Cultura Popular - Chartier
Cultura Popular - Chartier
Cultura Popular - Chartier
revisitando um conceito
historiográfico
Roger Chartier
NoJo: Esu� ICJJO foi apresc:nlado DO semin:icio Popular Culttlre, Df! Interdlsclpllnary Conlercnce. re31iZ2do
00 "bsnchuscus Wlilllle ofTechnology de. 16 a 17 de oUlubro de 1992
A lt'adução é de Aone-N:uie Mia0 Olivein.
moderna um contraste que outros hislO mentos da núdia lenham destruído uma
rodores es tlbe.leceram para outros tem cultura antiga, oral e comunilária, festiva
pos. É o que ocolle. por exemplo, com e folclória, que era, ao mesmo tempo,
o anleS e O depois de 1200, quando a criadora, plural e livre. O destino hislO
imposição de uma ordem aeológia, cien riográfico da cultura popular é portanto
tifia e filosófia isola a cultura erudita ser sempre .bafuda, remlcada, arrasada,
das tradições folclóricas, censurando as e, ao mesmo tempo, sempre renascer das
práticas dornvante tidas como supersti cinzas. Isto indica, sem dúvida, que o
ciosas ou heterodoxas, e constituindo v erdadeiro problema não é tanto datar
como objeto posto à distância, sedutor seu desaparecimento, supostamente ir
tido não anula o espaço próprio da sua los etc. "Por toda parte, na sociedade da
recepção, que pode ser resistente, ma· segunda metade do século XIX, a cultura
treira ou rebelde. A descrição das nonnas americana eslava passando por um pl&'
e das disciplinas, dos textoS ou das pala cesso de fragmentação [ ... ) . Ele se mani
vras com os quais a cultura reformada festava no declinio relativo de uma cultu
(ou contra-reformada) e absolutista pre ra pública compartilhada que, na segun
IeIldia submeter os povos não significa da metade do século XIX, se estilhaçou
que estes foram real, lOtai e universal numa série de culturas especificas que
mente submetidos. É preciso, ao contrá cada vez tinham menos a ver umas com
rio, postubr que existe um espaço entre as outraS. Os le3lJ"OS, os museus, os audi
a norma e o vivido, entre a injunção e a tórios, que antes abrigavam um público
prática, entre o sentido visado e o sentido misturado que consumia uma mistura
produzido, um espaço onde podem insi eclética de cultura expressiva, estavam
nuar-se reformulações e deturpações. cada vez mais filtrando sua clientela e
Nem a cultura de rn."1.SS3 do nosso tempo, seus progrnrnas, de maneira que carla vez
nem a cultura imposta pelos antigos p0- menos se podia encontrar públicos que
deres foram capazes de redllzir as identi· atravessasm se o espectro social e econô
dades singulares ou as práticas enraiza mico consumindo uma cultura expressi
das que lhes resis.bm. O que mudou, va que unisse elementos hibridos do que
evidentemente, foi a maneira peb qual hoje chamaríamos de cultura erucliaa e
essas identidades puderam se enunciar e cultura poPular'.s Uma dupb evolução
se afirmar, fa-rendo uso inclusive dos pró leva da "cultura pública compartilhada"
prios meios destinados a aniquilá-ruo Re à "cultura bifurcada": de um bdo, um
conhecer eSL'l mumção incontesláve1 não p=sso de retraimento e de subtração
significa romper as continuidades cultu que atribui às práticas culturais um valor
rais que atravessam OS três séculos da distintivo tanto mais forte quanto menos
icL-ule moderna, nem tampouco decidir elas são compartilh adas; de Outro lado,
que, após o corte da metade do século um processo de desquaIifição e de exclu
xvn, não há mais lugar para gestos e s50 que lança para fora da cultura consa
pensamentos diferentes daqueles que os grada e canônica as obras, os objetos, as
homens da Igreja, os servidores do Esta fonnas daí em di:ulte relegadas ao diver
do ou as elites letracL"lS prelelldiarn incul
timento popular.
car em todos.
