PASO0508-T
PASO0508-T
PASO0508-T
Tatiana Dassi
Florianópolis
2019
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Tatiana Dassi
Florianópolis
2019
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Tatiana Dassi
O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado
adequado para obtenção de título de doutora em Antropologia Social
Florianópolis, 2019.
4
À Patrick Cristóvão Pereira (Tistu),
em memória.
5
Agradecimentos
Agradeço ao CNPq por ter possibilitado esta pesquisa através da concessão de minha
Bolsa de Doutorado. E à Universidade Federal de Santa Catarina por oferecer educação superior
de excelência gratuitamente.
Agradeço às funcionárias e funcionários do Conselho de Moradores do Saco Grande,
em especial à Tati, Marilda, Nina e Aristides. Obrigada pela acolhida generosa, pela paciência
e pela abertura. Agradeço às crianças com as quais convivi, pelas brincadeiras, conversas e
risadas. Obrigada pela confiança e por me ensinarem muito mais do que poderei explicar.
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Theóphilos Rifiotis, pelos anos de parceria,
paciência e inspiração. Obrigada por me apoiar nas idas e vindas desta tese e por respeitar o
tempo que foi preciso para que ela fosse escrita.
Às professoras Dra. Sonia Weiner Maluf e Dra. Silvia Maria Fávero Arend e aos
professores Dr. Rafael Devos, Dr. Márnio Teixeira Pinto pela participação no processo de
qualificação da tese, pelas sugestões e críticas que acabaram por tornar o desafio da escrita mais
estimulante.
Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da UFSC, pelas aulas, leituras e conversas. Em especial, à professora Dra. Sonia W. Maluf por
aulas realmente inspiradoras e por me acolher no TRANSES de forma tão generosa. Também
à Prof. Dra. Antonella Tassinari, ao Prof. Dr. Oscar Calavia Saez, ao Prof. Rafael José de
Meneses Bastos. A sala de aula é um lugar potente e inspirador, mas, graças a vocês, ela também
foi um lugar de possibilidades infinitas. Vocês me ajudaram a mudar e multiplicar meu(s)
mundo(s).
Às professoras Dra. Maria José Reis, Dra. Neusa Maria Sens Bloemer e Dr. Aloísio
dos Reis, meus primeiros professores de Antropologia. Graças a vocês estou aqui. Obrigada por
me permitirem realizar minha primeira pesquisa etnográfica e por acreditarem que seria
possível. Minha paixão pela antropologia nasceu graças a vocês três.
Aos meus colegas. Bianca Ferreira de Oliveira, Kaio Hoffman, Izomar Lacerda,
Sandra Carolina Portela Garcia. Obrigada pelas conversas, pelas leituras, pelas serestas; não
teria terminado sem vocês. À Mirela Alves de Brito, Fernanda Guimaraes Cruz, Rose Mary
Gerber e Dalva Maria Soares, obrigada pelas risadas e pela leveza que conversar inspirava. À
Heloísa Regina Souza, pela parceria durante o período de reingresso.
6
À Laura Castillo Lacerda, por ter me mostrado o caminho do Saco Grande (e por todas
as delicadezas Laurita, sou grata).
À Shayla, a definição de amizade, por estar sempre tão presente mesmo estando tão
longe. Sem você eu seria menor.
À minha família. À minha mãe, por ser tantas (mãe, amiga, editora, conselheira,
enfermeira, amor, pensadora, mulher, escritora) e tão constante. Por ter me dado os livros, as
asas com as quais escolho voar. Ao meu pai, por ter me ensinado, na prática, a “positividade do
conflito” e ao meu irmão por ser, ao mesmo tempo, meu irmão mais novo e mais velho.
Ao Marcelo Barbosa Spaolonse. Por tudo sou grata: pelas aventuras e brigas, pelo
companheirismo e paciência, pelo respeito e imperfeições, pelas risadas e irritações. Juntos
fazemos mágica.
7
“As feras, aquela semana, não comeram um só guarda”.
Maurice Druon - O Menino do Dedo verde
“Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar para vocês algumas histórias
sobre o que gosto de chamar de ‘o perigo de uma única história’”.
Chimamanda Ngozi Adichie
8
Resumo
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Abstract
This thesis focuses on the contemporary policies for children. The aim is to discuss such
policies based on an ethnography of a “social project” implemented by the Conselho de
Moradores do Saco Grande, a local neighborhood association, in the suburb of Saco Grande, in
Florianopolis, Santa Catarina, Brazil. Projeto Renascer is a “social project”, namely, an after-
school facility for impoverish children, “children in situation of vulnerability”. The
ethnographical work will allow us to explore how the childhood (and the children) can be
addressed either as a “social issue” or as a “moral issue”, the effects these different approaches
produce in the daily life of the institution, as well as in the enforcement of the public policies
design for this population. To this end, Fassin’s analyses of moral economies, above all the
humanitarian reason, is essencial. According to Fassin, the humanitarianism is a mode of
government which focuses on the precarity. In the humanitarian government moral questions
became the foreground for political debates and political interventions, making it possible to
justify political and private actions through moral feelings and reasoning. Furthermore, the
notion of government here is used in reference to the foucaultian concept of government, in its
two dimensions: the government of others and the government of the self. In other words, the
ways in which the subject appears as an object of the power and knowledge relations and the
ways in which the subject relates to her/him self (the ways the subject constitutes her/him self
as a moral subject).
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LISTA DE IMAGENS
11
SUMÁRIO
Introdução ..................................................................................................................... 13
1. O início da história...................................................................................................... 13
2. A pesquisa .................................................................................................................. 19
2.1. A “descoberta” do Comosg e do Projeto Renascer ............................................ 19
2.2. Sobre jovens e crianças: de onde estamos falando? ........................................... 22
3. Tecendo Horizontes Teóricos .................................................................................... 28
3.1. O Projeto Renascer, o Estado e os Sujeitos ......................................................... 30
3.2. Economia Moral, Subjetividades Morais e Razão Humanitária ......................... 36
4. Estrutura da tese ................................. ....................................................................... 43
Capítulo 1
O Conselho de Moradores do Saco Grande e o Projeto Renascer e algumas
possíveis leituras da “situação de vulnerabilidade e dos sujeitos.............................. 45
1.1. Bem-vindo a Floripa. A cidade e alguns daqueles que nela habitam ...................... 45
1.2. Um passeio pelo Saco Grande ................................................................................. 52
1.3. A Vila Cachoeira ..................................................................................................... 60
1.4. O Conselho de Moradores do Saco Grande ............................................................ 64
1.5. O Projeto Renascer .................................................................................................. 70
1.5.1. Grupos Etários ............................................................................................. 71
1.5.2. As Oficinas .................................................................................................... 73
79
1.5.3. O Projeto e a Rua ..........................................................................................
1.6. O “Público Alvo” do Projeto Renascer .................................................................. 82
1.7. As funcionárias e funcionários do Comosg ............................................................ 89
Capítulo 2
O Trabalho de um Projeto Social ............................................................................... 95
2.1. Tati: Aí eu comecei a entender que o trabalho aqui não era caridade ................... 96
2.2. Nina: Trabalhar e garantir a autoestima ................................................................ 108
2.3. Aristides: Outrora eu era essas crianças ................................................................ 119
2.4. Marilda: Aí a gente começou a construir algumas regras ...................................... 128
Capítulo 3
Brincar direitinho ......................................................................................................... 138
3.1. Onde brincar, quando brincar, quem pode brincar ................................................. 140
3.1.1. O tempo e o lugar do brincar no cotidiano do Comosg ................................ 140
3.1.2. O sujeito criança brincante I .......................................................................... 146
3.1.3. Brincar: direito ou privilégio ......................................................................... 151
3.1.4. O sujeito criança brincante II ........................................................................ 154
3.2. “This is play” X “Is this play?”: brincadeiras em disputa ………………..………. 159
3.2.1. “This is Play”: desenhos, dançar funk e outras brincadeiras ....................... 162
3.2.2. “Is This Play?”: lutinhas e barracos ……………………………............…….. 173
3.2.3. O sujeito crianças brincante III .................................................................... 182
Capítulo 4
Transgressões, resistências e participação. As conversas e o caderno ..................... 190
4.1. Pequenas transgressões? ......................................................................................... 193
4.1.1. Transgressão, resistência e participação ....................................................... 199
4.2. O Rito disciplinar e ético ......................................................................................... 206
4.3. Os cadernos .............................................................................................................. 211
4.3.1. Os meninos do caderno e as meninas ausentes ............................................. 218
4.3.2. Os meninos no centro do caderno ................................................................. 224
4.4. As conversas ............................................................................................................ 229
Considerações Finais
“Os perigos de uma única história” ............................................................................ 240
Referências bibliográficas ............................................................................................ 248
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Introdução
1. O início da história
Uma tese de doutoramento é, invariavelmente, um longo trajeto, marcado por dilemas,
desvios, deslocamentos, elaborações, reelaborações, paradas, paixões, desejos, encontros e
desencontros. Esta tese não é diferente. O caminho que tracei até aqui me trouxe a um lugar
muito diverso daquele que imaginei no início do processo, ao escrever a primeira versão do
projeto da tese. Mas, se “tudo começou desde sempre”, onde estabelecer o corte que me permite
iniciar? Desnecessário dizer que este corte é uma escolha arbitrária, mas, ao mesmo tempo, esta
escolha revela parte do processo analítico; ela traz ao primeiro plano um ponto de tensão a partir
do qual a autora formula as questões que orientam sua escrita. Ao “determinar o momento exato
em que começa uma história”, neste caso, a história desta tese, minha intenção é explicitar os
caminhos de minha construção analítica, explicitar as transformações e reformulações que
constituem a análise.
Assim, nossa história começa com Tistu, um jovem com quem convivi durante minha
primeira pesquisa em uma instituição que aplica medidas socioeducativas em Santa Catarina 1.
Tistu era um rapaz franzino. Quando o conheci, ele já estava na instituição há cerca de dois
meses cumprindo medida socioeducativa de internação por um assalto à mão armada2. Meses
depois do início desta pesquisa, quando minha presença contínua na instituição já era parte da
rotina, Tistu conversava comigo sobre sua vida. Naquela tarde preguiçosa, ao falar de um
período, considerado por ele particularmente difícil de sua vida, Tistu disse que, naquela época
tudo que ele queria era ser um menino normal e ir pra praia com a família no domingo 3.
Contudo, como ele já havia cometido infrações e era usuário de crack na época, sua família não
1 Esta pesquisa de campo teve duração de nove meses e foi realizada para a elaboração de meu Trabalho de
Conclusão de Curso em Ciências Sociais. O trabalho, intitulado “’Os adolescentes que ninguém quer: o cotidiano
dos internados em um Centro de Internamento Provisório”, foi realizado sob a orientação de Maria José Reis
(DASSI, 2009).
2 De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Art. 103: “considera-se ato infracional a conduta
descrita como crime ou contravenção penal”. E, em seu Art. 112, o Estatuto determina: “verificada a prática de
ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas [socioeducativas]: I
– advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida;
V – inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer das
previstas no art. 101, I a VI”.
3 Todas as transcrições de falas (incluindo da pesquisadora), de expressões e termos nativos são grafados em
itálico.
13
o aceitava em casa. Quem o acolheu naquele momento foi um traficante, para quem o jovem
realizava pequenos trabalhos em troca de moradia e droga. Segundo sua narrativa, o traficante
o tratava como um filho porque ele era muito agilizado. Depois de relembrar este período, Tistu
comentou que achava que o fato dele estar institucionalizado não era algo totalmente justo, pois
ele havia tentado ter uma vida diferente, mas ninguém havia lhe dado uma chance, só o
traficante que lhe abrigou. Avaliava que, certamente era preciso responsabilizá-lo pelo assalto,
contudo, se havia chegado ao assalto era porque, no momento que entendia como crucial em
sua trajetória, ninguém havia lhe dado abrigo ou lhe apresentado outro caminho. No entanto,
ele tinha muito medo de sair da instituição e, por essa razão, não havia aproveitado a
oportunidade de fuga que havia tido naquela semana, explicando que, se saísse de lá, não
resistiria a fazer coisa ruim.
O encontro com Tistu marcou minha trajetória como pesquisadora, sempre me
desafiando e colocando em xeque o que produzo. Na tarde que mencionei acima, Tistu falava
sobre sua vida retrospectivamente, organizando e avaliando suas escolhas a partir do contexto
institucional; afinal, estávamos sentados no pátio de um Centro de Internamento Provisório no
qual ele estava cumprindo medida socioeducativa de internação há quase um ano. Tudo isso
deve ser levado em conta, e de certa forma foi, tanto no meu Trabalho de Conclusão de Curso
(DASSI, 2007), quanto em minha Dissertação (DASSI, 2010), na qual novamente me propus a
realizar uma pesquisa com jovens cumprindo medidas socioeducativas.
No primeiro momento da trajetória de pesquisadora, durante a elaboração do TCC, meu
interesse (e único horizonte de possibilidade imaginativa para análise) era pensar a vida de
Tistu, e outros jovens na mesma situação, na instituição, e foi nesse sentido que abordei sua
fala e o que aprendi com eles durante esta pesquisa. Quando entrei no Mestrado, as
possibilidades de problematização aumentaram. Dando continuidade aos trabalhos
desenvolvidos no âmbito do Laboratório de Estudos das Violências (LEVIS), propunha-me a
refletir sobre a questão da juventude no Brasil em diálogo com a temática dos Direitos Humanos
e das violências 4. Cabia, naquele momento, pensar como Tistu, assim como tantos outros
designados pela legislação como “adolescentes em conflito com a lei” haviam se tornado, de
certa forma, analiticamente invisíveis, apesar de sua grande visibilidade como “problema
social”.
4 A noção de “violência” tem sido objeto de reflexão crítica no trabalho de Rifiotis (1997, 1999, 2006, 2008).
Seguindo o caminho proposto por Rifiotis, que sublinha a necessidade de se evidenciar a pluralidade dos
fenômenos designados por tal rótulo, utilizo o termo no plural. Não para evocar uma tipologia, mas para acentuar
o caráter plural e apontar para a homogeneização que o seu uso no singular reflete.
14
Ao falar de invisibilidade analítica, exagerava os argumentos de Rifiotis tanto em
relação aos estudos situados dentro do campo dos Direitos Humanos (Rifiotis, 2007), quanto à
temática das violências (RIFIOTIS, 1997,1999, 2006, 2008). Se exagerava o argumento era no
intuito de criar uma tensão, um desconforto que permitisse deslocar os termos de um debate
que me pareciam estar postos de antemão, pois entendia que estes sujeitos eram capturados ou
sob a forma de “vítimas” ou sob a forma de “vitimadores”. Ou seja, as considerações de Rifiotis
me permitiam formular questões aos interlocutores da pesquisa que me pareciam estar ausentes
na maioria dos estudos sobre os ditos “adolescentes em conflito com a lei”.
Quanto à forma de “vítima”, percebia que, no campo dos debates sobre Direitos
Humanos, estes jovens eram muitas vezes definidos, e suas ações caracterizadas, pela “falta”
de oportunidade, de escola, de afeto, de dinheiro, de informação, de família, de trabalho. Em
outras palavras, estes sujeitos me pareciam ser problematizados exclusivamente a partir de
contextos de falta, estrutural e individual. Ou seja, pensados em relação aos seus direitos
violados. Neste sentido, o trabalho de Rifiotis abria um novo espaço de problematização. Ao
tratar da centralidade dos Direitos Humanos no mundo contemporâneo e sua tradução em
termos jurídicos, Rifiotis (2007) aponta a necessidade de pensarmos os sujeitos
contextualmente: seus dilemas, suas estratégias, as reapropriações que fazem dos discursos e
práticas judicializantes. Ou seja, deslocar o foco dos direitos dos sujeitos para os sujeitos de
direitos trazendo, para o primeiro plano da análise, a “dimensão vivencial”.
Contudo, esta não era minha única inquietação; se por um lado entendia que era preciso
evitar a captura destes jovens sob a forma de “vítimas”, por outro, era também necessário evitar
que fossem capturados enquanto “vitimadores”. Neste sentido, meu problema inicial girava em
torno de algo que eu havia percebido na pesquisa de graduação e que eu havia ignorado ao
escrever meu TCC. Refiro-me ao que os sujeitos descreviam como “adrenalina”, ou seja, uma
forte emoção que diziam sentir ao cometer um ato de transgressão. Outro fato que me fez refletir
é que, entre eles, identificar-se como “bandido”, “ladrão” ou “trafica” era algo importante e,
algumas vezes, valorizado; eles se afirmavam e se definiam como tal. Um exemplo disso é a
expressão “papo de bandido”, que era usada para evocar a seriedade da fala cotidianamente
entre eles. Além disso, alguns tinham tatuagens do símbolo de seu “crime” favorito 5 (DASSI,
2007) enquanto outros os desenhavam em seus cadernos, cartas, bonés. Ao terminar minha
pesquisa no Centro de Internamento Provisório e escrever meu relato, “ignorei” os ruídos
5Segundo os jovens, o desenho de um palhaço é roubo; a teia de aranha é furto; uma santa é tráfico; uma caveira
com um punhal atravessado é “matador de polícia”; uma rosa com um punhal atravessado é “assassinar a mulher
amada” (DASSI, 2007).
15
produzidos por essas noções; primeiro, porque o foco da pesquisa era o cotidiano na instituição,
mas principalmente porque não sabia como equacionar estas informações. Ao refletir
retrospectivamente sobre esta questão, percebo que meu maior desconforto dizia respeito ao
que hoje entendo como um dilema ético e moral. Meu maior receio, naquele momento, era que,
ao escrever sobre “adrenalina”, sobre os momentos em que avaliavam positivamente a “vida
loka”, eu estivesse fornecendo elementos para discursos que os capturam como “sujeitos
violentos”, “bandidos”, “perigosos”. Preocupava-me tecer uma análise que reiterasse a imagem
deles enquanto “vitimadores”, imagem que, graças ao medo que inspira socialmente, acabaria
por obliterar outras dimensões que também estavam presentes. Em outras palavras, meu maior
dilema era como lidar com estas dimensões de suas experiências sem que estes sujeitos fossem
reduzidos à uma delas. Novamente, encontrei no diálogo com os pesquisadores do LEVIS e no
trabalho de Rifiotis (1997,1999, 2006, 2008), sobre o campo de estudo das violências, um
caminho para minha análise. Já que, aqui, como em relação às discussões sobre Direitos
Humanos, também era convidada a realizar um movimento que trouxesse ao primeiro plano da
análise a experiência dos sujeitos, como caminho para problematizar as práticas e experiências
dos sujeitos que vivenciam situações denominadas “violência”.
Foi tendo em mente estas questões que realizei minha pesquisa para o mestrado, cujo
resultado foi a dissertação intitulada “‘É, vida loka irmão’: moralidades entre jovens cumprindo
medidas socioeducativas”. A partir da experiência no campo, em duas instituições que recebem
jovens cumprindo medidas socioeducativas, percebi que os jovens, ao acionarem categorias
como “vida loka” – categoria que foi o eixo de minha análise -, apontam para a pluralidade e
complexidade de suas experiências e avaliações. Pois estão imbuídas nesta noção múltiplas
dimensões, que “falam” sobre desigualdade social; discriminação, bem e mal, “vida do crime”
como destino e escolha; fruição e sofrimento; orgulho e vergonha.
Tistu, como os outros jovens institucionalizados com os quais convivi, podem ser
vítimas de uma sociedade desigual e “adolescentes em conflito com a lei”, mas são muito mais
do que isso. Pensar a partir da perspectiva das moralidades, como fiz em minha dissertação,
implica pensar sujeitos que se percebem (e são percebidos) como vítimas, agentes criativos,
filhos, filhas, pais, mães, rappers, graffiteiros, trabalhadores, pastores, bandidos, alunos, etc.
Entender isso me permitiu deslocar a discussão do lugar da vitimização e do vitimador. Mas
também lançou novos desafios. O maior deles diz respeito a como traduzir a pluralidade da
experiência dos sujeitos sem produzir uma pretensa unidade totalizadora sobre eles (RIFIOTIS;
16
VIEIRA; DASSI, 2014). Estes desafios têm sido trabalhados em conjunto com Rifiotis e Vieria
ao longo dos últimos anos e nossas reflexões alimentam as questões que serão tratadas aqui 6.
Dando continuidade às reflexões desenvolvidas na dissertação, Tistu voltou à minha
memória enquanto reelaborava o projeto de pesquisa do doutoramento, pois, ao elaborar sua
trajetória, ele evidenciava um vai-e-vem entre referenciais, ou melhor, configurações de sujeito
(menino normal, filho, usuário de crack, adolescente infrator, avião agilizado, vítima) a partir
dos quais ele avaliava suas experiências. Isso não é tudo, pois a fala de Tistu evidencia que
estamos falando de relações, isto é, estas configurações de sujeitos são relações. Ou seja, ser
um “menino normal” não é ser um determinado “tipo” de sujeito, mas estar inserido em um
conjunto de relações que o constituem e acionam um campo de possibilidades, como ir à praia
aos domingos com a família. Mas isto não significa que tais relações possam ser determinadas
ou avaliadas como termos fixos, previamente. Elas são contingência e potencialidade. Afinal,
em sua narrativa, vemos que envolver-se com o tráfico o impossibilitava de estar inserido em
sua família enquanto “filho”, mas, ao mesmo tempo, possibilitou criar relações familiares com
o traficante que o abrigou. E aqui reside um ponto chave: como entender que envolver-se com
o tráfico pode ser “bom” e “mau” (na concepção de Tistu), ao mesmo tempo? Nesta perspectiva,
importa compreender e elucidar não um arcabouço de regras, normas e valores, mas arranjos,
configurações contingentes e instáveis que, mais do que determinar ações, funcionam como
condições de possiblidade (Fassin, 2009).
Além disso, a reflexão sobre jovens institucionalizados me levou ao questionamento da
leitura que fazemos sobre suas vidas do outro lado do muro das instituições. Tendo isso em
mente redigi, juntamente com meu orientador, a primeira versão da proposta de pesquisa da
tese7. O projeto apresentado ao órgão financiador tinha como objetivo central uma reflexão
sobre a dimensão vivencial dos jovens caracterizados pelo Estatuto da Criança de do
Adolescente (ECA) como “adolescentes em situação de risco ou vulnerabilidade social”, a
6 Um primeiro conjunto de trabalhos foi publicado no livro “Um olhar antropológico sobre violência e justiça”
(RIFIOTIS; VIEIRA, 2012). Antes dele tivemos oportunidade de refletir sobre a questão em trabalhos conjuntos
publicados: nos Anais da VIII Reunião de Antropologia do Mercosul (Buenos Aires, 2009), intitulado “'Papo de
bandido' e a 'vida loka': ensaio sobre moralidades entre 'adolescentes em conflito com a lei' cumprindo medida
socioeducativa de internação em Itajaí” (RIFIOTIS; DASSI: 2009). E “'Vivendo no veneno’: ensaio sobre os
regimes de modalidades entre ‘adolescentes em conflito com a lei’ cumprindo medida socioeducativa em Santa
Catarina”, nos Anais da ANPOCS de 2010 (RIFIOTIS; DASSI; VIEIRA, 2010). Finalmente, uma versão mais
apurada de nossas reflexões, intitulada “Judicialização das relações sociais e configurações de sujeito entre jovens
cumprindo medidas socioeducativas em Santa Catarina”, foi publicada em 2018 (RIFIOTIS; VIEIRA; DASSI,
2018).
7 Proposta apresentada ao CNPq através do edital 70/2009, “Programa de Expansão da Pós-Graduação em Áreas
Estratégicas”, e foi submetido ao CNPq dentro do ítem destinado a fomentar pesquisas na área temática de
Segurança Pública.
17
partir de um enfoque sobre moralidades. A ideia era ter, como interlocutores, “jovens
associados a contextos de exclusão social e violências”; daí a proposta de realizar a pesquisa
entre jovens moradores de bairros populares no município de Florianópolis.
Contudo, é preciso ter cautela e tornar explícito o que me permitiu dar este “pulo” da
instituição para os bairros populares de Florianópolis. Os jovens institucionalizados,
cumprindo medidas socieducativas, com os quais trabalhei anteriormente, e os jovens
moradores dos bairros populares, com os quais me propunha a trabalhar não são,
necessariamente, os mesmos, assim como, certamente, os jovens moradores de bairros
populares não são todos iguais. Contudo, há algo que parece ligá-los e relacioná-los a partir das
noções de “juventude”, “periferia”, “pobreza”, “violência” e “criminalidade”, tanto na
elaboração de políticas públicas quanto em estudos acadêmicos. Esta relação precisa ser
explicitada. Já que, mais do que sujeitos pré-definidos por estas categorias, estamos falando de
um conjunto de sujeitos que é desenhado por Políticas Públicas, programas e intervenções
sociais, análises, etc., e que produzem este grande conjunto exatamente a partir da articulação
destas categorias, abordando o conjunto, de modo unívoco, enquanto “problema social”.
Portanto, trata-se de categorias compartilhadas por aqueles que são responsáveis pelas práticas
de gestão e modalidades de atenção às crianças e adolescentes e por aqueles cujo intuito é
refletir sobre elas. Além disso, é importante ressaltar que tais categorias são acionadas também,
em certos momentos, pelos jovens.
Hoje, ao redigir esta tese, depois de uma experiência de campo que me levou a caminhos
que eu não vislumbrava ao elaborar o projeto de pesquisa, Tistu me propõe novas questões, que
emergem do encontro entre ele, os interlocutores desta pesquisa e o campo da teoria social,
como veremos a seguir.
18
2. A pesquisa
Como dito anteriormente, a ideia inicial era realizar a pesquisa com “jovens moradores
de bairros populares em Florianópolis”8. Como a proposta não era realizar uma pesquisa em
uma instituição específica, num primeiro momento, uma estratégia possível que imaginei como
apropriada foi a “amostragem bola de neve” (BECKER, 1999). Ou seja, a partir de um contato
inicial, chegar a outros jovens. Eu esperava que este contato inicial fosse se concretizar através
de alguns amigos que residem em bairros populares do município.
Contudo, após semanas de tentativas frustradas e encontros desmarcados eu começava
a ficar preocupada; meus esforços eram sempre frustrados. Em uma conversa com uma amiga,
Laura, na época coordenadora da Unidade de Saúde da Lagoa da Conceição, em Florianópolis,
encontrei uma solução. Laura sugeriu que eu entrasse em contato com a coordenação do Posto
de Saúde do Saco Grande, bairro também de Florianópolis. Segundo Laura, a equipe do Posto
do Saco Grande desenvolvia vários projetos e atividades com adolescentes e eram conhecidos,
entre os profissionais da área da Saúde Pública em Florianópolis, por seu trabalho com eles. A
situação não era ideal, mas minha angústia era tanta que decidi tentar. Entrei em contato com a
coordenadora do Posto de Saúde e expliquei meu projeto e a intenção de tentar uma entrada em
campo a partir dali. Naquele momento, pensava em participar das atividades promovidas pelo
Posto de Saúde (que ainda eu não sabia muito bem quais eram) para estabelecer contato com
jovens e iniciar (finalmente) minha pesquisa.
Marli, a coordenadora, foi muito receptiva, convidou-me para conhecer a Unidade de
Saúde e me apresentar para a equipe. Mas antes disso era preciso a aprovação do Comitê de
Ética, ligado à Secretaria da Saúde. Algumas semanas depois, munida da autorização da
Secretaria de Saúde, parti para o Saco Grande, ansiosa para começar a pesquisa. Marli me
recebeu muito bem e, ao almoçarmos juntas, ela me apresentou para Danilo, o médico que,
segundo ela, se dá muito bem com os adolescentes, e para Ana Paula, a enfermeira responsável
pela implementação das ações propostas para essa faixa etária junto às escolas locais. Em um
8 Sempre atenta ao fato que os “jovens moradores de bairros populares” não são uma “tribo” no interior de um
conjunto maior. Neste sentido, entendo que é a própria pesquisa que, ao abordá-los enquanto um “objeto de
estudo”, desenha as linhas que os constitui enquanto grupo. Contudo, entendo também que não sou a única a
abordá-los enquanto um grupo. Como dito anteriormente, os jovens moradores das periferias de cidades brasileiras
são abordados por Políticas Públicas, ONGs, estudos antropológicos, pela mídia, etc., não só como um grupo, mas
como “problema social”. É este movimento que nos permite criar tal grupo e vinculá-lo a questões (e avaliações)
específicas que me interessa. Isto identifica uma questão interessante pois meu objeto de pesquisa é um movimento
do qual faço parte.
19
primeiro momento, elas sugeriram que eu passasse a acompanhar os grupos de gestantes, já que
havia adolescentes grávidas que frequentavam o grupo. Também fui convidada a acompanhar
Ana Paula nas visitas que teria de fazer em breve a uma das escolas de ensino médio e
fundamental do bairro. Um pouco mais animada e tranquila, voltei alguns dias depois para
participar do grupo de gestantes e fui com Ana Paula até o Colégio Estadual Professora Laura
Lima, para ajudá-la a medir a altura e o peso dos alunos naquela semana.
Assim, iniciei o trabalho de campo e algumas semanas se passaram. A esta altura, estava
novamente preocupada com a pesquisa e com o que começava a achar que seria minha
“incapacidade” em estabelecer contato com as jovens do grupo de gestantes. Já havia
participado de duas reuniões em três grupos diferentes e ainda não havia conseguido “nada”.
As reuniões dos grupos demoravam a acontecer, pois eram a cada duas semanas, e eu só
encontrava as jovens nessas ocasiões. Vivia com a sensação de que isso tudo era muito pouco,
que seria muito difícil encontrar um caminho para a pesquisa por aí.
Foi quando, durante uma de minhas visitas ao Posto, encontrei Danilo, o médico que
Marli havia me apresentado, pelos corredores. Conversamos sobre a pesquisa e Danilo sugeriu
que eu procurasse o Conselho de Moradores do Saco Grande (Comosg), pois, segundo ele, o
Conselho desenvolvia um trabalho com jovens. Ele me passou o contato de Tatiana, a
coordenadora do projeto, dizendo que era com ela que eu deveria falar, porque a Tati sabe tudo
e conhece todo mundo aqui, principalmente as crianças e os adolescentes.
Angustiada como estava, fui naquela manhã mesmo até o Comosg “em busca de
jovens”, sem saber muito bem o que iria encontrar. Chegando lá, fui recebida por Tati, na sala
de coordenação, onde conversamos por mais de duas horas, no final da manhã, numa situação
que, hoje, sei ter sido bem atípica no Comosg, já que não fomos interrompidas mais do que três
ou quatro vezes por crianças. Como ela me explicou naquela oportunidade, Tati era
coordenadora do Projeto Renascer, um projeto social, desenvolvido pelo Conselho de
Moradores do Saco Grande, que recebe crianças e jovens moradores do bairro no contraturno
escolar. Ou seja, um projeto que atende, diariamente, cerca de 200 crianças e adolescentes
(entre 6 e 14 anos), oferecendo a eles e elas oficinas de artes, esportes, reforço escolar e
refeições. Naquele momento senti um enorme alívio; parecia que eu tinha “encontrado meu
campo! ”. Além disso, Tati não poderia ter sido mais aberta à ideia da pesquisa; a conversa
fluiu com facilidade. Depois que delineei os fundamentos do projeto, ela me contou inúmeras
histórias sobre crianças e jovens moradores do bairro.
Tati me impressionou naquele dia não só pelo conhecimento que tinha sobre as crianças,
jovens e suas famílias, mas pelo modo como elaborava suas histórias, seus dilemas e os
20
problemas do bairro. Ficou acertado que eu lhe enviaria o projeto de pesquisa e ela levaria a
questão para ser discutida na próxima reunião pedagógica, já que era preciso que todos as
funcionárias e funcionários aprovassem a pesquisa. Dias depois, liguei para Tati e ela me avisou
que estava tudo certo e poderia começar a frequentar a instituição quando quisesse.
O primeiro dia de pesquisa no Comosg foi gritaria, movimento, confusão, crianças,
muitas “crianças” e um pouco de “jovens” (categorias a partir das quais eu os descrevia). Ao
menos foi assim que me senti ao deixar a instituição no final da tarde, exausta, gritos e risadas
ecoando na minha cabeça na longa jornada de ônibus na volta para casa. Naquela tarde, passei
a maior parte do tempo na sala da coordenação, observando e ajudando algumas crianças a fazer
seus deveres da escola, fazendo colares de miçangas com outras, respondendo a perguntas das
crianças sobre o que eu estava fazendo ali, ouvindo suas histórias e conversando com Tati. O
restante do tempo, brinquei de corda, ou melhor, trilhei a corda para as crianças, fui convocada
algumas vezes por elas para organizar a fila, resolver disputas e separar brigas.
Esta foi a rotina das primeiras semanas: chegava na instituição e, antes que eu pudesse
perceber o que estava acontecendo, estava envolvida em alguma atividade, ouvindo histórias
sobre o final de semana, sobre filmes, desenhos e brincadeiras, trilhando corda, jogando vôlei,
fazendo bijus, desenhando, colorindo, assistindo oficinas, sentada na mesa da coordenação
ajudando crianças com seus deveres da escola, indo de um lado para o outro, mediando brigas,
organizando filas. Sempre com a impressão de que não estava fazendo nada, de que mal
encontrava “jovens”, de que tudo era confusão, gritos, risadas, brigas. Perdida no cotidiano,
voltando diariamente para o Comosg e lá ficando o tempo todo, sem “sair para o bairro”, como
eu gostaria, voltava para casa certa de que não estava fazendo o trabalho de campo da forma
como deveria, do modo como imaginava que seria necessário (tendo em mente meu projeto),
com os interlocutores que eu imaginava previamente, “descobrindo” o que deveria. A cada dia
que passava percebia mais e mais que a busca por “jovens na rua” me havia levado a encontrar
“crianças em uma instituição”. A rotina na instituição não mudou até o final da pesquisa.
Durante os próximos dois anos, chegar lá era ser inserida, imediatamente, nas atividades diárias,
nas brincadeiras, oficinas, conversas, brigas, problemas, festas, reuniões. Desse modo, minha
busca por “jovens” terminou e não os encontrei; ao menos, não como os imaginava, mas
encontrei muitas outras coisas, que constituem a presente tese. Contudo, antes que possamos
passar a elas, gostaria de trazer ao primeiro plano algumas das questões que emergem do relato
de minha entrada em campo.
O início de minha pesquisa foi marcado pela procura obsessiva por “jovens” que
estivessem “fora de instituições” - um pouco como o Capitão Ahab à procura de Moby Dick.
21
Isso porque, para além da angústia e do esforço normal a qualquer trabalho de campo, o desejo
de encontrar os ditos “jovens” me impediu, por muito tempo, de perceber que a rotina no
Comosg não era um amontoado de “nadas”, como eu imaginava no início, muito pelo contrário.
Mas o que me impediu, por tanto tempo, de perceber isso? Por que minha maior preocupação
foi encontrar “jovens de verdade”? Por que a obsessão com a ideia de “fora da instituição”?
