ANÁLISE DE TEXTOS LITERÁRIOS 2

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ANÁLISE DE TEXTO LITERÁRIO

– PROSA
AULA 2

Prof.ª Thaisa Machado


CONVERSA INICIAL

Nesta aula abordaremos, principalmente, a personagem. Os temas estão


divididos da seguinte forma:

1 – Contextualizando;

2 – A personagem;

3 –Tipologias;

4 – O tempo e o espaço;

5 – Cronotopo;

Na Prática;

Finalizando;

Referências.

Em A personagem, faremos um levantamento histórico sobre a


personagem e sobre os estudos acerca dela. Em Tipologias, veremos diferentes
classificações que o elemento ficcional – personagem – ganhou com o passar
do tempo. Podemos adiantar que os tipos de personagem foram ganhando
novas versões conforme as tendências literárias mudavam e o estilo dos autores
também. Essa diversidade auxilia o leitor a entender melhor cada personagem e
também a estruturação do texto, ainda que a compreensão dependa das
vivências do leitor e de sua relação com o mundo.
Trataremos da personagem e de sua relação com a figura do herói, cujo
conceito sofre alterações conforme as transformações das sociedades e a
evolução do romance – nos deteremos a analisar tais modificações. Veremos
também as personagens do romance moderno e do novo romance histórico –
nesta modalidade (o romance) usa-se como modelo pessoas reais para criação
da personagem referencial, porém estas não apresentam compromisso com a
veracidade, com a verdade histórica.
Em O tempo e o espaço conheceremos a abordagem de alguns
importantes teóricos e, por último, conheceremos a noção de cronotopo.

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TEMA 1 - CONTEXTUALIZANDO

Neste tema analisaremos as personagens, partes fundamentais para o


desenvolvimento de uma narrativa. Elas motivam a ação das histórias, afinal são
a essência do enredo, assim como o ser humano é para a vida. Normalmente,
um autor começa uma nova história delineando os acontecimentos constituintes
do enredo, no entanto, as personagens principais de algumas narrativas
possuem tal importância para a obra que diversos autores, durante o processo
criativo, sentem a necessidade de elaborá-las em detalhes antes mesmo de
começarem a criar a história da qual estas personagens farão parte.
Cada personagem tem um papel a ser cumprido, uma função a ser
desempenhada, uma vontade a ser exercitada e/ou um destino a ser alcançado,
e não nos esqueçamos de que essas são escolhas feitas pelo autor. O
comportamento da personagem procura manter, desde sua criação, a coerência
com as características que lhe foram conferidas. Uma personagem pode estar
representando uma ideia, apenas, ou várias. Pode ser um ente único – individual
– ou o retrato de um grupo de indivíduos com características semelhantes, isto
é, uma coletividade. Discutiremos também acerca do tempo e do espaço nas
narrativas ficcionais.

TEMA 2 – A PERSONAGEM

Toda história ficcional é a história das personagens, as quais são


responsáveis pelo enredo e realizam ou sofrem as ações relatadas. No século
XX, o romance sofreu muitas inovações, de modo que surgiu a consciência de
que a personagem é uma criação na linguagem, ficando estabelecidas tipologias
que abarcam sua variedade.
A difusão dos estudos sobre a personagem ganha força no final dos anos
1960. Antonio Candido, em 1968, escreve um ensaio dedicado à personagem
romanesca abordando a crítica sobre esse componente e levanta reflexões
sobre sua composição.
É de suma importância que se defina a personagem por seu papel, sua
função na narrativa. As personagens são denominadas como seres de papel,
pois só existem do ponto de vista linguístico, ou seja, não existem fora das
palavras. Mesmo quando representam uma pessoa real, pertencem ao mundo
ficcional e só existem no contexto das regras da ficção. Independentemente de

