A08 Articolo Aispeb 2014
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1 Esta distinção em três zonas recalca as três “épocas” do colonialismo português, tal como
destino brasileiro dos anos Trinta na produção “claridosa” de Cabo Verde, ou em ver na obra
de Guimarães Rosa uma das fontes fundamentais de certo experimentalismo literário africano,
que toca a Luandino Vieira e chega até Mia Couto.
3 Embora tenha havido tentativas por parte do governo de Cabo Verde de dar mais espaço
institucional ao crioulo nacional, chegando este a ser incluído como língua de uso na escola, nos
primeiros anos do currículo.
“de expressão portuguesa”, embora em tempos recentes também o adjectivo “lusófono” tenha
sido criticado como politicamente não correcto. A escolha foi feita por falta de uma convincente
alternativa mais consensual e não quer carregar algum sentido “imperialista”.
5 Quer do mundo francófono (Négritude), quer do anglófono (pan-africanismo, black re-
de exemplos neste sentido, envolvendo figuras tão diversas como Bruce Chatwin, Jorge Luis
Borges, Fernando Pessoa, Euclides da Cunha, Jorge Amado, Bertrand Russell, Antoine de Saint-
-Éxupery entre outros.
dificado (Marques 1995: pp. 679-680), na sequência da nova política de Salazar de integração
legislativa e administrativa total dos territórios ultramarinos na Metrópole, para reforçar a ideia
de que pertenciam “organicamente” à essência de Portugal e para tentar fugir às novas obriga-
ções impostas pela ONU às potências coloniais.
a falar cada dia mais português, e cada dia o português é menos a língua
do ex-colonizador, tornando-se numa língua africana stricto sensu.
Este processo, de facto, parece-se com o desenvolvimento do Brasil
mais do que de outros países africanos. Não faltam nações africanas
em que o francês é língua quotidiana de maior parte da população,
mas a impressão geral é a de populações que, na sua maioria falantes
de línguas africanas, são também francófonas, mas não se esqueceram
da sua origem étnico-tribal. Neste sentido, o processo de hibridação, e
portanto de crioulização cultural parece em estado avançado mesmo
em países, como Angola ou Moçambique, onde houve uma certa se-
gregação racial até aos últimos anos do colonialismo.
As consequências culturais desta situação são, obviamente, enor-
mes. As análises pós-coloniais, quando embatem com esta realidade,
deixam de fazer sentido crítico. Se parte da herança da época colo-
nial, parte fundamental na cultura, como a língua e seus corolários, foi
abraçada e apropriada pela população africana, como postular uma
descolonização cultural completa? Em literatura, as consequências
desta situação são de enorme importância. A existência de uma popu-
lação lusófona maioritária em África para começar muda as posições
relativas de autor e público: muitas vezes se diz que o autor africano
que escreve numa língua europeia fá-lo para dialogar com a Europa
ou com o Ocidente. O autor africano é assim visto como um selvagem
europeizado (um indígena assimilado?), que se afasta da sua comuni-
dade originária para entrar num circuito cultural cosmopolita que não
lhe pertence e a que não pertence, fundamentalmente. Imaginar um
autor que escreve na sua língua materna num país onde a sua obra é
compreensível para a quase totalidade da população muda radicalmen-
te os termos da questão. O autor africano deixa assim de ser um ente
exilado e alienado da sua comunidade para assumir uma posição mais
“natural”, isto é, equivalente à dos seus colegas europeus e americanos.
