pois, como
diz Nóvoa (1999), um dos seus leitores, o futuro é hoje, não é possí-
vel postergar a sua construção. O construímos no presente, com as
condições que são dadas.

Quanto às três categorias escolhidas para iluminar todas as


reflexões e ações durante a execução do Projeto, ao nosso olhar,
são categorias básicas dos escritos freireanos, que também sempre
estiveram presentes em sua práxis. Em suas palavras: “se não amo o
mundo, se não amo os homens, não me é possível o diálogo” (Freire,
1989, p. 80). Percebemos a força da amorosidade freireana para com
a humanidade, e só com ela é possível estabelecer o diálogo. Uma
amorosidade competente, com uma formação de qualidade, com-
prometida com a realidade social que nos cerca.

Como sabemos, o diálogo é uma especificidade humana,


criadora da sua condição existencial. Em Pedagogia do Oprimido
(1983), tu propões que a educação tenha um caráter dialogal. Quando
a educação assume uma função dialógica e de libertação, demons-
tra uma significativa capacidade de conscientização social, haja vista
a potencialidade de promover o desenvolvimento de uma sociedade
mais humana, crítica, inclusiva e menos preconceituosa.

No entanto, para que o diálogo se constitua com este caráter,


nos lembra, mais uma vez, que ele deve ser constituído pelo amor,
pela humildade, pela esperança. Esperança de esperançar, de agir.
“Esperançar é ir atrás, é se juntar, é não desistir. Esperançar é for-
talecer a capacidade vital, é construir utopias (Cortella, 2014, p. 36).

Enfim, com a vitalidade e atualidade dessas ideias, princípios


fundantes do vosso pensamento, perspectivamos, no ano (2021) de
celebração e homenagens, revigorar nossa esperança na educação.
É preciso ter esperança porque “a esperança é a alma da educação.

SUMÁRIO 34
Não houvesse esperança, a educação não faria nenhum sentido,
pois é a esperança que carrega adiante os ideais humanos” (Dias
Sobrinho, 2016, p. 17).

Em tempos de aridez nas diversas dimensões da vida social


e humana, a educação tornou-se uma esperança, uma possibilidade
para enfrentar os desafios postos à sociedade, reconstruir os valores
éticos, ressignificar as relações interpessoais e restabelecer o diá-
logo entre os diferentes grupos sociais, étnicos e culturais.

Para finalizar, aproveito para lhe informar que, desde o mês


de janeiro/2023, estamos com novo governo na esfera federal.
Governo do PT, partido que o professor ajudou a fundar. Estamos
esperançosos em dias melhores para a educação e seus profissio-
nais, assim como, para as outras áreas sociais, tão carentes de polí-
ticas públicas. É fato, enfrentamos muitas situações-limite, até fake
news, acreditas, meu professor?

Bem, não é possível lhe contar tudo nessa breve carta, mas
essa boniteza tenho que registrar, a obra que publicamos em 2022,
“Educação e Mudança Social: o legado de Paulo Freire, pela Editora
Pimenta Cultural, fruto das leituras, reflexões e discussões dos auto-
res que colaboraram com a primeira edição do Projeto.

Confesso que não foi tarefa fácil, porém, altamente praze-


rosa; materializamos algumas de nossas crenças, visões de mundo,
sonhos e utopias, iluminados/as por suas ideias e ensinamentos, que
nos orientam a compreender e agir frente à realidade. Melhor dizendo,
perspectivar o “Inédito Viável” uma de suas categorias máximas.

Estimado Freire, você (com muito respeito) foi, é e sempre


será inspiração, orientação, problematização e iluminação para uma
prática pedagógica crítica, dialógica, amorosa e comprometida com
os “esfarrapados” do mundo.

Paulo Freire ausência/presença entre nós!

SUMÁRIO 35
Barreiras, 15 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
CORTELLA, M. S. Educação, escola e docência: novos tempos, novas atitudes. São
Paulo: Cortez, 2014.

CORTELLA, M. S. Vida maiúscula. In: GADOTTI, M. (org.). 40 olhares sobre os 40 anos da


Pedagogia do oprimido. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2008.

CORTELLA, M. S. Paulo Freire: utopias e lembranças. In: PERES, E. et al. (org.). Processos
de ensinar e aprender: sujeitos, currículos e cultura, livro 3. Porto Alegre: Edipucrs,
2008, p. 17-32.

DIAS SOBRINHO, J. Autonomia, formação e responsabilidade social: finalidades


essenciais da universidade. In: Forges. Ilhéus-Ba, vol. 4, nº 2, p. 13-30, 2016.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 19.ed. 1989.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1983.

SUMÁRIO 36
Eliana Ayoub

CARTA
PARA CELEBRAR
A ESPERANÇA
Querido Paulo Freire,

Inicio a escrita desta carta com o coração pulsando de alegria


por fazer parte dessa homenagem tão especial que as(os) organiza-
doras(es) deste livro estão fazendo a você, à bell hooks e a Frantz
Fanon. E já vou pedindo licença para chamá-lo de você, pois o faço
com um tom de respeito e carinho, uma vez que convivo com seus
ensinamentos há muitos anos, o que me traz um sentimento de muita
proximidade entre nós, embora tenhamos nos encontrado pessoal-
mente apenas uma vez, nos corredores da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo em 1988 (cujo registro desse encontro eu
guardo em um dos meus preciosos álbuns de fotografia).

Você, bell hooks e Frantz Fanon em uma mesma obra!


Quanta gente importante reunida! Importante no sentido de que se
importam com a vida, com a educação, com a justiça social, com a
igualdade de direitos entre todas(os), independentemente de classe
social, gênero ou raça; de que se importam com todas as pessoas,
em especial com os(as) mais pobres, os(as) despossuídas(os), os(as)
esfarrapados(as) do mundo, os(as) condenados(as) da terra.

Com bell hooks, seus encontros e diálogos foram intensos e


de muitos aprendizados para ambas as partes, resultando inclusive
na escrita por ela de uma “Trilogia do Ensino”: em 1994, “Ensinando
a Transgredir: a educação como prática da liberdade” (Hooks, 2013);
em 2003, “Ensinando comunidade: uma pedagogia da Esperança”
(Hooks, 2021); e, em 2010, “Ensinando pensamento crítico: sabedoria
prática” (Hooks, 2020).

Já com Frantz Fanon, as aproximações foram por meio da


leitura do livro “Os Condenados da Terra” (Fanon, 1968), uma vez
que vocês não se conheceram pessoalmente. De acordo com Vivian
Dias (2021), ao ler o livro de Fanon, você teve um grande impacto,
o que influenciou fortemente a escrita/re-escrita, em 1968, da obra
“Pedagogia do Oprimido” (Freire, 1987), momento em que você se
encontrava no exílio, morando no Chile.

SUMÁRIO 38
Mas afinal, quem sou eu? Melhor eu me apresentar para você.
Meu nome é Eliana Ayoub, mais conhecida como Nana, apelido que
me acompanha desde a infância. Sou uma mulher branca, sudestina,
nascida em Campinas-SP, no ano de 1966, em plena ditadura militar
no Brasil. Sou “professora sim, tia não!”, como você escreveu em seu
livro de “cartas a quem ousa ensinar” (Freire, 1997b).

Desde que me formei no curso de Licenciatura em Educação


Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1989,
exerço a profissão de professora. Inicialmente, fui professora de
educação física em escolas da educação básica e, desde 1998, sou
professora da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, instituição
onde você trabalhou de 1981 a 1991, quando retornou do exílio.

Curioso pensar que nunca fui chamada de “tia” pelas crianças


ou jovens das(os) quais fui professora. Certamente, porque lecionei
em escolas que alimentavam relações dialógicas e horizontalizadas
entre todas(os), nas quais as pessoas eram chamadas pelos seus
nomes e pelo pronome você. E assim, venho seguindo a minha vida
de “professora sim, tia não” e, lecionando há mais de 25 anos na
universidade, faço questão de continuar sendo chamada de Nana
pelas(os) estudantes. Dentre tantos ensinamentos, aprendi com
você que criar contextos de interações não hierarquizadas é funda-
mental na prática educativa; que exercer nossa autoridade docente,
respeitando as(os) educandas(os), é totalmente diferente de ser
autoritária(o) e arrogante; e que ensinar exige querer bem aos(às)
educandos(as), humildade e confiança, um dos saberes necessários
à prática educativa. E foi justamente na reunião pedagógica de uma
dessas escolas em que trabalhei, que eu conheci o livro “Pedagogia
da autonomia: saberes necessários à prática educativa” (Freire,
1997a), o qual se transformou no meu “livro de cabeceira”!

Bem, eu sei que pode parecer redundante afirmar isso, mas


as suas obras são tão marcantes na minha formação, e na de tan-
tas(os) educadoras(es), que seria impossível me remeter a várias

SUMÁRIO 39
delas nesta carta para partilhar os significativos aprendizados que
continuam me mobilizando a cada vez que eu retomo as suas lei-
turas. Aliás, eu fiquei tão impressionada quando soube que o livro
Pedagogia do Oprimido (Freire, 1987) foi traduzido em mais de 57
idiomas (Santana; Souza, 2019). Você sabia disso?

Outra coisa que eu gostaria de te contar é que, assim como


você, sou uma pessoa apaixonada por cartas. Devido a esse encan-
tamento, venho trabalhando há mais de 20 anos com a proposta de
escrita de cartas nas minhas aulas da Unicamp. Eu narro essa minha
experiência e “mania” com as cartas no meu livro intitulado “Memórias
da educação física na escola: cartas de professoras” (Ayoub, 2021),
no qual eu teço reflexões acerca da educação física, do corpo e da
gestualidade na escola, em diálogo com as cartas sobre memórias
da educação física escolar escritas por professoras que foram alunas
do Programa Especial de Formação de Professores em Exercício
na Rede Municipal dos Municípios da Região Metropolitana de
Campinas-SP, oferecido pela FE Unicamp. Nesse livro, que é fruto
da minha tese de livre-docência (defendida em 2019), eu me aventu-
rei numa escrita narrativa pautada no gênero carta para apresentar
uma pesquisa que teve as cartas como fontes narrativas. Como seria
maravilhoso poder te mostrar essas minhas cartas entretecidas por
meio de um diálogo amoroso, solidário e profundo com essas alu-
nas-professoras e, igualmente, com as suas cartas e os seus livros,
assim como os de outras(os) autoras(es).

Aconteceu algo muito valioso durante o processo de pesquisa


que originou o meu livro: fui presenteada com a obra “Cartas brasi-
leiras” (Rodrigues, 2017) e, para minha grande surpresa, eu encontrei
uma carta sua para Nathercinha, sua priminha (que te considerava
como um tio)! Fiquei tão comovida com aquela carta escrita em 1967,
quando você estava exilado no Chile, que fui ao encontro do livro de
Nathercia Lacerda, “A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire
para Nathercinha” (Lacerda, 2016). Imagino quão emocionado você
ficaria ao ler esse livro que é dedicado “A Paulo, pelo carinho das cartas”.

SUMÁRIO 40
Quando eu o li, fiquei imensamente tocada com a boniteza
das suas cartas, das de Nathercinha e das fotografias e imagens que
narram histórias entrelaçadas entre você, Nathercinha e outras pes-
soas da família. As memórias de uma mulher que se correspondia
com seu primo quando era criança movimentam as(os) leitoras(es)
pelos (des)caminhos da sua história no exílio em plena época da
ditadura no Brasil e em outros países da América Latina, mobilizando
diversas reflexões sobre educação, política, humanização e eman-
cipação, num momento em que tentaram, mas não conseguiram,
silenciar a sua voz, a qual passou a ser ouvida, reconhecida e respei-
tada pelo mundo afora. São tantas homenagens, honrarias e títulos
recebidos em diversos países ao longo da sua vida, e postumamente,
que seria muito difícil mencionar todos eles.

Contudo, sublinho uma situação que me causou grande


espanto e que, frequentemente, eu ressalto em minhas aulas na
Unicamp. Estou me referindo ao “Parecer ao Conselho Diretor da
Unicamp sobre Paulo Freire”, elaborado pelo professor Rubem Alves,
seu colega da FE Unicamp, em maio de 1985, cinco anos após a
sua designação como professor titular. Esse parecer foi publicado
na seção Diverso e Prosa da Revista Proposições (Bittencourt, 2014).
Com certeza, você deve se lembrar daqueles momentos sombrios
de tensionamentos em torno dos processos de redemocratização da
sociedade brasileira, inclusive no interior das universidades públicas,
os quais remetiam às tantas perseguições que você sofria por defen-
der uma sociedade justa, democrática e igualitária.

Naquela ocasião, Rubem Alves foi genial em sua recusa


em dar um parecer. Vamos relembrar alguns trechos do que
ele escreveu:
O objetivo de um parecer, como a própria palavra o
sugere, é dizer a alguém que supostamente nada viu e
que, por isto mesmo, nada sabe, aquilo que parece ser,
aos olhos do que fala ou escreve. [...]

SUMÁRIO 41
Há entretanto, certas questões sobre as quais emitir um
parecer é quase uma ofensa. Emitir um parecer sobre
Nietzsche, ou sobre Beethoven, ou sobre Cecília Meireles?
Para isto seria necessário que o signatário do documento
fosse maior que eles, e o seu nome mais conhecido e mais
digno de confiança que aqueles sobre quem escreve...

Um parecer sobre Paulo Réglus Neves Freire.

O seu nome é conhecido em universidades através do


mundo todo. Não o será aqui, na UNICAMP? E será por
isto que deverei acrescentar a minha assinatura (nome
conhecido, doméstico), como avalista?

Seus livros, não sei em quantas línguas estarão publica-


dos. [...] E os artigos escritos sobre o seu pensamento e a
sua prática educativa, se publicados, seriam livros.

O seu nome, por si só, sem pareceres domésticos que


o avalisem, transita pelas universidades da América do
Norte e da Europa. E quem quer que quisesse acrescen-
tar a este nome a sua própria “carta de apresentação” só
faria papel ridículo.

Não. Não posso pressupor que este nome não seja


conhecido na UNICAMP. Isto seria ofender aqueles que
compõem seus órgãos decisórios.

Por isto o meu parecer é uma recusa em dar um parecer


(Bittencourt, 2014, p. 256-257; grifos do autor).

Muitos anos se passaram após esse lamentável aconteci-


mento e, desde maio de 2019, 34 anos mais tarde, o prédio prin-
cipal da Faculdade de Educação da Unicamp passou a se chamar
“Professor Paulo Freire”. Que linda e justa homenagem, você não
acha? Costumo dizer que, mais do que nunca, eu me sinto traba-
lhando num local vivamente “esperançado”!

Ah! E tem mais... Em 2021, ano em que o Brasil e o mundo


festejaram os 100 anos do seu nascimento, a direção da FE Unicamp
preparou um vídeo comemorativo e eu tive a honra de ser convidada

SUMÁRIO 42
para “emprestar” a minha voz (e a minha emoção) para a narração do
texto do vídeo ao “Patrono da Educação Brasileira”, que foi exibido por
ocasião do “Colóquio Internacional Centelhas de Transformações -
Paulo Freire & Raymond Williams - Parte 1” (o qual pode ser assistido
no canal do youtube da FE Unicamp, a partir do minuto 17 - https://
www.youtube.com/watch?v=7SkucSf5Rxo).

Admirado Paulo Freire, ao me aproximar do final desta prosa,


vou me juntando ao coro das tantas pessoas que afirmam que o
legado da sua obra é tão intenso, profundo e imprescindível, que
você continua vivo aqui conosco, pulsando ensinamentos que nos
auxiliam a continuar “esperançando” nesses tempos tão obscuros
que estamos vivendo.

Nesta “carta para celebrar a esperança”, recupero, portanto, o


que você anuncia: “não sou esperançoso por pura teimosia mas por
imperativo existencial e histórico” (Freire, 1992, p. 10). Que esse impe-
rativo existencial e histórico para o ser mais, seja, continuamente, ali-
mentado pela nossa esperança, essa esperança que se constrói em
comunhão, entre todas e todos nós, com todas e todos nós, por todas
e todos nós, para todas e todos nós.

Com grande afeto e respeito,

Nana.

Campinas, 25 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
AYOUB, E. Memórias da educação física na escola: cartas de professoras. Campinas,
SP: Pontes Editores, 2021.

BITTENCOURT, A. B. Um documento histórico: Parecer ao Conselho Diretor da Unicamp


sobre Paulo Freire. In: Pro-Posições, v. 25, n. 3 (75), p. 251-257, set./dez. 2014.

SUMÁRIO 43
DIAS, V. V. Convergências entre o pensamento de Frantz Fanon e Paulo Freire: da zona do
não-ser à vocação ontológica do ser-mais. In: Revista Estudos do Sul Global, v. 1, n. 2,
p. 239-246, 2021.

FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1997a.

FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’Água, 1997b.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:


WMF Martins Fontes, 2013.

HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020.

HOOKS, B. Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Elefante, 2021.

LACERDA, N. A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha. Rio de
Janeiro: Zit, 2016.

RODRIGUES, S. Cartas brasileiras: correspondências históricas, políticas, célebres,


hilárias e inesquecíveis que marcaram o país. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

SANTANA, O. A.; SOUZA, S. C.. Pedagogia do oprimido como referência: 50 anos de dados
geohistóricos (1968-2017) e o perfil de seu leitor. In: Revista História da Educação,
[S.L.], v. 23, p. 1-31, 2019.

SUMÁRIO 44
Daniella Taveira dos Prazeres

A PALAVRA E O MUNDO:
SER PROFESSORA
É UM ATO DE RESISTÊNCIA!
Estimado professor e escritor Paulo Freire,

Venho, por meio desta singela carta externar minha pro-


funda gratidão ao senhor pela sua inestimável contribuição à práxis
pedagógica para a Educação brasileira e universal, bem como para a
formação de professoras resilientes e comprometidas com o “Ato de
ler”. Por isso, as reflexões tecidas neste escrito miscigenam minhas
memórias e inquietações acerca da docência no século XXI.

Todo seu trabalho pautado no objetivo de delinear caminhos


para promover uma sociedade brasileira mais digna, crítica, humana
e menos desigual por meio da educação foi um grande marco para
a história do país e do mundo. E muitos dos seus textos e práticas
fomentam ações transformadoras todos os dias. Porém, “o direito à
educação de qualidade”, como preconiza a Carta Magna de 1988,
ainda é um sonho distante para a maioria dos cidadãos brasileiros.

Você deixou um legado relevante sobre a necessidade de


ressignificar o conhecimento por meio de uma Educação transfor-
madora e mais humana ao considerar o contexto de mundo dos
estudantes como pressuposto para a aprendizagem. Porém, dados
recentes revelam que há muito a se fazer. Como exemplo, posso
citar que, dos quase quatro milhões de inscritos no último Enem-
2022, apenas dezenove candidatos tiraram a nota máxima 1000 na
redação. Logo, é necessário analisar e buscar soluções para reverter
esse quadro desastroso, mas que por outro lado revelou um dado
interessante, o senhor irá gostar de saber: do total de notas, onze são
de estudantes de municípios do Nordeste (Carvalho, 2023).

Além disso, segundo um relatório elaborado no mês passado


pela Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE), “o Brasil é um dos países com maior proporção de jovens
que estão fora da escola e sem trabalhar”. Isto é, se escrever é pensar
e a leitura é o combustível para a prática da escrita, devemos refletir
sobre esses dados, com o fito de promover, a partir da Pedagogia

SUMÁRIO 46
da Autonomia, o bem-estar individual e social dos indivíduos, priori-
zando uma sociedade mais comprometida com a educação pública,
enfim mais crítica e humana.

O senhor já disse isso em tempos pretéritos, e se eu pudesse


escolher um poder de super-heroína agora, seria a habilidade de
voltar no tempo, lhe contar tudo pessoalmente e buscar palavras de
esperança e otimismo para fortalecer cada professora/or que luta
incansavelmente por um mundo com mais leitores capazes de refle-
tir sobre o significado de “ser humanidade”. Por isso, como sei que
as palavras escritas atravessam o tempo por meio da Literatura e
Educação, então, por que não uma carta? Desejo de todo coração
que essas palavras o alcancem, como os seus valores e textos têm
alcançado tantos professores/as desde a década de 1960.

“Ninguém escreve do vazio”, “Escrever não é um dom”, as


frases citadas pela professora Neiva dos Santos Pereira, no início do
curso de licenciatura, tiveram um grande impacto na minha concep-
ção sobre leitura e escrita quando ingressei em Pedagogia no ano
de 2010. Isso porque, a escrita é uma competência complexa que
requer várias habilidades e, infelizmente, ingressei no nível superior
com grandes lacunas nessa área da aprendizagem.

E foi assim, que há doze anos iniciei meu percurso docente


como professora do 3° ano no Ensino Fundamental – anos iniciais.
É curioso, havia dentro de mim a certeza e a coragem de enfrentar
esse desafio, pois estava no terceiro semestre do curso de Pedagogia
e completamente encantada com a possibilidade de tornar o mundo
um lugar melhor e menos desigual por meio da Educação.

Havia um deslumbramento pelas teorias propostas no


curso, reflexões sobre artigos e obras, mas principalmente, pela
importância dos debates que aconteceram nas aulas de História da
Educação e Políticas Educacionais. Sim, dentro de mim gritava um
antigo desejo adolescente de “ser importante”, de “mudar o mundo”.

SUMÁRIO 47
A jovem negra, de família humilde e da periferia sonhava alto dentro
de uma realidade familiar e comunitária na qual a maioria das mulhe-
res não concluíram a Educação Básica.

Porém, não analisei “as pedras no caminho” que encontraria,


parafraseando o saudoso Drummond, tampouco as longas horas
que deveria ter de dedicação fora do ambiente escolar para planeja-
mento, elaboração de atividades, correções e estudo. Também não
considerei que o salário não corresponderia ao suprimento de todas
as necessidades e/ou investimentos em sonhos futuros. Enfim, os
meus anos iniciais na Educação Básica foram muito difíceis.

Entretanto, à medida que o tempo passava tornava-me mais


segura e eficiente no trabalho de ser professora. Logo, a resistência
passou a ser a minha palavra-chave para o enfretamento de uma luta
diária e quando me dei conta, já havia concluído o curso de Pedagogia
e já lecionava nos anos finais do Ensino Fundamental. Então, come-
çou o grande mistério, pois de repente eu não tinha mais vontade de
trabalhar e ir para a escola era uma tortura diária e deprimente.

Em um súbito delírio, pedi demissão, saí perdendo alguns


benefícios previstos na CLT, chorei como criança sem saber explicar
o que estava sentindo, não havia adjetivos que externassem tamanha
angústia. Porém, no dia seguinte eu me senti livre para respirar, como
se um fardo de toneladas fosse subtraído do meu corpo. Não tinha
mais falta de ar, taquicardia, insônia, desânimo ou ansiedade, só hoje
sei que o grande mistério era na verdade sintomas de um distúrbio
emocional chamado de Síndrome de Burnout. Pois, é... Saudoso, pro-
fessor, quem no passado iria imaginar que as maiores preocupações
do século XXI seria a saúde mental. Não tive apoio psicológico pro-
fissional, como disse, só recentemente consegui associar tudo o que
vivenciei com essa síndrome após leituras sobre o assunto.

Após um ano, decidi enfrentar uma nova formação acadê-


mica, precisava ocupar e ressignificar a minha vida, afinal, tornei-
-me reexistência e o desejo de mudar o mundo ainda estava lá.

SUMÁRIO 48
Ironicamente, após o resultado do Enem, fui aprovada para ingressar
nos cursos de Letras e Direito em instituições distintas da cidade.
Uma dúvida cruel passou a incomodar meu sono, mas eu não deve-
ria ter dúvidas, pois havia abandonado o sonho da docência. No
entanto, ironicamente, “o coração tem mesmo razões que a mente
desconhece”, como afirmou o filósofo francês Blaise Pascal, porque
no último dia de matrícula para um dos dois cursos fiz a opção para
o curso de Letras: Língua Portuguesa e Literaturas.

Reconheço, de fato, que nós professores não somos os


“redentores da pátria”, não seria humano conseguir promover a
aprendizagem significativa considerando tantas intempéries como,
fatores externos à sala de aula: questões familiares, desigualdade
social e etc. Porém, com o advento da primeira pandemia do século,
da Covid-19, ficou evidente o quanto a educação pública brasileira
está fragilizada. E isso, sem dúvida, também impactou no resultado
do Enem-2022 citado anteriormente.

A dedicação mais intensa à leitura da palavra ressignificou a


minha vida profundamente e aquilatou a leitura do mundo. O curso
de Letras devolveu-me o encanto e o pensamento crítico em torno da
docência e, agora, vivo a plenitude da reexistência. Nos novos está-
gios, percebi mais nitidamente, a importância de investir, incentivar e
promover o ato de ler. Outro sonho adormecido da adolescência, de
ser escritora, também ressurgiu.

A formação em Pedagogia me forneceu importantes subsí-


dios durante a trajetória acadêmica em Letras. Então, não bastava
apenas ser professora de Língua Portuguesa, era necessário ser
ainda mais resiliente e preparada para as intempéries ou frustrações,
desse modo, consegui estabelecer uma comunicação dialógica entre
as duas áreas. Em consequência, algumas leituras foram retomadas
como a da sua referida obra, A importância do ato de ler:

SUMÁRIO 49
Uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota
na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem
escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do
mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra,
daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade
se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a
ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção
das relações entre o texto e o contexto (Freire, 1989, p. 9).

O visível fato de que a maioria dos estudantes leem cada vez


menos seja o mundo, seja a palavra escrita ou de que não conse-
guem nem sequer decodificar ou interpretar os signos linguísticos
também desencadearam angústias. Como fazê-los compreender
que linguagem e realidade são indissociáveis? Como fazê-los abra-
çar o ato de ler para transformar as próprias vidas e a comunidade?

Por isso, professor Paulo Freire, a sensação estranha e avas-


saladora que consigo tatear na mente agora é de como ter tido várias
vidas em 12 anos de docência. A cada ano uma professora Daniella
diferente e mais ciente do seu porquê no mundo. Em cada gesto
de agradecimento dos estudantes que encontro é o fermento e a
comprovação de que tenho conseguido deixar o mundo um pouco
melhor e menos excludente.

Por que eu tenho resistido em uma profissão tão difícil e


árdua na contemporaneidade? Ser professora, para muitos é apenas
um dom, um sacrifício pelo amor à profissão. Porém, cada indivíduo
carrega consigo os méritos ou fracassos de suas escolhas, cada ser
único no mundo tem um papel importante, por isso, apesar da des-
valorização e desrespeito à docência continuarem tão evidentes, sou
uma profissional feliz e cada vez mais resistente.

Eu sou professora, porque sou filha da periferia e poderia ser


hoje, só mais uma estatística cruel. Eu sou professora, porque resisti
à pandemia da Covid-19 e durante esse triste capítulo da história
da humanidade tive que estudar novamente para melhorar as

SUMÁRIO 50
habilidades com a tecnologia. Tive todas as razões para abandonar a
profissão, contudo fui resistência novamente.

Eu sou uma professora resistente, porque acontecimentos


presentes e previsões futuras corroboram para a possível “extin-
ção” dessa profissão em decorrência da ascensão das Inteligências
Artificias, como o ChatGPT. E pela redução do número de pessoas
que almejam essa carreira, como afirmou a pesquisa recente do
Instituto Semesp (Secretaria de Modalidades Especializadas de
Educação) que: “A educação básica do país pode enfrentar um défi-
cit de 235 mil professores até 2040 (Sales, 2023). Finalmente, sou
professora porque acredito no poder transformador da Educação
na vida das pessoas.

Prezado, Paulo Freire, imagino que o senhor deva estar atô-


nito com essas notícias que lhe envio, você lutou pela leitura e escrita,
pelo direito ao Letramento de adultos das áreas rurais e periféricas,
provou para o mundo a eficácia do trabalho docente quando ele é
realizado de forma contextualizada e responsiva.

Em decorrência disso, nós, professores/as, precisamos nos


unir rumo ao mesmo caminho que nos leve não somente à valoriza-
ção profissional, mas conduza os estudantes à competência de ler
o mundo e agir de forma positiva sobre ele (Freire, 1989). Contudo,
esse aspecto é o vislumbre, para a maioria dos profissionais, de pen-
samentos e projetos oníricos.

Toda a sua contribuição e todo o seu empenho não foram em


vão, muitas professoras/es seguem resistindo e almejando alcançar
a aprendizagem dos educandos e a construção de um país mais
igualitário. Eu, por exemplo, fico radiante ao corrigir redações de
adolescentes e me deparar com inúmeras citações de pensamentos,
teorias e frases produzidas pelo senhor.

Acredito que esta carta é reveladora e promissora, simulta-


neamente, pois seu nome será mais uma vez disseminado de forma

SUMÁRIO 51
positiva e esperançosa. O seu amor pela educação nacional ressig-
nificou muitas professoras e ainda o fará, no interior do Brasil, bem
aqui, em Barreiras-Ba, e quiçá pelo mundo.

Diante de tudo isso, posso afirmar que a leitura é a matéria-prima


para a escrita, mas sem contextualizar com o mundo ela será vazia e
o ato de escrever uma mera reprodução que não conseguirá romper
com os paradigmas que sustentam a desigualdade social no Brasil.

Com profunda gratidão, admiração e esperança,

Barreiras (BA), 25 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03 set. 2023.

DRUMMOND, C. A. Alguma poesia.1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

CARVALHO, M. Região Nordeste tem maior número de notas mil na redação do


Enem. Disponível em: https://www.sonoticiaboa.com.br/2023/02/16/regiao-nordeste-
maior-numero-notas-mil-redacao-enem. Acesso em: 03 set. 2023.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Autores Associados: Cortez, 1989. (Coleção polêmicas do nosso tempo; 4)

Jornal Nacional. Brasil está entre os países com maior proporção de jovens que estão
fora da escola e sem trabalhar, diz OCDE. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-
nacional/noticia/2023/08/29/brasil-esta-entre-os-paises-com-maior-proporcao-de-jovens-
que-estao-fora-da-escola-e-sem-trabalhar-diz-ocde.ghtml. Acesso em: 29 ago. 2023.

SALES, B. Brasil pode ter déficit de 235 mil professores até 2040, aponta
estudo. Acesso em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-pode-ter-deficit-
de-235-mil-professores-ate-2040-aponta-estudo/#:~:text=Brasil%20pode%20ter%20
d%C3%A9ficit%20de%20235%20mil%20professores%20at%C3%A9%202040%2C%20
aponta%20estudo. Disponível em: 03 set. 2023.

SUMÁRIO 52
Grazielle Matos dos Reis

EDUCAÇÃO EM TEMPOS
DE INCERTEZAS:
UMA REFLEXÃO CRÍTICA
PARA PAULO FREIRE
Prezado Paulo Freire,

Espero que esta carta o encontre onde quer que esteja,


mesmo que apenas em espírito, pois, como sabemos, sua presença
continua viva em nossa sociedade e em nossos corações. Hoje,
enquanto refletimos sobre o legado de sua obra e pensamento, não
posso deixar de me perguntar o que você diria sobre a educação
em tempos tão desafiadores como os que vivemos agora. Você nos
ensinou a importância de uma educação libertadora que prioriza a
conscientização, a discussão e a ação em seu trabalho excepcional.
Você declarou que a educação não é um ato neutro, mas sim um
ato político que pode ajudar a manter ou mudar as estruturas de
poder. No entanto, a questão é: estaria a sua pedagogia preparada
para enfrentar as complexidades e incertezas deste século? Essa
pergunta surge à medida que observamos o mundo atual.

As crises ambientais, a globalização e os avanços tecnoló-


gicos transformaram a realidade. A desigualdade social continua
existindo, e novas formas de opressão surgem no mundo moderno.
Por exemplo, a pandemia de COVID-19 demonstrou disparidades na
educação, o que fez com que muitos estudantes tivessem dificulda-
des de acesso a uma educação remota.

Mais do que nunca, seus valores de discussão, colaboração e


transformação estão de volta. Mas há problemas significativos para
usar suas ideias no mundo real. O Anti-intelectualismo e a polariza-
ção política impedem a discussão e a promoção da conscientiza-
ção. Em vez de servir como uma ferramenta para a emancipação, a
tecnologia é frequentemente usada para criar bolhas ideológicas e
difundir informações falsas.

Além disso, devemos levar em consideração o racismo, o


sexismo e a LGBTQIA+fobia que existem em nossa sociedade. Como
sua educação trata essas formas de opressão? Como podemos
mudar suas perspectivas para se tornar escolas inclusivas e seguras

SUMÁRIO 54
para todos, independentemente de sua orientação sexual, raça ou
gênero? Quando buscamos uma educação verdadeiramente liber-
tadora, não podemos deixar de enfrentar essas questões urgentes.

Seguindo sua visão transformadora da educação, acredito


que enfrentar essas formas de opressão exige um compromisso
inabalável com a conscientização e a transformação. Sua pedagogia
nos ensina que a educação deve ser um espaço de diálogo crítico,
onde os alunos não apenas adquirem conhecimento, mas também
questionam as estruturas de poder que perpetuam a opressão. Para
combater a LGBTQIA+fobia, o racismo e o sexismo, convém pro-
mover uma reflexão sobre essas questões, estimulando a empatia e
o entendimento mútuo.

Criar um ambiente educacional inclusivo e seguro, de acordo


com sua visão, exigindo o reconhecimento das experiências e dos
indivíduos, respeitando a diversidade. Essa pedagogia nos inspira a
desafiar preconceitos, desconstruir estereótipos e promover uma cul-
tura de respeito e igualdade. É através da educação libertadora que
podemos moldar uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todos
possam florescer plenamente, independentemente de quem seja.

Em seguida, me preocupo com como sua pedagogia lida


com a crescente mercantilização da educação, onde o lucro frequen-
temente prevalece sobre o bem-estar dos alunos. A criatividade e a
diversidade de perspectivas que você aprecia podem ser sufocadas
pela busca incessante por resultados quantitativos e pela padroniza-
ção do ensino. Além disso, os problemas ambientais já fazem parte
do nosso futuro. Como suas perspectivas sobre conscientização e
ações podem ser modificadas para incluir uma educação ambiental
mais profunda e sustentável? Como podemos ajudar os alunos a
compreender o papel que desempenham na preservação da Terra?

Suas obras não são apenas um farol de esperança, mas


também uma chamada à ação. Precisamos reimaginar e adaptar

SUMÁRIO 55
suas ideias para atender às demandas de nossa época, à medida
que enfrentamos os desafios do século XXI. Devemos continuar a
defender uma educação que liberte, conscientize e transforme, mas
também devemos ser adaptáveis ​​e criativos. Inspirados por você,
buscamos contribuir para a renovação da educação em nosso pró-
prio caminho. Temos a obrigação de honrar seu legado, não apenas
repetindo suas palavras, mas também reinventando-as para um
mundo que está em constante mudança.

Caro Paulo Freire, no entanto, enquanto tento responder a


essas perguntas, sinto gratidão por ter a sua sabedoria como guia.
Outras gerações de educadores e defensores da justiça social foram
influenciadas por seus valores. Eles nos lembram que a educação é
uma ferramenta poderosa para criar um mundo mais humano e justo.

Com profunda admiração e gratidão.

Brasília, 26 de setembro de 2023

SUMÁRIO 56
Géssica de Souza Canaverde

SER PROFESSOR É
EXERCER A HUMANA
DOCÊNCIA
Estimado Paulo Freire,

Às vezes me pego pensando se estou sendo uma boa profis-


sional da Educação básica e se as minhas práticas educativas estão
conseguindo contemplar de forma significativa e prazerosa a educa-
ção dos meus educandos. Hoje, estou na posição de educadora, ou
mais precisamente, futura educadora; e através das experiências que
já tive, tanto na Educação Informal quanto na Educação Formal, per-
cebi quão desafiadora e ao mesmo tempo prazerosa é esta profissão.
Nesse sentido, o objetivo dessa carta é para dialogarmos sobre a
importância de pensarmos a Educação como um processo de con-
tínua mudança e adaptação, sempre havendo reflexão sobre o atual
processo educacional. Para isso, buscaremos responder à seguinte
questão: como devemos ser para ensinar?

Como você mesmo declara, “[...] ninguém nasce feito. Vamos


nos fazendo aos poucos, na prática social de que tornamos parte”
(Freire, 2001, p. 40). Para mim, essa sua fala significa que estamos
sempre aprendendo, seja com nossos/as alunos/as em sala de aula,
seja com pessoas no nosso cotidiano e, como nós somos seres ina-
cabados, inconclusos e incompletos, estamos sempre assimilando
e passando por novas experiências que vão também interferindo na
forma como vemos o mundo.

Devemos ter em mente que SER PROFESSOR vai muito além


de só transmitir conhecimentos e conteúdo, deve-se, inicialmente,
SER HUMANO, tendo empatia com cada aluno, considerando e
respeitando que cada um tem uma história de vida, a sua cultura, a
sua própria realidade e a sua forma de aprender. Nesse sentido, ser
professor é entender que aprendemos ao longo da vida permanen-
temente. Nessa lógica, no livro Educação e Mudança (2003), você
fala sobre o comprometimento que o educador precisa ter com a
educação e que comprometido é aquele que atua e reflete sobre a
realidade para transformá-la.

SUMÁRIO 58
Atualmente, ainda se tem a ideia de que professor é o único
que tem algo para ensinar e que não pode ser questionado, que tem
apenas a tarefa de transmitir o que sabe e, infelizmente, há muitos
casos em que professores adotam esta postura, proporcionando
uma educação que forma pessoas alienadas, que não questionam
ou criticam o mundo ao seu redor. Ao me enxergar como futura pro-
fessora, sigo a linha do pensamento freirianos em que a educação
que muda e transforma pessoas, que não se resume em transmitir
o conteúdo, mas em construir saberes coletivamente. Que não só
ensina, mas que aprende com cada aluno ou pessoa, que se preo-
cupa em formar seres com sonhos de poder ser o que quiserem, de
pensar e criticar sua sociedade, seu mundo, contribuindo para uma
vida melhor a todos. Você me ensinou que
O educador já não é o que apenas educa, mas o que,
enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando
que, ao ser educado, também educa. Ambos assim se
tornam sujeitos do processo em que crescem juntos
(Freire, 1981, p. 78).

Outrossim, devemos criar em sala de aula situações onde o


aluno possa fazer indagações, envolvendo-os como protagonistas,
reconhecendo a participação dos mesmos e o tempo de aprende de
cada um, permitindo-se assim construir e reconstruir o seu conheci-
mento a partir do que fazem, pois o aluno só aprenderá quando sentir
prazer no que está aprendendo. E como educadores, necessitamos
ser crítico, aberto a sugestões, valorizando também o ponto de vista
dos nossos educandos e não somente o nosso, preocupando, desta
maneira com a qualidade do nosso ensino.

Como exemplo para desenvolvermos essa prática dentro


da sala, é trabalhar com o lúdico, pois através dele a criança pode
aprender brincando, ou seja, fazendo relação dos conteúdos progra-
máticos com os jogos e as brincadeiras, deixando para trás o método
tradicional de ensino e aprendendo os conteúdos das disciplinas de
uma forma mais agradável e divertida. Desse modo, se viabiliza a

SUMÁRIO 59
construção do conhecimento de forma interessante e prazerosa,
garantindo às crianças a motivação intrínseca necessária para uma
boa aprendizagem. É através da brincadeira que a criança vive e
reconhece a sua realidade.

Piaget (1976) diz que a atividade lúdica é o berço obrigatório


das atividades intelectuais da criança. Estas não são apenas uma
forma de desafogo ou entretenimento para gastar energia, mas meios
que contribuem e enriquecem o desenvolvimento intelectual e ainda
facilita a aprendizagem, despertando o interesse e a curiosidade.
A criança é curiosa e imaginativa, está sempre experimentando o
mundo e precisa explorar todas as suas possibilidades, visto que ela
também adquire experiência brincando.

Para tanto, há a necessidade de uma formação continuada


do professor na qual” o momento fundamental é o da reflexão crítica
sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de
ontem que se pode melhorar a próxima prática” (Freire, 1996, p. 21). É
indispensável ao educador na perspectiva freireana, ação e reflexão
constante do ato pedagógico e busca constante pela qualificação
profissional, com o objetivo de aprimorar a prática docente e a traje-
tória profissional do professor.

O educador, quando ajuda o aluno a reconhecer seu papel na


sociedade e refletir sobre sua realidade, está ajudando na formação
de cidadãos conscientes, tornando-os aptos para intervir na reali-
dade e mudá-la, na perspectiva de uma educação libertadora capaz
de contribuir para que o educando se torne sujeito de seu próprio
desenvolvimento, Segundo Mizukami:
O homem chegará a ser sujeito através da reflexão
sobre seu ambiente concreto: quanto mais ele reflete
sobre a realidade, sobre a sua própria situação concreta,
mais se torna progressiva e gradualmente consciente,
comprometido a intervir na realidade para mudá-la
(Mizukami, 1986, p. 86).

SUMÁRIO 60
Assim, a educação é um importante instrumento transfor-
mador. É ela que nos impulsionará a buscar mudanças e melhorias
para o nosso futuro.

A formação de professor não é algo simples ou uma tarefa


fácil. É preciso ter gosto pelo que faz, caso contrário torna-se um
castigo pessoal fazê-la. É um desafio contínuo ser professor e é uma
conquista que se faz dia-a-dia, em cada atividade, na sala de aula,
na escola, com os alunos, com os colegas professores e até com
os pais dos alunos. Se ensinar fosse algo fácil e mecânico, existiria
manual de instruções, mas só aprendemos na prática, no cotidiano,
no terreno da sala de aula, colocando a mão na massa. É a prática,
embasada pela teoria, que nos impulsiona à frente, é na prática que o
professor desenvolve sua formação e nos forma o fazer pedagógico.
São os alunos que nos formam professores, suas particularidades,
seus saberes, seus encantamentos. Mas, acima de tudo, um olhar
atento, investigativo, é o que nos mostra o caminho a seguir.

Como diria Heráclito, não entramos duas vezes na mesma


água. A docência funciona da mesma forma, não entramos duas
vezes na mesma classe. O ser humano se transforma a cada dia e a
cada sala de aula por qual ele passa.

Apesar de todos os desafios verificados na vida e carreira do


professor sabemos da importância que ele desempenha na vida e na
aprendizagem dos alunos. Sua tarefa é árdua e difícil, mas também bela
e significante. Como nos diz você, Paulo, educar é um ato de amor e
coragem. Precisamos em sala, ter empatia e contemplar a diversidade.

Por fim, agradeço a oportunidade de poder falar prazerosa-


mente com alguém que tanto me ensina sobre a docência, a vida, a
educação, e encerro citando “Ninguém começa a ser professor numa
certa terça-feira às 4 horas da tarde... Ninguém nasce professor ou
marcado para ser professor. A gente se forma como educador perma-
nentemente na prática e na reflexão sobre a prática” (Freire, 1991. p. 58).

SUMÁRIO 61
E mesmo diante de todos os desafios precisamos seguir com o seu
legado da esperança, da capacidade de sonhar com um mundo
melhor e que nós sejamos o profissional de educação que idealizamos.

Uibaí (BA), 30 de agosto de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25.ed.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz na Terra, 1987.

FREIRE, P. A Educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

MIZUKAMI, M. G, N. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: Editora Pedagógica e


Universitária, 1986.

PIAGET, J. Psicologia e Pedagogia. Trad. de Dirceu Accioly Lindoso e Rosa Maria Ribeiro
da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.

SUMÁRIO 62
Ivana Cristina Lovo

DO INDIVIDUAL
AO COLETIVO
PARA ALCANÇAR
O SER MAIS
Queridos mestres Elza e Paulo Freire,

Inicio esta carta esclarecendo que, à medida em que estudo,


reflito e procuro praticar os ensinamentos Freireanos5. Não consigo
brindar o centenário do Paulo Freire, sem comemorar, também, a
existência da Elza Feire e os 105 anos de seu nascimento. Uma mulher
que foi professora, pedagoga, companheira e esposa de Paulo Freire,
e que esteve junto com ele no delinear a Educação como prática da
liberdade, como nos demonstra Nima Spigolon (2022) ao nos propor
a Pedagogia da Convivência a partir das suas pesquisas, disponí-
veis no livro Elza: Elza Freire e Paulo Freire: por uma Pedagogia da
Convivência. Dessa forma, nesta carta, busco compartilhar vivências
e reflexões que a cada dia vão fazendo sentido para mim, entre elas,
o entendimento de que pelos ensinamentos freireanos passo a con-
siderar o que Elza e Paulo construíram juntos.

O movimento de aprofundar os estudos sobre os ensi-


namentos dessa mestra e desse mestre foi fomentado por minha
condição de educadora na Licenciatura em Educação do Campo, na
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM),
localizada no contexto do Semiárido de Minas Gerais. Essa condi-
ção provocou o desafio de refletir minha prática como educadora de
jovens e adultos, em um contexto de educandas/os majoritariamente
afrodescendentes, sendo a maioria mulheres negras, muitas delas
mães, ou que se tornam mães no percurso da graduação.

Essa realidade, agregada a minha condição de mulher branca,


brasileira, com descendência italiana, ciente dos privilégios que essa
condição me traz, assim como de opressões que são inerentes a um
sistema social de supremacia branca, patriarcal, racista e capitalista,
fui instigada a me aprofundar sobre os ensinamentos Freireanos e
sobre o feminismo negro. Esse caminhar me conduziu ao enlace
entre a Educação como prática da liberdade (Freire, 2011, 2014), a
Pedagogia engajada, refletida por bell hooks (2017), desabrochando
na Pedagogia da Convivência, trazida por Spigolon (2022).

5 Acompanho Coimbra (2021a) na proposta de transgressão à linguagem, ao utilizar freireana/freireano


como poder de mudança de uma forma de escrita para uma dimensão concreta da politicidade.

SUMÁRIO 64
No breve espaço desta carta, gostaria de me ater a potên-
cia do que os mestres Freireanos vão delinear como arqueologia da
consciência, de onde emerge a práxis como movimento dialético de
reflexão-ação-reflexão do sujeito sobre si mesmo e sobre o mundo
em que está inserido, produzindo assim os próprios meios para inter-
venção crítica nas realidades, que, por sua vez, possuem interseção
e incidências entre questões individuais e coletivas e entre diferentes
formas de opressão. Revelo, então, que esse processo de tomada de
consciência, transitando da denúncia ao anúncio do Ser mais, me
remeteu as minhas experiências de me tornar sujeito com a capaci-
dade de dizer não e fazer escolhas, que envolveu e envolve o cami-
nhar pela educação formal, agregado a um processo de autoconhe-
cimento, envolvendo o campo da psicologia e psicanálise, incluindo
a dimensão espiritual com a prática de meditação. Assim, essa cami-
nhada me aproximou e possibilitou melhor consciência sobre o que
Elza e Paulo Freire produziram de revolucionário para a educação.

Freire explicita, nas obras Pedagogia do Oprimido (2014) e


Pedagogia da Esperança (2011), um caminho processual de cons-
cientizar, que indica como arqueologia da consciência. Descreve
esse processo desde o entrar em contato com uma situação limite,
passando pelo percebido-destacado, tema-problema, gerador do diá-
logo descodificador e problematizador, que permite ao sujeito gestar
o sonho, ou seja, descobrir e delinear o inédito viável, que materializa
o enfrentamento e aponta para a transformação da realidade, envol-
vendo e transformando o esperançar em atos-limite, que rompem os
obstáculos da situação limite, e assim, rompem a fronteira que limitava
o Ser, enquanto sujeito individual e coletivo, na direção do Ser mais,
um sujeito que supera seus limites, produzindo novos conhecimentos,
novos olhares, que o possibilita ampliar sua leitura de mundo.

Portanto, essa abertura para o processo de busca da cons-


ciência crítica, passa a ser gestado pelo sujeito no tempo contínuo
e dinâmico da história, a partir da assunção da identidade cultural,
que implica estar consciente da nossa condição de seres humanos

SUMÁRIO 65
inacabados, o que nos convida a estar reflexivo, crítico e atuante
no presente, alimentando esse processo, ou seja, mantendo essa
postura constantemente. A partir da clareza sobre esse processo, e
reforçando a importância do entendimento dialético sobre como se
dão consciência e mundo na relação e introjeção do(a) opressor(a)
pelo(a) oprimido(a), Freire (2011, p. 77 e 146), reforçando a escuta de
Erich Fromm, cita: “Uma prática educativa assim é uma espécie de
psicanálise histórico-sociocultural e política”.

Para esse movimento processual, Freire (2019, 2014, 2011)


apresenta o sujeito e o diálogo como partes fundamentais que dina-
mizam o ato de conhecer. Nas suas obras, Freire (2014, 2011), entende
os seres humanos como Sujeitos-sócio-histórico-culturais e o diálogo
é apresentado como o meio problematizador da produção do conhe-
cimento, pois, agregado a atitude de pesquisar, e como instrumento
de comunicação na relação entre sujeitos e objetos, sustenta as con-
dições para problematizar a realidade, refletir a prática, e promover
a dialogicidade, que permite aos sujeitos superar a curiosidade ingê-
nua, pautada no saber feito de pura experiência, que reflete o senso
comum, para, então, alcançar a curiosidade epistemológica, que
reflete na consciência crítica e geradora de novos conhecimentos e
novas leituras de mundo, no Ser mais. Freire (2019, p. 33), destaca que,
na verdade, a curiosidade “muda de qualidade, mas não de essência”.

A relação com o mundo traz o sujeito na sua dimensão indi-


vidual e universal, como reconhece Adorno (1995, p. 199), “reflexão
sobre o sujeito é reflexão sobre a sociedade”. Importante destacar o
que Coimbra et. al. (2021b) esclarecem, de que o ser humano freireano
é denominado de sujeito por entendê-lo como um ser de relações,
um ser social, que inclui uma multiplicidade de seres, pois também
é um ser cultural e um ser histórico. Essa multiplicidade incorpora
também a “compreensão do ser humano como ser de comunicação,
um ser transcendente, um ser inacabado” (Coimbra, 2021a, p. 135). E,
nesse movimento entre o individual e o coletivo social, Freire afirma
a vocação do sujeito para humanização, e explicita que a luta pela
liberdade não é apenas individual, mas da classe social. Como afirma:

SUMÁRIO 66
Não sou se você não é, não sou, sobretudo, se proíbo você
de ser. É por isso que, como indivíduo e como classe, o
opressor não liberta nem se liberta. É por isso que, libertan-
do-se, na luta necessária e justa, o oprimido, como indivíduo
e como classe, liberta o opressor, pelo fato simplesmente
de proibi-lo de continuar oprimindo (Freire, 2011, p. 138).

Como explica Freire (1981), a humanização das mulheres e dos


homens, assim como a desumanização, exige ação na realidade, para
a humanização há necessidade de transformação do mundo em que
elas e eles se encontram na condição de oprimidas e oprimidos, e por
isso proibidos de Ser mais. Por essa razão, Freire (1981, p. 79-80) vai
chamar atenção para um dos pontos fundamentais das implicações
pedagógicas do processo de humanização, ele destaca que a liberta-
ção não se dá dentro da consciência das mulheres e homens, de forma
isolada do mundo, se dá na práxis desses sujeitos dentro da história, o
que implica na relação consciência-mundo que, por sua vez, implica a
consciência crítica dessa relação, o que vai apontar para outro ponto
fundante em Freire (1981), o caráter político da educação, o que incorre
na impossibilidade de sua neutralidade. Nesse sentido, Freire (1981 p.
81 e 82) vai reforçar que a prática educativo-libertadora se obriga a
propor às mulheres e homens a arqueologia da consciência, esforço
pelo qual eles e elas podem, em certo sentido, refazer o caminho pelo
qual a consciência emerge capaz de perceber-se a si mesma.

Reconhecendo a importância de Paulo Freire, e partindo da


realidade norte americana, bell hooks (2017), acentua o quão liber-
tador foi, na sua época, superar noções de preconceitos e ódios
pessoais para examinar sistemas de dominação e perceber como são
interdependentes. E assim ela reforça o que traz Paulo Freire sobre
a importância do estágio inicial da transformação, “aquele momento
histórico em que começamos a pensar criticamente sobre nós mes-
mos e nossa identidade diante das nossas circunstâncias políticas”
(Hooks, 2017, p. 67), que nos leva a uma mudança de atitude, em uma
práxis significativa, ou seja, “de tornar real, na prática, o que já se sabe
na consciência” (Hooks, 2017, p. 68).

SUMÁRIO 67
Para hooks e Freire, pensar é uma ação, e a linguagem é
expressão dessa ação. Assim, há uma potência de liberdade no ato
de falar e se expressar, como afirma hooks (2019, p. 45) “encontrar a
voz é um ato de resistência”.
Falar se torna tanto uma forma de se engajar em uma
autotransformação ativa quanto um rito de passagem
quando alguém deixa de ser objeto e se transforma em
sujeito. Apenas como sujeitos é que nós podemos falar.
Como objetos, permanecemos sem voz – e nossos seres,
definidos e interpretados pelos outros. ...
Toda vez que uma mulher começa a falar, inicia-se um
processo libertador, que é inevitável e tem implicações
políticas poderosas. ...
Consciência da necessidade de falar, de dar voz às
variadas dimensões de nossas vidas, é uma maneira de
a mulher não branca começar o processo de se educar
para a consciência crítica (Hooks, 2019, p. 45-46).

Assim como Freire (2011) entende que consciência, linguagem


e mundo estão interligados, hooks (2019) também soma a esse enten-
dimento, afirmando a linguagem como um lugar de luta, e, assim, o ato
de se tornar sujeito e recuperar o lugar de fala é ainda outra maneira
de falar do processo de autorrecuperação, entendida em termos de
recuperação de si, da própria dignidade que está conectada com uma
educação para a consciência crítica, que se expande para o coletivo, a
comunidade, a dignidade coletiva na mudança da realidade.

Entendendo que educar para a consciência crítica transita


por uma pedagogia da libertação, hooks (2019, p. 79 e 80) questiona
como podemos transformar os outros se nossos hábitos de existên-
cia reforçam e perpetuam a dominação em todas as suas formas,
racismo, machismo, exploração de classe? Em resposta a esse ques-
tionamento, a autora sinaliza a necessidade de expandir a questão da
autorrecuperação para incluir modelos de transformação pessoal que
abordem tanto o opressor quanto o oprimido. Portanto, ela afirma que
“o esforço individual para mudar a consciência deve estar vinculado,
sobretudo, ao esforço coletivo de transformar as estruturas que refor-
çam e perpetuam a supremacia branca” (Hooks, 2019, p. 244).

SUMÁRIO 68
A autora reforça que a mudança individual anda junto com a
mudança na realidade política e social mais amplas e, que, em uma
educação como prática da liberdade, o compromisso com a autorre-
alização dos estudantes é necessário e, fundamentalmente, radical,
entendendo que “ideias não são neutras e que ensinar de forma a
libertar, expandir consciência, despertar, é desafiar a dominação em
sua própria essência” (Hooks, 2019, p. 115). Assim, para bell hooks
(2017. p. 25), a educação como prática da liberdade é um jeito de
ensinar que qualquer um pode aprender, e se torna mais fácil para
aqueles professores que entendem que “nosso trabalho não é o de
simplesmente partilhar informação, mas sim o de participar do cres-
cimento intelectual e espiritual dos nossos alunos”. A autora reforça
ainda que, para tanto, “é importante que professores tenham coragem
de transgredir as fronteiras que fecham cada aluno numa abordagem
do aprendizado como uma rotina de linha de produção.

Por fim, trago o que Spigolon (2022) anuncia, ao delinear a


postura política-pedagógica de Elza Freire, como um fio condutor
inspirador para nós educadoras/res: “Descobrir e redescobrir com
a busca do significado do outro pelo significado de si própria. Assim,
procurar trabalhar a dimensão individual, sabendo respeitar o socio-
cultural e vice-versa, sem anular ou perder o individual” (Spigolon,
2022, p. 262). Nesse processo, entendo que o Ser Mais como uma
construção permanente do novo, faz parte de um processo artístico,
criativo e crítico, de nos reinventar a cada momento, de acordo com
o que a realidade nos apresenta e instiga, o que nos remete a novos
olhares, novas posturas, novas atitudes, mesmo que seja sobre ques-
tões antigas. O Ser mais pressupõe reflexões sobre nós no mundo,
tornando-se impraticável mediar processos educativos a partir de
algo que não foi vivenciado por nós, enquanto sujeitos com dimensão
individual e coletiva. Me torno eternamente grata às mestras e mes-
tres que possibilitam refletir minha prática a cada momento.

Diamantina, 04 de setembro de 2023.

Ivana

SUMÁRIO 69
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W. Palavras e Sinais: Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel.
Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

COIMBRA, C. L. A (in)completude da práxis no pensamento freireano. In: PAIXÃO, A.


H.; MAZZA, D.; SPIGOLON, N. (Orgs.). Centelhas de Transformações: Paulo Freire e
Raymond Williams. São José do Rio Preto, SP: HN, 2021a.

COIMBRA, C. L.; LIMA, J. P. R.; VENDRAMIN, E. O.; TONIN, J. M. F. Processo de avaliação da


aprendizagem na visão do corpo docente: aprender, punir ou responsabilizar? In: Bafa,
Accounting Education Special Interest Group, Annual Conference, 2021b.

FREIRE, P. Ação cultural para liberdade. 5.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido.


Notas de Ana Maria Araújo Freire. 17.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 58.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2014.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à Prática Educativa. 62.ed.


Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra. 2019.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução


Marcelo Brandão Cipolla. 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2017.

HOOKS, B. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução Catia
Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Editora Elefante. 2019.

SUMÁRIO 70
Olivia Rochadel

(DES)ENVIDRAÇAMENTO NO
CONTEXTO UNIVERSITÁRIO:
A PRÁTICA LIBERTÁRIA
DE RENOVAÇÃO DOS INSTRUMENTOS
DE ENSINO-APRENDIZAGEM
Estimado Freire,

Fiquei feliz pela oportunidade de lhe escrever! Motivada por


seus convites à reflexão crítica sobre a prática pedagógica, come-
cei a questionar sobre a configuração das salas de aula onde tenho
lecionado, na universidade. Percebi que os cursos de licenciatura
enquanto local para encontro de experiências, para formulação de
saberes em conjunto por meio de pesquisa e debate acerca do fazer
docente, requerem vigilância epistemológica para que não corramos
o risco de criar salas de aula fixadas em programas, conteúdos e
padrões. A primeira evidência que me fez chegar a esta reflexão foi o
fato de que no início do semestre, alguns estudantes não esperavam
para que pudéssemos nos encontrar, nos conhecer e aprender jun-
tos. Estes pareciam entender que a qualidade das aprendizagens no
semestre teria mais a ver com a minha performance do que com os
nossos esforços em conjunto – não raro, ouvi o quanto a realidade
que eu os apresentava parecia diferente da expectativa:

“– Achei que você fosse mais velha.”

“– Porque você ainda não postou a estratégia de avaliação


no sistema?”

Pois é, no primeiro dia de aula, alguns estudantes queriam


saber sobre o quão boa professora eu era e qual tipo de avaliação seria
aplicado no semestre. A partir dessas experiências, refleti que a for-
mação humana enquanto finalidade primeira no espaço universitário
precisa ser trabalhada num processo longo, contínuo e persistente.

Felizmente, não perdi de vista os estudantes dispostos


a estabelecer parcerias no processo de aprendizagem já no pri-
meiro dia do semestre – eles compartilham suas histórias de vida,
materiais de estudos e costumeiramente mantemos bons vínculos
depois de encerrado o ciclo universitário. Um dia, um desses alu-
nos me deu de presente Ruth Rocha no texto Quando a escola é de
vidro (Rocha, 2003):

SUMÁRIO 72
Eu ia para a escola todos os dias de manhã e, quando che-
gava, logo, logo eu tinha que me meter no vidro. É, no vidro!

Se não passasse de ano, era um horror. Você tinha


que usar o mesmo vidro do ano passado. Coubesse
ou não coubesse.

Dizem, nem sei se é verdade, que muitas meninas usa-


vam vidros até em casa. E alguns meninos também.

Uma vez um colega meu disse para à professora que exis-


tem lugares onde as escolas não usam vidro nenhum, e as
crianças podem crescer à vontade [...] (Rocha, 2003, p. 23).

As ilustrações de Walter e ao mesmo tempo a crítica política


de Ruth sobre práticas de ensino desumanas na realidade escolar,
foram para mim um presente! Espero que para você também!

Após ler Ruth, o inesperado aconteceu: percebi na minha


visão uma rachadura, tirei os óculos e continuei percebendo a racha-
dura mesmo sem eles. Era eu, que estava dentro de um vidro que
acabara de trincar. Minhas últimas primeiras aulas foram estrutura-
das com justificativas aos estudantes sobre o quão boa eu era para
estar ali e, com alinhamentos sobre como seria a avaliação. Também
havia me acostumado com a sensação de ficar anestesiada com fra-
ses que ouvia no primeiro dia de cada semestre:

“– Já fiz todas as leituras indicadas no seu plano de ensino.


Posso fazer as avaliações e você abonar as faltas para eu concluir
logo esta Disciplina?”.

“– Tenho uma rotina de trabalho de três turnos e não costumo


frequentar as aulas. Qual avaliação tenho que fazer para não reprovar?”.

Por sorte, nunca morei perto do local de trabalho, então


usei o tempo de deslocamento casa-trabalho-casa para pensar em
respostas gentis e firmes na intenção de auxiliar os estudantes a
renovarem o significado sobre sala de aula – convidei-nos a per-
cebê-la enquanto espaço de relações cognitivas-sociais-afetivas.

SUMÁRIO 73
Ainda assim, estava dentro de um vidro, pois me preocupara em
demasia com a seleção de conteúdos para as disciplinas ao invés de
elaborar convites e construir situações em que pudéssemos construir
um roteiro de aprendizagem juntos a partir das nossas realidades e
daquilo que poderíamos adquirir por meio de pesquisa e leitura.

Depois de configurada a hipótese de que eu atuava enquanto


professora envidraçada, passei a me instrumentalizar com estraté-
gias para quebrar este ciclo regressivo – que concebe o curso de
Ensino Superior enquanto espaço restrito à formação profissional. E,
por isso lhe escrevo: sou extremamente grata pela exposição clara
e convidativa de suas obras6 que me auxiliou a pensar na educação
enquanto caminho para emancipação de estudantes e professores
e me motivou a buscar estratégias para criar aulas, que fossem solo
fértil ao exercício do pensamento crítico sobre a realidade, para que
os estudantes e eu pudéssemos renovar nossa capacidade de trans-
formar ao meio e a nós mesmos.

Além de retomar as leituras de suas obras, pude contar com


o apoio de parceiros de trabalho – havia uma professora disposta a
refletir sobre o fazer docente comigo, trocamos ideias e definimos a
interdisciplinaridade enquanto estratégia metodológica para turmas
em comum – definimos juntas referências, o cronograma de ensino,
uma quantidade maior de debates do que aulas expositivas, abertura
às indicações de leitura por parte dos estudantes, estudos de caso e
de situações problemas com espaço para formulação e proposição
de prática pedagógicas. Yara7 e eu estávamos determinadas e instru-
mentalizadas para a saída de nossos vidros.

6 Mais especificamente: Pedagogia do oprimido; Pedagogia da autonomia; Educação como prática


da liberdade.
7 Esse nome é fictício – escolhi em homenagem a minha primeira professora – e, representa várias
professoras, professores e coordenadores de instituições onde trabalhei que foram parceiros em
empreitadas pedagógicas significativas aos nossos processos de ensino-aprendizagem e às
nossas vidas. Devido à isso, também chamo essas Yaras de amigos da educação.

SUMÁRIO 74
Após apresentarmos a interdisciplinaridade enquanto
metodologia de ensino e informarmos que os instrumentos de
avaliação seriam definidos ao longo do semestre, alguns estu-
dantes nos responderam:

“– Ok, mas o que vocês querem que a gente faça, mesmo?”.

“– Interdisciplinaridade quer dizer então que as duas vão


fazer provas iguais?”.

Freire, foi doloroso perceber que os acadêmicos estavam den-


tro de vidros (estariam esses estudantes apresentando-nos sintomas
de Pedagogia do Oprimido?). Então, Yara e eu definimos que o obje-
tivo de aprendizagem primeiro de nossa proposta interdisciplinar seria
o ato de ‘desenvidraçamento’ – uma experiência laboratorial conciliada
aos conteúdos programáticos. Começamos destituindo a ideia de que
os vidros deveriam ser lacrados quando estivéssemos em sala, conce-
bendo a sala de aula enquanto local de interação. Decidimos que os
espaços de fala seriam dedicados para captarmos informações que
pouco a pouco utilizaríamos para convidá-los a sair do vidro – nós
duas ocupamos muitos cafés, conversas por troca de mensagens de
texto e, chamadas de vídeo até formular as primeiras ideias (docência
requer tempo). Pedimos que os acadêmicos desenvolvessem produ-
ções textuais que nos ajudassem a saber sobre o desenvolvimento de
suas ideias acerca da relação entre as suas experiências, o conteúdo
programático e o seu conceito de sala de aula (atuávamos em cursos
de licenciatura). Esses textos poderiam ser entregues impressos, por
aplicativos de mensagens de texto no celular, e-mail, murais virtuais
interativos ou até sinal de fumaça (risos).

O diálogo – que formalizamos por metodologia de debate,


para que os estudantes não se assustassem pelo fato de que querí-
amos mesmo era conversar com eles – foi recurso primoroso para
convidá-los para escapadelas dos vidros. Começamos perguntando
sobre as realidades em sala de aula já conhecidas por eles, e, alguns
respondiam ainda de dentro de seus potes:

SUMÁRIO 75
“– Não sou professor(a), não tenho experiência em sala de aula.”

Após ouvir essa resposta muitas vezes, observamos que seu


significado costuma ter mais a ver com medo de exposição ou com
a certeza de que sala de aula não é local para expor dúvidas do que,
de fato, com falta de experiência. Então, respondi com afetuosidade:

“– Não estou me referindo à sua carreira docente. Estou que-


rendo saber mais sobre o que você vivenciou nas escolas que fre-
quentou independentemente da posição ocupada. Poderia nos contar
sobre algo vivenciado por você em algum momento da vida escolar?”

Pouco a pouco, estudantes saíram do vidro para dizer o que


viveram e sentiram na escola. Suas lembranças raramente eram
sobre metodologias e conteúdo, elas tinham mais informações sobre
as experiências de convívio, sobre o que atualmente fazia sentido
ou não para os seus valores e sobre processos que influenciaram
na construção da própria identidade. À medida que valorizávamos
a fala dos estudantes, nossa sala de aula tornou-se um conjunto de
individualidades e, por isso, mais alunos cabiam nela (começamos
a ter menos faltas para registrar no diário). O ponto auge de nossas
conversas foi quando um número significativo de acadêmicos saiu
do vidro para dizer o que não gostaria de repetir quando se tornasse
professor. O melhor, é que eu e os outros saíamos dos vidros para
ouvir as histórias e as ideias sobre quais ciclos escolares regressivos
(vidros) estávamos dispostos a quebrar.

Com o passar do tempo e com o aumento da frequência


dos diálogos, as histórias de vida pessoais não se separavam mais
da vida acadêmica e fomos desfragmentando a ideia de que é o(a)
professor(a) quem sabe e determina tudo o que deve acontecer em
sala de aula (ufa!). Conseguimos ensinar uns aos outros e construir
maneiras cada vez mais particulares e sofisticadas de aprender jun-
tos: criamos portfólios e jogos, elaboramos vídeos, murais digitais,
artigos, resenhas e mapas mentais que foram nossos instrumentos

SUMÁRIO 76
para interpretação e elaboração de conhecimentos – definidos pela
particularidade das turmas e de seus indivíduos (sim, nossas aulas e
estratégias de avaliação consideravam particularidades). Essa rotina,
nos conduziu à conceber a sala de aula enquanto espaço social
complexo – desde então não tive aulas que pudessem ser repetidas
ou replicadas, pois a realidade dos estudantes se tornou o ponto de
partida para a relação didática a ser estabelecida.

Tiago8 foi o primeiro estudante a quebrar o seu vidro e se


libertar. Ele disse a nós que ser homossexual, favelado e professor
não é fácil. Nós decidimos juntos que iremos nos esforçar para gos-
tar mais de coisas difíceis (risos). Tivemos momentos produtivos
para nossa construção enquanto pessoas ao mesmo tempo que
fazíamos debates ricos sobre aspectos das teorias estudadas (ao dar
significado para nossa rotina na universidade nos tornamos mais
motivados e produtivos, nossas aulas rendiam!).

Outros acadêmicos saíram do vidro, mas o guardaram num


canto da sala justificando que poderiam precisar voltar para se aque-
cer ou contemplar o silêncio – era o caso de Maria9, que frequente-
mente argumentava sobre as proposições pedagógicas de nossas
leituras e debates com respostas padrões:

“– Isso não dá para fazer lá na minha escola, pois...” não


tem recurso, os alunos não querem, os pais não colaboram, ou, a
direção não permite.

Subentendidamente, ela também dizia: quando esse assunto


vir à tona em minha escola, eu entro no vidro! (risos).

8 Nome fictício em homenagem ao meu primeiro aluno (de atendimento educacional especializado
no estágio não obrigatório que fiz enquanto cursei a Licenciatura em Pedagogia). Nesta carta, o
nome Tiago representa muitos estudantes com quem tive a honra e a felicidade de aprender sobre
sexualidade, gênero e afeto.
9 Nome fictício.

SUMÁRIO 77
Embora acometida pelo ímpeto de querer puxar alguns
do vidro, não forcei ninguém a sair, pois percebi que se trata de
uma caminhada requerente de decisões autônomas, embasadas
em valores que fomentem aos estudantes o significado de dig-
nidade e humanidade.

Freire, considerando a Pedagogia da autonomia, sair do


vidro é reflexo da emancipação humana? O ato de não sair seria
consequência do medo da liberdade? Por favor não responda! Quero
construir minha trajetória para a saída definitiva do vidro refletindo
sobre essas questões.

Com carinho e gratidão, Olivia.

REFERÊNCIAS
ROCHA, R. Quando a escola é de vidro. In: ROCHA, R. Este admirável mundo louco.
Ilustrações de Walter Ono. Rio de Janeiro: Salamandra, 2003.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 2021. 144p.

SUMÁRIO 78
Cristiane Gomes Oliveira Arraes de Almeida

CARTA EM
HOMENAGEM
A PAULO FREIRE
Prezado Paulo Freire,

Escrevo estas palavras com um grande sentimento que


me invade. Ele cresce em meu peito toda vez que penso no sau-
doso Paulo Freire e me lembro de seus ensinamentos, o sen-
timento de esperança.

Sim, é estranho pensar em esperança, talvez você leitor esteja


pensando, dado o fato de que estou homenageando um homem
que já se foi desta vida, e então a palavra deveria ser saudade, pois
é o sentimento comum quando perdemos para a morte alguém
muito querido, mas não.

Sem dúvida, falo do sentimento que me move e que me


impulsiona nestas linhas e em minha vida, a esperança. A esperança
de um país melhor para todos, para meus filhos, os seus e daqueles
que ainda irão nascer nesta terra, e da necessidade que esta gera-
ção tem de esperançar.

Em tempos de barbárie, de falsos patriotas, e eu sei que


vocês sabem do que estou falando. Paulo Freire, sim, foi um grande
patriota que lutou pelo seu povo e foi exilado por defender a educa-
ção da nossa gente. Toda a sua jornada de vida e o legado de seus
ensinamentos são de uma riqueza ímpar, e nos dá esperança, nos diz
que é possível mudar a realidade desumana que é ver e viver injusti-
ças, lidar com a morte e a violência crescentes contra o povo negro
e o povo pobre nas cidades e nas favelas, a morte do povo indígena
yanomami, isso somente para dar alguns exemplos. Enfim, termos
que ver, assistir pelo noticiário ou ver nossos irmãos morrendo e ter
que nos acostumarmos com isso.

Vejam bem, sou uma mulher branca, filha de um pedreiro e


uma dona de casa. Estou terminando o ensino superior na Baixada
Fluminense do Rio. Já levei uma bala perdida, mas, para minha
sorte, foi de raspão. Onde moro, às vezes, a violência nos abala, nem
de longe sei o que é perder alguém que amo estupidamente pela

SUMÁRIO 80
violência policial ou pelo crime organizado, mas o que quero dizer é
que a realidade da nossa sociedade é feia, e não aguento mais ver e
ter que me acostumar com isso.

E com minha revolta vem a ideia de que nunca vou me


acostumar a ver que as pessoas ricas deste país preferem cruzar
os braços e, simplesmente, explorar a mão de obra barata vasta, se
aproveitando da falta de educação, perspectivas, oportunidades e
opções, porque é disto que se trata a desigualdade social: se apro-
veitar da desesperança das pessoas e explorá-las, oferecer pouco
em troca de muito trabalho e desdém por acreditar que os pobres
têm que ser gratos pelas migalhas que nos jogam de sua mesa farta.

Isso é triste, é feio, corresponde a mais vil forma de humilha-


ção, rebaixar o pobre, o preto, os lgbts, as mulheres, os indígenas,
nos rebaixar a todos para que se sintam seres superiores.

Mas você deve estar se perguntando: cadê a esperança de


que ela falou no início?! Bem, me desculpem se segui por um cami-
nho sombrio, mas ocorre que a falta de esperança é feia demais,
dolorida demais, para deixarmos de lado, é um sofrimento muito pro-
fundo ver seus filhos passando fome, ou sem perspectivas de futuro,
é dilacerante demais para nós nos acostumarmos com isso.

Quando penso nos meus pais, um baiano e uma carioca,


filhos de pais nordestinos e analfabetos... meus pais estudaram até
o Ensino Médio e pouco puderam nos oferecer, a meus irmãos e eu.
Me dou conta de que o progresso é lento e a estrada fica mais longa
ainda quando não se pode contar com os estudos. Dos três eu sou a
primeira da minha família a conseguir concluir o ensino superior, só
em dezembro, e realizar meu sonho antigo de cursar uma universi-
dade pública... e farei isso depois de três filhos e dos 39 anos.

Mas pude ter a sorte de escolher o curso de Pedagogia, onde


conheci Paulo Freire e isso mudou minha vida para melhor.

SUMÁRIO 81
Eu sempre fui observadora, e após transitar e conhecer dife-
rentes tipos de pessoas que são da classe trabalhadora, mas que
ganham salários muito diferentes, e portanto, têm condições finan-
ceiras diferentes e conseguem manter suas famílias conforme o que
ganham, uns com muita dificuldade, outras nem tanto, pude notar
que as diferentes formas de viver e de ler o mundo que os cerca pode
ser determinante para a leitura de realidade da sociedade.

Quero dizer que todas as faixas econômicas das pessoas com


quem convivi e acompanhei determinam o tipo de esperança que as
pessoas têm na vida, mas não necessariamente lhe dá a consciência
de lugar no mundo que essa pessoa ocupa na estrutura social. Também
pude notar que a individualidade cresce nas pessoas conforme
aumenta sua renda e sua qualidade de vida, de forma geral, é claro.

Infelizmente, existem pessoas que, conforme avançam em


seus níveis de escolaridade, mais elas perdem a esperança na socie-
dade e nos governos, mais acreditam que chegaram a ascender em
suas vidas apenas pelos seus esforços, e aqueles que não conse-
guem o fazem por preguiça ou falta de vontade, ou seja, aquelas pen-
sam e tentam ser como os indivíduos da classe dominante, menos
elas acreditam que ainda pertencem a classe trabalhadora, por
serem médicos, advogados, engenheiros enfim, mais acreditam que
estão conseguindo “ficar ricos”. E assim tentam socialmente punir as
pessoas que não têm tanta escolaridade quanto elas, assim como
Freire nos disse que, quando a educação não é libertadora, o sonho
do oprimido é se tornar o opressor.

E é aí que entra o papel de uma mulher como eu, uma edu-


cadora recém-formada em Pedagogia pela UFRRJ. Devo dizer que
somos uma classe renovada, advindas depois da expansão da univer-
sidade pública nos anos 2000. Nos formamos na Universidade pública
e adquirimos nossa consciência de classe com Paulo Freire, leitura
obrigatória em nosso currículo de educação no Brasil e no mundo,
e finalmente temos a chance de pisar no chão da escola e fazer a
diferença sobre esta realidade dura.

SUMÁRIO 82
A realidade hoje é que o nosso povo tem que saber como a
sociedade capitalista funciona e que podemos alterar a realidade que nos
cerca com nossas ações, com nossos pensamentos e com a conscien-
tização de nossa classe, de que existe um conflito de interesses e esta-
mos servindo de ferramentas de acúmulo de capital na mão de poucos.

A escola é um ambiente transformador. Ele deve ser tomado


como tal por nós, intelectuais orgânicos anônimos, oriundos da
classe trabalhadora, mulheres, pretos, indígenas, quilombolas, LGBT,
enfim todos nós tradicionalmente excluídos da riqueza e do conforto
para vivermos nossas vidas apenas servindo aos outros por muito
menos do que merecemos ou precisamos.

Devemos nos unir, e nosso saudoso Paulo Freire nos deixou o


tesouro mais importante, a ferramenta essencial necessária na trans-
formação do pensamento do povo brasileiro pobre, a esperança na
educação como agente transformadora. Por isso, serei eternamente
grata a ele por ter a oportunidade de fazer parte desta luta, a luta
pelo direito à dignidade, à vida feliz.

Os jovens dos dias de hoje precisam ter esperança neste


país, e precisam saber que esta sociedade, este universo, pode, sim,
ser transformado através de sua esperança em um futuro e um pre-
sente melhor para si e para todos.

A semente da esperança deve ser plantada nas crianças,


regada nos jovens e deve florescer e dar frutos na vida adulta. Talvez
se a semeadura do amor e da esperança for bem feita nas crianças
da classe trabalhadora através da escola hoje, a colheita nos adultos
de amanhã seja o verdadeiro catalisador de uma mudança social
significativa e libertadora. Por isso, Paulo Freire é o maior educador
que já existiu, pois ele angariou uma legião de intelectuais dispostos
a mudar este país para a melhor. E viva Paulo Freire!!!

Rio de Janeiro, 04 de setembro de 2023.

Cristiane.

SUMÁRIO 83
Antônia Maria Prado de Araujo

CARTA PARA
PAULO FREIRE
Prezado Paulo Freire,

A oportunidade de escrever-lhe esta carta é um portal que


me permite atravessar o tempo, revisitar minha história enquanto
aluna e projetar minhas experiências para minha práxis pedagógica,
servindo-me dos conhecimentos adquiridos, porém, com estratégias
diferentes, e parte disso, graças à criticidade, amorosidade e ações
dialógicas sugeridas por você.

É com gratidão e reconhecimento que partilho com você


alguns passos dessa caminhada de idas e voltas, de angústias e
superações. Sei que gosta de dialogar sobre Educação. Nós, que
acompanhamos suas angústias e, obviamente, os êxitos, sabemos
que é de suma importância estabelecermos essa interlocução, pon-
tuando, dentro de nossas possibilidades, o que já deu certo e o que
está por vir, através de suas contribuições tão valorosas. Conforme
dito na obra Pedagogia da Esperança, “minha esperança é neces-
sária, mas não suficiente [...] ela só não ganha a luta, mas sem ela a
esperança fraqueja e titubeia”.

Então, eu fui uma aluna de classe multisseriada, que sofreu


com a opressão, especialmente por causa da matemática. Apanhei,
literalmente, de palmatória na escola, nas arguições da tabuada. O
resultado disso é que até hoje não sei a “casa do 7” e nem a “casa
dos 9”. Além disso, sofro de um certo bloqueio (não memorizo datas
e números de um modo geral).

Contudo, sempre me sobressaí na leitura e na escrita. Mais


adiante lhe falarei sobre os pontos positivos dessa afeição.

Quero ainda falar dos “estragos” que o bullying fez em minha


vida, quando fui estudar em São Paulo, pelo meu sotaque baiano nor-
destino. Sou uma pessoa extremamente ansiosa, já sofri depressão
e fobia social. Tais agravantes ainda me fazem sofrer muito quando
preciso falar em público. De tudo isso e muito mais, pude compre-
ender, de certo modo, o que é salutar e o que pode causar danos na

SUMÁRIO 85
vida dos estudantes. Claro que com a leitura de suas obras, essas
questões se tornam mais claras. Certamente que achar é diferente
de pensar. E o seu pensar é uma bússola para a rota certa, é âncora
que nos firma no terreno do nosso ofício. Ratifica minhas palavras,
entre outros, o seu pensamento: “me movo como educador, primeiro,
porque me movo como gente” (Pedagogia da Autonomia).

Ah! Sobre o meu amor pela leitura e pela escrita, não poderei
deixar de fazer alguns relatos. Eu comecei a escrever na areia aos
dois anos de idade (o que à época, chamava a atenção das pessoas).
Recentemente, com mais de sessenta anos de idade, lancei meu
primeiro livro: À tona: páginas de areia. Ah! Sim, eu cursei Letras
com Literatura, depois dos 40 anos. Fiz especialização em Estudos
Linguísticos/Técnicas de Leitura e Produção Textual.

Produzir textos é, para mim, uma questão vital. O dia que eu


não escrever é porque eu morri!

Desde minha adolescência, eu era “escriba”, como a persona-


gem do filme Central do Brasil. Eu escrevia cartas para pessoas anal-
fabetas, especialmente para as esposas enviarem aos seus maridos
que foram trabalhar na construção de Brasília (os candangos).

Hoje, escrevo cartas como partícipe do projeto Cartas para


a Vida. Ademais, sou poeta e membro da Academia Barreirense de
Letras. Sou professora emérita da Secretaria Estadual de Educação da
Bahia, e prossigo pela trilha condizente... escrevi, escrevo e escreverei.

Ainda tenho muito para lhe contar, Freire querido, mas,


especialmente, muito ainda a aprender. Envio em anexo uma outra
carta que escrevi para comemorar o seu centenário, um intertexto
da carta de São Paulo, que trata da Caridade em relação à Educação
segundo suas concepções.

SUMÁRIO 86
Hoje vou me expressar utilizando o recurso da intertextuali-
dade, haja vista a importância e a correlação das palavras dialógicas
e de amorosidade entre São Paulo e Paulo Freire.

Ainda que domines todos os signos linguísticos,

Que conheças as doutrinas científicas e filosóficas,

Se não socializares, serás escriba sem leitor e verbalizador


de falácias.

Que a amorosidade seja tua estratégia,

O diálogo teu recurso,

A esperança teu escudo!

Que a Educação saiba ler e escrever o mundo!

E que a escola seja o espaço de todos os passos para a vida


inclusiva no contexto de cada indivíduo!

Educação é reciprocidade, não opressão.

É acolhimento e esperança. Não pode ser excludente.

Uma Educação que liberta é constante e nunca há de restringir,

Caso contrário, mestres e estudantes voltarão na contramão


do tempo.

Viva a leitura de mundo em todos os idiomas pela lingua-


gem freiriana!

Externo aqui, mais uma vez, minha gratidão por tudo e por tanto!
A sua maneira de pensar tem transformado a Educação no mundo.

Abraços!

Antônia Prado

SUMÁRIO 87
Lucinete Teixeira dos Santos Sampaio

A EDUCAÇÃO
COMO ATO POLÍTICO
DE TRANSFORMAÇÃO
E LIBERTAÇÃO
Caro amigo Paulo Freire,

Estamos tentando voltar “à normalidade” depois de um tur-


bilhão de acontecimentos. Nos últimos quatro anos, vivemos coisas
que jamais imaginaríamos, passamos por um desgoverno fascista,
racista, homofóbico, genocida que bombardeou nossa Cultura e
Educação, inclusive, com ataques a sua pessoa. Como se não bas-
tasse, fomos acometidos por uma pandemia, a COVID-1910, que tirou
a vida de milhares de pessoas em todo o mundo, e, no Brasil, as
perdas foram ainda maiores pela falta de políticas públicas que con-
tribuíssem para diminuição dos impactos da doença. Foram tempos
difíceis, que deixaram marcas na nossa sociedade.