Este modelo de compreensão impres
siona pela sua homologia com aquele
proposlO para descrever a trajetória cul
2. turai das socieebdes ocidentais entre os
séculos XVI e xvrn. Também nessa épo
AcreclilO que Lawrence W. Levine m ca, já nessa época, uma bifurcação cultu
loca questões da mesma ordem ao desen ral, originada no retraimento das elites e
volver a tese da "cultural bifurcatkm" no içoIamenlO da cultura populor, teria
para caracteri:mr a trajetória cultural ocasionado a destruição de uma base
americana no século XIX. Esta tese se ancestral comum - a cultura "bakh tinia
baseia num contraste cronológico maior, na" da praça pública, folclórica, festiva,
que opõe um tempo antigo - caracteriza carnavalesca. Nos dois casos, as mesmas
do pela partilha, pela mistura e pela exu questões podem ser colocadas. Será que
beráncia cultural - a um tempo moderno a cultura compartilh ada, dada como pri
- caracterizado pela separação entre os meira, era t50 homogênea como parece?
públicos, os espaços, os gêneros, os esti- E quando ocone a separação, será que a
"GJLTIJl.\ IIlPUUr 183
pacti1hada" do início do século XIX não com o mercado, cuja sanção anônima
era isenta de exclusões, clivagens inter pode criar entre eles disparidades seUl
nas e concorrências externas; de outro precedenteS, contrwuem, sem dúvida,
lado, a "mercadorização" dos bens sim para orientar a representação ambivalen
b6Ucos aparentemente mais es lr.lO.bos te que eles têm do 'grande público', ao
ao mercado e • captura pela cultura c0- mesmo lempo fuscin anle e desplczí.eI,
merciai de massa dos signos e valores da no qual eles confundem o 'burguês', ...b
legitimidade cultural preservaram um jugado pelas precupaçôes vulgares dos
forte inlercimbio entre cultura letrada e negócios, co 'povo', entregue ao embru
9 to
cultura popular. tecimento das atividades produtivas."
Ou tra questão é • da articulação cr0-
nológica entre as duas II:ljet6rias, a euro
péia e a ameriCln•. Devemos supor que 3.
a cultura americana percolle, com um Ou
dois séculos de atraso, o caminho das Durante muito lempo, a concepção
sociedades do Antigo Regime da Europ. clássica e dominaole da cultura popular
Ocidental? Ou, ao contrário, devemos teVe por base, na Europa e, talvez, nos
considcr.lr que as evoluções culturais da Est ados-Unidos, três idéias: que a cultura
segunda meL..de do século XIX, que le popul"lr podia ser definida por contrasle
VJ.m as elites a desprezar uma cultura com o que ela não era, a saber, a cuhura
popular identificada com uma cultura letrada e domina0 Ie; que era possível
industrial, são idênticas no conjunto de caracterÍZlr como "popular" O público
um mundo ocidental unificado pelas mi de certas produçôes culturais; que as
grações transatl.'intiClS? expressôe s culturais podem ser tidas
da, um f Orle laço entre, de um lado, a como sociaImenle puras e, algumas de
reivindicação de uma cultura "pura" (ou las, como intrinsecamenle popu1ares.
purificl(b), distanciada dos gostos vulga Foram estes três postulados que funda
res, subtraída às leis da produção econô mentaram os trabalhos clássicos reaJi2:!
mica, sustentada por uma cumplicidade dos na França (e em outros lugares) so
estética entre os criadores e o público por bre a "lileratura popular", assimilada ao
eles escolhido e, dc outro lado, as con repertório da "/ittéralure de colporltv
quistaS d.. cultur.l comerci.l
l , ge",· e sobre a "religião popular", isto é,
pela empresa capiL1lista e destinada à o conjunto d"lS cren ças e dos gestos con
maiori.'l. Como o mostrOu rccenlCmente siderados próprios da religiosidade da
Pierre Bourdleu, a constituição na FranÇl maJor!.'l.