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ser imaginária ou idealizada, a personagem precisa ser coerente em seu ser e
fazer narrativo, ter verossimilhança interna.
As personagens não são pessoas, mas o leitor é apresentado a elas como
se fossem, portanto ele pode manter diferentes tipos de relação com elas – de
amor, de ódio, de identificação, de antipatia, de simpatia, entre outros. A única
relação que não tem valor para a ficção é a indiferença, afinal esta afastaria o
leitor da obra.
Em Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco diz que quando
levamos a sério as personagens de ficção, criamos um novo tipo de
intertextualidade que, a propósito, é bastante incomum. É quando

uma personagem de determinada obra ficcional pode aparecer em


outra obra ficcional e, assim, atuar como um sinal de veracidade. É o
que acontece no final do segundo ato de Cyrano de Bergerac, de
Rostand, quando um mosqueteiro apresentado como “D’Artagnan”
cumprimenta o herói. A presença de D’Artagnan garante a veracidade
da história de Cyrano – embora D’Artagnan fosse uma figura histórica
menor (conhecida basicamente graças a Dumas) e Cyrano fosse um
escritor famoso.
Quando se põem a migrar de um texto para o outro, as personagens
ficcionais já adquiriram cidadania no mundo real e se libertaram da
história que as criou. (Eco, 2006, p.132)

TEMA 3 – TIPOLOGIAS

Na evolução do romance houve um esforço para criação de seres


coerentes e íntegros. Sendo assim, ainda no século XVIII surgem duas grandes
famílias para classificar as personagens: personagens de costumes e
personagens de natureza.
As personagens de costumes são apresentadas por traços fortemente
definidos e rapidamente identificáveis, este é o processo da caricatura, que
iremos tratar de maneira um pouco mais aprofundada mais adiante. Sua eficácia
máxima se dá na caracterização de personagens cômicas, pitorescas e
invariavelmente românticas ou trágicas. Sua característica, de caráter invariável,
é revelada imediatamente.
As personagens de natureza são apresentadas pelo seu íntimo, e, por
isso, exigem mais do leitor. O autor lança mão de caracterizações analíticas,
sendo assim, pode-se afirmar que o romancista vê o homem através de seu

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comportamento na sociedade, de suas relações, e da maneira com a qual vemos
o outro.
Atualmente, E. M. Forster apresenta personagens planas e redondas. As
personagens planas são construídas com apenas uma qualidade ou uma só
ideia, leva-se em conta o caráter e a ideologia para qualificá-las. São
personagens facilmente reconhecíveis e facilmente lembradas pelo leitor e – um
detalhe importante – elas nunca surpreendem. Tais personagens podem ser
divididas entre tipo e caricatura. No tipo teremos uma característica que se
manifestará da mesma forma em outros romances, trata-se do cínico, do cômico,
do sádico, da beata, sem aprofundamento ou sem individualização. A caricatura
está baseada em um defeito único e apresenta distorção e exagero.
No romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de
Almeida, há muitas personagens planas, ou seja, elas não mudam seu
comportamento no desenrolar da história, não surpreendem em nada. Por
exemplo: a personagem principal, o memorando Leonardo Pataca, desde
criança era travesso, e até o final do romance não muda esse jeito pícaro de
viver.
As personagens redondas são complexas e capazes de surpreender de
maneira convincente. Apresentam várias qualidades ou tendências, muitas
vezes conflitantes. Em um romance, a personagem principal é redonda, e se
destaca em um cenário repleto de personagens plenas. Em um conto é possível
que só haja personagens redondas, pela brevidade do texto; já no romance, por
sua extensão, é possível que o autor não consiga aprofundar muitas
características em todas as suas personagens. Podemos nomear as
personagens planas, de forma analítica, como figurantes.
Contemporaneamente, novas classificações surgiram, substituindo as
outras por qualidades e assumindo uma posição que observa mais a construção
da narrativa e suas características. Philippe Hamon propõe três classificações:
personagens referenciais, personagens embrayeur e personagens anáforas. No
primeiro caso temos personagens que remetem a um sentido pleno e fixo,
comumente chamadas de personagens históricas. No segundo caso são as que
funcionam como elemento de conexão e que só ganham sentido na relação com
os outros elementos da narrativa, do discurso, pois não remetem a nenhum signo
exterior. E, por último, são aquelas que só podem ser apreendidas
completamente na rede de relações formada pelo tecido da obra.