Aliás, a sua “alienação” seria até menor do que a de certos autores eu-
ropeus que escrevem em línguas menores da Europa Central ou Orien-
tal, dentro do panorama da circulação de obras e ideias no espaço das
línguas coloniais originarias da Europa Ocidental. De facto, a obra de
um autor angolano hoje em dia tem grandes hipóteses de ser lida e cri-
ticada no seu país, nos círculos dos outros países da África Lusófona,
em Portugal e no Brasil. Além disso, esta situação faz do acto literário
uma acção menos episódica e mais sistemática. Os circuitos literários
da África Lusófona “dependem” só em medida mínima, hoje em dia,
da antiga metrópole. Existem editoras, livrarias, revistas literárias, su-
plementos críticos de jornais, universidades, em quase todos os países
de língua portuguesa em África. A cena é um pouco desértica só na
Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe, por causas que têm a ver com
Como foi dito, o Brasil foi colónia portuguesa, embora tenha dei-
xado de sê-lo muito mais cedo do que os países africanos. Todo o ter-
ritório americano foi colónia europeia. Todas as nações americanas se
libertaram do vínculo político com a Europa numa época sensivelmen-
te anterior à da descolonização da África. Em quadros bastante dife-
rentes, em todos os países americanos prevaleceu o uso das línguas de
origem europeia, com marginais tentativas de oficialização de línguas
ameríndias ao lado da variedade de origem europeia local. Todos os
países americanos têm, por consequência disso, uma literatura escrita
na língua do ex-colonizador. No entanto, é difícil que hoje algum crí-
tico aborde a obra de um Jorge Luis Borges, de um Philip Roth ou de
um Jorge Amado referindo-se no seu percurso de análise ao facto de o
autor estar a usar um código linguístico importado e não próprio, po-
dendo-se assim postular uma colonização cultural do autor. Da mesma
forma, não é considerado relevante se um autor americano tem cara de
índio ou mulato, sendo relevante só a negritude para a análise de certa
literatura norte-americana ou caraíbica de tendência negritudinista.
É postulável um desenvolvimento paralelo ao americano para
algumas partes de África? Nomeadamente, a África Lusófona parece
ter enveredado por um caminho de hibridação e apropriação muito
parecido com o percurso dos países americanos. Paralelamente, seria
desejável que a crítica acompanhasse este desenvolvimento.
As literaturas dos países americanos escritas em línguas originaria-
mente europeias são hoje, embora com todas as suas peculiaridades,
lidas e estudadas num plano de paridade com as suas congéneres euro-
peias. Se de um ponto de vista crítico pode ser útil e correcto ler alguns
autores americanos como americanos, com o que isto acarreta, ninguém
sonharia restringir e enjaular as literaturas americanas dentro de um
“funil” crítico monotemático que as identifique e contenha na sua to-
talidade. Em outras palavras: estas literaturas libertaram-se do rótulo
de pós-colonial (que foi cunhado quando elas eram já “adultas”). Não
lemos T. S. Eliot ou Jorge Luis Borges por serem americanos ou como
americanos ou por tratarem de uma certa “americanidade” e sim por-
que, de alguma forma, foram acolhidos numa espécie de Cânone Oci-
dental (e já não europeu) que os sagrou clássicos contemporâneos.
Seria necessário que as literaturas africanas saíssem dos rótulos de
pós-colonial, e entrassem numa “normalidade crítica” equivalente à
sua verdadeira libertação, desta forma cessariam de operar em estado
de “excepcionalidade”.
No dia em que conseguirmos ler os africanos sem estarmos a pensar
continuamente no facto de que estamos a ler africanos, estas literaturas
também se libertarão e estarão prontas para o seu ingresso paritário na
literatura mundial, ou talvez numa espécie de Cânone Ocidental Alar-
gado (sendo escritas numa língua “ocidental” e dialogando nalgumas
das suas partes com outras literaturas “ocidentais”). Viveremos para
ver esse dia chegar?
Referências bibliográficas
Jorge 1988 = Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios, Lisboa, Dom Quixote.
Laranjeira 1995 = Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portugue-
sa, Lisboa, Universidade Aberta.
Marques 1995 = António Henrique Rodrigo Oliveira Marques, Breve História de
Portugal, Barcarena, Presença.
Portugal 2006 = Francisco Salinas Portugal, Literaturas Africanas en lengua
portuguesa, Madrid, Síntesis.
Vieira 1999 = Arménio Vieira, No Inferno, Praia e Mindelo, Centro Cultural
Português.