• •
da segunda meL..de do século XIX de um Mas ficou claro agora que estas afirnu
campo Iiter:irio definido como um mun ções devem ser postas em dúvida. A "li
do à parle e a definição de uma posição teratura popubr" e a "religião popular"
estética fund
..da na autonomia, no des- não são tão radicalmenle diferentes da
• Nome d:&do ls obr.u popuJ:uc:s difundidas por veodedores 2.Ulbulanle5 do século XVI ao XIX. �u
eQu i�eDlc DO Brasj;J seria a lilcr.uun de cordel.
184 E\T� HISTÓRKIK - 199\/11
esta tensio (e evitar a oscilação entre as páginas, uma metamorfose do lC<1O pelo
abordagens que insistem no caráter de olho viajante, uma improvisação e uma
pendente da culrura popular e aquelas espera de signilicações ind.tzidas a panir
que exaltam sua autonomia). As estraté de algumas palavras, um prolongamento
gias supõem a existéncia de lugares e de espaços escritos, uma daoça efêmera
instituições, prodllum objetos, normas ( ... J. (O IcirorJ insinua as manh as do
e m<Xldos, acumulam e Clp Ílalizam. &i prazer e de uma .capropriação no texto
táticas, desprovidas de lugar próprio e de do outro: invade a propriedade alheia,
domínio do tempo, são "m<Xlos de f:17er" transpona-se para ela, toma-se nela plu
ou, melhor dito, de ufazer com". ,,
ral como os barulhos do corpo. 14
As formas "popuL"\tcS" da culrura, des Esla imagem do leitor, invadindo uma
de as práticas do quotidiano até às formas terra que não lhe pertence, evidencia
de consumo cultural, podem ser pensa uma qucslão fun,bment:J.I para todo tra
das como tálicas produtoras de sentido, balho de hislÓria ou de sociologia culru
embora de um sentido possivelmente raI: a da variação, em função dos tempos
es tranho àquele visado pelos produlO e dos lugares, dos gupos sociais e das
res: liA uma produção rncio nalizada, ex· "/nIerprettve communltles", das condi
pansionista e centraliZlda, baculhentl e ções de possibilidade, das modalidades e
espetacular, corresponde uma outra dos efeitos dessa invasão. Na Inglatetla
produção, chamada 'consumo'. Ela é ma dos anOS 50, segundo a descrição de
lrCira e dispersa, mas se insinua em todos Richard Hoggart, a lcirura (ou a escuta)
OS lugares, silendosa e quase invisível, popular dos jornais de grande tiragem,
pois não se manifesta através de produ das canções, dos anúndos publidtários,
tos próprios e sim através de modos de das fotonovelas, dos horóscopos, se ca
usar os produtos imposlOS pela ordem raclerizava por uma atenção "obliqua"
- . ' 13
econorruca donunante. ou distr.úda por uma "a,ks:ío entre·
..
" ",
les sua própria coerência, dos modelos Se "ainda existem no processo de co
que os poderes ou os grupos domina0 teS municação de massas oprllJnidades para
lhe impõem pela autoridade ou pelo os indivíduos resistirem, aI lerarem e se
merC:ldo. Esla perspec1ÍY.l con trabalança reaproprbrem de bens destinados, em
valiosamenle aquelas que acentuam, de outras esferas, a ser comprados por
uma forma por dem.1is exclusiva, os dis- eIes ,,17 . . ,-
, temos que adffi.1l.J.r que, afiorl�
positivos discursivos e institucionais que, ri, semelhanteS possibiliclades eram ofe
numa dada sociedade, visam a disciplinar recidas aos leitores das sociedades do
os corpos e as práticas ou a modelar as Antigo Regime, num tempo em que a
condulaS e os pensamentos. A mídia mo inlIuência dos modelos transmitidos
derna não impõe, como se acreditou pelo material impresso era menor (a não
ap ressadamente, um condicionamento ser em situações peculbre s) que 00 nos
homogeneizan te, destruidor de uma so século xx. Devemos, pois, recusar
identidade popular, que seria preciso toda abordagem que considere o reper
buscar no mundo que perdemos. A von !Ório das I/llératures de co/por/age como
tade de inculcação de modelos culturais expressão da "mentalid'lde" ou da "visão
nunca anula o espaço próprio da sua de mundo" dos seus supostos leitores
recepção, do seu uso e da sua inaerprela- pop ulares. Tal l�ção, comum nos traba
-
lhos sobre aBib/lo/beque 8leue francesa,
çao.