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Encontramos a definição de cada uma delas na obra A personagem, de
Beth Brait:

Personagens referenciais: são aquelas que remetem a um sentido


pleno e fixo, comumente chamadas de personagens históricas. Essa
espécie de personagem está imobilizada por uma cultura, e sua
apreensão e reconhecimento dependem do grau de participação do
leitor nessa cultura. Tal condição assegura o efeito do real e contribui
para que essa espécie de personagem seja designada herói. Como
exemplos marcantes, considerem-se todas as personagens de A
ordem do dia, de Márcio Souza.
Personagens embrayeurs: são as que funcionam como elemento de
conexão e que só ganham sentido na relação com os outros elementos
da narrativa, do discurso, pois não remetem a nenhum signo exterior.
Seria o caso, por exemplo, de Watson ao lado de Sherlock Holmes.
Personagens anáforas: são aquelas que só podem ser apreendidas
completamente na rede de relações formada pelo tecido da obra.
Diadorim, de “Grande Sertão: Veredas”, poderia estar nessa categoria.
Essa classificação, que permite ainda enfrentar a personagem como
participante das três categorias ao mesmo tempo, foi utilizada aqui
apenas como um exemplo da radicalização da teoria da personagem,
tomada como matéria do discurso e analisada sob os critérios
fornecidos pela Linguística e pela Semiologia e/ou Semiótica. (Brait,
1999, p. 45-46)

No mesmo livro, Brait também apresenta a personagem como agente da


ação, elencando novas classificações.

Condutor da ação: personagem que dá o primeiro impulso à ação; é a


que representa a força temática: pode nascer de um desejo, de uma
necessidade ou de uma carência.
Oponente: personagem que possibilita a existência do conflito; força
antagonista que tenta impedir a força temática de se deslocar.
Destinatário: personagem beneficiário da ação; aquela que obtém o
objeto desejado e que não é necessariamente a condutora da ação.
Adjuvante: personagem auxiliar; ajuda ou impulsiona uma das outras
forças.
Árbitro, juiz: personagem que intervém em uma ação conflitual a fim de
resolvê-la. (Brait, 1999, p. 49-50)

Nas obras épicas, tínhamos a presença marcante do herói, aquele que


fazia sacrifícios, participava de grandes batalhas, enfim, reunia todas as

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atribuições que cabem ao estereótipo de herói. Essa era a figura central de
qualquer narrativa, posição própria do antropocentrismo, muito comum no
período do Renascimento e do Romantismo. No entanto, com a evolução do
romance, o herói foi perdendo os traços épicos, ou seja, o caráter positivo, e
passa a assumir os defeitos e falhas humanas. O que não mudou foi o fato de o
herói continuar sendo a figura principal da obra, porém recebeu,
contemporaneamente, o adjetivo de problemático, o que elimina de vez a ideia
de perfeição, de valores positivos e da capacidade de sacrifícios pelo outro.
Outra figura que aparece mais comumente no romance pós-romântico é
a do anti-herói. Não podemos confundir essa personagem com o opositor do
herói, que pode ser um indivíduo ou uma coletividade. O anti-herói ocupa o
mesmo lugar que o herói em uma narrativa, porém recebe o prefixo anti- por sua
condição de oprimido pelas forças sociais ou ambientais. Ele polariza em torno
de suas ações as outras personagens, o espaço e o tempo.
O anti-herói é a personagem que praticou ou pratica atos moralmente
reprováveis esporadicamente e que não busca necessariamente um objetivo
nobre, mas que, devido ao carisma, acaba tendo seus atos aprovados pelos
leitores. Essa identificação com personagens falhos, que às vezes acertam e às
vezes erram, se dá justamente por serem versões mais realistas da natureza
humana, também muito sujeita a falhas e equívocos, como já apontamos
anteriormente. Afinal, é mais fácil se identificar com um sujeito ganancioso e
egoísta que depois se arrepende e volta para salvar seus amigos, do que com
um todo-poderoso e perfeito.
Na literatura, temos grandes exemplos, como Pedro Bala, protagonista de
Capitães da Areia, de Jorge Amado. Ele é uma criança e lidera o grupo
conhecido como Capitães da Areia. Menino abandonado, vive em um trapiche
em Salvador, Bahia, com várias outras crianças de rua: Gato, Boa-vida,
Sem-pernas, João Grande, Querido de Deus e Professor. Cada uma das
crianças tem suas características particulares e uma em comum: o abandono.
Para sobreviver, praticam furtos, mas Pedro Bala impõe um rígido código moral
às crianças, que precisam respeitar sua autoridade e cumprir algumas normas
de convivência que incluem a proibição de roubar os colegas. Seu papel de
liderança é reforçado por sua força (afinal, era o maior capoeirista da cidade) e
por seu carisma (trata a todos como irmãos mais novos). Outro exemplo