Roberto Cardoso de Oliveira (2006), em um de seus ensaios mais lidos, “O trabalho do
antropólogo: olhar, ouvir e escrever”, chama a atenção para o que descreve como a
“domesticação teórica” do olhar do pesquisador, que seria a primeira experiência do
pesquisador no campo. Ou seja, nosso olhar, enquanto ato cognitivo, não é um olhar ingênuo,
mas um ato de natureza epistêmica, já que informado pelo esquema conceitual de nossa
disciplina. Desta forma, seguindo Cardoso de Oliveira, podemos afirmar que, ao iniciarmos a
pesquisa empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos nosso olhar, “já foi previamente alterado
pelo próprio modo de visualizá-lo”. Mas creio que podemos ir além, e afirmar que, no momento
em que chegamos no campo, nosso objeto de estudo (e o próprio campo) não foi apenas alterado
pelo esquema conceitual de nossa disciplina, mas foi construído enquanto objeto de estudo por
este esquema conceitual. Lembro-me desta discussão aqui, pois acredito que minha busca cega
por “jovens fora da instituição” está, de certa forma, ligada à construção da juventude e da
infância (e crianças) enquanto objetos analíticos e a um determinado conceito de instituição (e
rua), que é preciso problematizar.
22
cada categoria – criança, adolescente, jovem, maiores, menores, meninos e meninas – era
acionada a partir de relações específicas e implicava em possibilidades, avaliações e
características também específicas; seria necessário explorar estas relações e suas implicações.
Portanto, procuro utilizar os termos como são acionados na situação que descrevo.
Mas isso não resolvia de todo o meu problema, já que, ao voltar para casa e olhar para a
estante de livros, percebia que havia ali uma linha que separava estes termos em dois blocos,
antropologia da criança e da infância 9 e estudos da juventude. Dois, ou melhor, três campos
temáticos distintos; ao menos nas publicações com as quais estava familiarizada. Aquilo que,
durante o dia na instituição, era um fluxo contínuo de posições contingentes e intercambiáveis,
muito difícil de fixar, era, na minha estante de livros, prateleiras distintas, nas quais os livros
se encaixavam com facilidade, sem as confusões que eu experienciava em campo. Claro que eu
não esperava que meus interlocutores fossem se encaixar passivamente nos livros da minha
estante, mas me pareceu importante abordar e questionar esta separação, como procuro fazer a
seguir.
O que entendemos como “estudos da juventude” ganham relevo a partir da Escola de
Chicago, que aborda, principalmente, a questão da “delinquência”, pensando a especificidade
de uma juventude sujeita à condição urbana. Observa-se que uma das concepções que estrutura
e cria a percepção sobre a juventude em grande parte da literatura especializada é a de “crise
potencial” (ABRAMO, 1994; FORACCHI, 1972; MORIN, 2007; ERIKSON, 1987). Verifica-
se, curiosamente, que paralelamente a essa discussão da juventude, associada ao referente de
“rebeldia”, “problema” e “crise potencial”, forjaram-se outras teorizações que atribuem a ela a
tarefa de renovação social e contraposição à sociedade de consumo (ABRAMO, 1984;
DIÓGENES, 1998; GONÇALVES, 2005). A juventude aparece, assim, como uma categoria
especialmente destacada enquanto ícone da ruptura intergeracional, uma inflexão marcada pela
duplicidade de sua potência não definida. Esta duplicidade aparece muitas vezes articulada pela
ideia de “violência”. É no envolvimento, ou não, com a “violência”, que a potência da juventude
acaba sendo definida. A análise de Castro (2009) sobre a parceria entre o governo e a Unesco
para fomentar pesquisas sobre a “juventude brasileira”, ajuda-nos a pensar sobre esta questão.
Todos os estudos iniciais faziam parte da série “Juventude, Violência e Cidadania”. Segundo o
9 Categorias que, do ponto de vista existencial, correspondem a um mesmo ser, mas que, do ponto de vista
epistemológico, correspondem a objetos diferentes (BRITO, 2014). Segundo Schuch, Ribeiro e Fonseca (2013), a
antropologia da criança e a antropologia da infância são dois campos de estudos distintos, mas interligados. As
distinções entre estes campos surgiram de forma a problematizar “de um lado, as experiências e a produção de
sujeitos classificados como ‘crianças’ e seus universos relacionais e, de outro lado, a constituição de um espaço
múltiplo de autoridades e modos de gestão das ‘infâncias’” (p.205). Ou seja, na verdade, não eram apenas dois
campos temáticos distintos, mas três.
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autor, estas publicações da Unesco influenciaram na definição do que seria o “jovem violento”
e, consequentemente, o “jovem não violento”. Estabelece-se, assim, duas maneiras de ver a
juventude: a primeira na qual a cultural juvenil, entendida como formas de sociabilidade dos
grupos juvenis – como certas linhas do funk e do rap – é positivada, enquanto “movimentos
reivindicatórios”, e a outra, que foca nas formas de socialidade negativas, isto é, nas práticas
que são consideradas “violentas” – como certas formas de funk “pancadão” e sua relação com
substâncias psicoativas – são os “delinquentes”. É interessante notar que, assim que surgiu, o
setor de pesquisas da Unesco no Brasil já iniciou com estudos que vinculavam juventude à
“violência” – de certa forma, o pressuposto já estava dado; bastava “identificar” as práticas
“violentas” dos jovens e “explicar” suas razões.
Cabe então explorar, ao longo da análise, se esta concepção auxilia de algum modo a
compreender as relações que observei em campo, em que momentos, e por quem, esta ideia de
“rebeldia”, de “crise” é acionada. Ou mesmo, será que é acionada? Será que, para meus
interlocutores, há algo que marque uma ruptura intergeracional?
Se as concepções de juventude estão marcadas pela ideia de “crise em potencial”,
segundo Hardman (1973) e Hirschfeld (2002), por muito tempo as crianças foram abordadas
enquanto “receptáculos dos ensinamentos dos adultos”. Contudo, entendo que, já em Mauss
(2003) encontramos o cuidado de se pensar a criança como alguém que age, em chamar a
atenção para os vários sentidos que podem estar relacionados com ser criança. Além disso, tanto
Margaret Mead quanto Ruth Benedict, no início da década de 1930, começam a questionar a
universalidade das experiências das crianças. Entretanto, segundo Nunes e Carvalho (2007),
assim como Cohn (2005), é a partir dos anos 1980 que a questão central da Antropologia da
Criança passa a girar em torno da agência da criança e da participação mais ampla dela no
universo das relações sociais 10.
É interessante ressaltar que, numa primeira aproximação, é possível afirmar que os
estudos da juventude não partem de uma crítica à visão universal de juventude 11, pois surgem
exatamente da ideia de que a condição urbana cria uma situação nova de jovens “não
adaptados”, com formação de gangs, comportamentos “desviantes”, “subculturas”, etc. Esta
posição difere do que acontece com os estudos de infância, que partem de uma crítica à ideia
10 Tendo em mente que é preciso repensar estes conceitos à luz do movimento teórico mais amplo da antropologia
(COHN, 2005; TOREN, 1993).
11 Penso que, mesmo sentido, o trabalho de Margaret Mead em “Adolescência, Sexo e Cultura em Samoa” é
pioneiro neste sentido. Publicado em 1928, o livro aborda infância e juventude criticando também a pretensa ideia
de uma universalidade de uma fase rebelde da juventude.
24
idealizada de infância, tida como universal 12. Parece que não há esta ideia idealizada de
juventude, por ser uma categoria que surge já com a marca da rebeldia, da não adaptação aos
padrões, principalmente a partir dos trabalhos da Escola de Chicago13. Em relação à discussão
que elaboro aqui, cabe explorar os efeitos que estas concepções de criança, infância e juventude
produzem quando acionados.
Contudo, há questões em comum que atravessam estas áreas temáticas. Primeiramente
observamos que, tanto em relação à juventude, com a Escola de Chicago, quanto em relação à
infância, a partir do final do século XIX, há um conjunto diverso de produções que transformam
a atenção a esta parcela da população numa questão social – objetivadas nos anseios em torno
das crianças e jovens pobres (SCHUCH et al, 2014; RIZZINI, 1997). Isto é, a constituição
destes campos temáticos é impulsionada por um conjunto de problemáticas com grande
visibilidade social. Há dois pontos aqui que gostaria de sublinhar: primeiro, como nos lembra
Brito (2014), tanto a noção de criança, quanto a de jovem, nesta perspectiva, estão ligadas à
“uma compreensão de que criança (e todas as outras categorias que indicam uma etapa de
vida, num ciclo que possui características específicas de acordo com um corpo que se
transforma e com lugares sociais que passa a assumir) é um indivíduo que necessita de
cuidados e de intervenções específicos a fim de se desenvolver de acordo com as metas
esperadas no quadro funcional do ciclo de vida, com predomínio da biologia” (BRITO, 2014,
p. 153).
Temos então que as noções de criança, infância e juventude estão, num primeiro
momento, ligadas à noção de ciclo de vida sob o qual é preciso muitas vezes intervir e cuidar
para garantir o seu pleno desenvolvimento. Mas é também uma parcela específica dessa
população que ganha visibilidade, pois são os jovens e crianças pobres aqueles que podem
representar “perigo” e que são abordados como sujeitos “vulneráveis”, ou seja, “em perigo”. É
a entrada da vida e da biologia no campo da política, como assinala Foucault (2000), com o
conceito de biopoder. A gestão e o cuidado de crianças e jovens, entendido nestes termos, passa
a ter um duplo objetivo, disciplinar indivíduos e controlar populações. É neste espaço que
encontramos outro ponto em comum entre muitos estudos situados nestes campos temáticos: a
atenção e reflexão sobre os modos de gestão dessa parcela da população, sobre as categorias
jurídicas a elas direcionadas e as experiências daqueles que são objetos de tais intervenções (e
a partir delas também se constituem e são constituídos enquanto “sujeitos de direitos”).
12Neste sentido, o trabalho do historiador Philippe Ariès (1981) tem grande destaque.
13Agradeço aqui a Antonella Imperatriz Tassinari por sua sugestão em relação a como pensar esta divisão entre
estudos da juventude e os estudos da infância.
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Vale ressaltar ainda que as crianças, adolescentes, jovens e adultos, entendidos como
grupos etários, e as características a eles atribuídos, devem ser pensadas tendo-se em mente a
dinâmica etária global da sociedade na qual estão inscritas, assim como os valores associados
a cada uma delas (RIFIOTIS, 1995). Deste modo, falar sobre jovens e crianças implica em
perceber que estas categorias se inscrevem em uma dinâmica etária na qual os diferentes grupos
etários se definem de modo recíproco (os jovens só existem em relação às crianças e aos adultos
e vice-versa). Importa aqui entender o que significa este posicionamento, quais as relações entre
os grupos e quais os processos sociais que os definem, também para a pesquisadora.
É neste contexto de problematização que gostaria de situar o presente trabalho. Entendo
que a contribuição que surge do diálogo com meus interlocutores proporciona uma reflexão
sobre os modos de gestão da infância e juventude, bem como sobre os sujeitos da pesquisa
enquanto produtores de relações sociais e não apenas como objeto de circuitos diversos de
intervenções e cuidados. Ademais, a grande “confusão” que encontrei em campo – que levou
tantas vezes a perguntar, afinal, quem são as crianças, adolescentes, jovens, maiores, menores,
meninos e meninas – pode contribuir para questionar (e tencionar) estes conceitos. Mesmo
porque, a atenção à linguagem categorial acionada (criança, adolescente, jovem) nos ajuda a
mapear como estes sujeitos são definidos (e se definem), como são valorados e como são
geridos.
Além disso, a rotina no Comosg também me obrigou a admitir que o que eu entendia,
sem ao menos me dar conta, como uma oposição excludente – instituição versus rua – precisava
ser explicitada e repensada. Confesso que fui uma leitora dedicada de Goffman (2001) durante
a escrita de meu Trabalho de Conclusão de Curso (DASSI, 2007). Seu conceito de “instituição
total” estava de tal forma incorporado que já havia se tornado invisível. Prova disso era a
oposição que perdurava entre a instituição e a rua e que gerava minha angústia no início do
trabalho de campo. Certamente entendia que o Conselho de Moradores não era uma “instituição
total”, mas a ideia de instituição, mesmo que “aberta”, marcando uma separação nítida e
implicando em comportamentos muito diferentes, perdurava e me impedia de ver o óbvio.
Contudo, o Comosg não tem muros, e por isso é sempre uma negociação determinar se, em um
dado momento, crianças estão na rua ou no Comosg. Uma negociação que gera inúmeras
polêmicas, tanto entre os educadores e as crianças quanto entre os moradores do bairro, que
algumas vezes desligam seus filhos do Projeto por entender que eles ficam o tempo todo na rua,
como me explicou uma mãe durante uma das festas organizadas pelo Comosg para os
moradores do bairro.
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O espaço físico do Comosg era uma das únicas áreas de lazer do bairro, com dois
campos de futebol (um de areia e um de grama) e um pequeno parquinho. Nos finais de semana,
nas férias e feriados, é ali que muitas crianças e jovens ficam soltando pipa, jogando bola,
conversando, namorando. Muitas vezes, para eles, estar ali não é estar no Projeto Renascer,
mesmo em dias de semana e no horário em que se entende que estão no Projeto, como explicou
Bernardo para uma das professoras certa tarde, eu não vim pro Comosg hoje, tô brincando na
rua, minha mãe sabe, pode ligar, ela deixou eu faltar o projeto hoje. Com o tempo percebi,
então, que o mais importante não era ir em busca de jovens “fora da instituição”, mas
compreender o que as ideias de “instituição” e “rua” agenciavam, o que produziam e como
eram acionadas. O que “estar no Comosg” significava para as crianças, os jovens, seus
familiares, para os moradores do bairro e para os funcionários? O que estar na “rua” lhes
permitia?
Desta forma, a busca (felizmente frustrada) por “jovens fora da instituição” me obrigou
a formular a pergunta que inicia este ítem “Sobre jovens e crianças: sobre quem estamos
falando? ”. Apesar de não ser o ponto central da tese, este questionamento também a constitui,
uma vez que tenciona, a todo momento, a construção de seu argumento. Pois ser considerado
(ou se considerar) jovem, criança, adulto, maior, menor, menino, menina, adolescente, em
determinado momento e a partir de um lugar específico, é acionar um conjunto de valores,
avaliações, possibilidades, modos de gestão, obrigações, desejos.
Além disso, foi preciso deslocar o olhar, refocar a cena a partir de outras construções
teóricas. Perceber que é possível abordar o Comosg e o Projeto Renascer não apenas enquanto
uma instituição nos moldes de Goffman, mas enquanto uma iniciativa política, uma “tecnologia
de governo”, ou seja, um conjunto de agenciamentos, de atravessamentos, práticas e discursos,
impregnados de relações de poder, que constituem “formas de intervenção destinadas a guiar,
dirigir, orientar, capacitar e regular sujeitos, populações e problemáticas” (FONSECA;
JARDIM; SCHUCH; MACHADO, p.10, 2016). Neste sentido, o Projeto Renascer pode ser
também (e é) parte do sistema de gestão da infância e juventude. Ou seja, é uma das iniciativas
que ajudam a compor o Sistema de Garantias de Direitos das Crianças e Adolescentes e o
Sistema Único de Assistência Social no Brasil, como veremos a seguir.
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3. Tecendo Horizontes Teóricos
Aqui tenho tudo que quero, tem projeto, tenho muitos amigos e estou fazendo uma horta na
casa da vizinha. Eu também ajudo ela, porque ela tem problema no coração e não pode fazer
força, então ajudo ela e ela me dá um dinheirinho toda semana. Então tem tudo né! E ainda
tem praia no verão, eu nunca tinha ido na praia, mas é baita.
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Heitor estava feliz com sua vida, tinha tudo: amigos, uma pequena fonte de renda, praia
e o projeto. Parte de seu tudo era o Comosg, o projeto, o campinho, onde foi jogar futebol já no
primeiro dia em que chegou ao bairro. Para Heitor, frequentar o Projeto Renascer era uma
oportunidade de fazer atividades diversas das que tinha na escola e de aprender coisas que
considerava divertidas. Já para sua mãe, matricular os filhos no Projeto Renascer foi um modo
de garantir que ali seriam cuidados do modo que considerava adequado, com um contato mais
próximo com as profissionais responsáveis por seus filhos do que a escola lhe oferecia.
O Projeto Renascer, desenvolvido pelo Conselho de Moradores do Saco Grande, que tanta
diferença fez na vida de Heitor, é uma iniciativa que vem sendo desenvolvida, ao longo das
últimas três décadas. Como veremos, a implementação do Projeto se dá em um momento de
inflexão da atuação do Conselho de Moradores no bairro. Como aconteceu em outras
localidades do município, entre os anos 1990 e a primeira década do século XXI, o Comosg
passou a atuar como mediador para a elaboração e implementação de projetos sociais
(SCHERER-WARREN; ROSSIANUD, 1999), distanciando-se das práticas clientelistas,
predominantes até então. Isso porque, segundo Viana (2003), os Conselhos Comunitários foram
organizações criadas, por volta da década de 1970, pelo Estado com o intuito de viabilizar a
prestação de serviços à população e mediar suas relações com as comunidades. Contudo, estes
Conselhos, diretamente vinculados à estrutura do Estado, tentavam, muitas vezes, cooptar as
associações comunitárias e vinculá-las à política clientelista, marcada pela concessão de
recursos e a prestação de serviços à população (SILVA, 1999). De acordo com Silva (1999),
em Santa Catariana, um decreto do governo estadual, editado em 1977, iniciou o processo de
formalização jurídico institucional das entidades associativas. A partir desde momento, a
prática do clientelismo político, exercida através de cabos eleitorais e lideranças comunitárias,
passa a ser exercida também por entidades reconhecidas pelo poder público, os recém-criados
Conselhos Comunitários. Mas, se por um lado, a influência dos Conselhos Comunitários se
consolida a partir de sua formalização jurídico institucional, por outro lado, a partir da década
de 1980, sua atuação, marcada por práticas clientelistas, passa a encontrar resistência. Segundo
Viana (2003) e Schener-Warren (1999), é exatamente na década de 1980 que se percebe em
Florianópolis um período de efervescência de diversas formas de organização da sociedade
civil. Em relação aos Conselhos Comunitários, procura-se cortar os vínculos com os órgãos de
controle do Estado e assim assumir uma postura mais crítica e reivindicativa em relação ao
próprio Estado (RODRIGUES, 2011). É este movimento que permite que o afastamento das
políticas clientelistas ganhe força. Contudo, se por um lado há um afastamento do poder
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público, como apontam Schener-Warren e Rossianud (1999), a partir da década de 1990, há
também uma nova aproximação, quando Conselhos Comunitários, como o Comosg, passam
elaborar e implementar projetos sociais. Esta aproximação entre o Estado e associações da
sociedade civil, (como conselhos comunitários, organizações não-governamentais (ONGs) e
fundações), que possibilitou que o Comosg implementasse o Projeto Renascer, faz parte do
projeto político neoliberal que, no afã de reduzir o Estado e em face de sua incapacidade de
atender às crescentes demandas sociais, investe nas parcerias público-privadas. Em outras
palavras, estas parcerias, que constituem políticas públicas e são por elas constituídas, são
modos particulares de gestão e governo da população, no caso em questão, de populações
consideradas “vulneráveis”, como a família de Heitor.
É importante lembrar que o Projeto Renascer está inserido em um contexto mais amplo,
enquanto “projeto social” vinculado ao Estado e destinado a atender, segundo seu Projeto
Político e Pedagógico (PPP), “crianças/adolescentes e suas famílias em situação de
vulnerabilidade”. Ele é uma das iniciativas que ajudam a compor o Sistema de Garantias de
Direitos das Crianças e Adolescentes e o Sistema Único de Assistência Social no Brasil. Ou
seja, é parte de um conjunto de políticas públicas, num contexto pós-ECA, dirigidas à crianças,
adolescentes e famílias, especificamente “em situação de vulnerabilidade”, políticas estas
elaboradas para garantir que os direitos básicos destes sujeitos sejam efetivados.
Se abordo o Projeto Renascer enquanto parte de um conjunto de políticas públicas e,
consequentemente, uma tecnologia de governo, é porque, em primeiro lugar, entendo que as
parcerias entre associações como o Conselho Comunitário do Saco Grande e o Estado não são
exceções temporárias, mas parte do projeto neoliberal do Estado. Isto é, estas parcerias são
parte constituinte das políticas públicas de prestação de serviços sociais. Além disso, seguindo
o caminho proposto por teóricos sociais como Sônia W. Maluf (2010, 2015), Fassin (2015),
Fonseca, Farias, Schuch e Machado (2016), entendo que uma política pública não é apenas o
documento público institucional, mas também as experiências e agenciamentos dos sujeitos
alvo e usuários dessas políticas públicas, assim como aquilo que os profissionais envolvidos
nessas políticas fazem no seu cotidiano de trabalho e as relações que estabelecem com seu
“público alvo”.
Mas, para que possamos abordar as políticas públicas a partir das considerações de Maluf
(2010, 2015) entre outros, é preciso, em primeiro lugar, realizar uma espécie de exercício de
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“dessubstancialização” do Estado. Isto é, questionar a existência deste “ente”, o Estado, como
um “dado empírico”. Como o fizeram autores como Radcliffe-Brown (1950), que afirma que o
Estado “does not exist in the phenomenal world, it is a fiction of the philosophers”; Abrams
(1988), que aborda o Estado como um conjunto de agenciamentos que organizam a sujeição
política; ou Trouillot (2001), que entende o Estado como um conjunto de práticas, processos e
efeitos 14. Apesar de trabalharem com perspectivas teóricas diversas, o que os autores nos
permitem é deslocar o foco da análise e pensar o Estado, nas palavras de Maluf (2015), como
“práticas, ações, discursos que envolvem um conjunto de atores ou agentes sociais, com
diferentes disposições morais e subjetivas”. No interior deste quadro e das premissas
rapidamente esboçadas não é difícil perceber que este exercício analítico de desnaturalização
do Estado é o que permite, que autores como Fassin (2015), Maluf (2010, 2015), entre outros,
tencionem o conceito de políticas públicas e sublinhem que, para além do texto normativo as
políticas públicas são também aquilo que fazem seus agentes, em suas práticas cotidianas.
Assim, refletir sobre as políticas públicas voltadas à “infância e adolescência vulnerável”,
como o Projeto Renascer, é também refletir sobre Heitor, sobre as razões que levaram sua mãe
a matriculá-lo no Projeto, sobre a relação que ela tem com aqueles que ali trabalham. Em outras
palavras, explorar os sentidos atribuídos pelas crianças e jovens, por seus familiares e
funcionários ao Projeto Renascer e às políticas para o atendimento à criança e adolescente, não
é explorar sentidos atribuídos a um objeto dado a priori, e sim sentidos que, juntamente com
documentos, normativas e leis, constituem estas políticas públicas. Em outras palavras, o
desafio será pensar nas micropolíticas que constituem as Políticas Públicas que podem ser
melhores descritas se as pensarmos não como “políticas públicas para crianças, adolescentes e
suas famílias em situação de vulnerabilidade”, mas sim como “políticas públicas com crianças,
adolescentes e suas famílias em situação de vulnerabilidade”. Assim, partindo desta
perspectiva, as funcionárias do Projeto Renascer não podem ser abordadas enquanto simples
executoras de uma política pública, assim como crianças, jovens e suas famílias não podem ser
abordados enquanto simples usuários destas políticas. Isso porque, suas práticas cotidianas,
suas concepções e dilemas, também fazem parte da produção do Projeto Renascer, enquanto
política pública e, consequentemente, do Sistema de Garantia de Diretos das Crianças e
14 No Prefácio de “African Politicam Systems”, publicado pela primeira vez em 1940, Radcliffe-Brown propõe
que a ideia de Estado seja eliminada da análise social. Para o autor, o Estado não é nem algo “aí fora”, nem um
conceito necessário. Apesar do desacordo quanto aquilo que entendem como “extremismo” ou “radicalismo” das
considerações de Radcliffe, tanto Abrams (1988) quanto Trouillot (2001) afirmam a importância das considerações
de Radcliffe-Brown, por colocar em dúvida aquilo que parecia uma verdade evidente, a saber, o Estado como uma
entidade substancializada.
31
Adolescentes. Mesmo porque, no caso do Comosg, esta divisão entre “executoras” e “usuárias”
é ainda mais difícil de ser traçada, já que, como veremos, grande parte das funcionárias e
funcionários da instituição chegaram até lá em busca dos serviços (e da ajuda) que o Comosg
poderia oferecer.
Contudo, é importante ressaltar que o intuito de tal exercício analítico, de trazer para o
primeiro plano da análise as práticas cotidianas dos agentes, não é confrontar normativas e
legislações com as práticas sociais à procura de discrepâncias e desvios em relação ao que
determinam os documentos legais. Se estamos dispostos a aceitar que políticas públicas são
também o que fazem os agentes em suas práticas cotidianas é porque estamos dispostos a
romper com as análises normativas, que tem nos documentos públicos institucionais o referente
principal de avaliação. Como alertam Schuch e Fonseca (2009), neste tipo de análise há um
risco de tratar qualquer discrepância entre o texto legal e a prática como sinal de “atraso
histórico”, “apropriação indevida”, “falta de compreensão” dos agentes sociais. Para evitar esta
“tarefa ingrata”, como afirmam, não sem ironia, Schuch e Fonseca, acredito que o diálogo com
o antropólogo Theóphilos Rifiotis e sua leitura sobre Direitos Humanos seja essencial, já que
estamos falando sobre políticas públicas e agenciamentos que compõe o Sistema de Garantia
Direitos das Crianças e Adolescentes.
Para Rifiotis (2014), “o modo como os Direitos Humanos são apreendidos, interpretados,
apropriados e operados não podem ser simplesmente considerados em termos de adequação,
mas pelos modos distintos que contribuem para sua construção como prática social” (p.136).
Temos em Rifiotis um deslocamento: os Direitos Humanos passam a ser entendidos para além
da normatividade; mais do que um conjunto de textos legais, devemos entendê-los também
como práticas sociais. Aqui me arrisco a afirmar que o exercício de dessubstancialização, em
relação ao Estado e às políticas públicas a que nos referimos acima, é realizado por Riofitis no
tocante aos Direitos Humanos.
Neste sentido, suas discussões sobre políticas públicas e direitos humanos abrem o
caminho para que possamos abordar a relação que Heitor estabelece com o trabalho
remunerado, por exemplo, sem nos prendermos a uma leitura normativa (que se contentaria em
sublinhar a ilegalidade desta prática, tendo como referente os direitos de Heitor enquanto
criança, estabelecidos no ECA). Nesta leitura, que traz ao primeiro plano os direitos dos
sujeitos, o ponto de vista de Heitor desaparece, e se não desaparece completamente, é
considerado exterior às discussões sobre os direitos de crianças e adolescentes. É exatamente
aí que reside o problema. Parafraseando Rifiotis (2014), esta seria uma análise de um esqueleto
de valores abstratos, sem a carne e o sangue da vida cotidiana, ou seja, uma análise que oblitera
32
a “dimensão vivencial” dos sujeitos. Para o autor, os dilemas, as contradições e leituras
divergentes dos sujeitos sociais devem ser abordados como estruturantes e não exteriores às
discussões sobre Direitos Humanos e políticas públicas que tem como objetivo assegurar os
direitos de determinadas parcelas da população.
Assim, analiticamente, o que Rifiotis propõe é deslocar o foco dos direitos dos sujeitos
para os sujeitos de direitos. O que à primeira vista pode parecer uma simples inversão de termos,
representa na verdade não só uma proposta analítica, mas uma concepção específica daquilo
que denominamos Direitos Humanos. Pois estes são definidos não somente pelas declarações,
normativas e legislações, mas também pelos dilemas, paradoxos e contradições que produzem
e que, incorporados à análise, ajudam a compor aquilo que denominamos Direitos Humanos. É
por esta razão que podemos apreende-los para além da normatividade, também como práticas
sociais. Outra consequência da proposta analítica de Rifiotis, que se alinha com a proposta de
Maluf, e de Fassin em relação aos estudos sobre políticas públicas, é que é preciso incorporar
à análise dos Direitos Humanos (e das políticas públicas) os modos de apropriação dos sujeitos
sociais. Ou seja, Heitor e as crianças atendidas, sua mãe e todas e todos os familiares, as
coordenadoras do Projeto Renascer, professoras, funcionárias, suas práticas, discursos,
agenciamentos, dilemas e conflitos, serão abordados não enquanto meras ilustrações de
processos do Estado, ou da implementação de políticas públicas, mas sim como parte daquilo
que faz o Estado, como parte constituinte do Sistema de Garantias dos Direitos de Crianças e
Adolescentes. Afinal, nas palavras de Fassin (2015), “estudar o Estado, dentro de um período
histórico específico, é apresentar o que os agentes fazem quando trabalhando para o Estado e
considerar as políticas que implementam” (p. 4).
Posso então retomar o conceito de instituições, que tanto me assombrou durante o início
da pesquisa de campo, a partir de outro campo de problematização. Seguindo Fassin (2015),
instituições, sejam elas a polícia, o sistema jurídico, serviços sociais, o Sistema de Proteção a
Criança e ao Adolescente ou o Comosg, são o locus onde o Estado é produzido. Parafraseando
Fassin (2015), se as instituições que compõe o Estado são objetos de estudo interessantes o são
enquanto interseção de políticas e práticas, que nos permitem conectar, a partir da atuação dos
agentes e das legislações e normativas, o nível macrossocial das políticas públicas e o nível
microssocial das práticas individuais. Desta forma, o estudo de projetos sociais, como o Projeto
Renascer, nos permite, ao mesmo tempo, refletir sobre os modos de gestão da infância e de
populações “vulneráveis”, sobre o trabalho daquelas e daqueles responsáveis pela
implementação de tais políticas de gestão e sobre a experiência daqueles e daquelas que o
Estado busca “atender” com estas iniciativas. As normativas e legislações delimitando o
33
trabalho de gestores e os sujeitos entendidos como “público alvo”; gestores e publico alvo
emprestando “conteúdo” (carne e sangue) as normativas, num movimento contínuo que produz
Estado (e sujeitos, ou modos de subjetivação, como veremos a seguir).
Neste sentido, segundo Fassin (ibdem), “as instituições têm uma dimensão dual com
efeitos contraditórios: suas restrições impõem limites à liberdade dos agentes, enquanto sua
estrutura os possibilita a viver juntos” (p. 7, tradução livre). Esta dimensão, nos permite pensar
nos “efeitos” das instituições. Como nos lembra Trouillot (2001), as práticas e os processos
estatais podem ser também reconhecidos através de seus “efeitos”. Segundo o autor, um destes
efeitos é a produção de sujeitos específicos, individualizados e correlatados à problemas sociais.
Isto é, as políticas públicas produzem também os sujeitos que serão abordados como seu
“público alvo”, no caso do presente trabalho, estes sujeitos são as “crianças/adolescentes e suas
famílias em situação de vulnerabilidade”.
Neste ponto, é importante ter em mente que os “sujeitos” são entendidos a partir de uma
perspectiva crítica. Para que possamos problematizar o sujeito, enquanto categoria analítica, o
primeiro ponto a marcar, seguindo o caminho proposto por Maluf (2011), é que trabalhar com
o conceito de sujeito é, necessariamente, utilizar o conceito “sob rasura” 15. Ou seja, tal conceito
deve ser trazido ao debate antropológico junto com a história crítica que carrega. Neste sentido,
vale lembrar que, para a teoria social crítica, como o campo dos estudos feministas, estudos
pós-coloniais, ou das perspectivas foucaultinas, “não há o sujeito, o sujeito (enquanto ente
unificado, substantivo, prévio à experiência, o sujeito da razão, representado na teoria
antropológica clássica pela figura do “indivíduo moderno”) é uma ficção” (Maluf, 2011, p.3) 16.
Já no campo da antropologia, alguns autores (Moore, 2000; Ortner, 2005) têm apontado para a
falta de uma “teoria do sujeito”17. Como sublinha Maluf (2011), apesar da existência de debates
sobre o sujeito neste campo, faltam-nos ainda conceitos e modelos teóricos que nos permitam
refletir sobre as configurações do sujeito e da subjetividade 18. Um caminho interessante,
15 A ideia de “conceito sob rasura”, acionada por Maluf, é no movimento analítico proposto por Stuart Hall em
relação ao conceito de identidade.
16 Conforme Hall (1998), podemos observar na teoria social e nas ciências humanas cinco focos de discussões que
tiveram como maior impacto o descentramento final do sujeito cartesiano. Em primeiro lugar, temos o pensamento
marxista em sua versão contemporânea, seguido pela psicanálise, desenvolvido a partir do impacto da teoria do
inconsciente de Freud; em terceiro lugar, temos o trabalho do linguista estrutural Ferdiand Saussure; um quarto
descentramento pode ser observado no trabalho de Michel Foucault e, finalmente, Hall sublinha o impacto do
feminismo. Esses são tópicos que valeriam uma discussão à parte; isso nos levaria muito longe. Por ora, vale dizer
que as áreas de debate teórico sistematizadas por Hall apontam para uma reformulação da noção de um sujeito
unificado, que se toma como a única origem de sua ação.
17 Sherry Ortner (2005), a partir da Teoria da Prática, propõe reinstaurar a centralidade do sujeito na teoria social,
teorizando-o de modo que não se reinstale o “universalismo ilusório do ‘homem’”.
18De acordo com Maluf (2011), grande parte das discussões antropológicas sobre o sujeito “refere-se a questões
metodológicas e éticas sobre a relação dos/as antropólogos/as com seus sujeitos de pesquisa ou, no plano analítico,
34
segundo a autora, é o diálogo com outros campos, como o feminismo ou os estudos pós-
coloniais19.
Trabalhar a partir da crítica do sujeito não significa repudiar ou negar o sujeito, mas
propor a interrogação sobre sua construção como premissa fundamentalista ou dada de antemão
(Butler, 1998)20. Desta forma, a questão que se coloca novamente aqui, é a questão que, de certa
forma, constitui minha trajetória enquanto pesquisadora: como problematizar a ideia da
multiplicidade dos sujeitos, sua agência, tendo em mente o caráter relacional de sua construção?
Sendo que o ponto de partida para esta discussão é a ideia de que o sujeito não é dado de
antemão, não é um ponto prévio do qual emana a ação e o poder. Neste sentido, o trabalho de
Foucault é central, já que o autor nos ajuda a evidenciar que os sujeitos são efeitos e não as
causas do discurso. Sua análise dos modos de subjetivação pode ser entendida como uma
espécie de história do sujeito moderno. Nas palavras de Butler (1998), autora que dialoga com
Foucault, “o sujeito é ele mesmo o efeito de uma genealogia que é apagada no momento em
que o sujeito se torna como a única origem de sua ação”.
É importante sublinhar que trabalhar a partir desta perspectiva também não significa
afirmar que o sujeito seja completamente determinado, destituído de agência. Neste sentido,
nunca é demais reforçar o modo particular de Foucault de conceituar o poder, não como algo
que nega, domina e reprime a subjetividade. O poder para Foucault não era exclusivamente
negativo (a negação da vitalidade e capacidades individuais). Nas palavras de Rose (1998), o
poder para Foucault trabalha através da subjetividade e não contra ela. Eis a sua positividade:
as relações de poder criam, moldam, constituem a subjetividade, os sujeitos. Além disso, os
dispositivos de poder, estas “redes de relações entre discursos, instituições, regulamentos,
arquiteturas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, entre o dito e o não dito” (CASTRO, 2009), são limitativos e habilitantes. Em outras
palavras, é exatamente o caráter constituído do sujeito que possibilita sua capacidade de ação.
situa o sujeito no interior da configuração individualista moderna, muitas vezes reduzindo-o a esta”. Embora,
continua, possamos também afirmar que o “sujeito” está presente, mesmo que de forma “espectral” em outros
campos dos estudos antropológicos, como na etnologia ameríndia, em sua vertente perspectivista, ou em estudos
que recolocam a questão da “agência”. Neste sentido, ainda segundo Maluf (2011, comunicação oral), tendo em
mente as discussões sobre a fabricação da pessoa, o trabalho de Dumont, entre outros, talvez possamos pensar na
antropologia como um sexto descentramento do sujeito cartesiano.