É com uma conslalação semelhanle os cbapbooks ing)ese� ou os p/Iegos de
que Janice A. Radway condui seu minu cordel castelhanos e calalães, não é mais
cioso estudo sobre a aproprbção, por ad missível por várbs razões: porque os
uma deae rmin ada "/n/erprellve comlllU textos publicados em livros ou folhelOs
n//y" (no caso, uma comunid,de de lei pertencem a gêneros, épocas e tradições
toras), de um gênero maior do "mas/Y múhipbs e fragmenladas; porque exisle,
marke/pub/tsbing", ou seja, os "roman freqüentemente, uma disL'incia (crono
ces": "MefC'!1dorias como textos lheMOS lógica e social) considerável entre o con
texto da sua produção e os da sua recep
prodll7jdos em massa são selecionadas,
compradas, construídas e usadas por ção ao longo dos séculos; porque há
pessoas reais com necessidades, desejos, sempre um espaço entre o que o texto
propõe e o que o leitor faz dele. A proY.l
inlenções e estratégias interprelativas
disso são os textos que, num dado me>
pré-exisleOteS. Ao readmítirmos esses in
mento de sua existência impressa, entra
divíduos ativos e suas atividades criativas
ram para o repertório da Blb/Io/beque
e construtivas no cen tro de nosso esforço
81eue. De origem letrada, perlencendo a
inlerprelativo, evilamos nos cegar diante
gêneros muito diversos, eles consegui
do fato de que a prática esscncialmenle
ram atingir, graças à sua noY.l forma im
humana de crbr sentido pressegue mes
pressa (a das edições baratlS) e ao seu
mo num mundo cresc entemente domi·
modo de distribuição (a venda ambulan
nado pebs coiS:Js e pelo consumo. Lem
te), públicos muito diferenaes daqueles
brando assim o car:íler interativo de ati
que garantiram seu sucesso inicial, reves
vidades como a leitura ( . ( aumenlarnOS
. .
""rtendo o sentido das causalidwes ba mtlnces publicados nos p/iegos Clstelha
bitualmente reconhecidas, sugere que se nos. Mas na sua recepção (evidentemen
leia a "literatura popuLu" como um re te mais dificil de ser dec ifrada pelo histo
pertóriode modelos de comportamento, riador), estes conjuntos de te>.1Os eram
como um conjunto de representações úeqüentemente apreendidos e manipu
que siio igualmente normas imitáveis (e lados pelos seus leitores "populares"
possi\'elmente imiLwas). O segundo fo scm o menor respeito pelas intenções
cali"" a pluralidade e a mobilidade das que direcionaram sua produção e distri
significações que públicos diferenlCS atri buição. Ora os leitores transpunham
buem ao mesmo texto . Mais do que uma para o registro do im.�ginário o que lhes
suposta adequação entre o repertório da era dado no registro utilitário, ora, inver
IittératUre de rolportage e a "mentalida samente, tomavam como descrições do
de popular", que corre O risco de ser cc:l1 as ficções que lhes eram proposL�.