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mundialmente conhecido é Robin Wood, o ladrão que roubava dos ricos para
doar aos pobres.
O antagonista é o vilão da narrativa, o que se opõe ao protagonista (herói
ou anti-herói) seja por suas ações que atrapalham ou por suas características
opostas. Ele é o principal componente da história, depois do protagonista,
justamente por se opor a ele, gerando, dessa forma, o conflito que impulsiona o
enredo em direção à sua conclusão.
O estudioso Northrop Fryre propõe uma nova nomenclatura ao anti-herói
quando sua condição de opressão lhe permite ser qualificado como vítima típica.
Estamos nos referindo a pharmakós, ou bode expiatório (responsável por expiar
os males de determinada sociedade, apaziguando e reestabelecendo a ordem
original), que, por definição, é ao mesmo tempo inocente e culpado. Fryre explica
que essa personagem é culpada “no sentido de que é membro de uma sociedade
culpada, ou vive num mundo de onde tais injustiças são parte inevitáveis da
existência” (Fryre, 1973, p. 47-48) e inocente porque lhe acontece algo que
jamais ele poderia ter feito. Em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, a
mulher do médico é quem faz o papel de bode expiatório.

No desenvolvimento da narrativa, após terem relações sexuais, uma


das mulheres da camarata à qual pertencem as personagens principais
– e consequentemente a mulher do médico – é assassinada por um
dos cegos durante o ato. Sendo a única pessoa capaz de enxergar
naquele local e, por isso, de fazer justiça com as próprias mãos, a
mulher do médico acaba imitando o comportamento do cego e
devolvendo a sua atitude com a má reciprocidade, assassinando-o,
vingando, assim, não apenas a morte da colega, mas, acima de tudo,
a humilhação a que foram submetidas.
Nesse momento, tendo em mente o ciclo na escolha do bode
expiatório, tanto a atitude do cego malvado, quanto a da mulher do
médico acabam por gerar mais violência uma vez que, procurando
sanar uma injustiça, ela acaba por cometer um grave crime (ainda que
por legítima defesa) e comprometer-se de uma maneira irreversível.
(Brito, 2014, p. 78)

A personagem da narrativa ficcional não precisa necessariamente ser um


ser humano, ela pode ser um animal, por exemplo. Essa informação nos remete
automaticamente ao subgênero fábula, no entanto um animal com suas
características, biológicas ou não, também pode figurar em romances ou contos.

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É o caso de Baleia, a cadela do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos,
que apresenta mais características humanas que os próprios humanos da trama
– alguns deles sequer tinham nome. Outro exemplo está no conto de João
Guimarães Rosa, no livro Sagarana, intitulado Conversa de bois. Guimarães
apresenta alternadamente os diálogos dos homens e os “diálogos” dos bois,
revelando-se aqui uma espécie de “filosofia bovina”, uma síntese do que
“pensam” sobre a vida e sobre os homens. Neste conto, os bois são verdadeiras
personagens, possuidoras de capacidades intelectuais quase iguais às dos
homens. Os bois não possuem humanidade, não agem, “pensam” e “falam”
como os homens, à maneira das fábulas e histórias da carochinha, mas sim
como nós podemos imaginar, com o recurso da intuição, o que eles fariam se
realmente pudessem.
Como já citado anteriormente, coletividades podem desempenhar papel
de personagem e, ainda mais, podem influenciar ou determinar ações. É
possível, inclusive, identificarmos personagens ainda mais inusitadas em
algumas obras narrativas – a chuva, a morte, um vilarejo decadente ou uma folha
caindo de uma árvore podem ser personificados (fenômeno conhecido como
animismo), desde que estejam inseridas em uma narração e praticando uma
ação, ainda que, por vezes, involuntária. Um ótimo exemplo é a personagem
Flicts, da obra homônima de Ziraldo, que narra a história de uma cor que não
encontrava lugar no mundo.
Seres mitológicos, divinos, demoníacos e até mesmo extraterrestres
podem exercer a função de personagem em narrativas ficcionais. Encontramos
exemplos em obras de Machado de Assis (A igreja do diabo), João Ubaldo
Ribeiro (Viva o povo brasileiro), João Guimarães Rosa (Um moço muito branco),
entre outros.
A personagem da atualidade é marcada pela diversidade, pela
multiplicidade. Antonio Candido apresenta um olhar sobre a criação desse
elemento no romance moderno; ele afirma que a nova personagem procura se
afastar das formas fixas. Vejamos em suas palavras:

O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais


esse sentimento de dificuldade do ser fictício, diminuir a ideia de
esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção
do romancista. Isto é possível justamente porque o trabalho de seleção
e posterior combinação permite uma decisiva margem de experiência,
de maneira a criar o máximo de complexidade, de variedade, com um
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mínimo de traços psíquicos, de atos e de ideias. A personagem é
complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia
os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se os
compararmos com o máximo de traços humanos que pululam, a cada
instante no modo-de-ser das pessoas.