No pós-pandemia, ainda persistem desigualdades sociais


que afetam todos nós e que alargou o abismo entre os mais ricos e
os mais pobres. Na educação, aumentou-se a utilização de tecnolo-
gias digitais no ensino, a adoção de modelos de ensino híbrido que
se tornaram grandes desafios na aprendizagem, desdobrando-se
em desigualdades educacionais agravadas. Tornou-se necessário
um esforço contínuo de todos nós, educadores e educadoras, para
dar conta de tantos desafios. O seu legado é o que tem nos inspi-
rado a continuar a lutar por uma educação transformadora e eman-
cipatória para todos.

Não sei se você se lembra, mas, me tornei educadora na


Educação de Jovens e adultos e pesquisadora da área. E tenho
nas suas obras um suporte teórico importante para a constru-
ção da minha pesquisa.

O seu trabalho com alfabetismo, por exemplo, foi e continua


sendo um modelo, uma possibilidade de as pessoas realizarem uma
leitura crítica do mundo que as cerca e, consequentemente, de trans-
formá-la. A relação que você estabelece entre o homem e a natureza

10 A Covid-19 é uma infecção respiratória aguda causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, potencial-
mente grave, de elevada transmissibilidade e de distribuição global.

SUMÁRIO 89
atravessados pela cultura nos permite refletir sobre a compreensão
do homem no jogo de suas relações com esses mundos, consti-
tuindo e, ao mesmo tempo, sendo constituído em meio à cultura. Por
que digo isso? Porque, meu caro amigo, venho observando que as
pessoas estão envoltas numa cultura capitalista de massa, pautada
na individualidade e na meritocracia, indo na contramão do que seria
uma sociedade justa e igualitária e, sobretudo, humanizada.

Conhecendo seus ideais para educação, como algo que não


é desvinculado da vida pulsante dos indivíduos e que têm em si
um mundo real, exigindo de nós uma atitude crítica, tenho pensado
nessas questões e buscado alternativas criativas para minha práxis
em sala de aula. Como você mesmo disse, “somente a formação e
o desenvolvimento de uma consciência capaz de apreender critica-
mente as características dessa realidade particular possibilitariam o
exercício de sua atuação criadora.” Entendo que o não determinismo
sobre o indivíduo é capaz de emancipá-lo a partir de sua cons-
cientização. Para explicar essa possibilidade, você nos apresenta
o conceito de inédito viável, se referindo à solução para problemas
que estão além das situações-limite. Como algo futuro a ser criado,
ou seja, uma realidade que ainda não está posta, mas se configura
como um projeto possível e em vias de se realizar. Por isso, o “inédito
viável” constitui a força motriz da ação humana para a concretiza-
ção de uma sociedade idealizada e sonhada, trazendo o esperan-
çar para nossas vidas.

Considerando o conceito de inédito viável, nós, educadores e


educadoras, devemos criar espaços educativos favorecedores dessa
conscientização, para promover uma educação que seja libertadora
e emancipatória para os indivíduos que aprendem. Para isso, preci-
samos considerar os diferentes graus de apreensão, ou seja, os varia-
dos níveis de consciência que os homens têm diante da realidade.

Você aponta três níveis de consciência: a primária, a mágica


ou a crítica e que a educação deve buscar desenvolver a consciência

SUMÁRIO 90
crítica por ser ela capaz de rejeitar a passividade e se caracterizar
por uma atuação capaz de rever as posições, apresentar uma per-
manente reflexão, uma busca do rigor do raciocínio, da prática do
diálogo com embasamento, o acolhimento ao novo sem a rejeição
do antigo, e formas de vida flexíveis, questionadoras, ativas e autênti-
cas. Como essa consciência crítica fez falta nos últimos quatro anos!
Às vezes, me pego questionando: onde foi que erramos? Quanto
retrocesso! Você acredita que fomos bombardeados por fake news,
causando desinformação, polarização, prejuízos à reputação de pes-
soas e instituições, além de influenciar negativamente o processo
democrático? Fomos ameaçados por um golpe, acredita?

Você, não sabe, mas, me acompanhou nas discussões sobre


educação durante meu curso de mestrado. Nessa oportunidade
conheci um teórico que apresenta algumas aproximações com suas
ideias. É um pesquisador cubano, chamado Luís Fernando González
Rey, teórico da subjetividade, na área da psicologia, que de maneira
análoga à sua defende uma educação que se apoie no diálogo e em
processos de criação e autoria dos educandos e educandas, como
forma de favorecer momentos de produção e implicação subjetiva,
superando a educação mecânica e reprodutivista, tão presente
ainda hoje na escola.

Refletindo sobre tudo que li, estudei e venho estudando, com


o seu auxílio, chego à compreensão de que educar como um ato
político não pode se transformar em um simples “jargão” como tan-
tos outros utilizados na educação, nem tampouco fazer parte apenas
de uma composição escrita de um texto, é fulcral que a essência
desta ideia assumida, por nós educadoras e educadores seja mate-
rializada em todas as esferas educativas e na própria inconclusão do
homem e de sua constituição histórica.

Lucinete

Brasília, primavera, 2023.

SUMÁRIO 91
Nívia Barreto dos Anjos

MINHA APROXIMAÇÃO
TEÓRICA, METODOLÓGICA,
ÉTICA E POLÍTICA COM
PAULO FEIRE
Querido Paulo Freire,

Minha aproximação teórica, metodológica, ética e política


com você é bem interessante! (E permita-me chamá-lo de você,
porque me sinto muito próxima). Eu sempre fui sua fã, porém, como
marxista impenitente (termo utilizado por José Paulo Netto), nunca fui
sua seguidora. Durante os meus 29 (vinte e nove) anos de formação,
sempre utilizei seu pensamento nas dinâmicas de grupo que desen-
volvia com os estudantes. Inclusive mandei fazer vários quadros com
a frase “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem
ela tampouco a sociedade muda” (Freire, 2022a, p. 77) para colocar
em todos os quartos da Residência Estudantil do Instituto Federal
em que trabalho. E olhe que tive que fazer um projeto muito bem
fundamentado para justificar o investimento. Todo início de semestre
fazia reunião, quarto a quarto, com os estudantes e eu, a Pedagoga
e o Psicólogo, trabalhávamos sua frase, levando os educandos a
refletirem sobre a realidade social e a importância da luta por uma
sociedade na qual a dignidade humana seja uma prioridade.

Todavia, existia um embate na minha vida, porque eu,


enquanto Assistente Social podia “usar” Paulo Freire, porém como
acadêmica não. Afinal, você afirmava que “para fazer uma análise de
classe[...] os instrumentos de análise marxista foram válidos algumas
vezes, mas agora precisam ser refinados...” (Freire; Shor; 2021, p.
190 – grifo nosso). Por isso, eu, Assistente Social marxista impeni-
tente, só podia mesmo citar suas lindas frases, jamais aplicá-las na
minha vida acadêmica. E olha que eu nem percebi naquela época o
quanto eu estava errada. Inclusive a professora Larisse Brito11 (2023)
fez um comentário em uma aula de Política Social na Universidade
Federal da Bahia (UFBA) que me fez refletir sobre o seu pensamento:

11 Aula de Política Social, ministrada no curso de Serviço Social da Universidade Federal da Bahia,
Campus São Lázaro, pela professora doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal da Bahia, Larisse Miranda de Brito, em 16/09/2023.

SUMÁRIO 93
Se tudo que vivemos girasse em torno apenas da rela-
ção capital X trabalho, uma mulher preta dona dos meios
de produção, detentora de capital e/ou pertencente às
classes mais altas da nossa sociedade, não continuaria
a sofrer racismo. Por isso, sem desconsiderar a análise
marxiana de (re) produção do capital, devemos também
incluir o debate dos símbolos culturais que forjam rela-
ções mais complexas que àquelas reduzidas à área eco-
nômica (Brito, 2023, p. 43 – grifo nosso).

Ao ingressar no meu tão sonhado e almejado Doutorado em


Serviço Social no Instituto Universitário de Lisboa, não imaginava o
tamanho dos obstáculos que iria enfrentar, mas o maior deles tal-
vez tenha sido adentrar aquela biblioteca tão deslumbrante e pro-
curar, sem sucesso, meus escritores favoritos. Então achei um livro
bem velhinho no meio daqueles novos... E era a sua Pedagogia do
Oprimido. Encontrei, também, uns livros de Faleiros e outros de José
Paulo Netto. Nas aulas do Doutorado, vocês três eram os únicos
autores brasileiros citados (e você bem mais do que os outros).

Comecei então a pesquisar a dimensão política da minha


profissão e tomei como referencial teórico quatro autores: Jim Ife
(2004), da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que estuda
os três princípios dos Direitos Humanos: - Pós-modernismo; -
Prática Anticolonialista; - O pessoal e o político; Dois autores isra-
elenses: Gal, J e Weiss-Gal, I (2014) que abordam sobre os valores e
pressupostos da Dimensão Política: - A Prática Política; - Mudança
Social; - Envolvimento da Política; E, por fim, a autora portuguesa
Graça André (2011) que desenvolve uma tese sobre os objeti-
vos centrais dos Direitos Humanos: - O Respeito pela Dignidade;
- A Autodeterminação; - A Justiça Social.

Eles são excelentes escritores, mas a minha saudade do


meu Brasil e aquele frio levavam-me ao desânimo. Eu me sentia em
um exílio. E você afirma que “No fundo, é muito difícil viver o exílio,
conviver com todas as saudades diferentes – a da cidade, a do país,

SUMÁRIO 94
a das gentes, a de certa esquina, a da comida...” (Freire, 2022b, p. 47).
E olhe que o meu, diferente do seu, foi opcional, mas comer bacalhau
todo dia é difícil para uma nordestina, imagine entrar no mar e ten-
tar tomar banho em uma água que deixa o corpo dormente de tão
gelada, isso em pleno verão. Mas como você argumenta, a saudade
não pode virar nostalgia.

Aliviando minha saudade, acabei encontrando você naquela


biblioteca em livros escritos na Califórnia e na Inglaterra. Foi muita
emoção! A partir deste momento, o meu envolvimento com você
passou a ser teórico, ético, metodológico e, principalmente, político.
Primeiro, foi estudando uma autora californiana chamada Donna
Mertens que percebi que era impossível pesquisar a Dimensão
Política do Serviço Social sem me apropriar das suas ideias. Convém
destacar que Mertens (2005, 2009, 2018) em três livros vem estu-
dando o Paradigma Transformativo que é baseado na sua Pedagogia
do Oprimido. Para a autora, o Paradigma Transformativo tem rela-
ção com a luta pelos Direitos Humanos, possibilitando a libertação
das vozes abafadas dos oprimidos pelas estruturas de classe e pelo
neocolonialismo, pela pobreza, sexismo, racismo e homofobia. “O
paradigma transformativo fornece um guarda-chuva metafísico com
o qual é possível explorar semelhanças nas crenças básicas que fun-
damentam as abordagens de pesquisa e avaliação que foram rotula-
das de teoria crítica, teoria feminista, teoria racial crítica, participativa,
inclusiva, baseada em direitos humanos” (Anjos; Amaro, 2023, p. 07).
Agora sim, você entrou definitivamente na minha vida acadêmica, e
isso fez com que minha estada em Portugal se tornasse mais leve,
afinal você estava lá comigo.

Procurei logo escrever e publicar um artigo afirmando que o


Paradigma Transformativo era baseado nas suas concepções. A par-
tir deste momento, já não importava mais para mim ser uma marxista
impenitente e sim evocar a reflexividade da minha profissão, inclusive
percebendo que alguns conceitos marxistas realmente precisam ser
refinados. E você dizia que era preciso “reconhecer que a educação,

SUMÁRIO 95
não sendo a chave, a alavanca da transformação social, é, ainda
assim, indispensável à transformação social” (Freire, 2021, p. 39).

Minha orientadora, que é uma estudiosa do seu pensamento,


apresentou-me a obra de Margaret Ledwith (2016), famosa autora
inglesa que atualmente ensina na Universidade de Cúmbria, na
Inglaterra, a disciplina Justiça Social, e costuma afirmar nas suas aulas
que você possui um status de ícone entre educadores e trabalhado-
res culturais que buscam a justiça social, pois você traz uma prática
libertadora que gera mudanças. Então descobri definitivamente que
não estava mais sozinha em Portugal, eu estava com você: brasileiro,
nordestino, educador!

Depois de quase dois anos fora do meu amado país, enfim


voltei para fazer minha pesquisa de campo no Brasil. Que delícia:
o Nordeste, a Bahia, a família, o povo amoroso, as praias com água
quentinha, as comidas deliciosas! E comecei a me retratar com você,
estudando profundamente seu pensamento. Descobri que, no grupo
de pesquisa do qual participo, um dos líderes é um investigador de
suas obras. “Em Freire encontramos uma nova e complexa filosofia da
educação. Uma filosofia essencialmente comprometida com a crítica
da realidade e a conscientização. Ambas voltadas para o novo, para
o futuro, para a esperança” (Moreira, 2021, p. 158). Que maravilha!

Incrível que na leitura dos seus livros, foi possível perceber


que posso encaixar seu pensamento nas 9 (nove) categorias que
venho estudando em minha tese, porque sua preocupação maior
na verdade são os Direitos Humanos. Mas como você afirma que “a
malvadez das estruturas socioeconômicas [...] ganha cores mais for-
tes no Nordeste brasileiro, a dor, a fome (Freire, 2022a, p. 35), e, além
disto, que “sonhamos com uma sociedade menos agressiva, menos
injusta, menos violenta, mais humana” (Freire, 2022b , p. 67), com-
preendi a enorme diferença entre a Segurança Pública em Portugal e
no Brasil. Na minha segunda semana de pesquisa de campo em uma
universidade pública na Bahia, as aulas foram suspensas por uma

SUMÁRIO 96
semana, porque a guerra do narcotráfico e o confronto com a polícia
estavam tão pesados, que os estudantes corriam risco de bala per-
dida. E eu que tinha vindo daquela universidade pública em Lisboa
que possuía aquela biblioteca tão exuberante, só podia diante desta
situação parar e refletir em tudo que você escreveu a vida toda. “Não
sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial
e histórico[...] Minha esperança é necessária, mas não é suficiente.
Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia.
Precisamos da esperança crítica” (Freire, 2022b, p.15). Então eu não
podia fraquejar nem titubear, tinha que fazer minha pesquisa. Eu
devia isso a você! Afinal você diz que “urge que assumamos o dever
de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como o respeito à
vida dos seres humanos” (Freire, 2022a, p. 77).

Eu preciso escrever uma tese que retrate a dimensão polí-


tica do Serviço Social, que trabalhe cada uma das noves categorias
centrais dos Direitos Humanos. E por isso, eu só consigo enxergar
a boniteza do nosso país, da nossa terra, da minha Bahia e do seu
Pernambuco. E as pessoas costumam me dizer: “Você não sente
saudades de viver na Europa?” e eu sempre respondo: Nenhuma,
vá para uma fila de um Centro de Saúde lá e aprenda a valorizar o
nosso Sistema Único de Saúde, que foi fruto de uma Reforma Sanitária
pensada e construída coletivamente, que possui ainda muitos proble-
mas, mas que atende com qualidade aos cidadãos. Ou então, melhor,
vá pegar um ônibus em Sintra, e veja que no ponto formam-se duas
filas, uma dos brancos e outra dos negros. E por fim eu digo com um
sorriso: Vá estudar Paulo Freire e procurar entender todos os proble-
mas sociais que o mundo enfrenta, fruto de um sistema capitalista
desigual e opressor.

Concluo esta carta, meu amigo, lembrando que demorei


tanto para me aproximar de forma teórica, metodológica, ética e
política de você, mas agora sou uma das suas mais fiéis discípulas.
Assim como você sempre fez, acordo de madrugada para ler os seus
livros, tentando recuperar o tempo perdido. E prometo a você que,

SUMÁRIO 97
quando voltar da minha licença para o Doutorado, trabalharei seu
pensamento com os estudantes de uma forma completamente dife-
rente, aplicando na minha prática profissional cada livro que você
escreveu. Você é o Icone entre os pesquisadores que lutam pelos
Direitos Humanos e também o Inspirador dos Assistentes Sociais que
atuam na Educação Profissional e Tecnológica (estes são os títulos
dos meus dois novos artigos). Sua Pedagogia do Oprimido originou
o Paradigma Transformativo, porque o seu pensamento e sua pro-
posta de formação de uma consciência política fazem uma diferença
enorme neste mundo permeado por injustiças sociais.

Salvador, 12 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS:
ANDRÉ, G. M. Formar Assistentes Sociais para uma Mediação em Direitos Humanos.
Lusiadas. In: Intervenção Social, Lisboa, n. 38, 2. semester. 2011.

ANJOS, N. B.; AMARO, M. I. A relevância do paradigma transformativo na


contemporaneidade em estudos que envolvem temas sociais. In: Revista Macambira,
Serrinha-BA, v. 07, n. 01, p. 01-15, 2023.

FREIRE, P. Direitos Humanos e Educação Libertadora: Gestão Democrática da


Educação Pública na Cidade de São Paulo. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido.


Notas de Ana Maria Araújo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022a.

FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Rio de


Janeiro: Paz e Terra: 2022b.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 85.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 2023.

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SUMÁRIO 98
GAL, J.; WEISS-GAL, I. Policy practice in social work: an introducion. GAL, J.; WEISS-GAL,
I. (Org.) Social Workers affeting Social Policy: an International Perspective. Chicago:
University of Chicago Press, 2014. (pp. 1-16)

IFE, J. Human Rights and Social Work. Towards Rights-Based Practice. Cambridge:
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LEDWITH, M. Community Developmwt in Altion: Puttinh Freire into Practice. Grã-


Betanha. Universid de Bristol; Policy Press, Chicago. EUA. 2016.

MERTENS, D. M. An Introduction to Research. In: MERTENS, D. M. Research and


Evalution in Education and Psychology: Integrating Diversity with Quantitative,
Qualitative and Mixed Methods. 2. ed. California: Sage Publications, 2005. (p. 01-42).

MERTENS, D. M. Transformative Research and Evaluation. New York; London: The


Guilford Press, 2009.

MERTENS, D. M. Mixed Methods Design in Evaluation. California: Sage Publications, 2018.

MOREIRA, C. F. N. Método Paulo Freire, Trabalho com Grupos e Serviço Social. In:
SCHEFFER, G.; CLOSS, T.; ZACARIAS, I. (Orgs.). Serviço Social e Paulo Freire: Diálogos
sobre Educação Popular. Curitiba: Editora CRV, 2021. (p. 157-170)

SUMÁRIO 99
Sabrina Gomes dos Santos Costa Leite

ENTRE O MEDO
E A OUSADIA
Prezado Paulo Freire,

Escrevo esta carta para contar-lhe que valeu a pena! A sua


luta e a luta de tantos outros professores, pesquisadores e estudio-
sos por uma educação emancipadora e libertária, contribuiram para
que eu pudesse escrever esta carta.

“Permita que eu fale não as minhas cicatrizes. Se isso é sobre


vivência, me resumir a sobrevivência é roubar o pouco do bom que
vivi” (Emicida, 2019). Esse trecho da música AmarElo, cantada por
Emicida, faz referência à desigualdade social. Lamentavelmente, o
Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Essa
música foi uma das que mais ouvi durante o período da recente pan-
demia do novo Coronavírus. Confesso que refutava o gênero musical
rap, mas, a leitura de tua obra intitulada Pedagogia da autonomia:
saberes necessários à prática educativa, foi, para mim, um banho de
reflexões, que me permitiu perceber e tentar retirar algumas capas
entre as várias que possuo. Capas de negação, preconceitos, hipo-
crisia e de tantas outras que vestimos diariamente. Tal obra me fez
refletir sobre quem eu sou e o que eu desejo. Logo, me permiti e ousei
ouvir as músicas que não me imaginaria ouvindo, ler o que eu gos-
taria e sempre encontrava uma desculpa para não fazer, a aprender
a escutar ao invés de apenas ouvir, como você retrata em sua obra.

Paulo, no período da pandemia supracitada, onde milhares


de pessoas no Brasil e no mundo sofreram, tive a dor mais dura e
feroz em minha vida: a perda de minha mãe Almira. Ainda assim,
juntei forças para ajudar a família de um estudante, apoiando-me nas
ponderações de sua obra, que diz que não podemos nos fechar ao
sofrimento dos estudantes porque a escola lida com gente. Escrevi
a história da perda de minha mãe para ajudar aquele estudante a
compreender sobre o tema “morte”, pois tanto ele quanto sua família
estavam sofrendo muito com a morte da avó. E nesse processo fui
eu quem mais fui ajudada. Afinal, não somos ilhas, mas sim, sujeitos
únicos, com subjetividades, crenças, identidade, cultura e filosofias
próprias. Somos diversos e aprendemos uns com os outros.

SUMÁRIO 101
Na pandemia do novo Coronavírus e também no recente
período eleitoral em nosso país, pude perceber o tamanho da dis-
tância entre o que falamos e o que fazemos. Bauman (2015, p. 95)
nos alertou sobre essa incoerência ao escrever: “Vocês se surpre-
enderão ao descobrir o tamanho do fosso entre ideais e realidades,
palavras e ações”. Agora, no período pós-pandemia, estamos frente
a uma sociedade cada dia mais doente, ansiosa, deprimida e com
pensamento acelerado. Também temos enfrentado o aumento da
violência e de outros problemas sociais que afetam diretamente a
escola. Afinal, é também na escola onde se refletem as transforma-
ções e os problemas da sociedade.

Diante desse cenário, nunca se fez tão necessário a reflexão


e a disponibilidade para o diálogo – propósitos que foram marcas do
seu legado. Eu, filha de empregada doméstica, atualmente professora
efetiva da Educação Básica da Secretaria de Estado de Educação do
Distrito Federal (SEEDF), depois de 21 anos de docência, retornei
à Academia, onde curso mestrado em Política Pública e Gestão da
Educação na Universidade de Brasília (UnB), a qual apenas imaginei
fazer parte. Tantas vezes me disseram que aquele lugar não era para
mim. E eu acreditei. E quando ousei duvidar, olha aí, eu, em uma das
melhores universidades do Brasil, pesquisando sobre educação. E
nesse processo penso que posso ser instrumento de luta, em alguma
medida, contra a desigualdade social, as relações de poder e os
sistemas de opressão, porque me vejo como resultado das lutas de
outros que me antecederam.

No presente, pesquisando sobre a gestão democrática e a


participação das famílias na tomada de decisões da escola, reco-
nheço que somos uma sociedade jovem na compreensão da demo-
cracia e dos espaços democráticos. Temos muito ainda a aprender,
pois, a luta por uma educação para todos, em uma perspectiva crí-
tica, com um novo olhar para a sociedade que está em constantes
transformações, continua sendo o desafio a ser enfrentado.

SUMÁRIO 102
Retomando a música supracitada de Emicida, é uma das
mais profundas que já ouvi, pois traz a mensagem da compreensão
da negação de espaços a muitos sujeitos históricos que tem sido
marginalizados e oprimidos. Leandro, o nome verdadeiro do cantor,
usa o rap como forma de resistência, luta e engajamento. Por meio
de sua arte também tem buscado colaborar para que a realidade seja
transformada. Essa música, por exemplo, foi utilizada em uma cam-
panha de prevenção ao suicídio – enfermidade crescente no Brasil
e no mundo. Outro trecho da música diz: “Eu sonho mais alto que
drones. Combustível do meu tipo? A fome” (Emicida, 2019). Logo, me
vem a pergunta: fome de quê?

Em sentido figurado temos fome e pressa. Temos fome de sonhos,


de realizações, de dignidade, de saúde, de segurança, de inclusão, de
cidadania e de educação. Temos fome, pois somos muitos e diferentes.
Sabemos que somos um país de distâncias físicas, sabe-
mos que temos uma geografia que nos espanta e nos
separa em suas imensas distâncias. Mas, o Brasil, não é
apenas um país de distâncias materiais, o Brasil é um país
de distâncias sociais e de distâncias mentais, de distân-
cias culturais, de distâncias econômicas e de distâncias
raciais (Teixeira, 2009, p. 111).

O Brasil possui desigualdades em várias dimensões e,


assim como Teixeira (2009), compreendo o tamanho da respon-
sabilidade dos professores brasileiros e a importância de continu-
armos resistindo em prol de uma sociedade mais justa, igualitária,
democrática e inclusiva.

São muitas ações a serem desenvolvidas, entre as quais, a


valorização dos professores – sujeitos e atores, por vezes, despreza-
dos pela sociedade e pelo Estado e, muitas vezes, responsabilizados
pelo fracasso da educação brasileira. Dessa feita, recordo-me de
meus professores com carinho: Teresinha, Faruk, Helder e Adriana
Melo. Ah! Se eu pudesse, teriam o salário de um deputado e o pres-
tígio de um jogador de futebol. Quem sabe, um dia!

SUMÁRIO 103
Diante do que tratei nessa carta, considerando o enorme
desafio da educação e dos professores deste país, não posso
concluir sem agradecê-lo. Obrigada por não desistir, por levantar
a bandeira dos oprimidos e servir de instrumento de voz e ação!
Obrigada por contribuir para que várias pessoas deste país
pudessem também sonhar!

Embora muito seja preciso para reduzir as desigualdades,


vários sujeitos desse país e, creio que também do mundo, antes invi-
sibilizados, lograram transformar seus destinos a partir da educação
e de oportunidades, inspirando outros a mudar o mundo ou pelo
menos seu contexto. Por isso, valeu a pena!

Em tempos de reconstrução da democracia, os verbos odiar


e confundir tem sido conjugados diariamente por muitos. Por outro
lado, outros tantos, mesmo sem compreender ou aceitar, continuam
sendo influenciados pelos ideais e pelas marcas de seu legado.
Desse modo, os verbos esperançar, ousar, refletir e procurar também
continuam sendo conjugados.

Reproduzindo Evaristo (2016, p. 114), em sua obra intitulada


Olhos d’água: “E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um
olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução”.

Que possamos continuar buscando soluções entre o medo e


a ousadia, de modo a contribuir para a retirada da capa de invisibili-
dade de muitos e para mudanças no mundo.

Abraços fraternos de gratidão,

Brasília, 01 de outubro de 2023.

SUMÁRIO 104
REFERÊNCIAS
AMARELO. Emicida. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2019. 1 CD (48 min 48 seg).

BAUMAN, Z. A riqueza de poucos beneficia a todos nós? Tradução de Renato Aguiar.


Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Palhas, Fundação Biblioteca Nacional, 2016. 116 p.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 69.ed.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

TEIXEIRA, A. S. Educação é um direito: volume 7. Apresentação: Clarice Nunes. Prefácio:


Marlos B. Mendes da Rocha. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. (Coleção Anísio
Teixeira).

SUMÁRIO 105
Aúbe Soares de Queiroz Almeida

MINHA
PRIMEIRA CARTA
A PAULO FREIRE
Caríssimo Paulo Freire,

Olá! Sou professora, trabalho com adolescentes em uma


escola municipal periférica desta cidade de Barreiras. Escola onde
me encontrei e onde já tenho um significativo tempo em que atuo.
Sou pedagoga, formada por uma instituição pela qual tenho grande
apreço e que foi um divisor de águas em meu percurso profissional e
pessoal, a Universidade do Estado da Bahia.

Tenho dois filhos, e como a corujisse se faz presente, são


lindos. Daniel tem uma destreza muito boa para desenvolver textos
autorais, e Estela está agora descobrindo o mundo das letras. Um
mundo que a gente só conhece quando adentra esse universo sub-
jetivo. Para muitos, esse universo impõe algumas barreiras que não
os deixam aprender com proficiência.

A carreira no magistério há muito está presente em minha


vida. O entusiasmo às vezes se esvai, noutras se reconstrói, e então a
experiência vai se firmando como norte, às vezes como refúgio.

Educar necessariamente é um ato de amor. Ser educador não


é somente uma escolha profissional, mas também uma escolha de
vida. E neste ir e vir educando, a gente aprende e reaprende, numa
constante busca por um saber novo, crítico e emancipador. Logo,
concordo com você quando diz que,
por isso é que, na formação permanente dos professo-
res, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre
a prática. É pensando criticamente a prática de ou de
ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio
discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser
de tal modo concreto que quase se confunda com a prá-
tica (Freire, 2021, p. 40).

E ainda, agir de forma que sejamos honestos com o nosso


pensar e nossa prática. “Nos tornamos responsáveis por aquilo que
cativamos”. Daí o respeito à diversidade e o cuidado com quem ensi-
namos e ao mesmo tempo aprendemos.

SUMÁRIO 107
“A escola é feita de gente”. Somos gente. Cada ator que com-
põe o coletivo da escola tem suas individualidades, suas particulari-
dades, desejos, objetivos. Andamos nos corredores, adentramos as
salas de aula, e muitas vezes só passamos. Não olhamos de fato. Não
percebemos muitas vezes quem está a nos ouvir.

Outrora, certa vez, em um dos momentos de estágio, fizemos


um sarau no qual foi trabalhado um de seus livros, Pedagogia da
Autonomia. Momento bastante rico e reflexivo. Lembranças se eter-
nizaram entre os que aqui estão e entre outros que já partiram.

Hoje, ao ler um texto no computador, deparei-me com a


seguinte citação: “Sem a curiosidade que me move, que me inquieta,
que me insere na busca, não aprendo nem ensino”. Curiosidade,
palavra-chave para abrir várias portas.

Advém daí a busca...

A porta do conhecimento das coisas do mundo, e das coisas


dos livros, das academias, das aprendizagens formais. Enfim, a curio-
sidade tem me movido a buscar. E quanto mais o tempo passa, me
dou conta de que há muito a se desvelar, conhecer e viver.

Coaduno com seu pensamento quando afirma,


que a curiosidade como inquietação indagadora, como
inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta ver-
balizada ou não, como procura de esclarecimento, como
sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante
do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosi-
dade que nos move e que nos põe pacientemente impa-
cientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando
a ele algo que fazemos (Freire, 2021, p. 43).

Ser educador na atualidade requer, além desse saber dos


livros, o saber da empatia. Precisamos ter empatia. Nos colocarmos
no lugar do outro e perseverar na busca por mediar nosso objeto
tão almejado, o ensino e a aprendizagem de nossos alunos, de

SUMÁRIO 108
forma que, além do aprendizado dos livros, nós os ajudemos no
aprendizado da vida.

Logo, como você mesmo diz,


é exatamente neste sentido que ensinar não se esgota
no “tratamento” do objeto ou do conteúdo, superficial-
mente feito, mas se alonga à produção das condições em
que aprender criticamente é possível. E essas condições
implicam ou exigem a presença de educadores e de edu-
candos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente
curiosos, humildes e persistentes. (Freire, 2021, p. 52).

“Amorosamente acrescento”, que com todas as dificuldades,


incertezas, cobranças e labutas diárias, precisamos sorrir e contagiar
nossos estudantes, mostrando que estudar muitas vezes parece ser
um processo doloroso, mas que o ato de conhecer é fantástico. Esse
pensamento é ratificado em sua fala, assim disposto:
A alegria não chega apenas no encontro do achado mas
faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender
não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da
alegria. O desrespeito à educação, aos educandos, aos
educadores e às educadoras corrói ou deteriora em nós,
de um lado, a sensibilidade ou a abertura ao bem querer
da própria prática educativa de outro, a alegria necessária
ao que-fazer docente. (Freire, 2021, p. 64).

Despeço-me aqui.

Carinhosamente, Aúbe Soares

Barreiras (BA), 02 de outubro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 69. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

SUMÁRIO 109
Emilly Monteiro de Alcântara Silva

TECENDO CONEXÕES:
UMA CARTA REFLEXIVA
A PAULO FREIRE SOBRE DIÁLOGO
E CONSCIÊNCIA CRÍTICA
Estimado Paulo Freire,

Escrevo esta carta muito esperançosa, mas também pensa-


tiva sobre a realidade, o presente e futuro da educação na nossa
sociedade. Durante a minha jornada na graduação do curso de
Pedagogia, pude experienciar três estágios diferentes e digo com
convicção que todos me marcaram e deixaram ensinamentos,
daqueles que só a prática é capaz de proporcionar.

O último estágio que realizei foi nos anos iniciais do Ensino


Fundamental. Admito que estar em uma sala de aula com 30 crian-
ças de 7 anos de idade, na posição de regente, me fez refletir muito
enquanto futura pedagoga e também enquanto humana. Foi desde
a primeira semana de estágio que comecei a me questionar: Como
pode haver aprendizagem e conscientização sem diálogo, sem
escuta e sem afetividade? De que maneira os sujeitos poderão sentir-
-se seguros, acolhidos e capazes de aprender e atuar no mundo se a
educação não lhes dá espaço para a autonomia, o erro, a expressão?

Assim, foi com base no viés de uma educação pautada no


diálogo, na escuta e na afetividade que as indagações foram sur-
gindo em minha mente, perguntei-me tais coisas, pois vi nitidamente
a pureza, o desejo de saber e de ser escutada em cada criança que
pude conviver dentro da sala de aula. É nesse sentido que reforço
aqui o que traz em seus ensinamentos, que já tive, felizmente,
o prazer de ler em algumas obras. Nesta carta, em nome de uma
educação orientada para a autonomia, agradeço a você e clamo
juntamente por uma relação humana dialógica, que possibilite ao
educando identidade e confiança em ser quem se é, de saber ouvir,
falar e aprender em comunhão.

Sem dúvidas, uma aprendizagem que o estágio juntamente


com estudos e pesquisas me proporcionou foi o meu reconheci-
mento enquanto sujeito histórico. Observei-me em uma constante
busca de ser mais e cada vez melhor, reconhecendo erros e acer-
tos com humildade e autonomia. Como você afirmou “Gosto de ser

SUMÁRIO 111
gente, porque a história em que me faço com os outros e de cuja
feitura tomo parte é um tempo de possibilidades, e não de determi-
nismo” (Freire, 2018, p. 52). Diante dessa perspectiva, compreendi
que só serei capaz de praticar a pedagogia que defendo, entendendo
e reconhecendo a pedagoga que sou e quero ser.

Desde então, ao me entender como ser histórico, compre-


endo também o outro da mesma forma, aí está a boniteza de ser
gente. “Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do edu-
cando exige de mim, uma prática em tudo coerente com este saber.”
(Freire, 2018, p. 59-60). É desta forma que o diálogo, a escuta e a afe-
tividade se fazem presentes. Não podemos ignorar a educação como
uma prática humana, é preciso validar os sentimentos, as emoções,
os desejos e os sonhos, é preciso alma e também o rigor necessário
para ser uma profissional competente (Freire, 2018). Acredito que
seja uma questão de equilíbrio, não é mesmo?

Assim, para estar presente por completo em uma sala de aula,


compreendi que preciso me desprender de preconceitos, permitir
ser humana e agir com compaixão com aqueles que me cercam,
seja com crianças, jovens, adultos ou idosos. Pois, de toda forma,
“o nosso trabalho é um trabalho realizado com gente” (Freire, 2018,
p. 141). É nesse sentido que afirmo que uma educação humanizada
não é um despropósito, muito pelo contrário, ela é capaz de provocar
mudanças, de trazer liberdade ao que está preso, de dar movimento
ao que está inerte, de dar vida ao que se encontra morto.

Ademais, eu não poderia deixar de conversar com você sobre


as dificuldades da nossa sociedade contemporânea, provida de uma
educação bancária, focada no tecnicismo, alienação e consequente
silenciamento das vozes do povo, somada também a uma desvalo-
rização do corpo docente. Mas, digo que, apesar das dificuldades
e angústias que vêm devastando os professores nos mais diversos
lugares, seguimos conquistando melhorias, passando por transfor-
mações e lutando por aquilo que acreditamos:

SUMÁRIO 112
Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão
corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta pro-
blemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo,
para que, consciente deles, ganhasse a força e a coragem
de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição
de seu próprio “eu” submetido às prescrições alheias
(Freire, 1999, p. 97 e 98).

Nesse sentido, imagino que querer bem ao outro é desejar


que o conhecimento e a conscientização do mundo lhe seja possível,
que as pessoas possam potencializar as suas identidades ao invés
de apagá-las. Acredito, também, que por vir de uma família repleta
de professores considero essa educação humanizada como primor-
dial, de modo que desperte criticidade e autonomia nos sujeitos, que
lhes permita expressão sem ferir o direito do outro.

Por fim, acho válido ressaltar ainda nesta carta que, ao


estar próxima de alguns profissionais da educação em escolas e
até mesmo nas universidades, percebo que muitos encontram-se
estagnados, sem força para continuar temendo o futuro e com receio
do agora. De certa forma, me encontro um pouco preocupada, mas,
como sempre fiz, procuro seguir minha intuição e ver o mundo não
somente por uma perspectiva, mas pelas várias que possui. Sei que
se considera uma pessoa que gosta de viver a vida intensamente, e
assim também pretendo ser. Como diria Gal Costa na letra escrita
por Caetano Veloso “É preciso estar atento e forte. Não temos tempo
de temer a morte!”. Desta maneira, imagino que o diálogo, a escuta
e a afetividade podem desempenhar um papel crucial nas nossas
vidas. É nas trocas, nos olhares, nas conexões que aprendemos e
nos permitimos crescer e ser quem somos.

Irecê (BA), 13 de junho de 2023.

SUMÁRIO 113
REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Educação Como Prática da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de


Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2018.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

GIL, G.; VELOSO, C. Divino Maravilhoso. Gravado por Gal Costa. Rio de Janeiro: Philips,
1968. Gravação em LP.

SUMÁRIO 114
Eliara Marli Rosa

CARTA A QUEM OUSA


ESPERANÇAR
Estimado Paulo Freire,

O ano é 2023. Com muita alegria escrevo esta carta a quem


ousa esperançar. Escrever uma carta a Paulo Freire, autor de pen-
samento crítico, elevada estima e consideração, é uma proposta
interessante, no entanto um desafio contemporâneo com algumas
indagações: o que escrever? Em que poderá contribuir a escrita de
uma carta pedagógica freireana na atualidade?

Esta carta, escrita a quem ousa esperançar, nos conduz a um


movimento de reflexão e diálogo. Um diálogo de esperança no sen-
tido do verbo esperançar; visto que nos ajuda a encontrar solução
para os desafios, a construir pontes, gerar utopias e sonhos. Nesse
movimento reflexivo e dialógico, você, Freire, é o maior e melhor
exemplo inspirador de sonhos e esperanças, que nos leva a repensar
todo o movimento e processo, sobretudo, os últimos cinco anos de
desconstruções das políticas públicas nacionais, de maneira espe-
cial, às educacionais.

Assim sendo, externamos a importância do legado incomen-


surável de inspirações pedagógicas freireanas deixadas no campo
das Ciências Humanas e Sociais que contribuíram e acompanharam
todo o percurso de minha trajetória profissional na área da Educação.
Trajetória marcada por muitas idas e vindas, chegadas e partidas,
além de inúmeros desafios, muitos deles, até difíceis de imaginar.
Desafios, - a quem ousa esperançar -, contra discrepantes traços e
diferentes formas de discriminação e opressão. No entanto, Freire,
mesmo em meio aos desafios e adversidades, os meus pés percor-
reram caminhos que me despertaram a esse movimento, contextua-
lizado pelas leituras de suas produções, suas práticas e experiências
que questionam e contestam os sistemas de opressão.

Desse modo, evidenciamos a relevância desse movimento


como processo de ação contínua e prolongada que expressa a
oportunidade de ousar esperançar a educação popular como prá-
tica de liberdade e concretude da realidade vivida, tendo em vista

SUMÁRIO 116
que, enquanto “necessidade ontológica, a esperança precisa da prá-
tica para tornar-se concretude histórica” (Freire, 2011, p. 15). Nesse
aspecto, a pedagogia freireana demostrou ser um dos caminhos viá-
veis de ações contra as mais diversas formas de opressão e validou o
estabelecimento do amor e da esperança como subsídios essenciais
da vida social como prática de liberdade. Mas, a quem serve e para
quem interessa a educação popular como prática de liberdade? Qual
a importância da pedagogia freireana na atualidade?

Nessa linha de pensamento, as experiências vividas e viven-


ciadas na área da educação, inspiradas em sua pedagogia, Freire,
nos deixaram muitas marcas, compreensões e incompreensões,
lembranças encantadoras pautadas no chão da educação do campo
e da cidade, compromissada com a educação popular como prática
de liberdade em defesa da democracia e da vida, especialmente dos
mais fragilizados e excluídos, cultural e socialmente. Essa sua peda-
gogia, nos leva a pensar um mundo melhor, ousar e sonhar, ir muito
além; e, nesse movimento, esperançar um outro propósito pedagó-
gico, ou seja, uma educação freireana comprometida com a vida e
com a existência humana.

Durante esse trilhar, tendo como foco os valores e princípios


universais e como meta os ideais freireanos, os meus pés me con-
duziram a muitas formações em que aprendemos que, na práxis, a
educação popular como prática de liberdade é um caminho viável
para vislumbrarmos aprendizados de resistência e reexistência em
prol do bem viver e do bem comum, além de estimular “[...] a pre-
sença organizada das classes sociais populares na luta em favor da
transformação democrática da sociedade” (Freire, 2015, p. 118).

Em se tratando de itinerário formativo, admito que ainda


pulsa forte em meu coração, os momentos decorrentes desse pro-
cesso de imersão na pedagogia freireana, experenciados durante o
decorrer do projeto referente ao programa de Educação e Cidadania
desenvolvido junto à Escola Sindical - São Paulo e Escola Sindical

SUMÁRIO 117
7 de outubro em Belo Horizonte - Minas Gerais. Depreendemos dessa
valiosa experiência que, a educação popular, presente na raiz desse
seu legado, nos remete ao currículo enquanto percurso dessa bela
trajetória que é a própria vida e a realidade do cotidiano. Experiência
profunda que possibilitou e, ainda, possibilita admirar a beleza da
vida e do mundo, a “abertura ao diálogo e o gosto da convivência
com o diferente” (Freire, 2000, p. 20).

Durante esse percurso, Freire, sentimos muito presente,


sua força e garra, ao pisar e trilhar o chão do projeto: Educação e
Cidadania - Projeto SEMEAR -, durante o programa de educação e
cidadania para a formação de trabalhadores rurais com promoção da
cidadania, desenvolvimento sustentável e solidariedade no campo,
com a oportunidade da elevação de escolaridade (ensino fundamen-
tal), acompanhado de práticas e aprofundamento profissional, além
do alento da pedagogia freireana, motivando-nos a esperançar como
protagonistas defensores da educação libertadora, em que a educa-
ção e cidadania acontecem na práxis da vivência em situações reais
por meio da educação popular - na cidade e no campo -, organiza-
ção de movimentos de associação de bairro com participação social
e programas de políticas públicas e geração de trabalho e renda em
prol da elaboração e desenvolvimento de projetos de interesses da
comunidade local, voltados para a economia solidária e geração de
trabalho e renda. Eis aí a marca da pedagogia freireana e da educa-
ção popular com sentido e propósito de vida!

Para além dessas experiências, novos percursos, sempre tri-


lhados em sua companhia, Freire, por meio de estudos e leituras de
suas obras que nos levaram a sentir o movimento de suas palavras e
contextualizações pedagógicas, argumentos da práxis libertadora em
busca da humanização, sentido e significado à vocação ontológica do
ser. Nesse percurso, outros chãos: Fundação Centro de Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa), Educação nas pri-
sões/Sistema Prisional em Unidades Prisionais; Associações de Pais
e Amigos dos Excepcionais (APAEs/SP); Conservatórios Musicais,

SUMÁRIO 118
Escolas de Ensino Fundamental e Médio; Escola de Tempo Integral;
Escola do Programa Ensino Integral (PEI) e Faculdade.

Assim sendo, em um exercício dinâmico à imagem e seme-


lhança de Jesus, a sua pedagogia, Freire, sempre esteve presente
motivando nossos primeiros passos de aproximação ao evangelho
de Jesus inserido na realidade social. Desse modo, Freire, - a seu
exemplo e inspiração -, os meus pés experenciaram essa aproxima-
ção ao evangelho de Jesus inserido na realidade social, bem como a
identidade e carisma missionário, seguindo o modelo de intimidade
itinerante do próprio Jesus Cristo às periferias da existência e exis-
tenciais: a Igreja “em saída” (EG, n. 46), proposta pelo Papa Francisco.

Inspirada na pedagogia freireana, outro propósito: a Leitura


Popular da Bíblia. A partir desse propósito, outro percurso: Curso
de Pós-Graduação, especialização em Pedagogia Catequética, área
do conhecimento - Teologia. Nesse movimento e percurso, os meus
pés pisaram em muitos outros lugares, os quais almejam novos ares
a desbravar outras terras, rios e mares, contando com a fonte e ori-
ginalidade da Leitura Popular da Bíblia (LPB), na perspectiva meto-
dológica e em diálogo com a educação popular libertadora como
prática de liberdade, junto ao Centro de Estudos Bíblicos (CEBI):
“onde pisam os pés, pensa a cabeça e ama o coração”, com o “povo
em luta, ocupando a Bíblia, sonhando em mutirão!”

No campo das investigações acadêmicas, a ousadia cora-


josa de dialogar contigo, Freire, e trilhar o movimento do “exercício
pensante, apropriando-se da significação mais profunda do objeto”
(Freire, 1998, p. 7), de modo a ressignificar a realidade atual presente
enquanto se dialoga com o passado e o futuro, a partir das leituras
e interpretação de textos bíblicos, de cada letra e palavra, em seus
diversos e variados contextos relacionados à Educação e à Iniciação
à Vida Cristã. Nesse constante movimento, outros percursos e expe-
riências pessoais, profissionais e acadêmicas com publicações de
trabalhos e artigos em revistas, participação e apresentação de tra-
balhos em Congressos, no Brasil e no Exterior.

SUMÁRIO 119
Assim sendo, Freire, à luz de suas valiosas contribuições
como prática de libertação, permeada por ações contra as formas de
opressão e discriminação, tendo como elementos centrais o amor e
a preocupação com uma pedagogia que, efetivamente dê sentido e
significado à vida; sinto-me, hoje, sustentada por sua proposta meto-
dológica de natureza crítico-dialógica, firmada epistemologicamente
na sua concepção de educação, especialmente a educação popular
freireana. Sinto-me, ainda, resiliente por e para superar os conflitos
nas relações sociais e os ataques à democracia, tais como os viven-
ciados nos últimos cinco anos.

O seu método, Freire, pautado em vivência prática-pedagó-


gica, histórica e social, além de política, frente ao seu compromisso
com os mais vulneráveis, empobrecidos e excluídos, dentre outros;
firmado como legado de tuas escritas, muito tem contribuído com a
educação popular libertadora que fomenta outros espaços emanci-
patórios de participação social.

Nesse diapasão, a educação desempenha um papel signifi-


cativo, uma vez que vislumbra o esperançar de uma outra realidade,
especialmente dos mais vulneráveis e excluídos. Tal compreensão
perpassa, essencialmente pela formação humanizadora, tendo em
vista que precisamos lembrar que, para reinventar a nossa existência
e reescrever uma outra história, faz-se necessário ressignificar nos-
sas práticas na construção de uma educação humanizadora.

Para tanto, um mundo melhor requer outras práticas edu-


cacionais que respeite, necessariamente o saber popular e outros
saberes, como o científico, bem como a valorização da comuni-
dade, dos espaços de escuta, diálogo e integração, tendo em vista
a importância do respeito ao contexto cultural e ao saber popular
que “implica necessariamente o respeito ao contexto cultural [...]”
(Freire, 1992, p. 86).

SUMÁRIO 120
Comungamos contigo, Freire: a educação necessita provo-
car outras mudanças. Para tanto, devemos “viabilizar os sonhos que
parecem impossíveis” (Freire, 1991, p. 126). Essa é a educação popular
como prática de liberdade que interessa ao setor popular, aos mais
pobres, mais vulneráveis e mais excluídos - cultural e socialmente.
No entanto, o maior desafio é a prática de uma pedagogia em uma
dimensão mais humanizadora, pois como você mesmo sugere: “Não
há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humani-
zadora” (Freire, 2013, p. 77). Assim nasceu e firmou o nosso com-
promisso por uma educação popular freireana em favor e defesa da
democracia, da vida e do respeito à dignidade humana.

Para finalizar, Freire, encerro este diálogo com um trecho da


carta freireana “Educação e Evangelho” (1977), escrita para jovens
seminaristas alemães: “Costumo dizer que, independentemente da
posição cristã em que sempre procurei estar, Cristo seria, como é, para
mim, um exemplo de Pedagogo”. Posto isto, reafirmamos a impor-
tância de seu exemplo para a construção de uma sociedade mais
justa, humana e solidária. Utópica? Compromissada com um legado
de amor, (auto)cuidado e respeito ao próximo, a exemplo de Jesus,
especialmente em tempos de obscurantismos contemporâneos.

Por fim, nossa gratidão por sua inestimável contribuição e


uma práxis pedagógica freireana universal e humanizadora! Nossas
saudações fraternas, Freire!

Presidente Venceslau/SP, 22 de agosto de 2023.

SUMÁRIO 121
REFERÊNCIAS
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. A Alegria do Evangelho. Sobre o
anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola: 2013.

FREIRE, P. Educação e Evangelho. Carta para jovens seminaristas alemães, texto


datilografado, 1977.

FREIRE, P. Educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. Rio de


Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.


17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos/Paulo


Freire. São Paulo: UNESP, 2000.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 55.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

FREIRE, P. Política e educação. Organização Ana Maria de Araújo Freire. 2.ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, P. Professora sim tia não: cartas a quem ousa ensinar. 9.ed. São Paulo: Olho
d´Água, 1998.

SUMÁRIO 122
Kaonny Rodrigues da Silva

CARTA ABERTA
DE DIÁLOGO
E REFLEXÃO
PEDAGÓGICA
Caro Paulo Freire,

Espero que esta carta o encontre bem e que esteja apre-


ciando a continuação de seu legado como educador e pensador
progressista. Me apresento aqui como graduanda do 7º semestre do
curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade do Estado da
Bahia - Campus XVI - Irecê (BA). Me chamo Kaonny Rodrigues da
Silva, tenho 21 anos e, como eu costumo dizer, caí de paraquedas na
educação, para ser mais específica, na Pedagogia.

Recentemente, tive a oportunidade de realizar o estágio nos


anos iniciais, sendo este o meu terceiro e último estágio do curso,
a turma foi 4º ano da pré-adolescência e gostaria de compartilhar
minhas reflexões e experiências com você.

Antes de tudo, devo expressar minha profunda gratidão por


sua abordagem revolucionária da educação, que tem sido uma fonte
constante de inspiração para mim. Durante meu estágio, pude expe-
rimentar em primeira mão a importância de uma educação liberta-
dora e centrada no aluno. Suas ideias sobre a pedagogia do oprimido
e a conscientização foram fundamentais para moldar minha abor-
dagem como estagiária.

Nos anos iniciais, percebi a importância de criar um ambiente


acolhedor e estimulante, mesmo quando me senti insegura ao me
ver como a professora de 32 alunos, responsável por mediá-los. Tive
medos e inseguranças quando me deparei com situações novas e
inesperadas naquele ambiente, mas em outros momentos me senti
orgulhosa e grata por saber que os alunos se sentiram seguros para
explorar e expressar suas ideias e também pelo apoio e carinho que
passaram em cada momento.

Acredito que o processo educacional não deve ser uma


mera transmissão de conhecimento, mas sim um diálogo autêntico
e crítico entre professor e aluno. Ao valorizar as experiências pré-
vias das crianças e incentivá-las a refletir sobre seu próprio mundo,

SUMÁRIO 124
poder ajudá-las a desenvolver uma consciência crítica e a se torna-
rem agentes de transformação.

Durante meu estágio, também me deparei com os desafios


enfrentados pelos professores nos anos iniciais. A falta de recursos
adequados, a grande quantidade de alunos por turma e as demandas
burocráticas podem parecer obstáculos intransponíveis. Algo que
me incomodou muito foi a saída de alguns alunos para realização de
oficinas com outros professores, isso prejudicou a forma de ensino/
aprendizagem que levei nos planejamentos.

No entanto, suas palavras ressoaram em minha mente


quando me senti desencorajado: “A educação não transforma o
mundo. A educação muda as pessoas. As pessoas transformam o
mundo.” Com essa citação como guia, busquei encontrar soluções
criativas e adaptar as estratégias pedagógicas para atender às
necessidades dos alunos.

Uma das lições mais valiosas que aprendi durante meu está-
gio foi a importância do diálogo genuíno com os alunos. Ao ouvir
suas vozes e perspectivas, pude me conectar verdadeiramente com
eles e compreender suas necessidades individuais. Descobri que,
ao construir um relacionamento de confiança com os alunos, pude
promover um ambiente de aprendizagem significativo e inclusivo.

Além disso, percebi que a colaboração com os colegas de


trabalho é fundamental para o sucesso na educação. Compartilhar
experiências, estratégias e recursos com outros professores me
permitiu expandir meu conhecimento e enriquecer minhas práticas
pedagógicas. O trabalho em equipe e a troca de ideias são elemen-
tos essenciais para a construção de uma educação transformadora.
Foi uma troca de experiências simultâneas entre regente, colegas
de turma que também estavam na mesma escola, com professoras
da faculdade, com funcionários em geral e principalmente com eles,
nossos alunos, nossa futura geração.

SUMÁRIO 125
Paulo Freire, sua visão revolucionária da educação continua
a inspirar e orientar educadores em todo o mundo e eu sou uma des-
sas pessoas que ver a educação por outra ótica, com esperança de
que estamos caminhando para um futuro melhor. Seu compromisso
com a justiça social, a igualdade e a emancipação dos oprimidos é
um farol de esperança em um mundo que muitas vezes parece desi-
gual e desumano. Sua crença na capacidade humana de transformar
a si mesma e ao mundo é um lembrete poderoso de que, como edu-
cadores, temos um papel fundamental na construção de um futuro,
um futuro próximo, o nosso amanhã. Me sinto na abertura de dizer
que esperançar é papel do pedagogo. Notamos cotidianamente a
alegria, a criatividade no olhar dessas crianças e na certeza de que
o amanhã traz grandes avanços. As crianças e adolescentes sabem
e querem aprender e nós como pedagogos devemos instigá-los a ir
cada dia mais longe.

SUMÁRIO 126
Elisângela dos Santos Clementino

CARTA
DE SIGNIFICAÇÃO
AO NOSSO QUERIDO
PAULO FREIRE!
Prezado Paulo Freire,

Olá! Muito bom estar escrevendo essa carta para você. Sou de
uma família de piauienses. Meus pais vieram para Brasília, na década
de 70, na época da construção da capital federal. Somos seis irmãos,
sendo 4 mulheres e 2 homens. Sou a caçula das mulheres, fui criada
pela minha avó materna Adilia, no sul do estado do Piauí na cidade
de Bom Jesus, com quem aprendi os valores da vida e a vontade de
crescer em sabedoria e graça, bem como avançar nos estudos.

Gostaria de agradecer primeiramente a Deus por esta opor-


tunidade de vida e a todos os meus colegas de magistério, do curso
de Pedagogia, de Letras e das pós-graduações cursadas por mim,
em especial, pelos ensinamentos que tivemos na educação com a
leitura e discussão de suas obras.

Cursei o magistério à noite, enquanto trabalhava durante o


dia no comércio. Nesse período, final da década de 90, tinha profes-
sores que indicavam seus livros para produção de fichas de leitura,
bem como redação de pequenos textos. Foi paixão à primeira vista.
Meus cadernos continham comentários e avaliação crítica de escri-
tores, poetas e filósofos que passei a ler depois das suas leituras.

Deixe-me compartilhar com você que hoje sou professora


de educação básica da rede pública contando com vinte e três
anos dedicados nesta área. No momento me encontro afastada
para estudos, devido estar cursando um mestrado para fortalecer o
órgão público em que trabalho, pois um órgão público com servidor
capacitado tem mais condições de crescer e avançar na melhoria da
prestação dos seus serviços.

Estou no processo de escrita da minha dissertação e acredito


que terei maior compreensão e desenvoltura no campo universitário
por meio do estudo, da reflexão e crítica, dos subsídios teóricos-me-
todológicos e das demandas atuais da educação brasileira em que o
ato de ensinar exige a existência de quem ensina e de quem aprende.

SUMÁRIO 128
As linhas de pesquisas que participo são: GEPPESP- Grupo
de Estudos e Pesquisa Profissão, Docentes: Formação, Saberes
e Práticas e a ETEC- Educação, Tecnologias e Comunicação,
no momento estou estudando sobre a Inteligência Artificial na
Educação. E todos os meus professores têm apreço e admiração por
você e pelo seu trabalho. Você está no cronograma das atividades do
semestre e nos planos de curso da nossa Faculdade de Educação.

Segundo Freire (2001), ninguém escreve se não escrever, é


preciso começar a escrita da dissertação com objetivos a alcançar
para obter um bom êxito e avançar.

No panorama mundial há temas específicos, como educação,


saúde, emprego e proteção ambiental que devem ser discutidos pois
tem causado impactos e capacidades extraordinárias com o uso da
IA. Se você estivesse por aqui, teria como ajudar com suas análises
críticas e sua prática.

Agora como recurso mais recente acessado pelos alunos


e professores do mundo inteiro, tenho que te avisar que temos o
ChatGPT, que é uma ferramenta com a capacidade de responder e
elaborar textos complexos e bem articulados. Bem preocupante para
nós professores, pois o uso frequente dessa ferramenta pode inibir o
desenvolvimento do pensamento crítico, bem como a capacidade de
argumentação dos mesmos.

Fico pensando que no ritmo que estamos caminhando cada


dia mais nossos estudantes se preparam menos e a formação fica
falha com poucas experiências, são muitas dificuldades materiais e
dependência dos outros. Precisamos parar de vitimismo e buscar
ocupar nossos espaços sociais, ressignificar os marcadores sociais
e trabalhar junto em prol da comunidade

Acredito que o desenvolvimento da inteligência artificial na


nossa sociedade e o acesso a ela para gerar a escrita e parte do
conteúdo de textos possa ocorrer desde que seja um auxílio para

SUMÁRIO 129
fazer uma pesquisa, analisar conteúdos e interagir com a IA para
formar o pensamento.

Em relação ao meu processo de raciocínio lógico tenho


evoluído com o estudo de disciplinas que ampliam mais os meus
pensamentos, o conhecimento em relação a teorias e práticas peda-
gógicas, sinto que tenho muito a aprender, como você sempre fala.

Penso que, em relação ao que preciso adquirir, aperfeiçoar


na escrita e na parte de conteúdo gerado pela IA, a tendência é agir
sobre a produção gerada, realizando ajustes ao meu estilo de forma
que personalize o trabalho.

Não gostaria de julgar ninguém, mas tenho a impressão que


muitos dos estudantes do ensino fundamental, do ensino médio e da
graduação fazem uso da IA, da pós-graduação ainda tenho dúvidas
se fazem uso da inteligência artificial, pois muitos tem ainda uma
visão tradicional. Precisam perceber que vivenciamos uma nova fase
da humanidade, que não pode ser ignorada.

Relembremos que o contexto situacional do ano de 2020 nos


trouxe uma pandemia em que aconteceu a oferta de conteúdos peda-
gógicos de forma remota aos estudantes da rede pública e privada
do Distrito Federal, dos demais estados e do mundo. A tecnologia
como forma de acesso à educação por parte de muitos, com ela con-
seguimos atuar e competências foram adquiridas nesse processo.

Quero pontuar a realização de cursos nesse período: produ-


ção de material didático, GSuíte e moodle online. Todos disponibili-
zados pela nossa Escola de Aperfeiçoamento dos Professores que
foram o pontapé na nossa formação. Tivemos que nos adaptar a
tecnologia. Estava atuando na coordenação pedagógica e o protago-
nismo dos professores foi marcante, bem como a atuação na escola
pública nesse processo que vivemos.

SUMÁRIO 130
Agora, pensando no curso de formação vigente, o que levanto
de dilemas sobre a prática da assistência da IA para a escrita e conte-
údo de produções científicas são os questionamentos éticos, sociais e
morais quanto ao seu uso que devem ser lembrados constantemente.

Imagino que virão mais mudanças na educação e que no


futuro pode permanecer ou ser alterada em relação aos projetos de
pesquisa, às dissertações e as teses de doutorado, considerando
a potência da IA para gerar integralmente o texto escrito. Vamos
aguardar as cenas dos próximos capítulos. Sigamos confiantes!!

É importante colocar que a relação entre aprendiz e o ensi-


nante é um trabalho coletivo pois envolve duas partes: o trabalho do
ensinante, de um lado, e de um aprendiz do outro. A parceria desses
sujeitos faz a diferença na escola e no mundo. Como gostaria que as
pessoas entendessem a necessidade dessa parceria!

Sugiro como iniciativas coletivas para todos nós professores


um canal de troca, de rede de aprendizagem como: debates, congres-
sos, produção de textos, produção de filmes, vídeos, propagandas,
blog coletivo com experiências vividas, mobilização dos estudantes
na comunidade escolar, etc. Você nos ensinou a acreditar que só por
meio da educação as mudanças acontecem. “Se a educação sozinha
não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
(Freire, 2000, p. 67). E ainda vai além. “Educação não transforma o
mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”
(Freire, 2004). E assim vamos fazendo a diferença.

Para finalizar deixo aqui as minhas considerações de apreço


e vontade de aprender em mais um percurso desta trajetória na cole-
tividade e com cada um na sua individualidade. Trabalhar da melhor
forma possível. Vencer na vida, admitindo que não sabemos de nada.
E que possam surgir mais Paulos Freires em nossa vida.

Abraços!!!

Ceilândia, 02 de outubro de 2023.

SUMÁRIO 131
REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Carta de Paulo Freire. Freire aos professores: ensinar, aprender- leitura de mundo,
leitura da palavra. In: Estudos avançados. São Paulo, v. 15. n.42. p. 259-268, 2001.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:


Paz e Terra, 2004.

FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo:


Unesp, 2000.

SUMÁRIO 132
Edinéia Alves Cruz

SOBRE SER-ME,
EM PERSISTENTE
ESPERANÇAR, ATRAVESSADA
POR CONSCIENTIZAÇÃO,
GENTETUDE E BONITEZA
Querido Senhor Paulo Freire,

Por questões de criação, não me sinto à vontade para lhe


chamar senão erguendo ante seu nome o pronome Senhor. Lá no
interiorzinho de Minas Gerais, aprendi desde cedo a sorver sabe-
doria e experiência da convivência com os que abriram caminhos
por onde eu pudesse avistar o horizonte de meus sonhos. Cresci
concebendo Senhor e Senhora como chamamentos preciosos
demais para serem gastos ao léu. Sigo valendo-me deles como ban-
deira honrosa, marcador de respeito e admiração que não cabem
em limites. Vertido em Seu, Senhor marca também ternura, vínculo
reconhecido de humanidade.

Escrevo-lhe, então, Seu Paulo, para juntar minhas mãos chei-


rando à terra às suas. Para desfiarmos juntos a linha de pensamento
que interliga os sentidos dos saberes ora concebido ora como chão,
ora como abraço, para acolher meus passos. Inspiro-me em ti para
colorir de persistência o esperançar, enquanto me constituo nas con-
vivências e escrevivências Educadora do Campo e autora de mim.
Estou enraizada num cotidiano cheio tão cheio de possibilidades
quanto de contradições. E elas são de tantas naturezas. Ai de mim se
não pudesse nutrir os anseios de transformação que me movem das
significações de conscientização, gentetude e boniteza. Há nessas
palavras, assim como em esperançar, essencialidade epistemológica
singular. Sorvo-a com atenta curiosidade da fundura de sua obra e
trajetória, para servi-la na mesa que circundo com meus pares de
vida em trabalho. Em comunidade, entusiasmados, comungamos
utopias emancipatórias. As microrrevoluções de que damos conta a
cada dia vão nos transformando e movimentando pela vida, de den-
tro para fora, em espiral ação-reflexão-ação.

Sabe, Seu Paulo, não sou boa na lida com certezas. Aliás,
me dói a rigidez delas. São as desconfianças que me instigam. Vivo
adentrando fissuras, tateando as texturas das relações, porque não
desaprendi a desconfiar de que haja algo importante acomodado no

SUMÁRIO 134
improvável, no absurdo ou no apagado. Desconfio de que o âmago
da consistência de seu legado seja a sensibilidade que te postura na
consideração do sujeito como (a)gente de transformações a partir
dele mesmo. Observando como o Senhor embebe racionalidade de
gentetude, e vice-versa, sem macular nem uma nem outra, aprendi
a desconfiar também da previsibilidade das ações humanas. Venho
tirando da pele de meus sentidos as escamas de costumeiro fatalismo.
Da tendência ao salvacionismo também. Tem se tornado mais fluida
a respiração das possibilidades de surpreender-me positivamente. Há
poesia neste deságue de leveza nas relações. Se negarmos o poten-
cial de maravilhamento que há na realidade, o que nos restará senão
suportá-la? Decidir vivê-la traz o rigor da responsabilidade social aos
processos de conscientização. O principal deles diz respeito a e res-
peita o que me vincula às causas que sinto reluzir, olhos adentro.

Aliás, meus olhos tropeçaram pela primeira vez na palavra


boniteza, quando eu cursava pedagogia, ainda no raiar do século
presente. Pedagogia da Autonomia: ponte. Não parei. Talvez eu ainda
não tivesse consciência suficiente de mim no mundo para sair das
margens e caminhar na direção dos sentidos da palavra lida. Não
sabia ainda analisar como a presença dela dá profundidade ao texto.
Mas não hei de morrer pagã. Boas palavras, quando nos acham, não
nos perdem. Sua boniteza seguiu comigo, Seu Paulo! Experienciada
a vida de educadora aprendente no desenrolar de duas décadas
até aqui, ora em passos lentos, ora em rodopio, ora flutuando, ora
ainda me jogando de ponta-cabeça, amparada por estudos de sua
obra, por relatos de estudiosos de sua ela e sobre as fontes de que o
Senhor bebeu afeto ao longo da vida, pude compreender sua jornada
para significação de boniteza, racionalizada na indissociabilidade
entre o belo, o bom e o ético. Desconfio de que minha experiência
de descoberta dos sentidos e adjacências de boniteza, com as vistas
deslizando pelo colorido dos ipês cerratenses, possa se aproximar
em alguma medida dos tons de seus lúcidos encantamentos sobre o
mundo que leu no amolengar, debaixo da mangueira de sua infância.
Me emociona essa possibilidade.

SUMÁRIO 135
Assentei boniteza num lugarzinho macio do peito como pala-
vra-princípio-guia de meus passos nessa trajetória compartilhada de
construções identitárias em diferentes papéis sociais que, impas-
síveis de completude, se atravessam entre si e me atravessam em
uníssono e também em tempos e modos específicos, conforme dá
pra movimentar a vida. Palavra-princípio-guia, porque é boniteza que
eu desejo sentir pulsar em mim, conscientemente, ainda que tudo o
que meus olhos alcançam seja impermanência. Assim, saberei por
onde recomeçar e seguirei para onde o coração apontar, sempre que
necessário, esperançando sem cessar. Quando penso, escrevo ou
pronuncio boniteza, Seu Paulo, sinto-me lhe pedindo a bênção para
me atrever a tentar interferir na crueza dura da realidade que me
atravessa. Gosto de falar boniteza em voz alta. Tanto que sempre
sorrio ao dizê-la. Fica um gosto bom na boca. Encoraja-me a decidir.

Não sei se meu pedido por mais-que-pedagógica bên-


ção, emanado daqui, te alcança de alguma forma aí onde estás.
Conforta-me pensar que sim. Por isso, sigo. Devagarinho, sendo o
pouquinho que sei ser de cada vez, unindo coragens às coragens de
bons pares. Aprendo. Cheguei a pensar que minha palavramundo
fosse coragem. Coragem no sentido de teimoso atrevimento mesmo.
Mas ando desconfiando muitíssimo de que seja boniteza. Talvez
coragem funcione melhor como o ar que dança para a boniteza flo-
rescer em cada destempo e contexto em que ela é essencial. Venho
regando as sementes da boniteza freireana entregues à terra da
etnografia de meus dias tecidos a microrresistências e revoluçõe-
zinhas encadeadas, na Educação do Campo, na Universidade, em
sociedade e em meu eu colonizado - em desconstrução.

Há tantas nuances de sua presença no mundo que me fazem


transbordar em encantos, Seu Paulo! O Senhor continua presente
em seu legado. Vivi para ver os movimentos em torno das comemo-
rações de seu centenário alvoroçarem curiosidades, diálogos e cons-
truções. E, como não se joga pedra em árvore que não dá fruto, tam-
bém vi, disfarçadas de contrapontos, tentativas vis de deslegitimação

SUMÁRIO 136
das praxiologias cujos sentidos compartilhou ao longo de sua vida e
para além dela. Prevalecerão as microrrevoluções lançadas em rede
no mar de boas possibilidades de nos constituirmos mais humanos
em coletividade. Elas sempre prevalecem, não é mesmo?

Ao abordar o currículo como território em disputa, Miguel


Arroyo ressalta o poder daquele que se assume agente de trans-
formação social por meio do exercício de sua função de educador
na, da e com a escola pública, este lugar aqui que é de todo mundo.
Quando o sociólogo-educador fala dos incômodos que a atuação
docente crítica provoca nos que se escoram na hegemonia de poder,
organicamente meu pensamento é direcionado para o Senhor, Seu
Paulo. Para sua trajetória e também para a rasura das razões por que
tentam distorcer seus posicionamentos.

Após tantas leituras e descobertas contigo, é impossível


não me indignar. Aquela indignação que movimenta o esperan-
çar, sabe? No fim das contas, mas sem dar fim à indignação, sinto
pena e também angústia de tanta ignorância. sinto vergonha alheia
também. E fico pensando que talvez um tête-a-tête com o territó-
rio da escola pública possa chamar à razão os incomodados com
seus feitos e com a reverberação de seu sentir-pensar-fazer. Quem
sabe janelas se abram? Quem sabe observem melhor a diversidade
que estrutura nosso país? Quem sabe aprendam que respeito é
direito inerente à pessoa humana? Afinal, Paulo Freire jamais será
conjugado no passado.

É magistral sua sabedoria no uso das palavras. Puxa a gente


pelo coração, na direção da desopressão. O Senhor transgride as
concepções simplistas de luta, desencadeia novas significações
para a verbalização dela: palavra posturada em movimento coletivo.
Vale-se de palavras para dar fôlego às raízes de tantas gentes, cau-
sas, construções, mudanças. Tenho aprendido com o Senhor que
empunhar palavras de campos semânticos e lexicais vinculados
à emancipação humana gera força, de dentro para fora. Situa-me,

SUMÁRIO 137
quando vou a campo, à medida que me constituo campo. De sujeito
em sujeito, Seu Paulo, o Senhor continua girando o mundo. Aliás, o
giro do mundo, seja ele mundo-gente ou mundo-lugar, não se man-
tém igual depois de tocado pelas palavras que tuas mãos constroem.
Liberdade de tantos. Fúria de uns.

Enfim, Professor Paulo Freire, atravessado por tantas lutas, o


que ficou debaixo dos calos de suas mãos? Essa seria uma pergunta
cujo entoar da resposta eu gostaria de ter podido fruir. A que palavras
daria sentido? Como as significaria? Alegro-me pelas oportunida-
des de, sorvendo os registros de suas práticas teóricas, saber-me
e ser-me, multidimensionalmente, em persistente esperançar, atra-
vessada pelos sentidos que o Senhor conferiu a conscientização,
gentetude e, sobretudo, boniteza. Muito obrigada!

Brazlândia - DF, 25 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 2004.

SUMÁRIO 138
Marli Vieira Lins de Assis

“PAULO FREIRE
PARA MIM É TUDO”!
Amado e eternamente admirado Paulo Freire,

Eu não tive o prazer de conhecê-lo presencialmente, mas


conheci suas obras, quando ainda estava no curso de Letras da
Universidade Católica de Brasília, em 1996. Nesse ano, eu fazia o meu
primeiro estágio supervisionado e a nossa saudosa professora Ely
Ferraço Rosa nos dizia: “Antes de começarem o estágio, vocês pre-
cisam ler um livro muito especial: A Pedagogia da Autonomia: sabe-
res necessários à prática docente, de Paulo Freire”. E assim foi feito.
Posso dizer que foi amor à primeira leitura. Um amor sem tamanho
por aquele homem que dizia o que eu, tão jovem ainda, já acreditava:
O que me interessa agora, repito, é alinhar e discutir
alguns saberes fundamentais à prática educativo-crítica
ou progressista e que, por isso mesmo, devem ser conte-
údos obrigatórios à organização programática da forma-
ção docente. Conteúdos cuja compreensão, tão clara e
tão lúcida quanto possível, deve ser elaborada na prática
formadora. É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes
saberes indispensáveis, que o formando, desde o princí-
pio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se
como sujeito também da produção do saber, se convença
definitivamente de que ensinar não é transferir conheci-
mento, mas criar as possibilidades para a sua produção
ou a sua construção (Freire, 1996, p. 13).

Lendo a obra (op.cit.) e vivenciando-a de maneira práxica em


meu estágio, experenciei, no cotidiano de uma turma da 2ª série, da
Educação de Jovens e Adultos, os saberes que o mestre me ensi-
nava em cada capítulo de seu livro. Nos primeiros contatos com os
educandos, ministrei uma aula sobre tipos de sujeito, conteúdo esse
que foi pouco a pouco sendo aprendido e vivenciado por meio dos
exemplos reais que utilizávamos em sala de aula e, no final estágio
naquela turma, eu escutei: “você dá aula melhor que a nossa profes-
sora!” E eu, num sobressalto, indaguei: “mas por quê”? E a educanda,
que estava sentada no fundo da sala, me disse com uma voz muito
segura: “porque você sabe explicar melhor que ela e a gente pode

SUMÁRIO 140
falar na aula!”. Eu agradeci a fala da educanda e fui embora tocada por
aquelas doces palavras ditas a uma estagiária inexperiente, mas feliz.

Daquele dia em diante, vivi cada um dos saberes que Paulo


Freire sabiamente nos ensinava e entendi porque a aula tinha sido
boa para aquela educanda. A aula foi boa porque não transmiti
conhecimentos, mas, partindo de uma realidade concreta, construí
significados para aqueles conteúdos juntamente com os educandos.
Entendi que a aula tinha sido boa porque tivemos a oportunidade de
compreender e vivenciar os seguintes saberes:

Não há docência sem discência

Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos

Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática

Ensinar exige apreensão da realidade

Ensinar exige saber escutar

Ensinar exige disponibilidade para o diálogo

Hoje, com quase 24 anos de sala de aula e tendo passado


por quase todas as etapas e modalidades da educação básica, pela
educação superior e pelos projetos de alfabetização de jovens, adul-
tos e idosos, levo Paulo Freire e os seus saberes que, às vezes, pare-
cem tão “óbvios”, a todos os espaços de ensino e de aprendizagem.
Exemplo disso é o depoimento do educando Francisco Galiza, do
Projeto de Alfabetização e de Letramento - Letrar Cidadania, que é
ofertado no Centro Universitário IESB de Ceilândia, Distrito Federal,
onde sou professora do Curso de Pedagogia.

Em uma tarde de sábado à tarde recebi o telefonema do


Francisco me dizendo que estava na livraria e que estava querendo
comprar um livro de Paulo Freire. Nesse momento, não pensei duas
vezes em demonstrar minha alegria: um educando, em processo de

SUMÁRIO 141
alfabetização, querendo ler Paulo Freire. Imediatamente, eu lhe disse
que não havia necessidade de comprar, pois eu lhe daria o livro: A
Importância do Ato de Ler em três artigos que se completam. Algumas
semanas depois, o educando teve acesso ao livro e começamos
as leituras coletivas da obra. Em um belo dia, na Universidade de
Brasília, em uma apresentação que eu fazia sobre Paulo Freire junta-
mente com Francisco, uma aluna da pós-graduação lhe perguntou:

- Onde você conheceu Paulo Freire e o que ele é para você?

O educando respondeu:

- Foi no Projeto de Alfabetização, no Letrar Cidadania, onde


a professora Marli dá aula que eu aprendi sobre Paulo Freire e hoje,
para mim, ele é tudo!

Sim, Paulo Freire, você é tudo para nós! Sua forma de ver
o mundo, as pessoas e a educação nos tocaram e nos tocam de
tal forma que não conseguimos nos manter na inércia da educação
bancária, que prevalece em nosso meio até os dias de hoje.

Com você, bradamos um grito forte que diz: “Educação não


transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transfor-
mam o mundo” e, é por essa educação transformadora e libertadora
que nós lutamos juntos com nossos educandos, sejam eles prove-
nientes dos bancos escolares ou dos bancos do mundo e nos alegra-
mos, porque com eles, provamos que você não nos deixou apenas
ideias. Você nos deixou um legado práxico que nos move e que nos
encoraja a irmos além e a comemorarmos junto com o educando
seus aprendizados e suas conquistas, como a conquista de Francisco,
que nos diz: “Paulo Freire para mim é tudo”, como a conquista do
educando que se alegrou a escrever: “Nina, Nina é o nome da minha
mulher”, com a conquista do educando que, juntando sílabas da
palavra tijolo, nos diz: “Tu já lê” e com tantas outras conquistas.

SUMÁRIO 142
Obrigada, Paulo Freire, por nos ensinar a ver e a ler o mundo
com outros olhos: os olhos da esperança e da libertação. Obrigada,
Paulo Freire, por nos ajudar a levar a liberdade aos nossos educan-
dos e por permitir que vivenciemos as várias pedagogias que nos
deixou como exemplo, não para copiarmos, mas para irmos além!

Peço licença para terminar com um trecho do poema “Canção


para os fonemas da alegria”, de Thiago de Mello, conforme Freire
(1967, p. 27-28), que nos diz: “Peço licença para terminar soletrando
a canção de rebeldia que existe nos fonemas da alegria: canção de
amor geral que eu vi crescer nos olhos do homem que aprendeu a ler”.

Brasília, 02 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, P. A Importância do Ato de Ler - em três artigos que se completam. São


Paulo: Cortez Editora & Autores Associados, 1991.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. 18.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Nina, a descoberta. Disponível em: https://www.youtube.com/


watch?v=NF0LjkV2Lg8. Acesso em: 02 out. 2023.

SUMÁRIO 143
Tainara lima

AMOR ALÉM
DA LEITURA
Prezado educador Paulo Freire,

Escrevo-lhe essa carta com assuntos que só você, devido a


sua grande contribuição na história da pedagogia mundial, conhe-
cido como “o patrono da educação brasileira”, entenderia.

Nesse sentido, logo de início, começarei falando um pouco


sobre a minha trajetória acadêmica, a qual me trouxe até aqui, como
estudante de Arquitetura e Urbanismo no Instituto Federal da Bahia,
mas ao longo da carta trarei diferentes memórias sobre a minha
relação com a leitura. Bem, no começo da minha trajetória como
estudante, tive um pouco de dificuldade, sobretudo no tocante à lei-
tura. Lembro-me que logo no início do 1° ano do ensino fundamental,
minha mãe me retirou de uma escola pública da qual eu já estava
familiarizada e me matriculou em uma instituição privada totalmente
nova e diferente do que eu estava acostumada. Com o passar do
tempo, percebi que todos ali já estavam aprendendo a formar síla-
bas e ler, enquanto eu sabia meramente as letras do alfabeto, o que
foi me fazendo perder um pouco do interesse, além de me sentir
inferior aos demais.

Foi quando, então, minha mãe me comprou um jogo da


memória, de onde vem a minha palavramundo “Memória”, o qual foi de
fundamental importância para que eu tomasse gosto para aprender
a ler, pois despertou em mim a curiosidade de descobrir o que estava
ali. Para isso eu tinha que ler os nomes dos objetos que apareciam
nas cartas do jogo. Lembro-me de minha mãe me ajudando todos os
dias até que então, depois de um tempo, eu finalmente consegui ler a
minha primeira palavra, a qual eu não me lembro bem, mas foi um dia
único e extremamente importante para me tornar quem eu sou hoje
e ser tão fascinada pela leitura. Lembro-me como era incrível passar
de carro pelas placas das ruas e rapidamente juntar as letras, formar
as sílabas e saber o que estava escrito. Como um passe de mágica,
eu olhava e mentalmente já sabia o que estava escrito.

SUMÁRIO 145
A esse respeito, é válido salientar em práticas de ensino “Os
alunos não tinham que memorizar mecanicamente a descrição do
objeto, mas apreender a sua significação profunda. Só apreenden-
do-a seriam capazes de saber, por isso, de memorizá-la, de fixá-la
(Freire, 1982, p. 12). Diante desse pensamento, é notória a importân-
cia do hábito da leitura compreendida e não apenas a codificação
de palavras, e haja vista cenário hodierno, muitas das vezes só se da
importância a codificação das palavras sem levar em conta o verda-
deiro sentido da mesma.

Frente a isso, falo por mim, quando de início comecei a ler,


a sensação de saber o que estava escrito me proporcionava mais
ainda o prazer na leitura, pois eu tinha curiosidade em descobrir o
que estava escrito e sempre aprender novas coisas, o que acontece
até hoje. É substancial o ato de buscar o conhecimento, uma sen-
sação única: você lê e entra nas palavras. Eu, particularmente como
estudante, prezo bastante por um ensino profícuo que se misture
com a finalidade da vida.

Lembro-me da pressão a qual era imposta sobre mim pelos


meus avós, visto que os meus primos já sabiam codificar palavras e
eu não. Para eles, era sobre ler e não sobre saber o que estava lendo.
Nesse viés de pensamento, Freire, achei bem pertinente o seu debate
na obra A importância do ato de ler, a qual me serviu de referência
e inspiração para escrever esta carta, além de me fazer relembrar
os momentos da minha infância, sobretudo aqueles relacionados ao
meu primeiro contato com a leitura, assim como você relembra o seu,
e dos prazeres e aprendizagens que ele o trouxe. Sua abordagem
de modo geral ainda me fez refletir sobre o que realmente é ler e ter
mais consciência da importância do saber ler, ver a leitura com um
olhar além de que eu já tinha.

Embora eu e muitas outras pessoas sejamos fascinadas


pelo saber ler e compreender o mundo, vale salientar que boa parte
das instituições do mundo implementam como método de ensino

SUMÁRIO 146
a educação bancária a qual, em suas palavras refere-se quando “a
educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os
depositários e o educador, o depositante”. (Freire, 1987, p. 33); onde o
ensino é meramente propedêutico, com o intuito de depositar o con-
teúdo no estudante a fim de que o mesmo absorva esse tal conteúdo
visando apenas vestibulares, concursos, entre outros meios os quais
servirão apenas para o mercado de trabalho, esquecendo-se do
principal objetivo que seria o aprendizado e o conhecimento sobre
um determinado conteúdo o qual se leva por uma vida inteira, assim
como você mesmo reforça em suas obras. Por fim, deixo aqui os
meus mais sinceros agradecimentos a todas as suas contribuições
para a educação brasileira, tais como os métodos de ensino que se
fazem pertinentes até os dias atuais.

Tainara

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23.ed.
São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1987.

SUMÁRIO 147
Floraci Mariano de Carvalho

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
NA EDUCAÇÃO:
É POSSÍVEL NEGAR OU INOVAR?
Estimado Paulo Freire, o meu respeito e consideração.

Meu nome é Floraci Mariano de Carvalho, tenho 44 anos de


idade, sou professora efetiva da Rede Pública Municipal de Goiás há
18 anos, e atuo como Coordenadora de Formação Continuada de
professores pela Secretaria Municipal de Educação de Novo Gama
(GO). Atualmente faço mestrado acadêmico, cursando o segundo
semestre no PPGE da Universidade de Brasília, na linha de pesquisa
Educação, Tecnologias e Comunicação (ETEC).