apenas uma tautologia (já que o sucesso As coletâneas de modelos epistolares da
da "literatura popular" costuma ser ex Blbllotbeque Bleue, todos oriundas da
plicado pela sua bomologia com uma literatura cortesã do início do século xvn
mentalidade que é na ""rdade deduzida e reedj'adas para um público maior no
da temática livresca), o que importa é periodo compreendido entre a meL�de
uma bistória social das formas pelas quais do século xvn e o início do XIX, ilustram
as diferentes comunidades de leitores o primeiro caso: já que não tinham ne
que succs.sivamente se apoderam desses nhuma utilidade para leitores que nunca
texto s os usam e compreendem. Nume se encontravam na situac;:ío de ter que
rosas e complexas são as mediações entre usar os modelos que lhes eram propos
t",,:tos que se tornam "steady sellers" tos, elas provavelcmente eram lidas
graças às edições de rolportage e os in como bislÓri.� fictícias, oferecidas sob a
vestimentos de sentido de que s50 objeto forma de esboços rudimentares d� no
em diferentes situações bislÓricas e para vel:'as epislObres,18 No mesmo acervo, os
diferentes leitores. textos que compõem O repertório da
É preciso portanto reconhecer uma literatura picaresca apresenL�m uma si·
. -
tensao unpoctanle entre as Ullençoes, tuação inversa: brincando com as con
. .
explicitas ou implícitas, que leY.lm a pro venções e com as referencias carn avales
por um texto a leitores numerosos e as cas, parodísticas e burleSCls, foram, pos
formas de recepção deste texto, que se sivelmente, compreendidos como uma
estendem, úcqüentemente, a registros descrição verdadeira da realidade inquie
completamente diferenteS. Na Europa tante e estranha dos L'IIsos mendigos e
dos séculos XVI a XVIII, os impressos verdadeiros vagabundos.19
destinados ao público "popular" tinham Diferenlemcnte d'lS IcilOrdS de rOlnan·
uma ampla gama de intenções, que ma ces de Smilhton que responderam à pcr
nifestaVJ.m diversas vonLadcs: cris1ianiz:l gunL� deJ:U1icc A. Radway, ou dos leitores
dora, com os textos de devoção da Con e leitoras de New Soulh Wales en trevista
tra-Reforma que en traram para o reper dos por Martyo Lyons e Lucy Taksa,20 os
tório da Blbl/lbeque BIeue francesa; re da Blb/iatbeque BIeue e d� outras "litera
fo rmad ora, com os alman aques do D/u turas de ro/portage" européias (a n50 ser
mln/smo italian o ou da Volksaufliirung com raras exceções) não disseram nada
alemã; didática, com os impressos de uso acerca das SIlas lei lUr'aS - ou, pelo menos,
escolar ou os livros de prática; parodisti não disseram nada que tenha sido conser
ca, com todos os lexlOS da tradiçdo pica vado pelo bitoriador. Caracterizar, em sua
resca ou burlesca; poética, com os TO- diferença, uma prática popuLu dos lC>.1OS
183 IllIIIOS IUSTÓRlCOS -1195/11
e dos livros não é, portan lO, coisa flol A oralidade ocupa um lugar essencial. De
oper:lçio supõe a Uli1i:z;u;iio criúca de fon signa, de um lado, a possÍ>cl sub missão
tes que não podem se,. majs que repre dos JeXIOS impressos aos procedimen lOS
selllaçóes da leitura: rep'rsen l3çóes ico peculiares da "performance" oral No caso
n�ror""s de situações de leitur:l e dos da França.. a Jeinua eu. MlZ alra, nas teu·
objetos lidos pelo maior núm ero de leito niões noturnas em mlla da 1areira, dos
iCS;21 repn=scn taçôes nOilualÍY.lS das prá· JeXIOS difundidos pela littbature de coI-