Vamos às personagens do romance histórico, que chegam ao seu apogeu


no século XX, juntamente com o romance moderno. Essas se caracterizam pela
apropriação de personagens históricas, ao passo que no romance histórico
tradicional as personagens históricas ficavam à margem, o foco estava voltado
para os homens do povo, como relata, em seu ensaio O romance histórico, o
estudioso Lukcás, que se dedicou a sistematizar essa modalidade. Vale ressaltar
que não há compromisso com a verdade histórica. As mentiras dos romances,
então, nunca são gratuitas: preenchem as insuficiências da vida (Vargas Llosa,
1996, p.12). Segundo, Antônio R. Esteves em O romance histórico brasileiro
contemporâneo,

A literatura, enfim, trabalha o reino da ambiguidade. Suas verdades são


sempre subjetivas: verdades pela metade, verdades relativas que nem
sempre estão de acordo com a história. Nesse sentido, a recomposição
do passado que a literatura faz é quase sempre falsa, se a julgamos
em termos de objetividade histórica. Não há dúvidas de que a verdade
literária é uma e a verdade histórica é outra. No entanto, embora
recheada de mentiras – e talvez por isso mesmo –, a literatura conta
histórias que a história escrita pelos historiadores não sabe, não quer
ou não pode contar. Os exageros da literatura servem para expressar
verdades profundas e inquietantes que só dessa forma poderiam vir à
luz. (Esteves, 2010, p. 20)

Quando há a apropriação da personagem pela ficção, ela não é mais a


mesma da História, e convém denominá-las como personagem referencial,
terminologia que vale para o romance político e para o roman à clef, aliás, vale
para todas as situações em que podemos identificar o modelo que serviu para
criar a personagem romanesca. Em A última quimera, de Ana Miranda, podemos
identificar os poetas brasileiros Augusto dos Anjos, Olavo Bilac, Raul Pompeia,
além da Revolta da Chibata, entre outros momentos históricos, lembrando que
se trata da ficcionalização destes.
Na ficção atual, existe a possibilidade de o autor fazer o papel de
personagem, não se tratando necessariamente de uma autobiografia.

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Encontramos personagens ficcionais que mantêm relação próxima ou íntima
com o autor.