No atual momento, meu interesse é sobre inteligência arti-


ficial e educação. Sinto como se estivesse tateando com relação a
essa temática, no início de fazer várias descobertas com grandes
possibilidades no campo de pesquisa. A temática investigada ainda
é pouco explorada no Brasil e no mundo, mas acredito que buscarei
caminhos assertivos que ajudarão a seguir com sucesso e resiliência
no campo de estudo. Na perspectiva de pensar que a temática sobre
a IA se desdobra no desenvolvimento de um campo novo e pouco
pesquisado, me vejo na obrigação de pensar em pontos de apoio na
universidade que estudo, para buscar leituras e experiências com a
escrita de textos gerados pela IA e os humanos.

Gostaria de compartilhar que estou vivendo e vendo o avanço


da Inteligência Artificial em todo mundo, principalmente na área da
educação, uma era em que as máquinas estão dominando o cená-
rio social em todos os sentidos. Conforme Russel e Norvig (2010), a
Inteligência Artificial (IA) é um sistema de máquinas inteligentes que
estudam comportamentos humanos para resolução de problemas e
imitam inteligência humana.

Ressalto que propriamente, no campo da educação, a


evolução dos usos dos algoritmos na escrita de textos híbridos12,

12 A educação híbrida caracteriza-se por: combinar o aprendizado online e o presencial; fornecer ex-
periências de aprendizagem que integram as tecnologias digitais da informação e comunicação;
inserir a tecnologia como facilitadora e potencializadora do ensino. Disponível em: http://www.
cipead.ufpr.br/portal1/index.php/ufpr-hibrida/educacao-hibrida/). Acesso em: 02 out. 2023.

SUMÁRIO 149
com a colaboração do humano-máquina, está deixando os professo-
res assustados. Diante de tal situação, questionamentos são levan-
tados sobre quais as causas, efeitos e benefícios que a IA trará a
aprendizagem dos estudantes? Quais as possibilidades ou prejuízos
isso causará a educação? Segundo Freire (2010, p. 232), “no decurso
de nossa vida pessoal e social, encontramos obstáculos, barreiras
que precisam ser vencidas, as “situações-limite”.

Diante do fato que a IA está ganhando proporções inespera-


das com o avanço do conhecimento, acredito que exista a possibili-
dade desta ferramenta ser benéfica para os professores e estudantes
no processo de aprendizagem da língua escrita, no entanto, se usada
de maneira responsável e com segurança ética na preservação dos
dados dos indivíduos. Ao refletir sobre o processo de escrita dos
estudantes, vejo que é de suma importância direcionar o sujeito para
a construção da escrita autônoma, no sentido de o professor poder
auxiliar a partir da leitura crítica de situações para o desenvolvimento
das habilidades essenciais dos estudantes.

Com o avanço do pensamento prospectivo relacionado ao


uso da IA, o que está em jogo é o fato de que as máquinas estão
se projetando para um futuro de alienação e controle de comporta-
mentos pré-estabelecidos dos seres humanos, a fim de suprimir a
liberdade e exaltar o sistema de capitalismo de vigilância no controle
total e dominação das massas. Isso, sim, me preocupa. Estamos em
um grande debate sobre os perigos dos usos dos algoritmos para o
espaço escolar, para tanto, é necessário que se faça ouvir as vozes
dos professores sobre o que pensam em admitir ou não o uso da IA na
produção de textos escritos híbridos com intencionalidade e perso-
nalização do ensino aprendizagem dos estudantes. “O inédito viável”
é, pois, uma categoria que encerra nela mesma toda uma crença no
sonho e na possibilidade da utopia. Na transformação das pessoas e
do mundo. É, portanto, tarefa de todos e todas (Freire, 2010, p. 234)”.

SUMÁRIO 150
A respeito de admitir ou não que eu tenha experiências para
fazer o uso da IA, para gerar a escrita de textos híbridos, parte do
conteúdo do projeto de pesquisa e na produção de artigo científico
com a colaboração de algoritmos. Penso que existe a possibilidade
da parceria humano e máquina, porém é preciso que a universidade
crie mecanismos de vigilância, produzindo códigos de ética que pos-
sibilitem o acompanhamento das escritas de textos híbridos pelos
estudantes. Para Kaufman (2016), ética é um comportamento do
indivíduo construído com base nos relacionamentos na sociedade.

Nesse sentido, os meios de comunicação das universidades


públicas teriam que atuar junto aos professores orientadores de uma
forma sistemática, abrindo espaços para discussões no universo
acadêmico, que vai muito além do chão da sala de aula. Nesse viés,
a perspectiva seria de buscar meios de preservar a privacidade dos
dados dos estudantes e professores com uma política de respeito
mútuo e responsabilidade.

A respeito da utilização da IA para gerar a escrita de textos


híbridos para a pesquisa, penso que a possibilidade de fazer parce-
ria entre a escrita de textos híbridos, parte por IA e humanos, tem
sido causa de discussões no meio educacional. No entanto, precisa
de muita cautela, responsabilidade e acompanhamento da escrita
acadêmica. Acredito que a IA veio para ficar e revolucionar. Não
tem como negar a sua existência no mundo, é necessário se atentar
como os sistemas educacionais farão com suas políticas e ações
para mostrar a importância no meio educacional, como utilizar essa
ferramenta como possibilidade e auxílio ao ensino-aprendizagem
dos estudantes, com o uso consciente e com todas as normas de
segurança e responsabilidade social.

Contudo, a respeito da utilização da IA na geração de textos


escritos híbridos, penso que os espaços educativos precisam acom-
panhar e auxiliar os estudantes para a tomada de consciência crítica
sobre a utilização da ferramenta, que haja discussão consciente

SUMÁRIO 151
dos riscos e benefícios para a comunidade acadêmica, haja vista
ser uma temática nova e pouco explorada, onde o debate não está
ainda amadurecido em pensar para além dos horizontes. Para Freire
(2018, p. 93), “o que nos parece indiscutível é que, se pretendemos
a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou
mantê-los alienados.”

Atualmente, o grande dilema sobre a prática da assistência


da IA para a escrita e conteúdo de produção científica é com relação
a ter pouco material na base de dados sobre a temática e poucas
discussões na academia sobre o uso responsável da IA no auxílio aos
estudantes. Nesse ínterim, não podemos abafar as discussões sobre
os avanços, perigos e benefícios dos usos dos algoritmos na educa-
ção, pois, se não avançarmos a respeito do assunto, os estudantes
correrão o risco de utilizarem essa ferramenta sem visão crítica e sim
para outros fins prejudicando, dessa forma, o processo de ensino
aprendizagem. Nesse sentido, o auxílio dos docentes é de suma
importância no processo educativo. No argumento de Freire:
O educador democrático não pode negar-se o dever de,
na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do
educando, sua curiosidade, sua submissão. Uma de suas
tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigo-
rosidade metódica com que devem se “aproximar” dos
objetos cognoscíveis (Freire, 1996, p. 14).

Acredito que a IA não poderá andar sozinha sem o auxílio


do ser humano, pois não haveria máquinas se não tivesse mentes
pensantes e inteligentes dos homens. Não dá para dissociar uma
coisa da outra neste universo tão propenso a debates e reflexões.
O que me preocupa no cenário atual, com relação ao desenvolvi-
mento da IA, é o fato de que, com o capitalismo de vigilância, entida-
des governamentais não têm a intenção de preservar a privacidade
dos dados dos indivíduos. A proposta futura é que o mundo seja
dominado por máquinas, tirando a liberdade dos seres humanos,
com o objetivo do lucro e dominação das massas. Isso não trará

SUMÁRIO 152
benefícios nenhum, e sim medo e controle do comportamento das
pessoas de maneira opressora. Neste contexto, a IA pode ser utili-
zada para um bem maior da sociedade, sem envolver a ganância do
capitalismo e dos donos das grandes empresas privadas.

Assim, termino a minha carta, propondo iniciativas com


ações que abram espaços para debates, fóruns, eventos nacionais
e internacionais que incluam nas discussões sobre o futuro da IA
na produção de textos escritos acadêmicos e o papel do profes-
sor no auxílio aos estudantes frente a essa temática tão inovadora
e urgente na universidade pública. Entendo que a educação está
caminhando para um grande debate, em repensar as suas práticas
educativas para uma nova era da informação frente os desafios das
inovações tecnológicas.

Agradeço e expresso minha elevada estima e consideração.

Brasília, 02 de outubro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, A. M. A. Inédito viável. In: STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (orgs). Dicionário
Paulo Freire. 2.ed. Revista e Ampliada. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25.ed.


São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 65.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

KAUFMAN, D. Inteligência Artificial: questões éticas a serem enfrentadas. In:


Privacidade, vigilância. Controle do IX Simpósio Nacional da ABCiber. São Paulo, 2016.

RUSSELL, S. J.; NORVIG, P. Artificial intelligence: a modern approach. 3 ed. Upper


Saddle River: Pearson Education Limited, 2010.

SUMÁRIO 153
Ozenilde Santos do Nascimento

ENCONTRO
DE ALMAS, ESCRITAS
E APRENDIZAGENS:
APRENDENDO COM PAULO FREIRE
Prezado Paulo Freire,

Espero encontrá-lo bem depois de tanta “desinvenção” da


educação. Mas fique tranquilo porque aos poucos as coisas estão
entrando no eixo. Estou lhe escrevendo para contar como tem sido
a minha trajetória. Acredito que ficará feliz em ler meu relato. Você
lembra lá em 1996, quando te disse que daria certo?

Pois bem, estou aqui dezessete anos depois para agrade-


cer seu incentivo e apoio. Ainda sem ser professora naquela época,
aprendi com você sobre a necessidade da construção de uma escola
democrática que evidencie uma nova abordagem na relação entre
educador e educando, que considere como base da aprendizagem a
troca horizontal de saberes e experiências vivenciadas por todos os
envolvidos no processo.

Até então menina, conheci a sua obra quando catequista


na igreja católica, há vinte sete anos, e quem diria faria daquele
momento uma escada para galgar diversos níveis da educação e a
ajudar a formar sujeitos a partir de uma perspectiva crítica e autô-
noma para serem capazes de transformar política e socialmente
suas realidades. “O interesse pelo curso e a experiência surgiu da
necessidade de oportunizar aprendizagens significativas e práticas
sociais aos alfabetizandos da região que desejavam ler e escrever
para melhor se relacionar na sociedade” (Nascimento, 2021). Você
sempre defendeu a diversidade, a luta, a democracia, a autonomia, a
liberdade de pensamento, sendo que nem por um minuto deixou de
ser um intelectual amoroso e humilde.

Então, após aplicar o seu método Paulo Freire na igreja,


ajudando a abrir o mundo do letramento para aqueles senhores e
senhoras que mesmo no adiantar da idade viam na educação uma
forma de independência e de interagir com o mundo, “Muitos fatos
foram relevantes, principalmente o momento das rodas de conversas,
que permitiam a interação do grupo e a troca de saberes vivenciados
por cada um” (Nascimento, 2021).

SUMÁRIO 155
Foi naquele nosso encontro, no centro de formação, você
lembra? CEPAFRE (Centro de Educação Paulo Freire) na Ceilândia,
que ainda resiste ao tempo e as pressões políticas, porém mantêm
viva sua memória e sua luta. Neste espaço, ouvi atentamente seu
discurso sem ainda compreender a dimensão que seus ensina-
mentos tomariam no mundo, assim como na África com as Cartas
à Guiné-Bissau e tantos outros lugares. E eu sou extremamente feliz
por fazer parte desse processo. Sei que fiquei muito tempo sem
lhe dar notícias, mas ser professora requer muito tempo e tem sido
corrido por aqui em busca de desenvolver saberes e conquistar o
meu espaço como educadora sendo Professora Sim, Tia Não: Carta
a Quem Ousa Ensinar.

Mas, como você sabe, sou apaixonada pela educação e acre-


dito que “educar é um”[...] ato de amor, por isso, um ato de coragem.
Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à
discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (Freire, 2019, p. 127).

Deixe-me compartilhar com você que aquela menina, oriunda


de escola pública, tornou-se professora também de escola pública
porque acredito em mim, assim como você acreditou em todos nós,
ensinando a vivenciar A educação como prática da liberdade para
agir sobre o meio em que vivemos e sermos seres transformadores.

Hoje tenho vinte e seis anos de trabalho com a educação


básica, acredita? Atuei em tantos lugares e níveis que não consigo
descrever tamanha emoção. Você nem imagina como valorizo e me
inspiro na Importância do ato de ler em três artigos que se completam,
levando para sala de aula e para a vida aprendizagens significativas.

Atualmente não alfabetizo jovens e adultos, mas procuro


estabelecer uma relação de diálogo aonde quer que eu esteja, e vou
te dizer que tenho estado em muitos lugares contribuindo com a
formação de professores. Você pode não acreditar, mas em pleno
século XXI, depois de tantos ensinamentos que você nos deixou,

SUMÁRIO 156
ainda existem professores que mantém a prática da Educação e atu-
alidade brasileira com o viés na educação bancária, sem perceber o
tamanho do prejuízo que essa prática traz para o desenvolvimento
do indivíduo e da sociedade.

Trabalhando com a formação docente tenho encontrado


muito desafios para ajudar esses profissionais a refletirem, Por uma
pedagogia da pergunta, Pedagogia da Indignação e da esperança, de
maneira que possam repensar as suas ações que em sala de aula
possam contribuir para uma educação emancipatória.

Como sinto saudade de você socializando teorias e pensa-


mentos. Fico imaginando que nome daria a um livro para descre-
ver a educação no quadro presente, mas te antecipo que tivemos
poucos avanços e continuamos vivendo no mundo em que vigora a
Pedagogia dos oprimidos.

No entanto, você ficaria feliz em ver os inúmeros percurso-


res dos seus pensamentos que estão propagando no Brasil e pelo
mundo, compartilhando e vivenciando suas concepções sobre o
ser humano e a educação, avivando uma Pedagogia da Esperança.
São tantos estudiosos renomados que trazem as suas teorias para o
campo científico, consolidando Conscientização – Teoria e Prática da
Libertação, que nos remete ao pensamento consciente de quem age
e defende que não temos outra saída a não ser preparar os educan-
dos numa relação dialógica mediada pelo mundo e que represente
Educação e Mudança, de dentro par fora.

Outra curiosidade que você precisa saber é que o seu método


continua sendo aplicado até hoje, sabia? Por meio do seu método,
muitas pessoas são inseridas diariamente no mundo letrado, e os
educadores buscam se basear na Ação Cultural para a Liberdade e
Outros Escritos e perpetuar seus ensinamentos.

A Propósito de uma Administração, queria muito que você


estivesse aqui dando continuidade aos seus escritos, e À Sombra

SUMÁRIO 157
Desta Mangueira, pudesse mobilizar debates, reunir e encantar cen-
tenas de pessoas como fez comigo décadas atrás. Mas acredite que
seu legado está favorecendo a formação de educadores desafiados
a desenvolver mentes críticas e pensantes, sejam eles Educadores
de Rua, uma Abordagem Crítica – Alternativas de Atendimento aos
Meninos de Rua, ou qualquer outra minoria que precisa ter sua voz
propagada por meio da educação, na busca de caminhos possíveis
para mudar a condição de marginalizados do processo e serem
agentes na sociedade.

Ademais, Freire (1996), você sempre defendeu que a desi-


gualdade entre as classes sociais acarretava opressão das classes
mais altas sobre as classes populares, e durante a sua ausência tive-
mos alguns avanços e muitos retrocessos políticos e econômicos,
os quais não foram nem serão abordados nessa carta, mas teremos
outro momento para dialogar, afinal o problema ficou avassalador no
presente cenário brasileiro diante da pandemia que alastrou o país.
Continuarei seguindo seu legado e acreditando que somos capazes
de fazer a diferença porque eu também sou parte da educação. Um
abraço fraterno de sua eterna aprendiz.

Taguatinga, 01 de outubro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed.


São Paulo: Paz e terra, 1996.
NASCIMENTO, O. S. Sementes que geram frutos. In: Primavera Paulo Freire! 100 anos,
2021, Rio de Janeiro - online. Primavera Paulo Freire! 100 anos/ Fio cruz, 2021.

SUMÁRIO 158
Priscila Ferreira de Carvalho

OS DESAFIOS ATUAIS
PARA CONTEXTUALIZAR
AULAS COM ABORDAGEM
FREIRIANA PARA CRIANÇAS
Prezado Paulo Freire,

Utilizo as obras de sua autoria para inspiração da escrita


dessa carta pedagógica, como Pedagogia da Autonomia e Professora
sim, tia não, fontes que serviram para instruir a caminhada como pro-
fessora e estagiária do ensino fundamental I. A leitura dessas obras
possibilitou potencializar a convicção de que sou uma eterna apren-
diz no cotidiano com meus alunos.

Paulo, sinto informar que as coisas por aqui continuam as


mesmas, apesar de todo o esforço e dedicação que foi a sua vida
em prol de uma educação de qualidade para os filhos dos trabalha-
dores. Os professores continuam adoecendo muito. No estágio de
observação, as aulas foram ministradas pela docente substituta de
forma mecânica e repetitiva, transformando os alunos em copistas
e reprodutores de atividades xerocopiadas. Apesar da preocupação
da coordenação pedagógica solicitar a inclusão do lúdico nas ativi-
dades, o comodismo em repetir mais do mesmo e a dificuldade de
sair do tradicionalismo levam os professores a “esquecerem” de fazer
do aluno construtor e pesquisador de seus conhecimentos cientí-
ficos e o exercício da autonomia, fundamental para a vida escolar
das crianças. Outro ponto também importante que não se leva em
consideração é o campo afetivo dos educandos, pois muitas vezes
era retirado o recreio por castigo e autoritarismo docente que não
buscava o diálogo na mediação dos conflitos.

Como problematização para o nosso diálogo, retomo aqui uma


questão que você já apontou inúmeras vezes em suas obras, mas que
merece ser lembrada: “Como romper com um paradigma tradicional
e demagógico, ainda presente, mesmo de forma inconsciente no fazer
docente, para paradigma pedagógico humano, afetivo e democrá-
tico?”. Parto, assim, do pressuposto, que essa mudança deve partir de
mim como professora e também como estudante, pois como você diz,
“o docente deve assumir-se como ser pensante, comunicante, trans-
formador, criador e transformador de sonhos” (Freire, 2011, 22).

SUMÁRIO 160
Assim, caro Freire, percebe-se que o ensinar exige respeito
à autonomia do educando que vem sendo cada vez mais tirada da
criança, jovem ou adulto, não se insere uma aula dialógica que faça
sentido na atualidade, que ressalte a realidade do aluno. Urge que
o professor tenha essa percepção de sentido em suas aulas e não
retire do aluno, nem minimize sua curiosidade e identidade cultural.

Nessa carta, trago também minhas inquietações, meus


sonhos, minha esperança e minha forma de ver o mundo Freire.
Percebo que um dos maiores desafios para o educador é inserir de
fato uma aula que faça o aluno ousar em sua criticidade, respeitando
a criatividade e não apenas traga atividades já prontas, uma vez
que nesse processo a leitura e a escrita inicia com a percepção de
mundo e da realidade, e não apenas como ato mecânico de deco-
dificar letras e signos. Pois, em suas falas, “O processo de escrever
que me traz a mesa, com minha caneta especial, com minhas folhas
em branco, condição para que eu escreva, começa antes mesmo
que eu chegue à mesa, nos momentos em que sou pura reflexão
em torno de objetos” (Freire, 1997, p. 8-9). Nessa visão, nota-se a
percepção da importância de trazer a realidade do aluno para um
contexto pedagógico, dialógico e que respeite a criatividade tanto do
discente como do docente.

Tenho percebido, Freire, que diversos professores estão can-


sados da sala de aula e dos problemas da educação como a questão
salarial e de saúde, que os levam a não se dar ao trabalho de preparar
uma aula inovadora, pois na visão de muitos o melhor aluno é aquele
quieto, que não atrapalha a aula do que o participativo e questiona-
dor. Por conta desse pensamento, muitos docentes acabam sendo
conteudistas por acomodação e às vezes por falta de investimento
público para melhorias. Portanto, educar é ato de amor, afetividade,
criatividade, competência científica para que se possa compreender
a posição do aluno que vem de uma classe menos favorecida, e que
essa profissão requer lutas pelos seus direitos enquanto profissional
e dos seus alunos enquanto cidadãos.

SUMÁRIO 161
Assim, como educadores, temos que ter consciência de que
a práxis educativa não é transferir conhecimentos de forma conteu-
dista e mecânica. Requer perceber que estamos em aprendizado
contínuo enquanto ser cultural e histórico que se identifica em um
processo de inacabamento. Assim, “A inconclusão que se reconhece
a si mesma implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado
num permanente processo social de busca” (Freire, 2011, p. 54), con-
forme foi dito pelo Senhor.

Nessa perspectiva, reflito diante da minha prática docente, se


tenho aplicado o ensino lúdico e se estou sendo afetiva com meus
alunos e percebo que sim. Tenho feito meu melhor diante dos meus
limites, e já cometi muitas falhas como ser humano. Faço sempre
uma crítica a mim mesma de como melhorar a metodologia de
ensino utilizando o lúdico, e pesquisando a minha prática em cursos
de aperfeiçoamento e nessa caminhada acabo aprendendo junta-
mente com meus alunos.

Hoje estou atuando na sala de aula do 1° ano do ensino fun-


damental I, no projeto de alfabetização e intervindo através de jogos,
letras móveis, potencializando o sensorial, conforme o nível de difi-
culdade de cada aluno e também de suas habilidades. Como educa-
dor é indispensável a amorosidade aos educandos com quem estou
comprometida a partir do diálogo que me aproxima das crianças.

Dessa forma, tenho esperança de que a educação venha a


ser de qualidade e que valorize a criticidade e autonomia dos alunos
enquanto protagonista da sua aprendizagem que fuja da prática edu-
cativa bancária que existe desde a época da colonização quando o
opressor impôs sua prática educativa, religiosa e desconsiderou outros
saberes e culturas existentes, impondo como prática uma ação não só
escravista, mas também racista e preconceituosa. Portanto penso que
o trabalho do educador é romper com esta estrutura em que os alunos
devem ser dóceis, acomodados e submissos, por mais mudanças sig-
nificativas que a educação já tenha sofrido na atualidade.

SUMÁRIO 162
Assim, querido Freire tenho utilizado suas ideias para fazer
dos discentes seres críticos e curiosos, pois, “Se, de um lado, não
posso me adaptar ou me “converter” ao saber ingênuo dos grupos
populares, de outro, não posso, se realmente progressista, impor-
-lhes arrogantemente o meu saber como verdadeiro” (Freire, 2011, p.
79). É importante salientar, que quem tem poder quer sempre calar
a classe popular, para que estes não lutem por seus direitos e se sin-
tam culpados por sua situação desvantajosa. O educador tem como
responsabilidade auxiliar o educando em sua participação crítica
no mundo em que está inserido seja ele político, histórico, cultural
e social, para que intervenha na sociedade em que está inserido e
lute por melhorias.

Diante disso, Freire quero pontuar que me situo no mundo


como sonhadora e venho trazer inquietações através dessa carta
para dialogar sobre os procedimentos nas atividades escolares que
estão cada vez mais demagógicos e autoritários, o que causa preo-
cupação, pois em consequência disso, os docentes estão inibindo
a curiosidade dos alunos e até mesmo a sua. Outrossim, “Como
professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me
inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino” (Freire,
2011, p. 83). Percebe-se que a construção do conhecimento se dá a
partir do objeto de curiosidade, sem está só se alcança a memoriza-
ção do que está sendo dito pelo professor, mas sem real significado
de capacidade crítica de problematização. Dessa forma, a postura
do professor tem que estar sempre aberta de forma dialógica para
questionamentos, para a curiosidade, a reflexão, e não apassiva
diante dos discentes.

Portanto, concluo reafirmando minha inconclusão e a incon-


clusão de professores em formação inicial ou continuada uma vez
que a realidade é também dinâmica e mutável. Somos seres em
construção reescrevendo a história da educação com vistas “a um
novo tempo apesar dos perigos”.

SUMÁRIO 163
Por fim, finalizo essa carta agradecendo a sua atenção e as
ótimas cartas, obras e textos que o Senhor deixou para mostrar o
caminho de como ser um professor humanista libertador com as
crianças, jovens e adultos deste país, que ainda não assumiu de fato
na educação suas ideias.

Hidrolândia - Uibaí (BA), 28 de junho de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’Água, 1997.

LINS, I; MARTINS, V. Novo tempo. Álbum Novo tempo. Portugal, 1980. duração 4’e14”.

SUMÁRIO 164
Alana Gabriela Barros de Araújo

DIÁLOGO E MEDIAÇÃO
DA APRENDIZAGEM
ESCOLAR
Caro Paulo Freire,

Escrevo-lhe com profundo respeito e gratidão para expres-


sar minha experiência transformadora durante meu estágio em uma
turma de quarto ano das séries iniciais do ensino Fundamental.
Sou estudante de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) em Irecê. Enquanto aprofundava nos princípios e ideias
abordados em alguns de seus livros como Pedagogia do Oprimido,
Educação e Mudança e Pedagogia da Autonomia, muitas refle-
xões sobre minha formação docente foram possíveis. Em especial,
durante meu processo de estágio, essas obras foram verdadeiros
guias, e é uma honra poder compartilhar com você a maneira como
suas orientações influenciaram meu desenvolvimento pedagógico e
contribuíram para minha jornada como educadora.

Ao mergulhar em suas obras, fui inspirada por sua visão


humanista da educação, onde o diálogo, a conscientização e a
emancipação são elementos-chave para a construção de uma socie-
dade mais justa e igualitária. Seus conceitos e ideias me ajudaram
a repensar minha própria abordagem educacional, despertando-me
para o potencial de transformação social que pode ser alcançado por
meio da educação crítica.

Durante meu estágio, tive a oportunidade de aplicar seus


conceitos em sala de aula, levando em consideração a realidade
social, política e cultural dos meus alunos. Sua abordagem pedagó-
gica libertadora e conscientizadora serviu como um guia essencial
para minha prática docente, ajudando-me a romper com modelos
tradicionais e a estabelecer um ambiente de aprendizado mais inclu-
sivo e participativo.

Pedagogia do Oprimido (Freire, 1971) despertou em mim uma


consciência crítica sobre as estruturas de poder presentes na edu-
cação e na sociedade como um todo. Compreendi a importância de
reconhecer e enfrentar as injustiças e desigualdades que permeiam

SUMÁRIO 166
nosso sistema educacional, a fim de promover uma verdadeira trans-
formação. O conceito de diálogo como uma ferramenta de libertação
me levou a repensar minhas práticas de ensino, incentivando a parti-
cipação ativa dos alunos e a valorização de suas vozes.

Neste livro, é revelada a realidade sobre as estruturas de


poder presentes na educação e na sociedade como um todo. Com
sua análise crítica e profunda, você expôs as formas de opressão
que permeiam os sistemas educacionais e proporcionou-me fer-
ramentas para desafiar essas estruturas e promover a libertação
dos oprimidos. Essa obra revolucionária foi uma referência cons-
tante na minha práxis.

Já em Educação e Mudança (Freire, 1979), me proporcionou


uma visão mais profunda sobre a educação como um ato político
e transformador, assim como o papel social do educador e da pes-
quisa. Através de suas palavras, compreendi que a sala de aula é
um espaço onde as relações de poder podem ser desafiadas e onde
a conscientização pode ser cultivada com compromisso e atuação
dialogada. Sua ideia de que a educação é um processo de constante
transformação ressoou em mim, inspirando-me a buscar mudanças
e renovações contínuas na minha prática pedagógica.

Fui tocada pela profundidade de suas ideias e pela maneira


como você desafia as estruturas opressivas que permeiam nossas
sociedades, a convivência com os alunos na sala de aula permitiu-
-me entender a importância de uma educação libertadora que se
baseia na conscientização crítica dos estudantes. Seu conceito de
“educação como prática da liberdade” ecoa fortemente comigo, pois
acredito que a educação deve capacitar os indivíduos a compreen-
der e transformar sua realidade social.

Além disso, fiquei impressionada com sua abordagem holís-


tica da educação, que considera não apenas a dimensão cognitiva,
mas também a afetiva e social dos alunos. Busquei enfatizar na sala

SUMÁRIO 167
de aula a importância da empatia, do diálogo e da construção cole-
tiva do conhecimento, estabelecendo um ambiente de aprendizagem
participativo e inclusivo.

Suas ideias sobre a necessidade de transformar o mundo por


meio da educação e o papel do educador como agente de mudança
inspiraram-me a buscar constantemente novas abordagens, estra-
tégias e técnicas que puderam promover o engajamento, a reflexão
crítica e o empoderamento dos alunos.

Ao longo do meu estágio, pude testemunhar o poder dessas


ideias em ação. Os alunos, inicialmente apáticos e desinteressados,
começaram a se envolver de forma mais ativa e crítica nas ativida-
des propostas. Os diálogos se tornaram mais ricos e significativos,
permitindo que eles expressassem suas perspectivas individuais e
compartilhassem suas experiências de vida. Aprendi que a constru-
ção do conhecimento não é um processo unilateral, mas sim uma
troca constante entre professor e aluno.

Em Pedagogia da Autonomia (Freire, 1996) foi especialmente


impactante para mim. Nesta obra, encontrei reflexões profundas
sobre a importância da formação de sujeitos autônomos, capazes de
exercer sua cidadania plena e participar ativamente na construção
de um mundo melhor. Suas orientações sobre a prática docente, o
respeito às individualidades dos alunos e a valorização de suas expe-
riências foram de imenso valor para minha trajetória como estagiária.

A experiência na sala de aula me fez perceber a necessidade


de desafiar as estruturas de poder e as desigualdades sociais que
perpetuam a exclusão e a marginalização. Sua defesa pela educa-
ção como um meio de conscientização, de despertar a consciência
crítica e de promover a justiça social é um lembrete poderoso de
que nós educadores temos um papel fundamental na transformação
de nossas sociedades.

SUMÁRIO 168
Como educadora, tenho a honra de seguir seus passos e
me orientar com suas ideias em minhas práticas pedagógicas. Seu
legado continua a nos inspirar a criar espaços educacionais inclu-
sivos, nos quais os alunos possam se tornar sujeitos de sua própria
aprendizagem e agentes de mudança em uma sociedade mais justa.

Agradeço por ter dedicado sua vida ao avanço da educação


crítica e transformadora. Suas obras são um farol de esperança para
todos os que acreditam no poder da educação para construir um
mundo mais justo e igualitário. Seus escritos têm sido uma fonte
inestimável de inspiração e orientação, sua visão da educação como
um ato de amor, compromisso e transformação ecoará em minha
prática docente ao longo de toda minha carreira me guiado na busca
por uma educação mais libertadora e humanizadora.

Com admiração e respeito,

São Gabriel (BA), 04/06/2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1971.

FREIRE, P. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

SUMÁRIO 169
Raniely Souza Dourado

REFLEXÕES DE UMA
(QUASE) PEDAGOGA
COM MEDO DA
DOCÊNCIA
Caro Paulo Freire,

Como uma pedagoga em formação, posso dizer que tenho


tido várias experiências desde o início do curso, assim como o contato
com suas produções, mas acredito que ainda não seja o suficiente.
Já visitei e observei escolas, estudei e discuti a teoria, estagiei em
espaço não formal, na Educação Infantil e séries iniciais do Ensino
Fundamental, e me vi nesse último estágio, respectivamente, ainda
tentando viver e compreender a Formação e Identidade Docente.
Sendo assim, passando pelo processo do estágio, tento agora refle-
tir “Como lidei com os medos que envolvem a docência?”, porque
essa sem dúvidas foi uma das coisas que me marcaram no estágio, o
medo de assumir uma sala de aula e tudo relacionada a ela.

Posso lhe dizer, Freire que nunca me imaginei professora até


estar no curso de Pedagogia. Imagine está assumindo uma sala de
aula do 3º ano do Ensino Fundamental!!! O medo, a insegurança ao
enfrentar o novo surge, inquieta e me faz questionar “o que faz um
professor ser um bom profissional?”, porque afinal, penso que não se
trata de um dom, não é algo feito apenas por amor. É também estudo,
reflexão, prática, esperança, didática, criticidade, é um trabalho que
tem um papel fundamental na sociedade. Então, assumir a respon-
sabilidade da docência é ter compromisso pessoal, profissional e
social, apesar dos receios que se tem.

Uma das primeiras coisas que precisei fazer para lidar com
os meus medos, foi tomar consciência deles e ir verbalizando com
minha parceira no estágio. Entender que não estava sozinha e que,
em alguns casos, as situações podem ser mais assustadoras na
nossa cabeça, foi essencial eu começar parar de acreditar não ser
capaz de estar à frente de uma turma. Em uma de suas cartas, do
livro “Professora sim, tia não” o senhor diz que “a assunção do medo
é o começo de sua transformação em coragem.” (Freire, 1997, p. 45).
E de fato, não ter vergonha e assumir seus sentimentos pode ser o
primeiro passo para conseguir enfrentar tudo que estiver por vir.

SUMÁRIO 171
A verdade é que o docente é um ser humano e também
tem seus sentimentos, expectativas, limitações, o senhor mais do
que eu, deve saber disso. Durante o estágio, não só em uma, mas
em várias situações me vi conversando com os educandos sobre o
fato daquele momento/processo ser algo novo para mim e minha
dupla. Que aprendíamos algo com cada um deles e também que
não sabíamos de tudo, em alguns casos iria e foi preciso pesquisar
em casa sobre um assunto que foi colocado como dúvida para, pos-
teriormente, podermos responder. A isso você chama de humildade
epistemológica que “requer também, profunda confiança – não ingê-
nua, mas crítica – nos outros e uma opção, coerentemente vivida,
pela democracia.” (Freire, 1997, p. 45).

Um medo em específico, era o de não saber nada. Quando


falo agora parece bobo, mas no momento do estágio não me pare-
ceu. A crença nisso foi mudando ao longo ainda da primeira semana
dentro da sala de aula. O processo de ressignificação do saber
se dá na ação reflexão como você argumenta em Pedagogia da
Autonomia, fazer e pensar sobre o fazer (Freire, 2019). Nesse pro-
cesso me vi pensando no que os professores da faculdade disseram,
me vi vasculhando na memória os estudos dos teóricos, o que obser-
vei em outras experiências que presenciei e tentando pôr em prática
sempre relacionando a realidade da turma que estava. E para minha
surpresa, naquele momento consegui lidar com o que foi necessário.
No Professora sim, tia não, na carta Contexto concreto e contexto
teórico, o senhor ressalta que “é desvelando o que fazemos desta ou
daquela forma, à luz de conhecimento que a ciência e a filosofia ofe-
recem hoje, que nos corrigimos e nos aperfeiçoamos.” (Freire, 1997,
p. 70). Portanto, nesse processo vou pensando e praticando melhor
ao pensar na própria prática.

O ensinamento que consigo tirar disso é que posso afirmar


que não sei de tudo, visto que sempre vai ter algo para apender, para
desconstruir e reconstruir. Mas não posso me apegar a ideia de que
não sei de nada, afinal “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo.

SUMÁRIO 172
Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma
coisa.” (Freire, 1989, p. 39). Tento levar isso comigo na maioria das
situações, principalmente nas que a insegurança aparece. Durante
os 15 dias de regência com a turma de 20 crianças, sabia que aquele
era o momento para aprender e poder viver, mesmo que durante
pouco tempo, a docência, e errar faz parte do processo.

O que posso dizer, Freire, sobre o medo de errar é que se


permitirmos, ele pode ser paralisante. Deixamos de fazer algo ape-
nas por ter o achismo de que faremos errado, de que existe apenas
uma maneira correta. Em certas ocasiões me vejo tendo essa relação
complicada com o medo como consequência do sistema educacio-
nal ao qual fui submetida ao longo da vida, em que o erro não era
bem visto, apenas acertos, e você cresce com a cobrança de ter que
acertar em tudo desde a primeira vez que se dispõe a fazer. Ainda
hoje nem todos enxergam, na educação, o erro como tentativa de
acerto ou mesmo como alternativa de aprendizado. Espero e tentarei
ser uma professora que não se prenda a essa visão. Que consiga
e tenha disposição para fazer uma avaliação considerando todo o
processo de ensino-aprendizagem.

Isso me faz lembrar sobre outra questão, planejamento. São


tantas coisas que precisam ser levadas em consideração quando
sentamos para planejar. Nesses momentos me via sentindo o medo
de não planejar algo que fosse significativo e envolvente para os
educandos, que durante a aula fosse maçante e apenas mais con-
teúdos sendo depositados ali. Como é necessário trabalhar os livros
didáticos, houve um receio de não saber relacionar os conteúdos a
realidade da turma pois, “o necessário ensino desses conteúdos não
pode prescindir do crítico conhecimento das condições sociais, cul-
turais, econômicas do contexto dos educandos.” (Freire, 1997, p. 46).
Agora o senhor pode estar se questionando, “e como você foi lidando
com o medo relacionado a isso?”. Bem, o que posso te dizer é que
somente no desenrolar das aulas que fui analisando o que fluía bem
e o que não era tão significativo, e assim fazendo as modificações,

SUMÁRIO 173
além de contar com o apoio e orientações das professoras de estágio
e a da turma que estagiei.

Além dos receios que já tinha, me deparei com outros quando


comecei a regência. O de não conseguir envolver todos os alunos no
processo de desenvolvimento do projeto de estágio. Eu e minha par-
ceira de estágio tivemos um estudante que pouco se envolvia na aula,
com a turma, nas atividades, era quietinho no canto dele. E agora me
lembro do senhor dizendo que as vezes um pequeno gesto de um
professor pode ser significativo para o educando, em sua assunção
por si mesmo (Freire, 2019). O gesto foi umas das saídas que nos
vimos utilizando com ele. Em várias situações o olhar, um balançar
de cabeça, um sorriso pode ser significativo, e acredito que isso
tenha feito diferença no desenvolvimento do educando em questão.

São tantas coisas a serem ditas..., mas essas são, breve-


mente, as questões que destaco como marcantes no estágio. Disse
no início que tudo que pontuei ainda não foi o suficiente, e não foi.
Estou quase terminando minha licenciatura e ainda tenho tanto a
aprender. Que baita responsabilidade é ser professor. Ainda estou
me descobrindo como educadora e tenho um longo caminho para
percorrer. Mas o que vivi, principalmente nesse estágio, ajudou muito
a me ver como professora, a superar os medos, a entender que ao
escolher essa profissão irei viver um processo diário de reflexão, de
construção e reconstrução. Além disso, me fez refletir que tipo de
docente almejo ser. Amorosa, reflexiva, que está disposta a aprender
com o educando, que entende a necessidade do equilíbrio entre a
rigorosidade cientifica dos conteúdos e o respeito dos saberes que
os estudantes trazem previamente. Para isso, tenho a consciência
de que irei traçando os caminhos que melhor me identifico ao longo
do processo, sempre buscando repensar o que não foi significativo.

Ibititá (BA), 28 de junho de 2023.

SUMÁRIO 174
REFERÊNCIAS
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23.ed. São
Paulo: Autores Associados, Cortez, 1989.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 58. ed.


Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’Água, 1997.

SUMÁRIO 175
José Nildo de Souza

LETRAS LIVRES
NA SOCIOEDUCAÇÃO:
INSPIRAÇÕES FREIREANAS
COM JOVENS EM RESTRIÇÃO
DE LIBERDADE
Prezado Paulo Freire,

Esta carta convida a um compartilhamento de leituras e


práticas pedagógicas em artes cênicas realizadas com jovens em
restrição de liberdade em um estabelecimento de internação socio-
educativa do Distrito Federal, periferia de Brasília. Problematiza
corporeidades sentenciadas relacionadas à condição de classe
social, pois, quase a totalidade de jovens que cumprem internação
por infrações penais estão marcados no Mapa do encarceramento
de jovens do Brasil (2015) possuem elementos distintivos comuns:
juventude considerada “pobre e degenerada” ou “os futuros crimino-
sos”; indivíduos que não se enquadram nos parâmetros normativos;
fora do ambiente familiar, ou em situação de “risco moral”; jovens
recolhidos das ruas por mendicância; classificados como “menores”,
“delinquentes” e “perigosos” pela polícia; criminalização da juven-
tude pobre e negra brasileira por parte do Estado; doutrinação do
princípio militar de segurança nacional; criminalização dos usuários
de drogas; apreensão por “atitude suspeita”; discurso ideológico
negacionista sobre a juventude pobre.

Como os jovens-presos, também fui adolescente na cidade


satélite de Ceilândia, periferia de Brasília, uma das regiões mais violen-
tas da capital do país. E, como todo o jovem dessas regiões, encontrei
percalços e desafios em meu trajeto formativo: tráfico de drogas, armas
de fogo, criminalidades, exclusão de classes, gêneros e etnias. Quando
fui lecionar artes cênicas na Papuda (Complexo Penitenciário do DF),
me reencontrei com adultos-presos, que também foram adolescen-
tes nessa mesma região e que atravessaram igualmente estágios de
exclusão. Sem dúvida, eu acabei me sentindo identificado com esse
horizonte humano, reconhecendo-me pertencente a ele.

Neste percurso como docente em teatro no presídio, durante


os anos de 2006 a 2011, concebi, junto aos educandos-presos,
metodologias e processos de criação em artes cênicas intitulados
“A Construção do Ser Social”, “A Cena Detida” e “A Teatralidade

SUMÁRIO 177
Precária”13 fundamentados na pedagogia libertadora de Paulo Freire.
Tornei-me ainda professor-formador na Eape, coordenando o curso
“Muito Além das Grades” e a formação docente em grupos de pes-
quisa sobre pedagogias para a socioeducação.

Quando cheguei às unidades de internação para lecionar


artes cênicas aos socioeducandos, percebi que esses adolescen-
tes eram filhos e filhas de presos, ou possuíam algum vínculo de
parentesco com os presidiários do Complexo da Papuda. Depreendi,
então, o que me acompanha neste roteiro profissional: a construção
efetiva de espaços de interação social para o teatro na socioeduca-
ção, encampando a linguagem e a expressão desses jovens (sin-
gularidades existenciais e visão de mundo) por meio de narrativas
negadas e teatralidades censuradas, exclusões autobiográficas e
ciclos geracionais de encarceramento.

Os itinerários de lágrimas e vozes desses jovens constituem


também a minha aventura linguístico-profissional nas artes cênicas
como arte-educador e ressocializador no sistema prisional. Proponho,
assim, em um campo estético-artístico designado como narrativas
teatralizadas para esse horizonte humano peculiar, que atravessa
ciclos geracionais no cárcere das estigmatizações e exclusões, uma
oficina de artes cênicas na qual os jovens-presos dão corporeidades
às suas narrativas, bem como teatralidades às suas existências.

Vou contar, assim, nessa carta minha experiência docente-


artística com jovens em restrição de liberdade. Pretendo focar
suas produções estéticas na construção de processos cênicos
em contextos de privação de liberdade. Intitulei o projeto com o
nome Letras Livres na Socioeducação. Por quê? Porque se trata
de movimentos e ações de leiturização com as artes cênicas.

13 Os resultados dessa experiência foram publicados no livro de minha autoria “A Linguagem


Corporal Reclusa”, no Festival Cara e Cultura Negra de 2013 (SOUZA, 2013). As referidas práticas
artísticas ainda foram premiadas pelo Instituto Innovare de Ressocialização de Jovens em 2015, no
Ministério da Justiça.

SUMÁRIO 178
Nestes movimentos e ações constroem-se formas de enfrentamento
e rupturas teatrais com a opressão e a discriminação que diariamente
convivemos em um estabelecimento de internação socioeducativa.

Destaco aqui a perspectiva crítica de Freire (1997) como fun-


damento para reflexão da minha práxis pedagógica em um estabele-
cimento de internação socioeducativa. O autor me inspirou com sua
pedagogia crítico-libertadora porque pude, em meu trajeto formativo
e existencial delimitar pontos de intersecção e pertencimento entre o
que vivi e o que vivem esses jovens. E, nesse sentido de pertencimento,
os estudos freireanos da liberdade inspirou-me uma leitura sobre meu
papel na socioeducação como professor de teatro e os papéis que os
socioeducandos desempenham na construção dos seus jogos cênicos.

Na teatralização das narrativas cênicas percebi que, utili-


zando os princípios da pedagogia libertadora de Paulo Freire - cenas
em círculos, funções exercidas coletivamente, descentralização da
autoridade e da liderança no grupo - eu poderia compartilhar e viven-
ciar esses papéis entre e com esses jovens potencializando a visão
crítica de serem vistos nesses papéis por mim mesmo: como profes-
sor e como ator nos jogos cênicos construídos nas encenações de
suas narrativas. Portanto, o momento de contato desses jovens com
a leitura por meio do teatro caracteriza oportunidade para emancipa-
ção de sua condição de ser sentenciado em um regime de restrição
de liberdade projetando mudanças sociais nas cenas que evocam a
liberdade - enfrentamento, superação e reconhecimento.

Utilizo o teatro como forma de explicitar as condições que cum-


prem a internação: perda do direito de ir e vir. As vivências dialógicas
e literário-teatrais se desenvolvem em uma biblioteca na qual montei,
organizei junto com esses jovens e concebi o projeto Letras Livres na
Socioeducação. Diariamente esses jovens frequentam a biblioteca da
unidade de internação e de lá não querem sair. Essa afeição que pega-
ram à biblioteca é produto da aplicação dos princípios da pedagogia
freireana e do meu esforço como professor de teatro e arte-educador.

SUMÁRIO 179
Para construir vínculos desses jovens com a leitura tomei várias ini-
ciativas. E, em cada iniciativa dessas, eu levava a poesia, a música e o
teatro como forma de motivá-los a se interessarem pela leitura.

Entre essas iniciativas concebi diversas atividades: mala da


leitura , carrinho literário, leitura na rede, café com leitura, produ-
14

ção de cartazes, leitura de capas, musicalização, leitura com rimas


e oficina de teatro. Desta forma, a biblioteca se tornou também um
ambiente onde experimentam projeções da liberdade que almejam,
vivências pós-muros de internação, sonhos, desejos, e inquietações.
As impressões cênico-corporais que teatralizam em suas narrativas
são provenientes de suas leituras ou de percursos vividos.

As referidas iniciativas resultam, portanto, de um esforço por


encontrar vínculos entre as narrativas das histórias contadas pelos
socioeducandos e suas teatralidades compartilhadas em uma ofi-
cina de artes cênicas. Ao imprimirem um sentido singular em suas
teatralidades, acabam por expressar narrativas sobre liberdade.
Descobrem em seus modos de ser, sentir, pensar e estar no mundo
processos criadores em teatro. Por meio das artes dramáticas pro-
duzem enredos teatralizados em cenas individuais e em grupo. Nas
cenas de rejeição, culpa e condenação representam a indiferencia-
ção com a depreciação da dimensão humana. Veem nessas cenas
os percursos das vulnerabilidades que trilharam desde cedo em
suas trajetórias. Identificam, assim, papéis e personagens, lugares
e situações características. Ora se assemelham, ora se distinguem
pelas experiências vividas. E, nesse jogo de vínculos entre narrar
e teatralizar, uma autoconsciência se instala tanto no compartilha-
mento de suas próprias ações quanto na maneira de ver o outro
interpretá-los e interpretar a si mesmos.

14 Essa atividade se tornou a atividade inicial do projeto. Foi sugerida pelo supervisor pedagógico
do núcleo de ensino da unidade de internação visando o empréstimo de livros, pois, não existia
biblioteca nas dependências do estabelecimento. Ou seja, ele sugeriu e eu tomei a iniciativa de
realizar uma campanha de leitura junto a jovens em restrição de liberdade.

SUMÁRIO 180
No teatro dispõe-se uma sala de aula de outro jeito: coor-
denação de atividades cênicas em círculos, distribuição coletiva de
tarefas, combate ao autoritarismo e, portanto, a desconcentração de
poder – alguns dos princípios da pedagogia freireana ou pedagogia
libertadora. Essas dinâmicas já subvertem a ordem hierárquica da
unidade de internação. Desse ponto tenho que negociar com a segu-
rança, pois, minha aula é acompanhada pelos agentes que são res-
ponsáveis pelo deslocamento dos socioeducandos até a biblioteca,
local onde ocorre o projeto que criei, Letras Livres na Socioeducação.
Todas essas pequenas dinâmicas teatrais restituem, gradativamente,
a palavra e a leitura àqueles jovens que, privados de suas liberdades,
estão condicionados à obediência e a disciplinarização de seus cor-
pos: cabeça baixa, ombros encolhidos e braços para trás.

A guisa de conclusão, o arte-educador na perspectiva da


pedagogia libertadora de Freire (1997) pode propor caminhos para
estimular os socioeducandos nas práticas coletivas com a linguagem
teatral. Não se trata de buscar desculpas para o crime ou a infração
cometida, mas, ajudá-los a observar, por meio de uma pesquisa parti-
cipante, como se constroem os estereótipos, os preconceitos, possi-
bilitando, a partir dessa observação, que se posicionem criticamente.

Recorrem, portanto, à linguagem cênica em suas narrativas


teatralizadas. A avaliação e apreciação da produção criadora dos
socioeducandos realizam-se por meio de um acervo teatral/artístico
de construção coletiva da aprendizagem: textos narrativos e elabo-
ração de ações cênicas onde cada um, nos círculos freireanos do
saber, diz a “sua palavra”, emancipando-se ética e esteticamente.

REFERÊNCIAS
Brasil. Presidência da República. Secretaria Geral. Mapa do encarceramento: os
jovens do Brasil / Secretaria-Geral da Presidência da República e Secretaria Nacional de
Juventude. – Brasília: Presidência da República, 2015. 112 p.: il. – (Série Juventude Viva).

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997.

SUMÁRIO 181
Kêmily Alcântara Barreto

VIVÊNCIAS
DE UMA MONITORIA
DE ENSINO
Querido Paulo Freire,

É com muita alegria que lhe escrevo esta carta para relatar
as minhas vivências na educação pública e na Monitoria de Ensino
Superior. Meu nome é Kêmily Alcântara Barreto, sou estudante de
Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia e sou agricultora
em busca de uma graduação no nível superior. Venho da roça, estu-
dei desde a educação infantil até o nível superior em escolas e insti-
tuições públicas, fato este que me traz incentivo para lutar e acreditar
no ensino público de qualidade.

Sou mulher, sou neta, sou filha, sou mãe. Venho de uma gera-
ção de mulheres do campo, minha família é da roça, sou a primeira
a ingressar no ensino superior, e o senhor nem imagina o abrir de
portas que foi esse ingresso. Minha prima também se tornou filha
da UNEB e minha irmã agora também é. Meu coração transborda
ao lhe contar isso, a luta por uma educação pública, emancipatória,
deve fazer parte do cotidiano das nossas escolas. Acredite, sem o
incentivo da minha mãe e dos professores que sempre me disseram
que eu poderia ir além, que fizeram minha inscrição no programa
Universidade Para Todos - UPT, eu jamais teria chegado aqui. Não
por não ter capacidade de ir além, mas por não ter conhecimento
sobre como ingressar em uma universidade.

Quero te contar um pouco da minha trajetória. Morei na roça


até os 16 anos e comecei a estudar aos 5 anos de idade graças a
minha mãe e ao meu pai que foram atrás de transporte na secretaria
de educação de Ibititá (BA), governo tem políticas públicas de per-
manência estudantil, como é o caso do Mais Futuro, PIBID, Partiu
Estágio, Monitorias de Ensino, programas esses que me auxiliaram
no desenvolvimento profissional e financeiramente, pois me davam
a oportunidade de focar no curso e não precisar voltar a trabalhar
na roça e/ou em casa de família, pois como é sabido Freire, a dificul-
dade de estudar sem a família conseguir ajudar é grande.

SUMÁRIO 183
Desta forma, eu consegui fazer parte dos programas e
assistências estudantis do governo estadual e federal, comecei com
o PIBID que durou 18 meses atuando em sala de aula, logo após
esse programa, consegui a bolsa do Mais Futuro. Após o PIBID eu
consegui fazer o Partiu Estágio e atuei junto a coordenação de uma
escola estadual da minha cidade Ibititá-Ba, local que aprendi muito
sobre coordenação pedagógica. Com o encerramento da bolsa do
Mais Futuro, surgiu a oportunidade de fazer o estágio do próprio
programa no Núcleo Territorial de Educação-NTE 01 dentro do Setor
Pedagógico, e foi o ambiente que me proporcionou vivências do
fazer pedagógico inestimáveis.

Concomitantemente com o estágio do Mais Futuro eu fiz


a Monitoria de ensino superior, e ahh… Freire… chego a suspirar
por me encontrar em um ambiente de orientação. Eu convivi com
colegas e futuros pedagogos que estão compreendendo a educa-
ção como uma ação transformadora de realidades, a experiência de
monitorar na sala do ensino superior me proporcionou apreciar o
cuidado e a busca pela educação emancipatória que os estudantes
e futuros pedagogos estão fazendo e lutando para acontecer. São
cabeças pensantes que percebem e se tornam parte da luta pelas
mudanças na educação.

Dentro deste desenvolvimento profissional a Monitoria de


Ensino na disciplina de Pesquisa e Estágio me proporcionou conviver
com a realidade de diversos estudantes do curso de pedagogia, lidar
e aprender com diversos temas e está ali na prática do dia a dia auxi-
liando no processo de orientação do que é educar e como educar, me
fez ter mais certeza de que a coordenação é a minha área. Orientar,
auxiliar, coordenar faz parte da minha identidade enquanto profissio-
nal e a monitoria de ensino me proporcionou esta experiência.

Dentro da Monitoria juntamente com a professora do com-


ponente que é a minha orientadora - Lormina Barreto - eu conse-
gui enquanto aprendente da docência no ensino de nível superior,

SUMÁRIO 184
partilhar das experiências juntamente com meus colegas e encon-
trar dentro destes partilhamentos o meu tema de pesquisa para
o TCC. Em uma escuta atenta dos relatos dos futuros pedagogos
em seus processos de estágio na escola Parque Municipal Ineny
Nunes Dourado, na cidade de Irecê-Ba, trouxeram à tona assuntos
emergentes para se trabalhar e contribuir com a educação do nosso
município. Bingo! Eureca!! O papel do coordenador na dinamização
do currículo da rede municipal.

Então Freire, encontrar dentro da monitoria de ensino superior


a vocação por pesquisa despertou em mim, graças aos seus ensina-
mentos o desejo por acreditar e trabalhar dentro de um conceito de
fazer pesquisa para a educação ao invés de uma pesquisa sobre a
educação, pois houve entendimento de que a pesquisa deve ser vol-
tada para uma práxis pedagógica, que deve acontecer de forma crítica
e transformadora. Porém querido Freire, estudar sobre o novo causa
medo, e mais uma vez me apego aos seus pensamentos que diz que
“Se você racionaliza o medo, então nega o sonho. [...] o medo vem de
seu sonho político, e negar o medo é negar o sonho” (Freire, 1986, p. 39).

É necessário coragem para enfrentar o Novo, é necessário


apoio para ir além, e eu preciso agradecer à minha orientadora que
esteve nesta jornada me incentivando, despertando minha veia
freiriana, pró Lormina Barreto Neta, a educação, cuidado e humani-
dade que a senhora despertou nas suas aulas durante a Monitoria,
a sua implicação nas orientações fizeram despertar o conceito frei-
riano de uma educação que seja emancipatória, e é importante que
você saiba sobre isso Freire, por que isso faz jus a sua luta, seus
ensinamentos estão sendo repassados e a busca por uma edu-
cação pública, de qualidade, emancipatória e humanizadora vem
ganhando e tomando força.

Lembro-me que você falava em seus livros de pensar-se


em uma educação capaz de reconhecer a cultura do educando e
agir com base nela, naquela realidade, pois somente assim ela faria

SUMÁRIO 185
sentido para aquele que vai ser alfabetizado, “a leitura do mundo
precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não
possa prescindir da continuidade da leitura daquele” sendo que
esta leitura somente fará sentido se for acompanhada de uma capa-
cidade de ler o mundo, de perceber o mundo, de reconhecer os
papéis desempenhados pelos atores do mundo e de reconhecer-se
como peça naquele mundo, e foi isto que eu vivenciei durante a
monitoria de ensino.

O reconhecimento de que as escolas devem ser locais no


qual o ensinar e o aprender se tornem um momento alegre, de
escuta a comunidade, diretores, professores, zeladores, de respeito
pelas crianças, respeito esse de entender as crianças como parte
ativa e constituinte da escola. E era essa a orientação fornecida pelas
professoras de estágio, e eram esses os relatos dos universitários
em formação, preocupados com o processo de ensinar e aprender
das crianças, então, querido Freire é nítido seu legado neste entendi-
mento dos profissionais que estão em formação.

As orientações partiam da necessidade de se ter uma visão


crítica do que seria ensinar, estudar e aprender, do reconhecimento
das crianças como sujeitos de direitos, de falas, de conhecimentos,
compreendidas a partir do diálogo, e a parte mais bonita que pude
vivenciar nesta Monitora foi a preocupação dos pedagogos em for-
mação na busca pela emancipação, uma emancipação no sentido
de que a criança possa mudar sua própria história, acreditar em si
mesmo, transformar o mundo. No sentido de uma prática emancipa-
tória que dá voz e sugere a autonomia das crianças de se reconhe-
cerem no mundo e de ressignificarem sua existência.

Ah Freire, vivenciar a prática de uma formação para os


futuros pedagogos se reconhecerem e se educarem por meio das
práticas sociais foi inspirador, me encontrei pesquisadora neste pro-
cesso e atualmente faço parte do grupo Ação e Mobilização Social
pela Educação a partir da Infância (GP-AMEI), que é um grupo de

SUMÁRIO 186
Empoderamento Comunitário a partir da Infância, com foco também
na alfabetização freiriana, pois me entendendo dentro de contexto
social, sendo mulher, negra e pobre, preciso conhecer e reconhecer
o que é ser oprimido e o que é ser opressor, senão o oprimido conti-
nua em seu lugar de oprimido e não sai para a luta, já que:
O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o
seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de
caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles.
Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma desig-
nação abstrata e passam a ser os homens concretos,
injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por
isso no seu trabalho comprado, que significa a sua pes-
soa vendida. Só na plenitude deste ato de amar, na sua
existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade
verdadeira (Freire, 2011, p. 23).

Então Freire, agradeço os seus ensinamentos enquanto


humano, ser inacabado e em constante evolução, pelas reflexões a
mim oportunizadas. Agradeço a luta pela permanência das políticas
públicas de incentivo ao ensino superior. Agradeço às professoras
de Estágio, Lormina e Daniela pela excelência das aulas administra-
das, aulas de escuta, reflexivas. Este é um processo permanente, a
constância por uma educação pública que se caracterize pelo res-
peito aos saberes dos educandos e tenha como princípios a ética,
solidariedade e a transformação social, ou seja, que possamos viver
a frase: ao mesmo tempo que luta, educa.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

SUMÁRIO 187
Joilton Lopes de Brito Lemos

ESCOLA COMO ESPAÇO


DE REPRODUÇÃO OU DE
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL?
Prezado companheiro Paulo Freire,

Antes de tudo, preciso dizer que ainda me sinto extrema-


mente emocionado pela passagem do seu centenário. Data sim-
bólica, que nos encheu de orgulho, pois vivenciávamos, naquele
momento, mais um período obscuro de nossa História. O Brasil fler-
tou mais uma vez com ideologias de extrema direita. Ódio, persegui-
ção, negacionismo, sucateamento da educação e da cultura. Assim
como nos anos 1960/1970, seu nome esteve envolvido nos discursos
de ódio daqueles que se apresentam como defensores da família,
da moral e dos bons costumes. Falo dos indivíduos que se dizem
nacionalistas, que se apossaram da bandeira nacional e saíram pelas
ruas gritando que você era o grande vilão da educação brasileira.
Vivemos tempos difíceis, mas tenho que lhe dizer que seu nome, sua
história e seu legado foram devidamente defendidos, nas escolas,
nas universidades, nas praças públicas e em todos os atos em prol
da democracia. O “esperançar” de Paulo Freire nutriu cada um de
nós que, como você, defende o Estado Democrático de Direito. Seu
centenário foi festejado em todos os cantos desse país e você segue
sendo o patrono da educação brasileira.

Escrevo esta carta para lhe contar que durante minha vida
acadêmica fui me apaixonando por seus escritos. Ainda no Ensino
Médio, aluno do Curso Normal (Formação de Professores), tive con-
tato com uma de suas obras. Uma professora pediu par que lêsse-
mos o livro Professora Sim, Tia Não: Cartas a Quem Ousa Ensinar. A
partir dessa leitura, sinto que comecei a construir o professor que
sou, consciente do papel social da escola, das disputas ideológicas,
do papel formativo e de luta da greve dos trabalhadores e de que os
educandos são sujeitos da História.

Ao ingressar no curso de Pedagogia, da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro, participei de um grupo de pesquisa, onde
estudávamos a sua obra. Naquele período, entre 2009 e 2012, mer-
gulhei mais profundamente em seus pensamentos e comecei a

SUMÁRIO 189
fazer pontes com outros autores, seja para embasar ideias seme-
lhantes ao que é defendido em sua obra, seja para contrastar con-
cepções divergentes.

Certo dia, lendo A Reprodução, de Bourdieu e Passeron


(1970), foi inevitável construir essa ponte entre a obra desses auto-
res franceses e sua Pedagogia do Oprimido (Freire, 1968), ambas
publicadas no mesmo período histórico, apresentando interessantes
análises sobre o papel social da escola.

Para Bourdieu e Passeron, a escola serve para reproduzir as


classes sociais. Assim sendo, filhos de rico estudam para continuar
sendo ricos e filhos de pobre, para continuar sendo pobres. Pois na
visão desses pensadores, a escola se utiliza da cultura da classe
dominante para impedir o acesso das demais classes sociais aos
espaços de poder. Os autores exemplificam ressaltando a hierarquia
existente entre os cursos superiores, onde os sujeitos pertencentes
às classes populares dificilmente cursam as faculdades frequenta-
das pela classe dominante:
[...] os estudantes originários das classes desfavore-
cidas se orientem antes para as faculdades de letras e
de ciências e os estudantes das classes favorecidas
para as faculdades de direito e de medicina (Bourdieu;
Passeron, 2008, p. 262).

Tomaz Tadeu da Silva (2009) revela que “a seleção que constitui


o currículo é o resultado de um processo que reflete os interesses par-
ticulares das classes e grupos dominantes.” Assim sendo, o currículo
escolar, baseado na cultura desse grupo, ou seja, uma cultura branca
e eurocêntrica, é a grande arma de dominação; privilegiando esses e
excluindo os estudantes das classes populares. Não é à toa que, ainda
hoje, a evasão escolar é um ponto preocupante na educação brasileira.

No entanto, há sujeitos que conseguem furar essa bolha,


acessando certos espaços de poder:

SUMÁRIO 190
Bourdieu ressalva que as diferenças culturais entre os
alunos das diversas classes sociais seriam menos eviden-
tes nos níveis mais elevados do sistema de ensino. Isso
ocorreria porque os alunos das classes médias e popula-
res que chegam a esses níveis do sistema já teriam pas-
sado por um processo de “superseleção”, no qual teriam
sobrevivido apenas aqueles mais qualificados (Nogueira;
Nogueira, 2004, p. 87).

Então, companheiro Freire, se o currículo escolar contribui


decisivamente para a manutenção do status quo, é preciso repen-
sá-lo, reconstruí-lo sobre as bases de uma educação democrática,
onde todos os alunos possam ser vistos como sujeitos históricos,
constituídos por diferentes saberes. E é justamente em Pedagogia
do Oprimido, que vamos encontrar as bases teóricas que nos faz
acreditar que o professor pode e deve ser muito mais que um agente
a serviço da estratificação das classes sociais, mas um agente trans-
formador, que, através de sua práxis, vai buscar caminhos para a
conscientização das classes populares.
[...] Na verdade, se admitíssemos que a desumanização
é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos
que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total
desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre,
pela desalienação, pela afirmação dos homens como
pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta
somente é possível porque a desumanização, mesmo que
um fato concreto na história, não é, porém, destino dado,
mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violên-
cia dos opressores e esta, o ser menos. (Freire, 1987, p. 30).

Os dominados são pessoas alienadas, eles foram persuadidos


pela classe dominante. Estes inculcaram nos oprimidos que a reali-
dade que está posta não deve ser questionada porque Deus assim
quer, e se revoltar contra esta situação é afrontar as vontades divinas.
Sem crerem em si mesmas, destruídas, desesperançadas,
estas massas dificilmente buscam a sua libertação, em
cujo ato de rebeldia podem ver, inclusive, uma ruptura

SUMÁRIO 191
desobediente com a vontade de Deus – uma espécie de
enfrentamento indevido com o destino. Daí a necessidade,
que tanto enfatizamos, de problematizá-las em torno dos
mitos de que a opressão as nutre. (Freire, 1987, p. 162).

Esse pensamento está tão impregnado na cabeça dos


oprimidos que é comum ouvirmos frases do tipo: “A vida é assim
mesmo.”; ”Se Deus quer assim, o que eu posso fazer?”; “Eu nasci
pobre, vou morrer pobre; essa é a realidade.”

Os dominadores conseguem invadir a mentalidade dos domi-


nados, impondo sua visão de mundo, onde só os brancos ricos têm
direitos plenamente garantidos. Portanto, o trabalho do professor
revolucionário é extremamente exaustivo, pois este precisa recupe-
rar a humanidade roubada pelos necrófilos – que são os opressores.
Nesta sua perspectiva, companheiro Freire, os revolucionários são
biófilos, pois lutam para que os oprimidos se conscientizem, desco-
brindo com isto, que são sujeitos de sua história e não meros objetos.

Enquanto os professores que servem à dominação se pros-


tram diante da realidade, nada fazendo para transformá-la, os profes-
sores revolucionários respeitam os seus alunos, dialogando, incenti-
vando-os a buscar conhecimento, mostrando que o futuro não está
dado, que a história é feita por homens conscientes e que, portanto,
é importante deter os dominadores – aqueles que nos proíbem de
viver, de falar e de pensar.

Sinto que estou me alongando e sem querer cansá-lo, com-


panheiro Freire, volto, para terminar, ao “esperançar”. Escrevo esta
carta, a pouco dias da chegada da primavera. Justamente hoje, dia
em que se comemora a Independência do Brasil. Há nove meses, o
Brasil respira aliviado. Conseguimos, na eleição presidencial de outu-
bro de 2022, depois de muito esperançar, afastar a extrema direita do
poder. Hoje, Luiz Inácio Lula da Silva desfilou em carro aberto, com a
faixa presidencial no peito, comemorando a Independência do Brasil
– data que podemos e devemos problematizar. No final das come-

SUMÁRIO 192
morações, Lula chupou jabuticabas colhidas, por ele próprio, de uma
jabuticabeira que plantou em seu segundo mandato. É a prova cabal
de que “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas
jamais conseguirão deter a chegada da primavera”.

Duque de Caxias (RJ), 07 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. PASSERON, J. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de
ensino. Petrópolis: Vozes, 2008.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

NOGUEIRA, M. A. NOGUEIRA, C. M. M. A escola e o processo de reprodução das


desigualdades sociais. In: NOGUEIRA, M. A. NOGUEIRA, C. M. M. Boudieu & a Educação.
Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p.83-101.

SILVA, T. T. Documentos de Identidade: uma Introdução às Teorias do Currículo. 3.ed.


Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

SUMÁRIO 193
Lana Lima Pereira

A REEXISTÊNCIA
DO FAZER EDUCATIVO
COMO PRÁTICA
DE LIBERDADE
Saudoso e respeitável Freire,

Venho através destas singelas palavras na tentativa de dia-


logar com sua grandiosa e relevante contribuição à educação bra-
sileira a minha experiência como professora e educadora. E, assim,
tentarmos pensar juntos em uma possível reexistência para o fazer
educativo enquanto prática de liberdade.

Sinto dizer, mas muito pouco se tem avançado no sentido de


uma pedagogia libertadora. A nossa incessante busca tem sido um
processo tortuoso e doloroso para todos os envolvidos. Infelizmente
o afeto tem sido substituído pelas tantas e tantas tarefas de entra e
sai de uma turma para a outra, de uma escola para outra, quando
não, de um município ao outro. Refiro-me especificamente ao ser
educador nos dias atuais. São acúmulos de vínculos e de tudo que
nos enche e nos deixa sem tempo nem para pensar e praticar a tão
sonhada liberdade. Estamos, cada dia mais, caminhando para o
pragmatismo do que para a práxis transformadora. Se nós que deve-
mos ser o exemplo para aqueles que estamos lhe dando, imagina
esses alunos. O exercício do pensar está cada vez mais em extinção.
Ah, Freire, vivemos a era dos professores cansados. E dos huma-
nos que deixam o “trabalho do pensamento” para o meio digital.
Tudo que se quer lembrar, fica nas nuvens, pesquisa-se no Google.
Assiste-se no Youtube.

E não acaba nisso, o cansaço não é apenas o físico, não. O pior


deles vem acompanhado do demasiado descaso do aluno por parte
de seu aprendizado. Deste educando que tanto nos preocupamos
com sua vida para além-sala de aula. Muitos não vislumbram nada
por meio da educação ao contrário do que aconteceu comigo há
alguns anos quando eu estudava o ensino básico. Sei que a década
da qual eu cresci e pude cursar o período escolar, a década de 1990,
foi frutífera e carregada das benesses das lutas envolvidas no período
anterior. No entanto, atualmente, em 2023, os alunos objetivam mais
a vida nas mídias e enxergam as possibilidades intermediadas pela

SUMÁRIO 195
cultura digital. Ela compete com o nosso papel em sala. O universo
digital tem ditado todas as regras do sistema. Tudo de maneira difusa
e desorganizada. Cada um faz o que quer, compartilha o que deseja,
sem ter um olhar cuidadoso e cauteloso sob seus dedos.

Não sei até quando as telas vão tomar o protagonismo de


crianças e jovens em relação à escola. E o que parece é que esse
fenômeno está só começando. Há até o interesse dos educadores-
-pesquisadores por metodologias que deem conta de atravessar
o aluno com o olhar crítico e reflexivo tão apregoado por você, e
sempre desafiador para que os alunos não apenas sejam receptores,
mas atores do conhecimento de que passa por suas vidas. Mas pou-
cos resultados ainda estamos vendo no sentido do desenvolvimento
do conceito e da prática da autonomia entre eles. Muito menos uma
prática de reexistência e de liberdade que assegure de fato a cons-
trução de uma transformação social.

Podemos considerar que sou uma jovem professora, com


sete anos vivendo a Educação Básica deste país. Sete anos viven-
ciando contradições nesse meio. De São Miguel do Guamá -PA,
Maracanã-PA a Belém-PA, nas sedes dessas cidades e até nas
estradas desse Estado, vemos um fazer educativo que não consegue
ultrapassar as velhas estruturas hierárquicas e suas arbitrariedades
sobre o ensino-aprendizagem. Ano após ano ainda vivenciamos a
mesma organização. Ouso afirmar que estamos vivendo um perí-
odo mais centralizador dessas forças hierárquicas, especialmente
na escola pública. As secretarias de educação têm tomado para si
todas as decisões que dizem respeito aos movimentos escolares,
sutilmente, desde os eventos escolares, as decisões pedagógicas,
e até, do que competiria apenas ao quadro da comunidade esco-
lar, como por exemplo, a organização de Conselho de Classe, de
Plantões Pedagógicos. Tudo, as secretarias querem dizer quando e
como fazer e a comunidade escolar, só deve seguir fazendo. Apesar
disso, temos leis que apresentam letras evidentes sobre a gestão
democrática, a inclusão de todos os tipos de pessoas no interior da

SUMÁRIO 196
escola, no entanto aqui vemos o quanto a teoria e a prática traçam
caminhos diversos e contrários.

Freire, não estou aqui apenas para lamentações, até porque


sabemos que a vida humana parece apresentar esses polos opostos,
configurando o bem e o mal, o claro e o escuro, o fazer e o dizer, a
teoria e a prática. É complexo. E como você belamente discutiu em
Pedagogia do Oprimido, nós somos seres em construção, incomple-
tos, num eterno estar sendo. Dialogando sobre essa essência com
os filósofos gregos, como Heráclito, quando pôs em evidência que
aquilo que permanece é a mudança, esta característica bem ilustrada
pela icônica frase de que ninguém é o mesmo depois de se banhar no
rio, nem mesmo este rio. Tudo está em constante mutação. Estamos
sempre em movimento. Por esse motivo é que o entendimento do
que devemos fazer para alcançar a tão necessária e possível liberta-
ção é esse movimentar-se, seja individual e/ou coletivamente.

Mas há questões que eu adoraria ter a oportunidade de sen-


tar ao se lado e lhe questionar: será que é somente pela problema-
tização sobre as nossas atitudes, sobre nossas visões de mundo e
sobre aquilo que estamos fazendo na escola que vamos de fato con-
seguir mudanças significativas em nossas vidas, ou especialmente
dos oprimidos e marginalizados? Ou há outro caminho possível além
do apenas Esperançar?

Digo apenas, porque esta palavra, apesar de carregar uma


força de dizer, ela continua no âmbito da teoria, da ideologia ou
mesmo da palavra, e não da prática em si. Então, quando vamos
conseguir superar essa dimensão para construir novas sociabilida-
des? Quando nossa maior ênfase será na prática da transformação
e não nas teorias sobre ela? Como vamos reexistido perante tanta
violência? Outra grande questão é como cultivar o amor à luta pela
libertação da humanidade diante do contexto de hiperindividualiza-
ção e de egocentrismo?

SUMÁRIO 197
A minha grande preocupação, Freire, é se realmente conse-
guiremos superar as nossas necessidades individuais de sobrevivên-
cia, de existência e de reexistência, através da profissão de educador,
com todos os desafios que carregamos nas costas na contempora-
neidade, da falta de condições de trabalho, da precária remuneração
e da desmotivação dos alunos pelos estudos, e assim construir uma
possível prática de liberdade. Esta carta, mais do que resolver essa
questão, é querer abrir um diálogo com você que tanto dedicou seu
tempo, pensamento e escritos vislumbrando a tão sonhada liber-
tação da humanidade, em especial dos grupos marginalizados. A
questão que quero finalizar este diálogo é então: como reexistir na
profissão em busca da libertação?

Belém, 07 de setembro de 2023.

Lana

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2004.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

SUMÁRIO 198
Marilza Pereira da Silva

A SOMBRA DAS
MINHAS MEMÓRIAS
Estimado professor Paulo Freire!

Sou pedagoga e estudante do curso de pós-graduação lato


sensu em educação do campo, ambos pela Universidade do Estado
da Bahia, Campus XVI. Ao pensar essa carta, me perguntava de que
maneira a importância do ato de ler (Freire, 2003) poderá proporcio-
nar a aproximação entre o meu ato de ler com o mundo da minha
pretérita infância. Portanto, é imprescindível dialogar sobre as inten-
ções, com o senhor, a respeito das minhas experiências de leitura
do mundo, antes mesmo da decodificação da palavra escrita. Sou
mulher nascida de uma mistura, que considero de grande boniteza,
carrego em meus traços a força e a resistência dos caboclos e cabo-
clas indígenas e da ancestralidade negra. Filha de pais agricultores,
fui criada entre o velame de bode, o caroá, unha de gato e a macam-
bira, sou da moradora da cidade de Irecê, Chapada Setentrional,
Estado da Bahia. Meu nome de batismo é Marilza, mas identifico-me
como Índia Caatingueira.

A vida dura, o estigma da seca, a falta de alimentos suficien-


tes, fazem parte da minha história, e de tantas outras pessoas como
o senhor bem sabe. Tivemos fases boas e ruins, condições que supe-
ramos graças a resiliência dos meus pais, que também aprenderam
da dura vida sertaneja em tempos difíceis, como minha mãe, que na
sua adolescência sobreviveu as grandes secas comendo cuscuz de
mucunã, alimento que podia alimentar ou matar a família, ela sobre-
viveu mais forte e com a sabedoria de multiplicar o pão para a prole
quando éramos mais bocas que comida.

Herdei do meu pai a teimosia e de minha mãe a esperança,


assim nas lutas que eles construíram fomos agraciados com um
pedaço de terra, elemento sagrado na construção e promoção da
vida, fazendo que nossas condições melhorassem quando a família
foi contemplada com um lote de reforma agrária, no assentamento
Califórnia II, município de Itaguaçu da Bahia, sendo este, meu mais

SUMÁRIO 200
importante espaço informal de educação, no qual vivi muitas experi-
ências interessantes.

No início persistiram algumas dificuldades, roupas, calçados,


comida, visto que o primeiro alimento do dia era café com farinha,
esta última em abundância por consequência da significativa produ-
ção e beneficiamento da mandioca, onde se fazia a farinha e a extra-
ção da tapioca para fazer o beiju que por um período era alimento
mais qualificado. Também a criação de pequenos animais ajudou na
condição nutricional.

Tínhamos tarefas definidas nos trabalhos da roça, de acordo


com nossas idades e força, na desmancha da mandioca, por exem-
plo, a função da molecada era abastecer as vasilhas com a massa da
mandioca para “tirar a tapioca” antes que essa fosse para a prensa,
atividade prévia à torrefação. Após cumprir essa tarefa, brincávamos
de esconde-esconde dentro dos fornos à lenha, antes de ser aceso
para torrar a farinha, também brincávamos de repetir o trabalho dos
adultos de igual modo, raspando, ralando a mandioca para tirar a
massa. Outros coletavam gravetos para acender o forno e ainda
tinha aquelas que cozinhavam para todos, tomamos consciência
no ato de brincar, da importância da coletividade vivenciada nessas
ações, bem como com os adjuntos que eram comuns entre vizinhos
para o trato com a terra ou a construção de moradias.

A casa de farinha era a melhor estrutura física da área do


assentamento, uma casa grande de tijolinho, com amplo alpendre que
em dia de beneficiamento as mulheres utilizavam para a raspagem da
mandioca e em seguida se instalavam na mesma sombra para tirar
tapioca. Entre fornos, bulinetes, prensas e repreensão dos adultos
corríamos brincando de bila, segurando pedaços de beijus nas mãos.

A cada noite, acendia-se uma fogueira em frente à casa


de um vizinho diferente, para contar as resenhas do dia, ninguém
escapava das pilhérias. O mais gostoso eram as noites de lua cheia,

SUMÁRIO 201
aí podíamos cabriolar à vontade e isso não era repreendido porque
estávamos debaixo do olhar atento dos pais.

No assentamento tive minhas mais importantes leituras de


mundo, um mundo que nos enchia de saúde e bem-estar a partir
do contato com a natureza, as brincadeiras, sobretudo as paneladas
(piquenique), que aprendíamos a cozinhar enquanto brincávamos,
misturávamos as práticas de vida com as viagens da infância.

Essa viagem de minha vida me traz como referência seu livro,


à Sombra desta Mangueira (Freire, 2015), quando o senhor traz a
vivência no seu quintal nos fazendo entender que antes de ser brasi-
leiro é um cidadão do Recife, do bairro tal, de tal casa com tal quintal.
O quintal para mim também é aspecto importante na construção de
minha identidade, das brincadeiras nas sombras dos oitões da casa
ou da caixa d´água, nas sombras das umburanas, dos umbuzeiros e
até mesmo das cercas de madeira que dividia o quintal da roça ou
do chiqueiro das cabras; do banho de chafariz escondido porque a
água por ser escassa, não era brinquedo. Memórias carregadas de
sentidos e sentimentos, como expressa no texto, “A terra que a gente
ama, de que a gente sente falta e a que se refere, tem sempre um
quintal, uma rua, uma esquina, um cheiro de chão, um frio que corta,
um calor que sufoca, um valor por que se luta...” (Freire, 2015, p. 33).

Assim, nas lembranças da minha infância sinto os cheiros de


mato, na trilha que ligava nosso lote aos demais cortando a caatinga,
para ir à escola, ali a mente me transportava para outros tantos mun-
dos, conversando com os colegas ou sozinha eu criava situações
problemas e ia buscando solucionar.

A nossa escola era um prédio minúsculo que ficava mais ou


menos dois quilômetros da nossa casa, íamos para ela por dentro da
caatinga a trilha encurtava a distância, a escola ficava na chamada
Sede, era considerada o centro do assentamento, onde aconteciam os
eventos comunitários, missas, batizados, casamentos, reuniões etc.

SUMÁRIO 202
Meu primeiro acesso às letras não foi na escola, ao chegar na
classe do “ABC”, estranhei, visto que já cheguei alfabetizada e a pro-
fessora achou melhor me promover para a primeira série. Eu estava
avançada na aprendizagem, mas traumatizada com a metodologia
utilizada na minha alfabetização.

Meu irmão mais velho, que estudou até a quarta série ganhou
a missão imperiosa de alfabetizar, eu e minha irmã. Por sermos as
mais novas, não tínhamos recursos para a farda, então tínhamos que
esperar para herdar dos irmãos mais velhos.

Ele um ditador, com a cartilha em mãos, tínhamos que soletrar


e dizer corretamente as palavras, sem nunca ter conhecido o alfabeto
e assim entender as sílabas e as frases. Na hora da lição chorávamos,
porque não tínhamos como decodificar aquelas gravuras, sabíamos
o quão doloroso seria errar e assim a cada erro, apanhávamos com
cabos de vassoura ou enxada, com a bainha de facão, um galho fino
da planta e as marcas avermelhadas corriam pelo corpo entre letras,
lágrimas, xingamentos. Aprendemos rápido, porque a sensação era
de que, não escaparíamos à próxima lição. Acredito que meu irmão
recebeu o que o senhor chama de “educação bancária” sugerindo,
a descontextualização, uma dicotomia homens-mundo inexistente,
sozinhos, solitários. Homens espectadores e não recriadores do
mundo (Freire, 2013).

A educação que recebi, violenta não só simbólica, mas fisica-


mente a meu ver era um tipo de adestramento, domesticação, mas
apesar das surras, o espírito de rebeldia, impróprio para as mulheres
já me acompanhava, este de algum modo, me protegeu de mim e
dos meus entes queridos.

Me descobri deste modo inteligente, primeiro pela leitura do


mundo e bloqueada em seguida pela leitura da palavra, que nem
sequer se referia ao meu mundo. Na escola não foi diferente, a tabu-
ada, era um terror que tirava o sono, a vassoura, o chicote e enxada
foram substituídas pela palmatória ou por coques (cascudos com as

SUMÁRIO 203
mãos em punho) o que em mim causava frequentes dores de cabeça.
A professora mostrava seu poder de forma autoritária e violenta,
buscando nos silenciar e domesticar, como se fôssemos animais em
adestramento, sem liberdade de pensar, sem o direito a expressar,
sem o respeito ao sujeito, me fazendo recordar o que o senhor diz no
livro Pedagogia da autonomia: “[...] a autoridade docente mandonista,
rígida, não conta com nenhuma criatividade do educando. Não parte
de sua forma de ser, esperar, sequer, que o educando revele o gosto
de aventurar-se” (Freire, 1996, p. 104).

Nessa época, morávamos em Morros do Higino, no município


de Jussara na Bahia, nos obrigando a mudar para esse povoado para
continuar os estudos, fomos morar com a minha bisavó materna e
minha avó paterna, duas senhoras distintas e com a doçura das avós.

Morar com as avós não era ruim, tinha uma outra energia, outro
formato e funções, a minha, por exemplo, era de fazer as compras, pois
tinha excelente memória e não esquecia nenhum item da compra, minha
avó confiava em mim, pela primeira vez me senti, útil, inteligente e feliz!
Era outra forma de ler e entender o mundo, seus símbolos e significados.