19 A própria autora realiza este projeto, ao discutir a possibilidade de uma antropologia do sujeito, propondo um
diálogo “tenso” entre os paradigmas antropológicos clássicos da discussão de Indivíduo, Pessoa e corpo, as teorias
da modernidade e do sujeito moderno construídas em outras áreas e a discussão sobre sujeito e subjetividade em
parte do pensamento crítico contemporâneo (estudos feministas, pós-coloniais, o pós-estruturalismo e a filosofia
da diferença).
20 Como coloca Butler (1998), trata-se de propor a “desconstrução” da categoria do sujeito como suspensão,
“desconstruir não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais importante, abrir um termo,
como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que anteriormente não estavam autorizadas” (1998, p.14).
35
Podemos voltar ao argumento de Fassin (2015) sobre a dimensão dual das instituições e
seu caráter contraditório, a partir das considerações propostas pelas abordagens críticas do
conceito de sujeito. Tornar-se sujeito é, ao mesmo tempo, ser feito súdito cativo, constrangido
pelas regras que o constituem, e também ser habilitado e tornar-se agente a partir deste mesmo
movimento. A aparente contradição nunca é resolvida, pois é constituinte, é o próprio processo
de subjetivação; ser subordinado pelo poder e, ao mesmo tempo, torna-se sujeito. Além disso,
este não é um movimento unívoco, um ato fundador que instaura “o” sujeito de forma definitiva.
Se o sujeito não é um ponto prévio do qual emana a ação, o poder também não é um ponto final,
estabelecido de modo absoluto. Como lembra Butler (1998), estes processos, que são processos,
modos de subjetivação (e não um ato único), são repetitivos, sistemáticos, contínuos e
múltiplos. Isto é, o sujeito não remete a uma forma única, mas a posições intrínsecas muito
variáveis, que fazem parte do próprio enunciado (Deleuze, 2005). A partir deste horizonte de
problematização é possível retomar o desafio de pensar “a pluralidade da experiência dos
sujeitos sem produzir uma pretensa unidade totalizadora sobre eles” (Rifiotis; Vieira; Dassi,
2014), desafio este que orienta as discussões desta tese. Contudo, para tanto, é preciso seguir
mais adiante no caminho traçado por Foucault (1984), Fassin (2009, 2012a, 2012b, 2015),
Rifiotis (1996, 2007), Fonseca e Cardarello (2009), Vianna (2002, 2013), Patrice Schuch (2011)
entre outros, e se debruçar sobre a dimensão moral (e ética) dos processos de subjetivação e
dos dispositivos institucionais. Vejamos.
21 As Unidades Residenciais Transitórias fazem parte da rede de atendimento à criança e ao adolescente do Rio
Grande do Sul. As URTs abrigam crianças e adolescentes que estão ou sobre Medida Protetiva ou cujos pais
perderam ou estão em vias de perder o pátrio poder. Estas unidades são casas projetadas para cerca de 10 crianças
e/ou adolescentes.
22 No ano de 1985, os motivos para a institucionalização das crianças foram organizados em 10 rubricas principais,
subdivididas em 19 categorias. Já em 1995, eram 19 rubricas principais subdivididas em nada mais nada menos
que 251 itens; “parecia existir uma categoria à parte para cada criança que entrava na instituição” (FONSECA;
CARDARELLO. 2009).
36
CARDARELLO, p.240). Mais especificamente, elas identificam um deslocamento na
categorização dos motivos que levam as crianças ao abrigamento: de “problema
socioeconômico” para “negligência”. Esta mudança de categorização, como argumentam ao
longo de todo o artigo, “revela uma mudança de enfoque na visão da infância pobre e de sua
família no Brasil” (p.242) e não apenas uma mera mudança de nomenclatura numa época pós-
ECA. Nas palavras de Fonseca e Cardarello (2009):
Hoje, mais do que nunca, a família pobre, e não uma questão estrutural, é culpada pela
situação em que se encontram seus filhos. É ela que é “negligente”, maltrata as crianças, as
faz mendigar, não lhes proporciona boas condições de saúde, enfim, “não se organiza”. Em
suma, parece que a família pobre – e não o “Poder Público” ou “a sociedade em geral” – é o
alvo mais fácil de represálias. Cria-se então uma situação particular em que a noção de
“criança cidadã” leva como complemento quase inevitável a de “pais negligentes” (p.243)
37
Por “economia moral”, Fassin (2009) entende “a produção, disseminação, circulação e
uso de emoções e valores, normas e obrigações no espaço social” (p. 1257), que caracterizam
um momento histórico específico. O que torna o conceito interessante é que ele nos permite
explorar as fronteiras da moral e sua articulação com a política, como pretendia E. P. Thompson
quando o propôs pela primeira vez para analisar as revoltas por comida na Inglaterra do século
XVIII (EDELMAN, 2012). Fassin (2009, 2012a) revisita o conceito para analisar o uso de
sentimentos morais na política contemporânea. Para o autor, tornou-se imperativo pensar a
política contemporânea, os modos de governo, em diálogo com a dimensão moral. Isso porque,
para Fassin (2009, 2012a, 2012b), questões morais e éticas passaram a fazer parte dos debates
da esfera pública de um modo mais intenso ao longo das duas últimas décadas do século XX.
Certamente, isso não significa que valores morais já não permeassem a política, mas houve uma
espécie de “moralização” da esfera política, que permite que se possa justificar ações privadas
e públicas através de sentimentos e julgamentos morais. Fassin denomina este movimento, esta
“nova economia moral”, de “razão humanitária” ou “humanitarismo”.
O “humanitarismo” é entendido como um modo de governo que diz respeito a qualquer
situação caracterizada pela precariedade. O termo “governo” aqui remete ao conceito
foucaultiano, isto é, diz respeito a técnicas e procedimentos projetados para ordenar
comportamentos, “conduzir condutas”. Neste sentido, inclui e ultrapassa as intervenções
estatais, administração local, organismos internacionais e instituições políticas. Isso porque,
como bem lembra Edgardo Castro (2009), dois eixos constituem a noção foucaultiana de
“governo” (e, consequentemente, governamentalidade): “o governo como relação entre sujeitos
e o governo como relação consigo mesmo” (CASTRO, 2009 p. 190). É importante ter isso em
mente porque é no intercruzamento desses dois eixos que os modos de objetivação-subjetivação
estão situados. Como vimos acima, ao explorar a noção de sujeito, para Foucault, os modos de
subjetivação são as práticas de constituição do sujeito. Ou seja, por um lado são os modos como
o sujeito aparece como objeto das relações entre saber e poder e, por outro, são as maneiras
como se relaciona consigo mesmo (o modo como o sujeito se constitui como sujeito moral).
Se a razão humanitária, enquanto economia moral, refere-se ao primeiro eixo do conceito
foucaultiano de governo, o conceito de “subjetividade moral” toca no segundo. Já que, segundo
Fassin (2015), “subjetividade moral” se refere ao processo a partir do qual os indivíduos
desenvolvem práticas éticas em suas relações consigo mesmo e com os outros” (p. 9). Desta
forma, o conceito de “economia moral” nos permite trazer à tona as relações entre saber, poder
e moral no governo da precariedade e “subjetividade moral” nos permite trazer à tona a agência
dos sujeitos, o modo como se constituem como sujeitos morais. Como dito acima, revisitar o
38
conceito de “economia moral” e pensar nos termos de “subjetividade moral” foi o caminho
proposto por Fassin (2009, 2012a, 2012b, 2015) para que possamos compreender mudanças no
“governo da precariedade” nas últimas décadas do século XX.
Para Fassin (2012a, 2012b), pensar nos termos da razão humanitária é afirmar que os
sentimentos morais se tornaram a força essencial da política contemporânea, “eles alimentam
os discursos e legitimam as práticas, particularmente se estes discursos e práticas focam nos
menos favorecidos e dominados” (FASSIN, 2012a, p.1). Neste contexto de análise, sentimentos
morais são as emoções que voltam nossa atenção para o sofrimento dos outros e nos fazem
querer remediá-lo. Eles conectam afetos com valores, sensibilidade com altruísmo. A
compaixão representa a mais completa representação dessa combinação paradoxal de coração
e razão: a empatia sentida pelo infortúnio do outro gera a indignação moral que pode
impulsionar a ação para que a situação mude; o humanitarismo é uma política da compaixão.
Nesta economia moral, o vocabulário do sofrimento, compaixão, assistência e responsabilidade
de proteger (aqueles que sofrem, os fracos) passa a ser parte de nossa vida política. É o que
define e justifica práticas de governo (seja uma intervenção militar ou assistência financeira
para vítimas de desastres ambientais)23. Em outras palavras, o humanitarismo é um modo de
governo da precariedade que mobiliza a empatia no lugar do reconhecimento de direitos. Nesta
economia moral, o “sofrimento” toma o lugar da “desigualdade”, o “trauma” toma o lugar do
“reconhecimento das violências” e mobiliza-se a ideia de “compaixão” ao invés da “justiça”.
Contudo, nesta perspectiva, a linha que separa o estatuto de vítima inocente (por isso digna de
compaixão) do perigo em potencial (fonte de ameaça) é tênue; a vulnerabilidade pode,
rapidamente, dar lugar à ideia de perigo. Ou, nas palavras de Fassin (2015, p. 2), “a linha que
separa os categorizados como perigosos e aqueles categorizados como em perigo; entre aqueles
destinados à repressão e os que inspiram compaixão é tênue e permeável”. Isso porque, é
importante lembrar, como alerta Fassin (2012a), que falar nos termos do humanitarismo é
chamar atenção para o modo como os sentimentos morais tornaram-se generalizados como um
quadro de referencias para a vida política contemporânea. Neste contexto, a tensão entre o
impulso humanitário e o desejo de segurança está sempre presente; a política da compaixão
contemporânea não exclui uma política de repressão, ambas fortemente ancoradas em
23Certamente, admite Fassin (2012a), acionar a linguagem dos sentimentos morais pode nada mais ser que um
modo de criar uma cortina de fumaça que mobiliza sentimentos para, por fim, impor a lei do mercado e justificar
a brutalidade da realpolitik. Mas, mesmo assim, resta ainda a pergunta: porque isso funciona? Resta-nos ainda
compreender como e porque esta linguagem tornou-se tão eficaz. Nas palavras de Fassin (ibdem): “no mundo
contemporâneo, o discurso dos afetos e valores oferece um ótimo retorno político, e isso certamente precisa ser
analisado” (p. 3).
39
avaliações e sentimentos morais. O “desejo de ajudar”, de “salvar” os sujeitos vulneráveis pode,
facilmente, transformar-se no pânico moral que vê nestes mesmos “outros” um risco.
No que toca às políticas da infância, o humanitarismo traz ao primeiro plano a figura da
criança enquanto vítima, atualizando e expandindo uma construção moral da infância 24. A
criança “em situação de vulnerabilidade” é duplamente vulnerável, tanto porque encontra-se
em situação de vulnerabilidade socioeconômica, quanto por ser esta a “natureza” do seu ser,
tendo em mente a visão universal de criança: é vulnerável porque é inocente e incapaz de cuidar
de si mesma. Isso significa que é preciso que o sujeito criança corresponda ao ideal: inocente e
incapaz, dócil e facilmente tutelável. A “quebra” deste comportamento idealizado inverte o polo
moral; a vítima pode rapidamente dar lugar à ameaça. Como afirma Vianna (2002, p. 297), a
“infância em risco encarna, ao mesmo tempo, a representação da infância ameaçadora”. Neste
sentido, qualquer comportamento da criança (real ou imaginado) que possa ser lido como “mau
comportamento” anulará sua inocência potencial e a transformará em uma ameaça. Como
veremos, em alguns casos, essa passagem de “vítima” à “ameaça” implica que os sujeitos
deixem de ser referidos enquanto “criança” e passam a ser descritos como “pestes”, “monstros”,
“mulherzinha”25. Já que, para aqueles e aquelas que operam a partir dessa lógica, ser criança é
ser, por definição, inocente, vulnerável e, em larga medida, dócil.
Assim, podemos afirmar que, dentro da perspectiva do humanitarismo, as crianças são
entendidas a partir da afirmação fundamental que de que são criaturas inocentes, que não podem
ser responsabilizadas pelo que lhes acontece e, ainda, como seres vulneráveis, precisam de
proteção. Segundo Fassin (2013), estas duas afirmações têm contrapartida em duas noções a
elas relacionadas: sendo inocentes, são os adultos (na figura dos pais e familiares) aqueles
frequentemente responsáveis pelas tragédias que lhes assolam e, sendo vulneráveis, a sociedade
é obrigada a fazer o papel dos pais faltosos, através do Estado ou da filantropia. Aqui, a
vulnerabilidade passa a ser uma condição moral e individual da criança e não uma categoria
socioeconômica cujo objetivo é ressaltar a dinâmica da reprodução da desigualdade social para
além da noção de pobreza (ABRAMOVAY et all, 2002), que faria referência a toda rede
familiar na qual as crianças estão inseridas. Isto é, sendo a vulnerabilidade considerada uma
24 É importante lembrar que mesmo nossa noção de “vítima” foi profundamente alterada ao longo das últimas
décadas do século XX, graças aos movimentos que a categoria de “trauma” passa a agenciar e as novas conexões
morais e políticas que estes movimentos acionam (FASSIN; RECHTMAN, 2009).
25 “Pestes” e “monstros” são normalmente acionados para falar sobre meninos com comportamentos considerados
problemáticos, já “mulherzinha” é exclusivamente usado com as meninas na mesma situação. Seria impossível
usar “homenzinho” para se referir aos meninos considerados problemáticos. Já que, ao contrário do que acontece
com “mulherzinhas”, dizer que um menino é um “homenzinho” é, sempre, positivo. Mas, em relação às meninas,
“mulherzinha” pode tanto ser um elogio (ressaltando a responsabilidade da criança), quanto uma avaliação do
caráter problemático da menina.
40
característica da criança, as realidades social e econômica das famílias (dos adultos
responsáveis por elas) são obliteradas e torna-se possível culpabilizar os pais ou responsáveis
por, digamos, “negligência”. A inocência das crianças é acionada em contraste com a suposta
irresponsabilidade dos adultos; se as crianças precisam de proteção, essa necessidade de
proteção passa a estar diretamente ligada ao comportamento dos pais ou responsáveis: “a noção
de ‘criança rei’ [que se relaciona com a ideia de infância universal, detentora de direitos e que
precisa ser protegida] irrealizável em tantos contextos, engendra seu oposto – a noção de criança
martirizada – e, com esta, um novo bode expiatório: os pais algozes” (FONSECA;
CARDARELLO, 2009, p.248). Nesta lógica, se precisam ser separadas das famílias, como nos
casos analisados por Fonseca e Cardarello (2009), é porque seus pais são “negligentes” e não
mais porque suas redes familiares estão inseridas em contextos socioeconômicos desiguais.
Desta forma, em relação às políticas da infância de modo geral, e em relação ao cotidiano
do Projeto Renascer de modo mais específico, trabalhar a partir da perspectiva de Fassin,
permite-nos pensar como as questões morais surgem e são abordadas; como questões não
morais são por vezes recolocadas como se fossem e o que estes deslocamentos, do político para
o moral, produzem no cotidiano da instituição. A pesquisa etnográfica nos ajudará a entender
como as crianças (e seus familiares) atendidas pelo Projeto Renascer podem ser interpeladas
enquanto sujeitos que compõe um “grupo”, uma parcela da população que hora é abordada
enquanto uma “questão sociopolítica”, hora enquanto uma “questão moral”. Falar nos termos
da “questão sociopolítica”, no contexto da tese, significa trazer ao primeiro plano a dimensão
política e social da construção da infância vulnerável, tanto empiricamente quanto como
caminho para pensar os problemas que as crianças e seus familiares enfrentam. Já pensar as
crianças (e seus familiares) nos termos da “questão moral” é acionar uma perspectiva mais
centrada na economia moral humanitária.
Além disso, as considerações expostas acima possibilitam também trazer ao primeiro
plano da análise a dimensão ética, ou seja, o modo como funcionárias, funcionários do Comosg,
as crianças e seus familiares e a pesquisadora se constituem enquanto sujeitos morais 26.
Por fim, seguindo Fassin (2008, 2012a), é importante ressaltar que o humanitarismo,
este movimento que aborda a realidade social a partir da linguagem da compaixão,
26Tenho em mente aqui, a definição de Foucault (1984) sobre moral e ética. Para Foucault o conceito de “moral”
deve ser pensado a partir de três eixos. Por moral entende-se (1) “um conjunto de valores e regras de ação propostas
aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como pode ser a família, as
instituições educativas, as igrejas, etc”; (2) “o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores
que lhes são propostos”; (3) “a maneira pela qual é necessário conduzir-se, isto é, a maneira pela qual se deve
constituir a si mesmo como sujeito moral”. A esta última dimensão Foucault se refere como ética, “domínio da
constituição de si mesmo como sujeito moral” (FOUCAULT, 1984, p. 26-27).
41
é espelhado por uma conversão epistemológica e também emocional, de pesquisadores e
intelectuais para esta visão do social, que se tornam mais sensíveis para a subjetividade dos
agentes e para a experiência de dor e aflição. (...) Exclusão e infortúnio, sofrimento e trauma
tornaram-se lugares comuns nas Ciências Sociais, dando legitimidade acadêmica ao novo
discurso político (FASSIN, 2012 a, p.6).
Reconhecer isso importa, porque, como lembra Rabinow (1995), não podemos pensar
sobre o que produzimos, fora de seu próprio contexto de produção. Se as temáticas ligadas à
nova economia moral se tornaram cada vez mais centrais para a agenda das Ciências Sociais, é
preciso tomar este movimento também como um objeto de estudo; esta é uma necessidade
epistemológica. Como dito anteriormente, isso significa reconhecer que este trabalho (e toda a
minha trajetória enquanto pesquisadora) também está, de certa forma, ligado à lógica
humanitária, no sentido que me proponho a trazer ao primeiro plano da análise a experiência
daquelas e daqueles que vivem situações de exclusão e desigualdade. Tornar isso também parte
da análise é relevante porque, como lembra Fassin (2008, p. 7), “quanto mais conscientes e
críticos estivermos de nossos próprios pressupostos e certezas – ao invés de mantê-los numa
caixa-preta de autocontentamento – mais somos capazes de respeitar o alicerce epistemológico
e os compromissos políticos de nosso trabalho científico”.
Além disso, apesar da indignação moral frente às desigualdades sociais me constituir
enquanto sujeito, meu objetivo, enquanto pesquisadora, não é a denúncia. Interessa sim,
construir um trabalho que contribua para tornar o “mundo social mais inteligível” (FASSIN,
2016) e “problematizar o cotidiano e o banal” (FASSIN, 2013). No limite, trata-se de
potencializar aquilo que produzimos para que possamos pensar a antropologia mais como uma
“análise crítica da moral” do que um “discurso moral” (Fassin, 2008). A diferenciação proposta
for Fassin (2008) aponta para a distinção entre um discurso enunciado a priori, ancorado em
princípios morais intangíveis que não necessitam da validação etnográfica – o discurso moral
–, e uma análise que é formulada a posteriori, como resultado da investigação, ancorada tanto
na pesquisa empírica quanto em discussões teóricas e que encontra sua validação exatamente
na prática etnográfica.
Assim, o desafio que proponho na presente tese é pensar sobre as políticas
contemporâneas da infância, a partir da etnografia do cotidiano em um projeto social, o Projeto
Renascer, desenvolvido pelo Conselho de Moradores do Saco Grande em Florianópolis (SC).
O trabalho etnográfico nos permitirá explorar como a infância (e as crianças) podem ser
abordadas hora enquanto uma “questão social” e hora como uma “questão moral” e quais os
efeitos que estas diferentes perspectivas produzem no cotidiano. Para tanto, parto da análise de
42
Fassin sobre economias morais, notadamente o humanitarismo, um modo de governo que diz
respeito a qualquer situação caracterizada pela precariedade, no qual as questões morais passam
ao primeiro plano dos debates e intervenções políticas, tornando possível que ações privadas e
públicas sejam validadas através de sentimentos e julgamentos morais. Tendo em mente que,
ao abordar os modos de governo, faço referência à concepção foucaultina de governo e seus
dois eixos constituintes: o governo dos outros e o governo de si. Isto é, os modos como o sujeito
aparece como objeto das relações entre saber e poder e as maneiras como se relaciona consigo
mesmo (o modo como o sujeito se constitui como sujeito moral).
4. Estrutura da tese
27Tendo em mente os dois sentidos que expressão “modos de subjetivação” assume na obra de Foucault, segundo
Edgardo Castro (2009). No primeiro sentido, pensamos modos de subjetivação como “modos de objetivação do
sujeito, isto é, modos em que o sujeito aparece como objeto de uma determinada relação de conhecimento e poder”
(CASTRO, 2009, p. 408). Em relação ao segundo sentido, interessa refletir sobre “a maneira em que o ser humano
se transforma em sujeito” (ibdem); esta é a dimensão ética do conceito foucaultiano de modos de subjetivação,
que volta sua atenção para os processos de cultivo de si.
43
pula corda, ou à eterna questão de se é possível, ou não, guardar o lugar na fila para alguém e
sobre quem tem autoridade para arbitrar estas questões. Contudo, estas disputas podem também
girar em torno do que pode ser caracterizado como uma brincadeira e quando é legítimo acionar
esta interação. Ao abordar o brincar no cotidiano do Projeto Renascer, não me interessa traçar
um inventário das brincadeiras que observei entre as crianças, mas compreender o brincar como
campo de disputas, tecnologia de governo e modo de subjetivação das crianças.
Por fim, no Capítulo 4, “Transgressões, Resistências e Participação. As conversas e o
caderno” vamos abordar as ações das crianças que são consideradas, em determinadas
situações, como afrontas, desafios, desobediências, desrespeito, enfim, que são consideradas
transgressões às normas e regras que deveriam obedecer. Interessa explorar quais ações são
consideradas transgressões, em que contextos e como aqueles envolvidos na situação lidam
com estes momentos de quebra. As transgressões, e desvios do comportamento desejado (que
vão desde atos de desobediência, “gracinhas”, desafios a autoridade, até fazer “corpo mole”,
dissimulação (ou se fazer de rogado), submissão falsa, ignorância fingida), são abordadas
também como momentos em que as crianças oferecem resistência às manifestações de poder
que as interpelam e constituem. Isto é, as transgressões e os desvios de comportamento são
entendidos como “formas cotidianas de resistência” (SCOTT, 2002) acessíveis às crianças;
formas de “participação” (RIBEIRO, 2015) das crianças em um cotidiano que, muitas vezes,
não podem controlar.
Antes que possamos avançar, é importante explicitar que todas as falas de interlocutores,
assim como termos nativos, são grafadas em itálico ao longo do texto. Aspas serão acionadas
para marcar as citações da literatura consultada, ou conceitos teóricos. Além disso, gostaria de
informar ao leitor que todos os nomes das crianças foram trocados. O mesmo não acontece em
relação aos nomes dos e das profissionais responsáveis por elas. Esta estratégia nominal respeita
as determinações do Estatuto da Criança e do Adolescentes em relação às crianças e foi debatida
com os profissionais citados ao longo da tese durante a pesquisa de campo.
44
Capítulo 1
45
continente, tem uma população de 1.111.702 e inclui os municípios de Biguaçu, Palhoça, São
José, Santo Amaro da Imperatriz, Governador Celso Ramos, Antônio Carlos, Águas Mornas e
São Pedro de Alcântara.
Ao longo das últimas décadas, a área urbana da Grande Florianópolis tem expandido
consideravelmente. O município de Palhoça, por exemplo, triplicou o número de habitantes nos
últimos 20 anos, segundo dados do IBGE. Em meados de 2014, o município tinha mais de 20
bairros novos, que cresceram em torno de loteamentos, ainda não sancionados oficialmente.
Muito deste crescimento está vinculado à oferta de habitações populares, como aquelas do
programa “Minha Casa Minha Vida” da Caixa Econômica Federal. A Ilha de Santa Catarina
tornou-se cara demais, enquanto cidades como Palhoça e Biguaçu tornaram-se cada vez mais
atraentes, cidades dormitórios que absorvem a demanda por moradia popular 28.
A ligação terrestre entre a parte continental e a ilha é feita por três pontes: a Hercílio Luz,
a Colombo Salles e a Pedro Ivo Campos, todas nomeadas em homenagem a antigos
governadores do estado. A ponte Hercílio Luz, a maior ponte pênsil do país, está em reforma
há mais de 30 anos e, no momento, está interditada29. Enquanto esta ponte não fica pronta, o
deslocamento entre a ilha e o continente é feito através das outras duas pontes. A Colombo
Salles é a mais antiga das duas, inaugurada em 1975, tem 1.227 metros de extensão e quatro
pistas que funcionam no sentido ilha – continente. Já a ponte Pedro Ivo Campos, inaugurada
em 1991 (as obras começaram em 1982), fica ao lado da Colombo Salles, é responsável pela
ligação no sentido continente – ilha.
Falo tanto sobre pontes porque esta é a única ligação entre o continente e a ilha e, sendo
assim, é uma ligação constantemente congestionada. Priscila, funcionária do Comosg, é um dos
milhares de pessoas que depende diariamente das pontes. Recém-casada durante a pesquisa, ela
vivia em Palhoça, onde comprou um apartamento com seu companheiro, deixando assim o
28 Segundo estudo realizado em parceria, por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e da
UFSC, entre 1985 e 2009, as áreas urbanas da Grande Florianópolis aumentaram 287,67%. O estudo ressalta que
grande parte desta população se instalou em áreas irregulares e nas regiões periféricas das cidades satélites. Entre
as consequências deste processo de urbanização, os pesquisadores chamam a atenção para o impacto ambiental:
contaminação de recursos híbridos, como as nascentes, águas subterrâneas, rios e baías; desertificação do solo,
impermeabilização do solo e desmatamentos. Vale sublinhar que a ocupação de áreas irregulares não é exclusiva
das classes populares. Em Florianópolis, muitos dos empreendimentos de alto padrão, dirigidos às classes média
e alta, são construídos de modo irregular. Este tipo de ocupação é bastante comum dentro da Ilha de Santa Catarina.
29 A Ponte Hercílio Luz é a mais antiga das três (sua construção teve início em 1922 e foi concluída em 1926). Em
1982, a ponte foi interditada, sendo reaberta em 1988 para o tráfego de pedestres e bicicletas; novamente
interditada em 1991 e, em 1997, o cartão postal da cidade foi tombado como patrimônio histórico. Ao longo das
décadas, a ponte tem passado por inúmeras reformas. Segundo a relatoria do Tribunal das Contas do estado, até
2017, a atual reforma, que dura mais de 30 anos, já havia computado um gasto de R$ 563 milhões. O ex-governador
Raimundo Colombo afirmava que a última etapa da reforma, orçada em R$ 261 milhões, já estava em andamento
e que seria concluída em abril de 2018, mas isso não aconteceu.
46
bairro onde nasceu e onde mora grande parte de sua família, o Saco Grande, em busca de uma
moradia cujas prestações coubessem no orçamento do jovem casal. Ambos trabalhavam e
estudavam na Ilha e, assim, passavam grande parte do seu dia presos no trânsito. Tanto Priscila
como eu não compreendemos muito bem porque em um canal tão estreito e com um mar tão
calmo não há transporte marítimo. Mais um dos mistérios da Ilha da Magia, suponho.
Como Priscila trabalhava o dia todo no Comosg, no Saco Grande, e a noite fazia o
magistério no Instituto Estadual de Educação, localizado no centro da cidade, era preciso usar
o carro recém-comprado diariamente, já que seria impossível se deslocar via transporte público
entre sua casa, o trabalho e o Instituto nos horários que ela precisa. Apesar do sistema de
transporte público estar integrado há cerca de 20 anos, ou seja, apesar das rotas dos ônibus
convergirem e se comunicarem a partir de alguns terminais centrais, há muitos problemas que
tornam seu uso complicado.
São seis os Terminais de Integração em Florianópolis, todos eles dentro da Ilha. Mais três
terminais foram construídos na época em que o projeto de integração foi implementado, mas
estão desativados desde que foram construídos, ou seja, nenhum deles chegou a funcionar. Os
dois únicos terminais no continente estão entre eles. Os terminais são importantes pois são o
ponto de confluência de várias linhas, permitem que se troque de ônibus com mais facilidade e
sem que seja preciso pagar a tarifa novamente. Como o preço da passagem de ônibus em
Florianópolis está entre os mais altos do país, entende-se porque é preciso garantir a troca de
linha sem novo custo. Com todos os terminais dentro da ilha, mesmo aqueles que estão se
deslocando de um bairro no continente para o outro precisam necessariamente entrar na ilha,
isso aumenta o trânsito nas pontes e o tempo da jornada consideravelmente.
Além disso, os horários dos ônibus que chegam e saem dos terminais não são
sincronizados e as linhas que fazem as ligações para os bairros são esparsas e praticamente
inexistentes durante os finais de semana. Esta é uma das razões que meu trajeto até o Comosg
era tão demorado. Às vezes era preciso esperar mais de 40 minutos para pegar o próximo ônibus
da linha, que havia partido 5 minutos antes que eu chegasse no terminal. Na minha rotina do
trabalho de campo isto era um incomodo, contudo não me impossibilitava de realizar o trabalho,
mas, se pensarmos na vida de Priscila, tudo muda. Depender do transporte público, como
acontecia antes dela ter carro, significaria ter de abrir mão do trabalho no Comosg ou do
magistério, ou da casa própria. Impossível fazer tudo o que ela faz, morando em Palhoça, de
ônibus. Toda esta conversa sobre ônibus, terminais e pontes, ajudam a compreender uma das
características mais marcantes de Florianópolis, sua geografia particular. Além de ser uma ilha,
os bairros da capital de Santa Catarina são, de certa forma, isolados; afinal, há uma enorme
47
cadeia de montanhas coberta de floresta que atravessa praticamente toda a ilha, garantindo a
qualidade do ar na maior parte dos bairros da cidade e, em parte, seu isolamento. As ligações,
via transporte público, entre os bairros e o centro e entre os bairros entre si são bastante
precárias. As limitações no transporte público tornam este fluxo ainda mais complicado para
aqueles que não têm um meio de transporte próprio, como era o caso de inúmeras famílias
atendidas pelo Projeto Renascer. Isso significa que, entre as crianças que conheci, havia aquelas
que, mesmo morando em um morro com vista para o mar, nunca tinham ido à praia, já que não
há linhas diretas de ônibus que ligam o Saco Grande às praias locais.
Esta é uma das razões que Priscila gosta de seu carro e da mobilidade e conforto que ele
lhe proporciona. Nele fica mais fácil transportar as peças de roupa que vende para
complementar sua renda e as doações de roupas, fraldas, calçados e miscelâneas que recolhe e
distribui para o grupo de doações que administra no Facebook. Como Priscila, muitos dos
moradores da Grande Florianópolis, que têm condições financeiras, optam pelo carro como
meio de transporte. Não é à toa que Florianópolis é a terceira cidade do país com maior número
de carros por habitantes, 1 carro para cada 2,2 habitantes (a média nacional é de 1 carro para
cada 4,4 habitantes)30. O resultado disso são vias e pontes engarrafadas e um movimento ainda
maior durante o verão, quando a cidade triplica a população devido ao fluxo turístico. São cerca
de 42 praias na ilha, que recebem em torno de 2 milhões de turistas durante o verão. Apesar do
movimento turístico ser mais intenso durante o verão, a cidade recebe turistas ao longo de todo
o ano, o que garante o funcionamento de um amplo setor de serviços ligado à atividade turística.
O turismo é, inclusive, um dos cinco principais setores da economia da cidade, juntamente com
a construção civil, comércio, tecnologia e serviços profissionais.
Mas não são apenas turistas que chegam à Grande Florianópolis. Segundo Mioto (2008),
todos os municípios da região apresentam um crescimento populacional maior que o
crescimento médio do estado. O que é significativo quando lembramos que o próprio estado de
Santa Catarina foi o único estado do sul do país a apresentar saldos de migrações positivos entre
1991 e 2000. Além disso, entre 2005 e 2010 o estado apresentou o maior crescimento no número
de imigrantes dos últimos 10 anos no país (IBGE, 2012).
Uma dessas pessoas que chegou à ilha neste período foi Edvania, cozinheira no Comosg
durante grande parte da pesquisa e moradora do Saco Grande. Veio da Paraíba, para trabalhar
como empregada doméstica. Foi uma amiga sua de lá que a apresentou para a futura
30 A frota de motocicletas também tem crescido, segundo dados do IBGE e do Departamento Nacional de trânsito.
Entre 2001 e 2013, o número de motos em Florianópolis aumentou 73,50%, atingindo uma média de uma moto
para cada 9,4 habitantes (um pouco abaixo da média nacional de 9,7).
48
empregadora, que iria se casar com um político do estado e se mudar para cá. A oferta de
emprego foi aceita na hora, mesmo depois da sua futura empregadora lhe dizer que aqui no Sul
pagava-se muito menos pelo trabalho; sua oferta foi de R$ 250,00 mensais (o salário mínimo
na época era de R$510,00). Mas Edvania aceitou, eu precisava fugir do meu marido, antes que
ele me matasse. Sua única exigência foi poder trazer a filha de 2 anos. A empregadora aceitou,
mas explicou que teria que descontar a passagem da menina do salário de Edvania, era uma
dívida que nunca acabava, ainda mais que ela descontava a comida da menina e a minha do
meu salário também.
Edvania conta que o início de sua vida em Florianópolis foi muito difícil. Como estava
com a filha, ela não pode morar na casa onde trabalhava. Encontrou então uma pequena
quitinete por R$200,00, era um buraco fedido, eu odiava lá, do lado de um esgoto. Além disso,
na tentativa de pagar as dívidas com a empregadora, ela deixava de comer e trabalhava longas
horas nos finais de semana, quando os patrões recebiam convidados para jantares e festas. Sua
vida começou a mudar quando um dos professores do EJA31, que ela frequentava no período
noturno, na Escola Municipal Donícia Maria da Costa, a apresentou para Nina, diretora do
Comosg.
Edvania conta que o professor reparou que ela sempre pegava o lanche na escola, mas
nunca o comia. Ela fazia isso para levar a comida para sua filha, na esperança de diminuir a
dívida com a patroa. Aos poucos, ela passa a confiar nele e lhe conta a sua história. Fala também
sobre suas condições de trabalho. É quando ele lhe apresenta Nina, como alguém que poderia
ajudá-la. Dito e feito. Nina lhe ajuda a encontrar um novo lugar para morar, uma casa ali mesmo
no Saco Grande, no Morro do Caju (casa que Edvania adora), emprega-a como cozinheira no
Comosg e matricula suas duas meninas no Projeto Renascer, desenvolvido pelo Comosg 32. Não
sem antes informá-la sobre seus direitos, o que permitiu que Edvania confrontasse sua
empregadora e se visse livre da dívida das passagens e da alimentação. Contudo, ela optou por
não denunciar a antiga empregadora, mesmo sabendo que trabalhava em condições análogas à
escravidão. Quando lhe perguntei por que, ela respondeu:
Não acredito em justiça Tati, não tem justiça neste mundo. E do jeito dela a mulher me
ajudou, consegui sair de casa, fugir daquele desgraçado por causa dessa mulher. Nem raiva
dela eu tenho, afinal na vida a gente só aprende com sofrimento.
31 A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de educação básica destinada a jovens e adultos que
não concluíram os estudos no nível fundamental e médio.