ticas de leitura e de escrila conticbs em só nranv11 te é ateStMb antes da
narraçócs, maD11ais, calendários ou alma· segunda me.adc: do século XIX. Mas a
naquesdestinados ao iuCiCado "popular"; dedwtaçio destes JeXIOS o que implica
-
represen 1:lÇÕCS implíd'a5 das rompelên va que fossem ronheddos de coe e iesti
das e das exp<."<lativas dos leilOles nIChOS ruídos por ..nra pala"", viva, livre da leilura
habilidosos, mis como transparecem da do texIO e próxima da recitação dos coo tos
o� o malerial das edições de aof, - era wna das mais imponan tesformas de
portage; repiCSeJllaÇÕ<:s das suas pró ttansmifi.los, e uma dasfontes das varian
prias leilUtaS por leilOres plebeus ou cam tes que mod ifnm a sua \'t:rsãn imprcssa
poneses prodl'zem textos auto de umaediçio popularpara outra. Mas de
ou quando wna aulOridade outro lado ocnlleu, tunbérn, o in....CiSO: a
(por (,empl o eclesiástica ou inquisilOriaI) circuIaçio do iepenório impresso "ão
os ob� a IndiCJr os livros que leram - e dejxoOJ de ter efeiros sobre as trailiçõcs
a dizer o que acharam e emender:un.24 orais, que foram profuodaIllCnte ron tlmi
Ficn te a esses h ""os ea CSS3S imagens, que nadas e transfonmllbs (rumo o mostra o
eU'mplo dos COlUOS de fuda) pelas versões
põem CiD cena as Icil1J.(aS popllla.es, �
indispensável uma p re,,·allçio. Quaisquer letrados e erudilaS das narrativas tradicio
que sejam, essas lepresentações nunca nais, f3isromoforam maàçamente difun
didas pela /Iltérature de ao/portage .2 S
mantêm uma reL-.çiio imedi:ua e ttanspa
lente com as pcátiClS que permitem ver. AlCibuir a CltegOrla de "popular" a
Todas remelCm às moo:dicbdes espeáfi modos de ler, e oão a classes de textos,
C\S da sua:produçiio, e, ponanlO, às inten é, ao mesmo tempo, essencial e arrisCl
ções e interesses que levaram :\ sua eJabo. do. Após o esrudo exemplar de Cario
r:lç'io, aos gêneros onde se inscre>em e Ginzburg, tem sido muilO grande a fen
aos destinatários visados. Reconslruir as taçio de caraeteriZIt a leirura popular a
regras e os limites que COO'<lnd1ffi as pd partir da de Mcooccbio - ou seja, romo
tic3sda replCseutação learada, ou pop'alar , uma leitura descootinuaque desm..mbra
do pop1daré, pocconseqüêntil, umapre os tCXlOS, descoo "<lualº'" as palavras e
condiçio necessária para decifrar roerela as �,Iimi1a-se i li teralidade do sen ti
mente o Iaço fOrle, polém sutil, que une do.2 Este tipo de diagnóstico enrontrou
essas tepiCSCil tações e as prá'ÍCls sociais confirmação 03 análise das eslCUruras -
prudência, as lei turas populares oas socie dos impressos destinados ao grande pú
dades do Ar. ligo Regime podem ser rom blico, cuja organi2ação em seqüências
preendidos a partir das grandes oposições breves e desconjuotadas, encerradas em
morfológiCls que comandomas formas de si mesmas, repetitivas, parece adequar·se
\iansmissio i dos texIDS - por exemplo, a uma leitura picorada, sem men16ria,
entre a leirura em voz alta e a leirura
susfenlada por frngmeolOS do texto.
saenciosa, ou entre a leilui3 e a decI:una Esla COOSlalaçio é seUl dúvida perti
ç'io. Este último contraSte tem uma perti nente, mas deve ser matizada Será que
nência para sociedades onde a as pdtiCls de leirui3 que ela considera
189
como especificamen te pop ulares, enrai a ""lidade como constituída pela pro.