Sair do assentamento para povoado, foi difícil, mas, adaptá-


vel, tínhamos as mesmas amizades e compartilhávamos de muitas
coisas comuns. Difícil mesmo foi sair de lá para a cidade, abandonar
a terra tão sonhada e conquistada com tanta luta para tentar a vida
em terras estranhas.

Protestei, mas ouvi meu pai me dizer que eu não me gover-


nava, e assim, passei por muitos lugares que não eram meu lugar,
nunca havia superado a relação de tortura vivenciada com meu
irmão. Mais uma vez rompi laços, porém desta vez para seguir meu
caminho, tentar voltar de algum modo às minhas origens e buscar
resgatar um pouco do que tinha na minha infância nas sombras dos
oitões, cercas, umburanas e umbuzeiros, este último adoçando a
minha alma destroçada e ferida pela crueldade de um mundo que
não me representava como ser humano.

SUMÁRIO 204
Na minha busca solitária de não aceitar ser capacho dos que
não sabiam me amar, perdi a esperança, mas me reconectei com ela,
assim me reporto a Pedagogia da Autonomia, quando o senhor sabia-
mente diz que: [...] “É preciso ficar claro que a desesperança não é
maneira de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da espe-
rança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido
ou não pela esperança” (Freire, 1996, p. 29). Com esperança me refiz,
sofrida, endurecida pela vida, mas, “esperançada” das coisas boas, da
minha caminhada de vida pelas trilhas das Caatingas semiáridas.

Freire, sei que faríamos um lindo diálogo sobre tudo isso. Te


agradeço por transformar e contribuir com minha vida. E, fique tran-
quilo, suas ideias jamais morrerão, porque as ideias se eternizam em
outras pessoas mantendo sua história vívida, inspiradora e pulsante.
Sigo inclusive atuando na educação, inspirada no seu “esperançar”,
Como educadora, os diálogos com seus livros e a sua história de
vida, remete à minha prática hoje. Gratidão!!

Até um dia, amigo querido!

Índia Caatingueira

Irecê – BA, setembro de 2023

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

SUMÁRIO 205
Terezinha Oliveira Santos

DO DIA EM QUE UMA


TURMA DO 6º ANO
SILENCIOU UM LIVRO
DIDÁTICO
Querido professor Paulo!

Meu ato de escrever esta carta é guiado por suas palavras, nas
páginas iniciais do livro, A importância do ato de ler: três artigos que
se completam, gosto muito daquela sua imersão poética-filosófica
ao conceituar a compreensão crítica da leitura como um processo no
qual a palavra escrita, a linguagem escrita possui um tempo que lhe
é anterior e um tempo que se estende “(...)na inteligência do mundo.
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior
leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.
Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (Freire, 1989, p.
9). Na sala de aula de Língua Portuguesa, em especial, a linguagem
se materializa nos gêneros do discurso, orais e escritos. Autores, a
exemplo de Marcuschi (2010), nos falam de um continuum entre
fala e escrita, no entanto, o mito da supremacia da escrita sobre a
oralidade persiste e, nessa ideologia, se perde aquilo que você tanto
apreciava , educador querido: a escuta , o prestar atenção ao que a
pessoa está dizendo para, a partir dali, em comunhão, se pensar em
formas de transformar a realidade comum no texto a ser lido.

Em nossos discursos pedagógicos aparecem termos, tais


como: “interações”, “dialogicidade”, “de(s)colonialidade”, a exemplo,
mas sabemos que, na prática , a rotina de muitas salas de aula, em
especial, daquelas destinadas às populações empobrecidas - em
seus entrecruzamentos de raça, gênero, território, faixa geracional,
etc.,- ainda é marcada por ranços coloniais, entre eles , o silencia-
mento das pessoas discentes e a insistência de uma “educação ban-
cária” como modus operandi das relações de poder verticalizadas,
nas quais - a figura docente demarca o seu discutível espaço hege-
mônico. Talvez, uma escola assim seja aquela marcada pela evasão,
já que é um lugar do não-sentido. É a escola que nos faz lembrar de
personagens transgressoras como a Totonha, dos Contos Negreiros,
de Marcelino Freire (2005) ou da Belonísia, de Itamar Vieira (2019),
em Torto Arado que não sentia atração por um espaço que nada

SUMÁRIO 207
lhe dizia, melhor seria continuar suas andanças pela roça, quintal e
cozinha lugares da sua vivência.

Em suma, aprendi muito com seus ensinamentos, profes-


sor. Mas, não houve lição maior do que o fato que passarei agora a
contar-lhe. Em 2008, eu lecionava Língua Portuguesa numa escola
pública municipal do subúrbio ferroviário de Salvador, precisamente
no bairro de Paripe. Um dia, estava em sala com a turma do 6º ano,
turno vespertino, após a chamada nominal, Miguel, um estudante
que sempre chegava após o horário, adentrou a sala com sua sim-
patia adolescente, pele avermelhada queimada pelo sol e um sorriso
que resolvia qualquer problema, principalmente a pontualidade.

Naquela aula, teríamos a leitura de um texto cuja temática


estava relacionada às baleias e à preservação da natureza. Enquanto
a turma se organizava para encontrar a página no livro didático,
Miguel passou a contar que, na noite anterior, ele e outros pescado-
res haviam capturado um pinguim na rede. Foi a maior onda!!! A sala
queria saber tudo em relação a essa ave, seus colegas só conheciam
a espécie através de imagens nos livros, revistas, Internet, ou naquele
filme “Happy Feet” em que eles são personagens. Eu, também!

Então, Miguel se levantou e passou a narrar, com mais


ênfase, que o pinguim, capturado por eles na rede de pesca, estava
cheio de óleo; contou que ele tinha uma espécie de penugem no
revestimento de seu corpo. Contou que fazia muito frio em alto mar
e, para resolver isso, é rotina para os homens do barco tomarem uns
goles de cachaça. Ele também era um “homem”. Pela manhã, ao
regressarem à terra, encaminharam o animal marinho aos órgãos
ambientais competentes.

A maioria dos alunos tinha alguma experiência com a pesca.


A região é litorânea e aquela é uma das atividades de sobrevivência.
De repente, um dos ouvintes começou a ensinar como é que se
pesca a Arraia, explicando que ela possui no seu corpo um ferrão que

SUMÁRIO 208
pode ferir gravemente a pessoa. Um outro narrador interveio e con-
tou sobre o baiacu; um peixe que infla quando é ameaçado e possui
um veneno. E eu, aprendiz, fiz perguntas como ouvinte interessada.

Que momento, professor! Que momento! Em qual livro eu


encontraria um ensinamento maior? O mar adentrou a nossa sala,
com seus mistérios, seus causos, nas vozes daquelas meninas e
meninos em suas experiências com aquele acidente geográfico,
que é a enseada dos Tainheiros, a parte “periférica” e “esquecida”
da Baía de Todos os Santos. Lembro-me de que olhei para a turma,
Miguel ainda conversando, gesticulando, levando os colegas a rirem
das suas histórias. Lembro-me de que guardei o livro. E parecia que,
ao longe, a voz de Dorival Caymmi nos dizia: O mar quando quebra
na praia …é bonito ...é bonito, E eu poderia afirmar, querido professor,
que quando ele “quebra” numa sala de aula , beleza maior não há!

Com os olhos marejados e transbordando de gratidão,

Despeço-me!

Terezinha Oliveira Santos

REFERÊNCIAS
FREIRE, M. Totonha. In: Contos Negreiros, 2005. Disponível em: https://edview.php?id=
2510534. Acesso em: 30 set. 2023.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Cortez,1989.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10.ed. São


Paulo: Cortez, 2010.

VIEIRA JUNIOR, I. Torto arado. 1a Reimpr. São Paulo: Todavia, 2019.

SUMÁRIO 209
Rosimaria Barbosa de Oliveira Moura

AO GRANDE EDUCADOR,
TRANSMISSOR DE
AMOR E ESPERANÇA
Estimado e saudoso Paulo Freire,

Venho através desta, escrever-lhe brevemente as minhas


angústias, indagações, sonhos e algumas reflexões sobre a
educação brasileira.

Apesar de não me conhecer, ouso dizer que lhe conheço


bem, por meio de suas majestosas e inspiradoras obras reflexivas,
porque foi contigo que aprendi a esperançar, não no sentido de
esperar, mas no sentido de ter um vislumbre positivo para o futuro.
Contigo aprimorei minha prática educadora por meio de uma educa-
ção problematizadora e com certeza, tornei-me uma educadora mais
atenta e consciente da realidade que me cerca.

Deve estar se perguntando como anda o nosso Brasil. Pois


bem, resta-me dar-lhe notícias. Nesses vinte e seis anos que nos dei-
xaste, muitas mudanças aconteceram em nossa sociedade e algu-
mas merecem ser destacadas ligeiramente por nós educadores (as).

No campo tecnológico o aceleramento das informações em


tempo real, a ampliação das redes sociais acentuadas com a moder-
nização e popularização dos aparelhos celulares, alargou em propor-
ções gigantescas o processo de globalização.

Nas últimas décadas as relações humanas foram sendo


paulatinamente alteradas e modificadas. Atrelado as essas mudan-
ças surgiram novas dinâmicas de educação, bem diferentes em
relação a épocas anteriores, que pressupõe novos modelos e estra-
tégias educacionais.

Em se tratando de transformações, vale ressaltar que


essas foram aceleradas pelo advento da pandemia do COVID-19,
nos últimos três anos, que engendrou alterações significativas na
forma de ministrar aulas.

Nesse interim, a nossa educação teve que se adaptar a novos


moldes, em uma perspectiva remota (aulas assíncronas e síncronas).

SUMÁRIO 211
Nós educadores, resistimos, nos reinventamos, muitos de nós tive-
mos que aprender às pressas, trabalhar com recursos tecnológicos,
dar aulas online, muitas vezes sem nenhum treinamento, criar canais
no YouTube, blogs e grupos em redes sociais, fazer busca ativa dos
educandos via celular.

Há casos de muitos educadores(as) que deixaram a sequ-


ência de atividade remota nas portas das casas de seus educandos,
tudo isso para tentar diminuir o dano no processo ensino-aprendi-
zagem em meio ao medo real da morte que nos assolava. Perdemos
bastante pessoas, cerca de 700 mil brasileiros, conforme dados do
Ministério da Saúde.

Dessa famigerada experiência, a educação colheu danos


irreparáveis. Para termos noção dos impactos da pandemia na edu-
cação do Brasil, destacamos a taxa de abandono no ensino médio na
rede pública que saltou de 2,3%, em 2020, para 5% em 2021; o déficit
educacional estimado nas aulas remotas em relação às presenciais
destaca um aprendizado de apenas 17% em matemática e 38% em
língua portuguesa, como aponta os dados do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).

Recentemente a educação em nosso país se deparou com


outro desafio, desta vez os eventos de ataques às nossas escolas e a
onda de terrorismo que as impregnou, em meio às ameaças reais e
falsas notícias que levaram pânico generalizado à comunidade esco-
lar. Nesse clima de insegurança, o sentimento de que a escola é um
lugar seguro, onde podemos deixar nossos filhos despreocupados
não se encaixa mais nessa descrição.

Se com todas essas mudanças, não refletirmos o nosso papel


de educador e ressignificar nosso lócus de vivências e aprendiza-
gens sucumbiremos ao esvaziamento da nossa profissão.

Dessa forma, é preciso planejar, replanejar e selecionar bem o


que se ensina, em uma perspectiva dialógica como que nos falastes.

SUMÁRIO 212
Afinal, a necessidade das crianças, adolescentes e jovens de hoje, vai
além da mera transmissão de conteúdo. Em dias nebulosos, como os
de hoje, é preciso suscitar a pedagogia do amor, com nova base epis-
temológica voltada para o diálogo, liberdade com troca de saberes
diversos sob à luz de uma educação dialógica e problematizadora.
Assim como disseste em 1978:
O educador deve ser um inventor e um reinventor cons-
tante desses meios e desses caminhos com os quais
facilite mais e mais a problematização do objeto a ser
desvelado e finalmente apreendido pelos educandos.
Sua tarefa não é a de servir-se desses meios e desses
caminhos para desnudar, ele mesmo, o objeto e depois
entregá-lo, paternalisticamente, aos educandos, a quem
negasse o esforço da busca, indispensável ao ato de
conhecer. Na verdade, nas relações entre o educador e
os educandos, mediatizados pelo objeto a ser desvelado,
o importante é o exercício da atitude crítica em face do
objeto e não o discurso do educador em torno do objeto
(Freire, 1978, p. 17).

Oh! meu caro Freire, depois de avançarmos tanto com a Lei


de diretrizes e bases da Educação Nacional, Nº 9394/1996 (LDB), e
leis como nº 10639/2003, nº 11645/2008 que instituíram a obrigato-
riedade do ensino da cultura africana e afro-brasileira e ensino de
história e cultura indígena, respectivamente, além da lei de cotas nº
12.711/2012 para o ensino superior.

Em 2019 retrocedemos em termos de políticas educacionais,


com a proposição de um documento de caráter normativo de Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Novo Ensino Médio (NEM),
arrisco em dizer que nos distanciamos de uma educação plural e
cada vez mais perdemos a autonomia.

A pressão por um ensino homogêneo, unificado e livresco nos


traz à tona as suas críticas de uma educação bancária (Freire, 2005) e nos
permite traçar novos rumos em busca do inédito viável, pois, agora mais
do que nunca, suas ideias fortalecem a nossa tomada de consciência.

SUMÁRIO 213
Não podemos nos calar diante de tantos retrocessos, é pre-
ciso que levantemos a bandeira de uma educação problematizadora,
que compreendemos nossos jovens no mundo pós-pandêmico.

A consciência desses problemas que a escola enfrenta atu-


almente, nos fazem romper com a visão ingênua sobre o mundo à
nossa volta, e nos impulsionam para a luta de dias melhores.

E dentre estas lutas está a valorização pecúnia dos profes-


sores, que apesar de muitas conquistas, a exemplo da lei do Piso
nº 11.738/2008 que regulamenta o piso nacional dos profissionais
do magistério da Educação básica, necessita de uma reforma para
garantir o cumprimento efetivo da mesma, visto que anualmente
muitos prefeitos e governadores dos Estados brasileiros se recusam
a fazer o reajuste salarial.

E por falar em políticos, o cenário nacional passou por algu-


mas mudanças e permanências nessa esfera. Nas últimas duas
décadas, o partido dos trabalhadores esteve na presidência do
Brasil durante quatorze anos, os quais foram interrompidos pelo
impeachment de Dilma Rousseff. Esse acontecimento da história
recente entendida por muitos historiadores como golpe de 2016, a
exemplo de Hebe Mattos, Tânia Bessone, Maria Beatriz Mamigonian,
Luiz Felipe Alencastro, Sidney Chalhoud dentre outros, denuncia o
crescimento dos discursos de ódio e o risco de um atentado pela
democracia. Essa fragilidade política acentuada, provavelmente pela
alienação de massa, por meio de discursos ideológicos pela defesa
da pátria e família levou a eleição de estadista neoliberal, intitulado
de direita política.

A liberdade de imprensa no Brasil se deteriorou nos últi-


mos anos, e de acordo com os índices da classificação Mundial da
Liberdade de Impressa ficou na 107ª posição em 2020 durante o
governo do último presidente brasileiro. O que nos leva a compreender
essa dinâmica perigosa do silenciamento das vozes do povo brasileiro.

SUMÁRIO 214
No entanto, meu nobre educador, como diz o dito popular
não há mal que dure para sempre, o gigante adormecido acordou no
segundo turno e nos reacendeu a esperança de dias melhores. Por
hora, ainda somos um regime democrático de direito.

Aqui me despeço amado pensador, sonhando com um mundo


mais justo e igualitário, pois acredito na educação. Assim finalizo esta
carta com suas palavras “se a educação sozinha não transforma a
sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Freire (2000, p.31).

Com a boniteza da amorosidade,

Barreiras-Bahia, 04 de junho de 2023.

REFERÊNCIAS
Ataques de Bolsonaro deterioram liberdade de imprensa no país, segundo RSF. In: Abraji.
Disponível em: https://rsf.org/pt-br/ranking-mundial-da-liberdade-de-imprensa-2020-
estamos-entrando-numa-d%C3%A9cada-decisiva-para-o. Acesso em: 02 jun. 2023.

BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da


Educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, [1996]. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm . Acesso em: 27 set. 2022.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro


de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2003]. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 27 set. 2022.

BRASIL. Lei 11645 de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de


1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, DF:
Presidência da República, [2008]. Disponível em: https www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 27 set. 2022.

SUMÁRIO 215
BRASIL. Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades
federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras
providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2012]. Disponível em: https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 27 set. 2022.

BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/


SEB, 2017. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: https://
basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 27 set. 2022.

BRASIL. Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n º 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494,
de 20 de junho 2007[...] e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas
de Ensino Médio em Tempo Integral. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm. Acesso em 03 jun. 2023.

BRASIL. Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/


assuntos/noticias/2023/marco/brasil-chega-a-marca-de-700-mil-mortes-por-covid-19.
Acesso em: 03 jun. 2023.

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio


Teixeira (Inep).Disponível em: www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/institucional/
estatisticas-revelam-os-impactos-da-pandemia-na-educacao. Acesso em: 02 jun. 2023.

BESSONE, T.; MAMIGONIAN, B.G.; MATTOS, H. (Orgs.). Historiadores pela Democracia: O


golpe de 2016: a força do passado. São Paulo: Editora Alameda. 2016.

FREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registro de uma experiência em processo. Rio de


Janeiro, Paz e Terra, 4 ed. 1978.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 49.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, P. Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São


Paulo: Unesp, 2000.

SUMÁRIO 216
Saoara Barbosa Costa Sotero

ESCREVIVÊNCIAS
DE UMA PROFESSORA-
PESQUISADORA
Admirado Paulo Freire

Em dois mil e dezenove, eu iniciei o mestrado em Ensino de


História na busca de pensar sobre a minha prática docente através
de rupturas e (re)conexões com uma vivência acadêmica que estava
secundarizada por uma série de crenças limitantes sobre mim, o
meu potencial intelectual e de ser incapaz de produzir ciência em
uma academia branca e eurocentrada. Este período foi muito trans-
formador para mim, me descobri pesquisadora e fiz uma disserta-
ção escrevivente enviando cartas às pessoas que de alguma forma
fizeram e fazem parte da minha caminhada docente e da minha
passagem pelo mestrado.

Na minha dissertação intitulada, “Escrevivências: ensino de


História e narrativas de nós na Educação de Jovens e Adultos”, defen-
dida em 2022, na Universidade do Estado da Bahia, Paulo Freire,
escrevivi uma série de passagens sobre a minha vida, emaranhada
com a minha formação pessoal e profissional, trazendo conflitos,
aprendizagens, frustrações, transformações e amadurecimentos
que hoje me fazem compreender que para caminhar na docência os
conflitos, aprendizagens, frustrações e transformações não podem
deixar de existir, porque como você mesmo trouxe em Pedagogia da
Autonomia a educação é uma eterna ação-reflexão-ação, assim sigo
mergulhada em todos esses afetos e tento usá-los para me impulsio-
nar a fazer o melhor que posso na minha prática docente.

Paulo Freire, quero te contar algumas reflexões que tive com


a minha pesquisa de mestrado. A primeira delas é a necessidade de
pensar a educação como prática de liberdade, como meio de eman-
cipação do sujeito a partir da compreensão da realidade em que vive.
Você trouxe em Pedagogia do Oprimido, publicado em 1983, que tudo
o que existe, assim como a realidade opressora em que vivemos, é
fruto da ação humana e as transformações só podem ser operadas
também pelas pessoas, no momento em que a compreendemos.

SUMÁRIO 218
Trabalhando com a Educação de Jovens e Adultos no SESI
Bahia tenho percebido como é importante para as pessoas que fazem
parte da turma, o movimento de ir a escola, de ter seus saberes valori-
zados subvertendo o pensamento equivocado de que na EJA estão as
pessoas incapazes de aprender. Não estar dentro da idade estabele-
cida por lei, como a ideal para cursar a educação básica é o reflexo da
realidade dura daquelas pessoas que Miguel Arroyo chama de “passa-
geiros da noite” em seu livro Passageiros da Noite: do trabalho para a
EJA: itinerários pelo direito a uma vida justa, que foi publicado em 2017.

Miguel Arroyo propõe que pensemos em quem são estas pes-


soas que chegam a EJA e principalmente seus itinerários. Elas come-
çam sendo passageiras do amanhecer ao saírem muito cedo para o
trabalho, geralmente ocupando postos de trabalho penosos e consi-
derados inferiores e após uma longa e cansativa jornada de trabalho,
se tornam passageiros da noite, saindo dos trabalhos, formando lon-
gas filas nos pontos de ônibus para chegar à escola e tentar finalizar o
ciclo formal de formação incompleto em sua infância e adolescência.

Nesse livro, Paulo Freire, o autor questiona se nós, profes-


soras, sabemos dos percursos de vida das pessoas que estão em
nossas salas de aula, de suas esperanças, seus medos, frustrações,
traumas, se olhamos para estas pessoas e percebemos o recorte
de raça, gênero e classe que as atravessam e o quanto isso não é
aleatório dentro da sociedade injusta que vivemos. Se percebemos o
quanto a EJA acaba sendo a última oportunidade dessas pessoas de
finalizar o ciclo e acabar com a frustração do fracasso perante uma
sociedade tão marcada pela formalidade das instituições, que des-
considera outros saberes e conhecimentos forjados nas passagens
do amanhecer ao anoitecer.

Nem sempre tive isso em mim, e com trabalho na Educação


de Jovens e Adultos no SESI Bahia passei a conhecer por causa da
Metodologia do Reconhecimento de Saberes. Todas as pessoas que
se matriculam fazem um diagnóstico chamado Reconhecimento de

SUMÁRIO 219
Saberes - RDS - que tem o objetivo de construir um plano de estudos
personalizado para cada estudante, partindo de suas experiências
formais, informais e não formais, valorizando e certificando as com-
petências que desenvolveram em suas práticas cotidianas.

Paulo Freire, nesta metodologia, as pessoas constroem


um portfólio pessoal selecionando e contando suas histórias, suas
aprendizagens no mundo do trabalho, nas convivências com os
diversos grupos do qual fazem parte ao longo dos seus dias. Ter uma
metodologia que permita que as pessoas escrevam e falem sobre
si é de uma potência incrível! São palavras de pessoas não brancas
que historicamente tem seus direitos negados, e neste momento tem
a possibilidade de falar sobre si como sujeito de sua própria história.

A doutora Conceição Evaristo aborda a potência de pessoas


negras falarem de si mesmas. Dentro da literatura, ela cunhou o con-
ceito de “Escrevivência”. No livro “A Escrevivência e seus subtextos”,
publicado em 2020 ela fala de como a apropriação da palavra escrita
é uma forma de romper com o passado colonial, pois deixamos de
ser objetos de estudos e passamos a ser as intelectuais que pes-
quisam, elaboram, escrevem, contam a histórias. Trouxe isso para
o meu mestrado para pensar como o ensino de História pode ser
transformador quando nos desvencilharmos da história única, como
trouxe Chimamanda Ngozi em O perigo da história única, publicado
em 2019, do olhar colonial sobre as experiências não brancas e pas-
samos a conhecê-la a partir do olhar de quem as vive.

Paulo Freire, eu tenho aproveitado o RDS para me conec-


tar com as pessoas que formam a minha turma para compreender
suas realidades e ter empatia com seus processos, dificuldades, mas
sobretudo para enxergar as potências que chegam escondidas no
cansaço e na fragmentação da intelectualidade dessas pessoas com
as crenças limitantes sobre si.

SUMÁRIO 220
A segunda reflexão que fiz, Paulo Freire, foi partindo da per-
gunta: para que serve o ensino de História na Educação de Jovens e
Adultos? Entendo que o ensino de História na EJA precisa ter a finali-
dade de contribuir para uma educação emancipatória. É através dela
que nos referenciamos no mundo quando compreendemos nossas
origens, tradições, valores, a realidade em que vivemos, como che-
gamos a ela e principalmente como olhar o mundo a partir da diver-
sidade que o habita, pensando a partir de epistemologias não hege-
mônicas e com práticas que visem reduzir as desigualdades e subal-
ternização construídas historicamente e mantidas até os dias atuais.

Essas subalternizações estão presentes formando a estrutura


da sociedade a partir do racismo, do sexismo, da LGBTQIAPN+fobia,
do patriarcado, no preconceito de classe e que geralmente atraves-
sam as pessoas que fazem parte das turma de EJA, assim como
professora de História, penso e tenho buscado praticar um ensino de
História, que possa ampliar as concepções de realidade, para que se
autorreconheçam como sujeitos da história, na história e que fazem
história, atravessados pelas suas subjetividades e que as enxerguem
como potência, pois são elas que nos tornam seres únicos no mundo
e por isso cada pessoa, cada história é tão importante.

Paulo Freire, muito das concepções que tenho atualmente,


foi bebendo da fonte de sua sabedoria e compreendendo o seu olhar
sensível e amoroso sobre a educação e como docente, busco fazer
um ensino de História que nos faça olhar para o nosso passado para
nos referenciar nele, nos empoderar do legado deixado por nossa
ancestralidade, mas aquela da riqueza do ouro e da intelectualidade,
banhada nas águas da sabedoria de Oxum e que só nós, pessoas não
brancas, somos capazes de enxergar. Sabendo de onde viemos, pode-
remos abrir caminhos para chegar aonde queremos, nutrindo essa
herança ancestral de saberes para as próximas gerações continuarem
a promover uma revolução histórica, de nós, sobre nós e para nós.

Com amor e entusiasmo!

Salvador, 03 de setembro de 2023.

SUMÁRIO 221
REFERÊNCIAS
ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ARROYO, M. G. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA. Itinerários pelo direito a


uma vida justa. Petrópolis: Vozes, 2017.

EVARISTO, C. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, C. L., NUNES, I. R.


Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de
Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo:


Paz e Terra, 1996
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 12.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983

SUMÁRIO 222
Lucirleide Rosa de Jesus

DO SONHO
À REALIDADE
Estimado e sempre presente mestre Paulo Freire, saudações
libertadoras!

É com o coração cheio de gratidão que lhe escrevo.

Sou imensamente agradecida pelos conhecimentos que o


senhor deixou através das suas obras, pois, desde o meu primeiro con-
tato com o senhor, que o meu olhar para a realidade se transformou.

Foi em 2002, quando me encontrei com o senhor pela pri-


meira vez, através da sua obra A importância do ato de ler que percebi
que, para ler a palavra, eu precisaria, antes de tudo, ler o meu mundo,
a minha realidade, o meu lugar de vivência, que até então, para mim,
era apenas um espaço geográfico, muito atrasado, o qual eu precisa-
ria estudar muito para sair dali e me aventurar na cidade (eu morava
na zona rural) em busca de uma vida melhor, e de ser ‘alguém na
vida’, como afirmavam os meus familiares. Como eu estava enganada
querido mestre! Pois, ao finalizar a leitura da sua obra acima citada,
compreendi que o meu lugar, o campo, estava cheio de significados
para mim, e era da minha realidade que eu deveria me orgulhar e
lutar para transformá-la.

Em sua obra À Sombra desta mangueira, o senhor, ao des-


crever suas experiências de vida e aprendizagem no quintal de sua
casa, me fez pensar e repensar sobre a minha própria existência
enquanto sujeito pertencente ao meu lugar e minha relação com
o meu mundo. Ao trazer suas lembranças da infância vivenciadas
naquele quintal inspirou - me a compreender o meu lugar de criança
como produtora de conhecimentos no quintal da casa dos meus
avós. Suas reflexões apontaram como eu deveria valorizar o modo
de vida que tive desde a infância, e de como ali comecei a construir
a minha própria identidade. Sou profundamente grata ao senhor por
me proporcionar estas reflexões.

Querido mestre, foi em Pedagogia do Oprimido que entendi


de fato quem eu era enquanto sujeito dessa realidade, suas palavras

SUMÁRIO 224
nessa obra foram fundamentais para minha compreensão de classe
e do quanto a minha posição diante do elitismo mudaria o rumo da
minha história. Aprendi com o senhor que eu devo lutar sempre pela
minha emancipação e de todos os meus pares. Sua obra foi muito
importante para eu compreender a minha condição social e lutar
por melhores condições de vida e para a construção de uma socie-
dade mais crítica, mais igualitária, mais justa e menos opressora, pois
como o senhor nos ensinou,
Quem melhor que os oprimidos se encontrará preparado
para entender o significado terrível de uma sociedade
opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos
da opressão? Quem melhor que eles, para ir compreen-
dendo a necessidade da libertação? Libertação a que não
chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo
conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar
por ela (Freire, 2005, p. 34).

Lamento profundamente por aqueles que ainda não estão


convencidos que só é possível reivindicar e lutar pelo fim da opres-
são e da dominação dos opressores através da união das classes
dominadas. E para isso é necessário que todos os oprimidos estejam
conscientes da sua condição social.

Foi o senhor, em Pedagogia da Indignação, que me mostrou o


caminho para buscar a liberdade e não trocá-la por privilégios em um
sistema corrupto que serve apenas para massagear o ego, o senhor
me ensinou a lutar pelos meus sonhos, o senhor me mostrou que
não vale a pena aliar se ao opressor, iludida pela prerrogativa de que
deixará de ser um oprimido apenas por está a serviço do opressor.

De acordo com Althusser (1970) a escola é um dos principais


aparelhos ideológicos do Estado, por contribuir na reprodução das
relações sociais capitalistas, quando contribui na reiteração da ideo-
logia burguesa, reforçando o poderio da classe dominante opressora.
Fico feliz por não olhar para a escola e vê-la dessa forma, acredito
na escola como um instrumento de transformação social, através do

SUMÁRIO 225
desenvolvimento do pensamento crítico, através da formação integral
do sujeito, através de práticas educativas emancipadoras e libertado-
ras, o que aprendi em Pedagogia Como Prática da Liberdade quando
aponta que a palavra pode deixar de ser o veículo das ideologias que
alienam para tornar-se o instrumento de transformação do homem
e da sociedade. A palavra, nesse sentido, se aprende na escola, e é
este o papel da escola: o de ensinar o educando a ler o mundo para
nele intervir positivamente, no sentido de realizar transformações
para o bem viver de todos.

Querido mestre, aqui no Brasil passamos por tempos difíceis.


Tudo começou em 2019 quando um vírus denominado coronavírus
surgiu na China e se espalhou pelo mundo inteiro, chegando ao
Brasil em 2020 quando foi constatada a primeira contaminação.
Tivemos que enfrentar muitos problemas, pois o vírus assolava sem
piedade. O mais difícil no enfretamento desse terrível coronavírus foi
a postura negacionista do governo brasileiro, minimizando a agres-
sividade do vírus e desqualificando a Ciência e os cientistas, o que
dificultou a chegada da vacina, que é fundamental no combate de
todo e qualquer vírus.

A Educação também viveu tempos sombrios aqui no Brasil.


As Universidades Federais e Estaduais, bem como os Institutos
Federais de Educação foram duramente atacadas pelos governantes
com cortes de verbas e com acusações de que estavam promovendo
“balbúrdias” em seus espaços, através dos professores, que foram
chamados de doutrinadores. O senhor também foi duramente criti-
cado, tanto pelos governantes fascistas como também pelos segui-
dores desses governantes, o ódio foi disseminado através das redes
sociais, professores e professoras foram ofendidos por defender o
seu legado. Mas, foi graças aos seus ensinamentos que nós, educa-
dores, estudantes e trabalhadores não recuamos e seguimos firmes
resistindo na luta pela defesa dos nossos espaços educativos e do
legado educacional que o senhor nos deixou. Ainda estamos lutando

SUMÁRIO 226
contra os resquícios desse período tenebroso que durou cerca de
cinco anos, mas que, graças àqueles que acreditam na Democracia
para garantia dos direitos de todos, vencemos a batalha, no entanto,
estamos em alerta sempre, pois, a nossa jovem Democracia ainda
corre sérios riscos de ataques cruéis.

Estimado mestre não posso deixar de agradecer ao senhor


pela Pedagogia da Autonomia onde o senhor me inspirou a ser uma
verdadeira educadora. E hoje eu sou uma educadora consciente de
que pertenço à classe trabalhadora, a classe dos oprimidos. Sei da
importância da educação para a emancipação dos sujeitos. Tornei-me
alfabetizadora, envolvida pelas suas ideias, sabedora do meu papel
social na transformação da realidade de muitos, e a minha luta é por
uma educação que aproxime os sujeitos da sua realidade social, por
uma educação que respeite todos os saberes, que seja crítica e refle-
xiva, que rejeite toda e qualquer forma de discriminação, que dialoga
com a diversidade, que promova a mudança e que acima de tudo,
propõe esperança, pois é preciso ter esperança de que a transforma-
ção é possível. É preciso ter esperança de que um dia as injustiças, a
desigualdade, a miséria, o analfabetismo, a ignorância, o racismo, as
discriminações possam desaparecer da nossa sociedade.

Aqui me despeço com o coração agradecido por tudo que o


senhor me ensinou e esperançosa de que um dia alcançaremos a tão
sonhada educação libertadora, pela qual o senhor nos inspirou a lutar.

Abraços!

Ibititá (BA), 25 de setembro de 2023

SUMÁRIO 227
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1970.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 42.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 1.ed.


São Paulo: Editora UNESP, 2000.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Paz e terra. 1967.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Paz


e Terra. 1996.

FREIRE, P. A importância do ato de ler. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

FREIRE, P. À sombra desta mangueira. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 2015.

SUMÁRIO 228
Elayne Santana Costa

INCLUSÃO:
UM OLHAR ATENTO A PARTIR
DO DIÁLOGO E DA EDUCAÇÃO
LIBERTADORA
Prezado Paulo Freire,

É com grande alegria e satisfação que lhe escrevo, para des-


crever minha experiência de estágio. Me chamo Elayne Santana Costa,
estudante do 7° semestre do curso de Pedagogia do Departamento
de Ciências humanas e Tecnologia – UNEB, Campus XVI, Irecê. Uma
pedagoga ainda em formação que anseia por uma educação inclu-
siva e libertadora. Durante o período de estágio que aconteceu nos
anos iniciais do ensino fundamental, tive a oportunidade de conhe-
cer um aluno em especial e me lembrei de você, inspirei-me nos seus
ensinamentos para aprender a lidar com meus medos.

Durante o percurso do estágio, debruçada nos seus livros,


ensinamentos e reflexões, compreendi a essência do diálogo e como
a sua presença na sala de aula faz toda a diferença para uma edu-
cação libertadora e problematizadora. Assim surge a dificuldade de
a criança enfrentar os seus medos e como a professora pode con-
tribuir para esse enfrentamento. Os problemas da educação ban-
cária, mesmo sendo colocado por você no século passado, ainda
atormenta a minha geração, muitos professores continuam focados
no conteudismo e esquecem que, para educar, é necessário amor,
esperança e diálogo.

No período de estágio de observação, um educando chamou


a minha atenção. Um menino lindo, com os olhos brilhantes e ino-
centes, ficava pelos cantos, sempre perdido no seu silêncio. Queria
entender onde estava aquele pensamento, aquele silêncio era o
motivo da minha inquietação, e do desassossego do meu coração,
ficava na expectativa de ver e ouvir a sua participação nas aulas.
A professora regente copiava e explicava o assunto e ele no seu
silêncio só copiava no caderno, sem perguntas e questionamentos.
Freire, no seu livro, Pedagogia do oprimido diz que “Desta maneira, a
educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os
depositários e o educador o depositante” (Freire, 1987, p. 58).

SUMÁRIO 230
Nessa perspectiva, entendi que o espaço da sala de aula teria
que ser mais acolhedor, de maneira que ele pudesse ser incluído
para assim garantir uma aprendizagem significativa, não queria ser
apenas uma reprodutora dos assuntos abordados no livro. Queria
inovar a didática e construir conhecimento com a turma. Paulo Freire
ressalta que, “Desta maneira, o educador já não é o que apenas
educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o
educando que, ao ser educado, também educa” (Freire, 1987, p. 68).
O meu principal objetivo era que juntos nós pudesse transformar a
sala de aula num ambiente libertador, e no coletivo construir uma
educação problematizadora contextualizando a realidade.

Em conversa com a professora regente, ela disse-me, ele


sempre foi assim calado, a tia dele falou-me que ele no seu conví-
vio familiar vê diariamente brigas, que os seus pais bebem muito,
muitas vezes é necessário ele se esconder no guarda-roupa. Outra
coisa frequente é sua ausência nas aulas de segunda-feira, segundo
a sua prima e colega de sala, a sua mãe nunca acorda cedo para
organizar as coisas para ele vim para a escola, motivo bebeu muito
no domingo e não acordou. Nos intervalos ele brincava com alguns
colegas, jogava bola, corria e pulava, mas quase não falava, a sua
comunicação era através do olhar e dos gestos.

No período da regência já fui preparada para alcançar o meu


objetivo, desenvolvi várias estratégias as dinâmicas, jogos, brinca-
deiras e atividades eram feitas em grupos de maneira colaborativa
onde todos pudessem participar, dividindo as tarefas e funções,
para incluir e garantir que todos participassem, sempre que podiam
e tinham oportunidade se sentava do seu lado, conversando, per-
guntando se estava a entender os assuntos, numa dinâmica de
grupo perguntei o que ele mais gostava nele, ele respondeu com
sorriso resplandecente, minha voz. Fiquei feliz já era um avanço, pois
quando perguntava algo raramente respondia. A sua voz é calma,
tranquila e transmitia paz.

SUMÁRIO 231
Em um processo dialógico de muita iniciativa e elogios
conseguir sua participação nas atividades, cativei seu interesse e
atenção, os trabalhos em grupo permitiram seu desenvolvimento,
de maneira tímida sempre perguntava se a atividade estava certa,
participando e conversando com os colegas da turma, percebi em
alguns momentos principalmente em trabalhos em grupos ele dando
ideias e sugestões, ele tinha um pouco de dificuldade na leitura e
na escrita então ele perguntava aos colegas se estava correto, os
mesmos ajudava e corrigiam juntos as atividades.

Eu sabia que por detrás daquele olhar, existia uma criança que
precisava apenas se sentir incluído, aquele menino tímido e inseguro
perdido no seu silêncio com olhar de tristeza, trazia consigo conhe-
cimentos que precisava ser explorados, nessa convivência conseguir
manter uma relação dialógica entre ele e a turma e as professoras,
numa troca de saberes, conhecimentos, experiência e vivências cria-
mos juntos uma relação de interação que me possibilitou um olhar
mais ampliado do mundo e da prática pedagógica.

O papel do educador é importante, considerando o processo


de ensino aprendizagem de cada educando. Com o olhar atento e
sensível comecei a prestar mais atenção nos seus gestos, compor-
tamentos e nas suas expressões faciais, a minha intencionalidade
era sistematizada e planejada, meu principal objetivo e intenção era
entender o que ele carregava por trás daquele olhar. Foi um grande
desafio entender e compreender todo o processo, sentia-me desa-
fiada, precisava trazer uma educação libertadora, para despertar
o seu interesse, assim busquei conhecer a sua realidade, dificul-
dades e conhecimentos.

O educador comprometido com a formação dos seus edu-


candos precisa estar atento aos sinais que cada criança apresenta, é
necessário está aberto para diálogos e reflexões, contribuindo para
a sua participação ativa e dando a oportunidade de o educando
atuar como protagonista e incentivá-lo para poder desenvolver a sua

SUMÁRIO 232
autonomia, criar e atuar de maneira significativa, pensando nas suas
habilidades sociais e emocionais. Paulo freire em seu livro Pedagogia
do oprimido aborda questões muito importantes sobre o diálogo e a
educação, e inspirada nessas reflexões e nas palavras amor, diálogo,
esperança e liberdade, que conseguir resolver o problema.

Considerando a experiência adquirida ao longo desse tempo


que atuei, compartilhando histórias e vivências com os meus edu-
candos, aprendi como é importante considerar a história de vida dos
sujeitos, para entender e compreender a sua realidade e como isso
os afeta. A relação dialógica no processo de ensino aprendizagem
é crucial, assim como o amor, é importante que o educador tenha
sempre o olhar atento, para incluir a todos de maneira significativa.

Diante dos argumentos apresentados é necessário que as


instituições de ensino e os professores estejam mais atentos as
questões da inclusão que está diretamente ligada as questões de
exclusão social no ambiente escolar, as escolas com toda a rede de
educação devem promover eventos e palestras para a formação de
cidadãos que valorizem a inclusão, que trabalhem na sala de aula
com uma educação libertadora, por fim para contextualizar e orien-
tar os professores na sua prática pedagógica indico como base de
leitura os livros de Paulo Freire.

Ibititá (BA), 21/06/2023

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 35.ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

SUMÁRIO 233
Jaildes Andrade Barreto Rosendo

GOTAS PEDAGÓGICAS
DE UM POVO DA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS (EJA)
Prezado Freire,

Espero que esta carta faça parte de um acervo que contribua


para reflexões de muitas pessoas que, assim como eu, se inspiram
cada dia com seus escritos e suas obras. São livros que todo educador
deveria ter em sua cabeceira, ou seja, de fácil acesso para consultas
e embasamentos diários. Lembro-me perfeitamente do dia em que
li pela primeira vez seu livro A importância do ato de ler, onde você
afirma que a leitura do mundo é anterior a leitura da palavra, e que
todos trazem consigo sua experiência de vida para compor a leitura,
e que até mesmo a criança que tem suas imaginações e afeições, vai
ajudar na composição dessa leitura.

Nele você relata aspectos da sua infância e de como chegou


ao seu processo de alfabetização. Dá ênfase a importância de se
fazer uma leitura crítica, e que o gosto pela leitura se desenvolve à
medida em que os conteúdos sejam de acordo com o interesse e
necessidade de cada leitor.

Não tenho como escrever-te uma carta sem falar da EJA


– Educação de Jovens e Adultos, pois ler suas obras é passaporte
direto para essas pessoas que tiveram seus direitos negados, ou
uma vida escrava e sem concretização de seus sonhos.

Sou professora há dezoito anos, mas vivenciar/experienciar


em uma turma de EJA foi algo como um divisor de águas na minha
vida profissional e como ser humano. Uma escola de comunidade
pequena, com uma turma que funcionou no turno noturno, composta
de doze estudantes. Pessoas trabalhadoras rurais que, após um dia
de trabalho na roça, se davam o prazer de aprender a ler e escrever.

Rememorando um relato de um estudante dessa turma,


que tinha um sonho de aprender escrever seu nome, porque não
conseguiu no tempo de menino na escola, se sentiu excluído por
essa dificuldade, e deixou de frequentar as aulas, se tornando um
adulto oprimido por um sistema desigual. Sistema esse repleto

SUMÁRIO 235
de opressores, os quais ainda hoje negam direitos à sociedade, que
enquanto seres humanos tem o mesmo direito que qualquer vivente
de classe A ou B. Quando, na sua obra Pedagogia do Oprimido, você
retrata muito claramente sobre o opressor e o oprimido:
O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o
seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de
caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles.
Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma desig-
nação abstrata e passam a serem os homens concretos,
injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por
isso no seu trabalho comprado, que significa a sua pes-
soa vendida. Só na plenitude desse ato de amar, na sua
existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade
verdadeira (Freire, 2005, p. 35).

O referido estudante precisava romper com os impasses que


a vida injusta lhe impôs, para sua realização pessoal e profissional, o
pedreiro sentia necessidade de resolver esse dilema consigo e com
o mundo. Trazia consigo uma leitura de mundo perfeita, conhecia
muitas coisas e situações, e sua linha de raciocínio fazia ponte com
as discussões durante as aulas, era muito bom em cálculos mate-
máticos, porém não conseguia ler e escrever cartas, nem escre-
ver seu próprio nome.

Todos os dias, era o primeiro a chegar à escola, era bem


aplicado nas atividades, participativo nas discussões, realizava todas
as tarefas propostas. Com muita vontade e determinação, foi alfa-
betizado e ao término do primeiro semestre, conseguiu realizar seu
maior sonho, o de escrever seu nome.

Foi lendo suas obras e cartas pedagógicas, que encontrei meu


caro Freire, escritos de que cartas devem vir ensopadas de convicções,
sonhos e imaginação (Freire, 2000, p. 13). Acreditando nesse tripé que
sonhei, juntamente com minha turma de EJA, formas de olhar e enxer-
gar um mundo diferente, onde pudessem se expressar, lutar por seus
direitos de forma igualitária, assumir sua posição de sujeito crítico e

SUMÁRIO 236
sair do mundo da indignação. E assim, no semestre seguinte, o estu-
dante da EJA já havia conquistado sua liberdade, conseguiu produzir
pequenos textos, e realizar desafios relacionados à sua profissão.

Na contemporaneidade está bem diferente, escolas do


Campo se fechando, turmas sendo transportadas, nucleadas e sujei-
tos do Campo saindo da sua comunidade para trabalhar e estudar.
Muitas perdas de direitos na educação, principalmente na EJA –
Educação de Jovens e Adultos. Gostaria muito de poder continuar
contando com sua ajuda nessa luta, para garantir o que já havíamos
conquistado, e na realização de novas políticas públicas para fortale-
cimento da Educação em nosso Território.

Finalizo esta carta, após a leitura de algumas obras e cartas


pedagógicas suas, onde dialoga sobre questões da construção de
uma escola democrática e popular, e o direito do estudante da EJA
– Educação de Jovens e Adultos, abrir diálogo em relação à igual-
dade de direito, independente da condição em que desenvolveram
seus estudos na Educação Básica, com um debate do direito à con-
tinuidade. Literalmente direcionado a professores, convocando-os à
participação nesta mesma luta.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. A educação na cidade. São Paulo: Cortez Editora, 1991.

FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: Cartas Pedagógicas e outros escritos. São Paulo:


UNESP, 2000.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 41.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do oprimido.


27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Autores Associados: Cortez, 1989.

SUMÁRIO 237
Ananda Lima Silva Arruda

O SILÊNCIO
DA EDUCAÇÃO
Querido Paulo Freire,

Acredito que escrever cartas para alguém é um ato amoroso,


ainda mais nos tempos atuais em que a tecnologia domina, o efêmero
impera e nos tornamos líquidos. Escrever uma carta exige ritual, ao
menos para mim. De fato, não usei a folha de caderno e a caneta
como nos velhos tempos, tive que recorrer ao computador. Então,
imagino você lendo essa carta ao tomar um café, próximo a uma
janela, que lhe permite a visão de algumas árvores e flores, que libe-
ram um delicado perfume. Você lê a carta, acompanhado do café, ora
fazendo expressão de surpresa, ora graça ou indignação. Valho-me
do silêncio da madrugada para emergir em seus pensamentos e lhe
direcionar algumas palavras que expressarão inquietude, inconfor-
midade, amorosidade e reflexão.

Tecer essas palavras dialógicas com você - que é tão especial


e importante para a nossa educação - me anima, mas ao mesmo
tempo, pesa-me a responsabilidade frente ao nosso diálogo, dado o
tamanho de seu legado para a educação. Então, gostaria de iniciar
fazendo uma singela afirmação: você me ensina muito! Ajuda-me
a caminhar profissionalmente, especialmente como professora
dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, mas também como
mulher situada num tempo e espaço em que constitui a sociedade
na qual se encontra.

No meu processo de escolarização, especialmente nos primei-


ros anos, fui uma estudante muito tímida. Há quem diga, meu amigo,
que a timidez esconde a arrogância de não querer ser confrontado ou
ter as fragilidades evidenciadas, o que teria muita relação com o medo,
emoção constante na infância. Essa condição de timidez e medo, fazia
com que pouco me expressasse, inclusive em assumir que não enten-
dia o conteúdo trabalhado. Com isso, na avaliação da aprendizagem,
que normalmente acontecia no final do período, o resultado me levava
para a categorização dos estudantes “fracos”. Ser categorizada a pri-
meira vez, tornou-se uma constante nos anos seguintes.

SUMÁRIO 239
O silêncio foi muito presente em minha vida, ainda hoje o
é, mas numa outra dimensão. Fico imaginando quantas crianças,
jovens e adultos estão nas escolas e universidades num silencio gri-
tante! A nossa tendência é nos encantar e concentrar nossa atenção
aos estudantes com maior expressividade, seja na aprendizagem ou
no comportamento. E aqueles silenciosos, que, normalmente, estão
reservados às margens de nossas salas vão passando sem um olhar
amoroso e atento. Como sujeitos históricos, reproduzimos o que
vivenciamos. Por isso, a importância de recorrer a você, aos seus
pensamentos expressos em muitos textos.
O meu bom senso me adverte de que há algo a ser com-
preendido no comportamento de Pedrinho, silencioso,
assustado, distante, temeroso, escondendo-se de si
mesmo. O meu bom senso me faz ver que o problema
não está nos outros meninos, na sua inquietação, no seu
alvoroço, na sua vitalidade. O meu bom senso não me
diz o que é, mas deixa claro que há algo que precisa ser
sabido. Esta é a tarefa da ciência, que sem o bom senso
do cientista, pode se desviar e perder. (Freire, 2004, p. 63).

Fico pensando Freire, quantos Pedrinhos e Anandas temos


por aí? Quantos estudantes caem na invisibilidade educacional e por
consequência, social? A educação trabalha com ciência, a sala de
aula é, sem dúvida, um grande laboratório. Não aquele de misturas
liquidas, testes e descartes. Mas, de construção humana, de edifi-
cação de valores culturais e intelectuais que subsidiam o progresso
da humanidade. Ninguém deveria ser esquecido. Ninguém deveria
ser deixado para trás. Ninguém deveria ser condenado às margens
da sala e por consequência, às margens da sociedade. O professor
deveria se reconhecer como cientista, que está sempre em busca
de respostas para indagações tão presentes nas salas de aulas. Não
deveria se contentar com a cultura de cultivar rótulos, atribuídos aos
estudantes, repercutindo em seu futuro escolar.

Por certo, não é nossa intenção crucificar os professores.


Sabemos das demandas que envolvem a educação e como isso

SUMÁRIO 240
eleva sobremaneira as atribuições desses profissionais que em mui-
tos espaços têm se ocupado demasiadamente com questões buro-
cráticas ou frívolas. Muitas vezes impostas a eles, inviabilizando as
análises, reflexões, autoanálises e tudo que pudesse lhe dar respos-
tas quanto ao processo de ensino e aprendizagem construído. Freire,
meu caro, em Pedagogia da autonomia (2004), você fala da respon-
sabilidade de ser professor, do compromisso ético que precisamos
ter com a nossa atividade. Você sinaliza que não temos como fugir
do juízo de valor dos estudantes, dentre tantos possíveis, o pior é a
ausência dele na sala de aula. Isso me fez pensar em outro aspecto do
silêncio que permeia a nossa educação, o silêncio dos professores.

Com mais de vinte anos de vivência com a educação na


condição de professora, penso, sem romantismo e sem excessiva
racionalidade, que temos em nossas escolas o silêncio conveniente
daqueles profissionais que estão desmotivados com a profissão, que
flertam com outras atividades ou espaços educacionais, e na sua
sala de aula, especialmente pública, quer apenas “cumprir tabela”.
Em outras palavras, o docente se faz presente na sala de aula, orienta
uma atividade garantindo a dimensão burocrática, mas não traz pro-
fundidade para sua abordagem, muito menos se ocupa em perceber
seus estudantes para além das notas e conceitos. Há ainda o silêncio
da desesperança e da descrença. O sistema ao qual está vinculado
e o ambiente em que está imerso o sufocam de tal maneira com
tantas atribuições, que ele entra em choque interior, sem saber o que
precisa fazer. Apesar de ter estudado muito não consegue realizar
um trabalho pedagógico com qualidade, porque outras questões
alheias à sua vontade são priorizadas em nome de interesses socio-
econômicos e políticos.

Esses profissionais desesperançados vão se sentindo tão


esvaídos, isolados, negligenciados e, por conseguinte, violentados
interiormente, que se silenciam. Isso também se dá não apenas
pela imposição do sistema, mas pelas relações de poder que são
estabelecidas no interior das escolas, onde os pares em vez de se

SUMÁRIO 241
ajudarem, se fortalecerem coletivamente, se fragilizam em detrimen-
tos de caprichos, orgulho e desejo de controle. Certamente, no livro
Educação como prática de liberdade (2022), você nos ilumina com
um ponto importante a ser considerado:
Não é o resultado exclusivo da transitividade de sua cons-
ciência, que o permite auto-objetivar-se e, a partir daí,
reconhecer órbitas existenciais diferentes, distinguir um
“eu” de um “não eu”. A sua transcendência está também,
para nós, na raiz da sua finitude. Do ser inacabado que
é e cuja plenitude se acha na ligação com o seu Criador.
Ligação que pela própria essência, jamais será de domi-
nação ou de domesticação, mas sempre de libertação
(Freire, 2022, p. 56).

Como tomar consciência de algo, sem ter consciência de si


mesmo? A transcendência existencial, própria da vida humana, atre-
lada às inúmeras experiências que nos constitui, nos coloca em níveis
de compreensão de si, do outro e do entorno, de maneiras distintas.
Nesse contexto, Freire querido, faz todo o sentido o inacabamento
que você nos alerta em diferentes obras. Nós, professores, devemos
nos reconhecer como seres inacabados, nos constituindo cotidiana-
mente a partir das experiências vividas seja no campo formativo, seja
na faina do fazer pedagógico. À vista disso, os estudantes precisam
ser vistos e reconhecidos como seres em constituição, capazes de
responder às provocações curriculares e do processo avaliativo não
condizentes com os objetivos propostos. Sei que não é fácil, mas
eles precisam confiar no alto potencial que possuem para transpor
as barreiras que lhes impedem de fluir em suas aprendizagens. A
educação, desse modo, precisa ser libertadora. Para tanto, as dife-
rentes dimensões que a constitui, necessita convergir em práticas
que potencializem-na para o desenvolvimento da coletividade.

Em Pedagogia do Oprimido (1987), você nos chama a aten-


ção para a humanização e desumanização dos sujeitos em socie-
dade. Ambas situações evidenciam um ser inconcluso. Todas as
questões que lhe sinalizo nessa carta, se assenta nessa constatação.

SUMÁRIO 242
Entretanto, você afirma que a humanização é própria da natureza
humana, e a desumanização estará sempre em companhia da nega-
ção, produzindo processos de exclusão. Nas relações imbricadas, se
estabelecem as figuras do opressor e oprimido. Em sintonia consigo,
querido Mestre, Santos (2014) sinaliza que os discursos e jogos de
interesses são contraditórias, posto que levantam bandeiras em
favor da libertação do pensamento, mas a aprisionam na prática
para manutenção dos opressores e assim, os excluídos – oprimidos
- continuam onde estão. A escola é elemento chave nesse construto
social, que de diferentes maneiras vem contribuindo para o silen-
ciamento de si mesma, por meio de seus estudantes e professores,
como parte de um sistema que a todos envolve e oprime.

Meu caro amigo, espero não lhe desestabilizar com tantas


inquietações e percepções práticas. Mas gostaria de acrescentar
algo que julgo essencial para construir uma escola libertadora: a
formação de professores. O silêncio dos estudantes e dos profes-
sores será rompido quando se sentirem parte do processo, sujeitos
ativos e construtores da educação, até porque estão sendo agentes
passionais frente à uma realidade educacional opressora. Cumprem
obrigações, respondem provocações pontuais, mas não estão imer-
sos numa dinâmica desafiadora, instigante, capaz de torná-los partí-
cipes, com sentimento de pertença.

Algumas práticas nas escolas são de mera culpabilização


tanto do discente quanto do docente. Os textos de Pedagogia da
Esperança nos iluminam.
É imperioso irmos além de sociedades cujas estruturas
geram ideologia de acordo com o qual a responsabilidade
pelos fracassos e insucessos que elas mesmas criam
pertence aos fracassados enquanto indivíduos, e não às
estruturas ou à maneira como funcionam essas socieda-
des (Freire, 2013, p. 146).

Ah, amigo, como a situação é delicada! Se o aluno não


domina as habilidades e competências pensadas para a coletividade,

SUMÁRIO 243
desconsiderando os seres singulares que são, a culpa é dele que não
se esforçou nem se dedicou para tê-las. Se o professor tem dificul-
dades para lidar com tantas demandas que lhes chegam, a culpa
não é de quem elege e implementa tantas atribuições, mas sim do
professor que não é qualificado suficientemente. A culpa é sempre
daqueles que estão na condição de oprimidos.

Esteban (2010), sinaliza que ser silenciado, invisibilizado, exclu-


ído não o elimina, mas o reconfigura num cenário nada auspicioso,
que pode constituir outras tramas históricas e discursivas, com contra-
dições e tensões ambivalentes. É na escola que são tecidas as possi-
bilidades de inserção social por meio da produção de conhecimento.
E fico pensando, o quanto a figura do professor é importante nesse
processo. Querido Freire, os tempos têm sido árduos para o exercí-
cio do magistério, bem verdade não estamos em tempos de ditadu-
ras militares, mas há outras dimensões ditatoriais que percorrem os
corredores e salas de aulas, silenciam professores pela exaustão da
solidão, do cansaço físico e mental; e, reforçam silêncios estudantis,
com práticas excludentes e classificatórias. Segundo Han (2021), dei-
xamos a sociedade disciplinar no passado e chegamos à sociedade
do desempenho. Há uma corrida frenética por resultados, sem pensar
nem refletir os processos, os percursos feitos. Aqueles que não con-
seguem o desempenho esperado vivem uma pressão enorme, que os
levam ao sentimento de incompetência, incompletude. Ou seja, vivem
a ambivalência da positividade do poder – aqueles que são eficientes
– e a negatividade do dever – aqueles ineficientes.

Veja, Paulo, quantas questões continuam latentes historica-


mente e quantas outras vão se agregando ao novo formato e deman-
das sociais! Sem dúvida, é preciso esperançar e esperar lançando
ideias. Conforme você mesmo nos disse, a esperança é uma neces-
sidade ontológica que nos mobiliza individual e coletivamente para
os enfrentamentos que muitas vezes nos condicionam a um lugar ao
qual não pertencemos, ao silêncio ensimesmado. Precisamos uns
dos outros para prosseguir.

SUMÁRIO 244
Espero que seu café não tenha esfriado enquanto lia esta
carta. Espero que não se desesperance, pois necessitamos da sua
energia esperançosa.

Abraços afetuosos, caríssimo escritor.

Barreiras, 11 de setembro de 2023.

Ananda Lima Silva Arruda

REFERÊNCIAS
ESTEBAN, M. T.; AFONSO, A. J. Olhares e interfaces: reflexões críticas sobre a avaliação.
São Paulo: Cortez, 2010.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. 29.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia como prática de liberdade. 52.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987

HAN, B. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2.ed. Petrópolis,


RJ: Vozes, 2017

SANTOS, B. S.; CHAUI, M. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São


Paulo: Cortez, 2014.

SUMÁRIO 245
Jônatas Medeiros Júnior

SOBRE A DESESPERANÇA
GERADA PELA PRÁTICA
CONSERVADORA DISFARÇADA
DE CRISTIANISMO
Prezado Paulo Freire,

Há alguns meses iniciei a leitura do Livro do Desassossego, de


Fernando Pessoa. Bem no início, Bernardo Soares registra “nasci num
tempo em que a maioria dos jovens tinha perdido a crença em Deus,
pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido - sem saber
por quê”. Não sei se posso iniciar essa conversa parafraseando um
poeta, mas creio que podemos trocar a palavra Deus por Esperança
e jovens por alunos do ensino básico. Sinto que meus alunos per-
deram a esperança da mesma maneira que seus pais a tinham tido.

Sou um jovem que nasceu em uma família desestruturada,


cheia de problemas emocionais não tratados. Cheia de contradições.
Fruto de um tempo onde a negligência parental parecia ser uma
regra. Filho de uma família que possui uma relação de consumo até
com a religião, qualquer religião que seja. Onde experimentar é sinô-
nimo de barganhar com diferentes entidades. Essa apresentação é
apenas para dizer que me tornei evangélico por encontrar na igreja
da periferia de Pedregal, Goiás, o apoio emocional, espiritual e social,
entre pessoas que poderia chamar de irmãs. Construir uma família
que me desse outro exemplo. Lá aprendi o significado de “os homens
se libertam em comunhão”. Lá decidi ser professor. Lá decidi estudar
filosofia. Lá vi os terríveis resultados de uma educação bancária.

A igreja que eu costumava ver como um ambiente problema-


tizador por se comprometer com as contradições da periferia, com-
preender os limites de nossas ações enquanto indivíduos e apelar
para o nosso esforço pela e com a comunidade, se desfez em dis-
cursos de movimentos de restauração, tentativas de retornar a uma
glória que nunca experimentamos, mas que todos podiam fantasiar.
Se distanciando do real, criando uma interpretação, conformando as
classes. Restaurando para lembrar que Deus ordenou para não ser
mudado, mulheres devem seguir um padrão, homens devem seguir
outro, filhos devem seguir outro, comportamentos desviantes devem
se enquadrar entre as opções já mencionadas. Felizmente este não

SUMÁRIO 247
é um discurso cristão é um discurso conservador de passividade. E
graças ao senhor, professor, posso afirmar corajosamente isso.

Percebo que não é necessário muito para compreender que


para ser cristão deve-se seguir a Cristo, os comportamentos que são
colocados como pré-requisitos para sermos cristãos pouco têm a ver
com o processo de se tornar um cristão. O pré-requisito é mais uma
performance que pode ser praticada por qualquer estoico moderno
que dá graças a Deus por obter lucro independente de como ela
venha. Na verdade o comportamento, vestimenta, fala, são resulta-
dos de uma inserção social que nada diz sobre salvação.

Infelizmente este ensinamento não é bem visto, pois incen-


tivar que todos de uma mesma comunidade performem o mesmo
comportamento que só reflete um estilo cultural que nem genuina-
mente brasileiro é evita o desconforto da reflexão ativa por parte dos
membros que em um dado momento podem perceber que o único
pecado sem perdão é de ordem espiritual e não física; que traduções
não são fiéis às mensagens de um texto; que as dificuldades com
alguns textos não são superadas só com uma postura ingênua do
binário certo ou errado; que o amor de Deus não é condicionado pelo
comportamento humano; que os modelos indicados de comporta-
mento nada tem a ver com os exemplos bíblicos que passam entre
casamentos poligâmicos, traições perdoadas, mulheres e homens
que nascem e morrem sem relacionamento conjugal, mulheres que
trabalham e homens que cuidam da casa.

A falta de percepção crítica e dialogal faz com que igrejas se


comportem como se todos os seus membros fossem homogêneos,
coisas que recebem os ensinamentos da mesma forma para pratica-
rem sem compreender que cada contexto é um contexto, sem con-
siderar as dificuldades, sem lembrar que Cristo pode ser visto como
a resposta para todo sofrimento desde que essa resposta tenha
perguntas que possam ser respondidas com a prática daquela igreja
local. Uma pessoa pode professar sua fé, mas estar em um emprego

SUMÁRIO 248
que a explora tanto que sua hora de falar com Deus precisa ser mar-
cada com seu patrão, uma pergunta precisa e clara neste caso é
“Qual é o sofrimento neste contexto?” a resposta “a exploração do
trabalho está retirando a qualidade de vida do nosso irmão”, outra
pergunta é “Como Cristo se manifestará através de nossas ações
para conseguirmos melhor qualidade de vida?” a resposta “prati-
cando a justiça que assiste o estrangeiro, o órfão e a viúva”.

Querido professor, digo tudo isto, pois trabalho em um colé-


gio que me contratou por eu ser cristão e não por eu ser um exce-
lente professor de filosofia. Em um colégio que espera e me incentiva
a tratar meus alunos como coisas apartadas das minhas obrigações.
Enquanto funcionário, preciso priorizar as aulas e não os alunos, o
conteúdo e não o diálogo. Fui contratado para deformá-los e retirar
sua humanidade para que eles sejam submissos. E tudo isso em
nome de uma espécie de liberdade e de esperança.

Neste trabalho percebo que os alunos mais tristes, desorien-


tados, desesperançosos são os frequentadores de igrejas que perpe-
tuam o conservadorismo. Jovens que se hiper-sexualizam por serem
proibidos de discutir sexualidade, meninas e meninos que praticam
uma bissexualidade mesmo que em suas igrejas seja pregada que
no inferno há um lugar reservado para qualquer pessoa que não se
encaixe no padrão homem e mulher, crianças que escutam sobre fé
e esperança apartados de praticarem a fé e a esperança que lhes
interessa. O mundo nunca é para transformar, sempre para observar
ingenuamente. Aqui o amor é incoerente, confuso, cheio de fantasias
distantes das práticas mais simples. Não é mais sobre a satisfação da
vida que Deus nos dá, mas sobre a insatisfação que o pecado de Eva
(e é preciso ressaltar o ódio à personagem Eva enquanto mulher)
gera, pois o mundo não pode ser mudado, ele é mal, ele é confuso,
ele é o que é e nunca deixará de ser o que é.

A minha prática em sala de aula tem se pautado em ques-


tionar o inquestionável deles. Aplicar o que o professor Silvio Gallo

SUMÁRIO 249
chama de educação menor, uma educação que se faz dentro dos
limites impostos, mas que alteram os sentidos dos conceitos mais
utilizados para que o ataque não pareça uma disputa de conceitos.
É apontar a liberdade existencial que compreende a dificuldade que
é assumir uma posição aceitando todas as suas consequências. É
praticar a autoridade que guia o aluno para o exercício pleno de
sua razão. É ter a certeza que a minha aula será vista, mesmo que
afirmada como uma disciplina inútil, através da ótica do amor dos
alunos pelo conhecimento. É combater o autoritarismo com genuína
autoridade e ver que os alunos me respeitam não porque exijo isso,
mas porque eles percebem que o conhecimento gerado em aula
neles é muito mais importante que as distrações

Desde que aplico seu conhecimento, professor, os alunos


amam o estudo filosófico mesmo que antes eles precisem respirar
fundo e engolir a preguiça gerada pelo seu estado permanente de
consumidores de entretenimento. Mesmo que para iniciar a aula eu
precise chamar a atenção de um e de outro por carregar comigo uma
mensagem que é muito mais benéfica do que o feed do Instagram.
Desde que aplico seu conhecimento, professor, não me sinto filoso-
ficamente deslocado, pois o meu filósofo fala a mesma língua que a
minha. E a sua profundidade está atrelada a sua vivência brasileira,
mesmo que de uma época e de um espaço social distinto do meu.

Desde que aplico seu conhecimento, professor, percebo


os alunos esperançosos quando estou presente, não porque eu
tenho algum poder, mas porque a educação que carrego se tornou
poderosa e afiada, separando o conservadorismo do exercício da fé,
desvelando as dominações sem impor o que sei, mas explorando o
que eu não sei através das respostas dos alunos, porém não posso
ser ingênuo e é preciso entender que a mesma máquina que gerou
a desesperança nesses alunos permanece operando em diferentes
grupos sociais frequentados por eles. Só fazer a minha parte é insu-
ficiente, só lhe enviar esta carta é insuficiente, mas enquanto ajo e
penso em como separar a fé cristã do conservadorismo, expresso

SUMÁRIO 250
minha gratidão pelos seus ensinamentos e nutro a esperança de
poder resolver o problema de Bernardo Soares, gerar uma época em
que as pessoas têm esperança e fé sabendo o porquê.

Brasília (DF), 19 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023

GALLO, S. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio.


Campinas, SP: Papirus, 2012

KELLER, T. Justiça generosa: a graça de Deus e a justiça social. São Paulo: Vida
Nova, 2017.

SUMÁRIO 251
Adilma Vilela

CARTA
A PAULO FREIRE
Querido Seu Paulinho,

De tantas honrarias que você recebeu nesta vida, dentre


a de maior relevância para o povo brasileiro está a de Patrono da
Educação, por isso, humildemente, peço licença para te chamar de
“seu”, em vez de “Sr.”. Meu intuito é trazê-lo mais próximo a mim, na
simplicidade que faz jus ao homem nordestino que você é, cidadão do
mundo, professor de fala mansa e poética, olhar molhado de ternura
e jeito único, imprescindível a ponto de se eternizar como pessoa e
teórico da educação, sem que uma referência se sobreponha à outra.

Seu Paulinho, assim passo a me dirigir de agora em diante.


Você foi um dos meus primeiros referenciais teóricos em Pedagogia,
no auge de sua revolução pela alfabetização de adultos, quando eu
e algumas colegas do curso, durante o estágio da Universidade do
Estado da Bahia – UNEB, campus IX, colocamos em prática a sua
metodologia, conhecida à época, na forma coloquial, como “Método
Paulo Freire”. Conseguimos alfabetizar um grupo de funcionários da
extinta fábrica de óleo de soja em Barreiras, com grande êxito, e,
para nós, o substantivo “lata” teve um constructo tão importante e
contextualizado, como certamente foi para você, na concretude do
seu legado didático e teórico, a palavra “tijolo”. Formada, adaptei seu
pensamento para alfabetizar crianças, partindo do vocabulário infan-
til em que as palavras também são precursoras das ideias do mundo.
Foi mais uma experiência inesquecível, destas que eu teria muito
orgulho em dedicar a você, como recorte da “boniteza de um sonho”.

Ao longo de minha vida acadêmica e pedagógica, suas obras


continuaram me encantando e sua prática desconcertante na quebra de
paradigmas e envolvente na inclusão dos alunos como sujeitos sociais
críticos, conscientes e participativos, me fez leitora e a fã incondicional
de seu pensamento, história e legado. Seu Paulinho, você me levou a
compreender o mundo, a enxergar as mazelas, as barreiras, as amarras,
mas também a compreender as possibilidades de ações diferenciadas,
em que a educação pode mudar vidas e construir novas histórias.

SUMÁRIO 253
Você me fez transitar numa rota de alteridade, com esse
jeito único de ouvir profundo, fazendo com que a arte de se colo-
car no lugar do outro, fosse sempre motivação para todo e qualquer
fazer, seja em projetos de vida ou pedagógicos. Em todo o tempo,
quando imagino dias nublados, em que ficamos de luto pela perda
de entes queridos, eu incluo você. À sombra de muitas mangueiras,
deitei e chorei, acompanhada, certamente, de um coletivo de vozes,
igualmente comovidas, mas imbuídas da clara ideia de sua ausência
deixaria lacunas, vazios, mas jamais desesperança ou tristeza. Foi
também nesse momento que aprendi sobre medo e ousadia; e não
permiti que nenhum obstáculo colocado diante de mim, ou da minha
prática docente – criativa, amorosa e inquietante - fosse paralisada.

Tendo como referência seus escritos, e traçando uma linha


convergente na relação dialógica entre Pedagogia do Oprimido
(1968) e Pedagogia da Autonomia (1996), pude contemplar a edu-
cação, do princípio ao fim, como um ato de amor, que como todo
grande sentimento humano “exige coragem, dedicação e paciência”.
Você me ensinou a pensar com os diferentes e a me indignar com
processos de educação e ensino excludentes, a gritar em alto som
que a educação por si não transforma o mundo, “mas sem ela tam-
pouco a sociedade muda”. Você permanece sendo lucidez em meio a
tanta loucura que ainda, infelizmente, vivenciamos.

Compreendo que todo movimento em torno da educação


deve ser libertador e a ferramenta pedagógica central para esse ato
é o diálogo entre os sujeitos, entre educadores e educandos, entre
escola e a sociedade, entre os atos humanos e políticos que são
como tônus dos nossos fazeres pedagógicos. Na condição de pro-
fessora tal qual você é (no tempo presente), carrego em mim a base
de toda riqueza. Mais do nunca é preciso identificar os traços opres-
sores internalizados tanto nos sujeitos quanto nas estruturas sociais,
buscar o desvelamento do mundo, descortinar as possibilidades de
enfrentamento e postura, em ação plural e cultural pela liberdade.

SUMÁRIO 254
Seu Paulinho, acredito que o mais importante é nunca per-
der a capacidade de aprender, tendo convicção da incompletude dos
seres humanos em contínua evolução. Ainda bem que um legado
nunca se esgota, e sua vasta obra original, colaborativa e/ou revisi-
tada, é uma reserva de força e coragem, em que se conjuga, desde
sempre, o verbo esperançar. Vou viver as coisas velhas, que também
são boas. Vou buscar as novas para retroalimentar o pensamento e
enriquecer a caminhada. E vou viver no mundo e com o mundo, no
tempo e com o tempo e espalhar por todo canto o amor social que
aprendi contigo. E como no sonho possível, não há liberdade em
solidão, me despeço aqui, tal qual você outrora o fez, à “maneira de
quem, saindo, fica”.

Amorosamente,

Adilma Vilela

Barreiras, Bahia, 02 de julho de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 79.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 2021.

SUMÁRIO 255
Cristino Cesário Rocha

UMA CARTA A PAULO


FREIRE EM TEMPO
DE ESPERANÇA NEGRA
Senhor Paulo Freire (1921-1997),

A ideia de redigirmos esta carta in memoriam é inspirada em


sua admirável trajetória de vida, plena de realizações que fizeram,
de sua pessoa, o “Patrono da Educação Brasileira” (Lei nº 12.612, 13
de abril de 2012). Brasileiro, nordestino, pernambucano e filósofo da
classe trabalhadora em oposição ao filósofo da ordem dominante, o
senhor foi, é e será, sempre, uma inspiração como educador popu-
lar competente, sério, dialógico e comprometido com a educação
pública, laica, democrática e de qualidade socialmente referenciada.
Seus pressupostos práticos-teóricos, Sr. Paulo Freire, inspiram-nos
a fortalecer a práxis transformadora dos/as oprimidos e oprimidas.
Especialmente como negros e negras, a transformação, via cons-
ciência-mundo, é inevitável, necessária e urgente. Sua cosmovisão
contribui, entre outras coisas, para que o/a oprimido/a reconheça o
próprio lugar de protagonismo na luta.

Sr. Paulo Freire, nós negros e negras brasileiros/as, sabemos


o que é ser negro/a no Brasil ao entrar em um elevador, ao enfren-
tar o desempregado/a e o extermínio, nos morros e favelas, ao lidar
com a abordagem seletiva e desumana da polícia, com as piadas
racistas, com os estereótipos dos livros didáticos e paradidáticos,
com os olhares enviesados em clubes e ruas. Contudo, também
sabemos lutar. O movimento social negro brasileiro tem um histórico
de enfrentamento por igualdade racial, em vários espaços e possi-
bilidades combativas.

O Brasil passou por um tempo tenebroso (2016-2022),


quando as instituições democráticas foram abaladas em seu signi-
ficado e importância por grupos conservadores, de extrema direita,
com forte teor nazifascista. Em 2016, essa condição foi capitaneada
por Michel Temer e aliados/as, que usurparam o poder, ao expulsar
da Presidência da República uma mulher que foi eleita democratica-
mente por mais de 50 milhões de brasileiros/as.

SUMÁRIO 257
A emergência e/ou ressurgência do movimento neoconser-
vador, com o objetivo de atacar a democracia brasileira, teve sua
expressão embrionária em 2013, como uma preparação para um
possível golpe contra decisão majoritária da população, ao eleger
Dilma Rousseff ao segundo mandato presidencial, em 2014. A massa
foi manipulada por lideranças religiosas, ruralistas, empresariais e
políticas exigindo a volta da ditadura militar, a destituição de Dilma
e outras ações que ferem o Estado Democrático de Direito. O movi-
mento de ir às ruas, Sr. Paulo Freire, em vários estados, neste período,
revelou, essencialmente um cunho conservador, o discurso do ódio e
retrocesso, reivindicando a volta da ditadura civil militar (1964-1985)
que violou direitos, torturou e matou lideranças estudantis, religiosas,
sindicais e políticas.

Sr. Paulo Freire, a onda desse movimento neofascista nas


ruas teve seu cume nos atos antidemocráticos do dia 08 de janeiro
de 2023, quando uma multidão de bolsonaristas extremistas invadi-
ram os três poderes da República Federativa do Brasil, cometendo
crimes, como a abolição violenta do Estado Democrático de Direito,
golpe de Estado, organização criminosa, danos contra o patrimônio
público, entre outros. Essa ação rendeu, Sr. Paulo Freire, prisões e a
“CPI dos atos antidemocráticos”, que hoje estão em andamento na
Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Sr. Paulo Freire, no bojo dos ataques à democracia, convive-


mos com a corporação dominante-dirigente espalhando fake news
a seu respeito, atribuindo-lhe, indevidamente, atitudes e rótulos
incompatíveis com a sua trajetória histórica, tais como “doutrina-
dor”, “desprovido de conhecimento científico”, “sem merecimento do
título patrono da educação brasileira.”, “potencializador da violência
na escola”, etc. Bem sabemos que, tudo isso ocorre porque a elite
dominante-dirigente neoliberal e neoconservadora tem medo de sua
postura insurgente no mundo, de sua atitude disruptiva.

SUMÁRIO 258
Outro período tenebroso ocorreu em 2018, quando foi eleito
um candidato avesso aos trabalhadores/as, aos negros/as, mulheres,
indígenas, LGBTQIA+, STF, etc. A gestão presidencial (2019-2022) foi
um desastre que tensionou, usando suas palavras, “a relação oprimi-
do-opressor” com predominância de relações de opressão.

Em março de 2020, o Brasil e o mundo enfrentaram a intensa


pandemia do coronavírus – COVID 19, uma calamidade que assolou
a população brasileira com o aval do negacionismo da ciência e da
vacina como bens públicos e eficientes no combate à doença, que
matou mais de 700 mil pessoas no Brasil, por negligência de agentes
do poder público, principalmente da presidência da república que,
com deboche, considerou a grave crise sanitária como “gripezinha”.

Sr. Paulo Freire, no contexto do desgoverno Temer e


Bolsonaro, dupla que sempre esteve no time dos que jogam contra a
dignidade humana dos/as trabalhares/as. São os mesmos que nada
fizeram em favor da causa negra, especialmente. Esses senhores,
além de nada fazerem pela melhoria da vida da população negra,
extinguiram órgãos que contribuíram com o fomento da igualdade
racial, como a SEPPIR e a SECADI. Essa ação truculenta e desres-
peitosa tem a ver com o racismo sutil e/ou escancarado no poder
público. Sr. Paulo Freire, a sua cosmovisão é elucidativa e oposta ao
que esses senhores fizeram, porque em favor de um senso ético na
defesa da causa negra e de outros marcadores das diferenças

Sr. Paulo Freire, a discriminação racial e o racismo, juntos, têm


origem na colonização escravista e no capitalismo, base do racismo
estrutural que hoje se discute na contemporaneidade brasileira e que
reverbera em instituições e comportamentos de indivíduos. Por essa
e outras razões, Sr. Paulo Freire, nossa luta negra é contra algo maior:
o capitalismo, sexismo, patriarcalismo e escravidão que, embora não
seja o modo de produção dominante, ainda convivemos com traba-
lho análogo à escravidão no Brasil, em nível nacional.

SUMÁRIO 259
O Brasil, em tempo de desgovernos Temer e Bolsonaro, a
vida da população negra e demais marcadores das diferenças foi
um sofrimento, quando se agravaram o racismo estrutural, individual
e institucional. A pandemia trouxe à baila toda a perversidade sistê-
mica – o racismo estrutural que se exprime no cotidiano (individuo) e
nas instituições, produziu e produz relações assimétricas de acesso
aos bens socialmente produzidos e aos bens imateriais.

Sr. Paulo Freire, a luta negra contemporânea é muito ampla


e complexa. E Dennis Oliveira (2021) tem algo a dizer, ao considerar
a luta antirracista como também anticolonial e de classes por estar
ligado à constituição estrutural do sistema-mundo do capital. Desse
modo, Sr. Paulo Freire, a educação libertadora deve estar articulada
com essa luta de classes e anticolonial, no enfrentamento do que
Cida Bento (2022) chama de “pacto da branquitude” que estrutura a
sociedade em favor dos interesses dominantes brancos.

Entretanto, Sr. Paulo Freire, a esperança voltou a brilhar em


2022. Estamos em um novo tempo, em que se criou o Ministério dos
Povos Indígenas, sob a gestão de Sônia Guajajara; o Ministério da
Igualdade Racial, sob a gestão de Anielle Franco e o Ministério dos
Direitos Humanos e Cidadania, sob a gestão de Silvio Almeida, com-
prometidos/as com a dignidade de todas as pessoas, especialmente
de negros negras e indígenas.

Sr. Paulo Freire, a população negra existe, sob os ditames


do racismo em suas várias origens e efeitos, como assevera Ortegal
(2018): “o desenvolvimento dos estudos sobre raça vem demonstrando
a multiplicidade de origens e efeitos das mais variadas expressões
do racismo, que se retroalimentam continuamente e extrapolam as
estruturas econômicas”. Isso indica que o racismo é multidimensional.

O ato de existir, Sr. Paulo Freire (2008), tem uma força his-
tórica em sua concepção, que ajuda na apreensão do pensar-lu-
tar-transformar a vida negra contemporânea: “existir é um conceito

SUMÁRIO 260
dinâmico. Implica numa dialogação eterna do homem com o homem.
Do homem com o mundo. Do homem com o seu criador. É essa dia-
logação do homem sobre o mundo e com o mundo mesmo, sobre os
desafios e problemas, que o faz histórico”.

Sendo o/a negro/a um ser histórico, Sr. Paulo Freire, sua luta
é por direitos amplos, historicamente roubados. Essa luta tem múlti-
plos significados e não pode ser limitada, porque significa, simultane-
amente, luta anticapitalista, antirracista e antissexista, dentre outras.
Não dá para viver e viver bem coabitando com o racismo, o sexismo
e o capitalismo destrutivos. Neste contexto, na esteira de sua contri-
buição (2008), o tipo de educação libertadora deve ser aquela que
prepara para a decisão, a igualdade, para a responsabilidade social,
para o desenvolvimento humano e para a democracia.

Sr. Paulo Freire (2019), sua concepção de esperança alimenta


a vida da população negra que anseia por emancipação/libertação
integral, ao dizer que: “a esperança é um condimento indispensável
à experiência histórica. Sem ela, não haveria história, mas puro deter-
minismo. A inexorabilidade do futuro é a negação da história”. Para a
população negra, em contexto de profundas desigualdades, problema-
tizar as múltiplas relações é um imperativo ético-político indispensável.

E, problematizar, Sr. Paulo Freire (2019) é, em seu contributo,


atitude interessada, intencional: “ninguém pode estar no mundo,
com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar
no mundo de luvas nas mãos constatando apena”. Sim, nosso estar
negro/a no mundo, para ser transformador, precisa assumir uma teo-
ria social crítica como práxis. Não dá para se ajustar ao mundo, nem
assumir uma postura resignada. É exigência ética e político-social
ser negro/a revolucionário/a.

Sr. Paulo Freire, o racismo é uma realidade social objetiva,


que precisa ser enfrentada, e sua contribuição (2016) alimenta a cer-
teza de que são homens e mulheres os/as produtores/as da história,

SUMÁRIO 261
não havendo acaso na produção do racismo e outras violações de
direitos. Esse entendimento, Sr. Paulo Freire, dialoga com a objetivi-
dade dos fatos no que diz respeito à população negra. Sílvio Almeida
(2019) tem algo a dizer: “homens brancos não perdem vagas de
emprego pelo fato de serem brancos, pessoas brancas não são “sus-
peitas” de atos criminosos por sua condição racial, tampouco têm
sua inteligência ou sua capacidade profissional questionada devido
à cor de sua pele”.

O que se coloca, Sr. Paulo Freire, é que o racismo estrutu-


ral, nas palavras de Almeida (2019), “transcende o âmbito da ação
individual e é decorrência da estrutura social dominante”, precisa
ser enfrentado com ações com a mesma envergadura, em nível
sistêmico. Dito de outro modo, para problemas estruturais, soluções
estruturantes. Neste sentido, Sr. Paulo Freire (2016), nosso diálogo
remete à libertação negra como um “parto doloroso produzido pela
superação da contradição opressores-oprimidos”. Permita-nos, Sr.
Paulo Freire falar de rompimento da contradição oprimido-opressor,
para além da superação.