32 Nesta época, Edvania já havia recebido em sua casa uma das filhas do seu ex-marido. Ele a encontrou e veio
para cá atrás dela, trazendo sua filha mais nova com outra mulher. O acordo que Edvania fez com ele foi que
criaria a menina como filha em troca da promessa que ele nunca mais a procuraria.
49
Com a vida já estabilizada em Florianópolis, Edvania ajudou alguns conhecidos a fazer a
mudança da Paraíba para a Ilha.
Já o tio de Kaio, de 10 anos, que frequenta o Projeto, chegou na Ilha para trabalhar na
construção civil. Ramos foi contratado em uma cidade periférica, perto de uma capital no
Nordeste, por uma empresa que oferece mão-de-obra para uma grande construtora de
Florianópolis. O esquema de contratação, como ele me explicou, é comum. Lá ele assinou um
contrato, o salário e as condições do emprego previamente estipuladas e as exigências quanto
ao seu comportamento como funcionário da empresa. Os funcionários devem morar nas obras,
não podendo alugar moradia própria aqui, também são proibidos de consumir bebidas
alcoólicas e passar as noites fora do alojamento montado na obra. Há uma espécie de “toque de
recolher”. Parte do salário é paga aqui, mas a maior parte é paga para a família na cidade de
origem. Há “multas”, que são descontadas do salário, caso o empregado quebre alguma das
regras. Mas, diferentemente do caso de Edvania, Ramos comentou que o salário pago aqui era
bem melhor do que ele receberia pelo mesmo trabalho em seu estado de origem. Foi por isso
que ele veio e resolveu ficar. Depois que seu contrato acabou, Ramos encontrou outro emprego
na construção civil. Sua esposa, Taís, e a filha pequena se mudaram para Florianópolis e a
família alugou uma casa no Saco Grande. Taís logo começou a trabalhar em uma loja de roupas
e, depois de muito estudar, passou no vestibular para nutrição na Universidade Federal de Santa
Catarina33. Sua mãe, Dina, também veio para cá, trazendo consigo Kaio, seu neto, sobrinho de
Ramos e Taís. No dia em que nos conhecemos, em sua casa, 5 anos depois de sua chegada a
Floripa, ele havia acabado de comprar seu primeiro carro e esperava ansiosamente Taís voltar
da universidade para levá-la para dar uma volta.
Este movimento, no qual um pioneiro inicial abre caminho e cria condições para a
chegada de outros membros do grupo familiar e de afins, é bastante comum tanto entre os
moradores do bairro quanto na Grande Florianópolis. Contudo, diferente das meninas de
Edvania e de Kaio, entre as crianças matriculadas no Projeto Renascer, a maioria nasceu em
Florianópolis. Filhas e filhos de migrantes vindos do interior de Santa Catarina, Paraná e Rio
Grande do Sul. Como Ema, nascida em Florianópolis, assim como nasceram aqui três de suas
quatro irmãs e seus dois irmãos. Seus pais vieram para Florianópolis logo após se casarem, em
33Tais foi a primeira pessoa em sua família a cursar a universidade. Seu acesso ao ensino superior foi possibilitado
pelo sistema de cotas raciais. Durante a pesquisa, conheci outros moradores do Saco Grande na mesma situação:
eram os primeiros e as primeiras de suas famílias a fazer universidade. E o acesso, na maioria dos casos, foi
possível graças ao sistema de cotas raciais ou cotas para estudantes de escolas públicas. Isso no caso de alunos e
alunas de Universidades Públicas, normalmente mais jovens. É inegável que a Lei Federal das Cotas nº 12.711
mudou a cara das universidades federais. No caso das famílias que conheci, ela significou a oportunidade de acesso
à universidade pela primeira vez.
50
busca de empregos. Segundo sua mãe, Fabrina, sua família, e a família de seu ex-marido, têm
pequenas propriedades no centro-oeste do estado, nas quais criam porcos para uma grande
empresa e plantam o que é possível. Mas, quando casaram, sabendo que a terra era pouca, não
sendo suficiente para sustentar ainda mais um núcleo familiar, começaram a pensar em sair
dali.
Assim, logo depois do nascimento de sua primeira filha, os pais de Ema, uma tia e um
tio, resolveram vir à capital em busca de emprego e melhores oportunidades. Quando a conheci,
Fabrina trabalhava como camareira em um hotel de luxo no norte da ilha e seu ex-marido
trabalhava com “serviços gerais”, ocupação da maior parte dos pais das crianças matriculadas
no Comosg (segundo suas fichas de matrícula) 34
Alguns anos depois dos pais de Ema mudarem-se para Florianópolis, este primeiro núcleo
familiar foi seguido por outros irmãos, irmãs, comadres e compadres. Depois da separação, o
pai de Ema mudou-se para um bairro periférico no continente, com a nova esposa e sua filha
recém-nascida. Foi em busca de melhores preços de aluguel, apesar de continuar a trabalhar na
Ilha a maior parte do tempo. Ele, assim como muitos dos pais, tios e avôs das crianças e jovens
que conheci, trabalham no mercado informal. É entre as mulheres que encontramos uma maior
inserção no mercado formal (camareiras, vendedoras, cozinheiras); mesmo assim, a maioria
ainda trabalha de faxineira e doméstica informalmente, mesmo após a mudança da legislação
trabalhista em relação ao trabalho doméstico em 2015.
Já a família de Ludmila, outra jovem que frequenta o Projeto Renascer é, em suas
palavras, toda manezinha35. Seu pai foi criado em um dos morros no continente e sua mãe foi
criada em um morro na área central da Ilha. Depois de casados, mudaram-se para uma casa em
um bairro popular no continente. Contudo, no ano 2000, devido à construção da Via Expressa
(via de acesso às pontes, à BR 282), foram removidos para o recém-construído Conjunto
Habitacional Vila Cachoeira, no Saco Grande, onde moram até hoje com suas três filhas e um
filho. Muitas das crianças e famílias atendidas pelo Projeto Renascer moram na Vila e, assim
como Ludmilia e seus familiares, vieram das comunidades removidas em função da construção
da Via Expressa.
34 Já entre as mães, as ocupações mais comuns são “doméstica”, “serviço de limpeza”, “diarista” e “auxiliar de
cozinha”. Poucas são as mães que, como Taís, encontram emprego em lojas no shopping. Segundo as fichas de
matrículas, a maior parte dos núcleos familiares tem uma renda entre 1 ou 2 salários mínimos. Também são poucas
as mães e pais que completaram o ensino médio.
51
A instalação da Vila Cachoeira, que é como o conjunto Habitacional ficou conhecido no
bairro, significou uma grande mudança para o Saco Grande e gerou conflitos que, até o
momento da pesquisa, ainda repercutiam no cotidiano. Foi por esta razão que Nina, diretora do
Comosg, resolveu levar o G3, (o grupo que reúne aqueles entre 13 e 16 anos) para passear pelos
morros do bairro, já que a maioria deles e delas moravam na Vila Cachoeira. Seu desejo era
criar uma ponte entre as crianças e jovens que moram na Vila e aqueles e aquelas que moram
nos morros. O passeio foi também uma oportunidade para que eu conhecesse melhor o bairro.
52
já não eram mais do lixo, bateu palmas e nos chamou para continuar. Caminhamos até a entrada
da Rua Pedra de Listras, no morro da Pedra Listrada. Antes de subir, Nina nos reuniu, pediu
que nos movimentássemos em conjunto e pediu respeito em relação aos moradores e
moradoras. Perguntou para aqueles que moram na Vila Cachoeira se eles já haviam subido ali.
A maioria respondeu que não, que era a primeira vez neste morro específico. Era a minha
primeira vez por ali também.
Começamos a subida e, após alguns minutos, quando olhei para o lado, fiquei
impressionada. A vista era magnífica, mesmo tendo subido tão pouco. Dali era possível ver o
mar, o continente, o mangue do Saco Grande e seu desenho que, ao formar uma reentrância,
uma espécie de “saco” ou pequena baía, dá nome ao bairro 36. Mas minha maior surpresa foi ao
chegar ao “topo” do morro e descobrir que o que eu achava que era o fim da ocupação
residencial era apenas uma parte dela.
À minha frente, a rua onde estávamos descia e subia ainda algumas vezes. Casas, ruas e
servidões surgiam no meu campo de visão, onde eu achava haver apenas vegetação e morros.
Esta parte do bairro fica escondida dos olhos daqueles que circulam apenas pela Geral Virgílio
Várzea ou pela SC 401. Lá de baixo, vemos apenas parte dos morros, ocupados por casas na
parte mais baixa e com vegetação mais acima. Mas dali era possível ver as subidas e descidas
dos morros atrás e além do que é possível perceber no início da subida. Impressionante, o que
parece apenas um morro com 3 ou 4 picos distintos é, na verdade, uma cadeia de montanhas
cuja parte mais alta não pode ser vista da Geral. Na minha frente, muitas casas e muita floresta.
36 “Saco” é uma expressão açoriana para designar uma área protegida de grandes ondas ou marés.
53
Ema, que estava ao meu lado, me apresentou sorridente ao seu território. Apontou para
sua casa, uma construção parte de alvenaria e parte de madeira, no morro ao lado. Mostrou as
casas de suas primas e tias e o caminho que fazia todos os dias para ir para a escola e para o
Comosg (um longo caminho). Apontou para uma árvore que ela adorava, perto do terreno de
sua casa, e para as janelas que pulava, quando queria fugir de casa para brincar. Também
nomeou os morros ao nosso redor: Morro do Cajú, Morro da Pedra Listrada, Morro do Balão,
Morro do Cachorro. Apontou para o caminho que dá para a casa de uma de suas irmãs mais
velhas, uma estrada de terra que subia morro acima, e se perdia na floresta. É a estrada que dá
acesso a uma das cachoeiras sobre as quais crianças e jovens sempre me falavam.
Aquele foi o momento em que entendi onde morava grande parte dos 7.607 moradores
do bairro. Até então, como o que eu percebia eram somente as casas visíveis da Geral, o
tamanho do bairro ainda era um mistério para mim. Esta é uma das particularidades do Saco
Grande: a princípio, o bairro parece pequeno.
O bairro do Saco Grande, com seus 7.607 moradores, está localizado no centro norte da
Ilha de Santa Catarina. Faz fronteira com sete outros bairros – João Paulo e Monte Verde ao
sul; Costa da Lagoa e Canto do Moreira a leste; Ratones e Santo Antônio de Lisboa ao norte;
Cacupé a nordeste – e a Baía Norte a oeste (o mangue do Saco Grande, que atualmente faz parte
da Estação Ecológica Carijós).
A principal via de acesso ao bairro é a Rodovia Virgílio Várzea ou, como é conhecida
localmente, a Geral. Até a década de setenta do século passado, quando foi pavimentada, a
Geral era um estreito caminho de terra. Um caminho antigo, da época colonial, parte da malha
que formava as “estradas gerais” da colônia, ligando povoados de pescadores, chácaras no
interior e o centro da Ilha do Desterro. O comércio local, pequenos mercados e estabelecimentos
menores ou mais antigos, ficam às margens da Geral. É ali que o pai de Nina tinha uma
mercearia/bar, que ela herdou e da qual cuidou durante anos. Também é na Geral que está a
Unidade de Saúde local, a escola, a creche do bairro e o Comosg. A Geral é a via de acesso a
todos os morros do bairro, assim como dá acesso à única entrada oficial para a Vila Cachoeira
(há outros caminhos para a Vila, trilhas no mato, que ligam a Vila aos morros e cachoeiras no
seu entorno). A Geral é uma rua de lajotas esburacada, com calçadas inexistentes ou irregulares
e sem manutenção, exceto na pequena porção dela que faz a ligação entre a SC 401 e os fundos
do Floripa Shopping. Esta parte da rua é asfaltada, bem conservada e há calçadas com floreiras
dos dois lados.
A outra Rodovia que atravessa o bairro é a SC 401 que, como a Rodovia Virgílio Várzea,
surgiu na década de setenta do século XX, quando as principais estradas do município foram
54
estadualizadas, retificadas e asfaltadas (GUIMARÃES, 2007). Pensada como uma via de
ligação entre o norte e o centro da Ilha, a SC 401 segue o trajeto dos antigos “caminhos gerais”
em muitos pontos, mas não no bairro do Saco Grande. Ali os construtores da SC preferiram
ficar mais perto do mangue, onde o terreno era plano e não havia muitas ocupações. Assim, na
região do Saco Grande, a SC 401 é paralela à Virgílio Várzea e cerca de 500 metros de terreno
plano separavam as duas.
É exatamente nestes terrenos, que margeiam a SC 401, que inúmeros empreendimentos
comerciais de grande porte e instituições estatais se instalaram ao longo das últimas décadas.
Nesta área temos o Floripa Shopping, o Casa&Decor Shopping, grandes lojas de decoração e
artigos para casa, centros comerciais e empresariais, a sede administrativa do Governo Estadual,
o Teatro Pedro Ivo, a sede da NSC (empresa de telecomunicações filiada à Rede Globo de
Televisão), a Decathlon (grande loja de artigos esportivos), o Podium Kart Floripa, o Centro de
Tecnologia e Automação Industrial (CTAI/Senai), a Associação Catarinense de Medicina, o
campus de Florianópolis da Universidade do Vale do Itajaí, entre outros.
A grande atração que esta área do bairro exerce pode ser entendida quando lembramos
que estes são terrenos amplos e planos, perto do centro, numa localização estratégica e de
grande fluxo de pessoas (afinal, até 60 mil veículos podem circular por ali num único dia), em
uma área até pouco tempo inexplorada. Um número muito pequeno desses empreendimentos
tem uma entrada na Virgílio Várzea, apesar de alguns ocuparem o terreno até lá. Além da
recente ocupação estatal e comercial, o bairro vem sendo ocupado por condomínios fechados
de médio e alto padrão, que se instalam em áreas menos povoadas, distantes dos morros ou no
limite com o bairro João Paulo. Mas a grande maioria dos moradores do bairro moram ou na
Vila Cachoeira ou no complexo de morros que se desdobra a partir da Geral. Há residências
nas margens da Rodovia Virgilio Vargas, mas praticamente não há moradias nas margens da
SC 401.
55
Imagem 1 – Vista aérea parcial do Saco Grande
56
então, mesmo depois da disputa mais acirrada ser resolvida, o bairro, e principalmente a Vila
Cachoeira, passaram a ser conhecidos na cidade como lugares “perigosos”.
Durante o período do confronto dos grupos rivais, o Comosg acabou funcionando como
uma espécie de “território neutro”. Não houveram disparos contra a instituição ou confrontos
nas dependências do Comosg. Tati conta que ninguém circulava no terreno se estivesse armado.
A polícia também respeitava a neutralidade do Comosg e, até recentemente, policiais nunca
haviam entrado no espaço em busca de alguém ou para realizar as comuns “gerais” (revistas)
37. Muitas vezes, durante os tiroteios, moradores e moradoras corriam até lá para se proteger e
esperar que o tiroteio acabasse. Como a escola fechava nos momentos mais intensos, crianças
e jovens ficavam no Comosg até tudo se acalmar e seus pais ou responsáveis irem buscá-los.
Desde então, as coisas estão mais “calmas” no bairro. O que não é o mesmo que afirmar
que o bairro não enfrente problemas de segurança pública. A presença do tráfico de drogas,
tanto na Vila Cachoeira quanto nos morros, é inegável. Durante o dia e a noite é possível ver o
movimento de jovens, em sua grande maioria jovens homens e alguns meninos, envolvidos no
comércio ilegal de drogas. Há também mortes e confrontos violentos, brigas, assaltos e furtos
no bairro, feminicídios e agressões a mulheres e crianças. Durante os dois anos de pesquisa de
campo, o Comosg foi assaltado quatro vezes. Assim, a “fama” de bairro “perigoso” perdura e
esta fama produz efeitos no cotidiano do Projeto Renascer, como veremos nos capítulos a
seguir38.
No dia do passeio, percebi que a maioria das construções nas partes mais baixas dos
morros era de alvenaria, mas à medida que subíamos, encontrávamos mais casas de madeira,
que pareciam ser ocupações mais recentes e precárias. Havia casas mais antigas, construções
de alvenaria da década de setenta ou oitenta do século XX, mas a grande maioria das casas de
37 Isso é significativo quando lembramos o quão presente a força policial parece ser nas escolas locais, sendo
acionada com frequência para resolver conflitos. Durante uma das passeatas das quais participei com a gurizada
do Comosg em prol da escola estadual local, Giovanna, uma pequena de 7 anos, comentava que não entendia
porque nos dirigíamos para a Sede Administrativa do Governo Estadual para reivindicar em nome da escola. Ela
me disse: a gente tem que ir na delegacia porque quem manda na escola é a polícia, a polícia de bege e a polícia
de preto, que é mais chefe (numa referência a Polícia Militar e aos policiais do Batalhão de Operações Especiais
da Polícia Militar).
38 Uma das características de minha trajetória enquanto pesquisadora é colocar aquilo que é descrito como
“violência” entre aspas. Isso porque, seguindo o caminho proposto por Rifiotis (1997, 1999, 2006, 2008a), e
fazendo minha leitura do trabalho do antropólogo, defendo que a palavra “violência” é realmente um significante
vazio. Entendo que tanto o substantivo quanto o adjetivo são qualificações morais dos mais variados fenômenos
que precisam ser melhores explicitados. Desta forma, se uso as aspas é por suspeitar da palavra. É preciso abrir
esta qualificação substantiva, suspeitar do que parece ser evidente em sua utilização. Um dos caminhos para
realizar este movimento analítico é pensar sobre os efeitos que produz e descrever mais detalhadamente aqueles
fenômenos qualificados (ou substancializados) desta forma. Movimentos que espero realizar ao longo dos
próximos capítulos.
57
alvenaria era nova, algumas ainda sem reboco. A maioria das casas tinha algum tipo de área
verde: se o terreno era pequeno era possível ver uma pequena horta, nem que fosse em vasos,
e se o terreno era maior, muitas vezes havia também árvores frutíferas. Naquela tarde ouvi e vi
muitos galos e galinhas e até alguns porcos.
O movimento nas ruas era constante e aumentava à medida que entravamos mais no
bairro. Encontramos muitos conhecidos no caminho, crianças que frequentam ou já
frequentaram o Comosg, seus familiares. Os jovens encontravam amigos e amigas. Nina era
abordada a cada 10 passos por alguém. Uma senhora de cerca de 60 anos veio lhe pedir que a
ajudasse a encontrar uma vaga para seu irmão numa clínica para tratamento de dependentes de
álcool. Nina prometeu ver o que poderia fazer. Uma jovem conversou com Nina, pois não
conseguiu vaga na creche para seu filho. Nina prometeu ver o que poderia fazer. Uma senhora
conversou com Nina sobre o carnê do IPTU de sua casa, que não conseguira pagar. Nina
prometeu ver o que poderia fazer. Uma mulher queria matricular o filho no Projeto. Nina
prometeu ver o que poderia fazer. Com todas, Nina se comprometia e pedia que passassem no
Comosg tal e tal dia. Vendo Nina circular pelo bairro e ser abordada por razões diversas, tantas
vezes, eu começava a entender melhor a correria diária dessa mulher, que sempre encontrei
resolvendo algo para alguém.
Enquanto subíamos, cada vez que alguém identificava um “problema”, todos parávamos
para fotografar. Nina aproveitava estas oportunidades para conversar e sublinhar que é preciso
cuidar do bairro e lutar por direitos, esgoto é direito, rua calçada, água encanada, tudo é
direito. Mas não adianta ficar pedindo direito e ser porco e jogar lixo na rua! Esta era uma das
características mais marcantes do discurso de Nina: ao mesmo tempo em sublinhava os direitos
que entendia terem sido negligenciados, também reclamava por um comportamento que entedia
como correto e responsável por parte dos moradores e moradoras do bairro (não jogar lixo na
rua, não destruir propriedade pública, não se envolver com o tráfico de drogas).
A certa altura, Ludmila, que ia na frente com Gisele, parou na frente de uma encosta que
começava a deslizar, pondo em risco algumas casas acima. Feliz com sua “descoberta” de um
problema, Ludmila explicou a todos que este tipo de coisa acontecia por causa do
desmatamento. Nina, orgulhosa, disse a Ludmila que ela estava certa, e complementou
explicando que não se deve construir em encosta de morro assim. Apontou para as casas acima,
que estavam em eminência de desabar na próxima enxurrada, e falou que isso é também fruto
do descaso do Estado:
58
O Estado não auxilia o povo pobre, não dá condições pro povo ter casa. Aí o desgraçado
constrói onde dá, em cima de cachoeira, em pedaço de barranco. Junta desespero com
burrice e este Estado podre, que não quer saber do pobre, e dá nisso.
A partir daí, enquanto andávamos, os jovens, felizes porque encontraram algo que
acharam interessante fazer, apontavam para inúmeras construções em encostas e barrancos,
tirando fotos e tentando prever quando certas casas iriam desabar.
Passamos ao lado de uma cachoeira e Marilda e Aristides chamaram a atenção para o lixo
na margem e para alguns canos que despejavam líquidos ao longo do trajeto do riacho. Marilda
lembrou a importância de não se jogar lixo em lugares inapropriados. Reconheceu que para
algumas famílias não é fácil garantir que o lixo seja recolhido, já que devem andar até um ponto
de coleta nas partes mais baixas do morro. Mas reforçou a importância de que isso seja feito.
Incentivou os jovens a ajudar seus pais a criarem este hábito em casa. Apontou também para os
canos despejando água na cachoeira, alguns deles podem ser esgoto, disse ela, e isso é grave.
A esta altura já andávamos um bom tempo e começamos a fazer o caminho de volta.
Descemos para a Geral por um caminho diferente. Assim, passamos na frente da casa de Lion,
que insistiu para que a gente parasse para tomar água e falar com sua vó. A casa de Lion é
construída em um terreno íngreme, porão de alvenaria, casa de madeira. O terreno ao redor é
pequeno, mas há espaço para dois pés de mexerica, que colhemos felizes. Entramos pela porta
dos fundos, que dá acesso à cozinha, onde havia um fogão a lenha aceso. Na verdade, me senti
em uma das casas do interior catarinense, uma casa de colônia que poderia ser de meus avós.
O que não é à toa, a família de Lion veio do oeste catarinense assim como eu.
Pouco depois de sairmos da casa de Lion, uma curva na rua descortina a Vila Cachoeira.
Ali de cima, a Vila aparece em toda sua extensão, 205 casas geminadas divididas em seis
quadras, o Centro de Capacitação (agora desativado) e o Centro Comunitário. Neste momento,
Nina nos pediu para parar e apontou para uma casa ali perto, uma construção extremamente
precária de madeira praticamente em cima de uma das muitas cachoeiras que cortam o morro.
Apontou para a casa e depois para a Vila dizendo: olha ali, o desespero e vocês vêm às vezes e
me dizem que não tem pobre no morro! Olha ali agora e diz se tem essa pobreza, essa miséria
na Vila, olha lá embaixo. Não tem!
A vista da moradia precária de um lado e da Vila do outro ajudam Nina marcar seu ponto:
há sim miséria no morro. Naquela tarde, Nina se esforçou para demonstrar para o grupo de
jovens ali que elas e eles (moradores da Vila e moradores do morro) eram bem mais parecidos
do que imaginavam. Que a ideia, comum no Saco Grande, que os moradores da Vila eram mais
pobres era equivocada, que a animosidade sutil que perdurava desde a instalação da Vila
59
Cachoeira no bairro, precisava ser dissolvida. Mas para que possamos entender um pouco
melhor o posicionamento de Nina, vejamos como foi o processo de implementação do Conjunto
Habitacional Vila Cachoeira.
39 O projeto para a construção da Vila Cachoeira foi financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), no âmbito do projeto do Governo Federal Habitar Brasil, como parte do Projeto Bom Abrigo, desenvolvido
pela Secretaria Municipal da Habitação, Trabalho e Desenvolvimento Social do município de Florianópolis. As
ações do programa foram voltadas especialmente para a remoção de famílias das margens da Via Expressa – BR
282 – e geraram os conjuntos Habitacionais da Vila União (159 habitações), Vila Cachoeira (205 habitações) e
Abraão (177 unidades habitacionais).
40 Corrêa (2005) também ressalta a total falta de diálogo entre o poder público e os moradores do bairro durante o
processo de implementação do Conjunto Habitacional Vila Cachoeira.
60
Com o andamento das obras de construção da Vila Cachoeira, todos no bairro começam
a perceber, não sem preocupação, que o que ali se edificava eram as casinhas das Ângela,
expressão que faz referência às casas construídas em Conjuntos Habitacionais durante a
primeira gestão como prefeita de Ângela Amim (1996-2000), mais especificamente aquelas
construídas nos bairros de Monte Cristo e Chico Mendes, na parte continental do município.
Tati relata que, para as moradoras e moradores do Saco Grande (assim como para muitos
moradores da Grande Florianópolis), estes eram bairros perigosos de gente bandida, envolvida
com tráfico. Questões que, na narrativa local, não estavam até então presentes no Saco Grande.
Tati lembra que, antes da criação da Vila Cachoeira, até havia tráfico de drogas no bairro,
mas estava mapeado, tinha o Fulano e o Beltrano, que era cunhado dele. E tinha
ladrõezinhos, que era o Ciclano e um outro, que morava ali em baixo. Então, se sumisse
alguma coisa, tu ias lá, que tu já sabias quem era. Agora não.
Ou seja, segundo a narrativa local, questões como o tráfico de drogas ou furtos até
existiam no Saco Grande antes da Vila Cachoeira. Contudo, mesmo presentes, faziam parte de
uma rede de relações estabelecidas, conhecidas e, de certa forma, controladas. Já o Monte Cristo
e o Chico Mendes estavam relacionados à ideia de favela, algo que, segundo moradoras e
moradores do Saco Grande, não existia por ali. Favela, na concepção dessas pessoas, remeteria
à ideia de extrema pobreza, “violência” e tráfico de drogas.
Tati lembra também que, até então, o bairro era considerado um bairro mais ou menos
rural, pacato. A fala de Tati, assim como de muitos outros moradores antigos do bairro, remete
a um tempo antes da Vila, entendido como um tempo em que todos se conheciam, em que as
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relações de parentesco e de vizinhança eram intensas e, de certa forma, pacíficas. Contudo,
segundo Nina, apesar da Vila Cachoeira ter marcado definitivamente a mudança no cotidiano
do bairro, antes do ano 2000 já era possível perceber transformações. Estas transformações
aparecem ligadas sempre à chegada de novos fluxos populacionais, impulsionadas pela
implementação de dois outros Conjuntos Habitacionais, o Conjunto Habitacional Monte Verde
(1980) e o Conjunto Habitacional Parque da Figueira (1986).
Mas não foi apenas para os moradores do Saco Grande que a Vila Cachoeira surge como
uma imposição do Estado. Para a grande maioria das famílias removidas, a mudança de
endereço também foi uma imposição não desejada. A arbitrariedade do processo de remoção
compulsória das famílias realocadas marca as narrativas dos primeiros moradores vindos da
Via Expressa (Zurba, 2003; Correa, 2005; Antunes, 2007). A maioria destas famílias não
desejava a mudança, já que tinham relações bem estabelecidas na vizinhança da qual foram
obrigados a sair: escola e creche para as crianças, empregos, familiares e afins morando
próximo, sendo que alguns inclusive possuíam pequenos estabelecimentos comerciais.
Há ainda outros elementos problemáticos nesta política habitacional. As casas foram
entregues sem nenhum tipo de acabamento interno, apenas uma pia e um vaso sanitário no
banheiro. As paredes não tinham reboco, não havia escada de acesso ao sótão ou portas. Além
disso, logo nos primeiros meses, a caixa de coleta de esgoto, que fica na entrada da Vila
Cachoeira, transbordava diariamente, já que as casas haviam sido projetadas para receber
famílias com 4 pessoas, estimativa que não levava em conta o perfil das famílias que seriam
atendidas pelo programa. Ou seja, as casas eram para pequenas famílias nucleares, mãe, pai e
2 filhos, enquanto as famílias que chegavam eram famílias extensas, pais, avós, filhos, filhas,
tios, tias, irmãs, irmãos. Este problema era agravado pelo fato de que ao receber a casa, o
“comprador” assinava um contrato que estipulava que era proibido fazer qualquer tipo de
alteração na sua estrutura, ou seja, nada de “puxadinhos” ou “meia-águas” para resolver o
problema da falta de espaço.
Outro problema para estas famílias estava ligado à questão do emprego. A maioria
daquelas e daqueles obrigados a se mudarem para a Vila trabalhavam no mercado informal nas
imediações de suas antigas residências. Algumas pessoas tinham pequenos comércios, outras
trabalhavam em residências da classe média e alta no antigo bairro. A mudança tornava inviável
a continuidade no antigo emprego, devido ao alto custo do transporte público na cidade. Ou
seja, com a mudança, várias famílias perderam suas fontes de renda.
Desta forma, a Vila Cachoeira é inaugurada no bairro em meio a polêmicas; rejeitada não
apenas por moradores e moradoras locais, mas também por aqueles que foram forçosamente
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removidos de suas antigas habitações. Para os moradores e moradoras do bairro, aqueles
“outros” que ali chegavam representavam “perigo”. Já para os que chegavam, a mudança era
um processo não desejado. Forçados e forçadas a abandonar suas casas, viam os vínculos de
vizinhança, de trabalho, de amizade que tinham no seu antigo bairro rompidos abruptamente.
A prefeitura, mais uma vez, contribuía para agravar o quadro, uma vez que não forneceu
a infraestrutura prometida. A Unidade de Saúde do bairro, ainda não ampliada, não tinha
condições de atender o aumento de demanda. A creche, a escola e o centro de capacitação não
haviam sido construídos até a transferência das famílias. Ou seja, não havia vagas na escola ou
na creche para receber as crianças que chegavam. Frente a este quadro, o Comosg decide
receber as crianças; muitas acabam passando o dia todo no Projeto Renascer. E, no meio de
tudo, muita controvérsia.
Quando, no ano 2000, o Comosg abre as portas do Projeto Renascer para as crianças que
se mudaram para a Vila Cachoeira, praticamente todas as crianças (cerca de 40) que
frequentavam o projeto até então saem. Suas mães, pais e responsáveis decidem retirar os filhos
e filhas da instituição para que não convivam com as crianças da Vila Cachoeira, tidas como
“perigosas”.
Nina conta que a decisão de aceitar estas crianças não foi exatamente fácil para a diretoria
do Comosg. A atitude do Conselho foi questionada pelos pais, mães e familiares daqueles que
frequentavam o projeto até então, e também por outros moradores e moradoras do bairro. Nina
conta que para estas pessoas, o Comosg estava:
acolhendo uma marginalidade dentro da Vila. Eles não viam o pessoal pobre que tava
chegando ali como seres humanos, filhos de deus. E sim como um bocado de vagabundos
que tavam indo ali dentro e iam roubar e iam fazer do Saco Grande um inferno. E aí a gente
teve muitas brigas sérias, com a associação de moradores, com a própria escola. Que na
época o Donícia [Escola Municipal Maria da Costa] que era lá em baixo, a diretora ela
podia dizer que não tinha vaga41. E eu botava o pessoal pra cima dela, eu dizia pro pessoal,
se eles não derem vaga pro teu filho nós vamos lá, e a gente bancava. E ela [a diretora]
ficava indignada, ela tinha um medo danado desse pessoal da Vila, que ela achava que era
um pessoal violento.
Com o passar dos anos, as moradoras e moradores do bairro que vivem fora da Vila
Cachoeira voltaram a matricular seus filhos e filhas no Projeto Renascer. No início deste
processo, Tati e Nina comentam que a animosidade entre as crianças da Vila e as outras foi um
problema, mas aos poucos isso foi amenizado. Quando iniciei a pesquisa, esta animosidade não
influenciava mais, de modo unívoco, as relações entre as crianças, mas a ideia de que a Vila
41No ano 2000, a Escola Municipal Donícia Maria da Costa ainda funcionava em sua sede antiga, “descendo” a
Rua Virgíneo Várzea.
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Cachoeira é perigosa (assim como aqueles que lá habitam) e que é a parte mais pobre do bairro
perdurava. Lembro que Aristides, professor de capoeira e nos últimos meses de pesquisa
coordenador do Projeto, comentou que mesmo ele, antes de começar seu trabalho no Comosg,
tinha certo receio da Vila Cachoeira. Aristides nasceu no Saco Grande e sua família mora na
área há pelo menos quatro gerações. Foi a proximidade com as crianças e jovens da Vila, a
partir do trabalho no Comosg, que o levou a questionar a ideia negativa que tinha do lugar. Da
mesma forma, algumas crianças que moram na Vila comentavam comigo que não gostavam de
morar lá, nas casinhas. Para os familiares de Ema, por exemplo, sair da Vila e alugar uma casa
em um dos morros do bairro foi uma espécie de ascensão social. Sua mãe fala sobre este
momento como o momento em que as coisas começaram a melhorar para a família.
É por questões assim que Nina queria tanto levar o grupo do G3 para passear pelos
morros. Ela entende isso como parte do trabalho que o Projeto Renascer deve realizar, uma
espécie de educação política, que lhes permita participar da luta pela garantia de seus direitos
básicos (por isso as fotos e o dossiê para a Prefeitura Municipal) e que lhes permita perceber
também que são parte do mesmo bairro, com os mesmos problemas. Mas antes que possamos
discutir com mais demora como Nina, e as demais coordenadoras do Projeto Renascer
entendem seu trabalho, é importante que “cheguemos”, finalmente, ao Comosg e ao Projeto
Renascer. Por isso, nesta segunda parte do capítulo, procuro introduzir com mais detalhes, o
Conselho de Moradores do Saco Grande e o Projeto Renascer.
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Imagem 2 – Vista aérea do Comosg e entrada da Ilha Cachoeira
A parte externa do Comosg funciona como uma área de lazer no bairro, uma das únicas.
Durante o dia, há sempre crianças e jovens brincando, jogando bola, empinando pipas ou
conversando por ali. Isso acontece mesmo nos finais de semana, quando o Comosg está
fechado. Assim, durante a semana, as crianças e jovens que circulam por ali não estão todas
necessariamente matriculadas no Projeto Renascer. Isso é mais comum principalmente nos
horários entre turnos, ou seja, no final e no início do turno da manhã e da tarde (que coincidem
com as movimentações na escola ali na frente). Nestes horários, o movimento na área externa
é intenso; jovens e crianças aparecem para jogar bola, ping-pong, conversar. Há também, às
vezes, um movimento mais discreto, no canto esquerdo do terreno, de usuários de crack. Eles
se mantêm distante das crianças, ficam sentados por ali e utilizam as torneiras e o tanque. Já à
noite, é possível encontrar alunos do Senai ocupando o espaço. Eles estacionam os carros no
terreno do Comosg, perto das construções e do parquinho, e ficam ouvindo música no carro,
conversando e bebendo alguma coisa. Os moradores do bairro também organizam pequenos
campeonatos de futebol, em finais de semana, no campo gramado.
As duas construções, que abrigam as salas de oficinas, a coordenação e a cozinha, são de
alvenaria. A principal construção fica mais afastada da rua e é lá que grande parte das atividades
internas são realizadas. Ali, a porta de duas folhas da entrada dá acesso a um corredor de
aproximadamente 6 metros, onde algumas cadeiras dispostas ao longo da parede estão quase
sempre ocupadas por jovens e crianças. É ali também que fica o bebedouro, sujeito a filas,
conversas animadas e embates. O corredor desemboca na sala da coordenação/secretaria, o
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coração da instituição. Esta é uma sala retangular, de aproximadamente 25 metros quadrados.