zadas numa antiga cultura oral e campo pria linguagem, independentemente de
nesa, são (elas e outraS modalidades) toda referên cia objetiva. ]ohn E. Toews
diferentes das que, na mesma época, ca fez um resumo doro desta posição radi
racterizam a leitura dos letrados? Os dois cai que, a partir da constatação de que "a
objetos emblemáticos da leitura erudita linguagem é pensada como um sist<111.0
nO Ren ascimento - a roda de livros, que autocontido de 'signos' cujos significa
permite man ter vários livros abenos ao dos s.'io determinados por S1!3S reIações
mesmo tempo e, em conseqüência. coo· uns com os outros, muito mais do que
fron LV e extr.úr os trechos tidos como por suas relações com algum objeto ou
essen ciais, e o caderno de lu �res c0-
sujeito 'transcendental' ou extt3Aingüís
muns, que reúne em suas rubricas cita·
tico", postula que "a criação do sentido é
ções. exemplos, sentenças e experiências
impessoal e opera 'pelas costas' dos
- L1.IDbém f3Z-t:m supor e inferir uma
usuários da linguagem, cujas ações lin
leitura que recorta, fragmenta, descon
güístiCls podem apenas exemplificar as
textualiza, e que investe de uma absoluta
regras e os procedimen lOS das lingua
aUlOridade o sentido literal do textO.27 A
gens �e eles habitam, mas não contro
idcn tillcação dos traços morfológicos
que organizam as práticas é, por conse lam",
guinte, uma condiçío necess.ária, porém Contra essas formulações rac!iClis,
nio suficiente, para designar adequada acredito ser preciso relembrar que não é
men te as diferenças culturais. As formas lícito restringir as prátiClS constitutivas
populares das prátiClS nunca se desen do mundo social à lógica que govema a
volvem num universo simbólico separa produção dos discursos. Afirmar que a
do e especifico; sua diferença é sempre realidade só é acesslvel através dos dis
construída através das medL1ÇÕes e das cursos que querem o�nizá-la, submetê
dependêncL1S que as unem aos modelos la, ou represen tá-Ia (e, para o historiador,
e às normas dominantes. discursos que são sempre textos escri·
lOS) , não significa postular a identidwe
entre a lógica logocêntrica e hermenêu
5. tica que comanda a produção desses dis
cursos e a t6gica prática, o "sentidp prá
tico" que regula as condutas cuja trama
Na conjuntura intelectual atual, dois
define as identidades e as relações s0-
obstáculos ameaçam a abordagem que
ciais. Toda análise cultural deve levar em
estamos defendendo aqui e que define as
configurações culturais ("populares" ou conta esta illedutibilidade da experiên
não) a partir das práticas e, conseQÜente cia ao discurso, resguardando-se de um
mente, dos modos de aproprL�ção que uso incontroIado da categoria de texto,
llies são peculiares. O primeiro é consti indevidamente apUcada a práticas (ordi
tuído pelo "lingulst/c tum" ou o "semlo nárias ou rituais) cujas táticas e p rocedi
t/c cballenge" proposto à critica textual e mentos não são, em nada, scmelhan tes
às ciências sociais. São conhecidos seus às estratégias produtoras dos discursos.
três fundamen tos: considerar a lingua Man ter esta distinção é essencial, como
gem como um sistema fechado de signos assinala Bourdieu, para que se evite "pos
cujas relações prodll:rem sentido aulO tular como principio da prát.ica dos agen
m:uic:Jmente; considerar esta construção tes a teoria que se deve construir para dar
da signifiClção como isenta de qu.'Ilquer conta dela" ou, ainda, projetar "nas prá
intenção ou controle subjetivos; pensar tiClS o que é função das práticas (não
190 ISTUOOI HllTÓRKo\ - 1991nl
-
para os alOres mas) para alguém uc as meiro lugar, por aquilo a que renuncia,
�
estuda como algo a ser decifrado". 9 enquanto os dominados sempre se con
Por outro lado, o objclO fundamental frontam com aquilo que lhcs é recusado
de uma história ou de uma sociologia pelos dominantes - qualquer seja sua
cultural compreen dida como uma história atitude depois: resignação, nega �to, con
da construção da slgnillcaçío reside na testação, imiL,ção ou recalquc".