TEMA 4 – O TEMPO E O ESPAÇO

Vamos iniciar apresentando, brevemente, algumas abordagens


relevantes de diferentes teóricos que se dedicaram ao estudo do tempo na
narrativa de ficção.
Paul Ricouer, filósofo francês, autor de Tempo e narrativa (1983-85)
defende a reciprocidade entre narrativa e temporalidade. Para ele, a narrativa
ganha significado conforme relata os traços da experiência temporal. Nos
estudos de Ricouer, dois pontos nos interessam para o presente estudo:
narrativa e temporalidade se reforçam; e que é preciso compreender e aceitar
como e por que a sucessão dos episódios leva à conclusão.
Forster reforça a importância do tempo no desenvolvimento da narrativa.
O inglês Edwin Muir defende a sistematização para facilitar o estudo da estrutura.
Para tanto, ele propõe “romances de ação” e “romances de personagem”, o que
nos leva a entender pela nomenclatura que a ênfase se dá ora na ação, ora na
personagem. Em seguida, Muir apresenta o “romance dramático” que é aquele
limitado no tempo e no espaço, e, apesar do nome, esse tipo de romance não
precisa ser trágico.
Em 1969, o inglês Adam Abraham Mendilow lançou O tempo e o romance,
em que defende que o tempo é a grande questão. O tempo, para Mendilow, tem
três características: transitoriedade, sequência e irreversibilidade, e em seus
estudos ele busca responder como um autor é capaz de comunicar o senso de
fluir da vida, transmitir uma impressão utilizando recursos de idas e vindas no
tempo. Na segunda parte de sua obra encontramos valores temporais, o primeiro
deles é o tempo pelo relógio em contraste com o tempo psicológico. Este possui
caráter memorialístico, que difere da sequência dos fatos vividos, caráter de
interioridade, de registros da consciência. O autor tratará sobre o tempo ficcional
que pode cobrir séculos ou poucos minutos sem que haja equivalência na
extensão do texto, ou seja, um romance pode ser longo e tratar de um único dia,
como é o caso de Ulisses, de James Joyce. O autor do romance utiliza recursos
como fluxo de consciência, lembranças, evocações e antecipações. Os recursos
mais comuns são: flashback, corrente de consciência e troca do tempo
(digressões e progressões).
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Mendilow discorre também sobre o tempo do leitor e o tempo do escritor,
dando destaque aos romances em primeira pessoa, a diferença entre narrador
e escritor, e a diferença entre os registros do tempo como se as ações tivessem
acabado de acontecer ou aquelas que apresentam um tempo mais ou menos
longo entre os acontecimentos e sua narração. Aborda também o tempo do
assunto do romance e o tempo do autor, que pode ser o mesmo, pode ter foco
no passado, caso de romances históricos, ou foco no futuro, caso dos romances
utópicos, por exemplo. E, por último, o tempo da narração e o tempo narrado.
Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, autores de Tempo do discurso
apresentam várias denominações e definições, como o tempo da história, o
tempo da escrita, o tempo da leitura. Ao lado destes temos, o tempo do escritor,
o tempo do leitor e o tempo histórico. Os tempos externos e os tempos internos
caminham paralelamente, de forma geral, mas quando há uma ruptura no
paralelismo temos a inversão (uns acontecimentos são narrados antes que
outros) e as histórias encaixadas (interrupção de uma história para narrar outra).
Além do paralelismo, temos a distância entre os dois tempos. De um lado estão
as narrativas que não mantêm nenhuma relação com as temporalidades (lendas
e mitos) e, de outro, as que coincidem totalmente. Temos ainda uma terceira
relação, o escamoteamento (não há correspondência entre a escrita e um
período da história), e o resumo (um longo período da história em poucas
páginas).
Para finalizar, temos a simultaneidade, que é o desdobramento que o
tempo da escrita projeta na sua sucessão; visão estereotipada, a mesma cena
sendo narrada ao mesmo tempo por diferentes personagens; e repetição, a
mesma parte do texto sendo contada em um outro desdobramento de um
acontecimento.
Sobre o espaço não há muitos estudos. À primeira instância espacial,
refere-se ao cenário em que se desenvolve a ação e onde se movimentam as
personagens, ou seja, o espaço físico (um país, uma cidade, uma casa) e em
um segundo caso, um espaço metafórico que pode ser o espaço social e o
espaço psicológico.

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TEMA 5 - CRONOTOPO

Cronotopo é a junção das palavras de origem grega, cronos (tempo) e


topos (lugar), o resultado evidencia a interligação e a indissociabilidade dos dois
elementos nas manifestações literárias.
Esse conceito aparece em um estudo monográfico de Mikhail Bakhtin,
Formas de tempo e de cronotopo no romance, no qual se dedica ao estudo do
problema do tempo e do espaço no romance, apresentando as mais importantes
linhas romanescas que surgiram desde o nascimento do romance na Europa.
Esse ensaio foi escrito entre 1937 e 1938.
Para Bakhtin, o cronotopo mais completo, que pode, inclusive, apresentar
uma infinidade de cronotopos menores em si, é o de romances biográficos e
autobiográficos. O tempo e o espaço biográficos são plenamente reais, uma vez
que todos os seus momentos estão ligados ao conjunto do processo vital.
Bakhtin aponta que o tempo biográfico pressupõe sua incorporação no
tempo histórico. No romance, Chá das cinco com o vampiro, do paranaense
Miguel Sanches Neto, a palavra geração ganha um sentido plural em uma
narrativa que se constrói por meio do conflito entre um mestre e seu pupilo,
evidenciando um embate de gerações com base nessas duas personagens.
É de extrema importância saber diferenciar o conceito de “autor-criador”
e de “autor-indivíduo”. Por meio do primeiro, podemos pensar a relação entre
homem e obra no romance autobiográfico. O indivíduo vive sua vida fora do
romance, e o criador, dentro dele. A diferenciação entre o cronotopo do “autor-
indivíduo” e o do “autor-criador”, assim como a diferenciação entre o cronotopo
do mundo representado e o do mundo real, faz parte da discussão sobre o
paradigma da representação realista e vem sendo discutido desde a Poética de
Aristóteles, obra na qual o pensador considerou que a pura imitação é
impossível, uma vez que não se pode sequer estabelecer uma unidade em torno
do próprio indivíduo.
Nas produções romanescas contemporâneas da literatura brasileira, o
espaço privilegiado é a paisagem estrangeira, diferentemente das produções do
século XIX e parte do XX, que privilegiavam a história e o espaço do país. A
escolha do estrangeiro sugere libertação, porém dentro desse termo temos duas
perspectivas. A primeira, se refere aos autores que viveram na época da ditadura
militar e têm no exterior o exílio, que serve de asilo e ao mesmo tempo de