Logo na entrada, há duas mesas, já um pouco desgastadas, típicas de escritório, uma delas
ocupada pela secretaria e outra pela coordenadora. Alguns armários (que já viveram dias
melhores) ocupam todas as paredes da sala, abarrotados. Ali estão guardados documentos,
materiais de escritório, uma infinidade de objetos necessários para as atividades diárias (bolas,
lápis de cor, fantasias velhas, livros, cadernos, etc) e os objetos “confiscados” por algum motivo
(pipas, armas de brinquedo). Em cima dos armários e no chão perto deles ficam as caixas de
papelão com roupas para doação: de lá saem blusas, casacos, chinelos, calças e shorts para
vestir as crianças quando necessário. É a partir dessas roupas também que são organizados
bazares de roupas usadas para a comunidade e são estas as roupas distribuídas para aqueles que
vêm até ali pedir ajuda.
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e, desconfio, para irritar a coordenadora ou coordenador até que ela os mandem para fora, num
tom de brabeza exasperada que causa uma debandada cheia de risadas e gritos.
Saindo da coordenação, à direita de quem entra, no final do corredor, temos a
cozinha/refeitório, ao lado da “sala da Marilda”, e uma pequena despensa.
A cozinha é mais ou menos do tamanho da coordenação e tem aqueles itens normalmente
encontramos numa cozinha: geladeira, fogão (industrial) e pia. Como ali funciona também o
refeitório, há duas mesas de madeira, finas e compridas, com seus respectivos bancos. Com
apenas duas mesas, não há espaço para todas as crianças comerem ao mesmo tempo. Assim, os
horários das refeições (almoço e janta) são organizados em turnos. As crianças são divididas de
acordo com os grupos etários que organizam todas as atividades na instituição (G1 de 6 a 8
anos, G2 de 9 a 12 anos e G3 de 13 a 16 anos). Cada grupo come, se movimenta e assiste
oficinas junto.
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De volta ao corredor, do lado esquerdo encontramos a “sala do espelho”, a “sala da TV”
e um banheiro (há outro banheiro dentro da “sala da TV”). A “sala da TV” tem, obviamente,
uma televisão e um aparelho de DVD e algumas mesas redondas e muitas cadeiras. Ao longo
da parede foi construído um armário aberto, no qual as crianças guardam suas mochilas. Esta é
a sala favorita dos jovens, já que as mesas redondas ao redor das quais várias pessoas podem
sentar, são perfeitas para jogos, como cartas e Banco Imobiliário, os favoritos.
Ao lado, na “sala do espelho”, o espaço é praticamente vazio: só há algumas cadeiras,
encostadas em três das quatro paredes. Na quarta parede, fazendo jus ao nome da sala, há um
espelho que a cobre quase por inteiro. É nesta sala que as oficinas de dança acontecem e também
é onde todas as crianças e jovens são reunidos todos os dias no início de cada turno para receber
recados e conversar com as coordenadoras. É somente após este momento inicial que as
atividades do dia começam.
Atrás da “sala do espelho”, separada dela por um pequeno corredor, temos a “sala de
trabalhos manuais”, ao lado de uma sala usada como depósito. É possível acessar estas duas
salas pela parte externa da instituição, mas a grade que dá passagem ao corredor está
normalmente fechada; então é preciso atravessar a “sala do espelho” para chegar à “sala de
trabalhos manuais”, o que sempre acaba causando uma certa confusão, que as crianças parecem
adorar (porque que lhes dá oportunidade de falar com pessoas de outros grupos), deixando as
professoras exasperadas. Todas as salas têm aproximadamente 15 metros quadrados e todas
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têm amplas janelas, protegidas por grades fixadas nas paredes do lado de fora (há uma grade
protegendo também a porta de entrada).
A outra construção do terreno fica localizada mais perto da rua. São duas salas, o “cafofo”
e a “sala das senhoras”, com entradas independentes. O “cafofo”, uma sala de aproximadamente
20 metros quadrados, foi o espaço que mais se transformou durante o trabalho de campo. A
princípio, era um depósito desordenado, que foi transformado na sala da oficina de capoeira por
Aristides e depois, quando o trabalho de campo já havia sido finalizado, acabou virando uma
midioteca, graças ao projeto Cine Literário 42. A “sala das senhoras” é a menor das salas do
Comosg e a única que não é utilizada pelo Projeto Renascer. Ali, algumas vezes por semana,
um grupo de mulheres mais velhas, que moram no bairro, se reúne para costurar.
As duas construções são de alvenaria e relativamente novas. O que não foi construído no
ano 2000, foi reformado nesta época. Porém, já é possível perceber claramente sinais de
desgaste, não apenas nos detalhes superficiais (pintura e acabamento), mas também na
estrutura. Este desgaste atesta as características comuns das construções financiadas pelo poder
público: o descaso e a baixa qualidade dos materiais (apesar dos orçamentos, que parecem
prever gastos com materiais de qualidade). Neste sentido, a estrutura física do Comosg não
difere muito das escolas do bairro, da Vila Cachoeira, da Unidade de Saúde local e de tantas
outras instituições públicas que, mal inauguram e já apresentam problemas na estrutura.
A manutenção da estrutura física é feita pelo Conselho de Moradores, com ajuda de
doações, tanto de material quanto de mão-de-obra, por parte de moradores do bairro, mas,
principalmente, dos funcionários do Comosg, notadamente, aqueles que moram no bairro. Foi
assim que a rampa de acesso para cadeirantes, tão sonhada por Nina, foi construída, com a
doação de material e trabalho de moradores do bairro e funcionários.
42O Cine Literário faz parte do projeto Ponto Cine, fundado por Adailton Medeiros, na cidade do Rio de Janeiro,
em 2006. O projeto visa estimular o acesso à leitura através do cinema. Assim, cedem Midiotecas às instituições
beneficiadas, contendo kits de exibição, com TV Full HD de 47’’ e Blu-Ray Player, cinquenta títulos de filmes e
de livros brasileiros que originaram os filmes – todos duplicados, ou seja, 100 livros e 100 DVDs.
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1.5. Projeto Renascer
O Projeto Renascer, criado no início de 1998, atende cerca de 200 crianças, entre 6 e 15
anos (com algumas exceções), que frequentam o Projeto no contraturno escolar. As atividades
acontecem de segunda-feira a sexta-feira em dois turnos, matutino e vespertino, atendendo
assim tanto as crianças que frequentam a escola pela manhã quanto aquelas que vão para escola
à tarde. O turno da manhã começa às 8h, quando é servido o café da manhã. Logo em seguida,
todas as crianças vão até à Sala do Espelho, para a conversa do início do dia. Este é o momento
em que avisos de reuniões e atividades especiais são dados pela coordenação; que questões
disciplinares gerais são discutidas ou relembradas. Ali também as crianças são informadas sobre
qualquer evento que a coordenação considera importante. Às 8h30 começam as oficinas. São
três oficinas diferentes por turno, cada uma dura cerca de uma hora. No meio da manhã, as
crianças comem um pequeno lanche, normalmente frutas. Às 11h20 o almoço é servido e o
turno da manhã acaba às 12h.
O turno da tarde começa às 13h. Perto das 13h30, as crianças são reunidas na Sala do
Espelho para a conversa diária e dali partem para suas respectivas oficinas, que duram cerca de
uma hora. No meio da tarde, é servido um pequeno lanche (igual ao do turno da manhã) e, a
partir das 16h30, o lanche da tarde, que é sempre quase uma janta, começa a ser servido. O
turno da tarde acaba às 17h.
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A maioria das crianças não vai para casa entre o projeto e a escola, mas ficam ali, no
espaço do Comosg, brincando, jogando, conversando. O horário entre um turno e outro (das
12h às 13h) é um horário de movimento intenso, que aumenta ainda mais porque muitas
crianças e jovens não matriculados no projeto sempre aparecem por ali, para jogar bola, empinar
pipas, jogar ping-pong, conversar. Como o espaço é aberto e amplo, há um vai e vem contínuo;
sem muros ou portões, é fácil movimentar-se entre o Comosg e a rua em qualquer horário
(diferentemente do que acontece em relação às escolas e aos outros projetos sociais no bairro).
A impressão para algumas pessoas (como uma antropóloga em suas primeiras semanas
de trabalho de campo) é de uma enorme confusão de crianças e jovens correndo, gritando,
brincando livremente. Sem entender a rotina e o fluxo de pessoas do Projeto Renascer e do
Comosg, confundi fluxo com bagunça e movimento com a falta de uma rotina organizada. Mas
não fui a única; uma das críticas que ouvi com mais frequência de moradores e moradoras do
bairro (e também de algumas funcionárias) em relação ao Projeto Renascer é exatamente o que
entendem como falta de organização e excesso de liberdade. A coordenação do Projeto e a
direção do Comosg, conscientes destes pontos de tensão, constantemente abordam estas
questões tanto com os familiares das crianças, quanto com elas. Como veremos a seguir, esta
abertura materializada na ausência de muros e na organização de atividades lúdicas-livres para
as crianças (isto é, sem a intervenção ou planejamento direto de um educador) é uma escolha
consciente das organizadoras, uma escolha tanto pedagógica quanto política. Por um lado,
acreditam na importância de atividades lúdicas não planejadas para as crianças, ou seja,
acreditam que crianças precisam brincar sem que a brincadeira seja elaborada e determinada
por uma educadora. Estas brincadeiras são vistas pela coordenação como fundamentais para o
desenvolvimento infantil. Por outro lado, a ausência de muros é pensada como um sinal de
abertura à comunidade ao redor.
71
turmas de G1 em cada horário, pois o número de crianças era grande demais para que todos
fizessem a mesma oficina. O grupo daqueles entre 12 e 15 anos, o G3, era o menor dos grupos.
Algumas atividades deste grupo (como capoeira) eram realizadas junto com o G2.
Algumas crianças “disputavam” esta classificação etária e assistiam as oficinas de outro
grupo toda vez que conseguiam, negociando diariamente com quem fosse preciso. Às vezes
pediam para alguém da coordenação, às vezes falavam com a responsável pela oficina
escolhida. Mas, na maior parte do tempo, as crianças simplesmente juntavam-se ao grupo que
preferiam até que alguém questionasse sua presença ou que decidissem espontaneamente voltar
ao grupo ao qual pertenciam de acordo com sua idade. Quando comecei o trabalho de campo,
Pedro, que tinha então 9 anos, raramente fazia atividades com seu grupo, o G2. Se ele não
estava com o G3, estava na coordenação conversando com a coordenadora e com quem
estivesse lá. Pedro se recusava não apenas a fazer atividades com seu grupo etário, mas também
se recusava a fazer as atividades que não considerasse interessantes. Estes eram os dois motivos
para que as crianças tentassem mudar de grupo: queriam conviver com os maiores ou
procuravam escapar de uma atividade que lhes desagradava.
Raramente alguém queria participar de atividades em grupo de uma faixa etária menor; o
movimento era quase sempre no sentido de ficar perto daqueles que são mais grandes. Quando
alguém mais velho decidia assistir uma oficina com as crianças mais novas, ele ou ela acabava
agindo como uma espécie de ajudante, orientando os mais novos, ajudando a organizar jogos e
atividades. Havia também ocasiões em que os mais velhos faziam as atividades propostas para
os menores com uma atitude quase nostálgica: brincavam de ser menores e refletiam sobre a
diferença que a idade que têm havia produzido neles e nelas. Como Alice do G3 que, colorindo
um desenho junto com crianças do G1, lembrava de quando ela era do G1 dizendo que naquela
época a vida era boa, era só pintar e brincar.
A atitude de cuidado dos mais velhos e mais velhas em relação às crianças mais novas
era bastante comum. Neste sentido, as meninas faziam isso com mais frequência, já que muitas
vezes eram também responsáveis pelas crianças mais novas em casa e no grupo familiar 43.
43A disparidade na distribuição das tarefas domésticas entre meninas e meninos não é uma exclusividade destas
famílias, mas parte de um quadro mais amplo de desigualdade de gênero. Segundo um estudo da UNICEF
publicado em 2016, as meninas entre 5 e 14 anos gastam 40% mais tempo em tarefas domésticas do que nos
meninos; inclui-se entre as tarefas o cuidado com as crianças mais novas. Segundo a pesquisa, a distribuição
desproporcional do trabalho doméstico começa cedo, aos 5 anos. Outra pesquisa, desta vez no contexto brasileiro,
conduzida pela ONG Plano Internacional entre 1.771 crianças, de 6 e 14 anos, confirma este cenário de
desigualdade. Em relação à divisão das tarefas domésticas, 81,4% das meninas arrumam sua própria cama
enquanto apenas 11,6% dos seus irmãos meninos o fazem. 65,6% das meninas limpam a casa, tarefa só executada
por 11,4% dos meninos. Quanto ao cuidado de crianças mais novas, 34,6 % das meninas são responsáveis por isso,
enquanto entre os meninos este numero é de 10%.
72
Contudo, a mesma atitude podia também ser observada algumas vezes entre os meninos,
principalmente em relação às crianças com um grau de parentesco próximo.
1.5.2. As oficinas
Durante a pesquisa, o projeto oferecia oficinas de Apoio Pedagógico, Educação Física,
Futebol, Capoeira, Violão, Dança e Trabalhos Manuais. Além disso, as crianças tinham alguns
horários livres durante a semana. Nestes horários, diferentes atividades eram organizadas ou as
crianças podiam brincar livremente, ou seja, brincar sem a intervenção direta de um adulto
planejando do quê e como brincariam.
Algumas oficinas, como reforço escolar e educação física, são ministradas por
professoras contratadas pela Secretaria de Educação do município (em regime de Admissão em
Caráter Temporário - ACT) e cedidas ao Projeto Renascer como parte do convênio firmado
entre o Comosg e a Prefeitura Municipal, em prol do Projeto Renascer. Outras oficinas são
ministradas por profissionais contratados diretamente pelo Comosg, como a oficina de capoeira
e a de violão. Estas profissionais são nomeadas professoras ou oficineiras. Aquelas (e aqueles)
que tem uma formação formal ou são mais velhas são normalmente as (e os) professoras(res),
e aquelas profissionais sem formação formal, que são maioria, jovens adultas(os), são as (os)
oficineiros. Aristides, por exemplo, começou a trabalhar ali como oficineiro de capoeira. No
final da pesquisa, já cursando a faculdade de pedagogia, tornou-se professor. Contudo, as
crianças, na maior parte do tempo, chamam as profissionais que moram no bairro pelo primeiro
nome; já as que que vêm de fora são chamadas de professoras. O nome só passa a ser usado se
a profissional ficar ali mais de um ano; o que, como veremos, é raro.
As oficinas de futebol eram oferecidas pelo Instituto Lagoa Social, uma instituição sem
fins lucrativos do município que promovia, entre outras ações, aulas de futebol em algumas
ONGs e projetos sociais da ilha. Eles cediam os profissionais responsáveis pelas aulas, as bolas
de futebol e, uma ou duas vezes ao ano, levavam as crianças para o cinema ou passavam um
filme para elas na sede do Comosg. Nestas ocasiões, as crianças ganhavam também pipoca e
refrigerante.
É importante lembrar que as crianças e jovens atendidos pelo Projeto Renascer
frequentam o ensino fundamental. Mesmo os mais novos (6, 7 anos), que acabaram de iniciar
o processo de letramento, estão envolvidos nas atividades escolares: deveres de casa, pequenos
testes, trabalhos, ou seja, já têm responsabilidades ligadas ao seu processo de aprendizagem
escolar. Se no ensino infantil o brincar estava em primeiro plano, ao chegar no ensino
73
fundamental as crianças deparam-se com uma situação diferente: o brincar passa ao segundo
plano e o letramento ocupa o lugar central (Neves et al, 2011). A partir daí, cada vez mais, o
aprendizado formal ganha espaço na rotina escolar; as atividades lúdicas vão sendo reduzidas
e a carga de trabalho que deve ser realizado fora do horário escolar aumenta. Reconhecendo
isto, o Projeto Renascer tem entre as oficinas oferecidas diariamente a oficina de “reforço
escolar”. Este é o momento para fazerem seus deveres escolares com o auxílio de uma
professora. Mas, além disso, oferecem também horários livres, entendendo que, graças às novas
obrigações da aprendizagem formal, é preciso garantir também tempo para o brincar, já que, na
escola, este tempo torna-se cada vez mais escasso.
A escolha das temáticas das oficinas não chega a causar estranhamento; afinal, práticas
esportivas, artísticas (música, dança, trabalhos manuais, teatro), reforço escolar e brincar
livremente são as atividades que aprendemos a valorizar enquanto atividades apropriadas para
sujeitos desta faixa etária. Ou seja, por sujeitos “em processo de desenvolvimento”, tanto que
são parte dos seus “direitos fundamentais”, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente 44.
Assim, as atividades oferecidas pelo Projeto Renascer não diferem da maioria das atividades
“extracurriculares” concebidas como apropriadas e incentivadas para esta faixa etária da
população, seja qual for sua classe social.
Contudo, além disso, para a coordenação do projeto a oportunidade de participação nestas
atividades pode ser um caminho na luta contra a desigualdade social. Ou seja, oferecer às
crianças e jovens aulas de música, dança, teatro, capoeira e afins é um modo de lutar contra os
efeitos da desigualdade social. Durante uma aula de capoeira com um professor convidado, o
professor de fora falava para as crianças e jovens presentes que todas as atividades que faziam
no Comosg eram importantes, que eles deviam levar as aulas a sério, já que todas as professoras
e professores estavam ali para garantir que eles tivessem oportunidades educacionais similares
as que os alunos do Energia45:
Porque esse pessoal [alunos do Energia] fazem todas essas atividades também, curso de
esporte, arte, reforço escolar. E escola deles é melhor que as nossas públicas? É, a gente
sabe disso, mas vocês podem aproveitar que vocês têm também estes cursos extras aqui no
Projeto, estudar, aprender, se dedicar, para chegar na hora do vestibular, do trabalho e
vocês também poderem conseguir um bom lugar.
45O Colégio Energia é uma escola particular de elite do município de Florianópolis com grande prestígio no estado
de Santa Catarina graças aos altos índices de aprovação no vestibular para universidades federais.
74
Aqui, a concepção da educação, enquanto algo que pode proporcionar oportunidades de
acesso ao mercado de trabalho, de superação das dificuldades socioeconômicas, extrapola os
limites dos muros escolares e passa a englobar os cursos extracurriculares. Estas atividades, tão
comuns entre as crianças e jovens das classes média e alta, chegam às periferias das cidades
sob a forma de projetos sociais. Se, por um lado, o discurso que afirma que os projetos sociais
e as atividades que promovem são importantes pois mantêm jovens e crianças das classes
populares distantes do “mundo do crime” (RODRIGUES, 2011; BARREIROS, 2008) é
acionado em alguns momentos por determinados profissionais, por outro lado, o discurso que
afirma que estas atividades, enquanto atividades extracurriculares educacionais, são o caminho
para o “desenvolvimento pessoal” e a ascensão social também está presente. No caso desta
pesquisa, principalmente entre as profissionais moradoras do bairro e entre familiares das
crianças.
75
do tráfico de drogas ou outras atividades ilegais existe, tanto entre familiares quando entre as
coordenadoras e funcionárias do Comosg. Contudo, para algumas profissionais, principalmente
as envolvidas na coordenação, a “violência” e o “crime” não são os grandes articuladores que
justificam o projeto e a oferta de oficinas para as crianças e jovens. Mesmo porque, a grande
maioria das crianças, jovens e seus familiares não está envolvido nessas atividades. Neste
sentido, acreditam que é importante dar suporte às crianças e jovens que demonstram sinais de
aproximação com as atividades ilícitas, para evitar que esta aproximação se transforme em um
envolvimento mais sério. Mas entendem que as oficinas que oferecem, o trabalho que realizam,
não se limita a esta dimensão.
Em ambos os casos, percebemos que a noção de “educação” é central. Por um lado, ela
pode ser acionada como caminho para que a criança ou o jovem fique longe do “perigo” (ou de
tornar-se perigo). Por outro, ela pode ser acionada como um caminho possível para a superação
da condição de “vulnerabilidade social”. Os estudos, me disse Edvania, a jovem cozinheira que
veio com as filhas da Paraíba, são a única coisa que pode garantir um emprego de verdade para
suas filhas. Ela preza muito as oficinas que as meninas têm no Comosg, pois acredita que ali
aprendem coisas que a escola não lhes ensina e recebem mais atenção. Edvania sempre
comparava sua filha mais velha a uma colega de sala, dizendo que a amiga de sua filha não
havia aprendido a ler ainda (as meninas tinham 9 anos na época). Para Edvania, foi o trabalho
das professoras no Comosg que fez a diferença; sem esse trabalho sua filha também não saberia
ler ainda. Neste sentido, as expectativas pelos efeitos da “educação formal” não mais se limitam
à escola; os projetos sociais passam a compor o quadro da educação e são uma espécie de
continuação da escola, que deve ajudar a “formar” crianças e jovens, prepará-los para o
mercado de trabalho ou para a entrada na universidade. Assim, os motivos que levaram Edvania
a matricular suas meninas no Projeto Renascer, e as expectativas que tem em relação a isso,
não tocam questões ligadas à preocupação de mantê-las “longe do ‘mundo do crime’”. Para ela,
assim como para outras mães e avós que conheci, a educação é, acima de tudo, um caminho
para empregos que consideram melhores do que os que têm, que vão proporcionar a suas filhas
e filhos mais tranquilidade e saúde46. Contudo, isso não significa que, para algumas famílias,
46 Edvania, que tem inúmeros problemas de saúde devido às condições adversas e degradantes de seus trabalhos
anteriores, se preocupa que as meninas não tenham empregos que sejam desgastantes demais para seus corpos,
como ela teve. Além disso, ela deseja que elas não precisem de ajuda financeira de um homem, mesmo que sejam
casadas. Certamente, esses desejos e aspirações estão ligadas à sua própria trajetória; afinal, como vimos, foi por
uma oportunidade de emprego no Sul que Edvânia pode deixar seu companheiro tirano. Do mesmo modo, graças
à aproximação de pessoas com conhecimento das leis, dos direitos, como ela mesma coloca, que conseguiu deixar
sua empregadora abusiva. Contudo, este não é um desejo exclusivo de Edvania; muitas das mães que conheci
durante a pesquisa têm os mesmos desejos para suas filhas.
76
frequentar o Projeto Renascer não seja sim uma tentativa de manter distância entre suas crianças
e os movimentos do tráfico de drogas e outras atividades ilícitas. Confiam no Comosg tanto
como um lugar de vigilância (se estão lá não estão circulando sem supervisão pelo bairro) e
como uma oportunidade de exposição às atividades estimulantes, que podem ajudar as crianças
a encontrar caminhos tanto profissionais quanto lúdicos diversos. No entanto, nem todos os
moradores e moradoras do bairro acreditam que o Projeto Renascer é o lugar ideal para isso.
Ao final de uma das festas do final de ano organizadas pelo Comosg para crianças, seus
familiares e moradores, Maria, moradora do bairro e mãe de três meninos, me contou porque
não matriculava seus filhos no Comosg. Maria me ajudava a recolher o lixo do pátio e elogiava
efusivamente a festa. Feliz com os brinquedos que o filho menor havia ganho, ela iniciou a
conversa agradecendo pelos brinquedos, pela comida e elogiando as apresentações de dança,
capoeira, violão e teatro das crianças. Comentei com ela que não era professora do Comosg e
sim pesquisadora, mas que agradeceria aos funcionários da instituição em seu nome. Foi então
que ela comentou comigo o porquê de seus filhos não frequentarem o Projeto Renascer. O mais
novo de 8 anos, único dos três que morava com ela, frequentava o projeto da escola47. Ela me
explicou que preferia assim, porque no projeto da escola ele não ficava brincando o tempo
todo. Além disso, a escola é murada, então ele não fica assim, correndo na rua, fica mais seguro
e não brinca com esses meninos mais velhos. Maria fez questão de elogiar o Comosg pelas
atividades que realizava para os moradores do bairro, elogiar Nina por ajudar todo mundo, mas
frisou que o preferia que o filho fosse ao projeto da escola: lá ele faz mais aula e eu sei que tá
lá dentro a tarde toda.
Maria toca em dois pontos centrais em relação às críticas ao Projeto Renascer, tecidas
tanto por moradores do bairro quanto por algumas professoras. O primeiro ponto diz respeito
ao tempo que as crianças têm para brincar, percebido como excessivo. A outra diz respeito a
percepção de que a parte externa no Comosg não se diferencia da rua. E, enquanto tal, ela expõe
as crianças aos mesmos “perigos”, perigos estes que alguns pais e responsáveis pelas crianças
procuram evitar quando matriculam as crianças no projeto. Para aqueles que compartilham da
opinião de Maria, no Projeto Renascer as crianças passam todo o seu tempo brincando, o que
por si só já seria problemático, já que brincar, neste sentido, é construído em oposição a
atividades pedagógicas e educacionais. Outra crítica presente, mesmo que de modo difuso, entre
47 Maria fala aqui do programa do Governo Federal Mais Educação que tem o intuito de induzir a ampliação da
jornada escolar, tendo como perspectiva a Educação Integral. A Escola Básica Municipal Donícia Maria da Costa,
que fica em frente ao Comosg, é parte da rede de escolas inscritas no programa. No ano em questão, as crianças
matriculadas no Programa frequentavam a escola no contraturno escolar três dias por semana e realizavam
atividades como reforço escolar, Taiko e Karate.
77
moradoras do bairro e algumas funcionárias da instituição, diz respeito ao que é descrito como
desorganização da instituição.
Esta avaliação por parte moradores do bairro (e algumas funcionárias da instituição) de
que a rotina no Comosg é desorganizada, que as crianças têm muito tempo para brincar e que a
instituição é muito permeável aos movimentos da rua, não passa desapercebida para aquelas
envolvidas na coordenação do Projeto Renascer. Contudo, murar a instituição, proibir que
pessoas de fora usem o espaço ou eliminar o tempo para que as crianças brinquem não eram
opções consideradas válidas. A estratégia era dialogar com pais e responsáveis para explicar as
razões para estas práticas. Durante a primeira reunião de pais que Marilda conduziu como
coordenadora, ela abordou cada um desses tópicos diretamente, enfatizando o posicionamento
da instituição e suas razões. Conversando com as mães presentes, ela enfatizou a importância
do brincar:
Muitas crianças que vem aqui moram em lugares elevados, morros, jogar bola na rua é
impossível, brincar na rua não dá, tem carros, as vezes usuários de drogas, pode ser perigoso
muitas vezes. Então quando elas vêm aqui, vai ter atividades, claro, mas vamos proporcionar
um espaço e um tempo para elas brincarem também. Porque brincar é uma atividade
também, a gente que estudou educação infantil sabe a importância das brincadeiras para o
desenvolvimento da criança. Brincar também é aprender. Uma criança que brinca é esperta,
feliz, criativa, sabe dividir e conviver, aprende a cuidar.
78
estar aqui já estava lá, crianças fazendo oficinas trocadas, nos corredores, atrás de Tati,
procurando Aristides, jovens do G3 colorindo com alegria desenhos do G1, e era preciso,
novamente, enviar todo mundo para o lugar certo. É interessante notar que, mesmo com todo
este movimento, poucos eram aqueles e aquelas que deixavam o espaço da instituição. Elas e
eles podiam ir até a área externa sem autorização, mas ficavam por ali. Claro que alguns saíam,
iam ao mercado ou até à Vila, mas estas escapulidas eram quase sempre descobertas e aqueles
envolvidos eram encaminhados para a coordenação para conversar48. Ou seja, a rua, mesmo
tão acessível, não era o Comosg.
nós não temos muros, ainda bem! Todo espaço deveria ser aberto, a escola
deveria ser aberta, a gente deve estar aqui porque gosta. A maioria das
crianças vem porque gosta. E o espaço é seguro porque a comunidade aqui
respeita, todo mundo, ninguém vem fazer confusão aqui. É importante que
tenhamos espaços assim no bairro, seguros, abertos, que as crianças gostam
de frequentar, sem muros, com regras que são respeitadas.
Poucos são os espaços nas cidades contemporâneas que recebem crianças, que não têm
barreiras físicas, que delimitam claramente os espaços da instituição e da rua. Escolas e creches
são, normalmente, fortificações com muros altos e fronteiras bem marcadas. O Comosg, neste
sentido, causa estranhamento, ou desconforto, como no caso da mãe com quem conversei. Para
ela, o problema não era apenas que brincavam demais, mas que brincam como brincariam na
“rua”, e com quem brincariam na rua, o que certamente agrava o problema. Ao matricular seu
filho no projeto da escola, Maria esperava evitar exatamente isso, queria evitar que ele
48Entre os procedimentos disciplinares adotados no Projeto Renascer, a conversa na coordenação era um dos mais
utilizados. Se a falta era corriqueira, a própria professora chamava a atenção da criança, mas se algo mais sério
acontecesse, como sair da instituição sem autorização, a criança era encaminhada para a coordenação. Lá, a
coordenadora conversava com a criança e decidia o que fazer: se a falta seria registrada no caderno, se seria preciso
conversar com os pais da criança, etc. No capítulo 4 discutirei estas questões mais detalhadamente.
79
brincasse com os meninos mais velhos, uma referência aos jovens que trabalham com o tráfico
de drogas. Queria também garantir que ele tivesse acesso às atividades que considera
educacionais. Em sua perspectiva, o Comosg, apesar de atuar no bairro de modo positivo (ela
comenta sobre as manifestações organizadas pelo Comosg para defender os interesses das
moradoras e moradores do bairro), apesar de ajudar a todos e todas, não é o lugar adequado
para seu filho, já que a ausência de muros torna a divisão entre o Comosg e a rua fluida. Mas,
como Marilda explicou durante a reunião de pais, isso não é o mesmo que afirmar que esta
divisão não exista. Todos parecem saber quando estão no Comosg e quando estão fora dele. Se
as crianças vão para a “rua”, as funcionárias do Comosg as repreendem. Se alguém da rua entra
no Comosg, ela ou ela sabe que está no espaço da instituição.
Muitas crianças e jovens que não estão matriculados no projeto circulam por ali. Quando
Tati era a coordenadora, era comum que jovens viessem conversar com ela na coordenação
durante o dia, contar novidades, dizer “oi”. Conheci vários moradores e moradoras do bairro
jovens que não faziam parte do Projeto Renascer neste período desta maneira, na coordenação,
com a mediação de Tati. Além disso, algumas crianças e jovens vêm para jogar bola, para jogar
80
ping-pong, alguns vêm “filar” almoço ou conversar com amigos e amigas. Fato é que era
sempre possível encontrar jovens ou crianças não vinculadas ao projeto circulando por ali. Do
mesmo modo que era bastante comum cruzar com algum adulto que vinha até a instituição em
busca de ajuda, seja comida, roupas, ajuda para navegar na burocracia estatal ou apenas para
conversar sobre seus problemas com Tati, Nina ou Marilda. Todas e todos são bem-vindos.
Entre estas pessoas encontramos também alguns envolvidos com o tráfico de drogas. Ou
melhor, entre aqueles que frequentam o Comosg encontramos também meninos e meninas que,
de forma justa ou não, são associados ao movimento do tráfico de drogas e outras atividades
ilegais. Enquanto que para algumas funcionárias e mães e pais, como Maria, a presença deles e
delas é um apenas um problema, para o núcleo da coordenação e direção esta presença é
também uma possiblidade de mudança. Uma possibilidade de abertura para um diálogo que
pode significar se não uma mudança radical na vida das crianças e jovens envolvidos no tráfico,
ao menos um momento de reflexão 49.
Estas crianças e jovens são também o público-alvo do Projeto Renascer, estando ou não
matriculados. Eles também têm o direito de circular por ali, de jogar bola e conversar. Contanto
que não realizem atividades ilegais no espaço do Comosg. Regra implícita que é respeitada sem
maiores problemas.
Mas este posicionamento não significa que esta seja uma decisão fácil, que isso não
represente um enorme dilema para as coordenadoras. Há a constante preocupação que a
presença desses jovens possa ser uma influência negativa. Em um ambiente marcado pela
escassez de recursos, estes jovens, com bonés e roupas de marcas, celulares e notas de R$50,00
e R$100,00 nos bolsos, podem exercer fascinação. Por isso, a política de abertura do espaço e
de não expulsar crianças e jovens mantém as coordenadoras em um dilema constante, com o
qual é preciso lidar cotidianamente. Marilda e Tati comentaram certo dia que, às vezes, tinham
a impressão que o trabalho delas era disputar as crianças com o tráfico de drogas e o Shopping,
numa busca contínua por oferecer alternativas que fossem estimulantes para elas.
49 Tati comentou que, se caso percebesse que naquele momento era impossível convencer os jovens de sair do
tráfico de drogas, ela ao menos tentava incentivá-los a serem mais responsáveis: eu digo pra eles, não gastem tudo
em salgadinho de marca e refri, para amanhã tá aqui pedindo almoço. Digo, leva comida pra casa, guarda um
dinheirinho, se vocês se machucam, o chefe não vai pagar pra ficar em casa. Eu ganho uma miséria mas tenho
licença saúde ao menos. Vocês falam do meu carro velho, mas é meu. Eles riem e dizem, tá Tati, tá Tati.
Poderíamos dizer que Tati procurava levá-los a questionar a “ética da intensidade” que, em muitos momentos,
parece orientar as ações dos jovens envolvidos em atividades ilegais (VARGAS, 2006; DASSI, 2010). Ou que
fazia uma espécie de “redução de danos” com eles. Seja como for, o efeito que provocava é que eles a procuravam
quando tinham problemas e, quando algum deles decidia procurar uma alternativa de vida, era a ela que recorriam,
para pedir ajuda, procurar emprego, fazer documentos, etc.
81
1.6. O “Público-Alvo” do Projeto Renascer
A maior parte das crianças e jovens atendidos pelo Projeto Renascer fazem parte de
grupos familiares de baixa renda50. Assim, todos os profissionais envolvidos no cotidiano do
Projeto Renascer (professoras, coordenadoras, oficineiros) partem do princípio que estas
crianças vivem em condições que, de uma forma ou de outra, não são ideais: ou porque moram
em lugares impróprios, insalubres (sem saneamento básico, em condições precárias); ou lhes
falta alimentação adequada; ou lhes falta acesso a serviços adequados de saúde e educação; ou
sua convivência familiar e/ou comunitária os expõe à perigos e a problemas. Enfim, é possível
afirmar que há um consenso em relação a constatação de que “falta” algo a estas crianças e aos
moradores do bairro que procuram a instituição em busca de auxílio.
Atualmente, no âmbito das Políticas Públicas de Proteção à Infância e das Política de
Assistência Social e da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), este quadro é abordado a
partir do conceito de “situação de vulnerabilidade social”. Conceito acionado também por
aquelas envolvidas com o Projeto Renascer e em seus documentos oficiais (como o Projeto
Político e Pedagógico e contratos de convênios com o poder público).
De certa forma, a condição de “vulnerabilidade social” é aquilo que, ao mesmo tempo,
justifica e possibilita o trabalho do Projeto Renascer e do Comosg. As crianças que frequentam
o Projeto Renascer e as famílias atendidas pelo Comosg não são quaisquer crianças e famílias,
mas são “crianças (e familiares) em situação de vulnerabilidade social”. É esta “situação” que
torna possível os convênios com o poder público, que contribuem para a manutenção financeira
da instituição. Isto é, os recursos públicos que acessam são recursos destinados para fomentar
políticas públicas para esta parcela da população.