tens:io que aIticula as cap acicbdes in"", Iw nos afustafmos do implícito espon
tivas doo; indivíduoo; ou das comunidades tâneo que babita o conceito de cultura
com os constranguncntos, as no rmas e as popuhr somos leY.ldos dc volta à nossa
•
convenções que limitam - m:ljs ou menos pergunta inici.-.J: como articular (e não SÓ
poderosamente segundo sua posiçío nas utili:cJf de fonna altemad,) esses dois
relações de dominaçío - o que lhes é lícilO modelos de in teligíbilidadc da cultura
pensar, enunci.v, fazer. Esta COnSI:lt'lÇão popuhr que são, de um lado, a descrição
vale para uma história das obras letradas, dos mecanismos que ICY.lm os domina
pois elas se inscrevem sempre no campo dos a interiorizar sua própria ilcgilimida
dos possíveis que as IOmam pensáveis. de cultural e, de outro lado, o reconhcci
Vale para uma história d"lS pr:íticas que mcn 10 d"lS expressões pelas quais uma
são, clas L,mbém, in""'çõcs de sentido cultura dominad.. "consegue organiz ar,
limiIadas pelas múltipL"lS dcterminaçõcs Inuma) coerência simbólica cujo princi
(sociais, religiosas, institucionais etc.) que pio lhe é próprio, as expcriências da sua
definem, para Clda comunkbcle, os com· condição,,�l A resposta nio é fácil e he
port:lmenlOs legítimos e as norm."lS incor sita entre duas alternativas: operar uma
poradas. Ao caráter aUIOm.ítico e impcs trj.,gem entre as priticas rmis submcti
sool da produçío de sentido L-.J como das à dominação e aqucL"lS quc usam de
poo;rula o "Iingu/sllc tum", é preciso opor astúcia com ela ou a gn
i oram; ou, então,
outra pcrspectiY.l que enEuQe as diferen considerar que cada prática ou discurso
ças, as liberdades cultural c soci.-.Jmente "popular" podc ser objeto dc duas an,Ui
detcnn.inadas, que os " interstícios ineren ses que mosu-cm, alternadamente, sua
tes aos si<tem."lS gerais de normas lou as autonomia e sua hetcronoml.'l. O cami�
contradições e:xistentcscntre elesl derom nho é cstreito, dificil, instável nL"lS acredi-
10 que seja, hojc em dia, o único possível.
par� 00; alOres". 30
Uma segunda dificuladade reside nas
definições implíci�LS de uma calCgoria
como a de "cultura popular". Qucira-se Notas
ou não, esta calCgoria leY.l a perceber a
cultura que ela designa como L10 aulÔno
1. Oaude Grignon e Jcan-Claude I':!ss.,.
m., quanlO as culturas longínquas e como
ron, Le SQIXlnI el lepoplJafre. Mlsérabilisme
siruad, simetricamcnte em rel,ção à cul
el popu/lsme en 5OCiologle el el/ lilléralure
rura dominante, letrada, elítisL', com a
(P:uis. G:illinurd / Le Scuil, liaUles ElUdcs,
qual fonna um par. preciso dissipar
É 1989), p.36. A tr.lduÇio espanhola inti,ula·se
eSSls duas ilusõcs complementares. De Lo ai/lo y lo popli/ar. Miserabillsmo e popu
um lado, as culturas populares estão lismo en 5OCiologla y ,m IIleraJura (I3arcelo
sempre inscritas numa ordem de legíti na. l.:l5 Edicionc:s de la I�queta, 1992).