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exclusão, afinal se encontram privados de exercer vários de seus direitos. Para
a geração futura, o estrangeiro é a aventura, a vivência de novas experiências,
a busca de si. No romance, Azul-corvo, de Adriana Lisboa, há a busca de si
juntamente com as lembranças de quem viveu os horrores da ditadura militar.
Após a morte da mãe, Evangelina, com apenas treze anos, parte para o
Colorado, nos Estados Unidos, para viver com seu padrasto Fernando. Dessa
convivência nasce uma amizade e surge a revelação de detalhes obscuros do
passado recente do Brasil, afinal, Fernando viveu a violência da ditadura. Sua
ida para os Estados Unidos tem outro objetivo além de Fernando, a busca por
seu pai biológico, cuja única informação que Vanja tem é de se tratar de um
norte-americano.

NA PRÁTICA

Com base nos nossos estudos sobre a personagem da prosa ficcional,


responda às questões a seguir.

1. Explique a diferença entre antagonista e anti-herói nas narrativas


ficcionais. Comente suas características, o papel que cada um exerce nas
obras, sua relação com o herói, entre outras informações que acredite ser
pertinente.
2. Escolha um romance – brasileiro ou não – e comprove com trechos da
obra o tempo utilizado na narrativa.
3. Explique a afirmação a seguir, de Maussad Moisés.
“A narração de uma obra constitui a totalidade dos acontecimentos ou atos
que envolvem todos os figurantes em cena. Entretanto, pode ser concebida
como a soma das ações das personagens individualmente consideradas ou em
peque grupos.” (Moises, 1997, p. 10-11)

FINALIZANDO

Nesta aula, conhecemos o percurso do contexto histórico da criação e


análise do elemento ficcional personagem. Conhecemos suas diferentes
classificações, as quais foram se modificando e acompanhando as tendências
de cada época, bem como o estilo de cada autor. Vimos as personagens de
costume e de natureza, as planas e as redondas, as referenciais, embrayeurs e
anáforas, e as personagens de ação. Analisamos ainda, as diferentes

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concepções de herói e relacionamos esta figura com a personagem principal de
uma obra ficcional, ou seja, o protagonista. Falamos não apenas do papel do
herói, mas do anti-herói. Terminamos discorrendo sobre a personagem do novo
romance histórico, que não tem nenhum compromisso com a verdade histórica,
porém pode-se identificar facilmente o modelo que inspirou sua criação. A
principal característica da personagem contemporânea é a diversidade. Além da
personagem, falamos acerca do tempo e do espaço, para isso recorremos a
diferentes teóricos. Há muito mais sobre o tempo do que sobre o espaço literário.
Para finalizar, conhecemos o conceito cronotopo, de Bakthin.

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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M. A. de. Memórias de um sargento de milícias. S.l.: s.n., S.d.

BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 1993.

BRITO, M. B. de. O bode expiatório de José Saramago: leitura dos dois


ensaios à luz da teoria de René Girard. f. 145. Dissertação (Mestrado em Teoria
e Crítica Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 2014.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.

CANDIDO, A.; GOMES, P.; PRADO, D.; ROSENFELD, A. A personagem de


ficção. São Paulo: Perspectiva, 2000.

COSTA, M. M. da. Teoria da literatura. Curitiba: Fael, 2016.

EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins


Fontes, 1983.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.

ESTEVES, A. R. O romance histórico brasileiro contemporâneo. São Paulo:


Unesp, 2010.

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