O próprio Projeto Político Pedagógico (PPP) do Projeto Renascer deixa isso claro em
seu objetivo geral:
50 Segundo as fichas do ano de 2013, 93% das famílias das crianças matriculadas no Projeto tinha uma renda de
até dois salários mínimos
82
a dinâmica da reprodução da desigualdade social para além da noção de pobreza. Acionar o
conceito de “vulnerabilidade social”, neste momento, é um modo de ressaltar que as
desigualdades sociais são fruto de complexas relações entre o contexto político, social e
econômico - e não exclusivamente do último (ABRAMOVAY et all, 2002). O desenvolvimento
do conceito é tributário de investigações que consideram também as dimensões psicossociais,
de gênero, étnico raciais, de autopercepção, educacionais, de trabalho, familiares e a dimensão
política das privações e está ligado aos recursos e estratégias que os indivíduos, domicílios e
comunidades dispõem para enfrentar os choques externos frente às situações de risco ou
constrangimentos (BUSSO, 2001).
Acionar este conceito no PPP não foi um ato ingênuo ou apenas utilitário (já que os
recursos públicos aos quais tem acesso são destinados às “crianças e adolescentes em situação
de vulnerabilidade social”). Tati estava cursando Pedagogia na Universidade Federal de Santa
Catarina quando começou a elaborar o PPP, Nina estava imersa em discussões sociopolíticas
com suas filhas. Marilda, que participou na reelaboração do PPP, também é formada em
pedagogia. Tanto ela quanto Tati foram leitoras atenciosas de Paulo Freire. Ou seja, todos os
envolvidos na elaboração do Projeto são sujeitos informados politicamente, envolvidos com
lutas e discussões sobre a garantia dos direitos básicos daqueles para quem esperavam oferecer
seus serviços. Se acionaram a categoria foi tanto porque é a partir dessa categoria que foi
possível acessar os recursos do estado quanto porque compartilhavam dos pressupostos que a
noção de “vulnerabilidade social” traz à tona. Em outras palavras, as categorias de
“vulnerabilidade” e “risco” acabam sendo o único caminho possível para possibilitar e justificar
o acesso aos recursos financeiros que viabilizam o Projeto, mas também são ferramentas
analíticas que permitem que as coordenadoras problematizem a realidade com a qual trabalham.
Contudo, muitas vezes, o que os pais, familiares e responsáveis procuram (e o que alguns
educadores dessas instituições se propõem a oferecer) é cuidado. No sentido de um local onde
crianças e jovens possam permanecer, fazer seus deveres escolares, aprender algo novo e
praticar esportes, enquanto seus pais trabalham. Algo que é tão comum para crianças e jovens
de classe média e alta, em relação à infância e juventude das classes populares só pode ser
viabilizado recorrendo às categorias de “vulnerabilidade” e “risco”.
É importante lembrar que o status de “vulnerabilidade” pode ser acionado a partir de
lugares diferentes e produzir efeitos distintos, tanto pelos sujeitos apreendidos como em
“situação de vulnerabilidade”, quanto pelos sujeitos que se ocupam de desenvolver e
implementar políticas públicas para esta parcela da população. Por um lado, a “vulnerabilidade”
pode ser mobilizada para sublinhar a necessidade de se garantir que os direitos básicos e
83
fundamentais dos sujeitos sejam garantidos, num movimento que aciona, primordialmente, um
campo de ação político. Por outro lado, a “situação de vulnerabilidade” pode ser mobilizada
para inspirar compaixão, empatia, num movimento que aciona sentimentos morais 51 e, a partir
deles, incita ajuda sob as formas de caridade ou filantropia, como acontece a partir da
perspectiva humanitarista.
Esta diferença encontra ressonância em estudos sobre a implementação de políticas
públicas e ações de organizações não governamentais entre crianças e populações entendidas
como vulneráveis. Entre elas, o trabalho da antropóloga Kristen Cheney (2010) que, ao discutir
a situação de órfãos em Uganda, aponta para a possibilidade de o status de vulnerabilidade ser
acionado, pelas crianças e suas famílias, tanto para exigir que seus direitos sejam efetivados
quanto para conseguir caridade educacional ou econômica das instituições não governamentais
presentes no país. É exatamente esta diferença a que me refiro: a diferença entre a
vulnerabilidade enquanto o que possibilita a luta por direitos ou a vulnerabilidade enquanto o
que torna o sujeito objeto da caridade.
A ideia com a qual estou trabalhando, inspirada pelo trabalho de Fassin (2012, 2013), é
que, por um lado, temos uma leitura moral da situação de vulnerabilidade e, por outro, temos
uma leitura sociopolítica da vulnerabilidade. Aqui é preciso, antes de mais nada, fazer uma
ressalva: ao propor uma diferenciação entre uma leitura moral e outra política, não quero dizer
que não haja política no campo que defino como moral e vice-versa. Há sim um projeto político
no campo que denomino moral e uma visão moral no campo que denomino político. O que
muda é o relevo, o que está em primeiro plano, e esta diferença produz efeitos significativos,
como veremos ao longo da tese. Para Tati, por exemplo, compreender que o trabalho que realiza
no Comosg não era uma questão de caridade, e sim uma questão de garantia de direitos, foi um
momento importante de sua trajetória profissional. Voltarei a estão questão com mais detalhes
no Capítulo 2. Por ora, quero sublinhar o que as diferentes leituras sobre a condição de
vulnerabilidade produzem quando pensadas em relação ao “público-alvo” do Projeto Renascer.
Para algumas e alguns profissionais, o público-alvo do Projeto Renascer são apenas as
crianças. Para esse grupo, seu trabalho é oferecer a estas crianças cuidado e educação, dar-lhes
oportunidades de aprender habilidades e valores que, por alguma razão, não aprendem em
outros ambientes que frequentam. Nesta perspectiva, as crianças são apreendidas a partir da
afirmação fundamental de que são criaturas inocentes, vulneráveis, que não podem ser
responsabilizadas pelo que lhes acontece e ainda, como seres vulneráveis, precisam de proteção.
51Seguindo o caminho proposto por Fassin (2012), entendo “sentimentos morais” como “as emoções que dirigem
nossa atenção para o sofrimento dos outros e nos fazem querer remediá-lo. Eles ligam afeições a valores” (p.1)
84
Segundo Fassin (2012, 2013), minhas interlocutoras que pensam assim não estão sozinhas neste
sentido. Perceber as crianças enquanto vítimas, principalmente se a condição de ser criança é
acrescida da condição de pobreza, é parte da “economia moral” hegemônica do contemporâneo,
a Razão Humanitária. Se a vulnerabilidade é entendida como uma condição das crianças apenas,
o trabalho do Projeto é atender primordialmente a elas, não sendo necessário dedicar-se de
modo mais ostensivo ao diálogo e assistência de familiares. A partir desta perspectiva, torna-se
importante voltar a atenção quase que exclusivamente para as crianças, ensinar-lhes valores, ou
melhor, resgatar valores. Aqui, o foco é também a educação, mas a educação moral das
crianças; o papel das educadoras na instituição é, primordialmente, ensinar às crianças a
diferença entre o certo e o errado, hábitos de higiene, como vestir-se de modo apropriado. É
preciso também, dar amor.
Jaque, uma das educadoras, explicou-me que gostava de trabalhar ali pois sempre teve
vontade de ajudar crianças carentes, dar amor, ensinar valores. Certa tarde, ela contava para
mim e Lizi, outra educadora presente, sobre a prisão do pai de Gael, criança que frequentava o
Comosg. Jaque sublinhou o modo como o acolheu afetivamente após saber da prisão. Eu não
sabia o que fazer, disse ela, só consegui abraçar ele e dizer ‘eu estou aqui para você, e te amo,
aqui você tem amor’. Ao ouvir o relato de Jaque, Lizi lhe perguntou se ela havia explicado para
Gael que o que seu pai havia feito era errado, informação que acreditava ser importante dar à
criança, a gente sempre tem que explicar pra eles que se o pai é preso é porque faz coisas
erradas.
Para estas educadoras, a vulnerabilidade é uma condição das crianças apenas, entendidas
a partir da afirmação fundamental de que são criaturas inocentes e que precisam de proteção.
Seguindo o modelo proposto por Fassin (2012a, 2013), nesta perspectiva, são os adultos (na
figura de pais e familiares) aqueles frequentemente responsáveis pelas tragédias que lhes
assolam e, sendo vulneráveis, a sociedade é obrigada a fazer o papel dos pais faltosos, através
do Estado ou da filantropia. Para Lizi e Jaque, seu lugar na vida de Gael é este: cuidar dele,
dando amor e ensinando valores que supostamente não aprende em casa. Jaque sente que é
preciso afirmar para Gael que no Comosg ele tem amor. Em seu entendimento, tudo se passa
como se Gael não tivesse amor em casa. Assim como para Lizi, era preciso explicar-lhe que se
alguém vai para cadeia é porque fez algo errado; informação esta que, na concepção dela, em
sua convivência familiar e comunitária, Gael não teria oportunidade de aprender. Ambas
entendem que seu trabalho está situado no campo da caridade; afirmo isso porque são
sentimentos (doação e compaixão) que as impulsionam a trabalhar. Para elas, não é preciso
trabalhar diretamente com os familiares das crianças, nem se envolver nas questões
85
comunitárias do bairro. Importa fazer um trabalho contínuo com as crianças, dando-lhes afeto,
cuidado e sempre dialogando sobre os valores que consideram fundamentais. É também preciso
proteger as crianças de influências que consideram negativas e que entendem serem comuns no
bairro.
Este posicionamento difere daquele da coordenação do Projeto Renascer e da direção do
Comosg. Como vimos, no PPP do projeto, o objetivo geral do Projeto Renascer é atender as
“crianças e suas famílias”; isso significa que, para aquelas que elaboraram o PPP, não são
apenas as crianças que se encontram em “situação de vulnerabilidade”, mas suas famílias
também; isto significa que o Projeto deve trabalhar junto aos familiares das crianças. Por um
lado, entendem que não basta atender as crianças e jovens durante o contraturno escolar,
oferecendo oficinas, alimentação e lazer. É preciso trabalhar junto com seus familiares. Isso
significa prestar um serviço amplo, que envolve desde ajuda para aplicar para o Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil ou o Bolsa Família, até ajuda emergencial. Como quando a
mãe de uma das jovens atendidas pelo programa foi encaminhada para o Instituto de Psiquiatria
de Santa Catarina, num sábado à noite. Nesta noite, foi Tati quem a acompanhou, a pedido da
menina. Na semana seguinte, Tati acompanhou o caso de perto, acionando a assistente social,
conversando com seus filhos e a visitando. Depois de sua liberação, Tati e Nina a ajudaram a
recuperar o emprego e a família contou também com doações de alimentos por um tempo. Nos
meses seguintes, encontrei esta mãe inúmeras vezes no Comosg, ela ia até ali, principalmente
para conversar, já que estava empregada e não precisava mais de ajuda financeira.
Por outro lado, o PPP enfatiza uma construção política da instituição; afinal, deve se
garantir o “exercício pleno da cidadania” e “descontruir a ideia de subalternidade”. Para tanto,
é preciso incentivar a reflexão política entre crianças e jovens, como fez Tati logo após as
eleições municipais, durante a conversa diária antes das oficinas. Nesta ocasião, Tati leu a lista
dos vereadores eleitos, seus partidos, o número de votos de cada um, promovendo uma
discussão sobre o que pode fazer um vereador e quais os mecanismos existentes para que
possamos acompanhar seu trabalho. Além de fomentar a reflexividade política, cabe também
ao Projeto Renascer e ao Comosg pressionar os órgãos públicos por melhorias na infraestrutura
e no acesso aos serviços públicos do bairro. Assim, a direção do Comosg organizou, com as
crianças, uma passeata para exigir do poder público a reforma de uma das escolas do bairro.
Foi também a coordenação do Projeto Renascer que organizou algumas reuniões com a escola
local, o Conselho Tutelar, a Unidade de Saúde e o CRAS52, para discutir as dificuldades
86
enfrentadas por algumas crianças e famílias do bairro. A ideia de Marilda, então coordenadora,
era que, trabalhando em conjunto, pudessem garantir uma rede de apoio mais eficiente,
pressionar o poder público por melhorias na infraestrutura do bairro como um todo e facilitar o
atendimento aos casos considerados mais problemáticos. Ou seja, não é por acaso que incluem,
no objetivo geral do Projeto Renascer, as famílias das crianças e adolescentes atendidos pelo
Projeto. Esta inclusão está ligada com a concepção que tem de seu público-alvo, do trabalho
que devem realizar e das estratégias que acreditam ser necessárias para que seu trabalho seja
eficaz.
Desta forma, era bastante comum encontrar mães, avós, tias, pais, tios, irmãs e irmãos
mais velhos na coordenação em busca de algo. Fosse de doações de alimentos e roupas, fosse
ajuda para aplicar para os programas governamentais, para compreender um laudo médico, ou
um ombro amigo para compartilhar os problemas do dia a dia ou ainda para pedir ajuda para
lidar com problemas que enfrentavam em casa com as crianças e jovens. Acompanhei até
mesmo uma das professoras da escola local indo até o Comosg pedir para que Tati e Marilda
conversassem com um dos jovens sobre seu comportamento na escola. Na ocasião, ela explicou
que já havia feito o que podia, sem obter resultado. Sua última esperança era que elas a
ajudassem. Um detalhe interessante: o jovem não frequentava mais o Projeto Renascer. Mas,
mesmo assim, a professora tinha confiança que Tati e Marilda poderiam influenciar seu
comportamento.
Lembro também de um bilhete que encontrei nos arquivos do Comosg:
Tati, conversar com o Washington do que ele está fazendo, hoje eu não posso ir no Comosg
e amanhã eu vou. Tati, nem eu o Washington está respeitando, não sei o que fazer para ele
melhorar. Pode deixar de castigo, eu não me importo. Qualquer coisa me liga.
Beijos, Carina.
Se a porta da coordenação estava sempre aberta era porque para todos as coordenadoras
que acompanhei no exercício do cargo, assim como para Nina, parte do seu trabalho era prestar
estes atendimentos. Esta relação de proximidade e abertura entre familiares e a coordenação do
Projeto e direção do Comosg nos ajuda a entender as razões para a mãe de Heitor (o menino
que mencionei na Introdução) escolher o Projeto Renascer. Quando conversei com ela sobre o
assunto, ela comentou que foram as vizinhas que lhe recomendaram o Comosg em detrimento
dos outros projetos do bairro. Elas lhe explicaram que no Comosg eles cuidam mesmo e mantêm
contato próximo com os familiares das crianças. Era exatamente o que ela procurava, já que
havia ficado decepcionada com a escola por não ter sido comunicada sobre a briga da filha no
87
final do turno escolar. Além disso, diferentemente do que acontecia na escola ou em outros
projetos do bairro, quando alguém queria conversar com a coordenação sobre uma criança, não
era preciso avisar com antecedência ou marcar horário.
Além de ser uma das diretrizes do Projeto Renascer e do Comosg, como vimos acima,
essa possibilidade de diálogo contínuo entre familiares e coordenação está ligada ao fato de que
todas as coordenadoras que acompanhei durante a pesquisa, Tati, Marilda, Nina, e o Aristides
são moradores do bairro. Apenas Marilda não nasceu ali, tendo se mudado para Florianópolis
há cerca de 15 anos. Como moradoras, convivem diariamente com as famílias das crianças e
jovens atendidos, compartilham também histórias, memórias do bairro, de brincadeiras na rua,
da instalação da Vila Cachoeira, da chegada do Floripa Shopping. Compartilham também os
problemas que o bairro enfrenta: a infraestrutura precária de uma das escolas do bairro e da
Unidade de Saúde local, a falta de vagas nas creches, as ruas esburacadas, a precariedade do
transporte público e da coleta de lixo, os conflitos que resultam dos movimentos do tráfico de
drogas e da ação policial. Enfim, esta condição de moradores e moradoras do bairro os aproxima
daqueles atendidos pelo Comosg. Todas as funcionárias que trabalham na cozinha e na limpeza
88
do Comosg são também moradoras do bairro. Assim como a professora de dança e o professor
de violão. Mas, se são moradoras e moradores do bairro não seriam também sujeitos em
“situação de vulnerabilidade social”? Público-alvo e executoras da política pública para sujeitos
em “situação de vulnerabilidade social”?
Esta é uma das características marcantes do Projeto Renascer, do Comosg: muitas das
funcionárias são ambas as coisas, público-alvo das políticas públicas e, enquanto funcionárias
do Comosg, também suas executoras. Como elas mesmas dizem, isso torna o Projeto Renascer
um projeto de pobre. Em sua opinião, isto é o que difere o Projeto Renascer de outros projetos
sociais do bairro e da cidade, descritos como projetos de rico. Os projetos de ricos são projetos
sociais propostos e executados por sujeitos que, além de serem de outras áreas da cidade,
pertencem às classes média e alta. Vejamos então, mais detalhadamente, quem são as
funcionárias e funcionários do Comosg.
53O Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano é um programa do governo federal voltado a
jovens de 15 a 17 anos. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome, o Projeto é
“compreendido como a conjugação da Bolsa Agente Jovem e da ação socioeducativa deverá promover atividades
continuadas que proporcionem ao jovem, entre 15 e 17 anos, experiências práticas e o desenvolvimento do
protagonismo juvenil, fortalecendo os vínculos familiares e comunitários e possibilitando a compreensão sobre o
mundo contemporâneo com especial ênfase sobre os aspectos da educação e do trabalho”.
(http://www.mds.gov.br/programabolsafamilia/cadastro_unico/projeto-agente-jovem/)
89
das doações que recebem do Comosg. Ambas contaram com o auxílio da coordenação do
Comosg para dar conta dos trâmites burocráticos que lhes deram acesso ao programa Bolsa
Família, sem o qual não conseguiriam sobreviver. Tati e seu marido estão entre as famílias do
bairro que, na época da implementação da Vila Cachoeira, foram contemplados com uma casa,
pois aquela em que viviam estava construída em área de risco de desmoronamento 54.
Em se tratando das mulheres que trabalham na cozinha ou que são responsáveis pela
limpeza do Comosg, a grande maioria encontra no Comosg um emprego possível que as permite
trabalhar perto de casa, garantir uma vaga para os filhos e filhas no Projeto. A coordenação e
direção também as incentivam, constantemente, a completar o ensino fundamental. Algumas
dessas mulheres chegaram ao Comosg em busca de algum tipo de auxílio e, parte do auxílio,
veio em forma de um emprego, como no caso de Edvania, Dona Jacinta e Marilete.
Todas estas e estes profissionais contrastam, de certa forma, com a maioria das
professoras alocadas pela Prefeitura Municipal. Professoras estas Admitidas em Caráter
Temporário, as ACTs. Apesar de Tati e Marilda serem também funcionárias da Secretaria da
Educação Municipal Admitidas em Caráter Temporário, elas foram, durante a pesquisa de
campo, as duas únicas ACTs moradoras do bairro. Os responsáveis pelas oficinas de futebol,
vinculados à ONG Lagoa Social, eram também de fora do bairro.
54 Como vimos, foram construídas na Vila Cachoeira 205 residências geminadas, das quais 160 foram destinadas
às famílias removidas de uma área de ocupação, localizada onde hoje está a Via Expressa (única via de acesso
terrestre à Ilha de Santa Catarina, a BR 282), 40 residências destinadas a moradores do próprio bairro do Saco
Grande e 5 destinadas à Associação Catarinense para Integração do Cego (ACIC). Os moradores e moradoras do
bairro foram escolhidos por sorteio. Os participantes foram selecionados com base em critérios socioeconomicos
e a situação de suas casas, todas localizadas nos morros da região. Muitas dessas casas construídas em áreas com
perigo de desmoronamento.
90
A escolha do local de trabalho pelo sistema de admissão em caráter temporário se dá com
base na classificação no Processo Seletivo 55. Entre as profissionais contratadas neste sistema
que conheci no Comosg, a maioria tinha o desejo de trabalhar em outro lugar. Contudo, devido
à sua classificação no Processo Seletivo, acabaram “decidindo” trabalhar no Projeto Renascer.
Isto é, as razões que as levam ao Projeto Renascer são diversas daquelas das funcionárias e
funcionários moradores do bairro (na maioria das vezes, mas não sempre).
Para algumas, como Jaque, uma das únicas que retornou depois do primeiro ano, o
trabalho que realizam ali é importante porque podem ajudar as crianças. Contudo, como vimos,
o que Jaque e outras profissionais entendem por ajudar difere da ajuda elaborada nos termos
da coordenação e direção do Comosg. Jaque me contou, horas depois de ter feito o processo
seletivo para o ano seguinte, que escreveu uma mensagem para os examinadores no final da
prova:
Expliquei que queria muito passar, e voltar para o Comosg, para ajudar esses anjinhos.
Para ensinar valores, o que é certo, o que é errado, para dar amor, cuidar dessas crianças.
Eu amo esses anjinhos e meu trabalho. Escrevi um monte, explicando que era uma missão
de vida sabe, ajudar.
55 O Processo Seletivo se dá em duas etapas: a primeira é uma prova escrita de caráter objetivo e eliminatório e a
segunda é uma prova de títulos de pós-graduação de caráter classificatório. Com base nas duas etapas, a média
final é calculada. As vagas são preenchidas observando-se a classificação por área e disciplina. Isto é, os primeiros
colocados podem escolher onde, entre as vagas oferecidas, querem trabalhar.
56 O Curso de Preparação para o Mercado de Trabalho foi oferecido pela Centro de Integração Empresa Escola
(CIEE) nas dependências do Comosg. O Centro de Integração Empresa Escola é uma fundação sem fins lucrativos,
fundada em 1964. Segundo informações do seu sítio eletrônico, o CIEE se auto define da seguinte forma: “o CIEE
é uma fundação filantrópica, mantida pelo empresariado nacional, de assistência social, sem finalidades lucrativas,
que trabalha em prol da juventude estudantil brasileira”. Seu maior objetivo, ainda segundo as informações do
sítio eletrônico, “é encontrar, para os estudantes de nível médio, técnico e superior, oportunidades de estágios ou
aprendizado que os auxiliem a colocar em prática tudo que aprenderam na teoria”. Para tanto, o CIEE estabelece
“parcerias” com empresas e órgãos públicos, oferece uma variedade de cursos em vários estados do país e
encaminha parte dos jovens que participam dos cursos de capacitação às empresas como estagiários ou jovens
aprendizes. Cerca de 16 jovens, entre 13 e 16 anos participaram do curso ministrado no Comosg em 2012. A idade
mínima para tornar-se um estagiário segundo o ECA é de 14 anos, mas os dois jovens com 13 anos no Curso
comentam que queriam fazer o curso já para, quando fizessem 14 anos, conseguirem algum estágio prontamente
e logo conseguirem começar a fazer um dinheirinho.
91
lhe lembravam do perigo de trabalhar numa comunidade, era porque queria ajudar. Ou seja,
as categorias acionadas por essas profissionais estão ligadas à política da compaixão, que aciona
as ideias de voluntariado, doação ou caridade, contrastando com a lógica acionada na maior
parte do tempo pela coordenação. Em ambas as perspectivas, falta algo a estas crianças, mas,
para aquelas que operam centradas numa leitura humanitária, esta falta é, acima de tudo, de
uma educação pautada em valores morais e também de afetividade.
Além disso, trabalhar em uma comunidade, noção a partir da qual se referem ao local
onde trabalham, é, por si só, algo que deve ser marcado e reconhecido como algo louvável. Isso
porque esta comunidade é associada à ideia de um território violento, perigoso. Entendem que
a decisão de trabalharem em lugares assim, de se exporem aos perigos que estes espaços (e
sujeitos) representam para elas, é uma prova de seu desejo de ajudar que deve ser reconhecida
como tal (sob a forma da gratidão e da obediência). Esta é uma das características apontadas
por Fassin (2012a) das relações que se desenvolvem a partir dos termos do humanitarismo, isso
porque há um paradoxo constituinte na razão humanitária. Por um lado, a política da compaixão
é uma política da desigualdade; afinal, o foco dos sentimentos morais são principalmente os
mais pobres, os mais desafortunados e vulneráveis. Contudo, por outro lado, a política da
compaixão é uma política da solidariedade, já que “condição de possiblidade dos sentimentos
morais é, geralmente, o reconhecimento dos outros como iguais” (FASSIN, 2012a, p. 3). Cria-
se assim uma tensão, constitutiva do governo humanitário, entre desigualdade e solidariedade,
entre a relação de dominação e a relação de assistência. A compaixão, independentemente das
boas intenções dos agentes que a exercem, cria uma relação assimétrica. Isso pode nos ajudar a
compreender a vergonha que por vezes sente aquele que recebe auxílio, dádivas sem contra-
dádivas. Assim como o ressentimento que sentem em relação aqueles que pensam ser seus
benfeitores. Para Fassin (ibdem), esta não é uma questão psicológica ou ética apenas, mas
sociológica. Isto é, são as condições da relação social entre estes sujeitos que estão em jogo e
que fazem da compaixão um sentimento moral sem reciprocidade possível. Ou melhor, a
reciprocidade possível nestas relações nas obrigações que ela cria: na obrigação daquele que
recebe de demonstrar sua gratidão, de “corrigir seus erros”, de contar sua história, de seguir as
normas estabelecidas por seu benfeitor. É importante que aqueles que recebem auxílio, nestas
condições, demonstrem humildade, ao invés de expressarem uma demanda por direitos. A falha
em cumprir com estas expectativas, por parte das crianças, pode produzir frustração nas
92
profissionais, que comentavam, com certa frequência, que sentiam que seu trabalho não era
reconhecido como deveria57.
A grande maioria dessas profissionais, ao contrário de Jaque, não permanecia no Projeto
Renascer por mais de um ano letivo. Algumas porque seguiam outros rumos com suas vidas 58.
Mas muitas não voltavam porque escolhiam não voltar, como Lizi, que me confessou, depois
de um ano no Comosg: nunca mais trabalho em projeto social. Segundo ela, em um lugar como
o Projeto Renascer era impossível desenvolver um trabalho satisfatório porque as crianças eram
muito difíceis, mal-educadas e ingratas. Além disso, as profissionais relatam sentir medo das
crianças e, por essa razão, preferem trabalhar em outros lugares.
No início do primeiro semestre de Aristides na coordenação, depois de menos de duas
semanas de atividades, praticamente todas as professoras alocadas como ACT`s para o Projeto
Renascer pediram para ser transferidas (houve uma exceção). A coordenação do Projeto e a
direção do Comosg organizaram uma reunião para conversar com elas sobre o que as levou a
pedir para sair. Timidamente estas profissionais revelaram sentir medo das crianças e jovens;
algumas também comentaram ter medo de circular no bairro e uma delas afirmou que seu
marido havia lhe proibido de trabalhar em uma localidade tão violenta. Marilda, que havia
acompanhado estas primeiras semanas de aula junto com Aristides, comentou comigo que,
apesar das crianças estarem agitadas devido ao início do semestre, não havia observado nada
no comportamento das crianças que pudesse justificar esta atitude. A avaliação delas sobre o
comportamento das crianças atendidas pelo Projeto Renascer pode ser pensada tendo em mente
a razão humanitária e a visão universal de criança que exacerba. Neste contexto moral, é preciso
que o sujeito criança corresponda ao ideal construído por esta concepção de criança: inocente
e incapaz, dócil e facilmente tutelável. A “quebra” com este comportamento idealizado
desqualifica a criança. Neste sentido, qualquer comportamento da criança (real ou imaginado)
que possa ser lido como “mau comportamento” anulará sua inocência potencial e a transformará
em um problema ou até em uma ameaça. Como afirma Vianna (2002, p. 297), a “infância em
risco encarna ao mesmo tempo, a representação da infância ameaçadora”. Estas profissionais
57 A pesquisa no Comosg não foi a primeira vez que observei relações nestes termos. Durante minhas pesquisas
em instituições que recebiam jovens cumprindo medidas socioeducativas, era comum observar a frustração dos e
das profissionais que pautavam seu trabalho no que agora entendo como a economia moral do humanitarismo.
Mesmo sem ter analisado estas relações nestes termos, em ambos os trabalhos problematizo etnograficamente
estas questões (DASSI, 2007; DASSI, 2012)
58 Não é segredo que as condições de trabalho das professoras e professores contratados pelo regime ACT são
extremamente precárias. Lembremos que estas profissionais não têm direito a férias e 13 o salário e que não têm
rendimentos durante os meses de férias escolares no final do ano. A grande maioria, dada a oportunidade, acaba
preferindo posições com mais estabilidade. Foi o que acabou acontecendo com Tati e Marilda, que depois de anos
de dedicação ao Projeto Renascer, acabaram optando por assumir cargos de professoras efetivas nas redes de
ensino estadual (Marilda) e municipal (Tati).
93
que pediram para deixar o Projeto Renascer parecem operar, majoritariamente, a partir desta
lógica. Além disso, um dos traços que tinham em comum, e que contrastava também com a
professora que havia ficado no Projeto Renascer, era que nenhuma delas era moradora do Saco
Grande ou de bairros com o mesmo perfil socioeconômico.
Assim, se chamo atenção para a diferença entre funcionárias moradoras ou não do bairro,
é porque ela é relevante para compreendermos algumas das dinâmicas do Comosg (relevante,
mas não absoluta, como veremos a seguir). Prestes assumir a coordenação do Projeto Renascer,
Aristides compartilhava comigo algumas de suas preocupações em relação a esta questão:
Acho que a maioria das professoras [as ACTs] não voltam ano que vem. Desanimaram ou
desencantaram, como a Lizi, que ficou muito apavorada e desestimulada. É por isso que uma
das coisas que quero no começo do ano é deixar bem claro a situação. Porque provavelmente
virão pessoas que nem são do bairro. Então quero que elas conheçam um pouco da história
do lugar, conhecer as famílias, que tipo de famílias, as crianças, que tipo de crianças vão
lidar. Acho que isso é importante, porque é difícil. Tú pega um menino como o Pedro Lucas,
um menino supercomplicado, mas tem que buscar uma solução. Procurar ajuda, todo mundo
junto, porque é uma coisa muito difícil, sozinho a gente não consegue, mas isso é assim, isso
é educação, acolher, não pode desistir.
Num primeiro momento, podemos pensar que Aristides assume que bastaria que as novas
professoras fossem moradoras do bairro para que o problema estivesse resolvido. Mas, as coisas
não se dão bem assim, como Aristides reconhece. Para que ele próprio chegasse à análise que
hoje faz de seu trabalho e das crianças atendidas pelo Comosg foi preciso, em suas palavras,
aprender muita coisa...
Vejamos então, no próximo capítulo, o que foi preciso aprender e como a coordenação
do Projeto Renascer e a direção do Comosg entendem o trabalho que realizam ali.
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Capítulo 2
Projeto Renascer: Um Projeto Social em ação
2.1. Tati: Aí eu comecei a entender que o trabalho aqui não era caridade
Tati começou a trabalhar no Comosg em 1998, quando tinha 17 anos e cursava o terceiro
ano do ensino médio. Ela acredita que foi seu pai quem pediu que o presidente recém-eleito do
Comosg na época, Hudson, lhe desse um emprego. O pedido do pai de Tati era uma espécie de
pedido de ajuda, já que ela estava passando por um momento difícil de sua vida. Para ela, o
início de 1998 marca uma inflexão na história da instituição que, até então, no seu entender,
funcionava primordialmente enquanto curral eleitoral. Como vimos, a leitura de Tati sobre a
atuação do Comosg reverbera os estudos sobre a mudança na atuação dos Conselhos
Comunitários na cidade (SCHERER-WARREN; ROSSIANUD (1999), VIANA (2003),
SILVA (1999), RODRIGUES (2011)). Além disso, até então, Tati lembra, não existiam
projetos no bairro. Ela conta que, naquela época, o bairro tinha uma pequena biblioteca,
organizada pelo Irmão Celso, um senhor ligado à Igreja Católica. Além disso, um morador do
bairro, chamado Nazareno, organizava jogos de futebol com as crianças, no campo de futebol
que hoje é parte do Comosg. Mas, segundo Tati, não tinha a preocupação de ter um projeto.
59Tendo em mente os dois sentidos que expressão “modos de subjetivação” assume na obra de Foucault, segundo
Edgardo Castro (2009). No primeiro sentido, pensamos modos de subjetivação como “modos de objetivação do
sujeito, isto é, modos em que o sujeito aparece como objeto de uma determinada relação de conhecimento e poder”
(CASTRO, 2009, p. 408). Em relação ao segundo sentido, interessa refletir sobre “a maneira em que o ser humano
se transforma em sujeito” (ibdem), esta é a dimensão ética do conceito foucaultiano de modos de subjetivação, que
volta sua atenção para os processos de cultivo de si.
96
Isto é, até o Comosg organizar e implementar o Projeto Renascer, não havia nenhuma atividade
no bairro que Tati reconhecesse enquanto um “projeto social” propriamente dito. O “marco
inicial” do Projeto Renascer foi o convênio, firmado entre o Comosg e a Prefeitura Municipal,
em 1998.
Entretanto, ainda que o convênio e, a partir daí, a produção de diretrizes, orçamentos,
racionalidades, seja parte do que diferencia o Projeto Renascer (fazendo dele “projeto social”)
de outras atividades realizadas até então no bairro, isto não é tudo. Ao elaborar sobre esta
questão e sobre o início de seu trabalho no Comosg, Tati reflete:
Aí eu comecei a entender que o trabalho aqui no Comosg, que não era caridade. Eu já, desde
o começo, entendia que não era uma coisa de boa ação, não era nesse sentido. Embora eu
participasse de grupo espírita e grupos jovens e fizesse caridade assim em outros momentos.
Mas aqui eu entendia que era um direito deles, de ter educação de outra maneira.
Do ponto de vista dela, o que diferenciava as atividades que o Comosg começou a realizar
com crianças e jovens, de outras iniciativas presentes no bairro, e as caracterizam enquanto
projeto, é tanto o convênio com o poder público quanto a ideia de que este trabalho não era
uma questão de caridade ou boa ação, mas de garantia de direitos. Em outras palavras, para
ela, para que uma iniciativa tenha validade enquanto projeto social é preciso que esta iniciativa
se desvincule do campo religioso e moral – caridade e boa ação – e opere segundo a lógica
política – direitos. Contudo, é preciso também que o que é entendido enquanto política seja
deslocado. Não se trata mais do jogo de trocas vinculado à política eleitoral, que marcaram a
história do Conselho de Moradores até aquele momento. Assim, para Tati, se o final da década
de 1990 marca uma inflexão na atuação do Conselho de Moradores no bairro é porque a quebra
com essa lógica marca uma mudança: nos termos de Goldman (2006), é a passagem da
“participação na política” para uma “participação política” do Conselho de Moradores que
caracteriza também, para Tati, o Projeto Renascer enquanto projeto social60. Dessa forma,
como aconteceu em outras localidades do município entre os anos 1990 e a primeira década do
século XXI, o Conselho de Moradores passa a atuar como mediador para a elaboração e
implementação de projetos sociais (SCHERER-WARREN; ROSSIANUD, 1999).
É importante também lembrar que este é o momento em que as políticas públicas
impulsionadas pelas diretrizes do recém promulgado Estatuto da Criança e do Adolescente
60Sigo aqui a distinção elaborada pelo autor entre “participação na política” e “participação política”, “enquanto
a última adjetiva a política como qualificação de uma participação substantiva, enfatizando assim, que é possível
participar a qualquer momento e de diferentes maneiras, a primeira formula, em que política é substantivo, parece
detonar, sobre tudo, o envolvimento em campanhas eleitorais” (Goldman, 2006, p,108).
97
começam a se fazer presente no país. A “doutrina da proteção integral”, fomentada pelo ECA,
prevê o investimento em espaços de convivência comunitária, espaços de lazer e “socialização”.