Sr. Paulo Freire, a educação, assim como os movimentos


sociais, sindicatos e lideranças políticas engajadas na luta pelo
rompimento do racismo estrutural, é tarefa que exige práxis trans-
formadora, (2016), assim proposta: “a práxis é ação dos homens e
mulheres sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível
a superação da contradição opressor-oprimidos”. Reitero Sr. Paulo
Freire, a nossa realidade negra exige rompimento dessa contradição.

Sr. Paulo Freire, a partir de suas concepções adquirimos um


pensamento mais reflexivo e politizado, em relação à educação e
ao mundo ao nosso redor. Ao viver em contexto brasileiro atual, a
resistência é exigência fundamental. Permanecermos juntos/as e
sermos um como na contextura africana, “Ubuntu”; é meio para pen-
sar e repensar a práxis se quisermos sobreviver às desigualdades,
desrespeitos e consequentemente, como o senhor diz, “esperançar”.

SUMÁRIO 262
Como educador e educadora popular, destacamos que o senhor é
um pensador imprescindível tanto para a educação, como para a
revolução, pois envolve-nos pelo caminho do inédito viável, em dire-
ção à resolução das situações cotidianas.

O senhor nos instiga a uma concepção dialógica de respeito


às diferenças para se atravessar o contexto atual, direcionando – nos
para a emancipação humana. Na pedagogia do oprimido, o senhor
nos desperta à lógica de uma pedagogia libertadora, com o conceito
de relação dialógico-dialética. Permite acreditarmos numa possível
sociedade conscientizada e livre. Nos faz repensar sobre a teoria e
prática, e ainda nos situa como seres inacabados e inconclusos e
com uma longa jornada para alcançar essa liberdade e consciência
pelo senhor pensada-vivida.

Seu conceito de práxis dialoga com Karl Marx (2002) em


Teses sobre Feurbach (Tese VIII), que reconhece a vida social como
práxis humana: “toda vida social é essencialmente prática. Todos os
mistérios que conduzem aos misticismos encontram sua solução
racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis”. Em Tese
XI, Sr. Paulo Freire, Marx é enfático ao propor transformação com e
para além da interpretação do mundo.

Sr. Paulo Freire, seu legado é atemporal. Sua vida foi, é e


será sempre uma lembrança amorosa, fraterna, criativa e húmus
que fecunda a terra brasileira com um desejo de fazer preva-
lecer a ética do humano sobre a ética do mercado e a primazia
da igualdade racial como projetos societários. Romper com o
racismo é uma tarefa histórica! Paulo Freire vive e viverá, sempre! É
tempo de esperança negra!

SUMÁRIO 263
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 31.ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2008.

FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11.ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2013.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 60.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 58.ed.


Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2019.

OLIVEIRA, D. Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora


Dandara, 2021.

SUMÁRIO 264
Camila Trindade Coelho

DESCOLONIZANDO A VIDA:
UMA CARTA PARA PAULO FREIRE
Prezado Sr. Freire,

Comecei a pensar em lutas sociais, as que são minhas, dos


meus e que são para além de nós, encontro nessas encruzilhadas
caminhos, auxílio e pioneirismo intelectual em sua obra. Você se
apresenta para mim, mulher negra, cis, Enfermeira e pesquisadora,
fomentando meu pensamento crítico, rompendo os saberes hegemô-
nicos. Transbordo em seus conceitos Autonomia e Empoderamento.

Você define Empoderamento e Autonomia como instrumen-


tos de luta social sendo o precursor destes conceitos, operando
enquanto teorias. Identificando, para todas nós que há uma cons-
cientização crítica que deve ser aprofundada, para se utilizar como
prioridade, por exemplo, ao pensar as populações que se encontram
em vulnerabilidade social e pensar em possibilidades (Freire, 2015).

Sendo assim, para nós, mulheres negras urge o desejo de


nossa comunidade ascender socialmente, apesar dos péssimos
marcadores sociais, é extremamente essencial “erguer a voz” (Hooks,
2019). Partir de uma consciência individual, na qual, cada um/a
compreende o seu papel na sociedade, os ambientes que estamos
inseridos e os atravessamentos, mediante aos regimes de opressão
(Berth, 2019). Desta maneira, possibilitando transformar as relações
sociais, tornando os indivíduos/as que estão anexados neste pro-
cesso, agentes de transformação da sua realidade, podendo então
sair de suas amarras, participando ativamente do pensar e agir como
membro de uma sociedade.

É isto, que seus ensinamentos me transmitem Sr. Freire, ao


mudar de cidade e estado encontrei no empoderamento, um con-
dutor de mudanças junto à coletividade. Assim sendo, adoto uma
conscientização que contribui na sociedade de maneira coletiva,
pensando em minimizar problemas, encontrando soluções em
comunidade. Provocando o desejo de continuar na academia branca
e ocidental, que por momentos desejou ceifar meus objetivos.

SUMÁRIO 266
Faz parte do processo de empoderamento, quando pensa-
mos nas mulheres, sobretudo, em mulheres negras, é preciso retor-
nar para questões históricas para entender esse sentimento de infe-
riorização, sendo marcado pelo colonialismo. O direito das mulheres
chegou de maneira tardia, originando gerações inferiorizadas, sus-
cetíveis a riscos e situações de vulnerabilidade, refletindo um padrão
de dominação masculina, enfrentamentos para a autonomia pessoal
e tencionando as desigualdades (Durand et al, 2021).

Identifico as questões de gênero, classe social e raça, rele-


vantes ao conduzir esta carta reflexiva, dialogando pelo meio de uma
consciência crítica, bem como, observando uma mudança, que vai
desde aceitação de cabelos afros e nossa cultura negra, através de
teóricos negros, movimentos sociais e lideranças negras que foram
apagadas, silenciadas pelas mídias hegemônicas florescendo por
meio do empoderamento.

Para tal, questionando as estruturas de dominação, enten-


dendo que são as mesmas que determinam a pirâmide social, ope-
rando enquanto uma ferramenta excludente, patriarcalista, racista
e machista, atuando de maneira dominadora. Paulo Freire, você faz
essa explicação em Pedagogia da Autonomia (2015), evidenciando
um poder que se dá, de cima para baixo, ou seja, com o empodera-
mento e autonomia se propõe relações horizontais e não verticais,
discutindo as relações de poder, questionando as lógicas verticaliza-
das, ademais, a questão da imagem e estética.

Sr. Freire anseio por caminhos de emancipação coletiva


- emancipação social, que estão imbricadas quando se pensa em
empoderar contribuindo com o processo de empoderamento da
minha comunidade. Além do que, o empoderamento e autonomia
feminina tem sido uma busca constante na luta pela igualdade de
gênero e pela emancipação das mulheres. Neste contexto, os seus
preceitos, oferecem uma perspectiva valiosa para entender e pro-
mover o empoderamento das mulheres negras, suas ideias sobre

SUMÁRIO 267
educação popular, oferece uma perspectiva única para o empodera-
mento de todas nós, com base em seus princípios de diálogo, cons-
cientização e ação transformadora.

Logo, promovendo a participação ativa das mulheres nas


tomadas de decisões que afetam suas vidas e na construção de uma
sociedade mais igualitária. As inseguranças com relação ao gênero
se aplicam ao pensar nas vulnerabilidades sociais relacionadas a
uma vivência oscilante. O sujeito que vivencia essa condição nem
sempre tem a percepção da situação de vulnerabilidade, podendo
ter limitado o seu acesso a bens e serviços como educação, saúde,
segurança e estratégias promotoras de saúde.

Além do que, pode-se considerar os vínculos afetivos fragi-


lizados, enquanto disparador das discriminações etárias, étnicas, de
gênero ou por deficiências (Durand et al, 2021). Sendo assim, uma
estratégia de promover saúde, nutrindo a emancipação das pessoas,
no âmbito político e cultural, alavancando as atividades individuais
para coletivas, impulsionando transformações nas condições de vida.

Pilares para compreender os diferentes princípios: vida,


saúde, solidariedade, equidade, democracia, cidadania, desenvol-
vimento, participação e ação conjunta. Imbricando uma conjuntura
de ações, necessitando de políticas públicas saudáveis; gerando
ambientes favoráveis; de acordo com ações comunitárias; desen-
volvimentos de habilidades pessoais e reorientação dos serviços de
saúde ao pensar as populações em vulnerabilidade que acessam o
Sistema Único de saúde. Sendo a população negra, pobre e perifé-
rica, que majoritariamente 67% encontra-se como SUS dependentes
(Santos et al., 2020). Dados apresentados pela Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra (BRASIL, 2017).

Desta forma, promovendo o empoderamento das popula-


ções, a ação educativa que permite estimular a consciência crítica e
a autonomia, exigindo uma escuta atenta e comunicação dialógica,

SUMÁRIO 268
envolvendo a ação - reflexão - ação. Querido Paulo Freire, você
capacita as pessoas a atravessar os obstáculos e a buscarem o
enfrentamento das situações vividas e estimulando-as a uma nova
compreensão da realidade, seus princípios encontram-se com as
concepções que amparam a Promoção da Saúde. Urge, a atenção em
saúde ser modificada transcendendo o cuidado do corpo, resultando
na emancipação e autonomia das mulheres em torno de sua vida.

A autonomia se refere a nós mulheres como protagonistas de


nossas ações e práxis, estimulando o encorajamento, sendo neces-
sária a inserção das questões de gênero, classe e raça nas políticas
públicas e no processo de trabalho dos profissionais de saúde, sendo
o lugar que me inscrevo. Desvelando as condições de vida com um
novo olhar aos desafios encontrados nas rotinas dos sujeitos.

Para esse fim, a ampliação do conceito de saúde engloba


fatores relacionados à alimentação, informação, educação, cul-
tura, trabalho, renda e acesso a bens. Ademais, eu, mulher negra,
Enfermeira e pesquisadora elucido a perspectiva relacionada com à
vulnerabilidade, contrapondo o modelo unicamente bioló­gico para
o desenvolvimento e a manutenção da caracterização do processo
saúde-doença, é imprescindível abordar as implicações das popu-
lações negras, indígenas, LGBTQIAP+. Nosso compromisso é com
a descolonização da vida, sendo os fatores que atravessam o coti-
diano das pessoas em seus respectivos territórios relevantes para
desenvolver políticas públicas, abordando a equidade e profissionais
qualificados para atender às necessidades de todos/as/es.

Cordialmente, com muito afeto.

Florianópolis, 03/09/2023.

SUMÁRIO 269
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra:
Uma Política do SUS. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. Disponível em: https://bvsms.
saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_neg ra_3d.pdf.
Acesso em: 14 jun. 2023.

BERTH, J. Empoderamento. São Paulo: Pólen Produção Editorial, 2019.

DURAND, M. K. et al. Possibilidades e desafios para o empoderamento feminino:


perspectivas de mulheres em vulnerabilidade social. In: Escola Anna Nery, [S.L.], v. 25,
n. 5, p. 1-7, 2021. FapUNIFESP, SciELO.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51.ed. –


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

HOOKS, B. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo:
Elefante, 2019.

SANTOS, M.P.A et al. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. In:
Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 99, p. 225-243, maio/ago. 2020.

SUMÁRIO 270
CARTAS PARA
BELL HOOKS
Kátia Luzia Soares Oliveira15

E HOJE EM DIA,
COMO DIZER EU TE AMO
NO AMBIENTE ESCOLAR?
15 Este texto é assinado por mim, mas é fruto de esforços coletivos, de trocas com colegas de traba-
lho que ao longo da caminhada vêm se constituindo em amigos/as. Assim, gostaria de destacar as
colaborações de Igor Alexandre de Carvalho Santos, Gracy Kelly Andrade Pignata Oliveira e Sandra
Samara Pires Farias.
Prezada bell hooks,

Por ocasião do VIII Seminário de Educação Inclusiva do


Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA),
Campus Barreiras, organizado pela Coordenação de Apoio à Pessoas
com Necessidades Específicas (CAPNE) e ocorrido nos dias 13 e
14 de junho de 2023, fomos convidados a refletir sobre a temática
“Educar é um ato de coragem: e hoje em dia, como dizer eu te amo
no ambiente escolar?” Sobretudo num momento tão dramático,
quando há mais de três anos temos experimentado o endurecimento
de uma conjuntura histórico cultural marcada pelo aumento da dis-
seminação de discursos de ódio, essa é uma temática instigante e
provocativa, que de imediato nos coloca frente às suas pertinentes
elaborações sobre o amor como instrumento de emancipação e pro-
motor da justiça social (Hooks, 2021).

Como signo de uma dificuldade de se relacionar com outro,


com o diferente, muito dos discursos de ódio têm sido direcionados, e
vivenciados, especialmente no espaço da escola. As redes sociais, os
debates e movimentos populares de todo o mundo discutem ques-
tões como racismo, homofobia, xenofobia, capacitismo e local de fala
de cada um nesses contextos. Infelizmente, o que esses movimentos
sinalizam é a intensificação de ações perversas que massacram,
discriminam e excluem pessoas. O que entendemos à partir de suas
reflexões a respeito do amor é que faz-se necessário tomar partido.

Nesse viés, as reflexões que compartilhamos nesses dois


dias de Seminário podem ser vistas como uma insurgência contra as
forças que querem dominar a existência por meio de atos e discur-
sos antagônicos ao amor em contextos escolares. Contra a necro-
política estrutural e seus dispositivos políticos de dominação nos
propomos discutir sobre afetos ativos, biopotentes, que vão ampliar
nossas vitalidades mais salutares nos nossos processos formativos.
Inspirados em suas discussões, acreditamos no amor para além de
uma compreensão romântica, mas como elemento de uma luta de

SUMÁRIO 273
devires-revolucionários, como ação transformadora que vai qualifi-
car as nossas relações na Educação Inclusiva.

Por um longo período a diversidade foi ignorada tanto pela


sociedade como pela escola. No que tange aos espaços escolares,
a proposta era abertamente de eliminação das diferenças, tornando
homogêneos os contextos e as pessoas, sobretudo, aqueles que
apresentassem algum tipo de deficiência eram, primeiramente exter-
minados, depois, escondidos da sociedade, recolhidos aos espaços
domésticos e/ou instituições segregadas. Nesse contexto, “a dife-
rença era percebida como ‘desvio’, tendo como referencial a dico-
tomia normalidade x anormalidade, demarcando as fronteiras entre
aqueles que se encontravam dentro da média e os que estavam fora
desta” (Marques, 2006, p. 198).

Com o crescimento mundial dos movimentos sociais de


luta contra a discriminação e preconceito relativos à deficiência, o
movimento atual em favor da educação inclusiva traz, na esteira da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Brasil,
2012), um novo paradigma de escola que se pauta no reconheci-
mento e na valorização das diferenças, redefinindo em termos nor-
mativos e políticos, o conceito de deficiência. E mais recentemente,
a Lei Brasileira da Inclusão (Lei nº13.146/15) alinhada aos princípios
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Brasil,
2012), reafirma um discurso fundamentado no conceito de deficiên-
cia como o resultado da interação entre impedimentos corporais e
barreiras impostas pela sociedade. Esses novos marcos legais apon-
tam para o entendimento da inclusão como chamado à justiça social,
como valor inerente à cultura dos direitos humanos.

Mas, se no campo legal tem se verificado conquistas impor-


tantes, é no espaço da sala de aula que os desafios ganham materiali-
dade e alguns preconceitos resistem e persistem. Este entendimento,
reforça o papel e o compromisso dos professores e professoras e
demais agentes educacionais na garantia de uma educação pública

SUMÁRIO 274
de qualidade em que o paradigma da inclusão esteja entrelaçado
à sua identidade institucional. Com base no seu arcabouço teórico
sobre a Educação como prática de liberdade, de transgressão à rea-
lidades opressoras, o que se pretendeu nas discussões em torno da
temática foi potencializar a necessidade de construção de um com-
promisso ético e político com um devir pedagógico equânime no
contexto da Educação Inclusiva. Isto é, trata-se de um chamamento
para a elaboração coletiva de práticas educativas que efetivamente
materializem o que já está consolidado nos documentos legais, o
direito de todos/todas e de cada um/uma à educação de qualidade
no que tange ao acesso, permanência e conclusão.

Assim, em oposição às falas, posturas e atitudes que refor-


çam o capacitismo, a falta de respeito e de empatia nos processos
de ensino e aprendizagem, o VIII Seminário de Educação Inclusiva
do IFBA, Campus Barreiras, pretendeu ser “ um catalisador que con-
clame todos os presentes a se engajar cada vez mais, a se tornar
partes ativas no aprendizado [da Educação Inclusiva]” (Hooks, 20013,
p. 22. Acréscimo nosso). Assim, toda a programação do Seminário
voltou-se para a reflexão crítica em torno da promoção de adoção
de práticas pedagógicas amorosas e inclusivas que potencializem
a escola como um ambiente de criatividade, respeito aos diferen-
tes modos de aprender e afetos saudáveis com todas e todos as/os
estudantes e em especial com os que naturalmente foram e ainda
são invisibilizados socialmente.

Em sintonia com suas discussões entendemos que amar


verdadeiramente é mais do que dizer eu te amo, é como mani-
festá-lo, como torná-lo real em nossas práticas. Acreditamos que
entre muitas maneiras outras, encarar a educação sob a perspectiva
do amor, significa que “devemos aprender a misturar vários ingre-
dientes -cuidado, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso
e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta [efi-
ciente e não-violenta]” (Hooks, 2021, p. 47. Acréscimos nosso). Esses
são elementos que se acomodam perfeitamente com o adequado

SUMÁRIO 275
atendimento pedagógico da Educação Inclusiva que desejamos.
Partindo desses valores o Seminário apresentou e ressaltou diversas
e diferentes maneiras de dizer eu te amo no espaço escolar. Deixe-
nos contar-lhe algumas:

1. A performance de uma prática pedagógica amorosa supõe


não apenas refletir e debater a respeito do reconhecimento
das diferenças, mas requer a compreensão de que estas não
se constituem como obstáculos à formação, ao contrário,
devem ser exploradas em sua riqueza e potencialidade.

2. Uma educação amorosa que visa a inclusão de estudantes


com deficiência precisa superar práticas educativas em que
se valoriza uns em detrimento de outros, que coloque a dife-
rença em uma condição de inferioridade e menos valor. Uma
educação amorosa que visa a inclusão de alunos e alunas
com deficiência ou necessidades específicas de aprendi-
zagem, ao contrário, pauta-se no respeito aos diferentes
ritmos de aprendizagem, na admiração e reconhecimento
do outro e no diálogo.

3. O adequado atendimento pedagógico de estudantes com


deficiência requer, transformar o espaço escolar com vis-
tas à eliminação de barreiras e impedimentos que dificul-
tam ou limitam as experiências formativas de estudan-
tes com deficiência.

4. A pratica pedagógica amorosa deve partir do princípio


que “todos e todas são capazes de aprender” para daí se
questionar “como cada um aprende?” e enfim definir pro-
cessos de ensino (centrado no discente e sua necessidade
específica de aprendizagem) que tenham função a curto,
médio e longo prazo.

5. Assumir a premissa de que dificuldades no processo escolar


geralmente não é de aprendizagem, mas de ensino. O que

SUMÁRIO 276
nos convoca enquanto docentes a buscarmos metodologias,
estratégias e recursos que permitam alcançar os objetivos de
aprendizagem definidos.

6. Entender que o impedimento de aprender não está na defi-


ciência, seja de ordem física, intelectual, mental ou sensorial,
mas nas práticas que não buscam por meio de instrumen-
tos, recursos, tecnologia assistiva, ou atitude, acessibilizar o
conhecimento ao estudante.

7. O desejo de realizar uma prática pedagógica amorosa mui-


tas vezes nos apresentam realidades que balançam nossa
estrutura docente, pois em diversas situações leva-nos a
perceber que não sabemos tudo, e isso não tem problema
nenhum. O perigo está em admitir que não sabemos sem
nos propormos a buscarmos ajuda. É preciso manifestar
disposição de aprender.

8. Abraçar uma ética amorosa implica em cultivar uma prática


docente consciente: “estar consciente permite que examine-
mos nossas ações criticamente para ver o que é necessário
para que possamos dar carinho, ser responsáveis, demons-
trar respeito e manifestar disposição de aprender e [ensinar]
(Hooks, 2021, p. 130. Acréscimo nosso.)

9. Para criar um processo de aprendizagem amoroso seguindo


o princípio de que “todos e todas são capazes de aprender”
é preciso demonstrar “ interesse uns pelos outros por reco-
nhecer a presença uns dos outros.(...) qualquer pedagogia
radical precisa insistir em que a presença de todos seja reco-
nhecida”(Hooks, 2013, p. 17-18). A valorização da presença de
cada um precisa ser promovida pelos docentes de forma a
também incentivar os discentes a “reconhecer permanente-
mente que todos influenciam a dinâmica da sala de aula, que
todos contribuem” (Hooks, 2013, p. 18). Essa é uma conquista

SUMÁRIO 277
importante para que as pessoas com deficiência seja aco-
lhida não apenas pelos docentes, mas também pelos demais
discentes da turma, que pode então se constituir em “uma
comunidade aberta de aprendizagem” (Hooks, 2013, p. 18).

10. Abraçar uma prática amorosa é trabalhar com sinergia, é


entender que não estamos e não devemos estar sozinhos, o
discente não é somente responsabilidade do docente, ele é
antes de tudo responsabilidade da escola, e portanto o tra-
balho deve ser realizado de forma colaborativa, onde todos
somos responsáveis pelo processo de escolarização, desde
o acesso, permanência e êxito.

Como nos adverte, para trazer a ética amorosa para todas as


dimensões da nossa escola a mesma precisa abraçar a mudança.
Todos os dias. E uma vez que isso ainda nos pareça desafiador, a
premissa freireana de que “educar é um ato de amor e coragem”,
ganhar mais inteligibilidade histórica. Como você nos lembra,
fazendo referência a esse importante teórico brasileiro, a construção
dessa ética é algo à qual não podemos nos omitir, visto que como
nos adverte Freire a prática educativa é um compromisso social do
profissional com a realidade social, a qual é pensada “ não apenas
para nos adaptarmos, mas sobretudo, para transformar, para nela
intervir, recriando-a” (Freire, 1996, p. 28).

Trata-se de um compromisso que enfim nos exige coragem,


pensada aqui como “a força para agir em favor daquilo em que acre-
ditamos, para sermos responsáveis em palavras e ações” (Hooks,
2021, p. 128). Como membros da Coordenação de Apoio às Pessoas
com Necessidades Específicas (CAPNE), professoras e professores
da Educação Básica Técnica Tecnológica, Pedagogas, mães, pais
e parentes de pessoas com deficiência, essa coragem não há de
nos faltar, sobretudo quando somos inspirados por seu exemplo à
apostarmos na “ coragem de transgredir as fronteiras (…) do apren-
dizado como uma rotina de linha de produção”(Hooks, 2013, p. 25);

SUMÁRIO 278
a coragem para “nos aproximarmos dos alunos com a vontade e o
desejo de responder ao ser único de cada um” (Hooks, 2013, p. 25).
A nossa esperança, assim como sempre foi para você, é que mais
educadores e educadoras juntem-se à nós nesse esforço coletivo
por uma educação como prática de liberdade.

Barreiras (BA), 01 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: e educação como prática da liberdade. São Paulo:


Editora WMF Martins Fontes, 2013.

HOOKS, B. Tudo sobre amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefantes, 2020.

MARQUES, L. P. Implicações da inclusão no processo pedagógico. In: Inter-ação:


Revista da Faculdade de Educação da UFG, Goiânia, n. 2, v. 31, p. 197-208, jul./dez. 2006.

SUMÁRIO 279
Bruna Moraes Battistelli

A DOCÊNCIA
COMO FERRAMENTA
DE CUIDADO
Querida bell,

Te escrevo já com imensa intimidade daquelas que temos


com amigas de tempos. Você é minha amiga intelectual e esteve
presente em momentos marcantes de minha formação como pes-
quisadora e, principalmente, como docente. Nos relacionamos nos
últimos anos de muitas formas: tu é companhia frequente em minhas
salas de aula, uma companheira de escrita, escuta e batalha; é a
pessoa que me dá forças e me acolhe nos momentos de tempestade.
Te escrevo cansada pela quantidade de demandas que se impõem
e que me imponho. Mas, mesmo assim, te escrevo, pois aprendi
contigo e com Audre Lorde (2019) que o silêncio não me ajudará, que
as palavras precisam de espaço e que é com elas que a autorrecupe-
ração (Hooks, 2019) é possível.

Escrevo esta carta nos idos do ano 2023, vivemos as seque-


las da pandemia por covid-19 e também as consequências de um
governo ultrarreacionário de extrema-direita. Minhas/meus alunas/
os são, em sua maioria, pessoas muito jovens e trabalhadoras, que
estão tentando apostar em uma formação acadêmica em um cenário
não muito positivo para sonhar um futuro. As consequências emocio-
nais são visíveis nesse processo: os vejo imersas em intranquilidades
que se manifestam em crises de ansiedade, quadros depressivos e
crises atencionais que rotulamos como TDAH (Transtorno de Déficit
de Atenção e Hiperatividade).

E contra a esse projeto de mundo que vivemos e acreditando


nisso que tu nos ofertou, venho apostando em um projeto ético-
-pedagógico de docência inspirado no amor. A sala de aula é meu
campo de batalha e escolho para a luta estar contigo nessa trin-
cheira que vem sendo há tempos atacada. Vivo no Brasil, vivo mais
especificamente no sul do país, espaço em que a supremacia branca
tem se situado com força nos espaços formativos, e escolho, o amor
como projeto que me guia em busca de espaços de transformação
social. E para isso, dialogo com você e também com uma música que
gosto muito e que coloco um trecho abaixo.

SUMÁRIO 281
O amor é um ato revolucionário16

Quem vive amando dando amor e sendo amado

Colhendo o que lhe é oferecido

E a si mesmo se coloca ofertado

Se este está nu veste-o manto sagrado

Que ao que ama o infinito faz vestido

De deus e os deuses sim é o mais querido

Mesmo no escuro seu sentir é iluminado

Imagino que tu não conheças o Chico César. Um artista bra-


sileiro que escreve manifestos em forma de música, um artista que
parece ter lido sua obra para escrever esta música com a qual iniciei
nossa carta. Seguindo na música ele diz: “O amor é um ato revo-
lucionário/Por estados e religiões temido”; temidas também são as
docentes feministas como tu e eu, pois nos opomos aos processos
de dominação em jogo, quando nos propomos a pensar educação
como prática de liberdade. Somos corpos que incomodam, pois
questionamos com nossas existências todo um sistema de domi-
nação que vem há séculos sendo consolidado. Ao longo de minha
vida escolar e acadêmica já vi reproduções de uma violência que
atravessa corpos muito específicos, aqueles que fogem à norma. É
incrível como as violências que tu narra dos teus tempos de forma-
ção seguem sendo reproduzidas (Battistelli; Rodrigues, 2021).

E em 2018, na primeira vez que li um texto teu (ou melhor, um


livro inteiro), fiquei pensando no quão sensacional é uma intelectual
que nos convoca à luta e que lembra do quanto o objetivo final é um
projeto de mundo amoroso (Hooks, 2019) no qual possamos exercitar

16 É possível ouvir a música O amor é um ato revolucionário, de Chico César. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=vjbOt3cbjrQ&list=PLIjteCcXYLQahvnhFajrtAylzIWBivpLD. Acesso em:
29 set. 2023.

SUMÁRIO 282
uma existência preocupada com as ampliações de possibilidades de
vida de todes. Tu vais nos trazendo o amor como ética da liberdade e
como possibilidade para o trabalho do movimento feminista. E desta
forma, acompanhada por ti e teus livros, venho sonhando e buscando
uma docência que seja cuidadosa com as mais variadas formas de
existir; sempre em ato, assim como tu narra o amor (Hooks, 2020a);
quero que minhas/meus alunas/os se sintam seguras/os em minha
sala de aula. Desejo que minhas/meus alunas/os me reconheçam
como alguém preocupada com seu crescimento pessoal e implicada
com a transformação do mundo ao nosso redor.

Contigo tenho aprendido sobre feminismo, sobre interseccio-


nalidades, sobre amor, sobre a luta feminista, sobre escrita e sobre
ética. Com tuas ofertas intelectuais venho aprendendo, sentido uma
outra forma de estar docente, e já não preocupo tanto com que
outras/os dirão sobre como cuido de minha sala de aula. O que me
preocupa é enfrentar as violências raciais, de gênero, de sexualidade
e de classe; é criar espaço de acolhimento e cuidado para a diver-
sidade na sua radicalidade. Contigo aprendi que posso querer mais
da academia e posso exigir mais daquelas/es que ocupam o espaço
acadêmico. Estar contigo como intelectual que me acompanha no
meu fazer é uma maneira de te homenagear e honrar tua produção.

O amor é um ato revolucionário e a necessidade de encantar


a academia e a docência me fazem escrever esta carta. Ao longo
da minha formação venho mudando de estrada, produzindo meus
ziguezagues, ouriçando o pensamento com leituras que nunca
imaginei. Assim, sigo habitando a sala de aula com atividades que
produzem tempo para que minhas/meus alunas/os possam narrar a
si para além das histórias únicas (Adichie, 2019) que enclausuram as
pessoas em estereótipos que reduzem as possibilidades do existir.
Uma das atividades que gosto de reproduzir nas turmas pelas quais
passo é que elas/es possam me ofertar uma história que não costu-
mam ofertar para outras pessoas; que possam contar uma história
que seja sua e que conte quem elas/es são.

SUMÁRIO 283
Gosto dessa atividade, pois permite que muitas pessoas
narrem histórias particulares de dores, de sofrimentos vividos,
assim como aquelas histórias de conquistas e alegrias que elas/es
se sentem culpadas/os de contar. Essa atividade, por mais simples
que possa parecer, nos conecta e cria um senso de cumplicidade e
cuidado; sinto que muitas/os alunas/os se implicam de uma forma
bastante diferente depois dessa atividade, pois estabelecemos um
laço de confiança, já que comento todas as histórias ofertadas. Como
produzir uma docência interessada pelas múltiplas histórias que nos
compõem enquanto pessoas?

O amor é um ato revolucionário e tu nos mostra que a poli-


tização do mesmo é base para uma política feminista (Hooks, 2019,
p. 69). Ensinar é um ato político e contigo aprendi que o feminismo é
“uma política transformadora, uma luta contra a dominação na qual
o esforço é mudar a nós mesmas bem como as estruturas”. Pois é
disso que se trata essa carta: afirma a docência como uma forma de
lutar por mudanças que passam pelo individual de cada aluna/o e da
sociedade como um todo.

Escrevo esta carta após reler um capítulo do seu livro Erguer a


voz: pensar como feminista, pensar como negra. Que livro! Era um capí-
tulo sobre apostar no feminismo no contemporâneo e onde tu dizes: “a
verdadeira politização é um processo difícil, que demanda desistir de
determinadas maneiras de pensar e ser, mudar nossos paradigmas,
abrirmos para o desconhecido, o não familiar” (Hooks, 2019, p. 67).
Um diálogo direto com a docência, que deveria ser essa maneira de
pensarmos sobre os modos como vamos reproduzindo certas lógi-
cas de violência e dominação como coisas naturais. Politizar nossas
ações é apostar na mudança de nossos modos de pensar e que eles
possam ser mais conscientes do como reproduzimos certas lógicas
que submetem subjetividades e que oprimem modos de viver. A meta,
com todo esse trabalho, tu nos afirma que é podermos experimentar
uma política amorosa, ou seja, um mundo no qual entendemos que o
abuso e a violência não serão aceitas e que possamos nos relacionar
com mais cuidado, com mais responsabilidade.

SUMÁRIO 284
A sala de aula é lugar de reafirmação de existências múl-
tiplas, pois caso não seja, cairemos na formatação em massa que
a educação bancária supremacista branca reproduz como modelo
ideal de formação. Se quero que minhas/meus alunas/os pensem
criticamente, que aprendam a acolher suas/seus futuras/os alunas/
os, preciso dar o exemplo, e oferecer estratégias pedagógicas que
permitam que eles vivam a experiência do acolhimento em nossas
aulas. Aprendi contigo que é assim que ensinamos e construímos
uma comunidade de aprendizagem (hooks, 2020b), pois se quero
que minhas/meus alunas/os aprendam o valor das histórias como
estratégia de aprendizagem e aprendam a importância de criarmos
espaços de escuta ativa, preciso colocar essas ações em ato em meu
processo pedagógico.

Em quase todas as aulas faço algum momento em que elas/


es precisam se escutar, nem que seja em alguma brincadeira de
memorização de nomes. Não há espaço para uma pedagogia enga-
jada, e no meu caso, para uma psicologia da educação (disciplina que
ministro), se não abrir espaço para os exercícios de escuta ativa; que
nos tempos em que vivo estão cada vez mais escassos. Se quero for-
mar professoras/es implicadas com o cuidado, com as histórias que
constituem suas/seus alunas/os, preciso operar com os conceitos
que tu nos ofertou com tamanha generosidade. Sigo teus passos e os
de Audre Lorde, para que outras/os possam ensaiar passos docen-
tes que abram caminhos para uma política de formação amorosa.

Escrever uma tese sobre práticas de cuidado e produção


de conhecimento fez com que eu precise reafirmar as muitas exis-
tências de mulheres, e a relação que se institui entre sexo, gênero,
sexualidade, raça e classe na construção social do feminino e dos
feminismos. E mais recentemente, desde que iniciei meu percurso
como professora de Psicologia da Educação na formação de futuras/
os docentes, me pego pensando no quão importante é relacionar-
mos temas como aprendizagem e desenvolvimento humano a partir
dessa discussão. Não há como pensar o como o desenvolvimento

SUMÁRIO 285
humano se dá, sem analisarmos os impactos que os sistemas de
opressão causam nas vidas que são múltiplas em suas posicionali-
dades. Quem cuida da vida e do direito à aprendizagem de crianças
pobres no Brasil? Como acolhemos os cuidados que necessitam as
crianças queers em suas infâncias e adolescências? Como discuti-
mos o envelhecer em um país como o nosso que mata com tanta
facilidade a população negra? Como alimentamos com outras/os
referenciais as docências de nossas/os alunas/os? Quero honrar
intelectuais que como tu ousaram em seguir produzindo uma polí-
tica de produção de conhecimento sobre educação e docência para
além da norma hegemônica.

Tu seguiu, ao longo da tua carreira, tecendo as ideias do que


seria uma luta feminista, nos alertando que o processo de criar laços
é complexo e que devemos persistir em uma rede de solidariedade
baseada nas ideias feministas, a saber “o feminismo, como luta liber-
tadora, deve existir à parte de e como parte de uma luta maior para
a erradicar a dominação em todas as suas formas” (Hooks, 2019,
p. 62). Tu nos convidas a ampliar a discussão, a entender que há
relações de dominação para além da opressão patriarcal e entender
que mesmo as mulheres podem ser sexistas e não implicadas com o
que deveria ser uma política feminista (Hooks, 2019). Quando tu diz
que o pessoal é político, quero te dar um abraço, pois sigo ouvindo
pelos corredores acadêmicos que o pessoal não é acadêmico, não
é político. Tu, ao longo da tua obra, foi reposicionando algumas dis-
cussões, que ainda hoje, nos idos de 2023, nos permitem alargar as
fronteiras da sala de aula. Me despeço por aqui! Muito obrigada pela
acolhida e que sigamos conversando!

Um forte abraço, Bruna

Porto Alegre, 03 de setembro de 2023.

SUMÁRIO 286
REFERÊNCIAS:
ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

BATTISTELLI, B. M.; RODRIGUES, L. Contar histórias desde aqui: Por uma sala de aula
feminista e amefricana. In: Quaestio: Revista de Estudos em Educação, v. 23, n. 1, p.
153-173, 2021.

HOOKS, B. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Editora
Elefante, 2019.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2020a.

HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Editora


Elefante, 2020b.

LORDE, A. Irmã outsider: ensaios e conferências. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.

SUMÁRIO 287
Bárbara Magnani Rodrigues

APRENDENDO
A TRANSGREDIR
Querida, bell hooks!

Espero que esteja bem… Aqui quem fala é a Bárbara, uma


mulher branca de 22 anos daqui do Rio Grande do Sul. Em 2019,
ingressei no curso de Psicologia e, se tudo der certo, vou me formar
no início do ano que vem. Quando compartilharam o convite para
escrever uma carta a você, pensei: “não tenho tempo pra isso agora,
preciso me dedicar à escrita”. Algumas semanas depois, entendi que
precisava te dedicar esse tempo e cá estou. Estou no meu penúl-
timo semestre na faculdade e fazendo meu trabalho de conclusão de
curso. Vem sendo muito louco produzir um trabalho próprio, no qual
eu escolho que assuntos quero abordar e que autoras referenciar.
Tem sido tão “louco” que muitas vezes eu travo, como estou neste
exato instante. Engraçado isso, né?

Durante muito tempo esperei que chegasse o momento de


fazer meu TCC, do jeito que eu queria e sobre algo que realmente
gostasse de estudar. Um trabalho que tivesse minha cara e minha
escrita, seja lá do jeito que fosse. Foram tantos semestres reclamando
dos trabalhos engessados da universidade, sempre no mesmo molde
impessoal e arcaico de produzir conhecimento, ou melhor, um modo
de reproduzir conhecimento - já que se trata de um grande repeteco
de fontes sem importar a verdadeira opinião de quem escreve e nem
mesmo quem de fato são essas pessoas por trás do que estamos
lendo. Decidi que no meu TCC faria diferente, começaria me apre-
sentando, explicando quem eu sou, de onde eu falo e por que motivo.

Até aí tudo bem, o problema foi quando me deparei com o


que fazer depois disso. Eis então, que em uma reunião com minha
orientadora, eu estava completamente perdida em relação a minha
escrita. Escrever é doloroso e a academia nos ensina isso muito bem.
Escrever é sobre produtividade, tem que ser escrito de forma rápida
e rebuscada, usando palavras difíceis, metáforas inacessíveis e com
muitas páginas - pelo menos na Psicologia é isso que tentam nos
ensinar. Falar de experiências pessoais, de forma acessível e simples

SUMÁRIO 289
não é aceitável. Muitas vezes a Psicologia entende que um texto
simples é sinônimo de um texto raso e segue escrevendo parágra-
fos e mais parágrafos, quando poderiam resumir sua longa ideia em
uma singela frase. E mesmo criticando essa academia diariamente,
eu ainda continuo me contaminando com ela e caindo em suas
armadilhas. Eu estava insegura de escrever em primeira pessoa, por
exemplo. Queria conversar com as leitoras do meu trabalho assim
como estou fazendo contigo agora, mas não sentia que estava certa
fazendo isso nem mesmo que alguém pudesse me entender. Parecia
que havia algo errado…

E sim, a academia está errada. Seus moldes acadêmicos e a


relação de limitação que produzem sobre nossa escrita estão erra-
dos. Infelizmente, esses limites impostos não se restringem apenas
à escrita, trata-se de uma dominação sobre os corpos dos alunos,
provocando o adoecimento deles por meio dos recados mais sutis.
Eu sempre gostei de escrever por me sentir livre, poder desabafar
no papel e seguir os diferentes rumos que quisesse. Mas crescer
em instituições de ensino foi me moldando para que minha opinião
ficasse de lado, para que eu convocasse cinco autores “renomados”,
ou seja, homens brancos europeus e norte-americanos, para validar
minhas ideias. Poxa, tente dizer para uma criança que sua opinião só
tem importância quando é validada por outros adultos que ela nem
sequer conhece. Não estou falando aqui somente sobre escrita e sim
sobre o que esse funcionamento colonizador do ensino provoca em
seus alunos. O que realmente queremos ensinar em sala de aula? A
serviço de quem estão se dando esses processos de aprendizagem?
Qual é o real objetivo de tudo isso?

É irônico como muitos professores e pesquisadores ainda


defendem uma ciência única e universal, mas não querem que esse
conhecimento seja acessível para todas as pessoas. Venho pen-
sando muito sobre o papel da docência no ensino superior, em espe-
cial na Psicologia, e é justamente sobre isso que vou falar em meu
trabalho de conclusão. Se parar para pensar em cada experiência

SUMÁRIO 290
que tive enquanto aluna de graduação, me assusta saber que poucas
foram as que possibilitaram uma conexão sincera com as professo-
ras. Assim como você narra em seu livro Ensinando a transgredir: a
educação como prática da liberdade,
A grande maioria dos nossos professores não dispunham
de habilidades básicas de comunicação. Não eram auto-
atualizados e frequentemente usavam a sala de aula para
executar rituais de controle cuja essência era a dominação
e o exercício injusto de poder. Nesse ambiente, aprendi
muito sobre o tipo de professora que eu não queria ser
(Hooks, 2017, p. 35).

E também, sobre o tipo de psicóloga que eu não queria ser.

Me incomoda a impessoalidade em sala de aula, a exposição


desnecessária em que os professores colocam seus alunos, a falta
de cuidado com nossas questões pessoais e como elas podem apa-
recer em sala de aula. Me incomoda o uso excessivo de autoridade
dos docentes, o abuso desse poder e as estratégias passivo-agres-
sivas de se manterem no controle dos alunos chantageando-os. Me
incomoda o ego frágil de muitos professores acadêmicos que não
se comprometem com o ensino da graduação, com a necessidade
de constantes atualizações e reavaliações de sua prática docente,
mas que quando são criticados respondem com raiva. Me incomoda
quando alunos dizem que estão sendo desrespeitados e professores
devolvem ainda mais preconceito e violência.

Como encontrar espaço para uma pedagogia revolucionária


(Hooks, 2017) se não se tem um compromisso político para educar
(Hooks, 2017)? Lembro do texto A poeta como professora - a humana
como poeta - a professora como humana, de Audre Lorde (2020), em
que ela afirma que o modo como você sente, o modo como você vive,
o modo como você compartilha seus sentimentos, é assim que você
ensina. Às vezes sinto vontade de sair entrevistando professores e
perguntando por que eles decidiram lecionar em uma universidade
pública. Será que eles gostam de dar aula? Estavam em busca de

SUMÁRIO 291
estabilidade? Ou só queriam seguir pesquisando? Não sei. Confesso
que muitas vezes também tenho medo de perguntar. Será que todos
os alunos de mestrado e doutorado que pensam em se tornar pro-
fessores já se questionaram sobre o exercício da docência? Sobre
o que é ser professor? O que eles querem ou não querem reprodu-
zir em sala de aula?

Gosto de dizer que a educação é o processo de pensar cri-


ticamente, mas não ensinamos o pensamento crítico quando ten-
tamos moldar nossos estudantes ou quando nós, enquanto alunos,
tentamos nos adaptar à norma sem sequer contestá-la. Por vezes,
esquecemo-nos quem realmente faz a academia. Também fazemos
parte desta estrutura universitária ocidental que tanto criticamos. Os
professores também são a academia, nós alunos também somos a
academia. Se é um problema a forma como ela está, é um problema
de todos nós e precisamos encará-lo a partir das nossas diferentes
posições. Afinal, não se pode esperar que os alunos transformem
sozinhos o sistema de dominação presente no ensino superior, aca-
bando com o sexismo, o racismo, o capacitismo e a homofobia de um
dia para o outro. Que condições nós, enquanto discentes, realmente
temos de contestar a instituição e os professores para exigir uma
universidade que insiste em nos adoecer?

Acho que agora entendi o real motivo de ter travado na escrita


do meu TCC e ter vindo aqui conversar contigo, bell...

Comecei a escrever essa carta na semana passada e ao longo


dela muitas coisas aconteceram na universidade. Ontem à noite, um
aluno tirou sua própria vida num de nossos campus. Chamamos isso
de suicídio, muitos ainda tem medo de fala sobre, mas isso é assunto
para uma outra carta... Uma conhecida minha estava tendo aula nas
redondezas de onde se deu o ocorrido. A professora e os alunos perce-
beram a situação no mesmo instante, porém a aula seguiu sem sequer
um comentário. Ficaram mais 2h trancados em sala de aula para
“aprender” a matéria - que condições de aprendizagem são essas?

SUMÁRIO 292
Não demorou muito para relatos como esse de outras turmas apare-
cerem também. Ao mesmo tempo que isso tudo acontecia, em outra
sala de aula os alunos, já no final do semestre, estavam fazendo uma
prova. Novamente, as pessoas souberam o que aconteceu, o pro-
fessor soube o que aconteceu, mas o silêncio e a prova seguiram
ocorrendo como se nada tivesse acontecido.

Que universidade é essa que tanto defendemos? Nesses


últimos anos, devido a situação política do Brasil e dos desgovernos
enfrentados, a defesa da educação e das universidades públicas pre-
cisou se fortalecer ainda mais. Ao mesmo tempo em que para uns
preciso defender tudo que minha universidade é e representa, para
outros só consigo lamentar, sentir raiva e xingar essas estruturas.
No dia desse acontecimento eu não estava lá, minhas atividades já
tinham terminado e eu estava em casa, mas o sentimento de “perde-
mos mais um” seguiu presente. No dia seguinte, a universidade não
fez nenhuma nota ou pronunciamento. Seguiu compactuada com o
mesmo silêncio das salas de aulas. Não bastasse isso, realizou uma
postagem em sua rede social compartilhando sobre a posição da
instituição em determinado ranking internacional. Seria mesmo esse
o exemplo da excelência acadêmica? Às custas de quem as univer-
sidades ganham prêmios e reconhecimento?

No meu primeiro ano de faculdade, na alegria de caloura, fui


em uma festa acadêmica que aconteceria dentro do próprio cam-
pus. Quando cheguei lá, acompanhada de meus amigos, o evento
mal tinha começado e a música foi cortada seguido de um pedido
para todos irem embora. O motivo: havíamos perdido outro aluno.
É absurdo parar para pensar e lembrar de quantos acontecimentos
como esses, ao longo desses 5 anos de graduação, ocorreram. O
tamanho adoecimento mental que a universidade provoca nos alu-
nos e que ninguém quer se envolver, muito menos repensar sobre o
que está acontecendo de errado. Muitos sequer reconhecem que há
algo de errado. É absurdo pensar que para manter as posições de
poder dentro de uma universidade seja preciso adoecer seus alunos.
Isso precisa acabar antes que acabem de vez com a gente.

SUMÁRIO 293
Essa carta não é um ataque aos professores ou às univer-
sidades. É um pedido de socorro junto ao desabafo de uma aluna
esgotada. É triste e revoltante ver essa realidade no ensino superior,
uma combinação de violências e formas de dominação que tam-
bém se fazem presentes em outros contextos. Ainda assim, segue
sendo um problema nosso. Afinal, somos nós alunos que precisa-
mos lidar com isso diariamente sem suporte algum. Precisamos nos
fortalecer e encontrar locais seguros de compartilhamento e acolhi-
mento, para seguirmos nos apoiando e enfrentando essa academia
colonizadora. Também segue sendo problema de vocês: professo-
res e trabalhadores.

Queremos uma educação como prática de liberdade, uma


educação realmente emancipatória, e não uma educação que só tra-
balha para reforçar a dominação (Hooks, 2017). Quando questiono
como se dá o exercício da docência, para além de pensar sobre as
práticas diárias em sala de aula, é preciso propor uma política de
formação docente. As estruturas não mudam sozinhas, não é uma
mudança nos currículos e na forma de ingresso à universidade que
garantirá a ausência de opressões dentro dela. Precisamos que os
docentes se envolvam nessa transformação, pois também fazem
parte dessa estrutura de dominação. Assim como todo o restante da
comunidade acadêmica também precisa se envolver se realmente
queremos alguma mudança.

Olha bell, comecei a te escrever sem nem saber por onde


começar e agora termino essa carta um pouco mais leve por saber
que não estamos sós. Queria agradecer pela sua companhia nesses
anos todos. Se logo que entrei na faculdade me deparei com seus
textos, vou sair dela ainda agarrada a ti e a todos os teus ensina-
mentos. Sei que ainda vou voltar a transitar pelos espaços acadê-
micos em algum momento, mas nunca mais ficarei quieta frente
a tantos absurdos. Espero que a gente nunca desista de acreditar
na educação transgressora, enquanto uma pedagogia revolucio-
nária de resistência e profundamente anticolonial (Hooks, 2017).

SUMÁRIO 294
Seguiremos juntas em meio a tantas outras que insistem em defen-
der e lutar por uma educação verdadeira e politicamente engajada
com a nossa transformação social e com o fim dos sistemas de
dominação. Obrigada pela oportunidade de partilhar contigo um
pouco deste intenso percurso da graduação.

Abraços carinhosos, com muito amor e leveza que seguem


sendo semeados por aqui…

Bárbara Rodrigues,

Porto Alegre, 03 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2.ed. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.

LORDE, A. Sou sua irmã: escritos reunidos. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

SUMÁRIO 295
Márcia Rasia Figueirêdo

CARTA PARA
BELL HOOKS
“A prática do amor como potência
para a construção de uma nova
sociedade” (Bell Hooks).

Esta não é uma carta de amor.

Nem seria ridícula se fosse. Nem é para Fernando Pessoa.

É uma carta de amor nada convencional, mas de denúncias,


de perspectivas e ética pela vida.

Então, começo esta carta cheia de alegria e amor para com


você Bell Hooks, não apenas como amor/afeição, mas como você
mesma sinaliza no seu livro Tudo sobre amor: novas perspectivas
(Hooks, 2000) mas um amor como ação. Li seu livro pela primeira
vez no meu mestrado, não jovem, na melhor idade, como dizem os
estudiosos. Mas gratidão pela oportunidade.

Como coordenadora pedagógica numa escola pública muni-


cipal, convivo diariamente com as mazelas, as indisciplinas, as dores
emocionais, as histórias de vida com lacunas irreparáveis da falta de
um pai, da falta de uma mãe e sobretudo a FALTA DE AMOR. E incluo
aí, a falta de amor por parte de professores também. E de que amor
estamos falando? E de que amor podemos falar Hooks?

Vivemos numa sociedade onde não se enaltece a importân-


cia do amor. Isto é fato. Fica evidente no seu livro em questão, que
estamos falando de um amor não apenas pontual, momentâneo e
assistencialista, mas um amor que precisa de limites, e que se res-
ponsabiliza pelos seus atos. Falar de amor na contemporaneidade,
pode ser sim um ato revolucionário e de denúncias, já que o desa-
mor é a ordem do dia.

Esta carta é um convite a soltar a criatividade, a paixão e o risco


por explorar novos caminhos que permitam as escolas terem práticas
de liberdade em seus currículos fechados, fragmentados e preconceitu-
osos. Falar de amor neste contexto, pode ser sim, uma ação libertadora

SUMÁRIO 297
com vistas num novo horizonte. Pode ser sim, uma questão de ética
pela vida, muito bem entendido nas suas palavras.

E diante deste cenário escolar, brevemente retratado e sina-


lizado no livro, percebemos que infelizmente, a prática do amor real-
mente fracassou. Concordo!

Não vemos o amor numa construção coletiva. E sim, num


processo individualista, autoritário, de poder e não inclusivo.
Numa identidade racional. E não como potência alavancadora
de uma nova sociedade.

E quais seriam as formas de desamor?

Numa sociedade que prega a moral e a ética e dá exemplos


contrários, concordo com as lições de amor nos referidos capítu-
los do livro, onde a justiça, a honestidade e a verdade deveriam ser
premissas fundamentais.

A forma de dominação masculina para com nós mulheres,


o racismo, o sexismo, a homofobia, o imperialismo e a exploração
são formas declaradas sutilmente no movimento das escolas, nos
livros didáticos, no currículo oculto e prescrito evidentemente. O
amor é o que se faz. Então, se faz o inverso é por isso que ele fra-
cassa, não é mesmo Hooks?

Dentre os valores citados no decorrer do livro, a vida espiri-


tual é uma parte que muito gostei, e que podemos sinalizar para a
educação com muita tranquilidade. Uma vez fiz um curso somente
pelo nome que me chamou atenção “Finitude Humana”. No curso,
além das indagações sobre vida e morte, foi colocado que quando
conduzimos nossos filhos pelo caminho da espiritualidade, embora
claro, tudo é muito relativo, estes filhos tem a possibilidade de seguir
o caminho da retidão e da ética. Podem ser seres melhores neste
mundo tão violento.

SUMÁRIO 298
A vida espiritual é também citada no livro como algo impor-
tante na sociedade. Uma sociedade que partindo do vazio espiritual,
do isolamento e da solidão, incentiva o consumismo desenfreado
como algo para dar alegria, e, no entanto, a questão do ter é mais
importante que o ser. E os que não podem, fracassam. E os que não
têm, são considerados fracassados. Sendo assim, a escola trans-
borda alunos com ansiedade, com autoestima baixa e com pouca,
ou quase nada de inteligência emocional.

E para fazer um link com seu outro livro Ensinando a trans-


gredir: a educação como prática da liberdade, poderia dizer que
a forma de amor na proposta do livro pode se conectar com a
questão do transgredir.

A primeira vez que li sobre esta palavra na educação, foi


no livro Transgressão e mudança na educação, do autor Fernando
Hernández, em 1998. Segundo o dicionário, transgredir é passar
além do limite razoável. Do latim transgredi, ir além, ultrapassar
limites, violar, de trans, através, além, “pisar”. E o que seria mesmo
transgredir como prática de liberdade?

Transgredir como um aspecto que define a intenção de


mudança (Hernandez, 1989). Transgredir a visão do currículo escolar
centrada nas disciplinas, entendidas como fragmentos empacota-
dos, mantem formas de controle e de poder por parte daqueles que
se concebem antes como especialistas do que como educadores.
Transgredir como forma de um amor transformador e revolucionário.
Não seria assim senhora Hooks? Não seria transgredir no amor?

No pensamento de Hernández (1998, p. 45): “ ...Transgredir a


incapacidade da escola para repensar-se de maneira permanente,
dialogar com as transformações que acontecem na sociedade, nos
alunos, e na educação”

Ensinar neste sentido, não é somente transmitir os obje-


tos de conhecimento impostos no currículo oficial ou como mero

SUMÁRIO 299
transmissor de informações, mas de participar do crescimento
intelectual e espiritual dos alunos (Hooks, 2013). Transgredir para
desmistificar conceitos e visões e, sobretudo, agir sobre o mundo a
fim de modificá-lo.

Concordo plenamente e literalmente com você.

Precisamos fortalecer nossos alunos para o enfrentamento


com a sociedade e com a hegemonia. E essencialmente, não
reforçar os sistemas que aí estão. Fazer uma revolução de valores,
onde você Hooks cita muito bem Martin Luther King. Parabéns
pelas sábias palavras.

Tenho vontade de não concluir esta carta de indagações e


provocações, mas temos que terminar ou melhor fechar um parên-
tese. Pois então Hooks, termino esta carta com dois autores, escri-
tores e poetas porque não os chamar assim: Paulo Freire e Rubem
Alves. Não porque gosto deles, mas porque ambos podem se
conectar com seu pensamento. Um, fala no livro “A alegria de ensi-
nar” 2010 e o outro que você muito conhece Paulo Freire, no livro
“Medo e ousadia”, 1986.

Rubem Alves fala da alegria de ensinar, que em tempos difí-


ceis não se ensina a felicidade, não se tem a coragem de assumir
este conhecimento. Ensinar a alegria é um ato de ação, como você
fala nos livros, um ato de fortalecimento da consciência de si, quem
é, sem amarras e imposições. E nosso Paulo Freire envereda pelo
caminho do sonho do professor sobre a educação libertadora, que
nada mais é que nos libertar através da luta política na sociedade e
no mundo. Luta esta de todos nós!! Luta para acabar com os pre-
conceitos e com tudo que nos aprisiona, que nos faz tristes e sem
motivação para viver.

Agradeço por todo ensinamento dos seus livros.

SUMÁRIO 300
Termino esta carta com um abraço oceânico no seu cora-
ção. Pois todo abraço, ou quase todos, têm o dom de acalen-
tar com amor e poesia.

Barreiras (BA), 28 de agosto de 2023.

REFERÊNCIAS
ALVES, R. A alegria de ensinar. Campinas: Papirus, 2000.

Dicionário Didático de Língua Portuguesa: ensino fundamental I .2 ed. São Paulo:


Edições SM, 2011.

HERNÁNDES, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto


Alegre: Artmed, 1998.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora Elefante, 2000.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução


de Marcelo Brandão. São Paulo, 2013.

SUMÁRIO 301
Guilherme Vasco Marques

ENSINANDO
A EVOLUIR
Querida Bell Hooks,

Venho por meio dessa carta expor visões e pensamentos


que só você entenderia, como também falar sobre mim e minhas
vivências. Há tantas coisas para escrever, mas tentarei ser breve com
todas as aflições que residem em mim. Recentemente, tive o prazer
de ser aprovado no curso de Arquitetura e Urbanismo, um curso, até
então, elitizado e majoritariamente branco. No livro “Por um Ensino
Insurgente em Arquitetura e Urbanismo”, o capítulo 8 aborda o ensino
de arquitetura e a dupla invisibilidade das arquitetas negras, que
reflete sobre o racismo e o sexismo dentro do campo universitário e
de trabalho no meio arquitetônico.

A leitura do texto me fez pensar em como a sociedade se


moldou numa relação de poder, em que uma determinada parcela
de indivíduos se acham superiores a outros que, além de criar con-
flitos, ela gera a exclusão de povos, costumes, diversidade cultural
e de conhecimento. Dessa forma, vale ressaltar a segregação racial
e de gênero nesses espaços, barreiras as quais foram relatas pelas
mulheres negras entrevistadas nessa obra, que, infelizmente, conti-
nuam na sociedade atual.

Assim, penso ser importante o desenvolvimento de um pen-


samento decolonial, para trazer mais pluralidade em nossas vivencias
e reconhecer nossa autenticidade cultural, política, econômica e ide-
ológica. Mesmo diante de todos os fatores sociais acerca do racismo
na sociedade, muitas pessoas negam sua existência e afirmam que
todos possuem oportunidades iguais. Diante disso, quando escreveu
(Hooks, 2013) que abríssemos a cabeça e o coração para visuali-
zar além do comum, criar novas visões a partir da reflexão a fim de
desenvolver um movimento contra as fronteiras, você me fez pensar
muito no assunto e em como é importante refletir sobre a sociedade,
deixarmos de ser ignorantes, avançarmos para uma revolução de
valores e defendermos a diversidade.

SUMÁRIO 303
Bell, há pouco tempo me deparei com o conceito de “pala-
vra mundo”, do educador e filósofo brasileiro, Paulo Freyre, e como
o processo de leitura do mundo precede a leitura da palavra, um
passo importante para a nossa alfabetização. Com tal entendimento,
busquei me situar nessa evolução como ser e questionar tudo o que
precede meu desenvolvimento intelectual. Acredito que a vida tem
infinitos mistérios, são tantas dúvidas, experiências, lugares. Talvez
esse seja o ponto, não saber de nada, caber a nós desvendar tudo
isso. É aí que entra a leitura, como uma ponte, a passagem direta
para milhares de experiências. Imagino que você sabe muito bem
sobre isso, em suas próprias palavras (Hooks, 2013, p. 37):
No período entre o término de um projeto e o começo de
outro, sempre enfrento uma crise de sentido. Começo a
questionar sobre o sentido da minha vida e sobre o que
vim fazer aqui na Terra. É como se eu, mergulhada num
projeto, perdesse a noção do eu.

Não costumo escrever, mas assim como um escritor, assim


como você, lendo, me perco nesse universo e muitas vezes nem
quero sair dele. O mundo é cheio de questões delicadas e comple-
xas, muitos momentos prefiro me abster delas e me afundar nos
meus pensamentos literários. Porém, é essa vivencia do mundo real
que nos molda, o que seria de mim e da minha relação com a leitura
se o meu eu do passado não estivesse disposto a enfrentar todos os
obstáculos da vida? É nesse momento que é importante pensar em
como foi esse processo.

Lembro-me de ser apenas uma criança curiosa que se depa-


rou com um grande desafio. Falar “otorrinolaringologista”, a maior
palavra do dicionário, para uma criança era fascinante, motivo de
orgulho. Após conseguir pronunciá-la eu queria mais, queria mais
palavras difíceis e não usuais do dia-a-dia, e assim, desde então,
venho colecionando palavras esquecidas pelo mundo e adotando-
-as. Além disso, contribuiu para o carinho enorme que tenho pela
leitura, por tudo o que ela pode me proporcionar entre páginas e

SUMÁRIO 304
grandes capítulos. São essas palavras do mundo que me compõem
e gostaria de, um dia, descobrir suas palavras mundo. Deixarei aqui
uma que amo, “hipopotomonstrosesquipedaliofobia”, ela é designada
a fobia de palavras longas ou de uso incomum, irônico, não é? Mas
essa é a vida, Bell, uma completa ironia.

Admiro tudo o que você representa. Espero poder contribuir


para o mundo pelo menos 1% do que você foi capaz. Ser mulher,
negra, professora, feminista e ativista nesse mundo irônico demanda
força, coragem e desejo, de um dia mudá-lo. Muitas áreas de atua-
ção profissional e acadêmica precisam dessa mudança, tal como a
arquitetura e o urbanismo, é necessário de vozes que explodam o
mundo, vozes que são silenciadas e esquecidas. Vozes como a sua,
que movimentam e deixam marcas necessárias nesse muro que nos
separa da igualdade, seja ela de gênero ou racial.

É difícil entender e aceitar em como a sociedade continua


presa a pensamentos segregantes, sabemos que houve uma certa
evolução na convivência nos últimos anos, mas ainda há muito o
que melhorar, de difundir pensamentos decoloniais e de garantir
uma democracia racial justa. Assim como a nossa formação como
leitores, a prática da revolução e a busca por igualdade são impor-
tantes para uma evolução social digna, afirmando a solidariedade e
buscando integrar socialmente toda a nossa rica pluralidade.

É assim, cara Bell Hooks, que finalizo esse texto, agradecendo


por tudo que fez durante seus anos de vida. Continuarei acreditando,
junto a sua memória, num mundo ideal e de esperança.

Carinhosamente, Guilherme.

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução
de M. Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

SUMÁRIO 305
Giovanna de Jesus Camargo

A VIDA ENTRE
O APRENDER
E O ENSINAR
Cara Bell Hooks,

Pensei muito em como colocaria em palavras tudo o que


venho pensando recentemente sobre algumas de suas obras e como
foi toda a luta que percorreu sobre o misto de direitos e deveres
que ainda lutamos para tê-los. Não faz muito tempo que iniciei meus
estudos no curso de arquitetura e urbanismo. Talvez você me per-
gunte o que eu quero falar sobre essa área e pode acreditar que
tem muitas coisas que gostaria de discutir e como minha percepção
sobre a vida acadêmica, social e pessoal podem ter grandes influên-
cias da arquitetura, do meio social em que estamos situados atual-
mente e como o machismo é recorrente nessa área. Como garantir
de alguma maneira uma posição e ganhar respeito em uma carreira
tão concorrida? Muitas mudanças aconteceram na educação e
acredito que essas mudanças estão mais voltadas a como enxer-
gamos crises e como podemos lidar com elas, desde a luta contra o
racismo, o sexismo, as dificuldades no mercado de trabalho ou saber
como abordar assuntos para ampliar a visão de mundo de quem
está sendo ensinado.

Quando paro para pensar sobre a amplitude cultural que o


Brasil possui, muitas vezes penso em como é difícil manter a resis-
tência e a coragem de impor seus princípios para que cada um seja
respeitado por suas escolhas. Ao ler Ensinando a transgredir (Hooks,
2013), mais especificamente o capítulo 8, entendi mais sobre a
necessidade de pessoas que se sentem superiores a outras por suas
doutrinas, têm de se mostrarem a todo tempo como dominantes e
isso mostra muito sobre como o sentimento de domínio é passado
de geração em geração, principalmente no campo político. Percebo
cada vez mais uma grande divisão em meu país, quando se fala
em conservadorismo e cultura tradicional, já que essa tradicionali-
dade ressalta como o homem branco tem a necessidade de estar
no centro, desvalorizando assim o grande poder cultural que aqui
temos, tornando ainda mais evidente a discriminação racial como é
abordada em seus livros.

SUMÁRIO 307
Até pouco tempo, vivíamos em constante tensão entre
esquerda e direita e a cada dia que se passava era perceptível como
o conservadorismo era colocado como algo que devesse ser seguido
por todos, sem ser questionado, dando a quem não concordasse com
tais pensamentos a sensação de impotência e medo. Ao falarmos de
conquistas, devemos falar também de todo o processo de lutas por
trás delas, algo que ao longo dos séculos foi se tornando cada vez
mais recorrente. Torna-se cada vez mais arriscado a busca por nos-
sos direitos e nossa voz na sociedade, que se mantém firme contra
a pressão do legado colonialista, ainda presente nos dias atuais, nos
fazendo resistir a pensamentos e padrões repetitivos de descrimina-
lização e ódio recorrente. O que evidencia ainda mais a hierarquia
social que impõe posições aos indivíduos desde raça, gênero e etnia
como é citado em “Em defesa da cultura africana” (Fanon, 1980).

Desde minha infância, fui ensinada sobre valores e princípios,


princípios esses que sempre foram voltados ao respeito entre as dife-
renças e comportamento social. E é por meio desta carta que posso
te contar mais sobre como o seu legado foi importante e como tudo
pelo que lutou e que ainda continua lutando, com todo o suporte que
nos deixou para ser passado por meio de educadores e educadoras,
merece sim ser admirado e espalhado cada vez mais. A leitura me
abriu muitas portas e foi por essas portas que entrei em mundos que
até então eram completamente desconhecidos.

Com todo o suporte literário que temos, não poderia deixar de


citar o grande filósofo e educador Paulo freire (Freire, 1989) que, em
seu livro A importância do ato de ler, nos mostra sobre nossa visão de
mundo e como a leitura na infância nos move a sentir, criar e recriar
nossa percepção sobre a vida, nossos conceitos e nossas memórias.
E é falando de memórias, querida Bell, que me vem à mente meu
primeiro contato com a leitura e como a partir daquele momento
eu só queria aprender mais e mais sobre as palavrinhas escritas em
livros que até então por mim eram considerados algo muito chato.

SUMÁRIO 308
Sobre vivências e leitura de mundo, arrisco-me a dizer que,
como qualquer criança, sempre fui um tanto curiosa. A partir dessa
curiosidade, vivia me perguntando se ter tanta imaginação me faria
ser uma adulta menos focada, mas acho que, por ser tão curiosa,
pude buscar conforto e respostas no campo literário, já que o mesmo
também é feito para pessoas curiosas e com pensamentos inquietos
se eu definisse minha leitura de mundo em uma palavra, eu lhe diria
mágico. Você deve se perguntar se tal palavra representa a carac-
terística de algum momento e eu diria que sim, afinal de contas
“mágico” vem do livro de título O mágico de Oz ⁴ , sendo o primeiro
livro infantil que li por conta própria e que me fez ser tão interessada
pela leitura desde minha infância.

Seria então, “mágico” a descrição do que sinto ao me aprofun-


dar entre as entrelinhas? Creio que seria a sensação de felicidade ao
ter o contato inicial com meu livro preferido de infância e então busca-
rei mais conhecimento e continuarei a me aprofundar mais através das
entrelinhas. Portanto, cara Hooks, a partir dessa carta pude relembrar
de diversos momentos da infância, e como cada um deles foi impor-
tante na criação da minha leitura de mundo, agradeço por seu legado,
pois, a partir dele é possível entender mais sobre ressignificação.

Com grande respeito, Giovanna.

REFERÊNCIAS
FANON, F. Em defesa da cultura africana. Tradução de Isabel Pascoal. Portugal: Sá da
Costa Editora, 1980.

HOOKS, B. Uma revolução de valores. Tradução de Marcello Brandão Cipolla. São


Paulo: Editora Martins Fontes, 2013.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Autores Associados, Cortez, 1989.

SUMÁRIO 309
Danuza Kovaleski Machado

POR UMA
COMUNIDADE
AMOROSA
Querida bell,

Desde a última carta enviada no ano passado, muita coisa


mudou! Para te lembrar, sou aquela mulher, assistente social, que
vinha buscando pistas para esperançar através dos teus escritos.
Mas que também encontrou acolhimento para sua caminhada pes-
soal, o que, aliás, nunca o conceito de Comunidade esteve tão pre-
sente pra mim, a necessidade do outro para me ver, sem perder de
vista também minha identidade.

Bom, no ano passado, havia te contado sobre meu novo


emprego no Centro de Atenção Psicossocial - álcool e drogas em
Porto Alegre/RS, da mediação do grupo de mulheres que realizo
junto com minha colega psicóloga Rita Barboza. Então… ele comple-
tará um ano mês que vem! E vem sendo lindo o trabalho construído
com as mulheres participantes juntamente com as demais colegas
que também fazem colaborações, motivadas pela proposta. O grupo
cresceu, tem feito trabalhos que deixam sua marca e propósito,
inclusive minha colega e eu apresentamos o projeto este ano em um
congresso internacional de saúde mental e para a própria instituição
em um seminário de vivências.

A ideia que tem como proposta a escuta, o cuidado e aco-


lhimento no coletivo, vem se desenvolvendo e trazendo resultados.
O grupo que iniciou com cinco participantes e hoje chega a doze
mulheres, chegou com a ideia de trabalhar questões relacionadas
ao universo das mulheres, pelas demandas trazidas nos atendi-
mentos individuais como: a condição de mães solo, com filhos em
acolhimento institucional, de mulheres responsáveis pelo cuidado
de outros, sofrendo etarismo, medo do abandono, abusos, relacio-
namentos tóxicos, entre outras situações que tinham a ver com a
estrutura social vigente como o patriarcado, o racismo, o machismo
e toda a ordem de opressões que envolvem as mulheres e implicam
em seu cuidado em saúde mental.

SUMÁRIO 311
Com isso, o livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas tem
estado presente sempre, tanto junto ao grupo de mulheres, com-
pondo com outros materiais como também junto ao coletivo bell
hooks, coordenado pela professora Luciana Rodrigues, vinculado ao
Programa de Pós-graduação de Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul que tem por objetivo:
a pesquisa, estudo, extensão e formação em políticas do cuidado
com o aporte de epistemologias feministas e anticoloniais. Embora
esta obra esteja muito presente, acredito que seja pelo livro Erguer
a voz: pensar como feminista, pensar como negra que venho me
erguendo e junto a realização do meu trabalho também buscado
alcançar outras mulheres.

E neste encontro dialético, me encontrando, olhando,


revendo, construindo, o que como disse, também tem contribuído
para meu desenvolvimento pessoal, hoje com 40 anos, estou em fase
de mudança de CEP pela primeira vez, experienciando coisas novas
como me arriscar a ser lida, a erguer a voz quando percebo alguma
opressão que possa estar velada, buscando criar, estar e participar
de espaços que me exercitem essa voz.

Voltando ao grupo, criamos mecanismo de construção que


possam conversar com espaços maiores, através de nossas ações
ampliadas, onde todes sejam participantes, além das mulheres,
contando também outras colegas do CAPS e da rede de atendi-
mento, que compõem temáticas que dialoguem com opressões do
cotidiano vivenciados.

Saindo dos lugares de zona de conforto, venho timidamente


me arriscando e colocando meus propósitos no mundo, buscando
construir algo de forma mais ativa, crítica, especialmente com as
pessoas que compõem o coletivo ao qual participo também me
energiza, me nutrindo de força como um local que me encontro em
pares mesmo que os pontos que nos liguem sejam diferentes, possa
encontrar formas e estratégias de erguer a voz.

SUMÁRIO 312
Desde o início do ano passado, participando deste coletivo,
me encontrei com pessoas que partilhavam angústias que, mesmo
sendo diferentes das minhas, encontravam-se em pontos comuns
pelo desejo do rompimento com o sistema opressor, ecoando no
grupo, através de cada um e uma, formando um espaço seguro para
além dos campos da pesquisa, um lugar de troca e de acolhida afe-
tiva, que dava corpo e nome aos incômodos vivenciados por todes.
Nesta caminhada também venho me construindo feminista, a partir
da observação e da escuta de outras mulheres e de me encontrar
nelas, mesmo quando nossas correntes forem diferentes, como
diz Audre Lorde (2019).

Este ano tive o prazer de fazer parte da organização de uma


atividade de extensão mediada pelo coletivo que tinha como dispa-
rador o livro Tudo sobre o amor, foram quatro encontros, ocorridos
as sextas-feiras e pensados sob a coordenação das professoras
Bruna Battistelli e Luciana Rodrigues junto com as colegas Raiane
Medeiros Pinheiro acadêmica do curso artes visuais e Gabriela da
Cruz Miranda, direcionados a professores e educadores sociais da
rede pública e particular de Educação e Assistência Social. Nestes
encontros trabalhamos sobre os capítulos - a clareza: pôr o amor em
palavras, justiça: lições de amor na infância, compromisso: que o amor
seja o amor-próprio, comunidade: uma comunhão amorosa - onde
compus a mediação de abertura com o capítulo reflexivo a infância,
foi realmente muito lindo! E claro, ficou evidente a necessidade de
um espaço que acolha amorosamente quem cuida, educa, associado
a falar sobre as diferenças, que dê voz e evidencie as discrepâncias
no processo educacional de crianças, jovens e suas famílias.

É urgente, necessário pensar a educação para além dos


muros dos espaços institucionais, de planejamento e de poder. O
desenvolvimento junto a políticas públicas que estavam estejam
implicadas em políticas de cuidado que forneçam suporte a cons-
trução de comunidades para realização do cuidado, pensado como
algo de responsabilização coletiva o que perpassa inclusive pensar

SUMÁRIO 313
a saúde física e mental de quem o realiza. Gostaria tanto que visse
o quanto foi lindo, empolgante, inspirador, pelo atravessamento pro-
porcionado através das falas manifestadas.

Acredito que te mencionei na carta anterior, mas volto a repetir


aqui: não acredito que exista mudança e/ou implicação em algo que
não seja provocado por meio do afetar-se e para tal, necessitará que
ocorra o atravessamento. Tenho percebido através de espaços como o
oportunizado na atividade do Tudo sobre o amor que apenas quando
dialogamos com nossa identidade, de onde viemos, como fomos cons-
truídos, os espaços e as pessoas que cooperaram para nosso processo
subjetivo, é que conseguimos trilhar um modo de Comunidade, aqui
aprendido com tuas escritas esse encontro como autorrecuperação.

Em tempos onde a velocidade das tecnologias do consumo,


advindas das estratégias do capitalismo que não viabilizam espa-
ços onde se oportunizem pensar uma política do cuidado como
o ofertado nas dependências de uma universidade pública ou em
um espaço de saúde do Sistema único de Saúde - SUS que tenha
como proposta além da patologização, da medicadicalização, refle-
tir o quanto nosso processo subjetivo se dá pela interação com o
ambiente e a realidade social que vivemos. Pensar fora da caixa do
que esta culturalmente e hegemonicamente constituído pode sugerir
algo transgressor, afinal precisamos manter a “neutralidade”.

bell, teu legado escrito pelas tuas vivências nos fornece pis-
tas para esperançar na identificação e construção de bases para o
afeto e o afetar-se, ensinando modos de comunidade, tua presença
bibliográfica tem contribuído muito para a autorrecuperação, erguer
a voz e pensar a forma que nos relacionamos por novas perspectivas
do amor de forma política.

Seguimos em nossas pequenas revoluções no encontro com


o outro, buscando tecnologias que viabilizem “erguer a voz”, na hori-
zontalidade e no afeto.

SUMÁRIO 314
REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. Tradução de Kenia
Cardoso. São Paulo: Elefante, 2021.

HOOKS, B. Erguer a Voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Cátia
Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução de Stephanie Borges. São
Paulo: Elefante, 2020.

LORDE, A. Irmã Outsider. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

PIEDADE, V. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017.

ROCHA, J. Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS. 5.ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

SUMÁRIO 315
Jenilza Rodrigues dos Santos

SENTIDOS DAS
EXPERIÊNCIAS
VIVENCIADAS
POR BELL HOOKS
Querida bell hooks!

É com enorme satisfação que escrevo esta carta para lhe


parabenizar pelas experiências compartilhadas nos livros Ensinando
a transgredir: a educação como prática da liberdade (Hooks, 2017)
e Ensinando o pensamento crítico: sabedoria prática (Hooks, 2020),
com os quais propus me deleitar e sentir um pouco do seu calor, em
relação ao AMOR, que demonstra pela educação por meio destes
escritos (Hooks, 2017; 2020).

Inicialmente eu desejava realizar a leitura de um livro, mas


percebi que seus escritos relembrava minha experiência acadêmica
e profissional, além de trazer reflexões riquíssimas acerca da educa-
ção que vivenciamos nos dias atuais. A partir daí, resolvi me deleitar
com a leitura de mais uma de suas obras.

Foi gratificante compreender o quanto a escola, influenciou


na construção de suas escritas em relação suas experiências com a
educação. Atualmente, assim espero, não existem mais escolas que
perpetuem a segregação racial, mas encontramos outros fatores que
interferem no processo de aprendizagem dos alunos como: esco-
las mau estruturadas, professores desvalorizados e desqualificados,
a ansiedade e o bullying que afetam a qualidade de desempenho
de nossos alunos, bem como as questões de gênero e as dificul-
dades de aprendizagem.

Diante das leituras que realizei, me peguei muitas vezes indig-


nada, porque você idealiza tanto um ensino que eu vejo estagnado,
mesmo depois de tantos anos atuando como educadora e coorde-
nadoras pedagógica, onde tenho buscado realizar intervenções para
que os professores compreendam o espaço da sala de aula como
“caminho para a prática da liberdade”, trazendo para o chão da sala
um jeito de ensinar que não seja partilha de informações, mas o lócus
de entusiasmo para aprender, onde alunos e professores ampliem o
seu conhecimento (Hooks, 2017; 2020).

SUMÁRIO 317
E aí, surgiu o questionamento? Aonde podemos encontrar
estes professores? Mas, entendi também que nem todos os profes-
sores com qual encontrou em seu caminho, foram comprometidos
com uma “boa educação”.

E nos dias atuais, podemos afirmar a existência de profis-


sionais com esta preocupação? Encontramos escolas e educadores
com uma pedagogia engajada, como você propõe, que favorece aos
educandos o conhecimentos, que oferecem uma formação, incentiva
o compromisso social e a luta pela igualdade?

Me recordei do meu processo de alfabetização, onde tive a


oportunidade de ter uma professora bem dinâmica que junto com
um grupo de alunos bem atuante e interessado, conseguimos obter
o letramento e nos anos iniciais tive o contato com profissionais
dedicados que fizeram a diferença em minha vida.

Com esta recordação, desejaria estar sentado ao seu lado,


tomando um café... para discutirmos se estou sendo realista demais
ou muito pessimista por desacreditar que haja uma luz no fim do túnel.

Neste mesmo momento, também me recordo do meu


papel de pesquisadora e investigadora. Sendo assim, o que tenho
a dizer é que existe, entre milhões e milhões de educadores, àque-
les que buscam fazer a diferença na sua prática pedagógica. E, é
neste caminho que devemos nos amparar e buscar fazer a nossa
parte, de modo que possamos abraçar mais educadores para traçar
este mesmo percurso.

Enfim, vamos partir para o tratamento das contribuições


adquiridas a partir da leitura de seus livros, que trazem uma série
de temáticas, abordadas de forma crítica, levantadas pelas situações
que vivenciou, além das leituras e diálogos realizados com Paulo
Freire, que no livro Pedagogia da Esperança (2016) e Pedagogia do
Oprimido (2005), discute a importância de uma prática pedagógica
voltada para o atendimento das classes menos favorecidas, objeti-

SUMÁRIO 318
vando sua emancipação, o desenvolvimento do pensamento crítico,
o atendimento aos seus direitos, o exercício da sua cidadania e a
capacidade de compreenderem o seu papel na luta por melhores
condições sociais. (Freire, 2016; 2005)

Quando você retrata sobre a importância da pedagogia


engajada, digo que muitos dos educadores com o qual tive oportuni-
dade de trabalhar e coordenar não estavam preocupados com o que
é essencial para nossos alunos aprenderem, são poucos àqueles
que estimulam o pensamento crítico e a gestão democrática, ou seja,
não têm na educação “o caminho para a liberdade”, como destaca
Paulo Freire, no livro Pedagogia da Autonomia (2021), quando diz
que através da educação, o professor precisa ousar e praticar esta
pedagogia libertadora, buscando estratégias capazes de aguçar as
competências necessárias ao educando para o desenvolvimento da
sua autonomia intelectual, pessoal e profissional (Freire, 1986).

Em meio este radicalismo, me recordo do Ensino Médio,


onde cursei o Magistério em um colégio da rede Estadual da cidade
de Barreiras, na Bahia, espaço onde vivenciei meus primeiros conta-
tos com as leituras de Paulo Freire, dentre outros, além do prazer de
encontrar professores que conduziram minha formação acadêmica
e profissional com uma prática voltada para a pedagogia engajada.
Neste período, me deparei com professores que ministravam suas
aulas com entusiasmo, que enquanto educadora, sempre busquei e
encontrei parceiros memoráveis que me auxiliaram na busca destas
conquistas: fazer da sala de aula um espaço de esperança, que valo-
rize o diálogo, o trabalho coletivo, o desenvolvimento da criatividade, a
autoestima, o compartilhamento de histórias, suas aflições e desejos
(Hooks, 2017; 2021).

Ao contrário do que ocorreu na sua formação superior, tive a


oportunidade de vivenciar com a pedagogia engajada, no segundo
grau, como estudante do magistério e em seguida no Ensino Superior.
É lógico que ainda existiam profissionais que exerciam uma prática

SUMÁRIO 319
pedagógica bem distante do que seria considerado essencial, para o
desenvolvimento do pensamento crítico, o que contraria os interes-
ses das classes dominantes (Hooks, 2017; 2021).

Seus livros, traz para discussão pontos importantes, que


precisam fazer parte da prática pedagógica profissional e pessoal
dos professores que buscam uma educação liberadora, por meio da
pedagogia engajada. (Hooks, 2017; 2021). Para tanto, por meio dos 32
ensinamentos que traz nesta obra, você também apresenta estraté-
gias que podem ser utilizadas em sala de aula, além de proporcionar
aos educadores a oportunidade de repensar a sua prática pedagó-
gica. E ai, me veio um questionamento... E eu? O que posso fazer?
Continuar como formiguinha, trazendo estes pontos de reflexão para
discussão, junto aos meus professores. Não é porque estou desa-
creditada, que depois de anos, o qual também vivenciei experiências
positivas enquanto educadora e coordenadora, é injusto achar que
um dia não teremos educadores buscando desenvolver uma peda-
gogia engajada. (Hooks, 2017; 2021).

Dessa forma, suas leituras me levou a imaginar um caminho


a ser trilhado e assim acreditar que ainda podemos ser capazes de
conquistar uma melhoria no ensino realizado em nossas escolas.
Como você enfatizou, não podemos transgredir. Sei que uma série
de fatores internos e externos que influenciam na aquisição desta
mudança, mas como diz Paulo Freire, não podemos perder a espe-
rança de busca por uma educação libertadora.

Esta autorreflexão sobre minha prática me faz pensar em


novas maneiras de enxergar o mundo, com um novo olhar. As ques-
tões e preocupações que você discute no livro Ensinando o pensa-
mento crítico, como humildade, humor, multiplicidade de saberes,
saber ouvir os alunos, aguçar a conversação, a inteligência emo-
cional e o diálogo, deixando de ser transmissores de conhecimento,
onde os alunos são os receptores de saberes. Desse modo, acre-
dito que, a partir da pedagogia do engajamento, com o desenvol-

SUMÁRIO 320
vimento das habilidades que favoreçam aos alunos o pensamento
crítico é que poderemos vislumbrar uma educação libertadora que
conduza nossos alunos ao pensamento crítico e à reflexão acerca
assuntos diversos que precisamos discutir em sala de aula (Freire,
1986). Neste momento, estaremos oportunizando aos nossos alunos
a capacidade de desenvolver perspectivas e expectativas, na busca
por um mundo mais igualitário e democrático (Hooks, 2017; 2021).