Se há interesse por parte da direção do Comosg em criar um espaço que receba as crianças no
contraturno escolar, interesse este vinculado à demanda crescente por parte de mães, avós que
desejam um lugar adequado para deixar suas crianças enquanto trabalham, a nova legislação, e
as políticas públicas vinculadas a ela, ajudam a tornar isso possível. Tornam possível que um
projeto social seja implementado no bairro, oferecendo, pela primeira vez na região, atividades
diárias para crianças e jovens no contraturno escolar.
Nos primeiros anos, Tati foi secretária administrativa do Conselho. Como o trabalho não
demandava muito, ela passava a maior parte do seu tempo ajudando a professora cedida pela
Secretaria da Educação Municipal nas atividades que desenvolvia com as crianças no recém
implementado Projeto Renascer. Nesta época, o Comosg funcionava nos fundos da Unidade de
Saúde Local. Neste período, atendia cerca de 20 crianças em cada um dos períodos (matutino e
vespertino). É apenas no ano 2000, quando Tati termina o magistério e o Conselho dos
Moradores passa a funcionar na sua sede atual, que o número de crianças e jovens atendidos
pelo projeto aumenta significativamente.
Como vimos, este é ano de mudanças profundas, tanto na vida do bairro, com inauguração
do Conjunto Habitacional Vila Cachoeira, quanto na vida de Tati, que grávida e recém-casada,
muda-se para a Vila. Além disso, como havia terminado o magistério e começado a faculdade
de Pedagogia, ela também assumiu a coordenação do Projeto Renascer. Neste momento, graças
ao convênio estabelecido com a Prefeitura Municipal, o Projeto contava com duas pedagogas 61
e dois estagiários de Educação Física. Assumir a coordenação foi, para ela, aceitar um desafio.
Ela era mais nova e menos experiente do que as duas pedagogas contratadas; afinal, apenas
iniciara sua formação. Fora as novas responsabilidades cotidianas que assumia enquanto
coordenadora, Tati percebeu que era preciso também, tanto por razões de ordem pedagógica
quanto burocráticas, elaborar o Projeto Político Pedagógico (PPP) do Projeto Renascer.
Começou a partir daí, para Tati, um processo de aprendizagem e a construção das diretrizes que
iriam constituir o PPP:
Aí eu tive que me virar né, estudar mais do que a faculdade exigia pra poder montar o PPP.
98
Mas aí na faculdade eu tinha muitos conflitos, porque os professores falavam de uma
educação que não era real, falavam de uma criança que não era real e falavam e falavam.
Quando uma hora eu comecei a surtar e comecei a dar exemplos daqui: ‘olha, lá tal criança
fez isso, e fez isso e isso, e aí, o que eu faço?’. E aí teve uma professora, uma professora que
era do Serviço Social que disse, ‘mas falta amor, falta amor pra essa criança’. Aí eu disse,
‘Ah, tá! Mas tu acha!’. Aí ela sempre queria dar as voltas dela, pra dizer que era falta de
amor. Não é falta de amor, é falta de ajuda pra família, falta de comida, de casa, de roupa,
de médico no posto, é falta de ajuda pra comunidade!
O PPP construído na época, que orientou as práticas do Comosg por mais de uma década,
foi claramente influenciado pelas leituras que Tati fez na faculdade do pedagogo Paulo Freire,
como ela mesma frisa. Contudo, isso não exclui conflitos entre o que era discutido em sala de
aula e o que experienciava no cotidiano da instituição. Entre as discussões que travou com
professores, Tati escolhe mencionar uma que despolitiza os problemas que as crianças, jovens
e seus familiares enfrentam, remetendo-os à esfera privada. Abordar as questões que levantava
em sala a partir da lógica afetiva (falta de amor), como fez sua professora, individualiza os
problemas, responsabiliza as famílias por problemas que Tati, assim como demais membros da
direção do Comosg e coordenação do Projeto, entendem ser estruturais, que abarcam os
familiares e responsáveis pelas crianças também.
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Um caminho para entendermos os conflitos entre Tati e sua professora pode ser
encontrado a partir da noção de “vulnerabilidade”. Se a professora de Tati tentou dar as voltas
dela, a fim de construir um argumento que justificasse sua posição, de que o que falta para as
crianças era amor, e Tati resistiu, é porque entendiam as crianças, e seus problemas, a partir de
lugares diversos. Certamente, ambas concordariam que as crianças atendidas pelo Projeto
Renascer são crianças que vivem em “situação de vulnerabilidade”. Contudo, enquanto sua
professora parece estar disposta a refletir sobre os comportamentos das crianças a partir de uma
lógica que foca na vulnerabilidade da criança, como vimos com o modelo de Fassin (2012a
2013), (crianças inocentes, pais faltosos), Tati sentia que era preciso refletir sobre as condições
socioeconômicas (que constituem a vulnerabilidade) não só da família, mas do bairro como um
todo.
Além das discussões que visavam a elaboração do PPP, o Projeto passa a organizar
reuniões pedagógicas quinzenais, momentos para a gente ler e tentar pensar coisas diferentes
pra tentar, tentar lidar com esse juventude que na época, de 2002 até 2006, a gente começou
a ter muitos problemas. Este foi o período em que a Prefeitura Municipal retirou da Vila
Cachoeira a assistente social que até então trabalhava ali e fechou os cursos profissionalizantes
que oferecia no espaço da Vila construído com este propósito62. Segundo Tati, sem o apoio do
poder público na Vila Cachoeira e sem os cursos de profissionalização até então oferecidos ali,
os jovens da região passam a contar exclusivamente com Projeto Renascer e o Projeto Agente
Jovem63.
Muitos adolescentes foram para o tráfico nesta época, muitos assim com 15 anos. A gente
conseguia segurar no máximo até os 14 aqui, e a maior tristeza que eu tenho é de um deles,
que eu não consegui segurar, e ele ficou comigo aqui até os 15 anos.
Bento, o jovem a quem Tati se refere acima, foi o primeiro dos seus meninos que morreu,
62 Conheci este espaço na Vila Cachoeira durante o trabalho de campo. Localizado na parte dos fundos do Conjunto
Habitacional, o espaço conta com uma construção ampla de alvenaria, o Centro de Capacitação Profissional, uma
quadra de futebol e uma construção onde deveria funcionar a sala da assistente social e a Associação de Moradores
da Vila Cachoeira. Todo o espaço está abandonado atualmente, tomado pela vegetação que cresce em ritmo
tropical.
63 O Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano é um programa do governo federal voltado a
jovens de 15 a 17 anos. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome, o Projeto é
“compreendido como a conjugação da Bolsa Agente Jovem e da ação socioeducativa deverá promover atividades
continuadas que proporcionem ao jovem, entre 15 e 17 anos, experiências práticas e o desenvolvimento do
protagonismo juvenil, fortalecendo os vínculos familiares e comunitários e possibilitando a compreensão sobre o
mundo contemporâneo com especial ênfase sobre os aspectos da educação e do trabalho”.
(http://www.mds.gov.br/programabolsafamilia/cadastro_unico/projeto-agente-jovem/)
100
assassinado. Sua morte desencadeou uma crise que a levou a questionar seu trabalho enquanto
educadora, pedagoga e coordenadora do Projeto Renascer.
Segundo Tati, Bento frequentou o Projeto Renascer até os 15 anos e foi mais ou menos
nesta idade que começou a se envolver, começou a ir, a desviar. Em um primeiro momento,
Bento praticava roubos e pequenos furtos no bairro. Preocupada, sua mãe o tirou da escola local
e Tati o matriculou no EJA no centro da cidade, como uma maneira de mantê-lo distante das
relações de amizade que considerava problemáticas. Bento foi matriculado no EJA do centro
da cidade também porque Tati estudava no centro, no Centro de Ciências Humanas e Educação
da Universidade Estadual de Santa Catarina (FAED/UDESC). Como ambos estudavam no
centro da cidade, Tati podia “vigiar” Bento de perto, para garantir que ele estava indo para as
aulas: aí eu saía lá da FAED, ia lá no EJA ver se ele tava na aula. Aí via que ele tava, voltava.
E aí a gente ficou em cima dele assim, vigiando mesmo, pra ele não sair do caminho, mas não
adiantou.
Este envolvimento de Tati com as crianças e jovens atendidos no projeto não era
incomum; são várias as situações em que ela, fora de seu horário de trabalho, prestava ajuda.
Embora a intensidade deste envolvimento tenha mudado a partir da morte de Bento, ele nunca
desapareceu por completo.
Era sábado à noite, quando a mãe de Bento ligou para Tati para contar o que o jovem
havia sido assassinado. No dia seguinte, logo pela manhã, a irmã de Bento foi até a casa de Tati,
precisava conversar com alguém e a procurou. Quando chegou o momento de organizar o
velório, a mãe de Bento pediu à Tati que fosse até o Instituto Médico Legal reconhecer o corpo
junto com a assistente social que acompanhou o caso.
Passou sete anos e eu não consigo esquecer aquilo, de tu ver um adolescente como eu vi... A
gente teve evento ali na escola na época, da OAB Cidadã e eu combinei com os adolescentes.
Porque eu sempre procurava envolver eles, porque a minha intenção era formar eles, que
eles fossem um dia os professores daqui, os novos diretores, que eles se envolvessem. Aí eu
disse, ‘olha gente, amanhã as 7h30 da manhã eu preciso de umas 10 pessoas na escola,
porque a gente vai precisar de gente pra arrumar e tal’. Se eu dissesse as 7h o Bento tava
ali as 7h. Eu podia contar com ele, ele era o último a ir embora, ele fazia tudo, era muito
prestativo. E daí tu abrir a porta, e ver aquele teu ex-aluno, que tu via como criança, pelado,
estirado naquele estrado com sangue. Ai não! Foi horrível! E o cara tava lanchando sabe,
eu sei que as pessoas que trabalham no lugar elas ficam muito acostumadas com aquilo, mas
o cara tava lanchando sabe, e não teve pena de mim. Eu queria que ele tivesse tido, mas ele
não teve. Aí ele virava a cabeça do rapaz, mostrava. […]Aí foi explicando, dando uma aula
de cérebro e massa cinzenta. E eu queria dizer pra ele que não queria ouvir aquilo, mas eu
não conseguia, a voz não saía.
Para Tati, Bento era um adolescente prestativo, um ex-aluno, uma criança, categorias
que, ao serem acionadas, tornam a imagem do corpo nu e ensanguentado no estrado uma
101
imagem aterradora. Ao lembrar do dia em que foi ao IML, antes de descrever a imagem de seu
corpo, conta a história do dia em que lhe ajudou com o evento na escola. Este movimento na
narrativa nos ajuda a entender seu choque ao vê-lo naquele estado, que contrasta com a frieza
do funcionário do IML. Ele quer lhe explicar sobre massa cinzenta, sem entender que aquele
deveria ser um momento de luto, não por um “bandido”, mas por uma criança.
Tudo foi muito sofrido, porque apesar de eu saber que ele tava se envolvendo, indo por um
caminho complicado, eu achei que ele ia passar por aqueles processos de ser preso, de a
gente chamar a atenção, mas eu não esperava a morte daquela maneira.
A morte de Bento choca por ter acontecido de forma inesperada. Contudo, o inesperado
não reside exatamente no fato da morte dele; afinal, tendo se envolvido em atividades ilícitas,
Bento entrava num caminho complicado, cujo desfecho, muitas vezes, é a morte. Mas, antes do
desfecho, há de se passar por processos ser preso, chamar atenção. Há uma espécie de trajetória
esperada, um caminho, que permitiria talvez a mudança desse destino trágico a partir do
trabalho que realizam junto ao jovem e seus familiares. A morte de Bento choca Tati também
porque ele não passou por todos os lugares deste caminho, foi apenas o início e o fim, sem o
trajeto.
E foi difícil pra todo mundo aqui no Comosg, porque a gente queria salvar ele. A gente tinha
a ideia de conseguir salvar o Bento disso, e aí, no fim... Então, a história do Comosg sempre
foi neste sentido, a gente tentando salvar alguém, com a esperança, com a falsa ilusão que
a gente ia conseguir salvar os adolescentes de entrar no tráfico e sempre com esta notícia
recorrente. Depois do Bento, um ano depois, foi o Andre que foi morto. Ele era um
adolescente muito legal, ele era espontâneo, ele era inteligente, ele era um dos únicos que
tava indo, que conseguiu ir para o ensino médio e muito, assim, participativo.
Há duas questões aqui, uma diz respeito ao modo como Tati concebe quem são estes
jovens, a outra remete ao que entende como o papel da instituição na vida deles.
Em primeiro lugar, percebemos que, assim como fez com Bento, Tati marca
discursivamente que Andre era um adolescente legal. Esta é uma característica do modo como
Tati concebe aqueles envolvidos com o tráfico de drogas. Sempre que falava sobre algum deles,
sublinhava que não é possível reduzi-los a sua identidade de traficantes ou bandidos. Esta
atitude a diferenciava de outros funcionários da instituição e gerava, algumas vezes, certa
tensão. Ao contar sobre sua relação com Ruan, um jovem que, apesar de nunca ter sido aluno
ali, a visitava no Comosg, lembra que algumas funcionárias a repreendiam, dizendo que Tati
não deveria recebê-lo ali, ou criar relações de afinidade com ele. Ao refletir sobre o
posicionamento de suas colegas, Tati argumentava: ah, eu posso sim conversar com ele.
102
Independente da sua função hum... de trabalho, ele não é só aquilo né! Ele é para além do
tráfico.
Creio que este posicionamento de Tati ajuda a explicar a facilidade com que se
movimentava no bairro e o número e diversidade de pessoas que a procuravam pedindo ajuda
para resolver conflitos. Contudo, a abertura de Tati para o diálogo tem um limite. Ela se recusa
a negociar diretamente com traficantes. Há, para ela, uma diferença entre receber pessoas na
instituição e prestar-lhes ajuda, seja qual for a ocupação delas, e dirigir-se a traficantes em busca
de ajuda ou para mediar conflitos. Ou seja, se o traficante é para além do tráfico é com este
além que ela estabelece relações e é com este além que procura estabelecer um vínculo que
possa, quem sabe, mudar o caminho do traficante. No entanto, isso não significa que Tati os
veja apenas como adolescentes legais. Quando lembra de Bento, comenta que ele era atentado,
invocadinho. Assim como quando fala sobre Ruan comenta, eu gosto muito dele, mas os guris
dizem que ele também é um demônio, uma peste, agressivo assim, pra bater em outras pessoas.
Em segundo lugar, observamos que, para Tati e para a instituição, parte de seu trabalho
era salvar os adolescentes de entrar no tráfico. Entretanto, a morte de Bento marca uma
mudança neste sentido; não se trata mais de salvar os adolescentes do tráfico de drogas, pois
isso era uma falsa ilusão, mas de tentar evitar seu envolvimento. O que pode parecer uma
diferença sutil é, na verdade, uma mudança importante na maneira como Tati concebe seu
trabalho. A diferença parece estar ligada às possibilidades de elaboração do fato que alguns
jovens entram sim para o tráfico, e morrem.
Quando Bento morreu Tati paralisa, parece que o trabalho dela perde a legitimidade;
perder um jovem a faz questionar seu trabalho como um todo e ela se afasta do Comosg. A
noção de que é preciso salvar estes jovens parece só possibilitar à Tati que pense em termos de
resultados absolutos, ou salva ou não salva: se salvar o trabalho funciona, se não salvar o
trabalho não é válido. Além disso, salvar individualiza, individualiza no sentido de que se um
dos jovens entrar para o tráfico é o bastante para colocar o trabalho dela em questão. Mas
também individualiza a responsabilidade; é como se Tati assumisse a “culpa” por esta perda.
Nesta perspectiva, foi a suposta incompetência dela (e do Comosg) que permitiu que isso
acontecesse. É uma disputa entre o Comosg, na figura da Tati, e o tráfico. De certa forma, os
jovens desaparecem aqui (enquanto sujeitos que também agem). Já a ideia de evitar o
envolvimento complexifica o trabalho dela. Não é mais uma questão absoluta ou individual, ela
não se sente responsável pessoalmente. Parece que a partir daí ela passa a considerar também
outros fatores. Antes ela parecia acreditar que deveria enfrentar o tráfico por conta própria. Com
o deslocamento de perspectiva, não se trata mais de pensar nos termos de uma “disputa” (por
103
cada menino) com o tráfico - como diria Soares (2005) – mas de fortalecer a capacidade de
ação dos jovens em suas próprias vidas. De certa forma, quando a ideia era salvar havia apenas
o Comosg (representado pela Tati) e o tráfico. Já, quando a questão é reelaborada por Tati, há
muito mais “agentes” envolvidos: o Comosg, os jovens, suas famílias, os traficantes mais
velhos, os traficantes mais novos, os bonés da Jamaica, o shopping, o consumo, carros, motos,
a polícia e tantas outras coisas que fazem diferença para estes jovens. Entretanto, isto não anula
a dor da perda pelas vidas dos jovens que morrem em função de suas atividades ilícitas, não as
torna banais ou justificáveis. Ao lembrar da morte, de outro jovem que foi aluno no Projeto,
anos depois da morte de Bento, comenta,
E pra mim é muito sofrido sabe, esta parte. Por mais que eu seja espírita, que eu acredite,
mas eu acho que foi de uma forma tão bruta, não foi uma doença, vamos dizer assim, foi
uma coisa que, que poderia ter sido evitada.
Outra questão que surge a partir desse deslocamento é que Tati começa a trabalhar com
uma abordagem que lembra um pouco a ideia de “redução de danos”. Isto é, se o jovem está
envolvido com o tráfico de drogas é preciso conversar com ele também, sobre como cuidar de
sua saúde, como gerenciar seu dinheiro, sobre seu futuro, sua família, seus filhos, seus pais.
Enfim, o jovem não está “perdido”, não se resume a sua vida no tráfico e é preciso continuar a
trabalhar com ele.
Esta mudança de perspectiva, no entanto, não aconteceu imediatamente após a morte de
Bento, e sim ao longo dos anos seguintes. Naquele momento, a morte de Bento causou uma
crise interna, que junto com outros problemas que observava, à levou a afastar-se da
coordenação do Projeto Renascer.
Aí eu me frustrei, [depois da morte de Bento] queria sair daqui, não queria mais trabalhar
aqui. Aí tava aquele negócio de adolescente sendo preso, polícia batendo, e eu achava que
era minha culpa, que eu não tava coordenando direito, que eu tinha que sair, vir outra
pessoa, pra ver se a coisa mudava.
Neste período, Tati deixa a coordenação, sente-se responsável pelos problemas que os
jovens enfrentam. Ao acreditar que seu trabalho seria salvá-los, responsabiliza-se por seu
destino. Frente à morte de Bento e outros casos de adolescentes que parecem seguir o mesmo
caminho, Tati sentiu-se incompetente, despreparada para exercer sua função. Pediu então o
desligamento da coordenação do Projeto Renascer. No entanto, continuou frequentando a
instituição uma vez por semana e participando das reuniões pedagógicas. Percebe então que
nada mudou, os dilemas, desafios e problemas continuam os mesmos. No final do ano em que
104
Tati ficara fora da coordenação, a coordenadora que havia assumido seu lugar decide ir embora.
Receosa de que ninguém quisesse assumir a coordenação do Projeto, Tati decidiu voltar e fica
no cargo até o final de 2012, quando deixou a coordenação pois havia passado em um concurso
de professora na rede municipal.
Foi depois da morte de Bento, como dito acima, que Tati passa a reelaborar seu papel
enquanto coordenadora. A partir de então, conversar passa a ser uma ideia e uma prática que
articula sua atuação. Uma prática, um valor, uma estratégia, e a potência de seu trabalho. É
preciso conversar para mediar os conflitos entre as crianças, para saber quem fez o quê e como
melhor resolver os problemas que surgem. Além disso, conversar é uma maneira de ensinar às
crianças e jovens a fazer o mesmo. Ou seja, conversar é um modo de ensinar as crianças e
jovens a conversar, ao invés de resolver seus conflitos com xingamentos ou com agressões
físicas.
Contudo, conversar para Tati, significa também fazer algo, seja ensinar, mediar conflitos,
provocar a reflexão ou aconselhar é preciso que a conversa produza um efeito. Este efeito não
é entendido nos termos do “desabafar”. Para Tati, enquanto coordenadora, a conversa, como
oportunidade para o outro “desabafar”, não tem validade. Isso fica mais claro quando Tati
discorre sobre conversa que teve com seu orientador 64, na qual ela dividia sua angústia sobre a
situação da mãe de Nicole, uma das crianças atendidas pelo Comosg.
A sexta-feira em que encontraria seu orientador marcava o final de uma semana
particularmente difícil para Tati. Um jovem que estava desaparecido fora encontrado morto.
Algumas horas depois de receber esta notícia, já bastante abalada, Tati recebe Jana, a mãe de
Nicole. Naquela tarde, Jana estava profundamente abatida, chorando e preocupada, com medo
de perder a guarda da filha: aí, como as pessoas tem o costume de vir aqui e contar a história
delas do princípio, aí igualmente ela o fez, diz Tati. Jana contou muito de sua vida: abuso sexual
do pai, passagem por abrigos, dificuldades financeiras extremas, prisão e, naquele momento,
mais dificuldades financeiras e o medo de perder a guarda dos filhos porque, segundo Jana, ela
não sabia como educá-los.
Tati conta que chegou na sessão de orientação com tudo isso na cabeça. Naquele
momento foi impossível concentrar-se e acabou contando, entre lágrimas, o que lhe afligia, ou
seja, a situação de Jana e o dilema que esta situação suscitava nela.
Eu queria dar um jeito na vida dela. Mas é muito difícil, porque tudo isso vem pra gente e a
gente tem que lidar com coisas que não são pedagógicas, que não tem nada a ver com
105
educação né. E o meu dilema maior é o que estou fazendo.
Segundo Tati, seu orientador argumentou com ela, que, ao ouvir ela já estava fazendo
algo. A “escuta”, para ele, era uma forma de ajuda. Ao ouvir os problemas de Jana, Tati lhe
dava uma oportunidade de “desabafar”. Mas para Tati isso não basta,
Olha, é muito difícil, eu quero resolver aquela situação, eu não consigo escutar uma história
dessas e não fazer nada, só ouvir. Só ouvir não dá, eu tenho que achar um trabalho pra ela,
tenho que achar... Imagina, uma jovem mãe, de 24 anos, que passou por tudo isso! Porque
não adianta a gente esperar que aquela família vá conseguir se erguer se ela não tem de
onde se erguer, ela vai se sustentar no que né.
Podemos especular que o orientador de Tati argumentou nos termos da “escuta” para
acalmá-la; afinal, ela estava abalada e também precisando de amparo. Entretanto, se escolheu
este caminho, é porque ele faz parte do campo de possibilidades; é possível abordar a narrativa
de Jana a partir do campo da saúde mental, por isso “escutar” e “desabafar” podem ser
validados. Nos termos propostos por Fassin (2009a, 2009b, 2012a), esta é uma das faces do
humanitarismo: a possibilidade de abordar narrativas como as de Jana nos termos de “trauma”,
o foco recaindo sobre a experiência do “sofrimento” de Jana (que poderia ser aliviado a partir
do “desabafo”).
Entretanto, o que Tati buscava, enquanto profissional, era encontrar uma solução para o
que entendia ser um problema mais amplo, incorporando dimensões socais e políticas
(dificuldades econômicas, desigualdades e violência de gênero, desemprego) 65. Para Tati, a
solução dos problemas de Jana pode até passar pelo acolhimento terapêutico, mas é, antes de
mais nada, assegurar que a jovem mãe encontre meios para garantir sua subsistência, encontre
emprego, moradia adequada, acompanhamento psicossocial, estabilidade financeira e, a partir
daí, possa encontrar a calma que precisa para cuidar de seus filhos. Por isso a escuta não basta.
É preciso fazer algo, encontrar um modo para que Jana possa se erguer. Sua angústia está ligada
ao fato de ser uma pedagoga, “despreparada” para lidar com esta situação. Mas seu despreparo
não diz respeito às habilidades da “escuta” (como ouvir e não se deixar afetar), mas sim em
encontrar um modo de ajudar Jana para que ela tenha condições fazer as mudanças que precisa.
65 Neste sentido, ver o trabalho de Maluf e Tornquist (2010), “Genero, Saúde e Aflição: abordagens
antropológicas”, no qual as autoras envolvidas na coletânea discutem aspectos da relação entre experiências sociais
e políticas públicas em relação à saúde mental entre mulheres moradoras de bairros periféricos de Florianópolis,
em especial o artigo de Carmen Susana Tornquist, Ana Paula Müller de Andrade e Marina Monteiro (2010). O
que as autoras evidenciam é que as narrativas das mulheres diagnosticadas com depressão, sobre suas experiências
de aflição, não se limitam, a aspectos de doença e sofrimento como causa de sua aflição, mas englobam aspectos
como a violência no bairro, as dificuldades econômicas, dupla jornada de trabalho, desemprego.
106
É importante ter em mente que, ao ajudar Jana, Tati não está a fazer caridade, já que o que
faltou a Jana, e a muitos dos sujeitos atendidos pelo Comosg, foi justiça social. Os problemas
da jovem mãe, neste sentido, devem ser abordados enquanto parte de um contexto sócio-
histórico mais amplo, que ultrapassam sua condição particular. Neste sentido, o posicionamento
de Tati contrasta tanto com a lógica do humanitarismo, a partir da qual é possível ajudar Jana a
partir do ato da escuta (que a ajudaria a superar seus “traumas” (FASSIN, 2009b)), quanto de
ações pautadas pela lógica caritativa. Isso porque, em ambos os casos, os problemas de Jana
são deslocados para a esfera privada e individual: ela é um “caso”, cujos problemas podem ser
reportados a eventos particulares de sua própria vida, pensada “fora” de um contexto social
mais amplo.
Para Tati, é importante marcar que o trabalho que realizam participa da esfera política e
não se desenvolve no âmbito da caridade. As ações vinculadas a este campo, o da caridade, se
situam na esfera privada e, muitas vezes, religiosa. Não é à toa que tanto Tati quanto Nina
sempre começam a definir o que fazem no Comosg chamando a atenção para o que não fazem.
E o que não fazem é, acima de tudo, caridade e boa ação. Como vimos, Tati diferencia o
trabalho realizado no Comosg com crianças e jovens a partir de 1998, com abertura do Projeto
Renascer, de outras atividades oferecidas às crianças do bairro (a biblioteca Irmão Celso,
organizada por pessoas ligadas à igreja católica local e os jogos de futebol organizados por um
morador local, Nazareno). Esta diferença está vinculada, em parte, ao convênio estabelecido
com a Prefeitura Municipal e a racionalidade que o convênio instaura. Isso porque, a partir do
convênio (e também por causa dele) é preciso ter um projeto, ou seja, formular documentos:
Projeto Político Pedagógico (PPP), Planejamento Anual, Planos de Trabalho, Fichas de
Frequência Mensais, Relatórios Bimestrais, Calendário Letivo, Plano de Investimento,
Orçamento, etc, etc, etc (porque há mais, já que cada um desses documentos acaba por se
desdobrar em mais documentos, como processos kafkanianos).
Contudo, para Tati, assim como para Nina, além do trabalho que executam não poder ser
entendido nos termos da caridade e da boa ação, é importante também diferenciá-lo de ações
assistencialistas. Durante uma reunião entre os funcionários da instituição, na qual a
distribuição de doações de alimentos para os moradores do bairro e os familiares das crianças
e jovens atendidos estava em pauta, uma das funcionárias argumentou que, ao distribuir
alimentos através doações, eles perpetuam práticas assistencialistas 66. Nina, que estava então
66 A distribuição de alimentos, roupas e outros itens, não era, ao menos durante o trabalho de campo, uma prática
sistemática, com listas de famílias atendidas e quantidades preestabelecidas, mas era feita de acordo com a
demanda. Normalmente, aqueles que precisavam de algo se dirigiam a instituição. Era bastante comum, durante o
107
em sua segunda gestão como presidente do Comosg, respondeu que é preciso diferenciar entre
práticas assistencialistas e a assistência que o Conselho prestas a aqueles que o procuram. Para
Nina, na atuação do Comosg e do Projeto Renascer, esta assistência não se confundiria com o
assistencialismo pois ela não é o objetivo final do trabalho que realizam, apenas parte dele.
Contudo, é uma parte essencial, porque, segundo ela, passando fome ninguém consegue se
erguer. Mas, para compreendermos como Nina traça a distinção entre assistencialismo e
assistência, é preciso ter em mente o que entende como o papel do Comosg e do Projeto.
Nina, assim como Tati, nasceu e foi criada no Saco Grande. Durante uma entrevista que
realizei com ela, ao lembrar das dificuldades financeiras que ela e sua família enfrentaram
durante sua infância, Nina refletia:
Então, a vida que a gente tinha foi uma vida cheia de sacrifício, por isso eu acho que eu
tenho assim tanta meta, de mostrar para a sociedade pobre que ela pode se diferenciar, não
ser marginalizada. Porque a gente foi pobre, a gente ainda é, mas era muito mais pobre, era
daquela classe pobre mesmo que fica revoltada por não ter nada.
dia, encontrar na secretaria alguém em busca de alimentos. Apesar das dificuldades financeiras do Comosg, nunca
presenciei alguém saindo dali de mãos abanando. Sempre era possível arranjar um quilo de feijão, arroz, algumas
verduras ou algo similar. Também observei, andando pelas ruas do bairro, pessoas abordando Nina, Marilda e Tati
para pedir-lhes alimentos. Nestas ocasiões, a resposta era, invariavelmente, a mesma, passa lá depois que a gente
arranja alguma coisa. Apesar dos pedidos por alimentos serem os mais comuns, as doações não se limitavam a
eles, podendo também envolver o repasse das doações de roupas, calçados e outros itens, dependendo da
disponibilidade e da demanda.
108
Estado neoliberal, que entende as parceiras público-privadas (com ONG’s, Institutos,
Conselhos Comunitários) como políticas públicas legítimas e permanentes para atender as
populações vulneráveis, como me explicou uma das filhas de Nina, durante um almoço em que
discutíamos outras iniciativas do município similares ao Projeto Renascer. Para ela, os projetos
de rico aliam-se ao projeto neoliberal pois não contestam as políticas públicas que os
responsabilizam exclusivamente pelos serviços que prestam. Já projetos de pobre, como o
Projeto Renascer, existem como uma solução emergencial, mas um de seus objetivos, é exigir
do Estado que assuma sua responsabilidade e desenvolva políticas públicas autônomas.
Outro desdobramento da perspectiva acionada por Nina é que sua identificação com a
condição de pobre, daquela classe pobre mesmo que fica revoltada por não ter nada, determina,
de certa forma, sua relação com os jovens e crianças atendidos pelo Comosg. Como veremos,
uma das características do Projeto Renascer, e que o diferencia de outras iniciativas no bairro,
é que as crianças e jovens que apresentam comportamentos entendidos como problemáticos
não são desligados do Projeto. Em todas as ocasiões em que acompanhei discussões sobre
crianças e jovens que apresentavam “problemas de comportamento”, Nina se posicionava de
maneira enfática contra a expulsão dos mesmos, contextualizando a trajetória da criança e
marcando que, devido à sua situação, o sentimento de revolta era compreensível. Neste sentido,
virar as costas para eles seria reproduzir ali o mecanismo de exclusão ao qual estavam expostos
cotidianamente, e em relação ao qual expressavam revolta a partir de seu comportamento
problemático. Cabem sim, segundo ela, medidas disciplinares, suspensão, conversa com pais e
responsáveis, mas não a expulsão. Esta, além de reproduzir o mecanismo de exclusão contra o
qual o Comosg luta, significaria a perda destas crianças e jovens. Se a gente não quer eles,
disse Nina durante uma reunião pedagógica, o tráfico quer, a bandidagem quer. Além disso,
como Tati, acredita que estes jovens não podem ser pensados e abordados apenas enquanto
“problemas”: o Ruan, por exemplo, é uma peste, perigoso, já até me ameaçou uma vez. Mas é
também um menino, muito carente, a mãe abandonou, sempre apanhando, espancado mesmo,
pelo pai... a gente tem que trabalhar com ele até ele conseguir sair do buraco.
No entanto, o atual posicionamento de Nina em relação à sua atuação enquanto liderança
nem sempre se deu nos termos da luta pela garantia dos direitos básicos dos moradores e
moradoras do Saco Grande. Sua iniciação no mundo da política foi ao lado de seu pai que,
quando Nina tinha 10 anos, abriu um boteco na Geral Virgíneo Várzea, principal via de acesso
ao Norte da Ilha na época.
Seu pai foi a primeira figura que Nina reconheceu enquanto liderança, categoria que
marca sua narrativa e com a qual se identifica. Para Nina, as atividades do pai, tanto durante
109
campanhas eleitorais, quanto entre as eleições, o caracterizam enquanto tal. Lembra que, como
não havia atendimento de saúde no bairro, era a seu pai que os moradores recorriam quando
precisavam de um médico. Quando se fazia necessário, ele trazia um médico que morava nas
proximidades para atender o doente em casa, isso para nós era motivo de orgulho, porque meu
pai tinha acesso a um médico. Lembra também que, na época de política, alguns candidatos
procuravam seu pai para ajudá-los a conseguir os votos dos moradores do bairro.
Aí, na época da eleição, os políticos vinham de jipe e trazia o jipe cheio de fardos
de fazenda, era fazenda de bolinha ou era farda da policia militar. Então, quando
era época de política, a gente sabia que o pessoal ia sair tudo de roupa nova na rua
[…]. Dependia do grau que era o cabo eleitoral, que ganhava mais ou menos, já era
dado, já era vendido o voto, tu vê, 50 anos atrás já tinha isso. E o pai ficava contente,
porque o pai era liderança e geralmente ele ganhava [seus candidatos ganhavam as
eleições] e isso para mim era motivo de orgulho, porque a gente não entendia como
funcionava a política, a gente entendia que o pobre tava tendo direito, a ter roupas
para os filhos, todo mundo fardadinho.
O orgulho que sentia (e sente) do pai, reiterado em inúmeras ocasiões, está ligado ao que
Nina entende que ele conquistou para o povo, os moradores do bairro. Nina descreve o pai
sempre como uma liderança, articulador de fluxos de trocas de presentes, favores e ajudas,
dentro e fora do “tempo da política”. Ao elaborar sua narrativa sobre o início de seu interesse
pela política, marca que, naquele momento (assim como nos anos subsequentes), orgulhosa do
pai, vendo todos na missa de Natal de fardinhas e vestidos de bolinhas, não entendia como
funcionava a política. Ou seja, não entendia, que o papel do vereador é defender os interesses
da comunidade que o elegeu durante todo o mandato. Ao comentar sobre a relação que tinha
com um político do município, para quem trabalhou algumas vezes, lembra:
O gabinete dele [do vereador] não fazia parte da minha vida. Eu não tinha o
conhecimento que tenho agora, que tu tem que ir lá no gabinete dele e exigir os
direitos pra tua comunidade. Eu achava que ele já tinha pago, o pessoal votou, cada
um vai para sua casa e acabou, volta dali a 4 anos.
O fluxo de trocas da prática de compra de votos, articulado através de seu pai, que hoje
considera condenável, foi para ela, durante algum tempo, parte constituinte do fazer política.