Gostaria de acrescentar que tanto em seus livros, como nas


obras de Freire (1986; 2016; 2005; 2021), existe uma ênfase nas contri-
buições do trabalho coletivo e da importância do estabelecimento de
uma relação de respeito, empatia, valorização humana entre professor
x aluno x professor, na busca e troca de conhecimentos visando a
construção de uma sociedade mais consciente e livre de preconceitos.

Como responsável pela formação continuada de professores,


lhe digo que a leitura de seus livros se fazem importantes dentro das
universidades, principalmente para os acadêmicos que vão atuar na
área de educação. Seus ensinamentos irão contribuir para a prática
pedagógica inicial destes profissionais no sentido de conduzir suas
ações no intuito de desenvolver o pensamento crítico e a luta por
seus direitos como cidadão.

Por fim, encerro esta carta com as palavras de Larrosa (2014),


no livro Tremores, que destaca a importância das nossas experiên-
cias, como uma ação que traz sentidos e significados para nossa vida.
Do mesmo modo, seus livros também trazem essa discussão, uma
reflexão acerca dos sentidos e significados de nossas ações, sobre
a forma de educar e ver o mundo em nossa volta, centrando assim a
condução de nossa prática para a construção de uma educação para
a liberdade, com a adoção de novas formas de ensinar e aprender.

Barreiras, 15 de setembro de 2023.

Atenciosamente,

Jenilza

SUMÁRIO 321
REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução:
Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2017.

HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020.

LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.


Coleção: Experiência e Sentido.

FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 10.ed. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1986.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido.


23.ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 42.ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 66.ed.


Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021.

SUMÁRIO 322
Mariana Almada Viana

É SOBRE O AMOR
QUE HABITA EM VOCÊ
E CHEGA ATÉ MIM
Minha querida e ousada bell,

Hoje, diferentemente dos outros dias, permiti-me experimen-


tar a sensação de um preguiçoso e quente dia domingo. Acordei
e logo ali ao meu lado estava A ciranda das mulheres sábias, onde
Clarissa Pinkola Éstes diz: “sente-se comigo um pouco...vamos fazer
uma pausa deixando de lado todos os nossos inúmeros afazeres...
haverá tempo suficiente para todos eles mais tarde”. Sentei-me à beira
da cama e lembrei-me do amor, lembrei-me de ti. Nesse contexto
me veio a memória de minha ancestralidade, minha infância, meus
sonhos de juventude, meus amores... Muito para te contar e talvez para
além das palavras, o que está escrito nas entrelinhas ou nas estrelas.

Faz tempo que não nos falamos, desde o Ensinando a


Transgredir, o que me trouxe lembranças de Paulo Freire, meu mestre
em essência e seu também, algo que nos aproxima ainda mais, e
então bateu aquela saudade danada de ti. Aqui estou.

Preciso fazer-te uma confissão: desde jovem, quando percebi


que você assinava o seu nome com letras minúsculas em artigos e
livros, tornei-me curiosa dessa escrita, e o que aprendemos desde
pequenas nas escolas é a importância do uso das letras maiúsculas,
sobretudo, em nomes próprios. Depois de você, mudei minha con-
cepção desse uso e vi que a força está mesmo na essência, está nas
subjetividades, está nas entrelinhas do que representa uma pessoa
e o que ela escreve, desenha, canta etc. Entendemos nessa situação
que a letra maiúscula faz com que a palavra saia da horizontalidade,
é uma letra que cresce frente as demais.

Poderíamos, no âmbito das relações sociais, construir pers-


pectivas horizontais, acompanhado seu exemplo no modo de grafar,
ninguém mais forte ou maior que ninguém. Desta forma, visualmente
já temos uma leitura social, se é que me fiz entender. Sua atitude
política de enfrentar a gramática me fortaleceu e fortalece, você sabe
que sou professora e nesse meio, o correto e normal é nome próprio,

SUMÁRIO 324
nome das disciplinas, dos bimestres... todos com suas respectivas
letras maiúsculas, mas em cada sala de professores, sala de aula que
entro, levo a força social das letras minúsculas.

Sobre a nossa velha infância!!! Como era bom entender


que todos se amavam, ou ao menos mostravam se amar, é o que
sempre ouvíamos atentamente nas frases, histórias, contos, músi-
cas, religiões, na família... e eram tantos ensinamentos: a deusa do
amor fértil, belo em Oxum, Vênus, Afrodite... os contos infantis com
final feliz, todos eles com mulheres desde a branca Branca de Neve,
Cinderela, Bela Adormecida... e ali na infância era primordialmente o
lugar de muitos traumas e alguns deles que nos marcaram quando
o assunto era amor, inclusive “amar como Jesus amou”. Cresci e
entendi tudo isso, não do modo como dita a sociedade, mas como
um amor que transcende, que transforma e como você enfatiza,
imbuídos de ética amorosa.

Lembrei-me aqui, de sua ousada obra Tudo sobre o amor:


novas perspectivas, onde você faz uma abordagem sobre o amor sob
vários aspectos, que ao longo da carta vou citando.

Mas a adolescência chega e com ela mais histórias, mais


complexidades da vida, e como afirma Renato Russo “é preciso amar
as pessoas como se não houvesse amanhã”, são trechos dos con-
juntos de complexos edípicos da infância, nas frases como “quero
colo”, “posso dormir aqui com vocês?”, “estou com medo tive um pesa-
delo”, e transferidos para a adolescência como “vou fugir de casa”,
“só vou voltar depois das três”. Existem músicas que hoje ainda nos
remetem aos traumas ainda mal resolvidos na fase adulta, e vieram
exatamente da infância, são as chamadas decepções que, ou nos
fazem crescer ou nos derrubam. Quer mais uma música para essa?
“Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Considerando que
sua escrita é permeada pelo senso estético, você há de entender o
que pretendo com essas associações de ideias.

SUMÁRIO 325
Como você bem nos lembra em sua obra que acabei de citar,
faz-se necessário conhecermos as várias vertentes do amor, vou até
me permitir abrir o índice para citá-las aqui, a saber: a clareza, a justiça,
a honestidade, o compromisso, a espiritualidade, os valores, a ganân-
cia, a comunidade, a reciprocidade, o romance, as perdas, a cura, bem
como o próprio destino, elementos primordiais para que não apenas
entendamos, mas vivamos a práxis. Eu estava pensando exatamente
em cada um desses elementos e quais obras de artes, literárias, pen-
samentos estariam associados a eles. Quando nos debruçamos sobre
uma leitura como essas, criamos asas e por isso fui para o mundo das
artes. Sua obra nos faz mergulhar no amor. Ah o amor!

A clareza, a justiça e a honestidade da forma como você nos


apresenta, nos levam a momentos da infância, referem-se ao amor,
falar dele, quanto aos castigos que nos são impostos. Esse é o lugar
onde nos encontramos frágeis sob a tutela emocional, social, política,
religiosa etc. de outras pessoas, diga-se, de nossa família de origem.
São os complexos de édipos onde desenvolvemos sentimentos amo-
rosos e agressivos no âmbito inconsciente. Me lembra muito a música
“Velha Infância”, do relacionamento que faz bem, imbuído do senti-
mento de pertencimento, do aspecto social, cantar, brincar e esse seria
o primeiro momento da criança. Mas também traz as sensações das
injustiças e negligências do adulto com a infância e o que nos sufoca
devido o conjunto de sensações vividas na infância. Acrescentaria aqui
o romance, uma outra discussão acerca das complexidades freudianas.

Falando isso aqui para você lembrei-me do “Vigiar e punir”,


do Foucault. “Em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior
de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições
ou obrigações” e mais uma vez as prisões. Uma chuva de pensa-
mentos artísticos me invade aqui, poderia citar ainda a obra “O grito”,
de Edvard Munch, um artista que cresceu num lar traumático e no
momento do grito, obra expressionista que fala por si, sentia angús-
tia, desespero e dor. Como também não poderia deixar de lembrar
da música “Boys don’t cry”, a repressão dos sentimentos masculinos.

SUMÁRIO 326
Fui longe hein, bell!!! Mas citemos ainda o compromisso, a
espiritualidade e os valores, outros elementos que, para dar mais
sabor ao amor, talvez nos obriga à nossa individualidade. Falo sobre
o amor que habita em ti e chega até mim, namastê! Vivemos num
momento em que segurar as mãos umas das outras é essencial, nós
mulheres negras que sabemos dos nossos sofrimentos, tantas vezes
esmagados nas entrelinhas da nossa trajetória, olhemo-nos pois.
Por isso bell, tão inspirada, você nos trouxe a valorização do com-
promisso pessoal e por consequência, coletivo. O quanto o cuidado
intrapessoal que buscamos em nossas entranhas se faz presente em
nossa ancestralidade, e a força da espiritualidade no ânima, numa
reflexão contínua de quem sou, onde estou e para onde vou como em
Paul Gauguin, e com todas as que vieram antes de mim, com honra
e respeito. E não poderia deixar de cantar “Pra todas as mulheres”:
“Abafaram nossa voz, mas se esqueceram de que não estamos sós…
essa dor é secular e em algum momento a de curar, diga sim para o
fim de uma era irracional, patriarcal!”.

Como disse a pouco, minha querida e ousada bell. Sim,


ousada! Fala das completudes do amor e não esquece de uma ques-
tão fundamental: para onde vamos com os nossos sentimentos de
posse e a necessidade de consumo do ser amado? Seria amor? Que
amor? A ganância e a perda, me lembram duas situações artísticas
que dispensam explicações. Como você diz, a ganância requer ganho
de tempo, então pela rapidez de que somos engolidas pelo tempo é
necessário fazer logo, correr, correr, correr. O consumo, o uso que cai
no desuso. Me lembra Bauman e o “Amor líquido” e nada melhor que
Vinícius de Moraes com a célebre frase “Que seja eterno enquanto
dure.” E eis o tempero para que o amor seja lúcido: a inexistência do
sentimento de posse, o que me lembra “O pequeno príncipe”, cujo
controle não é uma forma de amor.

Vamos, por sublimação como diria Freud, trazer mais dois de


seus capítulos, onde você fala das dimensões acerca do amor de
comunidade e de reciprocidade. Chegamos a um ponto fundamental,

SUMÁRIO 327
as relações interpessoais que buscam uma “comunhão amorosa”,
cada um/cada uma em suas funções, e quem diz isso? Você! Rs A
riqueza dessa dimensão é entender quem é comunidade, que de
antemão não se restringe ao campo familiar, vai além.

Ah bell! Quanta coisa! Como é bom dialogar contigo! Hoje


mais que nunca, vim mesmo falar contigo a respeito das novas
perspectivas sobre o amor, e muito me tranquiliza conversar contigo
sobre esse assunto, visto que da mesma forma que Paulo Freire te
inspira, você me inspira, e assim vamos inspirando outras pessoas.
Ontem conversava com meu filho e ele disse-me que era muito difícil
transformar o mundo por conta das pessoas más. Dei um leve sorriso,
mas logo me emocionei e respondi que primeiro transformarmos a
nós mesmos e ampliamos aos pequenos outros mundos nos quais
fazemos parte, com diz Mahatma Gandhi, “seja a mudança que você
quer ver no mundo.” Então busquemos ser!

E sobre as mais diversas formas de amar, como canta Alcione


sob a composição de Wilson Moreira “esse amor me envenena, mas
todo amor sempre vale a pena”, não sei se é isso, mas importante
conhecer e viver para ver. E vou fechando minhas reflexões à luz de
Jung: “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar
uma alma humana, que sejamos apenas outra alma humana.” É isso!

Minha querida, um grande, fraterno e negro abraço! E que


possamos fazer novas trocas em breve.

REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020. HOOKS, bell.

RUSSO, R; VILLA-LOBOS, D; BONFÁ, M. Pais e Filhos. In: As Quatro Estações, 1989.

SAINT-EXUPÉRY, A. ​O pequeno príncipe. ​Rio de Janeiro, Editora Agir, 2009.

SUMÁRIO 328
Thamires Gambôa dos Santos

CARTA A UMA
ANTIGA ANCESTRAL
Prezada bell hooks…

Sempre fui maravilhada pelo encantamento das emoções-


-sentimentos e me deixava sentir antes de qualquer coisa. Talvez
isso tenha me levado a situações não tão agradáveis, mas também,
porque eu não havia sido ensinada (assim como a maioria de nós) a
como sentir minhas emoções-sentimentos e racionalizá-los de uma
forma amorosa e inteligente na minha vida. Contudo você bell hooks
(2020, p. 16) nos convida a pensar em seu livro Tudo Sobre o Amor:
novas perspectivas, que “abraçar uma ética amorosa significa inserir
as dimensões do amor em nossa vida cotidiana e são elas: cuidado,
compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento”.

Em sua busca por aprender mais sobre o amor, você afirma


que é inteligente e perspicaz tornarmos o amor tangível, como
quem aprende a segurar e escutar as próprias vulnerabilidades
com cuidado e sabedoria nos processos ao decorrer da vida. Nos
convocando a inserir a inteligibilidade emocional em todas as áreas
das nossas vidas em um desafio, estrutural, diário de encontros e
reencontros de si. Saber que o amor, tem muito a ensinar das novas
perspectivas de velhas ancestrais na dança dos ventos cíclicos que
as encruzilhadas, da vida, nos convidam a escutar.

Estudando com um olhar mais crítico, a vulnerabilidade é um


assunto caro para um mundo organizado em categorias hegemôni-
cas brancas heteropatriarcais e separáveis, muitas dessas dicotomias
ocidentais colonizadoras foram cristalizadas como, por exemplo, o
antagonismo criado entre razão e emoção que dificultaram o enten-
dimento e a relevância da inteligibilidade das emoções-sentimentos
de formas mais fluidas e multidisciplinares em todos os âmbitos da
vida dos indivíduos, justamente por ser dado à razão uma importân-
cia e credibilidade maior. Pensando nisso, não podemos nos render
às mentiras e representações coloniais contadas sobre o amor, as
quais muitas vezes versam mais sobre relações de poder do que de
afeto. É necessário sabermos quais histórias e estórias de amor que-
remos viver e contar a nós mesmos e aos mundos.

SUMÁRIO 330
Como nos provocou a escritora nigeriana Chimamanda
Ngozi Adichie (2019, p. 23) “O poder é a habilidade não apenas de
contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua his-
tória definitiva”. Essa imagem colonial violenta conduz os indivíduos
na construção de sua subjetividade e de um pensamento único
sobre si e sobre o amor. Como defende a artista e psicanalista por-
tuguesa Grada Kilomba (2019), “a linguagem também é transporte
de violência, por isso precisamos criar novos formatos e narrativas.
Essa desobediência poética é descolonizar.” Considerando que as
narrativas poético-epistemológicas também disputam lugares de
poder, estamos em constante luta na construção de estratégias para
a sobrevivência epistemológica-poética e o protagonismo na elabo-
ração de conhecimento através dos nossos corpos e subjetividades
atravessadas-interseccionadas por diversos marcadores políticos e
sociais. E nesse sentido, bell hooks (2020, p. 39) “Uma mulher que fala
de amor é suspeita. Talvez isso ocorra porque tudo que uma mulher
esclarecida teria a dizer sobre o amor representaria uma ameaça e
um desafio às visões que nos foram oferecidas pelos homens.”

Para podermos significar e representar o amor por nossas e


novas perspectivas com cuidado, compromisso, confiança, respon-
sabilidade, respeito e conhecimento para que possamos construir
“textos espelhos” como Tatiana Nascimento diz, em sua tese de
doutorado “Letramento e tradução no espelho de Oxum: teoria lés-
bica negra em auto/re/conhecimentos”, “esses são textos em que me
miro ou mirei pra entender melhor a mim mesma, e de certa forma ir
me constituindo enquanto sujeita. Textos como espelhos.” Os quais
possamos criar, nos reconhecer e nos amar.

Estimada bell hooks, obrigada por acreditar e pesquisar


o amor com a sua forma única de ver e sentir o mundo. Agradeço
por compartilhar o amor como uma ação com força e sensibilidade,
tornando possível a reflexão sobre a soma do amor com a responsa-
bilidade que podemos ter em relação à criação de novas imagens e
representações no que concerne o amor, políticas de cuidado e afeto

SUMÁRIO 331
para nós mesmas e para as nossas comunidades. Para que o amor
não seja simplesmente uma quimera da qual muitos têm medo de
sentir ou explicar. Com o propósito de falarmos de amor a partir dos
nossos corpos e de nossas escrevivências.

Partindo da intenção de possibilitar políticas emocionais


entendendo que a emocionalidade pode ser e é tão concreta quanto
qualquer coisa que possamos ver ou tocar, para além da subjetivi-
dade singular de cada indivíduo, sentir é uma das tecnologias mais
avançadas que a humanidade experimenta e o amor é parte dessa
construção. As emoções e os sentimentos não são meras abstrações,
as subjetividades produzem movimentos concretos. E tentar buscar
instrumentos teórico-metodológicos que interpretem a fluidez das
emoções-sentimentos para refletir sobre as possibilidades dos sen-
timentos, dos seus poderes de criatividade e ação no interior das
subjetividades e no exterior das sociabilidades, em seu campo sim-
bólico de trocas corporificadas é uma tarefa desafiadora. Emoções
e sentimentos são, também, possibilidades de abraçar a diferença
como uma categoria que promove potências e crescimento entre os
indivíduos e os mundos por eles criados. Como a reflexão:
[...] A poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da
nossa existência. Ela cria o tipo de luz sob a qual basea-
mos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivên-
cia e mudança, primeiro como linguagem, depois como
ideia, e então como ação mais tangível. É da poesia que
nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e
que só então pode ser pensado [...] (Lorde, 2019, p. 44).

Escrevo essa carta em sinal do meu amor às palavras e as


formas poéticas de expressão, em sinal do meu amor por mim, a par-
tir de uma grande coragem de revelar um jeito para continuar coe-
xistindo nesse tempo fraturado pelo trauma do ódio às diferenças.
“O amor é uma ação” de organizar e estruturar políticas emocionais
de vida. Obrigada bell hooks e a todes aqueles que acreditam que
podemos criar sociedades melhores e mais amorosas.

SUMÁRIO 332
Escrevo cartas desde pequena, incentivada pela minha mãe,
fui uma criança muito afetuosa com as pessoas e com as palavras,
na adolescência utilizei a escrita como uma forma de me entender,
desabafar e também de falar sobre paixões e amores, mais adulta a
escrita é um lugar de afeto onde posso desenvolver minha sensibi-
lidade, meu amor por mim mesma, minha imaginação e criatividade
na elaboração de narrativas-mundos da minha lesbiandade, como
Tatiana Nascimento diz (2014, p. 14) “uma escrita-corpo, nomeia,
celebra e define a lesbiandade negra que Lorde elabora como ‘a
própria casa da diferença’”. As mulheres negras artistas e intelectuais
inauguram reflexões traçando pensamentos que são pautados pela
relação com a linguagem e com a autodefinição. Elas tensionam a
insuficiência de categorias hegemônicas heteropatriarcais brancas
produzindo análises e conceitos que apenas a lente de seus próprios
corpos poderiam e podem criar. Foram e são essas mulheres, e muitas
outras mulheres negras, que me inspiraram a escrever esse poema:

BELL HOOKS
Em letras maiúsculas, porque eu quero gritar TUDO SOBRE
O AMOR
Igual quando o Rico Dalasam canta na poesia “O que eu sei
sobre o amor eu inventei”
E eu tô inventando jeitos para me amar. Novas perspectivas
de afeto. Novas políticas do sentir.
Antes de permitir outro corpo me tocar e parece que a estrada
é muito mais sobre paciência e a bell hooks disse “querer amar ainda
não é amar.”
Eu quero muito que tu me ame, Thamires.
E Upile Chisala disse “Às vezes parece que queremos o amor
mais do que o amor nos quer”
E eu… eu já quis tanto o amor a ponto de não me amar.

SUMÁRIO 333
Eu já quis tanto o amor a ponto de me anular.
Eu já quis tanto o amor a ponto de me machucar.
Eu já quis tanto o amor a ponto de tentar controlar.
E bell hooks disse: “O amor não prevalecerá em qualquer situ-
ação em que uma das partes queira manter o controle e/ou poder.”
Eu já quis tanto o amor a ponto de...
Doar o que quer que seja. E nada dentro de mim sobrar. E
tudo se quebrar.
A ponto de não acreditar no amar. A ponto de não querer
mais amar.
A ponto de não saber mais COMO me amar.
A ponto de suplicar. Uma receita. Um antídoto.
Alguém que me fizesse acreditar e como disse Maya Angelou
“O amor é como a fé.”
Eu ainda não sei TUDO sobre o amor, mas eu já sei muita
coisa que o amor NÃO é.
Através do olhar generoso e crítico de bell hooks eu ainda tô
INVENTANDO jeitos, formas e pensamentos.
E Audre Lorde disse: “Me custou muito tempo o amor que
juntei” e eu tatuei na minha pele para lembrar que doeu. Para lembrar
que levou TEMPO pra cicatrizar tudo aquilo que me fez não amar.
E bell hooks disse “AUTO AMOR LEVA TEMPO” e todos os
dias eu repito TEMPO É AGORA.

Thamires Gambôa

Porto Alegre, 24 de setembro de 2023.

SUMÁRIO 334
REFERÊNCIAS
ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Tradução: Julia Romeu. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.

ANGELOU, M. Carta a Minha Filha. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2019.

CHISALA, U. Eu destilo melanina e mel. São Paulo: Editora Leya, 2020.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução: Stephanie Borges. São
Paulo: Editora Elefante, 2020.

LORDE, A. Irmã Outsider. Tradução: Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

LORDE, A. Entre nós mesmas: poemas reunidos. Tradução: Tatiana Nascimento, Valéria
Lima. Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo, 2020.

NASCIMENTO DOS SANTOS, T. Letramento e tradução no espelho de Oxum: teoria


lésbica negra em auto/re/conhecimentos. Florianópolis, SC. 185 p. Tese (Doutorado).
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão. Programa
de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, 2014.

OLIVEIRA, J. Grada Kilomba: O colonialismo é a política do medo. É criar corpos


desviantes e dizer que nós temos que nos defender deles”. In: El País, São
Paulo, 11 set. 2019. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/19/
cultura/1566230138_634355.html> Acesso em: 15 nov. 2020.

SUMÁRIO 335
Maria Eduarda dos Santos

UMA CARTA SOBRE


UMA DOCÊNCIA
INSPIRADA EM
AFETOS
Prezada bell hooks,

Você não sabe o quão feliz e ansiosa estou em te escrever


esta carta, pois tenho tanta coisa para te contar, que nem sei por
onde começar, e até mesmo se você vai gostar do que vou te contar,
mas isto é pura insegurança minha. Sei que você vai gostar. É sobre
docência, é sobre afeto e, principalmente, sobre minha experiência
em sala de aula e como você, bell, está ligada a tudo isso de forma
graciosa e inspiradora.

Mas, antes de tudo, acho que seria injusto da minha parte não
me apresentar para você, pois eu te conheço, mas você não conhece
nada sobre mim. Sendo assim, meu nome é Maria Eduarda, gosto que
me chamem de Duda, tenho 20 anos, sou uma mulher branca de cabe-
los pretos, latino-americana, bissexual, faço graduação em Filosofia na
Universidade Federal do Paraná e, também, sou professora num pro-
jeto voluntário de pré-vestibular. Sei que escrevi pouco sobre mim, mas
acho que você já consegue ter uma ideia de como sou e o que faço.

Por mais que esta carta seja sobre docência, tenho que te
confessar que, durante minha graduação, a docência não era minha
maior animação ou preferência, estava mais focada na filosofia e
na pesquisa acadêmica, porém, durante este percurso, eu tive dis-
ciplinas de licenciatura, e acho que tive sorte, pois tive dois ótimos
professores, que me ensinaram sobre docência, mas, também, me
apresentaram você, bell, e por isto vou ser eternamente grata a eles.
Um deles é o professor Marcos Oliveira e a outra, minha querida
professora Bruna Battistelli. Acho que você adoraria conhecê-los, me
apresentaram você de uma forma tão afetuosa, que só um educador
e uma educadora apaixonados pelo que fazem poderiam fazer.

Lembro que, durante minhas aulas, tive que escrever uma


carta sobre um livro que eu tinha lido e que tinha me impactado de
alguma forma. Escrevi uma carta sobre um livro que mudou minha
vida e que me fez ver a docência de uma forma carinhosa, mas, ao
mesmo tempo, forte e real, me fez também ver a docência como

SUMÁRIO 337
uma prática libertadora, que está com os pés no chão, observando
a realidade, além de várias outras coisas que a docência significa
para mim. Este livro, você o conhece muito bem, conta a história de
uma mulher forte, guerreira, doce, gentil, cuidadosa e que lutou para
estudar e se tornar professora num ambiente que não queria ela ali,
numa instituição supremacista branca.

Seu acesso à educação foi prejudicado pelo mundo racista,


preconceito e misógino que vivemos, ela, uma mulher negra, dentro
de uma instituição acadêmica, dentro de uma universidade, é muito
ameaçador para a branquitude. Mas, ela continuou com sua força e se
formou uma professora universitária. E, ela, sendo quem ela era, não
poderia mesmo estando num papel de poder, se acomodar e fingir
que não via as injustiças que aconteciam ali. Ela, sendo quem ela era,
escolheu mudar isso, fazer mais, ser mais para quem mais precisava,
foi diferente, única para seus alunos. Também, se tornou o que tanto
sonhava, uma escritora e com isso, acho que ninguém mais segurava
ela. Bem, este livro, que mudou minha vida, é seu, bell e se chama:
Ensinando a transgredir: a educação como uma prática da liberdade. No
qual, não tenho linguagem para expressar o quão importante e íntimo
este livro de tornou para mim e, só posso agradecer você por isso.
A educação como uma prática da liberdade é um jeito de
ensinar que qualquer um pode aprender. Esse processo
de aprendizado é mais fácil para aqueles professores
que também creem que sua vocação tem um aspecto
sagrado; que creem que nosso trabalho não é o de sim-
plesmente partilhar informação, mas sim o de participar
do crescimento intelectual e espiritual dos nossos alunos.
Ensinar de um jeito que respeite e proteja as almas de
nossos alunos é essencial para criar as condições neces-
sárias para que o aprendizado possa começar do modo
mais profundo e mais íntimo (Hooks, 2017, p. 25).

Sei que fiz uma citação grande do livro, mas achei neces-
sária. Olha que coisa mais linda, chocante e que nos toca o que
você escreve. É muito forte, mas é uma força tão necessária que

SUMÁRIO 338
nos acolhe e nos encoraja para sermos que nem você foi. Sua his-
tória de vida, seu livro, me deu muita inspiração para pensar e fazer
uma educação diferente, melhor. Muitas coisas que você conta em
seu livro, acabei me identificando, por ser uma mulher, por ser uma
mulher numa família de renda baixa, mas, principalmente, por querer
ser uma professora. Me vejo agora querendo ter esse zelo e cui-
dado com meus alunos.

Com tudo isso que compartilhei com você, bell, não posso
deixar de me lembrar e te contar como foi minha experiência
entrando pela primeira vez numa sala de aula, como uma profes-
sora... lembro-me de estar muito nervosa naquele dia, seria um dia
diferente, um dia que eu não esperava acontecer tão cedo, ainda
mais durante a graduação. Esse era meu tão sonhado dia sendo uma
professora, me preparei bastante, não queria fazer feio em minha pri-
meira aula, não queria demonstrar muito nervosismo ou até mesmo
muito entusiasmo. Me recordo de tentar decorar tudo que ia falar, até
mesmo as pausas, acho que isso demonstra que estava bem ansiosa.

Quando estava indo para o local onde seria minha sala de


aula, me perdi no caminho, mas, quando o encontrei, fiquei surpresa
pois na sala de aula tinha mais alunos do que imaginei que teriam,
todos me olhavam intrigados e também curiosos, acho que sei como
eles estavam se sentindo, eu estava me sentindo exatamente assim
também. Lembro que antes de eu entrar na sala, tinha um aluno me
observando na porta enquanto eu me aproximava, achei engraçado
e fiquei surpresa por causar tanta curiosidade, sinto que esse riso
que queria sair, de achar graça, era na verdade, de felicidade, pois
sabia que quando passasse por aquela porta, seria chamada de pro-
fessora, que para mim era uma grande coisa.

Enquanto me apresentava e conhecia eles, me lembro de


pensar: “fala da bell hooks, não esquece de falar da bell hooks”, então
eu falei de você, bell e me senti tão feliz, senti que ali estava dizendo
para meus alunos que eles poderiam confiar em mim e que eu os

SUMÁRIO 339
veria não apenas como alunos, mas como humanos que tem seus
sofrimentos e prazeres na vida, e claro, esperando que eles me vis-
sem dessa mesma forma. Lembro que quando perguntei para cada
um qual curso e profissão eles queriam para a vida deles, uma das
alunas comentou que queria fazer pedagogia, fiquei feliz com aquilo,
pois além de saber que ela também queria ser professora, eu tam-
bém poderia voltar a falar de você, bell. Mas, não lembro apenas do
curso dessa aluna, mas também, me lembro de cada curso que cada
um dos meus alunos sonha para si.

Na verdade, não lembro só disso, me recordo exatamente do


jeito de cada um, jeito esse único de ser. Me surpreendi com isso,
pois naquele momento me vi mais cuidadosa do que jamais fui, pois
ali na minha frente, vi tantos humanos diferentes, cada um com sua
individualidade especial de ser, acho que nunca vou me esquecer
de como me senti ao perceber isso, acredito que aí está a magia de
ser professora, de perceber algo que quando eu era apenas aluna,
nunca me dei conta, como existem pessoas completamente diferen-
tes numa sala de aula e, que mesmo sem saber sua vida ou história,
a diferença se percebe no jeito de ser.

E, não posso deixar de te contar um dos momentos mais


especiais para mim nesse dia... no final da aula, quando meus alu-
nos estavam se despedindo, lembro deles falarem: “tchau, profes-
sora”, e, confesso que quase chorei, fiquei toda boba com aquilo, que
quando cheguei em casa a primeira coisa que falei para minha mãe,
foi: “Mãe, me chamaram de professora “, acho que isso foi realmente
importante para mim, sinto que isso ainda é.

Depois de tudo isso, bell, consigo reconhecer que tive uma


grande mudança desde esse primeiro dia, até hoje, amadureci, soube
aceitar meu corpo em sala de aula e principalmente, soube cultivar
um afeto pela docência que raramente se vê atualmente. Sinto que
traí meus antecessores, professores que vieram antes de mim, pois
não nego meu corpo e prazeres em sala de aula, não me vejo apenas

SUMÁRIO 340
como uma mente que só está ali para passar conhecimento, mas,
como uma pessoa inteira que também aprende com seus alunos.
E, isso não é um mérito só meu, mas sim, de você, bell, que esteve
ali antes de mim e que soube transmitir através de sua escrita, suas
vivências e seu cuidado em estar numa sala de aula. E, isso é inspi-
rador, acho que depois de tudo que te escrevi, se eu pudesse resumir
em uma palavra o quão sou grata por tudo que aprendi com você,
seria: “obrigada”. Obrigada por ser você e por ver à educação como
algo que pode e deve ser nutrido, transgredido e principalmente, que
deve ser vista como uma prática de liberdade.

Obrigada novamente e um abraço de sua amiga, Duda.

Fazenda Rio Grande – PR

01/09/2023

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução
de Marcelo Brandão Cipolla. 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

SUMÁRIO 341
Maria Ester Alves de Souza

CARTA PARA
BELL HOOKS:
HISTÓRIA DE UMA VIDA
Querida Bell Hooks,

Pensei muito sobre como te escrever, como colocar em


palavras meus pensamentos e minhas descobertas. Confesso que
tenho um pouco de dificuldade de falar sobre mim e sobre minhas
experiências, porém, como a vida é feita de desafios, aqui estou eu
enfrentando um deles.

Quero começar lhe agradecendo por ter sido essa mulher


incrível que inspirou e inspira muitas mulheres, inclusive a mim.
Quando me falaram sobre você, Bell, me bateu muita curiosidade
para buscar e saber mais sobre cada detalhe da sua vida. Meu pri-
meiro contato foi com seu livro Ensinando a transgredir: a educação
como prática da liberdade (Hooks, 2013), onde compartilha sobre
a pratica do ensinar e aprender e conta também experiências em
sua vida acadêmica. Gostaria de acalmar seu coração e dizer que
estamos vivendo em um país é que as pessoas já não se importam
se es branco ou preto, mas estaria mentindo. Ainda hoje o contato
inter-racial é difícil no âmbito social, claro que não é como antes, mas
o racismo e o sexismo ainda sim existe muito. Para mulheres negras
torna-se pior, então por isso posso lhe dizer o quanto sua história e o
fato de como a compartilhou torna tão importante.

Bell, na minha vida escolar sempre fui aquela aluna dedi-


cada que fazia as coisas na hora certa, nunca dei trabalho na escola.
Confesso que era muito curiosa desde pequena e algo que mar-
cou bastante a minha vida foi quando eu aprendi a ler. Alguns dias
atrás, meu professor da graduação em Arquitetura e Urbanismo,
em uma aula, nos levou uma expressão de Paulo Freire chamada
‘palavramundo’ e me fez refletir sobre qual palavra seria a minha
palavramundo. Cheguei então na história de como aprendi a ler.
Quando criança, tive dificuldade de aprender a formar as sílabas e
minha mãe me disse que seria mais fácil se, quando estivéssemos
na rua, eu começasse a juntar as silabas e tentasse formar as pala-
vras que eu visse em placas. Assim o fiz, quando do nada olhei uma

SUMÁRIO 343
placa e rapidamente li a palavra, isto me marcou tanto que a minha
palavramundo é ‘Placa’.

Depois desse episódio da leitura, fui enfrentando cada vez


mais desafios nos estudos e a cada obstáculo eu via o aprendizado.
Em pesquisas, encontrei o seu livro Tudo sobre o amor: novas pers-
pectivas (Hooks, 2002). Confesso a ti que este livro me fez sentir
emoções que tentei não sentir. Creio que o que mais me marcou
foi o capítulo 11, em que fala sobre “Perda: amar na vida e na morte”,
pode se perguntar porque logo esta parte do livro me marcou, vou
lhe contar agora o porquê.

Um ano e três meses atrás tive que enfrentar a pior perda da


minha vida que foi a da minha mãe. Não poderia te escrever e falar
sobre minha vida e deixar de mencionar quem me deu a vida, que foi
minha mãe, logo no primeiro mês da morte dela eu desisti de tudo,
dos meus sonhos, para mim não fazia sentido estar viva. Conforme
os meses iam passando, os sonhos iam voltando. Lembro-me de
ter me sentido culpada por esta tentando seguir a vida e continuar
com meus sonhos, então lendo este capítulo você, Bell, me deu de
presente esta frase: “Amar faz isso. O amor nos empodera para viver
plenamente e morrer bem. Então, a morte se torna não o fim da vida,
mas uma parte dela.” (Hooks, 2002, p. 212). Isto me fez refletir que
realmente a vida continua e em forma de amor a minha mãe e a
minha vida. Desistir de seguir os meus sonhos nunca será uma opção.

Escrevendo esta parte da minha vida, me veio uma reflexão


sobre a minha palavramundo, ‘placa’. Quando eu estava passando
por isso, na minha frente tinha uma placa muito grande escrita PARE,
naquele momento eu não escolhi parar, eu simplesmente escolhi
ignorar e seguir em frente.

Após a perda da minha mãe, veio o momento que eu sem-


pre conversava com ela que era a isenção na faculdade que eu
sempre sonhei onde estou cursando Arquitetura e Urbanismo.

SUMÁRIO 344
Esta é uma fase da minha vida em que eu estou me redescobrindo,
tendo que ficar longe de pessoas que amo, mas com o coração
feliz, por estar vivendo tudo isso. Pode acreditar, Bell, que foi aqui
que eu me encontrei. Enfim, obrigada por ter sido essa pessoa tão
importante no nosso mundo, que me fez enxergar as coisas de uma
forma que não enxergava antes, saiba que você faz sim parte da
pessoa que sou hoje.

Com carinho de sua mais nova admiradora, Maria.

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução
de Marcelo Brandão Cipolla. 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução: Stephanie Borges. São
Paulo: Editora Elefante, 2020.

SUMÁRIO 345
Luana Moreira Vieira

SOBRE DIZER,
ACOLHER
E COMBATER
Querida bell,

Espero que essa carta lhe encontre bem! Tenho lido alguns de
seus livros desde que comecei a graduação em Pedagogia. A leitura
de seus pensamentos tem me encantado e fortalecido em diversos
aspectos, tanto que releio sempre que sinto que preciso. Só lamento
não ter te conhecido antes, mas penso que o importante é que, de
algum modo, você veio até mim. Minha leitura do momento tem sido
o livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade
(2017). Esse livro trouxe à tona uma vontade a mais em conhecer
minhas futuras alunas(os), em como eu poderei reproduzir, como
você, algum tipo de comunidade efetiva que vincule a todas(os), em
proporcionar experiencias simbólicas, vivas e, verdadeiramente, sig-
nificativas e críticas, durante o processo de aprendizagem que virá.
Penso frequentemente em como será, e sei que os questionamen-
tos que tenho em mim ainda não possuem respostas.

Acredito, assim como Paulo Freire que esse ofício só tome


forma na prática cotidiana. Me lembro de uma frase dele que exem-
plifica esse sentimento, em suas palavras: “Ninguém começa a ser
professor numa certa terça-feira às 4 horas da tarde... Ninguém nasce
professor ou marcado para ser professor. A gente se forma como
educador na prática e na reflexão sobre a prática” (Freire, 1982, p. 34)

Mas, bell, retomando sobre a sua escrita, sei que você já deve
ter ouvido isso de alguém em algum momento, mas não posso dei-
xar de falar, que me identifiquei contigo imediatamente de tantas
formas que me inundei de você, de um jeito bom, brilhante, radiante,
feminino, amoroso e infinito. Admiro quando você fala abertamente
e corajosamente sobre o amor no ensino no livro Tudo sobre o amor
novas perspectivas (Hooks, 2020). Em suas palavras:

“O lugar do amor na sala de aula é garantido quando há


qualquer busca apaixonada por conhecimento. Esse pensamento
contraria os princípios de críticos que pensam que o amor não tem

SUMÁRIO 347
nada a ver com nossa habilidade de ensinar e aprender” (Hooks,
2020, p. 240). Você prossegue sobre o amor próprio, o amor incon-
dicional que devemos e podemos direcionar a nós mesmas(os), não
de uma forma rasa ou simples, mas complexa como uma forma de
se opor à dominação, de transgredir de dentro pra fora, no sentido
desse processo de nos compreender e prosseguir. Vejo que amor,
solidariedade e transformação são pautas indissociáveis e impor-
tantes para você, e posso dizer que a mim também. Agora posso ver
isso como um caminho possível.

Não raramente recorro também à escrita. Parece que isso me


ajuda a “espantar os demônios” na minha trajetória recente desses
últimos anos. Tenho vivenciado de perto a desigualdade de gênero
e violência institucionalizada que o poder judiciário destina gratuita-
mente para as mulheres. Desde que tenho lutado pelo meu direto de
convivência com as minhas filhas, descobri, ao longo dos anos, que
muitas mulheres por aqui passam por sofrimentos jurídicos e per-
dem direito sobre a suas crianças a favor do genitor, independente-
mente de suas profissões, classe ou status social. Há poucos meses,
quando enfim eu tive a boa notícia de que ficaríamos juntas, depois
de tantos anos, papéis burocráticos, revitimização, descrença, silên-
cio, cansaço, estava sim muito feliz. Foram anos para chegar até ali.

Mas, na mesma semana desta esperada notícia, eu soube


que uma colega conhecida de infância perdeu totalmente o direito
sobre seus filhos. A moça ficou desempregada, sem o dinheiro de
pagar pensão. Rapidamente foi presa. Na prisão, mais um direito
foi negado, o de contatar advogada (o) ou a família. Desta forma,
ela foi dada como desaparecida, e só foi localizada porque a família
fez uma forte campanha de busca na internet. Não por coincidên-
cia, na mesma semana, na minha cidade novamente, uma moça
recém-mãe que possuía medida protetiva foi obrigada judicialmente
a estar na presença de seu abusador para fazer um exame de DNA
no recém-nascido, porque o pai não acreditava na veracidade da
paternidade. Aproveitou desse momento para matar a mãe do bebê

SUMÁRIO 348
que estava ainda no colo da mãe e o advogado que a acompanhava.
Foram muitas perdas, não cabendo espaço para comemorações da
minha parte naquele momento, mas, de alguma forma, não me sinto
sozinha. Escrevi um conto que dedico a mim, a essas mulheres e a
outras tantas, e gostaria de compartilhar contigo.

Outrora
no início dos tempos numa tarde de outono
a mentira sobrevoava os céus
impaciente e entediada provocava pequenas brigas
até que avistou a deusa da justiça ao longe
a deusa era alvo fácil, não estava de armadura, não tinha um exército seu
andava vendada e descalça trazia consigo apenas uma espada e
uma pequena balança
a espada afiada brilhava ao sol enchia os olhos
hipnotizava, a mentira experimentava agora um sentimento novo
quisera eu ser ela quisera eu empunhar essa espada
meus inimigos cairiam aos meus pés
foi então que o primeiro crime aconteceu

sem resistência a espada as vestes a venda, foram roubadas


a balança inútil foi levada como símbolo de vitória, a deusa
ficou só e desamparada,
a primeira mulher caída, agora com a espada em mãos era deten-
tora do poder absoluto
formou um exército de homens, homens de terno
que olhavam com desdém o que não conheciam
sentados ao alto, semideuses, num circo sem plateia, arena de leões.
a mentira agora disfarçada de justiça
Julgou e condenou ao fio na espada impura
todas que ousaram em seu caminho
despedaçou vidas, numa cruzada silenciosa
de mulheres solitárias

SUMÁRIO 349
até que a espada também me encontrou
atingiu onde mais doía, me separou dos meus
a dor era uterina latente chorei o mundo
e o mundo me ouviu as mulheres caídas
compartilharam seu fôlego de amor e morte comigo, em prece
senti a força de cada mãe em mim
agradeci pela benção recebida me refiz, segui meu caminho

fui de encontro a arena da morte


mas não sozinha, a verdade veio à tona
ocupava lugares na primeira fileira
e todos puderam ver o teatro se desfazer
quando a máscara da mentira caiu
ela olhou pra mim por um instante, e eu pude ver
a verdadeira face da injustiça
e ela
também tremeu.

Apesar dos sentimentos de tristeza e revolta após esses


acontecimentos, me senti eu. Estamos acostumadas (os) a ques-
tionar figuras de autoridade como médicas (os), policiais, juízas(os),
ou mesmo professora(o) o que é perigoso, é um condicionamento
social estabelecido que favorece as elites dominantes, mantém a
ordem, o status quo, nos mantém sobre domínio, sobre controle fre-
quentemente de homens sobre mulheres; de brancos sobre negros;
do mais rico sobre o mais pobre; e muitas vezes esse controle se
estende um pouco mais, nos fere, retira nossa dignidade humana,
nossa liberdade em diferentes níveis.

Observo, também, que a violência de gênero afeta as mulhe-


res, atinge diretamente as crianças e isso é algo que deve ser dito,
acolhido e combatido, dentro e fora da sala de aula. Desta forma,
considero imprescindível estar atenta para esse enfrentamento, com-
partilhamento e debate dessas temáticas com alunas (os), pois esse
tipo de troca que afeta diretamente alunas(os) enriquece o ensino

SUMÁRIO 350
com o pertencimento que carregam. Tenho em mim esperança em
dias melhores que estão por vir, e espero poder te escrever mais
sobre isso em breve.

Com amor e otimismo,

Araucária, 02 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1967.

FREIRE, P. Considerações em torno do ato crítico de estudar. In: FREIRE, P. Ação Cultural
para a Liberdade e outros escritos. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:


Martins Fontes, 2017.

HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 3.ed. Rio de


Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.

SUMÁRIO 351
Carolina Cristina dos Santos Nobrega

SOBREVIVÊNCIA?
PRESENTE!
Prezada bell hooks,

Abro os caminhos para a narrativa cultural do feminismo, e


começo por dizer-lhe que coloco na roda as nossas contribuições e
elas estão pra jogo! Eu afirmo que a minha escrita é uma dedicatória
que faço para a liberdade e, de um jeito inconformado, assumo a
expressão da minha sobrevivência. Já dizia Robinson (2023), a sobre-
vivência do negro é problemática!

Quando a gente entra na roda, no movimento da ginga da


vida, a primeira pergunta já é uma armada. Isto é, o que é epistemo-
logia? Automaticamente, na esquiva, nós respondemos: a produção
do conhecimento! Então, o cotidiano olha para nós e indaga: em que
condições? Veja, bell, quais são as condições para conhecer? Para
produzir? Quais são os limites que nós, trabalhadoras(es), pesquisa-
doras(es) temos para produzir outras referências, confrontando uma
sociedade acomodada no capitalismo racista? O nosso tempo de
vida é transformado em mercadoria. À vista disso, é sempre impor-
tante lembrar que a sobrevivência não nos é dada, nós sentimos
historicamente, no corpo encapsulado, o que o Ocidente colonial
denomina de feminino, desumanizado, útil e descartável à empresa
escravista (principalmente, o trabalho doméstico, que é o pilar de
tantas famílias negras) em andamento (Carrascosa, 2023).

Essa confissão empoeirada, que ecoa das experiências das


negritudes das mulheres pobres, denuncia a engenharia e o meca-
nismo dos Estados-nação. Esse grande agente histórico da violência,
chamado Estado, que exclui nossos corpos estrategicamente sele-
cionados, propala, “[...] micropoliticamente em uma rede de afetos
e ações interpessoais violentas direcionadas contra a vida de pes-
soas oprimidas pelas ficções sociais de raça, gênero e classe [...]”
(Carrascosa, 2023, p. 9), as inúmeras opressões e explorações que
nos atingem e também fixam nossos corpos nessas violências.

Tais ações não cessam diante da vontade-semente das


pessoas de sobreviver, as quais são tratadas de forma paliativa,

SUMÁRIO 353
reformista e desprezível na estrutura profundamente racializada.
Nesse estado de medo, o racismo engole o tempo de vida da gente.
A nossa dignidade confiscada é aclamada na composição da leitura
crítica e desabafada do esgotamento e reafirma: a intelectualidade
expressa à luta da vida negra pela liberdade!

As inquietações que me mobilizaram para contar a minha


história individual/coletiva, bell, olham para três fontes: a sonoridade
de múltiplas vozes negras que encontrei pelo caminho afro-político-
-pedagógico; o abraço amoroso, nos diferentes encontros coletivos
que anseiam, na reivindicação de nossa existência, o que nos é mais
valioso – a nossa humanidade; e a incorporação dos olhares negros,
uma vez que as tentativas de reprimir quem somos “[...] produziram
em nós um desejo avassalador de ver, um anseio rebelde, um olhar
opositor. Ao olhar corajosamente, declaramos em desafio: [...] Eu
quero que o meu olhar mude a realidade.” (Hooks, 2019, p. 217).

Será que nós, negras(os), somos interpretadas(os) como


agentes na educação? Sendo professora de educação física, eu
indago: o recurso teórico da educação e da educação física conse-
gue responder a essa questão? Uma palavra precisa ser exaltada:
a coragem. É preciso ter coragem para sobreviver com a dor enve-
lhecida que é nossa sombra confidente e que sabe o peso do não
pertencimento nas instituições racistas. O problema é que todas
as instituições são racistas. O tempo na escola racista nos ensina a
necessidade de sermos sujeitas negras radicais que se propõem a
conhecer o que precisa para criticar o Ocidente e, na capoeira do dia
a dia, educarmo-nos por nós mesmas. O compromisso com os espa-
ços de resistência, o uso dos instrumentos da nossa própria intenção
costura o território de nossas existências. Portanto, a nossa tarefa, é
“[...] romper com os modelos hegemônicos de ver, pensar e ser que
bloqueiam nossa capacidade de nos vermos em outra perspectiva,
nos imaginarmos, nos descrevermos e nos inventarmos de modos
que sejam libertadores” (Hooks, 2019, p. 32-33).

SUMÁRIO 354
Recordo-me que minha mãe me acompanhava em todos
os concursos para o cargo de professor. Eu era uma das últimas a
terminar a prova, e lá estava ela com um lanchinho na mão, uma
palavra carinhosa, olhar feliz e muitas conversas com outras mães.
Lembro-me que, quando os passos de minha mãe ficaram mais len-
tos, e nós desconhecíamos a doença, lá estava ela comigo, numa
longa caminhada para mais um concurso. E sigo, como ela dizia,
tocando em frente! A minha avó e minha mãe eram meu alicerce,
minha força motriz. Minha avó nos deixou em 2009 e minha mãe
em 2020. Elas sempre falaram da relevância do nome próprio como
existência, do estudo, do território. Hoje, aprendo, com a literatura
indígena, a conexão corpo e terra; e me fortaleço nas religiões “crimi-
nalizadas”, como a Umbanda. Axé!

Antes de ser professora e me descobrir afro-professora, eu


trabalhei em outras áreas para pagar a faculdade. Posteriormente,
em 2009, graduada em educação física (licenciatura), eu comecei
a trabalhar na educação, e sempre me perguntei com o meu olhar
questionador: onde estão as(os) negras(os)? É necessário enxergar a
segregação no mundo burguês que “[...] se dá em uma divisão entre
limpeza e sujeira baseada numa divisão racial do espaço urbano [...]”.
(Vergès, 2020, p. 127).

bell, na tessitura das histórias negras, nós compartilhamos


o processo de criar estratégias de sobrevivência que antecedem à
docência, que desafiam o percurso e, no novo ciclo que se dese-
nha, no atual cargo de Orientadora Pedagógica, eu busco plantar
o Projeto Político Pedagógico Amefricano. A nossa dor tem nome.
Ela se chama antinegritude e apresenta questões que precisam ser
verificadas nas escolas, nos projetos coletivos. É necessário puxar o
fio dessa imensa teia de desumanização alicerçada no Projeto direi-
tos humanos que reafirma a branquitude na escola, a partir de uma
análise que coloca em evidência os mecanismos de discriminação,
opressão, exploração, a reprodução do racismo e a articulação des-
ses, do ponto de vista histórico.

SUMÁRIO 355
A primeira vez que li “intelectuais negras” era como habi-
tar e encontrar o que se conhece na alma que estava tão calado e
sufocado na educação. Até que enfim, eu pensava, mesmo escre-
vendo em terceira pessoa eu posso ter lugar de escrita. Eu tinha ali
o reconhecimento feminista e, assim, a leitura internalizada, viva, que
incendeia as ideias, as palavras que foram sentidas como abraço
político-amoroso e me convidaram para diferentes encontros cole-
tivos. No início de 2014, eu percebi em mim o que Neusa Santos
Souza (1983, p. 17) alertava, ao afirmar que “[...] uma das formas de
exercer autonomia é possuir um discurso sobre si”. O que é ser afro-
-professora nas metamorfoses da Carolina? A fagulha criativa para
transformar as aulas de educação “física” no entendimento de uma
educação como libertação quilombista, eu encontrei na leitura das
contribuições de Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus e,
recentemente, François Vergès, Lélia Gonzalez, entre outras(os).

Sempre houve um incômodo em mim em relação à escola. O


modelo eurocêntrico de educação sempre foi um amargo obstáculo,
no que se refere à defesa de prioridades negras-quilombolas-indí-
genas. Estratégias pedagógicas (inventadas e identificadas), que
caminhavam na confecção de outro currículo, foram tecidas na rela-
ção com diferentes grupos: a participação no grupo de estudo Ylê-
educare; Terreiro Gepel; Negra Sim, Movimento Mulheres Negras
de Santo André/SP; conversas no Centro Cultural São Paulo com
Psicólogas(os) Negras(os) em formação e outras áreas, entre outras
ações. Nesses coletivos potentes, eu percebi o pertencimento e
alianças para atuar na perspectiva negra nas escolas e ver nascer, nas
contradições, a Educação Física Antirracista (Nobrega, 2021). Para
mim, esses encontros foram a base de um quilombo pedagógico que
critica e enfrenta o olhar eurocêntrico da escola, porque a conhece de
dentro pra fora e conhece o que sustenta a potência das negritudes.

Em 2017, eu conheci o Antônio (professor de português). Ele


era do grupo Ylê-Educare e me convidou para participar do grupo.
Em muitos momentos no Ylê, eu vi meus olhos virarem cachoeira.

SUMÁRIO 356
A roda de conversa na comunidade de um bairro em Guarulhos/SP é
uma memória muito bonita da sabedoria de vida daquelas mulheres,
que preencheu o meu coração como água de Oxum. É como você
diz, bell: é a experiência “[...] com um professor [...] muito influente
que nos convenceu a dedicar a vida a atividades de leitura, escrita e
conversa pelo prazer individual, mérito pessoal e ascensão política
dos negros” (Hooks, 1995, p. 465). Antônio, Andreia (professora dos
anos iniciais) e eu trabalhávamos na mesma escola. Eu aprendi com
ela a força das palavras. A sua descolonização interna, a presença
do seu discurso na qualidade de enfrentamento à violência verbal e
à condenação de outros professores sobre os discentes e, ao falar,
conseguia a atenção de todos, não deixava passar nada em branco.
Eu a admirava e sabia o peso da dor e do desgaste que estavam por
trás daquele posicionamento político.

No Ylê, eu aprendi a ser ilustradora e escritora. Eu escrevi um


artigo com a Maria Lucia da Silva, intitulado Virgínia Leone Bicudo e
Neusa Santos Souza: professoras negras e suas valiosas trajetórias na
educação (Silva; Nobrega, 2017). Foi a Maria Lucia que me apresen-
tou essas Senhoras do Conhecimento e me convidou para participar
em 2020, na qualidade de pesquisadora, do projeto Sala de Leitura
sobre as intelectuais negras (Silva, 2023). Nessa continuidade, em
2021, eu recebi um convite para contribuir com um artigo e escrevi
sobre as estratégias pedagógicas de resistência, a partir da minha
experiência coletiva, no capítulo intitulado Narrativas quilombolas na
educação física escolar: combatendo o epistemicídio (Nobrega, 2021).

Nós nos educamos por nós mesmos, assumindo, no toque


do berimbau, outra educação física, composta de narrativas quilom-
bolas, que busca o passado histórico negro que habita em nós, com
base no pensamento feminista, produzindo conhecimentos afror-
referenciais inscritos em nossos corpos. Assim, nós resgatamos o
sentimento de pertencimento à ancestralidade africana, portanto, o
corpo guardião dessa memória (Petit, 2015). Uma disciplina que se
despe da pré-ocupação de disciplina e, na desobediência, cuida do

SUMÁRIO 357
processo de recordar experiências, do uso da linguagem oral, das
rodas de conversa, dos temas-elos afro-brasileiros, os saberes do
terreiro, a conexão cultura-natureza, a construção coletiva do conhe-
cimento que compõe uma condição de comunidade (identificada
pelos discentes), valorizando a identificação do território que propõe
outra escola possível (Nobrega, 2021).

O estudo é o som do atabaque, é a chave da libertação a


ser utilizada a serviço da sobrevivência para o tão sonhado Estado
Quilombo. Seguimos, bell! Esse é um dos caminhos-convite que
persiste na construção de uma rede solidária que busca eliminar a
lógica da desumanização da civilização ocidental com a educação
das linguagens corporais. A educação física antirracista deve servir
ao povo negro-indígena-quilombola-pobre e não o contrário. São
as pessoas que dizem como ela é, a partir da narrativa cultural e a
expressão política dos seus corpos. Sobrevivência? Presente!

Campinas, 4 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
CARRASCOSA, D. Uma sismografia de nossos feminismos abolicionistas. In: DAVIS,
A.; DENT, G.; MEINERS, E. R.; RICHIE, B. E. Abolicionismo. Feminismo. Já. São Paulo:
Companhia da Letras, 2023. p. 7-23.

HOOKS, B. Intelectuais negras. In: Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, v. 3, n.


2, 1995, p. 464-478.

HOOKS, B. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.

NOBREGA, C. C. S. Narrativas quilombolas na educação física escolar: combatendo o


epistemicídio. In: MALDONADO, D. T.; FARIAS, U. S.; NOGUEIRA, V. A. (org.). Linguagens na
educação física escolar: diferentes formas de ler o mundo. Curitiba: CRV, 2021. p. 67-83.

SUMÁRIO 358
PETIT, S. H. Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroancestral e tradição oral
africana na formação de professoras e professores. Contribuições do legado africano
para a implementação da lei n. 10.639/03. Fortaleza: EdUECE, 2015.

ROBINSON, C. J. Marxismo negro: a criação da tradição radical negra. Tradução de


Fernanda Silva e Souza. São Paulo: Perspectiva, 2023.

SILVA, M. L. Sala de Leitura: ferramenta pedagógica para educação antirracista. In:


Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico, 46º Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte, 2023.

SILVA, M. L. et al. Professoras negras e suas valiosas trajetórias na educação. In: SILVA, N. (org.).
Educação e o empoderamento da mulher negra. São Paulo: Casa Flutuante, 2017. p. 91-107.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em


Ascensão Social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

SUMÁRIO 359
Jacineide Arão dos Santos

SONHOS:
FIO CONDUTOR DO MEU
ESTAR NO MUNDO
Querida bell hooks,

Eu mulher, negra, periférica, nordestina, filha da classe traba-


lhadora, primeira da família a ingressar numa Universidade Pública
aos 22 anos de idade no ano de 2004, sou tomada por uma emo-
ção tremenda ao sentar para estabelecer essa conexão por meio da
escrita contigo. Esse movimento é um mergulho em mim mesma, em
minha trajetória, marcada por resiliência, resistência, desafios, supe-
rações e sonhos, os quais são fios condutores nutridos pelo amor
para a minha (re)existência.

Ao dialogar contigo não há como não me conectar também


com o grande Paulo Freire que tanto nos falou da educação também
como prática de liberdade, no afeto, da importante relação educa-
dor/educando na perspectiva da horizontalidade. Ele, assim como
você, denuncia e traz pistas e alimento para a luta contra essa socie-
dade opressora, desigual, que tenta silenciar alguns corpos e men-
tes. Sábias suas palavras ao afirmar que ser oprimido é ausência de
escolhas. Por isso, querida, temem tanto uma educação transgres-
sora. Esta nos dá asas, permitem que mulheres negras, atravessadas
por tantas dores, sonhem, transgridam e voem.

Bell, uma das experiências mais significativas para mim foram


leituras de textos seus num coletivo de mulheres negras que sonham
em ocupar cargos de “poder” no sistema de justiça. Esse coletivo
se chama Abayomi juristas negras, grande encontro precioso, assim
como nossos encontros contigo. Como foi importante a leitura de
capítulos do livro Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como
negra (Hooks, 2019). A partir dele pude compreender alguns dos
meus silêncios, algumas amarras. “Soltar a voz” e aprisionamentos é
sobre viver, tendo o amor como uma arma política importante viven-
do-o em nosso cotidiano.

Essa conversa contigo, me remeteu ao grande músico,


Gonzaguinha. Sua linda canção, Caminhos do Coração, diz muito do
meu encontro contigo. Me permita citar aqui alguns versos dessa

SUMÁRIO 361
poesia “[...] E é tão bonito quando a gente entende/ Que a gente é
tanta gente onde quer que a gente vá/ É tão bonito quando a gente
sente/ Que nunca estar sozinho por mais que pense estar”. Fico a
pensar se as músicas dele também não a encontraram e alimenta-
ram a sua luta (rsrs).

Bell, eu a reverencio e agradeço a toda à ancestralidade pela


sua existência, farol para mulheres como eu. Você vive em cada uma
de nós. São inúmeros os seus ensinamentos. Esta escrita poderia ter
diversos caminhos, quero te contar sobre mim, fragmentos de expe-
riências tão significativas que já vivenciei, para que saibas o quanto
caminhei, mas que ainda nutro muitos desejos alimentados pela
crença numa educação libertadora, acolhedora, nutrida pelo amor.

Por meio da educação conquistei desejos do coração e por


meio dela toquei pessoas que passaram pelo meu caminho. Sou feliz
por ter acessado à academia, mas em alguns momentos é tão dolo-
rido “seguir a cartilha” da academia para sobreviver nela. Mas quero
lhe contar sobre um encontro precioso que me mobilizou tanto, o
que me mostra que o que nutre o meu caminhar é o amor, o acolhi-
mento, o olhar crítico, uma educação progressista que liberta, e isso
bell, aprendo muito contigo e Freire.

bell, no dia 02 de julho desse ano, nos festejos da Indepen-


dência da Bahia, reencontrei um jovem que foi meu aluno em uma
das minhas primeiras experiências como professora assim que me
formei em Pedagogia em 2009 na querida Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Nessa época era docente de uma Organização
não Governamental (ONG) e lecionava sobre temas diversos cor-
relatos a Direitos Humanos, Juventude, Profissionalização... Atuava
numa escola pública na ladeira do Pelourinho (Centro Histórico de
Salvador - BA). Os meus alunos e minhas alunas cursavam o Ensino
Médio e participavam do projeto. Alguns à época mais velhos do
que eu, cheios de experiência da vida. Algumas dessas muito duras.

SUMÁRIO 362
Meu canal de diálogo e chegada a cada jovem que cruzou o meu
caminho sempre foi a afetividade, o respeito mútuo e a crença na
potência de cada aluna(o).

Querida, o fio condutor dos meus encontros sempre foram


os sonhos, sua múltipla potencialidade com o poder que tem de nos
movimentar. Tendo em vista a sociedade desigual, brancocêntrica e
excludente que vivemos, tinha o cuidado de pensar cada história de
vida, cada desafio. Contudo alimentar os sonhos é sobre Viver! Bem...
ao subir a ladeira do Pelourinho nesse dia ouço “professora Jaci!” e
ao olhar para trás o reencontro com Thiago ( jamais esqueci essa
turma) após 14 anos e ele me disse: “professora, a senhora marcou
a minha vida, minha trajetória escolar e profissional, nunca esqueci
dos seus ensinamentos, em vários momentos lembrei para seguir.
Obrigada!” E começou a me contar da vida dos amigos próximos,
todo mundo bem professora e não lhe esquecemos. Nosso contato
físico foi de menos de um ano. Mas permaneci em sua vida.

bell, eu me emocionei e estou agora novamente. Nessa


época ainda não conhecia os seus escritos. Como a academia pode
não lhe apresentar a nós? Mas ao conhecê-la senti o quanto os seus
escritos fazem todo o sentido para a minha “escrevivência”, como
bem situa Conceição Evaristo. O encontro relatado serviu também
para retroalimentar os meus próprios sonhos e me dizer o quanto
são importantes os encontros da Vida e o quão é singular o que
deixamos de nós no outro. Também mobilizou os meus afetos em
relação a professores e professoras que marcaram a minha trajetória
e continuam me orientando para onde desejo ir.

Posso afirmar, bell, que também orienta os meus passos.


Sua escrita está em mim, no que sinto, no que busco trilhar. Uma
mensagem sua muito importante sobre o encontro comigo mesma
é a compreensão que antes de fazermos os outros nos ouvirem, é
preciso nos ouvir, para o encontro com nossa identidade.

SUMÁRIO 363
Ah querida, você nos encoraja, nos trouxe uma vasta obra,
mas um dos seus escritos que mais me tocaram foi Tudo sobre o
Amor (Hooks, 2021). A sua perspectiva sobre o amor é fecunda,
necessária. Também acredito que o amor é ação e vincula-se a ética
e ao coletivo. Amar é movimentar-se e esse movimento só faz sen-
tido quando estamos inteiras. Suas ideias são revolucionárias. São
um manifesto contra essa perspectiva individualista que nutre essa
sociedade capitalista, colonizada e racista. Pensar no amor como
prática de liberdade política e coletiva é transgressor, libertador.

bell, começo a me despedir com vontade de continuar... Quero


tanto lhe agradecer pela linguagem fluída que nos aproxima de você.
Ah, gratidão por dialogar com o público infantil. Minha pequena ama
o seu livro Meu Crespo é de Rainha. E minha Luanda se sente uma
rainha mesmo. Obrigada a me permitir a seguir com medo mesmo, a
identificar e romper silêncios. Você querida, intercala nossas subjetivi-
dades e forma tão leve e profunda com temáticas sociais. É visceral sua
obra Não serei eu mulher? - As mulheres negras e o feminismo (2018),
como não remeter ao discurso de Sojouner Truth proferido em 1851?
Manifesto referenciado também no álbum “Bom mesmo é estar
debaixo d´água” da querida cantora baiana Luedji Luna, ao reveren-
ciar mulheres negras. Falas que se conectam, que nos encontram.
Seus escritos me dizem que “sou uma, mas não sou só”.

Sem amor, minha querida realmente as vidas são sem signi-


ficado. É o poder fundamental do amor que produzirá toda mudança
social significativa. Sua fala me trás acalento, esperança, me permite
acreditar, “ir contra a corrente”, como nos embala a canção Roda Viva.

Gratidão querida, a me convocar a usar a minha voz, a acre-


ditar em mim, no meu potencial como uma mulher, negra, periférica
e que nutre muitos sonhos. Obrigada por ser farol para mulheres
como eu, que acreditam num mundo mais justo e seguem acredi-
tando na educação tendo o amor, o acolhimento, o afeto como fun-
damentos para transgredir.

SUMÁRIO 364
REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

GONZAGUINHA. Caminhos do Coração. Disponível em: https://www.letras.mus.br/


gonzaguinha/280648/. Acesso em: 09 out. 2023.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor. São Paulo: Editora Elefante, 2021.

HOOKS, B. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Editora
Elefante, 2019.

HOOKS, B. Não serei eu mulher? As mulheres negras e o feminismo. Lisboa: Orfeu


Negro, 2018.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. São


Paulo: Martins Fontes, 2013.

LUNA, L. Ain´t I A Woman. In: Bom mesmo é estar debaixo d`àgua. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=BCQnOftvLXM. Acesso em: 09 out. 2023.

PINHO, O. E não sou uma mulher? Soujurner Truth. Disponível em: https://www.geledes.
org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/. Acesso em: 08 out. 2023.

SUMÁRIO 365
Margareth Maura dos Santos

APRENDER A SER
FEMINISTA SENDO
NEGRA AO ERGUER
MINHA VOZ
Querida bell hooks,

Desde a infância sempre gostei de escrever cartas, algumas


para familiares, como para minha avó Maria que vivia no extremo sul
da Bahia, e outras para instituições públicas e políticos contestando
algo que me trazia a indignação como uma boa infraestrutura em
minha escola. Algumas vezes, deixava minha mãe um pouco emba-
raçada porque ela tinha de entregar a carta e protocolá-la, as pes-
soas a questionavam porque uma criança estaria escrevendo para
aquela determinada pessoa daquela instituição.

Na verdade, sempre fui questionadora e sentia uma imensa


revolta em ver tanta injustiça, principalmente para nós, pessoas
negras. O racismo sempre nos ronda desde o gestar no útero de
nossas mães. Nesta fase já há em nós a gana de resistência e de
reexistência em poder vir a este mundo.

Mas mudarei o rumo da prosa, como aqui em Minas dizemos,


ao passar para outro assunto, pois gostaria de trocar algumas linhas
sobre um tema que sei ser uma das suas predileções. Trata-se de
nós, mulheres negras. Um dia desses, estava conversando com uma
amiga sobre a organização e estrutura da academia, os pensado-
res, os intelectuais e os pesquisadores que são levados às salas de
aula, sendo alicerces para os estudos. Sempre são pessoas brancas,
em sua maioria homens, mas há também as mulheres brancas. E
aqui no Brasil, as mulheres negras são a minoria como docentes
nas universidades, de acordo com o Censo realizado pelo Instituto
Anísio Teixeiro em 2018, ainda há somente 16% que ocupam as
cadeiras do professorado.

Ainda me indigna em não ter os nossos estudos a serem


elencados teoricamente em pesquisas e nas aulas. Há muitos pro-
fessores brancos que se dizem antirracistas, mas que não aceitam
nossas pesquisas serem trazidas pelos alunos para o nosso arca-
bouço teórico, e assim dialogar com as nossas vivências.

SUMÁRIO 367
Essas reflexões lembraram-me o seu livro O feminismo é para
todo mundo, pois, nas linhas deste, você traça que mesmo diante de
questões debatidas no movimento feminista, ainda há o fator raça
que não vem atrelado ao de gênero. A cada leitura e passagem de
página, pegava-me em questionamentos, mas em seguida surgiam
as respostas, principalmente, nas reflexões quanto ao privilegiou
da branquitude, independente do gênero feminino, até porque no
movimento feminista havia a aclamação por sororidade. Como bem
você nos aviva a memória, nós, mulheres negras, éramos subal-
ternizadas e oprimidas ainda por estas outras mulheres que lide-
ravam este movimento.

Os seus escritos são desde os anos 70, trazendo pela cro-


nologia até os dias atuais de que, mesmo com o posicionamento
crítico das mulheres negras diante do movimento feminista, ainda
deparamos com atitudes sexistas e até racistas vinda de companhei-
ras brancas. Isso me fez pensar muito em minha vida acadêmica e
social, em que tenho amigas brancas, mas algumas, ainda usam de
falas segregadoras como eu, filha de mãe viúva, dita solo, consegui
estar no meio universitário, da intelectualidade, falar cinco idiomas,
conhecer mais de quinze países. Ou seja, para elas, talvez, por eu
ser preta, deveria estar ainda no chão de uma escola distante do
meio urbano ou na periferia, mal falando a minha língua materna,
sem ocupar os espaços que para eles seriam ainda da branquitude.

Essa constatação, você nos traz com uma riqueza de detalhes


e análises no erguer a voz- pensar como feminista, pensar como negra.

O capítulo 9 parece que, ao escrevê-lo, estavas com uma


lente e vias a minha trajetória pela educação porque ali há amostra-
gem de uma educação libertadora, principalmente para nós negros.
No entanto, a academia ainda não compreendeu que as amarras das
normas e cânones impedem que possamos criar, construir, inovar a
educação de modo que seja livre trazendo para dentro de suas mura-
lhas, as vivências, experiências, criações de diversos povos como no

SUMÁRIO 368
Brasil por ser um país multi, pluri e diverso em cultura, história, língua,
possa falar e dar voz a estes grupos sociais.

Concordo contigo ao citar os centros culturais e de estudos


afrocentrados, pois somente a partir desses grupos e movimentos
coletivos que poderemos alçar passos em direção à uma educação
emancipatória, pois nesses grupos os participantes podem expor
suas ideias, criatividade, pensarem num ensino que inclua e dê
instrumentos para uma transformação social. “Participamos de um
modo de aprendizagem e de existência que torna o mundo mais real
ao invés de menos real, que nos possibilita viver livremente e por
completo. Essa é a alegria em nossa jornada” (Hooks, 2019, p. 157).

Essa possibilidade de viver livremente e por completo fará


com que nós negros como outros grupos possam contestar por
melhorias, direito à acesso e igualdades como na própria educação,
na saúde, em moradia, direitos de trabalho, alimentação e cultura.

Sigamos essa jornada, confiantes de que o feminismo será


para todos e a educação nos dará a todos autonomia para sermos
independentes, em que possamos viver num coletivo de modo cola-
borativo e libertador.

Joguemos as sementes dessas ideias, fazendo com que elas


possam germinar em cada um e assim, nascerem galhos, frutos,
folhas e flores que possam sustentar uma imensa árvore que venha
a transformar toda a sociedade.

Então, ficarei por aqui no momento, muito feliz em poder tro-


car essas poucas palavras contigo. Gratidão por tanto aprendizado.

Um abraço afetuoso e de muita reexistência!

Margareth

Juiz de Fora, MG. 25 de setembro de 2023.

SUMÁRIO 369
REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra tradução Cátia
Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

HOOKS, B. O feminismo é para todos: políticas arrebatadoras. tradução Ana Luiza


Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.

SUMÁRIO 370
Maria Eduarda Alves Sousa

CARTA PARA
GLORIA JEAN WATKINS
EM SUA VERSÃO
BELL HOOKS
Prezada bell hooks,

Queria começar te contando quem sou eu, mas nem eu


mesma me conheço. Meu nome é Maria Eduarda, e em uma das
matérias do meu curso a professora nos ensinou que no desenho
pode existir um ponto de fuga, dois ou mais. Esse ponto puxa linhas
que formam o que você quiser: um prédio, uma rua, um monumento.

Acredito que os pontos de fuga na minha história são você


e seus livros e eu sou apenas as linhas que estão correndo atrás pra
se formar num desenho que seja tudo sobre o amor ou o desenho
com o pensamento mais crítico. “Ultimamente, tenho sido levada
a pensar em quais são as forças que nos impedem de avançar, de
sofrer aquela revolução de valores que nos permitiria viver de modo
diferente” (Hooks, 2013, p. 43).

A partir desse seu pensamento, me peguei pensando no


passado pra tentar entender se alguma coisa ou alguém me impe-
dia de avançar. Me lembrei da noção da palavramundo e cheguei à
conclusão de que a minha palavra é muro (parede robusta de pedra
usada para cercar determinada área, servindo-lhe de proteção ou
limite). Você deve estar meio confusa, mas é isso mesmo, a minha
palavramundo é essa porque, quando eu era mais nova, eu pulava
o muro para ir brincar com meu vizinho e, também, melhor amigo.
O próprio sentido da palavra faz relação com a minha história, pois
meu pai usava o muro para limitar a minha infância, inclusive, hooks,
quando você diz em seu livro Tudo sobre o amor que:
Amor e abuso não podem coexistir. Abuso e negligência
são, por definição, opostos a cuidado. Ouvimos com fre-
quência sobre homens que batem na esposa e nos filhos
e então vão ao bar da esquina proclamar apaixonada-
mente o quanto os amam. (Hooks, 2020, p. 35).

Sou a prova viva desse trecho e ainda assim é o trecho mais


lindo e realista que já li. Sempre me questionei o motivo de roman-
tizarem relações parentais tóxicas. Você abriu a minha mente e me

SUMÁRIO 372
explicou que as pessoas odeiam perceber que a família nem sempre
é uma proteção, e sim construtores de barreiras.

Reflito com a leitura do seu livro que sempre quis um signi-


ficado concreto de amor e também esperava ansiosamente que ele
chegasse, porém entendo que a polissemia do sentido da palavra
amor é grande. Nesse momento da minha vida, incluo nesses vários
sentidos, mais um: o amor á arte de projetar casas e ser um (a) exce-
lente arquiteto (a). bell ,quero te contar que, mesmo no tormento que
a minha vida é desde a minha infância , o período conturbado da
pandemia e várias outras coisas ,consegui passar na faculdade na
primeira tentativa , por isso uma nova definição . Amor nem sempre
se relaciona com uma atração sexual, mas sim com um sentimento
de admiração e pertencimento á um lugar. Eu pertenço à arquitetura.

Por falar em pertencimento, sinto-me um pouco deslocada


na faculdade. Ter amizades inter-raciais é complicado, ainda mais
quando se trata desse mundo colonial. Essa visão de que o mundo
gira em torno da Europa , faz com que as outras culturas pareçam
inexistentes e reforça todo o racismo enraizado no mundo de hoje e
de muitos anos atrás também.

Sendo Assim, quando procuro seu nome na internet, me


causa uma leve revolta. Você deveria ser mais vista e valorizada
por ser: mulher, negra, feminista, ativista antirracista e também uma
grande autora. Ser como você num mundo tão antiquado é uma
das formas mais belas de contribuir para melhorar o ambiente em
que vivemos. Agradeço desde já a pessoa que me mostrou o ser
que você é. Vamos transgredir as leis quando elas forem opres-
soras a qualquer raça.

Um abraço e um beijo da sua nova grande fã.

Barreiras (BA), 7 de maio de 2023.

SUMÁRIO 373
REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2.ed. São


Paulo, SP: WMF Martins Fontes, 2013.

SUMÁRIO 374
Daniele do Nascimento Silva

AMORES EM
MOVIMENTO
Oi, bell!!!

Como é bom receber notícias suas e poder responder. Mas


estou triste, porque está é a nossa última carta, mas entendo que
você precisa ir e não poderemos nos falar, por um momento.

Você sempre vem com perguntas difíceis, “como recomecei


a vida depois de perder o amor?”

Deixar de receber o amor é tão doloroso! Perdi o maior amor


de minha vida, o meu gentil e doce pai. Foi quando meu coração
parou pela primeira vez. Neste dia eu congelei, o mar secou, o mundo
perdeu a cor, do nada tudo era tons de branco e cinza. Os pássaros
e a sereia pararam de entoar seu canto e o leão e o trovão perderam
seu bramido e já não me metiam medo, perdi o compasso da vida.

A duras penas descobri que todo amor, até o mais lindo, puro
e saudável traz dor. Mas ainda assim vale a pena vivê-lo. E é incrível
as facetas do amor com a dor. Nessa nova fase descobri que quando
a gente para de receber o amor, a gente não deixa de senti-lo, a
gente não deixa de amar porque o objeto de nosso amor não estar
mais presente ou porque já não podemos mais sentir seu amor como
antes. Eu não parei de amar meu pai, só não posso mais devolver
meu sentimento e isso que deixa doloroso e o peito pesado. O que
fazer com o sentimento no peito que não encontra mais o caminho
para seu objeto de amor?

Eu lembrei de suas cartas anteriores, bell e decidi, delibera-


damente, mais uma vez voltar a amar, amar a mim, a vida, as pessoas,
amar mais meus sobrinhos, minha família, meus alunos e alunas, os
que me amam e nunca, nunca deixa de ser objeto de meu próprio
amor! Eu escolhi amar, ainda que isso implique espinhos, prefiro os
ferrões de uma vida com amor, a uma vida sem muitas dores e em
desamor. Acredito que meu pai ficaria feliz com essa atitude, amor
em movimento é vida, parado é morte em vida.

SUMÁRIO 376
Tenho novidades, enfim, comecei na escola nova, gostava
muito das relações que havia construído na escola anterior com quase
todos os colegas e com a comunidade. Contudo, não aguentava mais
o favoritismo que a branquitude tinha, a competição feminina, ora me
sentia invisível, ora excluída, minhas ideias eram roubadas e nunca
valorizadas. A nova escola é perto de casa, posso ir a pé; e é quase
em frente ao mar. Também é dentro da comunidade marcado pela vio-
lência do tráfico, do tribunal do crime e da polícia. Não é um ambiente
externo amistoso, mas há um espaço de aquilombamento interno.

Estou como professora na educação infantil, são as crianças


mais lindas, danadas e amorosas do mundo, pretinhas e pretinhos
de todas as gradações, tão fofos com suas bochechas gordinhas
pra apertar, e os cabelos são de uma diversidade, tranças, blacks,
cachinhos e birotes. Apesar da fofura, não é incomum a alienação
parental, há muitas mães solos que carregam seus lares nas costas e
que vivem em condições de subalternidade, tentando sobreviver em
subempregos. É doloroso assistir a reprodução das pobrezas e do
desamor, mulheres abandonadas pelo Estado, por seus companhei-
ros, famílias, inclusive por si mesma.

Embora sejam crianças, por serem de periferias, suas infân-


cias são negadas ou cooptadas da classe social, da raça, da violên-
cia, da desigualdade social e da falaciosa guerra as drogas, é uma
série de fatores que atuam ora juntos, ora isolados. Estou empolgada
com o trabalho, apesar do medo e do cansaço, da pressão externa
da gestão estadual por conta de um projeto de educação neoliberal.
Ainda assim, sigo empolgada, quero que minhas crianças com suas
cores e classe tenham suas infâncias protegidas, é um trabalho de
resgate do corpo infantil, do corpo infantil negro como um local de
afeto e cuidado, desconstruindo a imagem de dominação, violência e
opressão naturalmente associados aos corpos negros é um desafio,
um caminho árduo a ser construído, mas necessário se desejamos
uma sociedade em que a etnia, a raça não será o fator determinante
para ter qualidade, direito a vida, direito a sonhos e a um futuro.

SUMÁRIO 377
Falando em futuro, não posso mais fugir de falar de minha
vida amorosa. Infelizmente, não estou com ninguém, eu queria e as
vezes tenho dúvida se o amor romântico é para mim, sonho com o
amor fofo de meus pais de cuidado e cumplicidade e que durou 40
anos, até meu pai partir. Eu sigo anelando, esperançando o amor e
agindo, desejo uma casa cheia de filhos do ventre e do coração e
um cúmplice de caminhada, mas por ora sigo só. Estou me amando,
entrei na academia e até marquei um dentista, vou dar entrada nos
papéis para adoção, resolvi cuida de mim e me colocar como minha
prioridade, talvez pela primeira vez na vida. Autoamor é autocuidado
e assim, estabeleço o padrão de amor que quero para mim.

Não estou preparada para me despedir de ti. Muito obrigada


por tudo, por sua irmandade, por suas palavras, você marcou minha
vida, obrigada por me ensinar a esperançar, que esperança é ação
em movimento para fazer um novo futuro e por me ensinar sobre o
amor. Dá um abraço no meu pai. Gratidão, bell.

Dani Silva

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2020.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2.ed. São


Paulo, SP: WMF Martins Fontes, 2017.

SUMÁRIO 378
Luciana Dantas de Paula

CARTA PARA BELL HOOKS:


EDUCAÇÃO, LIBERDADE E AMOR
Querida bell,

Espero que não se importe em te chamar assim. Depois de


todos esses anos, sinto que você já se transformou em alguém com
quem dialogo com uma certa intimidade. Bom, mas me deixe voltar
do começo. Queria te contar como te conheci, pois essa é uma his-
tória que guardo com muito carinho.

A primeira vez que li um texto seu foi no início da minha gra-


duação em Psicologia. Não me lembro mais para qual disciplina um
livro com um texto seu foi passado. Afinal, naquela época, eu lia o que
os professores mandavam, o que estava entre as listas e mais listas
de leitura para cada semestre. Nessas listas, encontrei muitos textos
que me fizeram questionar se eu sabia mesmo ler, que me fizeram
duvidar do meu lugar naquela universidade, pois havia tanta coisa
que eu já “deveria saber”, como assim não conseguia compreender
um texto em sua totalidade da primeira vez que o lia? Encontrei tam-
bém textos tediosos, desinteressantes, alguns textos interessantes, e
então, um texto seu.

Estava no livro de Guacira Lopes Louro (2013). Até então, no


Brasil, quase não existiam traduções suas, essa era uma das exce-
ções. Se tratava de um capítulo do seu livro “Ensinando a transgre-
dir” que você escreveu em 1994 e o capítulo era “Eros, erotismo e o
processo pedagógicos”. Nele você falava sobre ser professora e ter
um corpo em sala de aula. Sobre professores e alunos estarem ali
não só com suas “mentes” para abordar assuntos intelectuais, mas
de corpo inteiro. Eu lembro de um exemplo que você usou, relatando
quando você estava no meio de uma aula e sentiu vontade de ir ao
banheiro, e como aquilo foi surpreendente! Você nunca tinha visto
um professor parando a aula, pois precisava ir ao banheiro, ainda
mais na universidade. Como você poderia fazer isso? Eu ri alto com
você, bell! Eu também não me lembro de nenhum professor meu
parando a aula para ir ao banheiro. Uma necessidade fisiológica tão
básica, mas que parece que quase proibida de lembrarmos que existe.

SUMÁRIO 380
Que temos um corpo, que sentimos, que não aprendemos só com a
«mente», mas com todo o nosso corpo. Os desconfortos que apren-
demos a ignorar, o que fazemos para nos adequar a esse sistema,
isso nos afeta profundamente e afeta nossa aprendizagem.

É difícil expressar em palavras como aquele capítulo me tocou,


bell. Como ele falou de mim e para mim coisas que estavam laten-
tes no meu coração, mas que ainda não tinham nome, não tinham
o contorno da compreensão. A partir dessa primeira leitura fiquei
instigada a procurar mais sobre você. Encontrei seu livro Ensinando
a transgredir (Hooks, 2013) - que sorte a minha encontrá-lo saindo
do forno da tradução, naquele mesmo ano. Li e me emocionei ainda
mais. Procurei pelo seu nome nos sites de busca da época, e me
deparei com algumas palestras no YouTube, e foi aí que você se tor-
nou uma das minhas principais referências. Te ver interagindo com
entrevistadores, alunos, palestrantes foi testemunhar sua prática
educativa, seu ativismo e seu amor. Foi uma costura de coisas tão
surpreendentes para mim… eu fiquei encantada e emocionada, pois
não sabia que alguém como você poderia existir. Alguém que falava
de amor dentro de uma universidade!? Amor lado a lado da denúncia
do capitalismo patriarcal imperialista supremacista branco?

A sua existência, bell, me deu espaço e inspiração para ima-


ginar a minha própria existência, a minha própria prática. Você me
ajudava a pensar que psicóloga eu queria ser, que educadora eu
queria ser. Eu estava em formação em psicologia ao mesmo tempo
que comecei a ser professora, e meu encontro com a educação
me revirou por dentro. Sabe, bell, eu achava que eu era uma aluna
mediana para ruim. Nunca me destaquei na escola, me sentia um
tanto invisível. Não dava trabalho para meus professores, tirava notas
razoáveis, e era isso. Não era considerada uma “aluna problema”. Fiz
parte da primeira geração da minha família a estudar numa escola
privada, considerada boa na minha cidade. A rota traçada para mim
sem meu consentimento era a rota da educação. Tinha que estudar,
fazer faculdade era minha obrigação, e ainda tinha que me conside-
rar sortuda e agradecida por “só estudar”.

SUMÁRIO 381
É, era sorte mesmo, bell, era privilégio, porque meus pais não
tiveram o mesmo, muito menos meus avós. Eles e elas trabalharam
desde cedo, e mesmo diante de tanto esforço nunca deixaram de
valorizar a educação. Esta era vista como caminho de emancipação,
para a construção de uma vida melhor. Mas o que eu não sabia ainda,
era que uma educação a serviço do capitalismo patriarcal supre-
macista branco não seria emancipatória. Essa era a fonte da minha
angústia no Ensino Médio para qual eu ainda não tinha nome, bell.
Eu sabia que estava em uma posição de privilégio, mas não entendia
que outros aspectos também me atravessavam. Não entendia por
que eu não poderia ter nenhuma escolha ou autonomia sobre o que
eu estudava. Por que os livros que eu leria deveriam ser escolhidos
por mim ao invés de escolhê-los? Por que, quando eu fazia uma per-
gunta difícil em sala de aula, a resposta do professor era “Isso não
importa.” ou “Ano que vem você verá essa matéria.”? Por que não
encontrava o tom da minha pele, a minha história, a história da minha
família contemplada naquele local de mármore, naqueles livros didá-
ticos? Por que quando eu ouvia dos meus colegas “Racismo não
existe.” essa frase não era seguida de nenhuma, absolutamente
nenhuma, intervenção de professores ou de outros colegas?

Quantos alunos e alunas também não passam por isso cala-


dos(as) e sem respostas. Depois dessa experiência, eu não sabia se
um dia teria respostas, até que encontrei o seu trabalho, bell. Nele
encontrei tantas ressonâncias. Conhecer a sua história com a edu-
cação, das escolas onde você estudou, dos seus professores. Eram
tantas diferenças, bell. Você viveu o contexto de segregação dos
Estados Unidos. Você viveu o sonho de se tornar escritora, sendo
transformado em tornar-se escritora e professora. Nossos pontos
de partida e contextos têm muitas diferenças, ao mesmo tempo,
sentimentos tão similares. Fiquei pensando como, nós humanos,
podemos nos conectar tanto com alguém de tão longe, que nunca
tivemos a oportunidade de conhecer pessoalmente. Como podemos
encontrar pessoas que falam tanto com nosso coração, com nossas
angústias e também com nossa esperança? Isso, para mim, é a expe-
riência de uma educação verdadeiramente emancipatória.

SUMÁRIO 382
Com seus livros, com a sua voz doce e firme, com o seu radi-
calismo amoroso, descobri que a coexistência de ativismo e amoro-
sidade, de intelectualidade e sensibilidade eram possíveis. Descobri
que era possível nomear injustiças que presenciei a vida toda. Você
já me trouxe tanto acalento, bell. Nunca perco a oportunidade de
dizer que All About Love (Hooks, 2001) (Tudo sobre o amor) não é
só um livro, é um abraço apertado na alma. Um abraço e acalento
profundos porque reconhecem dores, reconhece o luto e as con-
tradições da sociedade em que vivemos, mas também que trazem
a urgência de um cuidado coletivo, de um olhar generoso para nós
mesmos e nossa caminhada. É proposital, acredito, não falar em
autocuidado, que tanto remete a uma lógica individualista, mas um
cuidado construído em comunidade, um cuidado que reconhece
os sistemas de opressão e que as saídas são coletivas. Como você
afirma em Teaching Community: A Pedagogy of Hope (Ensinando
comunidade: uma pedagogia da esperança):
A cultura de dominação tentou nos manter com medo,
nos fazer escolher a segurança em vez do risco, a mes-
mice em vez da diversidade. Superar esse medo, desco-
brir o que nos conecta, celebrar nossas diferenças; este
é o processo que nos aproxima, que nos dá um mundo
de valores compartilhados, de comunidade significativa
(Hooks, 2003, p. 197).

Gostaria de te dizer obrigada, bell. Meu trabalho, pesquisa e prá-


tica pedagógica só são como são porque tive contato com seu trabalho.
Suas obras para mim são guia, são convites para autorreflexão e para
partilha com meus grupos de pesquisa e meus alunos. Que possamos
seguir construindo comunidade, construindo conhecimento e sentido
através do seu estímulo e inspiração. Obrigada por tudo. Obrigada por
tanto. Aprendi com você o poder de uma educação para liberdade.

Brasília, 18 de setembro de 2023.

SUMÁRIO 383
REFERÊNCIAS
HOOKS, B. All about love: new visions. New York: Harper Collins, 2001.

HOOKS, B. Teaching Community: A Pedagogy of Hope. New York: Routledge, 2003.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução


de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes Ltda., 2013.

LOURO, G. L. O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

SUMÁRIO 384
Emanuelle da Silva Oliveira

ESCOLHER SENTIR
Querida bell,

Em uma lembrança de um passado não tão recente, que


mais parece ter sido vivida hoje, me lembro como se fosse a pri-
meira vez em que me permiti sentir por entre suas palavras ditas
entre páginas. Elas pareciam cartas escritas para mim, ali naquele
texto “Intelectuais negras” que estava sendo lido em uma sala de aula
de uma universidade.

Quem diria, né? Eu, em uma Universidade Federal, a pri-


meira da minha família a ingressar naquele espaço, e a que custo?
Foram muitos custos, custos financeiros, custosos trabalhos dos
que vieram antes de mim, custosas lágrimas, custoso suor, custo-
sos joelhos da minha avó no chão pedindo por mim, e ali estava
eu percebendo finalmente que eu poderia conseguir terminar aquilo
que eu tinha iniciado.

Aquele texto se tornou meu maior refúgio e o nome dele se


tornou meu maior sonho “intelectuais negras”, um frio na barriga só
de pensar nisso e nossa… escrevo essa carta pensando em outras
pessoas que ainda não te conheceram e que, urgentemente, pre-
cisam saber como tudo que você disse é precioso. Depois de todo
o sentir em te ler pela primeira vez nunca mais parei de sentir, te
procurei em outras páginas entre palavras, me enchi de anseios, e
quando foi necessário, aprendi a erguer a voz; e me preenchi de tudo
sobre o amor. Durante toda essa jornada, me lembrei de uma frase
que marquei ali naquele texto Intelectuais negras da primeira vez
que o li “optei conscientemente por tornar-me uma intelectual, pois
era esse o trabalho que me permitia entender minha realidade e o
mundo em volta encarar e compreender o concreto”, e desde então é
assim que busco me ver.

Constantemente, me sinto afastada da possibilidade de


me tornar uma intelectual negra, na maior parte das vezes tenho a
tendência de ser arrastada para um fundo de poço que parece ter
sido construída por minhas próprias mãos, constantemente em um

SUMÁRIO 386
looping da famosa síndrome da impostora, e um desses momentos
da minha maior falta de autocrença me vi pensando que precisava
encontrar de novo a sensação das suas palavras. E esse momento
foi a pandemia, foi quando meu corpo se tornou prisioneiro de minha
mente entre paredes e meu afeto se tornou prisão do meu corpo.

Sozinha, eu estava sozinha.

Preciso te confidenciar algo. Apesar de hoje saber que sou


uma mulher negra e ser plena e feliz assim, nem sempre vivi dessa
forma. Um dia quando ainda o topo da minha cabeça ainda não
ultrapassava a altura da do quadril da minha avó onde ela deixava
os pregadores pendurados. Lembro que meu tio chegou para mim
e disse “você sabe né, você não é marrom bombom, isso não existe.
VOCÊ É NEGRA, negra igual ao Tio”. Aquilo para minha mente infan-
til foi um motivo de enorme sofrimento. Como podia? Meu tio que na
época eu tinha como imagem paterna me dizer tal palavra que me
causou tanto sofrimento. Não tinha sido ele que me ensinou a andar
de bicicleta e quando eu caía me abraçava e lavava meus joelhos? O
amor pode nos fazer sofrer.

Naquele dia minha avó me abraçou enquanto eu chorava de


soluçar sem parar e disse: “deixa ele, ele não sabe o que diz”, e foi
aquelas palavras que eu me agarrei, minha avó era mais velha, mais
sábia, então a palavra dela era a lei a ser considerada. Tudo isso é muito
diferente do que sua avó faria, né? Lembro quando li Pertencimento:
uma cultura do lugar. Já tinha lido outras vezes o que você dizia sobre
sua avó, mas foi ali que eu percebi o quanto ela era verdadeiramente
importante para você, enquanto você descrevia cada um dos seus
traços e sua admiração pelo espírito livre que ela era. Nossas avós não
são parecidas, mas eu amo a minha igual você amava a sua.

Acho que como já deu para perceber eu te vejo em vários


lugares na minha vida, mas teve um momento que eu tive medo,
foi quando você disse.

SUMÁRIO 387
Foi nas colinas do Kentucky que minha vida começou.
Elas representam o lugar de expectativas e possibilida-
des bem como o cenário de todos os meus medos, dos
monstros que me perseguem e assombram meu sono
(Hooks, 2022. p. 29).

Apesar de te entender hoje, naquele momento me pergun-


tei “como ela teve coragem de voltar para um lugar que a causou
sentimentos negativos e conflitantes” veja bem, você precisa me
entender, eu estava mais uma vez saindo de casa, depois daqueles
dois anos da pandemia que as únicas pessoas que eu tinha contato
estavam do outro lado da tela e a coisa mais perto de contato com
novas perspectivas que eu tinha eram as pessoas que eu conhecia
porque líamos os mesmos livros. Mas ai daquela vez que eu estava
finalmente indo embora depois de tanto tempo eu percebi as mon-
tanhas, seria mentira dizer que só você me fez pensar nisso, na ver-
dade ouso dizer que a anos eu recebia essas informações de todos a
minha volta, mas eu ignorava.

Mas daquela vez, eu lembrei sobre as montanhas que você


dizia que estavam na sua vida desde o início, e lembrei todas as vezes
que minha mãe falou sobre como ela amava voltar para casa pela
vista, a vista das montanhas que lembravam a ela que ela estava em
um lugar seguro aí eu te entendi o lugar também é afeto e conforto
então mais uma vez através das suas palavras eu escolhi sentir, senti
medo, senti amor e me permiti ser corajosa.

Eu poderia dizer que minhas palavras não são capazes


de expressar a gratidão que eu sinto por você, mas é justo nelas
que estão minhas esperanças, afinal um dia foram suas palavras que
estiveram lá para mim, me dado um lugar para olhar através, um
lugar que eu sentisse esperança e segurança.

Com amor genuíno, e caloroso.

Manu

SUMÁRIO 388
REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Anseios: Raça, Gênero e Políticas Culturais. 2.ed. São Paulo: Elefante, 2019a.

HOOKS, B. Erguer a voz: Pensar Como Feminista, Pensar Como Negra. 2.ed. São Paulo:
Elefante, 2019b.

HOOKS, B. Intelectuais negras. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, UFSC, v. 3,


n. 2, p. 464-476, 2005

HOOKS, B. Pertencimento: uma cultura do lugar. São Paulo: Elefante, 2022.

HOOKS, B. Tudo sobre amor: novas perspectivas. 2. ed. São Paulo: Elefante, 2021.

SUMÁRIO 389
Roberta da Silva Gomes

COLETIVO BELL HOOKS:


AQUILOMBAMENTO E POSSIBILIDADE
DE (RE)EXISTÊNCIA17

17 Carta inspirada em uma carta presente na minha dissertação de


mestrado intitulada: Erguer a voz, escreviver e cartografar: memórias
de uma mulher negra e lésbica na pós-graduação.
Querida bell hooks,

Queria compartilhar um pouco contigo sobre como tem sido


escrever a minha dissertação do mestrado em um programa de pós-
-graduação em Psicologia Social e Institucional, em uma universidade
pública federal no estado mais ao sul do Brasil, enquanto uma mulher
negra e lésbica, orientada por uma educadora também mulher negra
e lésbica. Escrever essa pesquisa tem sido uma intensa experiência
de colocar em palavras as minhas dores, anseios e desejos.

De reforçar algo que eu já acreditava, mas que se materia-


lizou ainda mais intensamente nos últimos meses, que somente
através da luta ativa e coletiva pela minha vida negra e lésbica é que
eu poderei seguir existindo (Mombaça, 2021). Não somente eu, mas
todas aquelas e aqueles que fogem à regra, que se colocam contra-
-hegemonicamente em combate a essa academia colonial, branca,
burguesa e patriarcal. A minha escrita vem sendo potência para ela-
borar, para dar vazão aos sentimentos, para produzir resistência e
possibilitar a construção da minha autorrecuperação (Hooks, 2019a).
Afinal, como é possível sobreviver sendo uma mulher negra e lésbica
dentro da academia? Como usar a minha própria experiência para
produzir conhecimento e resistência em um contexto de racismo?
São algumas das perguntas que tenho me feito cotidianamente.

Desde o meu ingresso no Coletivo bell hooks: formação e


políticas de cuidado, coordenado pela minha orientadora, Luciana
Rodrigues, o meu percurso de mestrado ganhou outras cores – lite-
ralmente, ficou menos embranquecido – inspirações, movimenta-
ções e desejos de construir uma outra possibilidade de academia.
Pertencer ao coletivo é ter a certeza de que, como diz Sued Nunes
em sua música Povoada18, “eu sou uma, mas não sou só”. Foi e segue

18 Povoada - Sued Nunes: [...] Eu sou uma, mas não sou só, minha fia’/Povoada/Quem falou que eu
ando só?/Nessa terra, nesse chão de meu Deus/Sou uma mas não sou só/Povoada/Quem falou
que eu ando só?/Tenho em mim mais de muitos/Sou uma mas não sou só/Povoada/Quem falou
que eu ando só?/Nessa terra, nesse chão de meu Deus/Sou uma mas não sou só/Povoada/Quem
falou que eu ando só?/Tenho em mim mais de muitos/Sou uma mas não sou só (5x)/Eu sou uma,
mas não sou só, ‘mermo!

SUMÁRIO 391
sendo através do coletivo que eu tenho descoberto as respostas
para as perguntas que faço no primeiro parágrafo dessa carta.

Seja nas reuniões do grupo de pesquisa ou do grupo de


orientação, encontrar com o meu povo sempre me proporciona
uma sensação de reenergização, de carregamento das baterias. Às
vezes, nas correrias e demandas do cotidiano, confesso que sinto
preguiça de ir até à universidade para nossos encontros, mas nunca
me arrependo de ir. O sentimento de quentinho no coração após
cada encontro é sempre certeiro. Lembro de uma fala de Sobonfu
Somé19 em um vídeo que assisti recentemente no YouTube, no qual
a autora diz que: “Comunidade é a luz que guia atrás de qualquer
ser ou qualquer pessoa, que ajuda a alcançar o seu propósito. Sem
comunidade o indivíduo está perdido” (Asili Coletiva, 2020).

Glória Anzaldúa (2021) nos fala sobre as alianças que fazemos


na busca de vivências que façam sentido, que nos toquem de forma
diferente, que nos possibilite movimento. Essas alianças ocorrem e
podem justamente ocorrer entre pessoas que são vítimas de racismo e
do sexismo. Pensar essas alianças como uma forma de sobrevivência e
resistência dentro da academia faz bastante sentido, me parece. O nosso
Coletivo é múltiplo em sua diversidade de idade, raça, gênero, orienta-
ção sexual, tanto na pesquisa, quanto na orientação e na extensão.

Falando especificamente do grupo de orientação, este tem


sido um espaço no qual o significado e o pertencimento para me
manter na academia tem surgido e acredito que sejam sentimentos
comuns a todas ou quase todas nós que compomos o grupo. Foi
conversando com minhas colegas e orientadora que me lembrei
de Audre Lorde (2019), acerca da importância de reconhecermos o
nosso papel como essencial no processo de transformar o silêncio
em linguagem e em ação. Quando olho para os lados dentro do
meu grupo de orientação e enxergo pessoas negras como eu – mas
não só, temos também mulheres brancas que se propõem a olhar

19 O vídeo você pode acessar aqui: https://www.youtube.com/watch?v=N2qsEXG23t0

SUMÁRIO 392
criticamente para a sua supremacia e privilégios brancos, construindo
este espaço conosco – que também estão subvertendo a ordem
colonial da academia, entendo a força e a potência que o aquilomba-
mento (Nascimento, 2021) possui ao fornecer força e esperança para
aquelas que ousam transgredir e erguer a voz (Hooks, 2019a).

As nossas pesquisas de mestrado e doutorado têm girado


em torno das políticas da memória, do testemunho, das nossas nar-
rativas pessoais e escrevivências. Algumas atravessam diretamente
o ambiente acadêmico, outras não tanto, mas algo que elas têm em
comum é a proposta de ser um estudo, uma produção de conhe-
cimento contracolonial, que se coloque em oposição à hegemonia
branca, eurocentrada, colonial, hetero-cis-normativa da academia.

Antônio Bispo dos Santos (2023), o Nêgo Bispo, diz que ao se


conectar com suas memórias se fortalece para dar continuidade ao
percurso. é exatamente isso que entendo que fazemos no Coletivo
bell hooks quando nos conectamos com nossas memórias, sejam
elas individuais ou coletivas: a gente se sustenta coletivamente, pois
como diz Ailton Krenak (2020), nenhum sujeito de nenhum povo
sai sozinho pelo mundo, somos constelação. Trago mais uma vez
Sobonfu Somé (2007, p. 31) que nos diz que “a comunidade é o espí-
rito, a luz-guia da tribo; é onde as pessoas se reúnem para realizar
um objetivo específico, para ajudar os outros a realizarem seu propó-
sito e para cuidar umas das outras.”

Nesse compartilhar da comunidade, entra o que Antônio


Bispo dos Santos (2023) chama de confluência, que produz cuidado,
compartilhamento de ações, de gestos e de afetos. E esse confluir
rende, porque ele vai e vem, ele tem reciprocidade e energia que nos
movimenta para o reconhecimento, para o respeito. A gente quando
conflui, aumenta, amplia. A gente cria quilombos, que foram e conti-
nuam sendo “um local onde a liberdade era praticada, onde os laços
étnicos e ancestrais eram revigorados” (Nascimento, 1979, p. 17).

SUMÁRIO 393
Os quilombos surgem como uma necessidade dos africanos
escravizados em resgatar a sua liberdade e dignidade, fugindo dos
cativeiros e construindo uma sociedade livre (Nascimento, 2019). O
quilombismo exerceu um “papel fundamental na consciência histó-
rica dos negros” (Nascimento, 1979, p. 18), se estruturando através de
uma rede de associação, da solidariedade, convivência. A sociedade
quilombola era – e é ainda hoje – contra a propriedade privada da
terra, dos meios de produção e de elementos da natureza, defen-
dendo que a terra, as árvores, os rios e todos os elementos básicos
são de propriedade e uso coletivo (Nascimento, 2019).
Em seu livro Um feminismo decolonial, Françoise Vergès (2020)
retrata que a quilombagem era uma oportunidade de futuro, mesmo
quando ele é socialmente negado, pela igreja, pelo Estado, pela cultura.
Apesar do sistema de escravidão, os quilombolas lutaram e se declararam
livres, reivindicando e vivendo seus sonhos, suas esperanças e utopias.
Analisar a história do quilombismo é ter a certeza de que
temos a missão, enquanto população negra que resiste, de organizar
a nossa própria luta para garantirmos a sobrevivência e existência do
nosso povo (Nascimento, 2019). E transpondo essa tarefa para a aca-
demia, temos entendido no Coletivo bell hooks – e trabalhado para
isso – que é um dever expurgarmos a supremacia branca de nosso
meio. E fazemos isso não só com as pessoas negras, mas também
com as pessoas brancas que admitem terem sido historicamente
privilegiadas e beneficiadas por sua cor, por sua racialização branca.
Termos pessoas brancas ao nosso lado não significa que elas nunca
erram, mas que ao errarem são capazes de encarar o próprio erro e
se propor a corrigi-lo (Hooks, 2021).
Eu tenho, mais do que compreendido, sentido e vivido um aqui-
lombamento dentro do Coletivo bell hooks, que me possibilita estar viva,
construir coletivamente resistências e permanências. Eu me reconheço
nesse espaço, eu existo porque as outras pessoas existem e me reco-
nhecem. Nossa forma de existir, de pensar é circular (Piedade, 2017), é
espiralar (Martins, 2021), é começo, meio e começo (Bispo, 2023).

Porto Alegre, 24 de setembro de 2023.

SUMÁRIO 394
REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, G. A vulva é uma ferida aberta e outros ensaios. Rio de janeiro: A Bolha, 2021.

ASILI COLETIVA. Sobonfu Somé abanando o fogo da comunidade. 2020. Disponível


em: https://www.youtube.com/watch?v=N2qsEXG23t0. Acesso em: 25 jul. 2023.

HOOKS, B. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Editora
Elefante, 2019a.

HOOKS, B. Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Editora


Elefante, 2021.

KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

LORDE, A. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

MARTINS, L. M. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de


Janeiro: Cobogó, 2021.

MOMBAÇA, J. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2021.

NASCIMENTO, A. O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Rio de


Janeiro: Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, M. B. O Quilombo do Jabaquara. In: Revista de Cultura Vozes, v. 73, n.3,


abr, 1979.

NASCIMENTO, M. B. In: RATTS, A. (org). Uma história feita por mãos negras. Rio de
Janeiro: Zahar, 2021.

PIEDADE, V. Dororidade. São Paulo: NOZ, 2017.

SANTOS, A. B. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.

SOMÉ, S. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras


de se relacionar. São Paulo: Odysseus, 2007.
VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

SUMÁRIO 395
Juliana Oliveira Albuquerque de Souza

SIGAMOS JUNTAS!
Querida bell hooks,

A cada leitura de seus textos, sinto-me mais próxima a você,


parece que escuto sua Voz e de tantas outras mulheres a cada pala-
vra lida, uma intimidade construída a partir dos seus escritos que
testemunham sua luta, suas ideias e ideais, sua trajetória. Preciso te
contar que essa minha aproximação com a teoria feminista é recente
e foi a partir do meu retorno à academia, quem diria, não é?! Um
espaço marcado pelo sexismo e pela supremacia masculina, como
você tão bem denunciou, mas que possui também espaços de resis-
tência em busca de uma transformação social. E foi no Programa
de Pós Graduação de Psicologia da UFPE, em plena pandemia da
Covid-19, que tive acesso a alguns textos sobre a teoria feminista que
me permitiram vislumbrar as estruturas e dinâmicas patriarcais que
atravessam esses espaços acadêmicos.

A minha pesquisa de doutorado é na área de psicologia do


desenvolvimento humano e psicologia social, e agora vejo como é
imprescindível uma perspectiva feminista como ponte entre os mais
diversos campos da psicologia. Quando iniciei a pesquisa de campo,
durante as entrevistas, algumas falas de idosas e idosos foram adqui-
rindo relevos diferentes, sobressaindo dentro de uma análise de
gênero. Chamou minha atenção a fala recorrente de mulheres idosas
sobre como estão vivenciando a velhice com qualidade de vida a
partir de sua viuvez, como tiveram a oportunidade de estudar, parti-
cipar efetivamente de atividades sociais, esportivas, religiosas, mais
objetivamente, puderam experienciar a liberdade após a separação
ou morte dos cônjuges. Em contrapartida, os homens idosos trazem
em seu discurso uma trajetória focada no trabalho, nas suas reali-
zações profissionais, sem amarras nem restrições à sua “liberdade”.

Essa questão ilustra bem o que você explicou sobre como


a realidade pública e as estruturas institucionais de dominação, as
relações de poder a partir da supremacia masculina, concretizam a
opressão e a exploração no espaço privado (Hooks, 2019a), não há

SUMÁRIO 397
mesmo como manter uma visão dissociada entre a vida pública e
privada, e isso faz cada vez mais sentido no nosso contexto atual.

Uma outra questão que também chamou minha atenção foi


o fato de algumas mulheres não conseguirem se identificar como
mulheres pretas, podiam até ser “morena”, mas de forma alguma
preta. E te “ouvir” falar sobre a desvalorização da feminilidade negra
fez todo o sentido para compreender o incômodo e preconceito de
mulheres sobre sua própria origem, ancestralidade, sobre a cor da
sua pele. Essa desvalorização compreendida a partir de uma cultura
patriarcal, capitalista, imperialista e supremacista branca, que ao
longo da socialização dessas mulheres vai imprimindo suas marcas
na subjetividade, minando as suas potencialidades a partir dessas
desigualdades de raça, gênero e classe social (Hooks, 2020).

Apesar de essas mulheres ainda não expressarem uma


consciência reflexiva sobre essas questões de gênero, fiquei feliz em
vê-las vivenciado certa autonomia, um protagonismo social mesmo
que de forma tímida e recente na sua velhice, mas quantas perdas e
lutos levam consigo pelo fato de serem mulheres, pretas e pobres. Ao
ler seus textos sobre a mulher negra na pós-graduação, sobre a falta
de representatividade de professoras negras, percebi a gravidade
das repercussões desse ambiente cruel, racista e machista para as
mulheres pretas na academia. Com você entendi como um lugar que
simboliza racionalidade e intelectualidade pode ser também espaço
de dominação e opressão racial e sexista, e como é importante dar
visibilidade às nossas histórias (Hooks, 2019a).

Na minha experiência acadêmica não vivenciei ou melhor,


não percebi exclusões ou preconceito com minha tonalidade de pele,
que por isso hoje, eu identifico como parda, mas sempre me diziam
que eu era branca, num movimento de embranquecimento e aniqui-
lamento da minha ancestralidade e pertencimento à negritude. Os
seus escritos me encorajaram a buscar autenticidade e priorizar uma
visão crítica e reflexiva para a minha escrita e prática acadêmica.

SUMÁRIO 398
Aprendi com você que erguer a Voz num contexto atraves-
sado por questões de desigualdades de gênero, raça e classe social
é realmente um ato de muita coragem, mas principalmente de resis-
tência e desejo por profundas transformações de consciência cultu-
ral. E aí, mais uma vez fiquei surpresa com seus escritos, quando você
traz uma visão crítica sobre a nossa participação nessa sustentação
de estruturas sexistas. Como nós, mulheres, também recorremos à
violência, mesmo que de modo distinto dos homens, e como fomos
educadas para aceitar a opressão de grupo e o uso da força como
exercício de autoridade.

Assim, pude compreender melhor como essas mulheres ido-


sas submeteram-se por tantos anos e algumas ainda permanecem,
em relacionamentos conjugais de opressão e dominação, nos quais
muitas vezes o “amor” é atrelado à violência. Quantas mulheres acei-
taram a violência para serem recompensadas com alguma demons-
tração de amor e cuidado? Como você bem explicou, os dispositivos
culturais reforçam padrões sexistas, essa dinâmica violenta nos rela-
cionamentos amorosos, a dominação como símbolo de masculini-
dade e a submissão como condição da feminilidade (Hooks, 2019b).

Hoje o que mais me inquieta é o desejo de que a teoria femi-


nista seja acessada por muitas mulheres, nos diferentes espaços
da nossa sociedade, mas como ainda é difícil compartilhar essas
ideias dentro de uma sociedade fundamentada nas hierarquias e
desigualdades sociais (gênero, classe e raça). E você nos encoraja
para esse propósito e ainda nos alerta sobre a importância de incluir
os homens nessa luta pelo feminismo (Hooks, 2021). Que desafio!
Com tantos privilégios e o poder que eles usufruem nessa estrutura
sexista, fiquei pensando o que de fato os mobilizariam ao engaja-
mento numa transformação social feminista, contra o patriarcado, o
sexismo e supremacia masculina.

Não consigo esgotar aqui as muitas questões suscitadas


pelos seus textos para minha prática de pesquisa, muito menos para

SUMÁRIO 399
minha vida. Desejo que minhas pesquisas tenham consonância com
os objetivos do feminismo (dentro dessa sua perspectiva inclusiva e
amorosa), de uma educação democrática e libertadora, que ultrapas-
sem os limites da academia e sejam acessadas por aquelas que de
fato precisam erguer suas vozes oprimidas nessa sociedade.

Sigo minha trajetória com um olhar mais atento e crítico, e


também com muitas inquietações, que com certeza me aproxima
de uma educação transformadora e comprometida ética e social-
mente com o coletivo. Agradeço demais pela sua generosidade, por
compartilhar suas histórias, e pelo afeto e diálogo presente na sua
obra, sigamos juntas!

Recife, 22 de outubro de 2022.

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo:
Elefante, 2019a.

HOOKS, B. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019b.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução de Stephanie Borges. São
Paulo: Elefante, 2021.

HOOKS, B. Ensinando o pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante: 2020.

SUMÁRIO 400
Marifainy Mendes da Silva

REFLEXÕES
DE UMA BUSCADORA
DE SABEDORIA:
UMA CARTA PARA BELL HOOKS
Prezada bell,

Espero que esta correspondência seja bem recebida e que traga


inspiração para você. Permita-me começar expressando minha gratidão
sincera por suas importantes contribuições ao campo dos estudos de
gênero, feminismo e raça. Ao desafiar paradigmas e inspirar uma refle-
xão crítica sobre as estruturas de poder e opressão que permeiam nossa
sociedade, seu trabalho tem sido uma fonte constante de inspiração e
questionamento. Ao escrever esta carta, gostaria de compartilhar meus
pensamentos pessoais inspirados em suas obras. Ao mesmo tempo,
colocarei nosso discurso no contexto da sociedade moderna.

Mais do que nunca, a luta pela justiça social e pela igual-


dade de gênero é um assunto predominante em nosso mundo. A
pandemia de COVID-19 mostrou as disparidades existentes e deixou
as pessoas vulneráveis, especialmente as mulheres negras. Quando
penso nas interseções entre racismo, feminismo e desigualdade
econômica, suas palavras, bell hooks, ecoam como um chamado à
ação. Seus esforços para enfatizar a importância do feminismo inter-
seccional nos lembram de que não podemos abordar uma forma de
opressão sem levar em consideração todas as formas de opressão.

Aprendi a importância de dar voz às experiências silenciadas,


especialmente às mulheres negras, por meio da leitura de suas obras.
Sua perspectiva sobre justiça social não se limita às teorias acadêmi-
cas, em vez disso, é baseado em situações práticas. Você nos lembra
que a arte de contar nossas próprias histórias é revolucionária e que
nossas vozes são poderosas ferramentas de resistência.

No entanto, também enfrentamos grandes obstáculos na


nossa luta pela igualdade. Vivemos em um mundo onde persiste a
misoginia, a violência de gênero é uma realidade trágica e as mulhe-
res negras não têm representação suficiente nas mídias e na política.
Sua obra nos ensina a perseverar e resistir, mesmo quando as coisas
parecem impossíveis.

SUMÁRIO 402
Uma das contribuições mais notáveis ​​de bell hooks é sua
ênfase na importância da educação crítica como uma ferramenta
de transformação. Como coordenadora pedagógica na escola onde
trabalho, tivemos a oportunidade de realizar uma intervenção incrí-
vel no primeiro semestre do ano, usando seu livro Meu Cabelo é de
Rainha. Foi uma experiência verdadeiramente impactante.

Quando compartilhamos com os alunos o significado de


escrever seus nomes com letras minúsculas, eles ficaram genui-
namente maravilhados. Essa ação simples alcançou seu objetivo
mesmo em nosso espaço pedagógico limitado. É um testemunho do
poder da obra de bell hooks, que transcende as páginas dos livros e
se torna uma mensagem viva em nossas vidas.

A noção de que a educação pode libertar as pessoas é extre-


mamente poderosa. As instituições educacionais devem ser locais
de conversa abertos onde as vozes marginalizadas sejam ouvidas e
valorizadas. Ainda assim, sabemos que as desigualdades nos siste-
mas educacionais persistem, e seu trabalho nos lembra de que preci-
samos lutar por uma educação realmente inclusiva e transformadora.

Quando penso em sua obra, bell hooks, e as circunstâncias da


contemporaneidade, vejo um mundo onde a diversidade é mais valori-
zada, mas também surpreendeu a resistência. As redes sociais realiza-
ram polarização, mas também permitiram que as pessoas falassem e
discutissem. Por outro lado, sinto esperança nas vozes vibrantes que se
levantam para desafiar as convenções e lutar por um mundo mais justo.

Em suma, você tem uma influência incalculável e é capaz de


nos inspirar a questionar o que está acontecendo. Suas ações e palavras
continuam a influenciar nossas percepções do mundo e nos lembrar
de que somos obrigados a lutar por um futuro mais igualitário e justo.
Obrigado mais uma vez por sua dedicação ao esforço pela igualdade e
justiça. Seu legado continua a nos guiar, e espero que esta correspon-
dência tenha expressado minha admiração e gratidão pelo seu trabalho.

Brasília, 02 de outubro de 2023.

SUMÁRIO 403
Raiane Medeiros Pinheiro

REGISTROS DE UMA
CAMINHADA:
ETERNA ALUNA, EVENTUAL
PROFESSORA
Prezada bell hooks,

Você não me conhece, sou apenas uma estudante de


Licenciatura de Artes Visuais aqui do Sul do Brasil. Uma mulher
branca, de baixa renda e com um sonho: usar a educação como uma
ferramenta de expressão e de resistência. Através dela, instigar o meu
próprio pensamento crítico e das demais pessoas que eu encontrar.
Seja por troca de experiências, contação de história, leituras, o con-
tato que for, enquanto professora ou estudante (cá entre nós, uma
vez professora, para sempre estudante).

Comecei meu percurso como educadora na adolescência.


Fiz magistério juntamente com o Ensino Médio e essa escolha e
vivência tem muitas camadas. Sempre fui uma menina comunicativa,
que adora ler e ajudar minhas amigas com as disciplinas e trabalhos
escolares. Ou seja, a ideia de tornar-me professora era bem natu-
ral, afinal eu já ensinava. Mas sinceramente, um dos motivos mais
relevantes para a escolha naquele momento era a possibilidade de
ganhar dinheiro, mesmo que pouco, afinal a profissão docente não
era e continua não sendo conhecida por grandes retornos financeiro.

Ainda assim era uma possibilidade de unir o útil ao agradá-


vel, como diz um ditado popular que ouvi muito durante a infância.
Além disso, era encantador ver as crianças ávidas por aprender a
ler, escrever, compreender os números e decifrar os códigos dos
adultos. E foi nesse mesmo período que conheci de perto os muitos
níveis das desigualdades sociais. Descobri alguns dos resultados
do patriarcado, racismo e branquitude. Fiquei assustada, perdida e
decidi fugir: jamais seria professora, jamais seria capaz de ser profes-
sora. Não poderia estar mais enganada.

Consegui fugir por alguns anos, trabalhei em outras áreas,


mas não estava satisfeita com minha vida e minhas escolhas.
Sentia um vazio, impotência. Comecei pesquisar sobre os motivos
das desigualdades que eu presenciei na adolescência, entender
questões sociais, históricas e filosóficas. Como eu disse lá no início,

SUMÁRIO 405
sou uma pessoa de baixa renda, mas com privilégios, pois sou branca.
Reconhecer meu privilégio e os riscos de ser mulher foram funda-
mentais para minha decisão de cursar Licenciatura em Artes Visuais.

Durante um bom período da graduação que estou fazendo,


senti que as motivações para eu estudar e decidir ser docente esta-
vam escapando da minha formação. O meio acadêmico é hegemô-
nico, eurocêntrico, colonial e patriarcal e a arte estudada nos meios
formais também. A valorização e prestígio é dado ao padrão que
já conhecemos. O que é relevante estudar e ensinar em artes? A
arte considerada clássica, erudita e sobretudo valorosa é aquela dos
grandes artistas europeus (e aqui não preciso nem citar nomes, pro-
vavelmente tu já pensaste em alguns).

Como eu já disse, você não me conhece, mas eu te conheço,


pelo menos um pouquinho. Te conheci recentemente, mas o contato
que tive com teu trabalho e escritos foi realmente marcante e rever-
berou em muitas esferas da minha vida, tanto profissional, quanto
pessoal. Meu primeiro contato com o teu trabalho foi através do livro
Ensinando a Transgredir: A educação como prática da liberdade. Em
uma disciplina foi requisitado que fizéssemos a leitura do capítulo
13, Eros, erotismo e o processo pedagógico, mas eu decidi come-
çar lendo a introdução, achei o título do capítulo curioso, logo quis
entender sobre o que era o livro.

Foi a primeira vez que consegui relacionar minhas próprias


situações com palavras escritas por alguém do meio acadêmico,
com uma pessoa considerada relevante e que admitia medos e que
contava situações psicológicas complexas. Além disso, era uma
mulher naquelas palavras. Foi chocante perceber que eu conseguia
identificar um ser humano naquele conjunto de letras. Não o homem
branco que eu estava acostumada a ler nos demais textos, mesmo
quando não eram escritos por homens brancos, mas a linguagem fez
com que eu criasse e imaginasse uma figura próximo do que seria
um deus acadêmico.

SUMÁRIO 406
Após isso, vi que nos arquivos recomendados da disciplina
tinha um outro texto teu Linguagem: ensinar novas paisagens/novas
linguagens, e esse texto foi um marco para eu repensar minha forma-
ção, minhas escolhas e principalmente minhas práticas pedagógicas.
Foi como se eu tivesse sido puxada para cima, levada na direção da
superfície após estar afundada tanto tempo na escuridão de águas
formadas pelo resultado da sociedade que vivi e compus sem ques-
tionar durante tanto tempo. Ainda não conseguia respirar, mas pelo
menos consegui ver uma luz, uma esperança.
Para cada uso incorreto de palavras, para cada colocação
incorreta das palavras, era um espírito de rebelião que
reivindicava a língua como um local de resistência. Usar o
inglês de uma maneira que rompeu o uso e os significados
padrões, de tal modo que o povo branco poderia frequen-
temente não entender a fala negra, fez do inglês muito
mais do que a língua do opressor (Hooks, 2008, p. 35).

Levo a citação acima próxima de mim sempre. Foi o que


eu precisava para entender que mesmo no meu lugar de poder
enquanto docente e pessoa branca, posso conhecer outros sabe-
res, não entender e saber tudo. Tenho a escolha de não ir para o
lugar de opressor. Posso criar um ambiente acolhedor em sala de
aula para além da prática do ensinar tradicional, disponibilizar um
ambiente seguro para trocar experiências e para se expressar, há
pouco tempo, fiz parte de algo maravilhoso, inspirada no teu trabalho
e usando a força e a coragem que meu sonho oferece para mim.
Preciso dar um contexto da sequência de situações que levaram
ao presente momento.

Faço parte de um coletivo, que leva teu nome como homena-


gem ao legado que tu nos deixaste. E partindo do ditado “unir o útil
ao agradável”, sou parte desse coletivo como bolsista de extensão.
Precisava e ainda preciso do dinheiro, porém era essencial eu ter
contato com pessoas e saberes que pudessem auxiliar minha for-
mação para além do conhecimento hegemônico da universidade.

SUMÁRIO 407
Lembra do meu sonho? Então, ele é meu material e mantra de ânimo
e força para continuar constituindo e formando uma profissional e
pessoa cada dia com mais consciência.

Juntamente com outras quatro mulheres² organizamos um


evento muito especial, pensado para profissionais da educação. Foi
a segunda edição da atividade de extensão intitulada Tudo sobre o
amor: pensando o cuidado a partir do pensamento de bell hooks. A
primeira edição havia ocorrido de forma online e antes de eu fazer
parte do coletivo, ou até mesmo saber de sua existência. Com o
objetivo de criar um espaço acolhedor para trocas de experiências,
reflexões e conversas sobre alguns textos do livro Tudo sobre o amor:
Novas Perspectivas, preparamos uma sala da maneira mais agradá-
vel que nós cinco (mulheres com os percursos e percalços da vida
para traçar e seguir) conseguimos estruturar.

Recebemos nossas convidadas³ em quatro encontros pre-


senciais, que aconteceram em noites de quatro sextas-feiras do mês
de agosto desse ano. O horário não era o mais propicio e amigável,
era o possível e com isso surgiu o receio: será que terá pessoas dis-
postas a nos acompanhar e abertas para trocar e compartilhar expe-
riências? Será que iremos conseguir relacionar e tornar claro que
amor, que está no título do evento e no livro que nos baseamos, não
é o amor romântico? “Se nos lembrássemos constantemente de que
o amor é o que o amor faz, não usaríamos a palavra de um jeito que
desvaloriza e degrada o seu significado. Quando amamos, expres-
samos cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e
confiança” (Hooks, 2021, p. 43).

Nos próximos parágrafos irei falar sobre os encontros, sobre


nossa organização, metodologia e eu já adianto como foram: maravi-
lhosos. Organizamos em todos os encontros o ambiente desorgani-
zando a ideia de sala de aula tradicional (uma classe atrás da outra).
Foi feito um quase círculo com as cadeiras, colocado um difusor para
dar um cheirinho aconchegante no espaço, música para recepcionar

SUMÁRIO 408
nossas convidadas e uma mesa de lanchinho com chá, café e bolo
próximo de outra mesa que foi disposto alguns livros.

No primeiro encontro eu estava apavorada e ansiosa, era


noite do dia 04 de agosto e para complementar meu estado, atrasei
alguns minutos para chegar e organizar a sala. Nós propositoras do
evento, havíamos conversado sobre o planejamento e como daría-
mos andamento a noite. O disparador para aquela noite era a per-
gunta “você sentiu-se amada(o) hoje no seu trabalho, na sua casa?”,
que a Bruna trouxe e compartilhou com o grupo. Naquele dia eu
não havia me amado, e isso é evidenciado com meu primeiro pensa-
mento a respeito do meu atraso: imperdoável.

A partir da leitura do prefácio e introdução do livro que usa-


mos como base e disparador, pudemos refletir conjuntamente sobre
a necessidade de cuidarmos de nós mesmas, nos amar e ser amadas,
não apenas distribuir amor aos outros. Evidenciamos que o amor
são ações. “Para amar verdadeiramente, devemos aprender a mistu-
rar vários ingredientes – carinho, afeição, reconhecimento, respeito,
compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação
aberta” (Hooks, 2021, p. 43). Nesse dia, a Luciana fez falas importan-
tes a respeito do autocuidado e cuidado ao próximo em um corpo
negro. Essa reflexão reverberou em todos os nossos encontros: a
prática do amor de forma consciente a respeito do racismo estrutural
e os reflexos em nós mesmas, no nosso dia a dia. Assim como todos
os encontros, nós falamos e ouvimos. Praticamos a escuta ativa.

Propomos para o grupo uma atividade que iria necessitar


um pouquinho de manualidade e mexer os corpinhos. Distribuímos
um envelope e uma folha de papel para cada pessoa. Pedimos que
o envelope fosse colado nas costas de cada uma, o que serviu de
estímulo para que as pessoas conversassem e pedissem ajuda para
quem estava próximo. E com a folha, rasgar/cortar em pedaços
suficientes para todos os presentes, transformando em pequenos
bilhetes e neles escrever recados importantes sobre cuidado e vida.

SUMÁRIO 409
Atividade lúdica simples, mas que ajudou a ruir com alguns dos meus
próprios medos sobre os encontros e sobre mim mesma. Enquanto
andávamos ao som de uma música animada e distribuíamos os
bilhetinhos, trocamos olhares, encostamos umas nas outras, com-
partilhamos risadas. E enquanto cada uma lia seus recados rece-
bidos, compartilhamos sentimentos e relembramos necessidades
simples da vida. Naquela noite, saí amando-me um pouco mais.

Em nosso segundo encontro, em 11 de agosto, usamos o


segundo capítulo Justiça: lições de amor na infância para guiar nossas
conversas e fizemos um pedido especial para as participantes: levar
uma foto da sua infância. Algumas levaram impressa, outras enviaram
para nós projetarmos na sala. Compartilhamos histórias, alegrias e
tristezas, nos vimos em outras crianças, em outras lembranças, fize-
mos trocas. Com carinho, cuidado, reflexão e maturidade. A Danuza e
a Gabriela trouxeram partes importantes do texto e propuseram que
escrevêssemos uma mensagem para o nosso eu da infância: o que
gostaríamos de falar para a nossa criança e como falaríamos com ela?

O terceiro encontro transcorreu na noite chuvosa do dia 18 de


agosto, com previsão de tempestade. Embasadas no quarto capítulo
Compromisso: que o amor seja o amor-próprio, realizamos uma ativi-
dade de autoconhecimento: olhar para o nosso próprio reflexo. Não em
um espelho real, apenas um pedaço de papel no qual deveríamos ima-
giná-lo como o objeto reflexivo, e nele escrever aquilo de que nos orgu-
lhamos em nós mesmas. Enquanto as demais pessoas compartilhavam
seus motivos de orgulho, notávamos semelhanças, fazíamos conexões.

No último encontro, 25 de agosto, uma das primeiras coisas


que foi dita por uma de nossas convidadas foi que deveria ser feito
mais encontros: “O que vou fazer na sexta-feira que vem?”. O texto
desse último dia era o oitavo capítulo, intitulado Comunidade: uma
comunhão amorosa. Ainda nem havíamos iniciado formalmente o
encontro, mas eu já sabia que o resultado havia sido e continua-
ria sendo extraordinário. “Amizades amorosas nos dão espaço para

SUMÁRIO 410
experimentarmos a alegria da comunidade num relacionamento em
que aprendemos a processar todos os nossos problemas, a lidar com
diferenças e conflitos enquanto nos matemos vinculados” (Hooks,
2021, p. 144). Conseguimos criar, mesmo que brevemente, uma
comunidade com pessoas dispostas a escutar, compartilhar, apren-
der e aceitar. Conseguimos evidenciar o quão importante e pode-
roso é não se isolar.

A partir dos encontros realizados foi possível notar, entender


e expressar que pensar criticamente não extingue a possibilidade
de nos vermos com compaixão. Além disso, evidenciamos a neces-
sidade de continuarmos criando espaços acolhedores, propiciando
escuta ativa, com saberes diversos. É preciso lembrarmos frequen-
temente que somos seres sociais, não vivemos sozinhas, e que amor
são ações e falar dele pode ser revolucionário.

Porto Alegre, 04 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2.ed. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.

HOOKS, B. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Estudos feministas,


v. 16, n. 3, p. 857–864, 2008.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021.

SUMÁRIO 411
Taila Jesus da Silva Oliveira

À BELL HOOKS,
COM CARINHO:
EM DEFESA DO BEM-ESTAR
EM SALA DE AULA
Cara bell hooks,

Saiba que hesitei muito em te escrever esta carta. Não sei se


é apenas pelo fato de conversar com você, uma grande referência
acadêmica, história e social ou pelo fato de precisar, neste nosso
diálogo, descortinar alguns processos. O que sei é que preciso pro-
mover, como você mesma diz, um bem-estar, e só posso assim fazer
se eu me abrir nesta conversa. Quero te agradecer desde já pela
disponibilidade e dizer que foi você mesma, em seu livro Ensinando a
transgredir: a educação como prática da liberdade, que me encorajou
a registrar aqui algumas das minhas inquietudes.

Considero, antes de qualquer ato reflexivo neste diálogo que


estou tendo o prazer de estabelecer com você, apresentar-me breve-
mente. Você, que se introduz tão bem já ao declarar o seu nome, que
além de evocar uma ancestralidade visceral ao se denominar assim
em homenagem à sua bisavó, revelando grandes potencialidades
ao convidar um antepassado para se arrolar explicitamente à sua
história; também inibe qualquer necessidade de se sobrepor aca-
demicamente, ao permitir grafá-lo com letras minúsculas, em uma
sociedade que celebra tanto o valor dos sobrenomes, a origem e o
peso que eles podem ter socialmente. Sendo assim, bell, chamá-la
em um texto é relembrar a sua lição eternamente.

Quanto a mim? Situo, como propõe Djamila Ribeiro, em


seu livro Lugar de Fala, este meu espaço nas seguintes identidades,
que são os meus lugares e venho descobrindo quão dolorosos e
deliciosos eles podem ser: sou uma mulher, professora de Língua
Portuguesa, das redes pública e privada, negra, filha de pais negros,
que não possuem o Ensino Superior, brasileira e oriunda da cidade
mais negra fora de África, Salvador, localizada no estado da Bahia.
Pretendo, ao passo que vou tecendo linhas da minha trajetória, con-
versar e me aconselhar com você sobre inquietudes que surgiram de
forma recente, devido a problemáticas antigas do meu país e cidade.

SUMÁRIO 413
O primeiro ponto e que considero curioso na minha histó-
ria e de muitas mulheres da minha cidade, inclusive das minhas
próprias alunas do Ensino Fundamental e Médio, é a descoberta
“tardia” de ser negra. A ausência dessa descoberta de forma mais
precoce impactou e impossibilitou uma formação crítica em minha
trajetória ou como você assim denomina – uma formação engajada.
Infelizmente, durante a minha construção escolar e familiar, eu não
tive a consciência da minha origem étnico-racial desde cedo, pelo
contrário, sempre fui ensinada que deveria rejeitar a minha negritude
e me embranquecer cada vez mais. Minha mãe também não teve
essa formação, como ela poderia me ensinar? Os textos seleciona-
dos nas escolas onde eu estudava, os livros, os discursos sempre se
inclinavam para o culto à branquitude e todos os seus privilégios.

Para mim, não era motivo de alegria enaltecer o meu cabelo


crespo e minhas raízes, pois fui ensinada que elas não eram para eu me
orgulhar, mas rejeitar. Quando criança, desejava ter o cabelo semelhante
ao das bonecas que eu tinha; muitas vezes, questionei-me o porquê de
não ter nascido assim como elas, faltava para mim o que buscamos hoje
para nossas crianças: a representatividade. Essa representatividade
perpassava, especialmente, a presença dos meus professores, figuras
que sempre foram para mim de grande autoridade e potencialidade,
que posso contar nos dedos das mãos quais eram negros.

Por ser negra, com uma pele clara, cotidianamente, não me


sentia representada nas lutas e debates que aconteciam ao meu redor.
Não me sentia convocada a refletir também sobre processos que são
intrinsicamente meus. No entanto, bell, algo mudou completamente a
minha história – eu, filha de um homem que não chegou a completar
o Ensino Médio e de uma mulher que trabalhou e criou uma filha dig-
namente tendo a sua formação no Ensino Técnico, em uma sociedade
com preços altos; eu fui a primeira pessoa do meu núcleo familiar a
adentrar ao Ensino Superior, mais precisamente em uma Universidade
Pública. Sim, para os meus pais, ainda hoje, após anos de formada, esse
acontecimento ressoa com grande alegria. Em seu texto Ensinando a

SUMÁRIO 414
transgredir: a educação como prática da liberdade, acho interessante
que você começa expondo-se intimamente, revelando a angústia de
se atrelar “eternamente” a uma universidade; você que nunca sonhou
em ser professora, mas sempre quis ser escritora.

Ao contrário de você, bell, eu sempre quis ser professora –


meus pais, colegas e familiares já sabiam que eu prestaria o vestibu-
lar para Letras Vernáculas e assim me tornaria professora de Língua
Portuguesa. Confesso que em minha vida nunca existiu um plano B
quanto ao meu desejo profissional que se atrelava ao meu desejo de
vida, pois para mim tudo estava muito certo e seria um caminho natu-
ral, como você mesmo disse “Desde o ensino fundamental eu estava
destinada a me tornar professora” (Hooks, 2013, p. 10). Escrever, entre-
tanto, nunca foi um processo tão natural quanto ensinar, pelo contrá-
rio, a escrita sempre foi algo que precisei conquistar, batalhar muito e
superar barreiras. Gosto de relacionar estas minhas lutas ao texto de
Clarice Lispector, em Felicidade Clandestina “[...] A felicidade sempre ia
ser clandestina para mim”, pois é assim que me sinto sempre batendo
à porta dessa felicidade, que nunca é tão fácil para mim e, por vezes,
comporta-se como proibida para mim. Produzir um texto, como este
que escrevo, bell, é resistir. Assim como você não se permitiu desistir
da tarefa docente, eu não me permito parar de escrever e com sabores
e dessabores vou tecendo e me permitindo ser tecida.

Sei muito bem que levo, de forma consciente e inconscien-


temente, todos esses aspectos atrelados para a minha sala de aula.
Reconheço que assim como as palavras de Geraldi (1984), pensador
que você teria grande prazer em conhecer o trabalho com a sala de aula,
todo fazer em sala inclui, necessariamente, uma opção política. Neste
ponto, sei que nossas histórias se tocam mais uma vez. Como comentei,
a Universidade foi um grande divisor de águas na minha trajetória, prin-
cipalmente por ser o momento em que me descobri negra. Não pelos
professores que tive, mas pelos colegas de curso, os quais já estavam
engajados em debates que sempre rejeitei como não sendo meus, que
me abriram explicitamente que eu não era morena, mas sim, negra.

SUMÁRIO 415
Assim como você, durante os meus estudos da graduação
e da pós-graduação, sempre vi professoras e professores brancos,
nunca homens e mulheres negros à frente de debates sobre ques-
tões que envolvessem raça e gênero. Na verdade, confesso que a
minha descoberta em relação a essas temáticas aconteceu, na gra-
duação, de modo tão tímido que consigo contabilizar as poucas inte-
lectuais negras que tive o prazer de conhecer. Parece que o tema que
promove a nossa existência é sempre muito caro a uma sociedade,
a um programa e sobretudo a um currículo que insiste em celebrar o
cânone que não nos espanta pensar é formado apenas por homens
brancos, excluindo a diversidade do nosso território.

Como professora da Educação Básica, busco sempre trazer


para os meus alunos aquilo não tive enquanto estudante: diversidade
representativa, principalmente de autoras negras que se referem a
grande parte do meu público de estudantes. Tenho me deparado,
na minha cidade, com uma realidade em que os corpos negros têm
sido cada vez mais alvos de todo tipo de violência e acredite, bell,
me preocupo muito com o bem-estar de um grupo que se encontra
desmotivado, cansado e assustado com tamanha violência.

Sei que falar sobre autores e autoras negras é celebrar esses


corpos que têm sido apagados da nossa sociedade com as mais dife-
rentes justificativas, mas ainda assim, o entusiasmo que você comenta
precisar existir em sala de aula tem sido cada vez mais difícil. Retomo o
pensamento que você expressou por meio das palavras de Thich Nhat
Hanh: “se a pessoa que ajuda estiver infeliz, não poderá ajudar muita
gente” (Thich Nhat Hanh apud Hooks, 2013, p. 28). Como os docentes
vão promover o bem-estar se não estão vivendo tal realidade?

Retomando o que disse nos primeiros parágrafos desta carta,


acredito que ler, escrever e falar sobre um problema é o primeiro
passo para promovermos a sua resolução. Gosto muito quando você
comenta que os docentes precisam correr risco de se expor tam-
bém, falar sobre suas angústias, levar as suas vivências para a sala

SUMÁRIO 416
de aula – “[...] Toda sala de aula em que for aplicado um modelo
holístico de aprendizado será também um local de crescimento para
o professor, que será fortalecido e capacitado por esse processo”
(Hooks, 2013, p. 35). Minha cara bell, é tão bom saber que nessas
palavras há um olhar para as nossas dores, pois precisamos também
de fortalecimento, é preciso humanizar o professor. Considero o seu
texto Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade
é o próprio manifesto do bem viver.

Assim, quero agradecer por me permitir dialogar com você


sobre você. Os problemas que aqui apontei foram resumidos pelo
espaço, mas como acredito na arte dos encontros, torço para que
tenhamos outros momentos para ampliar esses debates. Quero dei-
xar registrado que esse encontro só aconteceu, pois ainda temos pro-
fessores que se engajam na luta e me apresentaram você. Obrigada
por criar esse espaço para eu pudesse falar e me expor também, pois
geralmente nem eu me humanizo como você me permitiu. Deixo o
meu abraço apertado.

Com carinho,

Taila Jesus da Silva Oliveira

Salvador, 25 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
GERALDI, J. W. O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1984.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:


Martins Fontes, 2013.

LISPECTOR, C. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, Justificando, 2017.

SUMÁRIO 417
Quessia Karina Garcia

TRAJETÓRIAS
DE APRENDIZAGEM
INSPIRADAS POR
BELL HOOKS:
UMA CARTA REFLEXIVA
Prezada bell hooks,

Estou escrevendo para dividir alguns relatos de experiên-


cia contigo. A sua escrita tem penetrado profundamente na minha
prática pedagógica e me fez refletir sobre as inúmeras maneiras de
estabelecer conexões com os meus alunos. Quero abrir meu coração
e compartilhar minha realidade, bem como as promissoras perspec-
tivas de mudança que estão se delineando.

Faz um ano e meio que trabalho em uma escola situada na


Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Eu não nasci aqui,
tenho origem no interior de São Paulo, em uma pequena cidade
pouco conhecida, chamada Araçariguama. Nessa escola, eu atuo
como assistente de alfabetização em um projeto que estimula os
alunos com dificuldades de aprendizagem, atendendo crianças de 6
a 8 anos de idade. Além de auxiliá-las em seu processo de alfabetiza-
ção, aprendi a me encantar com as suas trajetórias de aprendizagem,
assim como elas se encantaram com o fato do meu modo de falar
ser diferente do delas.

Em seu livro Ensinando a Transgredir, ao citar o poema de


Adrienne Rich, você compartilha como um verso específico te tocou
profundamente. Essas palavras, “Esta é a língua do opressor, mas pre-
ciso dela para me comunicar contigo”, também tiveram um impacto
significativo em mim. Embora não compartilhemos o mesmo idioma,
essa frase ecoou em minha experiência, pois também ensino as
minhas crianças na língua do opressor. Mesmo que elas percebam a
diferença na minha fala devido ao sotaque, ainda estamos utilizando
a mesma língua do opressor.

Fiquei bastante reflexiva sobre os apagamentos, os idiomas,


dialetos e sons que se perderam em um processo de exploração e
dominação que parece incessante. Desde a chegada dos coloniza-
dores em Pindorama (que sangrou até se transformar em Brasil), só
posso imaginar os horrores vividos por quem já estava nessa terra,

SUMÁRIO 419
falava seu próprio idioma, transmitia conhecimento de forma oral e
teve tudo isso arrancado. Perder a língua é como perder a alma, a
possibilidade de comunicação com os seus.

Esse país também foi formado por pessoas que foram arran-
cadas de seus países de origem, de suas tradições, de suas línguas
maternas e sofreram o inimaginável em terras desconhecidas. A lín-
gua do opressor se torna instrumento de dominação, mas quando foi
apropriada pelos oprimidos, ela se tornou não apenas um meio de
sobrevivência, mas também um ato de resistência.

Você não vai acreditar, mas algumas comunidades indígenas


conseguiram preservar suas línguas maternas. Penso no esforço que
as crianças indígenas devem fazer para acessar a escola regular,
onde o conteúdo é ministrado na língua do opressor. Elas se tornam
bilíngues por necessidade. Porém, o que é triste é que os professores
e os membros da equipe de gestão escolar designados para traba-
lhar em escolas próximas a essas comunidades raramente falam
as línguas indígenas.

Voltando a falar sobre a minha sala de aula, meus alunos


vivem em uma região periférica, atravessada por suas experiências
e desafios únicos. Essas questões também atravessam a forma que
as crianças falam e se comportam na escola, o modo como se apro-
priam da língua para explicar o mundo que as cerca me traz uma
sensação mista de encanto e preocupação. São crianças expostas a
violências, a condições precárias e ainda assim produzem conheci-
mentos e vivem suas infâncias em meio ao caos, tento ser um ponto
de amor em suas trajetórias.

Muitas vezes, meus alunos costumavam me perguntar se


eu era de outro país, curiosos se eu falava alguma língua estran-
geira, como o inglês. Foi a partir desses momentos que percebi
uma oportunidade única. Comecei a usar o meu próprio sotaque
paulista interiorano como uma ferramenta de ensino, destacando

SUMÁRIO 420
as nuances e diferenças na pronúncia das palavras. Com o tempo,
algo maravilhoso aconteceu. Meu sotaque se tornou multicolorido,
refletindo as diversas influências linguísticas da nossa comunidade.
Juntos, criamos nossa própria forma de comunicação, enriquecida
com entonações e gírias trazidas pelos meus alunos. Essas trocas
e adaptações transformaram minha experiência na escola em algo
verdadeiramente gratificante.

Tento voltar a minha prática educativa para a valorização dos


saberes das minhas crianças partindo do que sabem, do que tem
a me dizer, para então entrar nos conteúdos obrigatórios, sempre
perguntando aos alunos qual o significado que as palavras têm para
eles. Certa vez perguntei à minha aluna Danielle de 7 anos o que a
palavra ‘futuro’ significava para ela. Ela prontamente me respondeu:
“Futuro é um mundo novo”. A resposta me surpreendeu, ela está
certa: o futuro é um mundo novo, e esse mundo só pode ser produ-
zido com ações do presente.

Espero que minhas ações sejam minimamente impactantes


para transformar as trajetórias de aprendizagem dos meus alunos,
para que além de saberem ler e escrever eles aprendam a se amar,
a enxergarem a potência que enxergo neles. Leio para eles histórias
com protagonismo negro, para que eles também se vejam como pro-
tagonistas, para que amem seus cabelos, sua pele e sua ancestrali-
dade. Também introduzi histórias com protagonismo indígena, pois
essa também é uma dimensão de ancestralidade que nos permeia
e por vezes é esquecida, gosto que eles saibam que existem outros
modos de vida, outras leituras de mundo.

Confesso a você que tenho medo de não ser uma boa pro-
fessora para os meus alunos, tenho medo de que minha prática
transgressora se encontre com a educação tradicional em alguns
momentos e eu não atinja o “mundo novo” e suas possibilidades.
Por isso, sua escrita é tão importante e inspiradora para mim, para as
minhas crianças, para a minha comunidade.

SUMÁRIO 421
Gostaria de ter te conhecido em presença, sinto que te
conheço em espírito, sua escrita é tão íntima, acolhedora e provoca-
tiva que sinto que estou conversando com uma amiga quando leio
seus livros, me vejo em muitos dos seus anseios, reflexões e trajetos.
Fico imensamente feliz de poder te escrever essa carta, de ser uma
professora que se inspira em você, bell.

Agradeço profundamente por inspirar minha jornada edu-


cacional e por seu impacto em minha prática pedagógica. Suas
palavras continuam a moldar minha visão de educação e igual-
dade. Estou ansiosa para continuar explorando suas obras e apren-
dendo com seu legado.

Com imensa gratidão e respeito,

Kess.

Nova Iguaçu, 24 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
HOOKS, B. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução
de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

SUMÁRIO 422
CARTAS PARA
FRANTZ FANON
Cacilda Ferreira dos Reis

SAÚDE MENTAL
E JUVENTUDE NEGRA:
UMA REFLEXÃO A PARTIR
DE FRANTZ FANON
Caro Frantz Fanon! Cordiais Saudações!
O conhecimento produzido por Fanon se constrói com
a vivência das relações de dominação colonial entre
pessoas negras e brancas, mas seu pensamento crítico,
como ideal humanista de liberdade e justiça, transcende
a consideração da cor da pele e abraça todas as formas
de opressão. Estende-se a todos os ‘condenados da terra‘,
distribuídos nos confins remotos e grandes metrópoles
da África, Ásia, América Latina e onde mais a desigual-
dade intrínseca ao capitalismo impõe injustiça e exclusão
(Sevalho; Dias, 2020, p. 941).

Aproveito esse dia chuvoso de primavera em Salvador-BA


para lhe escrever essas poucas linhas. Utilizo essa missiva visando
dialogar com você acerca de um problema dos nossos tempos,
socialmente impactante e de grande envergadura. Estou me refe-
rindo à questão da saúde mental, com o olhar voltado para a juven-
tude negra, temática que lhe é cara desde o início de seus estudos
em psiquiatria e que foi abordado em sua célebre obra Peau noire,
masques blancs, de 1952.

Fanon você pode estar se perguntando por que transcorridos


mais de sessenta anos da publicação desta obra e de outros estudos,
a exemplo do seu derradeiro livro, Les Damnés de la terre, de 1961,20
estou buscando uma reflexão sobre a realidade contemporânea a
partir dos seus pressupostos teórico-metodológicos?21 Justifico a
minha escolha diante da sua preocupação com o sofrimento humano

20 Como informa Benbassa (2010), embora condenado pela leucemia, em 1961, Fanon escreveu o
livro Os Condenados da Terra, prefaciado por Jean-Paul Sartre e publicado após sua morte
por François Maspero. Este livro, que defende o socialismo revolucionário, tornou-se um grande
clássico do pensamento do Terceiro Mundo. E segundo a autora, transformou Fanon em um dos
principais analistas e figura importante da libertação colonial, concebida como o nascimento de
um novo homem (tradução livre).
21 Para o aprofundamento sobre o pensamento Fanon, consultar os trabalhos de Deivison Faustino,
em especial sua tese de doutorado “Por que Fanon, Por que agora: Frantz Fanon e os fanonis-
mos no Brasil” (2015) e a recente publicação “Frantz Fanon e as encruzilhadas – Teoria, política
e subjetividade” (2022).

SUMÁRIO 425
e, sobretudo, com as dimensões sociais do sofrimento psíquico
(Gaudenzi et al, 2023). Além disso, como nos explicam Gil Sevalho
e João Vinícius Dias (2020), suas ideias e práticas médico-sociais,
precursoras na atenção à saúde mental, incorporam a cultura na
discussão de uma sociogênese do sofrimento mental e a crítica à
inadequação da psicanálise eurocêntrica para lidar com a opressão
colonial e o racismo. No Brasil, a psicanalista Neusa Santos Souza,22
autora da obra Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do
negro brasileiro em ascensão social, de 1983, inaugurou o debate
contemporâneo e analítico sobre racismo, identidade negra e sofri-
mento psíquico (CFP, 2017). Para Faustino, esta obra é um clássico
da psicanálise antiracista brasileira que tem nos seus estudos uma
das suas principais bases teóricas (Gaudenzi et al, 2023).

Dito isto, necessito apresentar algumas informações para


que você possa compreender a dimensão e gravidade do problema
que vivenciamos na atualidade. No ano de 2022, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) divulgou sua maior revisão mundial sobre
saúde mental desde a virada do século XXI. Entre os dados levanta-
dos destacou que em 2019, aproximadamente, um bilhão de pessoas
em todo o mundo viviam com um transtorno mental e, deste contin-
gente, 14% eram adolescentes. Para seu conhecimento, o suicídio
foi responsável por mais de uma em cada 100 mortes e 58% dos
suicídios aconteceram antes dos 50 anos de idade, sendo que 20
países ainda criminalizam a tentativa de suicídio. Outra questão pre-
ocupante é que as pessoas com condições graves de saúde mental
morrem em média 10 a 20 anos mais cedo do que a população em
geral, principalmente devido a doenças físicas evitáveis, o abuso
sexual infantil e o abuso por intimidação são importantes causas da
depressão (OPAS, 2022).

22 Segundo a Fundação Palmares (2008), esta obra de Neusa Souza é considerada a primeira refe-
rência sobre a questão racial na psicologia. A psicanalista busca mostrar como ocorre a rejeição
do negro por conta do seu aspecto exterior, sendo necessário um raro grau de consciência para
que esse quadro se inverta. No momento que isso acontece, para Souza, a cor e o corpo do negro
são sentidos como valor de beleza.

SUMÁRIO 426
O estudo da OMS também revelou que as desigualdades
sociais e econômicas, emergências de saúde pública, guerra e crise
climática estão entre as ameaças estruturais globais à saúde mental.
Assim como apontou que o estigma, a discriminação e as violações
de direitos humanos contra pessoas com problemas de saúde men-
tal são comuns em comunidades e sistemas de atenção em todos
os lugares. Por fim, salientou que na totalidade dos países são as
pessoas mais pobres e desfavorecidas que correm maior risco de
problemas de saúde mental e, ao mesmo tempo, são as menos pro-
pensas a receber serviços adequados (OPAS, 2022).

Fanon, diante do quadro acima narrado, em 2021, todos os


194 Estados Membros da OMS assinaram o Plano de Ação Integral
de Saúde Mental 2013–203023, que os compromete com metas glo-
bais para transformar a saúde mental. De acordo com a OMS, apesar
dos progressos parciais alcançados na última década, no entanto, a
mudança não está acontecendo rápido o suficiente. A Organização
salienta que, durante décadas, a saúde mental tem sido uma das áreas
mais negligenciadas da saúde pública, recebendo uma ínfima parte
da atenção e dos recursos de que necessita e merece (OPAS, 2022).

Concluída essa breve explanação acerca da Saúde mental a


nível mundial, finalmente Fanon, posso adentrar no ponto que moti-
vou a escrita desta carta, ou seja, o desejo de dialogar com você
sobre a questão da saúde mental e as relações étnico-raciais no
Brasil, com o olhar voltado para a juventude negra.

Para tanto, inicialmente, é necessário esclarecer-lhe que o


termo raça é empregado aqui enquanto uma construção social, com
pouca ou nenhuma base biológica (Telles, 2003). Outrossim, utili-
zando as palavras Lina Gomes (2005, p. 48): “não podemos negar
que, na construção das sociedades, na forma como negros e brancos

23 Em maio de 2013, a Organização Mundial da Saúde adotou o Plano de Ação Integral de Saúde
Mental 2013-2020, em uma assembleia composta pelos Ministros da Saúde dos Estados-Membros
da organização. Em 2019, o plano foi prorrogado até 2030.

SUMÁRIO 427
são vistos e tratados no Brasil, a raça tem uma operacionalidade na
cultura e na vida social”. Antônio Sérgio Guimarães (2023, p. 294), por
sua vez, adverte que “para a ciência, não basta negar a raça como
a priori social ou natural, é preciso compreender o modo como essa
noção atua na vida coletiva e usá-la, desse modo, como conceito
político ou sociológico.”

Outro ponto importante para nossa reflexão, estimado dou-


tor, é trazido por Flávia Rios et al (2023, p. 09), ao argumentarem que
a “temática étnico-racial tem centralidade na formação e no desen-
volvimento da política, da economia, da sociedade e da cultura na
nação brasileira”. Corroborando com este pensamento, Juliana Vinuto
(2023, p. 300) aponta que vários trabalhos têm evidenciado a “exis-
tência de desigualdades radicais na sociedade brasileira, revelando
que as assimetrias entre brancos e negros em áreas como educação
renda, mercado de trabalho, acesso à saúde e muitas outras são his-
tóricas, constantes e multidimensionais”.

Nesses termos, as relações étnico-raciais estão presentes


em todos os contextos sociais e nos espaços de saúde em particular,
por isso é imprescindível compreender suas dinâmicas, implica-
ções e rebatimentos. Ao seguir esse caminho, o acesso desigual de
distintos grupos populacionais aos bens e serviços necessários ao
bem estar social pode ser atribuído a configuração que assume as
relações raciais na estrutura social do país. Assim sendo, a condição
de usufruto das políticas e serviços públicos pela população negra
(preta e parda) tem estreita relação com o racismo institucional
que vigora no Brasil.24

No campo específico da saúde mental, a psicóloga Roberta


Frederico (2021b) na sua coluna Saúde, Negritude & Atitude reflete

24 Segundo Vinuto (2023, p.301), o racismo institucional trata-se de uma ferramenta analítica que
ajuda a compreender de que modo as instituições se organizam com base em hierarquias raciais,
mesmo quando individualmente seus profissionais não veem ligações entre suas próprias ações
e o tratamento geral e habitual destinado ao público atendido por suas organizações. P.301.

SUMÁRIO 428
sobre preconceito, racismo e os desafios para a saúde e o bem-estar
da população negra no Brasil. Ela reivindica um novo olhar para a
saúde mental deste segmento, tomando como referência o seu
legado epistemológico, pois subilinha que você “traz à baila uma dis-
cussão fundamental para se (re)pensar as repercussões das vivên-
cias sob opressão e discriminação e a relevância do engajamento da
população em movimentos emancipatórios, com suas consequên-
cias psíquicas e sociais” (Frederico, 2021b, p.1).

Roberta (2021a) acrescenta que, em termos psicológicos,


trauma é uma resposta emocional a um evento perturbador, a exem-
plo de desastre natural ou crime violento. Por esta perspectiva, o
trauma racial ou o estresse traumático baseado na raça é uma rea-
ção a experiências de racismo, incluindo violências e humilhações.
Explica ainda que todos os tipos de trauma, incluindo o racial, podem
contribuir para o desenvolvimento do transtorno de estresse pós-
-traumático, desencadeando uma série de efeitos mentais e físicos,
os quais apresentam desafios do ponto de vista do tratamento. A psi-
cóloga sugere diversas estratégias de enfrentamento dos ambientes
racialmente hostis e do trauma racial, incluindo o apoio profissional.

Ao direcionar o nosso olhar para a questão da saúde mental


e a juventude negra, Frantz, um quadro extremamente preocupante
emerge. Antes de detalhar a situação, destaco duas considerações
basilares. Primeiro que a categoria juventude é entendida sociolo-
gicamente como uma construção histórico-social; contrapondo-se
a representação dominante que concebe-a como um tempo de
transição vivido de forma homogênea por todos, marcando a pas-
sagem da infância para a vida adulta, e esta última fase compreen-
dida como plenitude na vida do ser humano, modelo normativo e
acabado de maturidade, para qual todos os indivíduos devem cami-
nhar (Almeida, 2000).

A segunda questão é que a condição de desigualdade


experimentada pelos(as) jovens negros(as) brasileiros(as) decorre

SUMÁRIO 429
das relações raciais que, historicamente, foram marcadas pelo
preconceito, velado ou explícito, com relação aos negros. A esse
respeito, Guimarães (1999, p. 9) adverte que o racismo é “uma forma
bastante específica de ‘naturalizar’ a vida social, isto é, de expli-
car diferenças pessoais, sociais e culturais a partir de diferenças
tomadas como naturais”.

Feitas essas observações, posso lhe apresentar o cenário


que tanto nos aflige. O Ministério da Saúde (2019) informou que de
2012 a 2016 a proporção de suicídio entre os negros em compara-
ção as demais raças/cores, subiu de 53,3% em 2012 para 55,4% em
2016. Sendo que o percentual de suicídios aumentou entre os pardos
(2012: 46,2% e 2016: 49,3%) e indígenas (2012: 2,1% e 2016: 2,9%).

No caso específico dos adolescentes e jovens negros, a taxa


de mortalidade por suicídio apresentou um crescimento estatistica-
mente significativo, no período de 2012 a 2016. Em 2012, a taxa de
mortalidade por suicídio era de 4,88 óbitos por 100 mil entre ado-
lescentes e jovens negros e aumentou 12%, alcançando 5,88 óbitos
por 100 mil em 2016. No que diz respeito aos adolescentes e jovens
brancos, a taxa de mortalidade por suicídio permaneceu estável, ou
seja, a variação não foi significativa estatisticamente. Em 2012, a taxa
de mortalidade por suicídio entre adolescentes e jovens brancos foi
de 3,65 óbitos por 100 mil, e em 2016 essa taxa foi de 3,76 óbitos por
100 mil. (Ministério da Saúde, 2019).

Marcela Brito (2019) chama atenção que o número de jovens


e adolescentes que tiram a própria vida é maior na população negra.
Dados divulgados em cartilha do Ministério da Saúde mostram que a
cada dez suicídios na faixa etária de 10 a 29 anos, em torno seis ocorre-
ram com pessoas negras. Do mesmo modo, o documento alerta para
o maior risco de vulnerabilidade psicológica desse grupo, que enfrenta
questões como preconceito, discriminação e racismo institucional.

Diante das questões narradas, preciso lhe dizer, Fanon, que


não estamos assistindo todo esse quadro de forma pacífica e sem

SUMÁRIO 430
nenhuma reação. Temos estudiosos, pesquisadores, instituições,
entidades e sociedade civil organizada lutando no sentido de avan-
çar na construção e implementação de políticas públicas voltadas
para melhorar a situação da saúde mental no país. Assim, doze anos
depois do último encontro, teremos a 5ª Conferência Nacional de
Saúde Mental (CNSM),25 a ser realizada em dezembro de 2023, com
objetivo central de propor diretrizes para a formulação da Política
Nacional de Saúde Mental e o fortalecimento dos programas e ações
de saúde mental em todo o território nacional, tendo como tema
“a política de Saúde Mental como Direito: pela defesa do cuidado
em liberdade, rumo a avanços e garantia dos serviços de atenção
psicossocial no SUS”.

Prezado Frantz Fanon, para finalizar essa breve comuni-


cação, corroborando com a afirmação de Faustino (2015), saliento
que retomar seus estudos em dias atuais demonstra mais do que
um exercício acadêmico relevante. Reproduzo aqui as palavras dele:
“a apropriação e a problematização de suas reflexões têm mostrado
uma tarefa incontornável àqueles que de fato estão preocupados
com os rumos da sociabilidade contemporânea e com as possibili-
dades de resistir à violência naturalizada posta pelos múltiplos ten-
táculos do capital” (Faustino, 2015, p. 172-173).

Abraço afetuoso!

Salvador, 01 de outubro de 2023.

25 A IV CNSM aconteceu em 2010. Para a realização da 5ª CNSM, ocorreram dezenas de eventos


nacionais preparatórios: 1ª Conferência Livre Nacional de Saúde Mental das Periferias, I
Conferência Livre Nacional de Saúde Mental da População Negra, 1ª Conferência Nacional Livre
de Saúde Mental e Juventudes e Conferência Livre Nacional de Saúde Mental das Adolescências
e Juventudes – Pode Falar! Todos esses eventos visam demonstrar a importância da discussão
sobre saúde mental no país, considerando, em especial, a diversidade da população brasileira, a
partir de questões relacionadas à raça-etnia, geração, gênero, identidade de gênero, perspectivas
antissexistas, anticapacitistas, anti-LGBTfóbicas e contra a violação dos direitos humanos de pes-
soas LGBTQIA+ (Agência Brasil, 2023).

SUMÁRIO 431
REFERÊNCIAS
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SUMÁRIO 432
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SUMÁRIO 433
Edvânio Campos Macedo

LETRAS NEGRAS,
CRÍTICA BRANCA:
O EU, A ZONA DO NÃO-SER
E UMA PESQUISA ENCARNADA
É possível a poesia após a Nigéria, Fanon?
É possível ainda sentir o mundo?
O sentimento e seus atravessamentos?
O não-ser evola-se de sentimentos
A zona árida é composta de angústias.

Deveras, acredito que as mais profundas resistências poéti-


cas advém dos mais profundos questionamentos: ora do eu, do outro
ou do estar no mundo. E digo-lhe, Fanon, que a minha pesquisa (o
que defino como encarnada) é composta de uma carne que interpela
aquela antiga episteme do Norte, em que, ontologicamente, ques-
tiona os antigos métodos, mas que encarna poesias transgressoras
e instáveis, em uma espécie de arte marginal com corpos marginais.
São resistências, não duvido, mas que ainda depara com o petit-nè-
gre, como sendo o lugar mais comunal no mundo.

Por isso, a necessidade de escrever uma pesquisa encar-


nada, Fanon, é como sua última prece anunciada – oh, meu corpo,
faça sempre de mim um homem que questiona, pois ainda sinto como
é difícil descansar a vista nessa navegação, quando o olhar colonial
persiste em recriar velhas invisibilidades no mar adentro. Afinal, eu
sou minha própria embarcação, que flua nessas incertezas de ques-
tionamentos, já que a pesquisa manifesta conceitos como letramen-
tos, raça e afetos: onde a poesia grita e releva o quanto esse recorte
também recorta a minha carne, dilacera esse corpo de pele sensível
à insistência e à resistência em sentir esse mundo.

Perceba, Fanon, que o título como trocadilho ao seu pensa-


mento, fez refletir que o Letramento Crítico de pessoas negras (que
aspiro a espreitar) ainda é validado pela epistemologia branca e oci-
dental. E mais: fez perceber como essa episteme é pouco difundida
dentro da academia, pois ainda presenciamos diversas injustiças
cognitivas em que a vigilância epistêmica do nosso povo negro é
mantida como constante.

SUMÁRIO 435
Por essa razão, a vontade da minha pesquisa, Fanon, não
é mensurar o nível de Letramento Racial Crítico desses sujeitos
implicados, muito mesmo analisar a sua qualidade. Isso seria colo-
nial, descabido e, inclusive, reforçaria o discurso de legitimação e
de validade dessa “crítica branca”. Pelo contrário, a intenção dessa
pesquisa implicada é entender o que lhes interpela nesse processo
(o que lhes atravessou e o que lhes afetou) em suas experiências
vividas com seus impactos.

Confesso, Fanon, que esses atravessamentos também são


meus. A sua teoria acerca do desejo pelo embranquecimento por
meio do meu eu-afetações se fez práxis. A minha infância foi consti-
tuída por uma busca incessante em ser branco, inclusive pelo fato de
tentar fugir de alguma forma dos meus traços negros, pois a pergunta
insistia em rodar: Que quer o homem negro? Colocaram-me uma
crença, um desejo, um prazer, um querer. Acredita, Fanon, que conta-
ram a uma criança que se ela morasse na cidade de São Paulo ficaria
branca pela ausência do sol abrasivo da Bahia? Acredita, Fanon, que
contaram a uma criança que se ela bebesse leite por vários dias aca-
baria de incorporar sua cor e ficaria finalmente branco?

O embranquecimento, meu caro Frantz, sempre me per-


seguiu. Seja em querer mudar meu próprio corpo, tornando-o de
alguma forma mais branco (estilo, cabelo, clareamento nas fotos),
seja no desejo ou no afeto (palmitagem velada por outros corpos
não-negros). A máscara branca me servia. A máscara branca estava
grudada na minha face. A máscara branca, em alguns momentos,
me fez pensar que fosse a minha própria pele.

No entanto, a escrita e a leitura, meu amigo antilhano, me


despiu. Não digo por completo, pois os efeitos da colonialidade é
quotidiana. O ato de retirar a máscara e se desnudar ao mundo é uma
microrreexistência diária. E é, por isso, que o letramento me interpela
tanto: quero outros comigo, quero corpos aliançados que joguem
seus verdadeiros rostos ao mundo e debrucem (intensamente) sobre
afetos outros, epistemes outras e amores, enfim, decoloniais.

SUMÁRIO 436
De fato, isso tudo é tarefa árdua, tu mesmo disse quando
defendeu a revolução africana, mas acredito também que a deco-
lonização estrutural e não-estrutural (corpo e mente) relaciona-se à
construção de uma cosmovisão consolidada e pluriversal que faça
um dialogismo para uma nova transfiguração do sentir o mundo.
Esse é o caminho, esse é o nosso itinerário. Por isso, acredito que seja
necessário escutar essas dores, sentir essas fraturas (as expostas e
as mais profundas do nosso corpo e mente), pois é a partir desse
letrar que a trans-formação, a re-construção e a co-autoria produzirá
pensamentos outros: inaugurando novas terras (sem aqueles mes-
mos condenados), mas com plantações de outros afetos e saberes.

Por fim, Fanon, minha última prece é: oh, meu corpo preto,
faça sempre de mim um corpo se ame.

REFERÊNCIAS
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FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.

FANON, F. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2010.

KILOMBA, G. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast


Verlag. 2. Auflage, 2010.

LUNA, L. Um corpo no mundo. São Paulo: YB Music: 2017. (6:25min)

MALDONADO-TORRES, N. La topología del ser y la geopolítica del saber. Modernidad,


imperio, colonialidad. In: MIGNOLO, W.; SCHIWY, F.; MALDONADO-TORRES, N. (orgs.).
Des-colonialidad del ser y del saber: (videos indígenas y los límites coloniales de
la izquierda) en Bolivia. Buenos Aires: Del Signo, 2006. p. 63-130.

SUMÁRIO 437
Maria Divina Pereira Bomfim

UM DEDO DE PROSA
COM FANON
Caro Fanon,

Saudações oestinas!

Te escrevo de Barreiras, oeste da Bahia, Brasil.

Estava eu em Salvador, capital do estado da Bahia; no dia


1 de março de 2019. Salvador, é a capital do estado da Bahia, no
nordeste do Brasil, e é conhecida pela arquitetura colonial por-
tuguesa, pela cultura afro-brasileira e pelo litoral tropical. Aqui, na
Bahia, nasceu o Brasil.

Sendo essa a capital com maior população negra do Brasil,


é conhecida como a “Roma Negra”. De acordo Edson Carneiro1, a
expressão “Roma Negra” é uma derivação de “Roma Africana”. Ela
teria sido dita, uma certa vez, pela mãe de santo Eugênia Ana Santos,
conhecida como mãe Aninha, do Ilê Axé Opô Afonjá ou Centro Cruz
Santa do Axé do Opô Afonjá; é um terreiro de candomblé fundado
por Eugênia Ana dos Santos e Tio Joaquim, Obá Sanhá, em 1910, em
São Gonçalo do Retiro, um bairro de Salvador.

Segundo a famosa mãe de santo, “assim como Roma é o centro


do catolicismo, Salvador seria o centro do culto aos orixás”. Essa “Roma
Negra” de mãe Aninha está impregnada nos versos, nas ruas, nas esqui-
nas, na gente preta, cuja cultura sobreviveu na arte da capoeira, nos
batuques do candomblé, na gastronomia, que surgiu pela força da sua
religiosidade e como princípio das necessidades do candomblé, resul-
tando no que se conhece hoje como a cultura baiana, secular acultura-
ção que partiu da diáspora negra pela coragem e resiliência do negro.

Fanon – estou te localizando no espaço e no contexto histó-


rico cultural, para lhe contar como foi que eu pela primeira vez escu-
tei e obtive um contato com a sua obra. A obra, nesta ocasião, é Pele
Negra, Mascaras Brancas.

Devo dizer que sinto me envergonhada, lamento e peço per-


dão em nome do povo brasileiro e do povo preto, por você chegar

SUMÁRIO 439
tão tardiamente em nosso país, assim como todos os processos anti-
colonialista/antirracistas. Na atualidade, ressignificando e buscando
acentuar uma consciência em viver o verbo aquilombar, compreendo
que não há afrofuturismo sem ancestralidade.

E enquanto mulher negra, fico refletida, incomodada, provo-


cada e muito mexida, procurando entender os motivos pelos quais
o nosso país, ainda acentua a vergonhosa “mancha indelével da
cor” ou a “Mancha da Escravidão”, essa citação é do extraordinário,
revolucionário e abolicionista, Machado de Assis, o qual eu imagino
que você teria muitos deleites se o tivesse encontrado. Entretanto,
minhas reflexões de inquietude é porque somos a África Brasileira,
fora do continente africano; porém, as nossas desigualdades frente
as questões raciais, econômica, sociais e socioculturais, são bastante
semelhantes. Aqui a doença que você tanto lutou para obter as curas,
ainda persistem e tem outros nomes, mas os mesmos sintomas.

Existem diversas formas de racismos e suas múltiplas manifes-


tações: racismo institucional, morfológico, racismo ambiental, cultural e
outras formas que talvez ainda não conseguimos nomeá-los. E diante de
tantos retrocessos neste país que se constituiu por várias mãos. Mãos
dos verdadeiros donos das terras brasileiras, os indígenas e os nossos
irmãos escravizados, além de outros povos que chegaram por aqui.

O racismo no Brasil é tão enraizado, que estudos apontam.


65% das casas chefiadas por pessoas negras, estão em situação
de insegurança alimentar. Negros são 84% das pessoas mortas em
ações policiais. Brancos ganham 68% a mais que os negros.

Segundo Muniz Sodré2, dois tipos de racismo acentuam e


revelam esses dados: o racismo morfológico e cultural.

Penso que não avançamos quase nada! Ao observar os nos-


sos sistemas de ensino, esses ainda não nos possibilitam aprendi-
zados racializados, que apesar de pequenos e tardios avanços em
algumas legislações, tais como: a Lei n.º 11.645, de 10 março de 2008,

SUMÁRIO 440
que torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-bra-
sileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém
não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino
superior para os cursos de formação de professores (licenciaturas).

Neste sentido, permaneço pensando e questionando esse sis-


tema. Já que estamos ressignificando a nossa interculturalidade e nos
compomos dessa carga ancestral, porque que não há um programa
de ensino estabelecido em que todas as crianças, desde os seus pri-
meiros anos de vida estudantil, já recebam as orientações e as infor-
mações sobre a constituição do nosso povo? Quão miscigenada é a
nossa nação, e qual o real motivo para esse processo ou retrocessos?

Talvez se desde pequenos tivéssemos nas vivências, convivên-


cias, aprendizados e principalmente nas aulas de ciências, sobre as
análises da pele e os seus anexos; muitos poderíamos se sentirem em
paz com as nossas aparências. Esses questionamentos, me faz revisitar
memórias afetivas dos ensinamentos da minha ancestral, a matriarca
do meu pai. Que dizia” - é dos pequenos que se faz os grandes”, ou seja,
se formamos as crianças por meio de uma Pedagogia Decolonial, há
possibilidades de termos pessoas melhores para um mundo melhor.

No entanto, Frantz, quero chegar o meu encontro com você!

Sendo uma principiante em constante aprendizado, entusias-


mada com as artes, militante e pesquisadora das políticas públicas
culturais aqui no Brasil. Proponho interessar-me por temáticas que
me possibilitam a compreensão do processo triangular de constitui-
ção do povo brasileiro.

No momento que sou atravessada por você, é de uma


maneira tão impactante, que eu posso dizer, que por muitas vezes,
dialogando com a sua escrita, tive períodos de angústias, algumas
sensações não agradáveis; como ânsias de vômito, tonturas... E por
outras vezes, eu transcendia... O Brasil é um país que se estabeleceu
por um regime democrático, porém diante de tantos modos de acen-
tuar o racismo, fico a indagar.

SUMÁRIO 441
Como podemos conciliar o racismo com democracia? Com o
racismo, não há democracia!

Afinal somos todos humanos? Para o racismo, NÃO!

Noto que na atualidade a cor da pele ainda é mais um pro-


blema na sociedade mundial. E nesta circunstância, não adianta
ser ou ter condições sociais, conhecimentos acadêmicos ou bens
materiais, o que define mesmo a existência das condições humanas
é a tez. Penso que a revolução humana, só será possível acontecer,
quando a humanidade compreender que somos seres pertencentes
a uma mesma espécie e teremos os mesmos fins.

Então, em março de 2019, iniciei os estudos na Universidade


Federal da Bahia -UFBA, no curso Artes Cênicas - Direção Teatral/
Teatro Negro, foi quando a Diretora e pesquisadora, mulher preta,
lésbica e gorda, Maria Júlia, (Onisajé). Estou fazendo essa exposição
da professora, por quê; por aqui, esse fenótipo, são pautas muito
caras; e essas pessoas ainda são invisibilizadas dos direitos fun-
damentais em existir.

No final deste curso, é obrigatório montagem de um espe-


táculo. Foi aí que a Onisajé, propôs montar um espetáculo com o
projeto de dissertação do mestrado que ela concluiu e que vinha
sendo trabalhado com a turma nas suas aulas. O tema: ancestrali-
dade em cena: candomblé e teatro na formação de uma encenadora.
Então, eu comecei a participar de algumas aulas, os ensaios e na
produção do espetáculo.

Percebi que essa professora em especial, trazia propostas de


leituras que antes eu não tinha ouvido falar. E uma dessas propostas,
foi a obra de Fanon.

– Quem é Fanon?! Pele Negra, Máscaras Brancas? Lá vamos


conhecer o maior radical político, pan-africanista, humanista, mar-
xista e porque não dizer: afrofuturista.

SUMÁRIO 442
A minha leitura prévia com a sua obra, Fanon - foi um tanto
dolorido, chocante, às vezes não dava para digerir. Porque você,
Fanon, nos coloca a refletir as nossas feridas no lugar de intersec-
cionalidade, colocando o preto frente a ele próprio. E na atualidade,
lendo ou revisitando outros pensadores. Digo: pensadoras! pois aqui
temos muitas mulheres enegrecendo a cena, ou a literatura.

E uma dessas pretas, que nos ajuda a enegrecer o pensamento,


me auxilia a arquitetar uma alusão: imagino que deverá existir um
entrelaçamento ancestral na forma da escrita dela, e o seu pensamento
revolucionário ao conceito de escrevivências; que por aqui, quem dar
à luz a este conceito, é; Conceição Evaristo. Quando ela diz – “A nossa
escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-
-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.». Ela men-
ciona que o conceito de escrevivências nasceu por meio da análise
do fazer literário, mas que hoje esse conceito é pensado no campo
da História, da Pedagogia, da Geografia, da Sociologia e da fotografia.

Escrevivências; é o um conceito que nasce de uma perspec-


tiva de vivência das mulheres negras. – é escrever o corpo negro
pela memória da pele. Articulando memória, experiências históricas
de mulheres negras e o pensamento afro-brasileiro para fundamen-
tar este conceito cada vez mais reconhecido e utilizado, a autora
enfatiza os aspectos políticos da autoria de mulheres negras e das
possibilidades transformadoras da nossa escrita.

Fanon, fico refletindo as suas escrevivências e consigo com-


preender como pensamento e as atitudes são atemporais, nas diver-
sas frentes das lutas por igualdade racial e equidade humana.

Aqui há alguns avanços e muito a conquistar!

Contextualizando outra forma de LER O BRASIL, faz neces-


sário revisitar as memórias da escravidão, pensar as diversas formas
do racismo na atualidade, envolvendo o processo de subalternização
cultural, para sair da fixionalizaçao narcísica.

SUMÁRIO 443
Sair dessa imposição do espelho de Narciso, o qual expulsa o
nosso rosto e procurar os espelhos da autoestima, que nos apontam
para a comunidade da coletividade, da subjetividade, e da dignidade.
Parafraseando, Muniz Sodré: Dignidade é não se reduzir ao preço, é
estar acima de qualquer preço.

Veja, Fanon. Aqui no Brasil, inicialmente você não foi bem


aceito nas Universidades, mas foi peça chave para os estudos do
movimento social negro, foram esses movimentos que lhe introdu-
ziu no campo das literaturas e leituras, oportunizando as pessoas a
conhecer a sua obra. Hoje em dia já temos pesquisadores, especia-
listas e outros se especializando nos pensamentos fanoniano.

Em 2020, bem no ano da pandemia da Covid 19, que diante


de tantos problemas que originou, trouxe a privação do convívio
social; e isso causou, inúmeras mortes, acentuando os sintomas de
saúde mental. Neste período foi publicado um trabalho inédito sobre
os seus escritos psiquiátrico” Alienação e Liberdade”, falando exa-
tamente sobre os sintomas da saúde mental. Sua obra está sendo
fundamental para a contribuição e a construção dos estudos que
problematize o fenômeno da colonização e também nas reflexões
políticas, filosóficas e nos processos do capitalismo.

Ah! Foi a partir do espetáculo “pele Negra, Máscaras Brancas”,


que algumas Universidade iniciaram cursos sobre as temáticas do
racismo, outras criaram curso de licenciaturas na pegada afro-brasi-
leira Decolonial. E com o sucesso do espetáculo que girou o Brasil,
uma boa parte dos brasileiros ouviu falar ou buscam aprofundar os
conhecimentos sobre as suas obras.

Obrigada aos que vieram antes, para que nós pudéssemos


existir. Até outros reencontros. Gratidão, Frantz Ibrahim Fanon!

Barreiras, 05 de julho de 2023.

SUMÁRIO 444
Helder Souza da Silva

REFLEXÕES
DECOLONAIS DE
LUTA E RESISTÊNCIA
EM FRANTZ FANON
Estimado companheiro de Luta, Frantz Fanon,

Escrevo-lhe nestes tempos tumultuados, quando a opres-


são continua a afligir muitas vidas em todo o mundo. Nossa busca
pela libertação da colonialidade e do sistema capitalista opressor
nunca foi tão urgente. Portanto, venho, primeiramente, agradecer
pelos primeiros incentivos de outrora e mostrar que a luta e resis-
tência epistêmica contra a sistemática colonial ainda deve continuar.
Parece-me fundamental reconhecer que os sujeitos colonizados,
posicionados nos limites da modernidade, jamais se mostraram
ou se mostram passivos. Nesse sentido, destaca-se que, ao longo
de todo o processo de colonialismo, surgiram atos de resistência e
oposição. Os territórios frequentemente falharam em ser completa-
mente absorvidos pelo papel preconcebido pela narrativa universal
da modernidade, e é nesse ponto que encontramos seu potencial
para transcender essas limitações.

O que se torna de suma importância é a restauração do


conhecimento teórico e político de sujeitos que, até então, foram
percebidos como sendo silenciados, cujas capacidades de produzir
teorias e projetos políticos foram obscurecidas. Deve-se observar
que o termo “restituição” neste contexto não implica simplesmente
devolver a voz àqueles que não tinham voz, pois ao longo do projeto
de imposição da colonialidade sempre houve discursos contrários
à hegemonia; o foco agora está na necessidade de revitalizar esses
debates, destacando essas vozes.

Reler autores/as que foram silenciadas devido à errônea


noção de uma racionalidade universal não significa apenas encon-
trar relatos sobre os efeitos da dominação colonial, mas também
reconhecer uma miríade de vozes, especialmente neste contexto, as
vozes afro-americanas e indígenas, que resistem à marginalização,
discriminação, desigualdade e buscam a mudança social (Mignolo,
2017). Isso representa um autêntico projeto de resistência antirra-
cista, pluriversal e decolonial.

SUMÁRIO 446
Observa-se uma interconexão de ideias que não apenas
enriquece o diálogo dentro do campo dos estudos decoloniais,
mas também destaca que outras vozes, que não são classificadas
como decoloniais, já estavam envolvidas em debates sobre a colo-
nialidade antes mesmo do início dos estudos sobre modernidade/
colonialidade/decolonialidade (M/C/D), que é o seu caso Fanon
(1968), com a publicação de Os Condenados da Terra. A abordagem
decolonial, que você, amigo de luta influenciou implica em conside-
rar a perspectiva a partir da experiência da colonização e em adotar
uma posição epistêmica subalterna, em oposição à hegemonia epis-
têmica e ontológica.

É importante destacar novamente, como mencionado ante-


riormente, que a imperialidade está intrinsecamente ligada a essa
discussão, o que significa que a completa decolonização dentro do
contexto da modernidade é inatingível. Pensar na decolonialidade
sem levar em conta a necessidade de desimperialização pode ser
interpretado negativamente, como um afastamento da modernidade
e sua racionalidade, voltando-se para uma subjetividade associada
ao mundo não alinhado com grandes sistemas econômicos, sob a
perspectiva de um saudosismo pré-colonial e, consequentemente,
pré-moderno, o que não é viável no mundo contemporâneo (Quijano,
2005; Mignolo, 2003).

Talvez o aspecto mais problemático, de acordo com seus


próprios escritos Fanon (1968) e levando em consideração esse tipo
de abordagem seja que, ao tentar dar maior destaque aos estilos de
vida influenciados por diferentes perspectivas culturais, a rejeição da
modernidade como meio de superar as estruturas imperialistas ine-
rentes à colonialidade pode inadvertidamente negar todas as formas
de resistência possíveis dentro desse mesmo contexto moderno. É
crucial, portanto, permanecer atento às iniciativas de desimperia-
lização enquanto consideramos a decolonização. O pensamento
decolonial desempenha um papel fundamental na desarticulação da
lógica da colonialidade e em combater os efeitos prejudiciais que

SUMÁRIO 447
essa lógica tem sobre as mentalidades moldadas pelas categorias
de pensamento ocidentais. A descolonização do conhecimento
requer que valorizemos os insights, cosmovisões e perspectivas
dos pensadores críticos do Sul global, levando em consideração
também suas experiências pessoais e as subjetividades que atraves-
sam (Mignolo, 2003).

Compreender os mecanismos dessa relação profundamente


perturbadora é fundamental para que sua visão Fanon seja realizada
de acordo com seus desejos: a completa destruição do sistema colo-
nial, sem espaço para qualquer possibilidade de uma nova forma
de comunicação entre colonizados e colonizadores (Fanon, 1968).
Portanto, como você Fanon caracterizou esses indivíduos que res-
pondiam pelo nome de colonos? Eles eram exibicionistas de um
mundo repleto de excessos, que ostentavam ideias libertárias vindas
de sua cultura (Fanon, 1968). Contudo, quando colocados em terras
não-europeias, seus valores universalistas, que tanto aqueciam seus
corações, se transformavam em uma brutalidade desenfreada. Toda
a exibição de riqueza material no campo colonial era resultado de
saques. E todas as exibições de ideias – chamadas pelos colonos
de “verdades” – eram produtos do conforto e comodismo obtidos
à custa de assassinatos, exploração, servidão e um suposto huma-
nismo manchado de sangue, que foi elevado à categoria de universal
mediante uma montanha de cadáveres.

Portanto, Fanon (1968) com sua iniciativa e aperfeiçoamento


ao longo dos anos, a teoria crítica decolonial radical pode enriquecer
substancialmente seu arsenal intelectual ao incorporar as valiosas
contribuições originadas nos recantos étnico-raciais subalternos.
Isso requer uma revisão profunda e abrangente, inclusive a nível
sistêmico, dos paradigmas estabelecidos pela economia política tra-
dicional no que diz respeito ao capitalismo enquanto sistema global.
Tais análises nos conduzem a refletir sobre as implicações e desdo-
bramentos intrínsecos à relação entre o sujeito que teoriza e o ponto
de partida de sua reflexão (Mignolo, 2003). O projeto decolonial

SUMÁRIO 448
almeja transcender a lógica dualista que caracteriza a modernidade/
colonialidade, rejeitando enfaticamente a separação entre o ato de
conhecer e o ato de agir.

Uma desconstrução radical das relações binárias e das


disparidades que as permeiam se faz necessária, abrangendo não
apenas a dicotomia natureza/cultura, mas também outros aspectos
como teoria/prática, entre outros. A decolonialidade emerge como o
terceiro elemento vital no contexto da modernidade/colonialidade,
agora tratada sob a sigla M/C/D, desvendando novos horizontes
emancipatórios. A metamorfose decolonial e a busca pela decolo-
nização transcendem não apenas a fase das relações formais de
colonização; elas representam um desafio frontal ao legado contí-
nuo e à produção incessante da colonialidade do poder. Este é um
empreendimento que visa não apenas a superação dos paradigmas
modernos, mas também um enfrentamento direto às hierarquias
profundamente enraizadas, como aquelas fundamentadas em raça,
gênero e sexualidade, construídas e fortalecidas ao longo da trajetó-
ria da modernidade europeia durante os períodos de colonização e
escravização de inúmeras populações ao redor do globo (Mignolo,
2003; Quijano, 2005).

Devemos enfrentar esses desafios com a mesma determi-


nação e coragem que nossos predecessores tiveram. Nossa luta
contra a colonialidade e o capitalismo opressor deve ser interseccio-
nal, abraçando todas as formas de opressão e promovendo a justiça
social. A solidariedade é nossa maior arma. Devemos unir nossas
vozes com aquelas de todos os que buscam justiça e igualdade,
independentemente de onde estejam ou de quais lutas enfrentem.
Com suas palavras encorajadoras e reflexivas podemos inferir que
cada geração, a cada momento, deve, de alguma maneira, descobrir
sua missão, cumpri-la ou traí-la. Nossa missão é lutar pela libertação
de todos os oprimidos, hoje e sempre.

Barreiras-BA, 04 de setembro de 2023.

SUMÁRIO 449
REFERÊNCIAS
FANON, F. Os condenados da Terra. Tradução de José Laurêncio de Mello. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.

MIGNOLO, W. Desafios decoloniais hoje. Tradução de Marcos de Jesus Oliveira. In:


Epistemologias do Sul. Foz do Iguaçu-PR, 2017b. Disponível em: https://revistas.unila.
edu.br/epistemologiasdosul/article/download/772/645/2646. Acesso em: 20 maio 2023.

MIGNOLO, W. Histórias locais / projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e


pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, 2005.


Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lander/pt/lander.html. Acesso
em: 01 set. 2023.

SUMÁRIO 450
Pedro Neves Gonçalves Franco de Carvalho

RAÇA, CLASSE E RAP


NAS SUBJETIVIDADES DAS
GERAÇÕES PASSADAS,
PRESENTE E FUTURAS
Dear Frantz Fanon,

Please let me start by saying that I am very pleased that


thanks to new advancements in developing technology that now
allows us to send messages back and forth through the space-time
continuum of the fourth dimension we are now able to exchange and
share thoughts and ideas.

For many of my generation, myself included, you are conside-


red one of the most prolific thinkers and great revolutionaries of our
world and I am pleased to confirm that currently every day we see
more and more students referring to your work and research, being
that you have established the basis for current decolonial theories
and post-colonial studies. I feel nothing less than honoured to have
you read my letter and be able to straighten ties of friendship as we
discuss possible solutions for the many trials and tribulations I still see
our brothers and sisters of developing nations face in the world today.

Your analysis on the psychological effects of colonization in


the bodies and minds of black people is a game changing research
that has now spread and helped flourish several new ideas which
have led to many achievements regarding the rights of the black glo-
bal community and the fight against class and race discrimination. So
I am also pleased to say that we have in fact seen several improve-
ments regarding more dignity and respect for the offspring of those
who in the past, from where you now receive and send messages and
speak from, have paved the way through the suffering of their bodies
and minds for better conditions for the black population worldwide.

I am especially trilled to now be able to continue to count with


your most valuable contributions since unfortunately there is still a lot
of work to be done and the fight that you once fought is still our strug-
gle today, despite the end of the era of colonialism and steps towards
guaranteeing basic human rights for all, especially to those who des-
cend of those who have suffered, as you brilliantly showed through
your life long work, the immense pain of persecution and torture.

SUMÁRIO 452
Ironically enough, however, what you once stated should be a goal
of all of those who fight worldwide for a better and more decent life,
which was to humanize humanism, is still and more than ever before
a concept needs to be defended.

You see my friend, despite some changes in circumstance


for blacks all around the world, it is with a heavy heart that I bear for
you the news that black men, women and children are still seen as
second class citizens in most countries and the global South conti-
nues to be undermined and underappreciated by the global commu-
nity, especially by Europe and North America.

The current contradictions we see in the world today are


shameful and inexcusable. Please allow me to elaborate. Could you
ever imagine back in your days that music born and nurtured in poor
income black neighbourhoods of New York by black immigrants
from the Caribbean whose relatives where brought by force to the
continent from Africa, could one day become the most consumed
music genre in the globe? What RAP music has done for black peo-
ple all over is a thing of beauty. By sharing their struggles and hopes
through rhythm and poetry young black artists are paving the way for
true empowerment of their communities and becoming a phenome-
non that has also helped educate black people as they look for more
political and economic knowledge and power.

I can quote for instance Kendrick Lamar, a rapper from the pro-
jects of Los Angeles, when he states in his music Savior: “Capitalists
posing as compassionates be offending me” (Lamar, 2022). I can
also think of a quote by Noname, a female rapper from the southside
of Chicago, as she references you in her song Rainforest: “Took the
wretched out the earth and called it baby Fanon” (Noname, 2021).

In my country, Brazil, black music and culture have always


been neglected my mass media and school curriculum. However,
this is now changing, as RAP and Funk music (black music from the
favelas in Rio) captivates the hearts and minds of youth all over the

SUMÁRIO 453
country, despite class, gender or race, and can no longer be ignored,
helping black citizens’ cause gain space in a national discussions
regarding reparations for the descendants of those formerly enslaved.

There are, however, as I mentioned, mind boggling contra-


dictions that persist in today’s reality, unfortunately not very different
from the unhuman conditions that you and your generation has seen.
Despite colonialism being officially ended decades ago, we have
still seen consequences of its grasp in the formation of modern sub-
jectivity. Unequal distribution of wealth has also kept black nations
struggling to provide their populations with better life conditions and
many young black bodies see themselves with no options but to take
their chances with human traffickers promising better opportunities
across the ocean, many of which see their dreams and hopes ended
in a sinking overcrowded illegal boat. For those who do manage to
survive the journey, they find themselves in a new inhospitable coun-
try with natives looking down on them expecting nothing more than
cheap labour force. Sounds familiar, I can imagine.

I must say that for myself these matters are very much close to
my heart. You see my father once also saw himself having to illegally
enter the United States of America in search of a better life for him and
his family. I was only three at the time when we arrived at the new cou-
ntry. As an immigrant child, I had to overcome so many cultural and
linguistic barriers, but I managed the best I could, as did my family, and
I am glad to say that after spending most of my childhood in a foreign
country my relatives and I managed to return safely to Brazil. This expe-
rience, however, changed and shaped my life in such a way I am still
coming to understand. It has also made me at a very early age sensitive
and aware to the struggles and hopes of those who like my father many
years ago also today see themselves forced to leave their homeland.

As I grew and educated myself, I finally understood the


paradox citizens from developing countries like my own are faced
with: we seek better life conditions at countries who are themselves

SUMÁRIO 454
responsible in the first place for the misery me and my fellow coun-
trymen are left to deal with and overcome are whole lives, scraping
for whatever wealth is left at the periphery of capitalism. When I was
exposed to your concept of alienation, my own struggle became so
much clearer and helped me to come to terms with the arduous
struggle I would have to face to free myself from the mental slavery
imposed on me by so many cultural values that are not my own nor
are native to my homeland.

I must also share with you that unfortunately what you once
brilliantly stated regarding fascism and it being nothing more than
what Europe has imposed to its colonies but taking place in their own
territories, still applies today. North America as the new global super
power has kept its foot on the South’s neck, preventing nations like
my own to thrive and influence global affairs. We can also see clearly
today fascism arising in North America, with right-wing populist lea-
ders criminalizing immigrants that are not white, blond and blue eyed
and banning books on critical race theory from schools. Unfortunately
my country as well has suffered from this evil, with alarming rates of
fascists groups growing by the day after a recent presidential term
of a fascist leader as well, wishing to turn the country into a more
European alike nation and not only turning its back on the original
indigenous population, the enormous contributions of the African
diaspora population, and all the ancient wisdom and knowledge that
has till this day been overlooked and underappreciated, but with turst
for more genocide and conquering all in the name of progress.

Can you believe that there is currently an indigenous Brazilian


thinker called Ailton Krenak who stated in one of his last best-selling
books: “Having diversity, not that of a humanity with the same proto-
col. Because until now this has only been a way of homogenizing and
taking away our joy in being alive” (Krenak, 2019)? An idea you once
presented to the world so many years ago, that of the concept of huma-
nity being an excuse to conquer and subdue. It fascinates me to see
how this concept of yours, which for a long time was little appreciated,

SUMÁRIO 455
returns today to the mouths of modern thinkers in the form of ancient
wisdom that I know surely also guided your steps and thoughts. And
it is these truly liberating ideas, so old and new, so potent, that remain
under attack today and that we need to protect and spread.

So as you can see, my generation has its work cut out for it and
all I can report to you at the moment is that we are not many, but we
too multiply, wishing to see change in the world and still learning to put
aside are petty differences and organize in an effective political fashion.
These issues and challenges are, as I mentioned, very dear to me and I
have, as yourself, made it my life’s battle to fight back the many setbacks
we have suffered. And I am pleased to say I am not alone. Whenever
I feel discourage with the harsh reality in front of me, besides running
back to those who, as you, came before me and set an example and
paved the way for the victories we have had, I look to today’s youth, to
boys and girls younger than me and my heart is filled with hope.

As I teacher I have been in close contact with the next upco-


ming generation and I am pleased to say that they seem to be born
without several mental shackles that my generation and yours see-
med to have. We still have a long way to go to neutralize the perverse
effects of the colonial past on the construction of their subjectivities,
but somehow I believe they seem more open hearted and minded,
born with less prejudice and less interested in greed and power and
more attentive to matters that will in fact very much affect their future,
such as the environment, social justice and wealth distribution. I can
assure you it is most definitely an exciting time to be alive as we
wait and see the outcomes of the current generation’s battles as it
starts to understand that the only path to freedom is for the current
obsolute system to burn.

As this new generation grows, we also see on the horizon


the growth of a new global super power from the South, which can
maybe tip the scales of geopolitics and challenge the hegemony
of the North. All this in a planet which now has a few billionaires

SUMÁRIO 456
with more wealth than half the entire world population, a recipe for
disaster and that I honestly hope will stir in the current world popula-
tion the despair, rage and strength necessary to bring revolutionary
change all around the globe, as we the immigrants, we the children
of immigrants, we the diaspora, we the descendents of the colonized,
we continue to detect and remove from our lands and minds the
germs of rot left behind by imperialism and claim our right to ques-
tion everything and demand reparations.

My friend, there is still so much I wish to share with you, so


many amazing artists and thinkers that are coming about I want
to introduce you to, but now that we have opened the gateways of
communication through the fourth dimension, I hope we will conti-
nue to exchange letters. This opportunity we have for me is priceless,
as we in the present can continue to learn from such a brillian mind
as yours, and I can keep you updated on our progress as we try to
make those like you who have come before us and once paid with
their own lives to contribuite to the wins we see today, proud.

Yours sincerely,

Brasilia, Brazil, 04 September 2023.

REFERÊNCIAS
FANON, F. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008.

KENDRICK, L. Savior. Los Angeles: Bekon Productions, 2022. Disponível em: https://genius.
com/Kendrick-lamar-baby-keem-and-sam-dew-savior-lyrics. Acesso em: 4 set. 2023.

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

NONAME. Rainforest. Chicago: The Kount, 2021. Disponível em: https://genius.com/


Noname-rainforest-lyrics. Acesso em: 4 set. 2023.

SUMÁRIO 457
Olga Maciel Ferreira

HUMANIDADE INCERTA:
DIFICULDADES NA CONSTRUÇÃO
DO EU DE UMA PESSOA
RACIALIZADA
Caro Frantz Fanon,

Recentemente, depois de uma trajetória de vida me esqui-


vando de certas discussões que envolviam a questão racial, espe-
cificamente no que tange à minha formação enquanto sujeito racia-
lizado, fui “convidada” pelo universo a pensar e a escrever sobre a
minha história. Nesse momento, o seu livro Pele negra, máscaras
brancas fez-se presente e foi um marco no meu processo de autoi-
dentificação, processo esse que ainda está em curso, e não sei se um
dia estará de fato “concluído”.

Você fala da tomada de consciência-de-si a partir da violên-


cia do outro, consciência que é construída a partir do preconceito de
cor, a partir do racismo, posto que, “é o racista que cria o inferiori-
zado”. Eu cresci e me construí enquanto sujeito, traçado por um meio
termo existencial, situado em uma espécie de limbo, como um ser
pautado no não-ser. Um sujeito duplicado, nunca suficientemente
branca e nunca suficientemente negra, em um eterno não-perten-
cer. Seria isso um privilégio, ou uma dupla violência? Eu me per-
gunto e lhe pergunto.

Eu escrevo de Manaus, Amazonas, Brasil. Aqui, os processos


de branqueamento e de miscigenação são elementos fundamentais
para se pensar criticamente a dificuldade da formação do negro
enquanto sujeito, a ‘construção do eu’ torna-se muito mais complexa,
por ser uma construção atravessada por isso. Como disse Neusa
Santos Souza (1983), uma de suas importantes herdeiras intelectu-
ais, tornar-se negro no Brasil é um caminho com muitas barreiras, as
quais vão do entendimento histórico-social, relacionados à questão
familiar e à subjetiva, entendendo como racismo funda a sociedade
brasileira, e tendo o apagamento da negritude como prática principal.

Desenvolvimento particularmente difícil e doloroso, como


você bem sinaliza em seu livro, mas que ganha um grau de comple-
xidade diferente do seu, justamente por ir ao encontro dessas ques-
tões pontuadas. Afinal de contas, como posso me entender enquanto

SUMÁRIO 459
mulher negra se minha família está cheia de misturas? De fato, o
olhar do outro me constitui, no entanto, no meu caso, não existe Um
outro (universal), mas sim, muitos “outros”. Eu, um ser miscigenado,
sou uma ambiguidade para quem me vê, mas percebi que o mais
triste e violento, é ser uma ambiguidade para mim mesma.

Foi com essa violência mascarada de privilégio que eu sempre


consegui transitar por lugares, às vezes sendo apontada pela minha
inadequação, outras vezes não. Os casos de racismo e violência que
sofri e sofro, só agora percebo, que se relacionam à minha condição de
mulher negra de pele clara, ao mesmo tempo que, essa violência cres-
ceu pautada na ambiguidade, no momento do racismo, ela se apresenta
de forma certeira. Foi ao ter meu cabelo tocado e ser chamada de “nega
maluca” por um colega de trabalho que essas questões voltaram à tona.

A minha humanidade foi socialmente construída como


incerta, e é individualmente sentida como tal. Por conta disso, por
mais que não consiga me encaixar plenamente em nenhum dos
lados, nem preta, nem branca, a aceitação e o reconhecimento da
minha negritude me parece um bom início, por mais difícil que seja
encará-lo. Simultaneamente, entendo que talvez essa incerteza
nunca vá embora, mas a partir do momento que compreendo que
a negação de um dos meus “lados” vem de um processo estrutural
de racismo, quem sabe essa luta se torne mais direcionada. E quem
sabe esse “lado” se torne parte integral.

Escrevo para você, porque foi você quem me ensinou, que


devemos ter pelo que lutar em nossa geração, em nosso tempo.
Acredito que essa seja uma pauta importante, a qual tem crescido
nos debates nacionais, mas que ainda carece de maiores problema-
tizações e discussões. Nesse sentido, começo a entendê-la como
minha luta, e passo a ter seus livros e teorias como fundamento e
norte. Construindo meu futuro, a partir da contestação do presente.

Manaus, Amazonas, 14 de agosto de 2023.

SUMÁRIO 460
REFERÊNCIAS
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu editora, 2020.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em


ascensão social. 2.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

SUMÁRIO 461
Vitor Igor Fernandes Ramos

“MAMÃE, OLHE...
UM NEGRO”:
CARTA A UM AMIGO
ANCESTRAL
Companheiro Fanon,

Dr. Frantz Fanon, eu poderia aqui trazer vários sinônimos


de palavras belas que poderia representar minha admiração e
meu amor por você. Todas elas, talvez, não expressassem ou sig-
nificassem a beleza e força que eu quero transparecer. Por isso,
escrevo essa carta como um amigo, um amigo que você nunca irá
conhecer. Mas te afirmo: você é a representação que eu tenho em
vida, em alma, em corpo.

Esse corpo, negro, que te fala e atravessa fronteiras e oce-


anos. Esse corpo negro que grita e berra de uma terra Amazônida,
de uma terra Cabocla, de uma terra que resistiu e resiste a atraves-
samentos colonialistas. Fanon, aqui nessa terra, aqui em Belém do
Pará, imperou o Movimento da Cabanagem, que com a força de
homens, mulheres, indígenas e negros, se consagrou como um dos
movimentos mais importantes já acontecidos no Brasil. Estávamos
cansados do colonialismo! Queríamos a nossa independência!
Queríamos nossa (SUS)tentação em nossas próprias terras!

Tivemos em domínio de Portugal desde 1500, Fanon! É


necessário e urgente, como você mesmo diz, de “identificar, criti-
car e abandonar a descrição colonial que foi feita sobre nós é passo
essencial para a mudança das relações concretas e das dimensões
subjetivas” (Fanon, 2022, p. 19). A nossa subjetividade se desapa-
receu com o avançar do capitalismo e da dimensão étnico-racial
do racismo como uma máquina que te domina, te controla e te faz
produzir a mercê dela.

Hoje, Fanon, percebo como a máquina racista se evoluiu


como uma ferramenta a caçar negros/as/es! Por que, negros/as/
es? Por que, fomos escolhidos/as/es? Ah, Fanon, acho que tu podes
analisar fenologicamente e psicanalicamente o porquê do artigo “es”,
né? Bom, é que graças a luta de outros movimentos como o da inclu-
são e de LBGTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero,

SUMÁRIO 463
Queer, Intersexo,Assexuais, Pansexuais, Não-Binaries E Mais) tivemos
a necessidade de incluir pessoas que historicamente – assim como
nós, população negra – foram “explorados, escravizados, despre-
zados por uma sociedade capitalista, colonialista, acidentalmente
branca” (Fanon, 2020b, p. 212).

A sociedade branca é a culpada de todo nosso sofrimento,


companheiro! Foi estruturalmente e visceralmente exposto a nossa
carne e nosso corpo para o deleite de brancos e sua estrutura colo-
nista, que ainda impera hoje. Fanon, se tu viesse ao Brasil e, em espe-
cial, a Belém do Pará, conhecida como Cidade Morena, iria entender
minha revolta. Todas às vezes que acordo para um novo dia, é como
se “toneladas de grilhões, tempestades de golpes, rios de cuspara-
das escorrem pelas minhas costas” (Fanon, 2020b, p. 241). Tudo isso
acontece por eu ser negro! Será que o branco se sente assim ao
acordar em sua soberania e explicitude de sua brancura?

Não sei não, Fanon. Acredito que a separação racial entre o


negro e branco se tornou peça fundamental para a nossa experiên-
cia de se organizar como movimento, como nação. Em andar junto
ao povo, não para o povo. Companheiro é necessário enfatizarmos
que vivemos ainda em uma “sociedade colonial” (Fanon, 2020a, p.
290) e estabelecer que todo projeto criado e realizado com a nação,
deve-se lutar “contra todas as formas de alienação” (Fanon, 2020a, p.
273). Devemos se rebelar, se revoltar e se reinventar! O sentimento
de revolta deve andar junto com aqueles/as que construíram o cami-
nho para que hoje estejamos aqui, lutando!

A luta é política. A Medicina e entidades filantrópicas devem


ser políticas! A “psiquiatria deve ser política” (Fanon, 2020a, p. 44).
Porém, enclausuram-nos/as/es de diversas formas, Fanon. Agora a
Medicina ao invés de estar com o/a sujeito/a, aquele/a que expõem
suas dores, cicatrizes e procura ajuda, não o ouve e não o vê. A
Medicina está nos adoecendo e propondo curas através da medica-
lização. Tudo é medicamento, Fanon. Se sou perseguido em algum

SUMÁRIO 464
estabelecimento comercial, sofro de fase maníaca e sou delirante.
Tranca ele no manicômio! Se desejo uma roupa cara, sofro de uma
euforia excessiva. Prescreve um psicotrópico para melhorar! Se ao
sair de casa sou abordado por um policial, sofro de perseguição.
Compra uma bíblia para ele/ela, é falta de Deus no coração!

É uma perseguição que retira nosso direito de pensar e


agir como seres humanos. Na verdade, não sei se me veem como
um ser humano, portador de direitos e deveres pautados em uma
Constituição Federal feita democraticamente com a participação
da população. Você disse isso, em Pele Negra, Máscaras Brancas
que nós, negros, fomos alienados a pensar bestialmente sobre nós
mesmos. Não tínhamos domínio de nossa própria pele, compos-
tas de ossos e carnes:
Meu corpo me era devolvido desmembrado, desmante-
lado, arrebentado, todo enlutado naquele dia branco de
inverno. O negro é uma besta, o negro é mau, o negro é
malicioso, o negro é feio; olhe, um negro, faz frio, o negro
treme, o negro treme porque sente frio, o menino treme
porque tem medo do negro, o negro treme de frio, aquele
frio de torcer os ossos, o belo menino treme porque
acha que o negro treme de raiva, o menino branco corre
para os braços da mãe: mamãe, o negro vai me comer
(Fanon, 2020b, p. 129).

Porém, Companheiro ancestral e de energia cósmica negra,


eu sinto a real necessidade de me inquietar, de me revolucionar em
passos curtos e longos. Mas não posso fazer isso somente em mim
mesmo. Preciso-me Aquilombar e içá meu corpo negro a uma comu-
nidade formada por corpos energicamente conectados. É sabido que
“há longos meses minha consciência é palco de debates imperdoá-
veis” (Fanon, 2020a, p. 292) e que a cada ar de Oxigênio que entra e
Gás Carbônico que sai, é uma mudança radical.

A nossa caminhada só é possível se “avançar resolutamente se


primeiro tomamos consciência de nossa alienação” (Fanon, 2022, p. 227)
e que nosso povo, se caracterize coletivamente e não unilateralmente.

SUMÁRIO 465
Minha descoberta como corpo e mente negra, se deu apenas
em 2019, Fanon, quando ingressei pela primeira vez em uma
Universidade Pública. Eu imaginava que o mundo estava em minhas
mãos. Fanon, eu não sabia nada do mundo! A Universidade Federal
do Pará (UFPA) me proporcionou a percepção do que eu não via, do
que eu não queria ver.

Com o ingresso nessa instituição e com a aproximação da


militância, principalmente, da luta antimanicomial, pude perceber
lutas de movimentos que existem há mais de séculos. A dita “lou-
cura” acompanha cada ser que perpassa pela sociedade. Fanon,
o/a “louco/a” é parte de nós. Nós somos loucos/as! Qualquer pes-
soa que diga que não pertence à comunidade da loucura é melhor
não confiar, porque há algo de errado! Quem disse isso foi uma
Psiquiatra chamada Nise da Silveira, brasileira, que revolucionou o
tratamento manicomial aqui no Brasil, aplicando métodos em que
através da arte, poderia haver cura. Ela foi do seu tempo, acredito
que tenha ouvido falar dela!

Em momentos de revolução dentro de meu corpo, a meta-


morfose de pardo  negro se tornou realidade quando percebi os
efeitos da colonização em mim. Considerava-me feio, nariz muito
empinado, um corpo não esteticamente malhado e definido, minha
pele não brilhava. Fanon, eu só “queria simplesmente ser um homem
entre outros homens” (Fanon, 2022b, p. 128). Mas não me era possí-
vel. Eu vivo em uma periferia, vi meu amigo ser morto pelo tráfico! O
tráfico, as drogas. A escravidão diz ser eliminada em 13 de maio de
1888, mas a política de “Guerra às Drogas” são o que? A Necropolítica
é o que? A escravidão nunca terminou, meu caro companheiro! Pela
lógica do capital e pelo proibicionismo, viram o corpo negro como
o alvo. Nunca foi sobre eliminar as substâncias psicoativas. Sempre
foi de eliminar pessoas. Estamos falando de uma guerra que mata,
adoece e separa seres humanos. Esses seres, que possuem raça, cor
e etnia específica: são negros/as/es!

SUMÁRIO 466
Uma guerra que deixa famílias adoecidas pela conexão enér-
gica passada por nossa ancestralidade, que acompanha a nossa
evolução como povo. Um povo, que necessita guerreiramente lutar
por sua sobrevivência e permanência nesse mundo cruel, que o povo
negro foi sucumbido a se reintegrar como sociedade e foi-se retirado
seu status de cidadão e cidadã. Somente a violência, Fanon, é capaz
de unir nosso povo em prol de uma mudança radical. Tivemos com-
panheiros e companheiras que tiveram seus corpos estraçalhados
pelas balas de armas colonialistas. O colonialismo fez e faz a gente se
matar, se revoltar contra nosso próprio povo! Mas devamos conhe-
cer o princípio da Rebelião, o princípio e a necessidade de se rebelar:
É preciso não só combater em prol da liberdade de seu
povo. É preciso também, ao longo de todo o tempo que
dura o combate, ensinar novamente a esse povo, e em
primeiro lugar a si mesmo, a dimensão do homem. É
preciso percorrer de novo os caminhos da história, da
história do homem condenado pelos homens, e provo-
car, tornar possível o encontro de seu povo e dos outros
homens (...) e só o combate pode verdadeiramente exor-
cizar essas mentiras sobe o homem que inferiorizam e
literalmente mutilam os mais conscientes dentre nós
(Fanon, 2022, p. 303-304).

Você marca a minha história desde a primeira vez que eu lhe li.
Comecei por Pele Negra e Máscaras Brancas. Companheiro, confesso
que não entendi muito bem sua escrita, sua provocação, sua revolta,
sua indignação. Talvez ainda estivesse em mudanças atmosféricas
dentro de mim. Talvez a metamorfose ainda não tivesse acontecido. Li
pela segunda vez e, como uma bala em meu peito, sentir você!

Sentir sua melancolia, sua raiva e seu armamento escrito me


convocando a pensar e agir como você. Foram sensações maravi-
lhosas que me puseram a entender a sociedade que eu vivo. Essa
sociedade que se diz ser morena é apagar e invisibilizar sua própria
trajetória forçada em mãos negras. O Brasil só existe, por causa de
nós, negros, negras e negres!

SUMÁRIO 467
A luta pelo fim desse “internacionalismo revolucionário”
(Fanon, 2022, p. 360) deve acontecer em todos os campos. Uma
sociedade para ser evoluída e pensar de forma igualitária, deve exter-
minar seus pensamentos e ações que exprimam colonialismo, impe-
rialismo, mercantilismo e, principalmente, racismo. Companheiro,
penso o Brasil como um grande território demarcado por deveras
injustiças e calamidades. Mas, também penso o Brasil, como um
grande território formado maioritariamente por pessoas negras. É por
isso, Fanon, que o meu Brasil, tem as cores da bandeira Pan-Africana,
por caracterizar e entender que não existe Brasil, sem a nação negra.

Belém-Pará, 08 de agosto de 2023.

REFERÊNCIAS
FANON, F. Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. 2.ed. São Paulo: Ubu Editora, 2020a.

FANON, F. Os Condenados da Terra. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

FANON, F. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020b.

SUMÁRIO 468
Marília Claudia Favreto Sinãni

POR UMA PRÁXIS


REVOLUCIONÁRIA
EM DIÁLOGO COM
FRANTZ FANON
Prezado Frantz Fanon,

Me aproximei dos teus escritos e das tuas vivências em


uma das fendas que nasceram devido às muitas lutas travadas para
confrontar as violências institucionalizadas na universidade ociden-
talizada. Lutas coletivas, lutas que denunciam a estrutura opressora,
lutas que anunciam e disputam o futuro. Daqui, sigo lendo as tuas
obras e a cada leitura encontro algo novo que me provoca a pensar
os caminhos possíveis para a construção de uma práxis revolucioná-
ria no horizonte da libertação.

Escrevo desde o Brasil, um contexto marcado por proces-


sos de violência cada vez mais mascarados e naturalizados. Aqui, os
processos de colonização não acabaram com a independência das
colônias e a ferida colonial segue aberta. Hoje, apesar de os discur-
sos desenvolvimentistas nos ensinarem a acreditar que essa ferida
colonial não existe, o pensamento fanoniano se mostra atual quando
olhamos para os dualismos presentes na estrutura social e percebe-
mos que o mundo ainda é dividido em compartimentos, marcado por
desigualdades e processos de exclusão.

Neste mundo cindido em dois (Fanon, 1968), há uma linha


invisível que separa a subjetividade da objetividade para manterem
vivas as práticas de colonização que sustentam o sistema capitalista
em que vivemos. A exploração de corpos e territórios seguem sendo
praticadas sob a justificativa de que são necessárias ao ‘desenvol-
vimento’ da humanidade, mas desenvolvimento para quem? Essa
concepção unilinear de ‘desenvolvimento’ e ‘progresso’ herdada
do colonialismo alimenta as ações predatórias que violam o nosso
direito à existência e nos separa ainda mais.

As dicotomias são atualizadas para desarticular as lutas


sociais e cria-se uma/um “outra/o” composta/o por pessoas his-
toricamente negadas/os. Os ponteiros dos relógios e as estações
correram para que chegássemos a uma outra época, mas o modus
operandi do colonialismo permanece dominando as dimensões

SUMÁRIO 470
ontológicas, epistemológicas e axiológicas. A violência colonial
ainda mantém o seu legado nos dias atuais, buscando formas de
desumanizar os povos subalternizados e orientando-se pela ideia de
que “primeiro cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles, nega
o deus deles, ofende, separa eles” (Emicida, 2019), como é o caso
dos povos indígenas, da população negra, entre tantos outros grupos
classificados e desumanizados pela estrutura opressora, responsável
por reproduzir a violência colonial e sua concepção de que:
Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições,
para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a
sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutece-los
pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o
medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o
camponês; vem civis que se instalam na terra e o obri-
gam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram,
é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um
homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter,
desintegrar-lhe a personalidade (Fanon, 1968, p. 9).

Quando não são exterminadas por completo, as culturas e


as tradições dos grupos historicamente desumanizados são incor-
poradas pelo sistema capitalista para que este permaneça no poder;
a polícia militar ainda invade as comunidades exercendo violência
física e emocional, perpetuando uma cultura do medo a qual nos
habituamos a assistir passivamente através dos meios de comuni-
cação; as terras dos povos indígenas ainda sofre com processos de
extrativismo ilegal e as práticas de genocídio; a lógica capitalista de
acumulação de bens vê tudo e a todas/os como recursos passíveis de
serem explorados para obtenção de lucro e nós aprendemos desde
cedo a reproduzir essa lógica em nossas vidas, vivendo cansadas/os
pelo excesso de trabalho que dizem poder nos garantir um amanhã
melhor, enquanto o presente não se vive com dignidade.

Mesmo com tantos avanços tecnológicos, as ‘velhas’ práticas


de colonização e dominação adquiriram novas roupagens, migrando
do mundo concreto ao mundo virtual que integra o nosso cotidiano.

SUMÁRIO 471
Às vezes eu me sento no banco da praça e observo cada pessoa que
por ali passa. Passam as senhoras com sacolas pesadas lhes mar-
cando os dedos, passam crianças cabisbaixas com seus celulares
nas mãos, passam casais dividindo um chimarrão já morno, passam
os bandos, passam as/os solitárias/os, passam as/os invisibilizadas/
os com suas caixas de papelão desmontadas nas costas, só não
passa a pressa que todas estas pessoas carregam com elas. Nos
bolsos, nas mochilas, nos olhos, nos sapatos com a sola desgastada,
há pedaços do tempo convivendo no asfalto, disputando quem tem o
mérito de chegar até o amanhã. Mas todas as pessoas não deveriam
ter o direito e as condições necessárias para chegar ao amanhã?

Vivemos em um eterno burnout26 em que a promessa de um


amanhã melhor nos impede de viver o hoje e a guerra ainda mata,
mas anda mais discreta. O sistema capitalista neoliberal faz uso do
imperialismo e de suas ações predatórias para colocar o povo con-
tra o povo, semelhante às táticas da guerra subversiva na Argélia
denunciada em Os condenados da terra (Fanon, 1968). No mundo
contemporâneo, as táticas de controle da população se dão através
das armadilhas do neoliberalismo, da alienação, do extrativismo de
dados, da manutenção dos binarismos, das práticas de exploração
institucionalizadas, da desinformação e da violência expressa nos
movimentos de contrainsurgência. E os mecanismos da guerra se
adaptam ao tempo e ao espaço para seguirem presentes na vida
humana, demonstrando que ainda teremos de tratar muitas feridas
múltiplas causadas pelo imperialismo somado às violências perpetu-
adas pelo capitalismo neoliberal.

Ainda somos um país dependente dos países histórica e


culturalmente dominantes, o que me faz perceber que tinhas razão
quando nos alertou que “o antigo país dominado transforma-se em

26 A síndrome de burnout tem sido cada vez mais presente na vida das pessoas. Em uma sociedade
acelerada e com estresses diários nos espaços de trabalho, o burnout é caracterizado pelo esgo-
tamento mental e pela exaustão emocional.

SUMÁRIO 472
país economicamente dependente” (Fanon, 1968, p. 78). Chamado
de país subdesenvolvido, o Brasil ainda tem relações de dependên-
cia com países que contribuem para a produção de desigualdades e
aparecem, logo em seguida, para resolvê-las, ancorados na política
de terra atrasada e numa espécie de assistencialismo em que se auto
intitulam como ‘salvadores’ da economia de um país que eles explo-
raram por séculos e negligenciam até hoje. Tendo em vista essas
problemáticas, percebo que quanto mais eu leio os seus escritos,
mais compreendo que o capitalismo, o racismo e o imperialismo são
indissociáveis, nunca foram superados e um alimenta o outro.

Até aqui, fiz um movimento relacional entre passado, presente


e futuro para compartilhar algumas críticas em relação ao contexto
no qual estou inserida, falando sobre dores que partem da objetivi-
dade para limitar as subjetividades. Estas dores estão impregnadas
nas pessoas que aqui vivem e sentem na pele as contradições pro-
duzidas pela situação opressora, reguladora de práticas de colonia-
lismo que permanecem na política, na economia, nas instituições,
no dia-a-dia, em nós. Mas, se a lógica capitalista se torna aliada do
racismo e do imperialismo para nos oprimir secularmente, por qual
motivo ainda estamos aqui? A violência colonial e a opressão que
vem com ela não querem destruir completamente os países conside-
rados subdesenvolvidos, pelo contrário, ainda os mantêm dependen-
tes para “extrair suas riquezas naturais e explorar o trabalho, fazendo
das pessoas suas ferramentas” (Fanon, 2020, p. 10).

Pensar os três elementos do tempo (passado, presente e


futuro) nesta carta é um exercício de memória e luta que encontrei
na sua obra Alienação e liberdade, onde sugeres que “ter em mente
esses três elementos é atribuir uma grande importância à espera, à
esperança, ao futuro; é saber que nossos atos de ontem podem ter
consequências em dez anos e que, por isso, pode ser necessário
justificá-los” (Fanon, 2020, p. 253). Enquanto as/os conservadoras/
es vivem em função de um passado idealizado, há pessoas que
vivem apenas sonhando com um futuro desejado que nunca chega,

SUMÁRIO 473
privando-se de lutar por ele desde o presente, e ambas não levam em
consideração a importância de pensar a união do passado, presente
e futuro na construção de uma sociedade mais justa. Apesar de exis-
tirem tanto as pessoas que dominam como as pessoas dominadas,
todas/os sofrem com estas contradições e a luta pela libertação não
é seletiva, deveria ser coletiva.

Mas esta carta não lhe traz apenas o desabafo de alguém que
se vê afetada/o pelas dores denunciadas em seus escritos, a partir
dela eu também compartilho o quanto me reconheço nas fendas de
esperança que emanam da tua luta. Talvez o meu texto te cause dor,
quiçá te traga vestígios de esperança, nem que seja um punhado
dela, mas a intenção é que o sinta. Por séculos pessoas, saberes e
sentires foram negados e agora, em coro, nós, as/os condenadas/os
da Terra, reivindicamos os nossos direitos para que, juntas/os, seja-
mos! Que tenhamos direito à educação! Que sintamos!

Aqui, problematizo o passado e os seus efeitos no presente,


não para voltar a ele com uma perspectiva ufanista ou essencialista,
mas sim para abrir as possibilidades em relação ao futuro. Todas as
vezes em que os meus olhos visitam as suas obras, sou convidada à
ação porque a teoria dá conta da realidade até um certo ponto, mas é
preciso participar da ação para garantir a esperança. Nasce de mim
uma inquietude que me leva a também querer participar da cons-
trução de uma práxis revolucionária voltada à descolonização das
subjetividades e da objetividade. Como educadora, sinto a urgência
de assumir uma posição ativa na transformação do mundo que pode
tornar possível a emancipação, mas entendo que, para isso, é neces-
sário destituirmos o poder racista e colonial da estrutura opressora
que organiza a sociedade.

Te escrevo porque és referência na luta anticolonial e as tuas


ideias tem tamanha atualidade para problematizarmos as condi-
ções com as quais nos acomodamos no presente. Baseada na luta
anticolonial que buscastes em vida, também sinto a necessidade de

SUMÁRIO 474
denunciar a situação que vivemos por aqui. Entendo que escrevemos
de contextos distintos, mas os nossos ideais se aproximam porque
partimos da concepção de que não devemos nos acomodar com a
atmosfera da violência, mas sim recusar a situação opressora das
estruturas de poder.

A atualidade do teu pensamento e das tuas reflexões apon-


tam para a importância de estudarmos o teu legado desde o pre-
sente, de modo a unir os três elementos temporais na construção
de um futuro onde a emancipação humana seja uma possibilidade e
não apenas um desafio. Nesse caminho, somente uma práxis revo-
lucionária e transformadora é capaz de construir um mundo mais
justo, humano e dialógico.

Pelotas, 20 de setembro de 2023.

REFERÊNCIAS
EMICIDA; MOREIRA, V. L.; SAMAM R. Ismália. In: Amarelo. Rio de Janeiro: Sony Music, 2019.

FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FANON, F. Alienação e liberdade. Escritos Psiquiátricos. São Paulo. UBU Editora: 2020.

SUMÁRIO 475
Paula Machava

TRIBUTO A FANON:
EMANCIPAÇÃO E CONSCIÊNCIA
EM MOÇAMBIQUE
Irmão Frantz Fanon,

Ao mergulhar na vastidão da sua obra, as minhas palavras


fluem de um país outrora subjugado pelo colonialismo português,
onde as cicatrizes da escravidão ainda ecoam no nosso quotidiano.
Neste cenário, onde a voz da justiça é amiúde silenciada pelos pode-
rosos e os direitos humanos são consistentemente violados, a cora-
gem para enfrentar a injustiça é uma qualidade rara, frequentemente
reprimida pelos detentores do poder.

Neste contexto, emergem figuras notáveis que se destaca-


ram na luta pelos direitos humanos e pela justiça em Moçambique:
as inesquecíveis figuras de Alice Mabota e Mano Azagaia, ambos
lamentavelmente já falecidos. Alice Mabota, com a sua sabedoria
e resiliência, tornou-se um ícone na defesa dos direitos humanos,
desafiando as injustiças com uma determinação que inspirou gera-
ções. Azagaia, com as suas rimas afiadas e mensagens profundas,
deu voz aos jovens desfavorecidos, transmitindo a realidade das ruas
de forma poética e incisiva.

Em Moçambique, o lema “Povo no Poder”, iniciado pelo sau-


doso Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique Samora
Machel, e revitalizado por Azagaia, transcendeu as palavras, transfor-
mando-se num apelo à ação para os jovens que sonham em mudar
o destino do país. Figuras como Alice Mabota e Azagaia tornaram-se
exemplos vivos de coragem e resistência, provando que é possível
desafiar o status quo e lutar pelos direitos do povo.

Estes são tempos em que as nossas vozes se unem na busca


da justiça e da liberdade. Os jovens moçambicanos, inspirados por
estas figuras notáveis, erguem-se, recusando o silenciamento e
enfrentando as injustiças com uma determinação inabalável. Suas
ações ecoam as palavras de Fanon, que tanto nos ensinou sobre a
importância da consciência na luta pela emancipação.

SUMÁRIO 477
Como mulher africana, moçambicana e feminista, encontro
nas suas obras uma fonte inesgotável de orientação e iluminação,
guiando-nos não apenas rumo à libertação física, mas também à
emancipação mental e espiritual. Em Moçambique, rico em cultura e
história, somos testemunhas das cicatrizes dolorosas deixadas pelo
colonialismo. Nossa luta transcende a independência política; alme-
jamos redefinir nossa identidade, desvinculando-nos das correntes
do passado colonial.

Suas análises perspicazes, especialmente em Os Condenados


da Terra, têm sido uma inspiração constante, mostrando-nos que
a verdadeira libertação apenas se concretiza quando rejeitamos
as ideias impostas pelos colonizadores e abraçamos as nossas
próprias narrativas.

Hoje, mais do que nunca, testemunhamos com esperança o


despertar da consciência entre os jovens e as mulheres moçambi-
canas. Dia após dia, munidos de conhecimento e determinação, eles
levantam-se, reivindicando seus direitos e desafiando as estruturas
opressivas que, durante tanto tempo, os mantiveram subjugados.
Inspirados por ideais emancipatórios semelhantes aos seus, estão
a transformar a sociedade moçambicana, conduzindo-a a uma nova
era de igualdade e justiça.

Como pesquisadora dedicada aos temas do feminismo e da


juventude, tenho acompanhado de perto esses movimentos. Os jovens
organizam-se, educam-se e empoderam-se, cientes de que a mudança
real começa com a educação e a consciencialização. As mulheres
moçambicanas também erguem suas vozes, desafiando normas patriar-
cais e reivindicando o seu lugar em todos os setores da sociedade.

No âmbito do feminismo, dediquei-me à compreensão dos


ritos de iniciação das jovens em Moçambique, explorando as com-
plexas interseções de género, cultura e poder. O seu trabalho tem
sido uma bússola intelectual nessa análise, orientando-me ao exami-
nar esses rituais à luz das dinâmicas coloniais e pós-coloniais.

SUMÁRIO 478
Neste momento crítico, em que a África e o mundo enfren-
tam desafios complexos, desde a desigualdade económica até às
incessantes lutas pelos direitos das mulheres, as suas palavras
ressoam como faróis de esperança. O seu impacto é eterno, e a
sua influência continuará a moldar os movimentos emancipató-
rios em todo o mundo.

Recordo as suas palavras poderosas: “Cada geração, numa


relativa opacidade, descobre a sua missão, cumpre-a ou trai-a.”
Nas mãos dos jovens e das mulheres moçambicanas, esta chama
ardente da libertação continuará a queimar, iluminando o caminho
para um futuro mais justo e igualitário. Agradeço-lhe, em meu nome,
pelo legado eterno de coragem, sabedoria e dedicação aos princí-
pios da igualdade, que continua a inspirar gerações. A sua influência
transcende as páginas dos livros; é uma força motriz que nos impele
na jornada contínua pela libertação e pelo empoderamento.

Coimbra, 01 de novembro de 2023

REFERÊNCIAS
FANON, F. Os Condenados da Terra. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

SUMÁRIO 479
Eliane Costa Santos

CARTA A FANON
Ilustríssimo Doutor Frantz Fanon,

Como estou em vosso continente, tenho aprendido por ter-


ras de cá como cumprimentar pessoas da vossa ilibada patente e
magnitude, tendendo mesmo que algumas vezes me perder no uso
pronominal. Mas, aceite todo meu respeito e consideração por meio
dessa carta, que é um desabafo acerca do que hoje continuamos
a viver. E te afirmar que o que V.Sa. trazia na experiência da coloni-
zação, na obra Os Condenados da Terra, nos serve ainda hoje, pois
ao ter terminado esse período ficou uma grande lacuna no nosso
povo. Posso afirmar que terminou o período colonial, ficou e per-
petuou no mundo na cabeça, tanto faz ser de um europeu ou não,
as mazelas desse período que chamo de colonialidade do ser, e os
atravessamentos postos pela supremacia de um sob o outro e na
falta de Identidade do nosso povo como também nos aponta em
Peles negras e máscaras bancas.

Em 1961, dois anos antes de eu ter nascido, o senhor, ao


escrever a obra Os Condenados da Terra, já nos alertava para o efeito
violento e devastador desumanizador, que nega a identidade, os valo-
res e as ciências. O senhor nos dizia que “O colonialismo não é uma
máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. E há violência
em estado de violência.” Essa e toda sua análise crítica e nacionalista
sobre a violência do colonialismo, do fascismo e do racismo a essa
África com tantas etnias, faz com que uma mulher negra, africana
Diaspórica - porque a barriga que honrosamente me gestou me
permitiu ser gerada em terras brasileira – compreenda muito além
do que foi ensinado na educação escola. E com certeza não me foi
ensinado na educação familiar pois assim também não aprenderam.

Nasci em 1963 numa família de seis irmãos, com um pai


pintor de carro e uma mãe lavadeira de roupa, dos quais o maior
legado que adquirimos foi a certeza de que a educação revoluciona,
portanto não tínhamos outra saída senão estudar. O que hoje, orgu-
lhosamente, aponto que todos conseguiram fazer faculdade e temos

SUMÁRIO 481
dois doutores, duas mestres, três especialistas e todo esse processo
vivido com uma mãe que estudou até a 4ª série primária e um pai
que voltou a estudar após 50 anos, fazendo supletivo.

Sim, você chamava atenção acerca de quanto o sistema


colonial construía estereótipos de inferior chegando ao extremo de
comparar nosso povo africano aos animais; e esse de forma desu-
mana invadia nossas casas, desde pequena, através dos programas
infantis de televisão, como era o caso de Tarzan o rei da selva e como
você muito bem denunciava que “a linguagem do colono é uma lin-
guagem zoológica”. Vivemos associando o homem, em específico o
homem negro, ao animal macaco, ao ponto do racismo perpetuar e,
após 60 anos de você nos ter alertado sobre isso, jogadores de fute-
bol são racialmente discriminados com xingamentos nesse aspecto.

Você nos trouxe que o colonialismo apresentava certa ambigui-


dade na postura do colonizado, pois da mesma forma que o colonizado
ojerizava assim ser, ao mesmo tempo, sonhava ser igual ao opressor.
Gostaria de dizer que isso também não ficou somente na aquele período
não, segue adiante incorporado em algumas relações sociais, digo isso
porque nos negras e negros aqui no Brasil vivenciamos essa experiência.

Vou explicar detalhadamente: algumas vezes que o negro tem


a oportunidade de ter o poder nesse instante, ele reproduz exatamente
o papel do colonizador, tivemos um papel emblemático no governo
passado, um homem negro assume um papel na governança de uma
pasta de extrema importância para nosso povo negro e explicitamente
ele se mostrou o filho legítimo do colonizador, para desgraça e ver-
gonha de todas nós, fez tudo igualzinho ao colonizador. Seria porque
ele não conseguiu descarregar as mágoas, recalques, frustrações, em
algum opressor ele descarregava toda em seus semelhantes.

Diante disso, Doutor Frantz Fanon, eu, enquanto uma mulher


negra, africana Diaspórica, docente da UNILAB (Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia afro Brasileira) - que tem no
seu alicerce 40% dos estudantes internacionais - tenho dia após dia

SUMÁRIO 482
me preocupado com a necessidade de descolonizarmos as nos-
sas mentes de todas as formas de preconceitos e assim segui na
perspectiva de decolonizar saberes e fazeres. Nesse sentido, busco
com estudantes de Angola, Guiné Bissau, Moçambique, São Tomé e
Príncipe, Cabo Verde e os quilombolas do Brasil (Comunidades de
Jatimane, São Brás, Acupe, Monte Recôncavo, Dom João, Alto Alegre,
Cumbe, Serra do Evaristo, Sítio Veiga, que foram meus estudantes
na Unilab de Males-Bahia e Ceará), e além mar, especialmente no
mestrado da Universidade Lueji A‘NKonde Angola, desde conhecer
melhor a história da nossa ancestralidade acentuando as lutas de
resistência antirracistas e lutas contra a dominação epistemológica
nas ciências e tecnologias até o estar em sala de aula provocando
inquietações no currículo em todas as áreas.

Assim, estimado Frantz, em ambos os continentes, procuro,


tendo como base ontológica a autonomia epistêmica, em específico
na área da Matemática, convidar todos(as) estudantes a entreter
a luta contra a colonialidade com armas da educação, com pro-
dução científica levantada a partir do questionamento se antes da
colonização existiam Técnicas - TICA de Calcular, problematizar
- MATEMA. Lógico que a resposta está na assertiva que sim, por-
tanto, porque negamos, invisibilizamos as tecnologias sociais dos
nossos antepassados.

Nesse sentido, prezado Fanon, tenho estado há mais de


duas décadas procurado combater essa colonialidade do Ser e do
Saber. Delineio esse período pois é o que recordo quando em 1996,
na cidade de São Francisco do Conde, um grupo de estudante da
Educação Básica me mostrou que a matemática ao ser sistema-
tizada em forma de educação escolar negava valores e saberes e
exclui quem não se identifica com a forma padrão por ela delineada.
Daí recordo mais uma vez quando você recomenda “construir uma
frente comum contra o opressor” e essa frente por mim armada se
deu na quebra hegemônica da sala de aula e construir um caminho
inverso da prática para a teoria.

SUMÁRIO 483
Na atualidade, comungo muito esta perspectiva na
Universidade com as pesquisas de extensão, para trazer para o
ensino e assim fiz, para as séries iniciais da educação básica pen-
sar quais saberes existe e necessário para um determinado fazer
- e assim foi com a matemática que existia nos fazeres durante as
compras vendas e organizações dos feirantes, que existiam na orga-
nização dos marisqueiros até o momento de escoar o produto e essa
experiência propiciou que estudantes percebessem a utilidade da
matemática e a cientificidade dos seus fazeres, contribuindo para
quebrar o estigma e preconceitos existentes em uma população de
jovem essencialmente Negras que tinham evadido da escola pois a
“mesma não foi feita para eles”.

Por isso, Fanon, essa atuação profissional me permitiu seguir,


anos após anos, numa experiência com o Instituto CEAFRO - Estudo
e Profissionalização para a igualdade racial e de gênero em diversos
projetos sociais ora com as trançadeiras, ora com as trabalhadoras
domésticas e com o Grupo Cultural Ilê Aiyê, que em 2024 comple-
tou 50 anos do seu primeiro desfile pelas ruas da Cidade de Salvador
(BA), a partir de sua Banda de Percussão Erê, que tinha como critério
para a inclusão das crianças estarem matriculadas na escola e com
rendimento. O currículo do curso incluíam além das aulas de canto,
percussão e dança, as aulas de matemática, português e história e cul-
tura africana. Por conta disso, a minha participação estava direcionada
a disciplina da matemática, pautando-se nesses fazeres artísticos.

Destaco, meu caro doutor, que com essa luta armada de sabe-
res, eu trabalhava a identidade e o lugar de pertença dessas crianças
que tornaram-se grandes artistas nacionais e internacionais. Entendo
que quebrar as amarras de limitação de conhecimento, de distancia-
mento do saber com o fazer, do que é ciência e o que folclore foi se
aquebrantando e me permita fazer analogia a quando na guerra da
Argélia você diz que “de maneira imperceptível, a necessidade de um
enfrentamento decisivo se torna urgente”. Mas, penso assim porque
tivemos também caminhos de expressão, um ressurgimento de força

SUMÁRIO 484
interior, da mesma forma que você constata que a partir de 1954 os cri-
mes comuns diminuem expressivamente, sendo superada através da
libertação da guerra de independência, ouso em dizer que poder se ver
refletido na educação, nas ciências e nas tecnologias, quando vários dos
nossos são mortos por evadirem da escola não ter economicamente
como resistir – morrem para o mundo dentro da bandidagem e morre
para a vida terrena por meio das balas que tem cor e endereço cravadas
nos corpos que evadiram por não se ver retratado nas escolas.

Você pode estar a se perguntar, então, o que me faz ter uma


necessidade de discutir a diversidade epistemológica no sentido de
problematizar os pressupostos conceituais que se encontram na
educação escolar. Explico a necessidade de um entendimento das
realidades sociais, explorando os contextos espaço-temporal que
contribui para o processo de criação de sentido a essa dinâmica de
vida dos(as) estudantes da periferia de Salvador que não se diverge
muito do estágio social de Educação, a exemplo de Angola, que não
veem discutindo acerca de uma educação com perspectiva deco-
lonial, não intersecciona gênero, gerações, desigualdades, diversi-
dades, regionalidades, histórias locais, realidades sociais locais e
global, racismo epistêmico, explorando múltiplos contextos espaço
temporal de forma a contribuir para a criação de sentido no ensino
aprendizado entre outros e portanto, existe muita evasão.

Por fim, estimado Frantz Fanon, não poderia deixar de registrar


que a independência dos países africanos que têm muito poucos anos,
mesmo Argélia que se deu há 61 anos, ainda se processa as mazelas
coloniais. A violência que foi unificada deformou a mente do nosso
povo, “o servidor do povo, que pretendia favorecer o desenvolvimento
do povo, desde que o poder colonial lhe entregou o país, se apressa
a conduzir o povo novamente à sua caverna”, nosso governante não
tem interesse em conduzir um país com políticas públicas equitativas.

Outrossim, nos resta o caminho da decolonialidade do Ser


do Saber e do Poder. Como você próprio aponta em Pele negras

SUMÁRIO 485
e mascaras, numa edição que li de 1952, o Negro ao verificar que
seu território, espaço de atuação enquanto negro está invadido por
sucessivas discrições, sucessivas subalternizações, emerge nele o
desejo de ser como o opressor. Para o negro oprimido, sua autono-
mia, sua personalidade, só começa a ter valor quando a sua aparecia
se aproximar a do colonizador. Ele se sente mais valorizado, mais
estimado ao estar mais perto do branco, assim nasce o sonho do
colonizado ser igual ao colonizador. Quanto mais ter sua identidade
próxima a do homem branco mas faz com que ele não olhe para sua
cultura e vá se aliando à cultura do colonizador.

Isso nos faz enxergar que a colonização não terminou com a


independência nem em África nem nas diásporas, a colonização tem
um processo de continuidade em que o próprio colonizador coloniza
outro colonizado, essa ideia que traz a necessidade de descolonizar
as mentes para que com a descolonização da mente possamos vir a
descolonizar saberes, fazeres e poderes.

Grata pela sua leitura atenta, de uma mulher negra, afrodias-


pórica, que busca incessantemente a decolonialidade a partir da
perspectiva da Etnomatemática, incluindo a cultura nesse caminhar.

Abraço cordial de eterna estima,

Bie, Angola, 21 de fevereiro de 2024.

Eliane Costa Santos.

REFERÊNCIAS
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.

FANON, F. Os condenados da terra. Tradução Enilce A. Rocha; Lúcia Magalhães. Juiz de


Fora: Ed. UFJF, 2005.

SUMÁRIO 486
Áquila da Anunciação Camargo

SANGUE NEGRO,
PELE CLARA
Prezado Frantz Fanon,

Você já teve dúvidas sobre sua própria negritude? Imagino


que não. Na época e contexto em que viveu, as disparidades eram
tão óbvias que seria difícil não enxergar em qual lado da linha abis-
sal (Santos, 2007) você estava. Não gosto de admitir isso, logo para
você, Fanon, que falava com tanta veemência aos jovens negros,
mas, às vezes, eu tenho essa dúvida. É um misto entre medo de não
me reconhecer; e, mais ainda, de não ser reconhecida.

Antes de dar prosseguimento a essa carta, me permita des-


tacar que falarei aqui sobre as mulheres negras, que infelizmente não
tiveram centralidade em suas obras, partindo do pressuposto que
são diferentes os olhares, as lutas e impressões de uma mulher ao
construir sua identidade, na medida em que a intersecção entre raça
e gênero nos subjuga duas vezes.

Deixe-me te contar um trecho de minha história para con-


textualizar melhor: eu sou baiana, pertenço a um estado onde 81,1%
da população é negra (Superintendência de Estudos Econômicos
e Sociais da Bahia, 2020), durante boa parte da infância nunca
precisei pensar ou responder a essa pergunta e, quando precisei,
responderam por mim.

Aos 9 anos de idade me mudei para um município, ainda na


Bahia, que é repleto de migrantes sulistas; dentre as amizades que
fiz na escola, havia uma garota de sobrenome Güntzel, com aparên-
cia tão alemã quanto o próprio nome sugere, ela dizia que éramos
uma dupla: “mana branca e mana preta”. A menina Güntzel tinha pai
médico, uma casa com três salas e sabia danças europeias, ela soava
superior de uma forma tão natural que me deixava envergonhada.

Essa foi a primeira vez que fui colocada no lugar de negra,


confesso que senti vontade de ser a “mana branca”, queria ter inter-
pretado a Ceci na peça de O Guarani (obra de José de Alencar, 1857).

SUMÁRIO 488
Em sua obra Os Condenados da Terra (1961), você chegou a abor-
dar esse assunto, ao mencionar que o colonialismo teve a intenção
de internalizar nos indivíduos negros a supremacia da branquitude
como algo a ser desejado.

Apesar desse movimento também estar inserido nessa


história, o que gostaria de tratar com você, caro Frantz Fanon, é
essa dualidade entre ser ou não negra “o suficiente” a depender de
quem se compara; quando perto de pessoas com descendência
europeia, me é dado o lugar de “mana preta”, ao tempo que diante
de pessoas negras, de tons retintos, escuto comparações como
“fulana é bem branquinha, assim igual você”. Afinal, me pergunto:
sou negra ou não sou?

Esse limbo racial atualmente pode ser compreendido por


meio do colorismo. Oracy Nogueira (2006) em suas obras destacou
que em um país miscigenado como o Brasil, há dois marcadores de
preconceito: preconceito racial de marca e preconceito racial de ori-
gem. Aplicado a lógica do colorismo, quanto menos traços negroides
o indivíduo apresentar, mais tolerado ele é nos espaços de branqui-
tude, por ter o “privilégio” de se camuflar entre os brancos e não
causar estranheza ao olhar (Silva e Silva, 2017).

É nesse não estar e não pertencer que habitam os corpos


de fronteira, insuficientemente nítidos para serem classificados como
daqui ou de lá. Destaco aqui, estimado Fanon, que como abordado
em sua obra Peles Negras, Máscaras Brancas (2008), a miscigena-
ção que nos trouxe para esse lugar, intencionalmente alienou e frag-
mentou a comunidade negra.

O ‘pardismo’ ou a tendência à utilização do termo ‘pardo’ para


marcar a população de pele mais clara, neutralizando-a no debate,
é um fenômeno que naturaliza uma não pertença racial e promove
desmobilização coletiva e despolitização da raça, uma vez que esta

SUMÁRIO 489
passa a ser vista como uma denominação externa (Lago, Montibeler
e Miguel, 2023, p. 3).

Para as mulheres pardas, que são fruto direto da violação dos


corpos de negras pelo colonizador, criou-se o imaginário social de
sucesso, a mestiça/mulata é a representação da mulher brasileira,
símbolo da miscigenação, uma “beleza proveniente da mistura de
raças” (Lago; Montibeler; Miguel, 2023). Esse entre-raças não bene-
ficia nada além de uma ilusão sobre termos alcançado no Brasil a
democracia racial; pois, ser tolerada não é o suficiente.

Percebe que esse texto começou como um conflito de


identidade, e ganhou uma guinada social? É que até eu parar para
pensar profundamente sobre isso, e escrever para você, me ocorria
de forma natural que essa não identificação era um problema sub-
jetivo, e eis que o problema era bem maior e mais profundo. Acho
que isso explica muito coisa, certo? Quem não sabe o que é não se
posiciona, não toma partido e não luta, imagino que assim seja mais
confortável para uma nação que se construiu tendo o racismo como
fator estruturante.

Fico feliz em dizer, caro Fanon, que encontrei a resposta para


minha pergunta inicial: sim, já tive dúvidas sobre a minha negritude,
hoje não mais, sou mulher negra com um corpo de cor clara, mas
com ancestralidade intensa, que não quer ser embranquecido.

Barreiras, 02 de novembro de 2023

Áquila da Anunciação Camargo

SUMÁRIO 490
REFERÊNCIAS
FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da Universidade Federal


da Bahia, 2008.

LAGO, M. C. S.; MONTIBELER, D. P. S.; MIGUEL, R. B. P. Pardismo, Colorismo e a “Mulher


Brasileira”: produção da identidade racial de mulheres negras de pele clara. In: Revista
Estudos Feministas, v. 31, p. e83015, 2023.

NOGUEIRA, O. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão


de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no
Brasil. In: Tempo social, v. 19, p. 287-308, 2007.

SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: Novos estudos CEBRAP, p. 71-94, 2007.

SILVA E SILVA, T. et al. O colorismo e suas bases históricas discriminatórias. In: Direito
UNIFACS: Debate Virtual, n. 201, 2017.

SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Panorama


socioeconômico da população negra da Bahia. 2020. Disponível em: https://sei.
ba.gov.br/images/publicacoes/download/textos_discussao/texto_discussao_17.pdf.
Acesso em: 02 nov. 2023.

SUMÁRIO 491
SOBRE OS ORGANIZADORES
E AS ORGANIZADORAS
Atauan Soares de Queiroz
Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB), Mestre em Educação pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Licenciado em Letras pela Universidade
do Estado da Bahia (UNEB). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia da Bahia (IFBA), Campus Barreiras. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Linguagens e Educação (GELINE/IFBA). Professor do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Oeste da Bahia (PPGCHS/UFOB).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3923805819866846
ORCID: 0000-0001-5550-0756
E-mail: atauan@ifba.edu.br

Tânia Aparecida Kuhnen


Graduação em Filosofia (2004), graduação em Letras - Alemão (2011), mestrado em
Filosofia (2010) e doutorado em Filosofia (2015), todos pela Universidade Federal
de Santa Catarina. Em 2012 realizou estágio de pesquisa na Humboldt Universität
zu Berlin com bolsa DAAD/CAPES. Desde 2015 é professora na Universidade Federal
do Oeste da Bahia (UFOB), onde integra o Programa de Pós-Graduação em Ciências
Humanas e Sociais (PPGCHS - UFOB). Coordena o Grupo de Pesquisa “Marginais: Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa sobre Minorias e Exclusões”, vinculado à UFOB, além de
colaborar com o “Grupo Interdisciplinar em Pesquisas Socioambientais - Grupo IPÊS”
(FURB). É autora do livro “Ética do cuidado: diálogos necessários para a igualdade de
gênero” (EdUFSC, 2021).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8881089112935588
ORCID: 0000-0001-6788-0784
E-mail: tania.kuhnen@ufob.edu.br

SUMÁRIO 492
Marilde Queiroz Guedes
Pós-doutorado em Educação pela Universidade de Lisboa/PT. Doutora em Educação:
Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Educação
Brasileira pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Metodologia do Ensino
Superior pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada em Letras
pela Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde/PE. Graduada em Pedagogia
pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru. Professora na Classe 5 Nível
A Pleno da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Docente Permanente do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Oeste
da Bahia (UFOB). Pesquisadora e Líder do Grupo de Pesquisa Formação de Professor e
Currículo – FORPEC. É Membro da Academia Barreirense de Letras (ABL).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1353574837768991
ORCID: 0000.0002-9722-7505
E-mail: marildequeiroz@outlook.com

Cacilda Ferreira dos Reis


Graduada em Serviço Social pela Universidade Católica do Salvador. Mestra em Política
Social pela Universidade de Brasília (UnB), e doutora em Ciências Sociais/Unicamp.
Docente colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais-
UFOB. Assistente Social no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia
- Reitoria, atuando como Chefe do Departamento de Assuntos Estudantis/DPAAE. Líder
do Grupo de Pesquisa Nego D’água: pesquisas disciplinares do Oeste da Bahia.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9490265243088532
ORCID: 0000-0001-5409-9040
E-mail: cacildafreis1@gmail.com

SUMÁRIO 493

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