Mas, ao equiparar as fazendas de tecido à conquista de um direito, Nina faz uma releitura dos
efeitos da compra de votos a partir de um referencial que considera legítimo agora, o discurso
dos direitos, da luta por direitos. Nesta perspectiva, o papel de liderança sofre uma
transformação. Continua vinculado à ideia de mobilização do povo; contudo, esta mobilização
que uma boa liderança consegue articular não é mais acionada para fins eleitorais, mas para a
110
luta por direitos. Seu pai é modelo de liderança, mas agora o é ao lado de Gandhi e Che
Guevara, que lutaram pelo direito de seu povo, que põe o povo na rua. Os caminhos que levam
Nina a esta mudança, da política eleitoral para os movimentos sociais como ela mesma coloca,
foram marcados pela influência de suas filhas e pela convivência com Maria de Lurdes, amiga
e mentora espiritual.
Nina conheceu Maria Lurdes no início da década de 1980, quando começou a frequentar
o centro espírita onde ela prestava atendimentos e praticava homeopatia. Observar Maria
Lurdes faz com que Nina passe a refletir sobre suas próprias práticas políticas, já que Nina
reconhece em Maria Lurdes uma doação desinteressada,
Porque ela tinha, era muito rica, e eu via que ela dava escondido, nunca pedia nada
em troca, e eu me envergonhava de estar indo ali com ideias tão mirabolantes, e
aquilo foi meio que baixando minha bola dentro da doutrina. Eu fui tendo uma outra
visão do mundo, e fui criando um amor enorme por aquela mulher, que tinha tanto
dinheiro e usava assim, ela era tão humilde nas coisas que fazia. E aí eu comecei a
adentrar outro mundo, e comecei no mundo do voluntariado, no hospital de
oncologia.
67 A rua é uma categoria central para Nina. Contudo, a rua para ela não é exatamente o lugar do anonimato
(DaMatta, 1997); ao contrário, é na rua que ela se torna, ela mesma, Nina, liderança. Isto é, se a rua pode
apresentar (e apresenta) perigo é exatamente porque individualiza demais. Ao ganhar fama na rua, Nina, a
liderança, é exposta aos perigos da vaidade exacerbada. Além disso, para Nina, rua não é o lugar do trabalho, pois
ficar em casa não exclui suas atividades como comerciante ou administradora de alguns imóveis. Suas atividades
como voluntária também não são entendidas por ela como atividades que realiza na rua. Nem caridade, nem
trabalho, a rua é política.
111
os anos passam, é cada vez mais problemático para Nina continuar na rua da mesma forma. No
final dos anos 90, ou seja, quase duas décadas depois que inicia suas atividades como
voluntária, Nina passa a se envolver com os movimentos sociais. Este envolvimento acaba por
coincidir com a construção da Vila Cachoeira no bairro, quando Nina passa a participar das
atividades do Conselho de Moradores mais ativamente. Alguns anos depois, Nina é eleita vice-
presidente do Comosg, ao lado de Hudson. Nas eleições seguintes concorre novamente e ganha.
Dessa vez, como presidente.
Para ela, as atividades dos movimentos sociais se diferenciam das atividades junto a
políticos justamente porque ser dos movimentos sociais é desvincular-se de políticos
específicos para vincular-se às lutas específicas: pela limpeza das ruas, por mais médicos no
Posto de Saúde, por verbas para desenvolver os projetos do Comosg, por cursos técnicos,
abatimento do IPTU para moradores e moradoras de baixa renda, melhorias nas escolas e
creches do bairro, etc. As alianças com os políticos passam a ser instrumentalizadas e pontuais,
são os meios para um fim. Mas não foi apenas sua relação com Maria, as atividades de
voluntariado e a doutrina que impulsionaram esta passagem. O diálogo com as filhas contribuiu
também para a reelaboração de suas posições.
Nina tem três filhas. A mais velha, Rosilene é pedagoga, com Mestrado em Educação, e
Karine, a mais nova, assistente social. A época que Nina aponta como o momento da virada,
que marca sua passagem da política eleitoral para os movimentos sociais, é o momento que sua
filha mais velha entra na faculdade de Pedagogia. Este também é o período em que conhece
Eleonora, a assistente social que foi indicada pela Prefeitura para trabalhar na Vila Cachoeira.
A relação, a princípio antagônica, se transforma numa relação de mãe e filha. Marcar que a
relação de Nina e Eleonora começou em meio a discussões e conflitos é tocar em um ponto
central das interações de Nina, Nina é uma mulher que briga, que, em suas palavras, se orgulha
de suas brigas por seu povo. Mas não apenas isso; antes mesmo de a conhecer eu já havia sido
avisada por muitas pessoas: não liga para Nina, ele é esquentada, mas é gente boa; a Nina, ela
tem aquele jeito dela, briga com todo mundo; a Nina é bocuda, mas não leva a sério, ela é
assim; sabe como é a Nina, já sai soltando os cachorros. Tendo ouvido tudo isso, não foi sem
apreensão que a cumprimentei na primeira vez que nos encontramos; preocupação
desnecessária, ao menos para mim. Comigo, Nina nunca brigou 68. Mas a vi brigar, em muitas
ocasiões, com crianças, jovens, funcionárias, com a representante do Conselho Tutelar, com a
psicóloga do CRAS, com funcionárias do Posto de Saúde, com o diretor da escola, com sua
68 Fato que não passou desapercebido; acredito que isso signifique que, apesar da convivência durante a pesquisa,
nunca tive com Nina uma relação intima.
112
filha mais nova, com a polícia, com os cachorros que circulam pelo Comosg. Assim como a
ouvi esbravejar sobre a sociedade, sobre a classe média, sobre o povo porco que deixa lixo na
rua, sobre a política. Enfim, Nina se constitui enquanto sujeito também através do conflito, da
luta, da briga.
Durante a entrevista a que me referi acima, percebi que Nina descreve a maioria das
relações duradouras que estabeleceu, como sendo iniciadas a partir de brigas. Foi assim com
Tati, no começo a gente brigava o tempo todo, e foi assim com Eleonora. A briga é também
sua estratégia de luta política; é preciso fazer barulho, fazer pressão, para que mudanças
aconteçam, para que as reivindicações sejam ouvidas pelo poder público. Por isso organiza
passeatas, manifestações, discute em reuniões com o poder público, com outras entidades.
Contudo, é também a partir das brigas que Nina revê seus posicionamentos. Do mesmo modo
que a vi brigar inúmeras vezes, também acompanhei os momentos, depois das brigas, por vezes
dias depois, em que pedia desculpas publicamente, reelaborando suas opiniões a partir dos
pontos levantados por seus “adversários” durante a discussão, e reforçando os pontos que,
mesmo depois da discussão, acreditava ter razão. Segundo ela, foi nesta dinâmica de brigas,
discussões e aprendizado que se aproximou de Eleonora, que hoje considera como filha, a
primeira assistente social que Nina conheceu de perto e que, juntamente com suas duas outras
filhas, ensinou-lhe sobre como elaborar as questões sociais a partir de um outro lugar.
As filhas de Nina, que conheci durante o trabalho de campo, têm posições políticas de
esquerda69. Nina marca que ela não é, nem nunca foi, de esquerda, contudo, as análises que
tece sobre a conjuntura social e econômica do país, e o vocabulário que aciona para expressar
suas ideias, remetem a lutas historicamente ligadas à esquerda. Há uma diferença entre o uso
que faço de esquerda e o uso que Nina faz do termo. Nina, ao se posicionar, refere-se à política
partidária, ou seja, Nina não apoia partidos políticos reconhecidamente de esquerda. Mas isso
não a impede de apoiar, fazer campanha e votar para candidatos com os quais mantém relações
e que são de partidos de esquerda.
Nina sempre faz referência às conversas que tem com as filhas sobre sua trajetória na rua.
Nesses relatos, o questionamento das filhas sobre barganhas eleitorais é central. Na tarde em
que fui a sua casa para lhe entrevistar, mais uma vez, acompanhei uma dessas discussões. Nina
me contava alguns episódios de sua trajetória, quando sua filha, que circulava por ali,
interrompeu dizendo num tom repreensivo, parece que ela tem orgulho dessa época. Apesar de
69 Uso o termo esquerda para me referir a um campo discursivo e não à política partidária. Este campo abarca as
práticas pedagógicas de Paulo Freire, a crítica ao capital, um discurso centrado na luta pela garantia de direitos
básicos e contra desigualdade social.
113
defender suas posições, Nina marca que naquela época ela ainda não sabia, fazendo uma
releitura de suas atividades a partir do discurso da luta (e garantia) de direitos básicos,
na minha cabeça eu tava devolvendo pro povo o que era dele. Era dinheiro público,
e o povo tinha direito […] e essas coisas levantavam a autoestima daquele ser
humano. E a minha cabeça já começou a perceber que estas coisas, comida,
medicamento, fazia falta, fazia sim diferença, e que era por esse meio que eu tinha
que caminhar.
A ideia de autoestima permeia as práticas de Nina até hoje e orienta os trabalhos que
desenvolve, como o caminho para uma mudança na vida das famílias, jovens e crianças que
atende. Mas vale marcar que a possiblidade da pessoa ter ou desenvolver elevada autoestima
está diretamente ligada à garantia de seus direitos básicos. Sem uma moradia com sistema de
saneamento, sem escola, emprego e saúde não há espaço para autoestima; se a sociedade trata
eles como lixo eles se sentem lixo. É o que Nina entende como pobreza construída, uma espécie
de pobreza incorporada que anula a autoestima e impede que a pessoa tenha forças pra mudar,
porque ela chega em casa e é esgoto, problema, fome, uma vida toda, isso desanima. É aqui
que entram o Conselho de Moradores e o Projeto Renascer. Seu papel é lutar para garantir as
condições básicas a partir das quais os sujeitos possam realizar uma mudança.
114
Para Nina, a (falta de) autoestima está ligada à pobreza construída. Para ela, a pobreza
construída é fruto da (não) ação do Estado e do descaso da sociedade em relação a esta parcela
da população e não da índole daqueles que vivem nesta condição 70. Cabe ao Comosg e ao
Projeto Renascer, a partir do trabalho de seus funcionários e das práticas diárias, trabalhar e
garantir a autoestima das crianças e suas famílias, segundo Nina. Gostaria de me deter no uso
dos dois verbos trabalhar e garantir a autoestima. O que pode parecer uma sutileza sem
consequências releva sua importância quando relacionamos estes modos de abordar a
autoestima e estimulá-la com as práticas de Nina e as ideias que defende, enquanto presidente
do Comosg.
Por um lado, garantir a autoestima é lutar a favor da comunidade junto ao poder público.
Por outro, trabalhar a autoestima é trabalhar individualmente com crianças, jovens e seus
familiares, cuidando de seus corpos, incentivando habilidades individuais e os ajudando com
seus problemas pontuais.
Assim, como modos de garantir a autoestima, ou seja, garantir os direitos básicos dos
moradores do bairro, Nina faz parte do Conselho Municipal de Saúde, do Fórum de Políticas
Públicas de Florianópolis e do Fórum Social do Saco Grande. Além disso, frequentemente bota
o povo na rua para lutar por seus direitos. Durante o trabalho de campo participei de três
passeatas organizadas pelo Comosg sob a liderança de Nina; duas delas mobilizaram as crianças
e jovens que frequentam o Projeto e a terceira foi organizada junto a moradores adultos do
bairro. A primeira passeata da qual participei foi organizada com as crianças e jovens, que
fizeram cartazes e faixas. O objetivo era protestar contra as condições da Escola Estadual de
Ensino Fundamental e Médio Professora Laura Lima e cobrar um posicionamento do governo
estadual71. Naquela tarde, saímos do Comosg e nos encaminhamos para a frente da Escola onde
Nina discursou no megafone, convidando professores e alunos que ali estavam a nos
acompanhar. Muitos vieram, partimos então em direção à sede administrativa do governo do
estado, localizada também no bairro. Ao chegar lá, Nina discursou novamente, seguida por falas
70 O debate em torno desta questão, se a condição de pobreza é resultado de problemas estruturais ou consequência
da “índole” e das escolhas morais dos sujeitos, é sempre um debate polêmico entre os funcionários do Comosg e
do Projeto Renascer que perpassa, de certa forma, todo cotidiano da instituição, como espero demonstrar, e por
isso mesmo produz os mais variados efeitos.
71 A passeata aconteceu no segundo semestre de 2012. Naquele momento, a escola já estava há mais de um
semestre funcionando em sistema rotativo. No primeiro semestre de 2012, isso significava que os alunos foram
divididos em dois grupos: um tinha aulas às segundas, quartas e sextas, o outro, às terças e quintas-feiras. Na
semana seguinte, os grupos eram revezados. Frente ao protesto dos pais, a direção da escola mudou a lógica do
sistema. As turmas dos turnos vespertino e matutino foram divididas em três grupos, que tinham apenas três horas
de aula por dia. Já as turmas do período noturno foram diminuídas significativamente. Isso porque a escola havia
sido interditada pois parte da edificação caiu. Além disso, não havia banheiros funcionando na escola durante a
maior parte do tempo. A escola funcionou em sistema rotativo em 2012 e 2013.
115
inflamadas de professoras da escola e de crianças e jovens. Participei também de uma passeata
para protestar contra o atraso do governo estadual na assinatura do convênio com o Comosg72.
A dinâmica foi similar ao do protesto acima descrito: crianças e funcionárias confeccionaram
os cartazes e faixas e, juntos, caminhamos até a sede do governo. A outra manifestação, dessa
vez organizada com adultos moradores do bairro, foi para protestar contra a falta de água na
Vila Cachoeira durante o verão de 2013-2014. Estas foram as três manifestações das quais
participei, mas ouvi referências a inúmeras outras, organizadas por Nina, contra os elevados
valores das cobranças do IPTU, a (des)organização do trânsito local e pela construção de uma
passarela para pedestres na Rodovia Estadual que corta o bairro.
Mas, como vimos, não basta garantir a autoestima a partir de lutas coletivas. Se esta
autoestima está ligada a fatores econômicos e estruturais, e cabe ao Comosg garanti-la a partir
das lutas pela efetivação de direitos coletivos básicos, ela está também ligada às práticas e
questões que podem ser trabalhadas individualmente. Neste sentido, na tarde em que
entrevistei Nina, ao falar sobre o trabalho que acredita ser importante realizar no Projeto
Renascer, Nina menciona Vanessa, uma jovem que frequentava o Projeto há alguns anos:
Tu vê a Vanessa, era um trapo, quando chegou aqui nem falava, nem olhava pra
gente, tinha um fio de voz, na escola perseguiam ela, discriminavam. Aí a Tati
começou a trabalhar a autoestima dela. A gente quis passar batom nela um dia, pra
ela saber que tinha boca. Não queria, não queria mas conversamos e passamos, e
ela começou a gostar. E a gente dava umas roupas assim, bonitinhas, pra ela ter
vaidade, querer se arrumar. Roupa nova também, não só de doação, porque é uma
alegria pode vestir algo novo. E ajudava com as tarefas da escola, incentivava nas
oficinas, ela ia se soltando. A gente conversava com a mãe, cesta básica, encontrar
emprego, sempre conversando. A Tati conversava muito, hoje se formou na oitava
série, tava tão bonita no dia, levei ela e o irmão pra comprar uma roupa pra
formatura. E agora tem um empreguinho, usa o batom vermelho dela e já fala até
demais! É a autoestima, tem que trabalhar isso.
Quando conheci Vanessa, ela era uma jovem extrovertida, sempre envolvida nas
atividades do Projeto, ajudando as professoras a organizar eventos, a cuidar das crianças mais
novas, a decorar a instituição nos dias de festa. Contudo, segundo as funcionárias que a
conheciam há mais tempo, este comportamento era bastante diferente daquele da criança
retraída que era quando chegou ali. Uma criança que chamava a atenção por sua timidez e por
72 Grande parte dos recursos financeiros que mantêm o Projeto Renascer vêm dos convênios que mantêm com o
poder público. Um deles, com o governo do estado, através da Secretaria de Estado da Casa Civil (via Fundo
Social) e o outro estabelecido com o governo municipal, através das Secretarias de Educação e do Bem-Estar
Social. No início de 2013, o governo estadual havia atrasado mais uma vez a assinatura do convênio, que deve ser
renovado anualmente.
116
não brincar com suas colegas, que frequentemente a excluíam e faziam comentários jocosos e
pejorativos em função de suas roupas bastante usadas e dos problemas de aprendizagem que
apresentava. Para Tati, Nina, Marilda e Aristides, receber Vanessa no Projeto não poderia se
limitar a incentivá-la a participar das oficinas oferecidas. Foi preciso trabalhar sua autoestima
individualmente, conversando continuamente, conhecendo sua situação familiar, ajudando sua
mãe a encontrar um emprego. Este trabalho passa também pela construção de sua
corporalidade: o batom, as roupas novas fazem parte desse processo.
Há duas questões aqui para as quais gostaria de chamar a atenção. Em primeiro lugar, é
importante ressaltar que, para Nina, não basta atender Vanessa, é preciso trabalhar com seus
familiares. Mesmo ao falar sobre o caso específico de uma das crianças atendidas, Nina
menciona o trabalho que realizaram junto a sua mãe, e não apenas com Vanessa. Este
posicionamento não é exclusivo de Nina; algumas outras funcionárias do Comosg, como
Marilda, Tati e Aristides, compartilham com ela esta visão, expressa também no Projeto
Político Pedagógico do Projeto, cujo objetivo geral é atender “crianças/adolescentes e famílias
em situação de vulnerabilidade”. Ou seja, para estes profissionais, o “público-alvo” do Projeto
Renascer não se restringe às crianças e jovens, abarcando também seus familiares.
Em segundo lugar, como vimos, trabalhar a autoestima passa também por técnicas e
práticas que tem no corpo um locus de ação privilegiado. Ou seja, técnicas e práticas voltadas
para a produção de uma corporalidade específica. Mas aqui precisamos distinguir entre os
diferentes pressupostos que orientam este processo de produção de corporalidades. Pensemos
no que Nina nos diz sobre Vanessa. Segundo ela, ao chegar no Projeto Renascer, Vanessa era
um trapo, porque tinha um fio de voz, não falava, não olhava pra gente. Estes elementos nos
permitem formar a imagem de um corpo submisso, que era preciso transformar. Tati incentiva
Vanessa a passar batom para incentivá-la a falar, a ter voz. Os coordenadores do Projeto lhe
dão roupas novas para que ela desenvolva sua vaidade que, na fala de Nina, não detona
futilidade ou algo sem valor, mas seu oposto. Desenvolver a vaidade é incentivá-la a reconhecer
seu valor enquanto sujeito. Neste sentido, o que é preciso mudar não é uma corporalidade que
detona falhas morais. O processo de mudança corporal é parte da construção de Vanessa para
ela mesma, enquanto um sujeito que tem valor, é parte de um processo de autovalorização e de
“empoderamento”.
Nesta chave de interpretação, a voz baixa, o olhar que não encontra o olhar do outro, mas
se mantém fixo no chão, as costas curvadas, são posturas lidas como sinais de que o sujeito não
se valoriza. Mas isso acontece não devido à razões de ordem individual e psicológica, mas em
função de fatores que dizem respeito à dimensão sócio-histórica e política da produção de sua
117
subjetividade73. Nas palavras de Nina, se a sociedade os trata como lixo, eles se sentem lixo.
Se Vanessa era um trapo quando chegou ao Projeto, foi porque, ao longo de sua vida, tanto ela
quanto seus familiares, foram interpelados enquanto tais. Morar em uma casa sem saneamento
básico, ao lado de um esgoto ao céu aberto, sem coleta de lixo, frequentar uma escola com
infraestrutura precária, não ter dinheiro para comprar roupas ou alimentos são mais do que
fatores que ajudam a explicar as ações dos sujeitos. Pois as condições socioeconômicas não
apenas explicam as ações dos sujeitos, mas os constituem. Por isso é tão importante garantir
seus direitos básicos através das lutas coletivas.
Como podemos perceber, tanto para Tati, quanto para Nina (assim como, em certa
medida, para Marilda e Aristides, que assumiram, respectivamente, a coordenação do Projeto
após a saída de Tati) o trabalho que realizam ali está diretamente ligado ao campo político dos
Direitos Humanos. As ações empreendidas pelo Comosg devem ser situadas, segundo estas
profissionais, neste lugar, da luta pela efetivação dos diretos básicos daquelas e daqueles
atendidos pelo Comosg e dos moradores e moradoras do bairro. Mesmo que todas estejam
também envolvidas em iniciativas religiosas e de voluntariado em outros momentos e espaços
de suas vidas, o Comosg deve operar segundo outra lógica, a lógica política dos direitos.
73 É interessante notar que a corporalidade apontada como problemática por Nina (voz baixa, costas arcadas, os
olhos no chão) é, em alguns contextos, considerada a postura ideal. Durante minha pesquisa no Centro de
Internamento Provisório, os jovens eram punidos quando não apresentavam esta postura. Além disso, se o jovem
adotasse a corporalidade desejada, estes traços eram descritos nos relatórios redigidos para o Juíz responsável pelo
caso do jovem como um sinal de sua “recuperação” (DASSI, 2007). Sobre esta questão, penso também na análise
que faz Cesar Pinheiro Teixeira (2010) sobre a conversão religiosa de traficantes de drogas. Em ambos os casos,
assim como na análise de Zigon sobre o Programa para usuários de heroína, fica evidente que a “reforma moral”
necessária para que os sujeitos sejam considerados ou membros da comunidade evangélica ou aptos a serem
liberados, passa, necessariamente, pelo corpo. Nas palavras de Teixeira “as mudanças precisam ser profundamente
corporais e devem ser vigiadas rigorosamente”. É preciso que o jeito de andar, de se vestir, a postura corporal,
etc., mude, adquirindo as características apontadas como problemáticas por Nina. Mas Nina não está sozinha;
durante a pesquisa que realizei com jovens cumprindo medida de semi-libertadade (DASSI, 2010), a coordenação
da instituição procurava incentivar os jovens que andavam de cabeça baixa, olhos no chão e voz inaudível, a erguer
a cabeça, olhar para seus interlocutores e usar sua voz. Duas corporalidades opostas que nos ajudam a pensar sobre
dois projetos socioeducativos diversos e que nos permitem vislumbrar a dimensão moral desta espécie de disputa
pela corporeidade dos jovens e crianças, no caso da presente pesquisa.
118
2.3. Aristides: Outrora eu era essas crianças
Arstides foi criado por sua avó, a quem chama de mãe, em uma casa cercada de árvores
em um dos morros do bairro. Quando o conheci, no início do trabalho de campo, ele era o
oficineiro responsável pelas oficinas de capoeira e teatro, as oficinas favoritas da gurizada,
juntamente com a oficina de dança. De certa forma, a trajetória de Aristides no Projeto
Renascer, de oficineiro a coordenador, é a concretização de uma das ambições de Nina e Tati:
acompanhar e incentivar jovens para que eles próprios tornem-se oficineiros, professores e
professoras no Projeto Renascer.
Seu primeiro contato com o Comosg foi como bolsista do Programa Agente Jovem, entre
os 15 e 17 anos, experiência importante para sua formação: algumas coisas que aprendi ali,
tipo a questão do teatro, questão do meio ambiente, que são importantes. Vejo que aprendi ali,
lembro como se fosse ontem, teatro, música. Neste sentido, seu envolvimento com a capoeira
também foi decisivo. Aos 13 anos, quando começou a frequentar as aulas de capoeira, elas
aconteciam no Centro Comunitário do Monte Verde, bairro vizinho ao Saco Grande. Seu
Mestre era também morador do bairro e, segundo conta, sempre o incentivou e ajudou a
continuar na turma, mesmo nos momentos mais complicados de sua vida. Aristides conta que
o que aprendeu com o Mestre e com a prática de capoeira vão muito além de uma mera atividade
física, ensinando-lhe responsabilidade, respeito, paciência e possibilitando pensar sobre sua
identidade negra a partir de um lugar de identificação positiva. Além disso, foi a partir de seu
conhecimento da capoeira que pode iniciar sua carreira como educador.
O jovem Aristides conseguiu seu primeiro emprego de verdade em uma lanchonete do
bairro aos 15 anos. Mas, como faz questão de marcar, desde os 8 já contribuía com o orçamento
da casa fazendo pequenos serviços para uma vizinha, limpava vidraça, tapete, fazia tudo dentro
da casa dela, ia na feira com ela, carregada o carrinho que ela não conseguia. Além disso,
ajudava seu avô, que era pescador, estendia a rede, ajudava a lavar a bateira, carregar as
coisas morro acima. Depois desse momento inicial, aos 8 anos de modo mais solto e com 15,
quando encontrou seu primeiro trabalho diário na lanchonete, Aristides nunca mais parou de
trabalhar. Na narrativa que constrói sobre sua trajetória, o trabalho é um elemento central, um
valor. Foi a partir dele, segundo analisa, que começou a dar valor ao que tinha. Foi também por
causa de experiências que teve no seu trabalho em um posto de combustível que decidiu
procurar o Comosg para fazer trabalho voluntário e voltar a estudar para tornar-se um educador.
Em parte, o desejo de entrar na faculdade foi estimulado pelas conversas que ouvia no
posto, que ficava próximo a uma das Universidade Públicas da cidade: as conversas que eu
ouvia, era discussão intelectual mesmo, e eu ficava ouvindo, aprendendo. Tinha vontade de
119
estudar também. Aristides faz referência a estas conversas com frequência, ouvindo jovens
universitários conversarem no meio da madrugada (sempre trabalhava no turno da noite)
desejava o conhecimento que demonstravam.
Mas a gota d´água, o que o impulsionou em direção ao trabalho no Comosg e a entrar na
faculdade, foram as experiências de assaltos no posto alimentadas pelas reflexões que fazia com
base no que aprendeu na Igreja Quadrangular:
É que eu trabalhei no posto, e tem muito assalto né. Então vinha a questão de mudar a
sociedade de alguma forma. Mudar na base né. Tem também a questão da Igreja, eu já li a
bíblia toda, então acho que tem um pouquinho daquela visão, de querer mudar o mundo, de
querer um mundo melhor. E teve um dos assaltos que foi muita coisa, e deu um estalo:
acabou meu tempo aqui, isso não é vida pra mim, vou trabalhar com educação. Queria fazer
uma faculdade, queria um curso superior.
Este é o momento de sua vida em que procura Tati, para se oferecer como voluntário no
Projeto Renascer. Conta que o comportamento dos inúmeros jovens que assaltaram os dois
postos nos quais trabalhou o faziam pensar sobre o que há de errado no mundo, sobre a
necessidade de fazer algo que pudesse mudar a vida dessas pessoas. Neste primeiro momento,
suas reflexões eram alimentadas pelo que havia aprendido na Igreja e o voluntariado; ao menos
no início, foi o caminho que encontrou.
A Igreja desempenhou um papel central em sua vida. Aristides começou a frequentar a
Igreja do Evangelho Quadrangular aos 14 anos, a convite de uma tia. Um pouco encabulado,
confessou rindo que começou a ir por causa de uma menina, na realidade começou por uma
questão de adolescente, uma menina. Foi ali que desenvolveu sua habilidade de leitura, que
segundo ele era péssima antes de frequentar os grupos de estudo da bíblia. Terminei o segundo
grau e mal sabia ler, nem sabia interpretar, aí eu tinha que correr atrás do prejuízo. Através
da Igreja frequentou por um ano o curso de Teologia, foi ali também que teve sua primeira
experiência como professor, na escola bíblica 74.
A experiência e aprendizados religiosos, que se intensificaram à medida que ficava mais
velho, foram, segundo ele, o que lhe permitiram refletir sobre os assaltos como sintomas de
uma realidade que precisava ser transformada. O caminho para mudança, no seu entendimento,
deveria ser a educação e o trabalho. Se queria contribuir para esta mudança social, tornar-se um
educador seria o melhor caminho. Chega assim ao Projeto Renascer como voluntário e logo em
seguida é contratado como oficineiro de capoeira.
74O papel dos grupos de estudo e leitura da bíblia para o desenvolvimento da compreensão da palavra escrita entre
as classes populares não deve ser subestimado. Como Aristides, muitos jovens e adultos passam a ter mais
intimidade com a leitura a partir de sua inserção em grupos de estudos bíblicos.
120
Masadaptar-se à rotina e aos dilemas de oficineiro no Projeto Renascer foi mais
desafiador do que imaginou em um primeiro momento:
a primeira vez que eu fui dar aula ali [no Projeto Renascer] também fiquei morrendo de
medo, porque a gente que é daqui, viu a Vila Cachoeira se formar. A realidade era outra. É
que pra mim era estranho ver as crianças falando palavrão daquele jeito, eu não me lembro
da minha infância desse jeito.
Durante seu primeiro mês como oficineiro de capoeira, Aristides manteve uma espécie
de diário no qual anotava os movimentos trabalhados, suas ideias para as aulas, suas impressões
sobre elas e sobre as crianças. Tive acesso a suas anotações e a partir delas é possível
acompanhar seus dilemas enquanto educador neste período inicial. Nos primeiros dias de aula,
o que chama sua atenção é a generosidade de algumas crianças, que lhe dão pequenos mimos
(bolinhas de gude, balas, desenhos) e a falta de educação e de respeito de outros. Aos poucos,
as brincadeiras de lutinha e o comportamento desafiador de determinadas crianças e jovens,
notadamente meninos, passam ao primeiro plano: algumas brincadeiras de lutinhas, um
querendo ser mais macho que o outro, outras culturas e personalidades se enfrentando. Sua
primeira reação é de estranhamento; sente-se distante de muitas dessas crianças, que têm outras
culturas até.
Aristides acompanhou a chegada da Vila Cachoeira no bairro. Ele e seus familiares
partilharam do medo que muitos moradores e moradoras tiveram desses “outros” que chegavam
ao seu bairro, vindo das favelas da SC. Pessoas com hábitos diferentes. Tati também marcava
que foi difícil no início, logo que se mudou para a Vila, acostumar-se às crianças que falavam
palavrões, com famílias que ouviam música alta. Para Aristides, assim como para Tati, aprender
a conviver com os moradores e moradoras da Vila era aprender a conviver com a diferença.
O diário cobre um curto período de tempo, cerca de um mês, mas já é possível perceber
que as conversas com Tati e as reuniões pedagógicas começam a fazer com que Aristides
repense suas perspectivas sobre as crianças, jovens e os moradores da Vila Cachoeira. Aristides
fala sobre a postura de Tati como uma grande influência em suas concepções. Aprendeu muito
ouvindo o que dizia:
a gente discutia o caso de alguma criança que estava com problemas e ela falava também
do contexto dessa criança, as necessidades da família também, o lugar que moravam e as
dificuldade de cada um. Era uma visão mais aberta, que não focava só naquela criança como
problema, mal-educada. Via mais coisa, ajuda a entender aquelas crianças, as famílias
delas, de outro jeito.
121
Aprendeu também ao observar Tati: eu ficava observando a Tati com as crianças; G1,
G2, G3, todo mundo respeita ela, obedece, escutam ela falar. Ela entende e ensina, nunca
xinga, sempre brincando, conversando. As conversas com Tati, Nina e Marilda, o ajudam a
elaborar de modo diverso sua relação e sua avaliação das crianças, jovens e seus familiares. O
contexto da criança passa a designar também o contexto socioeconômico e cultural mais amplo,
no qual os familiares da criança e o próprio bairro estão inseridos, e não apenas a situação
particular.
Foi a partir daí que decidiu que realmente era este o trabalho que gostaria de ter, foi neste
momento de sua vida que, em suas palavras tudo deslanchou e ele entrou para a faculdade de
Pedagogia. No entanto, quando reflete sobre sua trajetória retrospectivamente, há ainda outro
fator que entende como motivador: sua identificação com as crianças atendidas no projeto. Com
a convivência com outras profissionais do Projeto Renascer e o contraste de determinados
posicionamentos com aqueles da coordenação, Aristides percebe que, para aquelas que
chegavam de fora, ele poderia ter sido uma daquelas crianças:
E o pior de tudo é quando tu vê profissional, quando tu trabalha com profissional que não
tem essa visão. Eu via muito nos profissionais que estavam ali, que tanto faz como tanto fez,
pra eles as crianças são tudo uma cambada mesmo. E isso me doía, porque eu era aquelas
crianças entende. Outrora eu era essas crianças, era essa visão que tiveram de mim. Porque
eu já participei de projeto, eu nasci aqui, este é meu bairro, é minha vida. Então quando um
educador fala daquelas crianças como se fossem uns folgados, futuros bandidinhos... eu
lembro da minha infância, é como se falassem do meu irmão, do meu primo. Isso doía muito.
Se ser ou não do bairro diferencia os funcionários e funcionárias do Comosg entre si, esta
diferenciação não pode ser naturalizada como algo que existe simplesmente graças a uma
questão de endereço. O que levou Aristides a questionar o modo como compreendia as crianças
e famílias atendidas pelo Projeto Renascer, principalmente aquelas que vinham da Vila
Cachoeira, foi sua experiência trabalhando no próprio Comosg e o que aprende ali com Tati,
Marilda e Nina. Mas não só isso; foi perceber que ele também poderia ter sido interpelado como
folgado, futuro bandidinho. E ainda pode ser, como ele mesmo ressalta quando conversamos
sobre o assunto. Ele lembra que alguns dias antes de nossa conversa, quando voltava do centro
da cidade em sua moto no meio da tarde, ele foi parado pela polícia perto da entrada do bairro.
Conta que o policial pediu seus documentos num tom bastante agressivo. Aristides entregou os
documentos e falou para o policial que aquele tom não era necessário explicando: sou
trabalhador senhor. Neste momento ele aciona seu status de trabalhador. Este lugar social,
trabalhador que valoriza e que, em sua concepção, o legitima como sujeito honesto, aciona-o
também para pedir ao policial o respeito que entende merecer. Segundo ele, o policial lhe
122
respondeu: cala boa vagabundo, ou quer que teu te leve ali no canto para levar uns tapas. Ao
terminar seu relato, Aristides comentou que em momentos assim, é possível compreender a
revolta e o comportamento de alguns jovens que constantemente são abordados de forma
agressiva por policiais, professoras, professores e chefes devido a suas características raciais e
de classe.
São experiências como estas que o fazem perceber que ele era, e é, um deles, uma destas
crianças e jovens vistos como cambada por algumas profissionais e interpelados como
vagabundos, bandidinhos. Seja ele morador da Vila Cachoeira ou não. O “outro” dentro do
bairro, a Vila Cachoeira, passa a ser parte do “nós” com o qual é possível se identificar. A
identificação com estas crianças e estas famílias faz com que se alie ao projeto político-
pedagógico do Comosg.
Entretanto, é esta mesma identificação que alimenta suas considerações sobre o que
entende como escolhas de algumas crianças, jovens e de seus familiares. Num fim de tarde já
no final da pesquisa, eu, Aristides, Marilda e sua filha conversávamos sobre alguns jovens
moradores do bairro que estavam envolvidos com o tráfico de drogas. Aristides comenta: a vida
é feita de escolhas, eles fizeram a deles. Para ele, muitas vezes, envolver-se ou não em
atividades ilegais, parar de estudar ou não, é também uma questão de escolha e de índole.
Afinal, a trajetória de Aristides também foi marcada por adversidades, mas ele escolheu seu
123
caminho: trabalho e estudos. Ele reflete que, para que esta escolha possa ser feita é preciso que
ela se apresente como uma possiblidade; é preciso, em suas palavras, que as crianças e jovens
possam imaginar outros caminhos. Com isso ele se refere a caminhos que não passem por
atividades ilícitas como o tráfico de drogas ou assaltos e roubos. Imaginar outros caminhos é
imaginar caminhos que passem pela faculdade, por empregos fora do bairro, por trajetórias que
não envolvam um casamento ou gravidez antes dos 20 e poucos anos. Se pais e responsáveis
não podem ajudar neste sentido, é aí que entra o trabalho da escola mas, principalmente, de
espaços como o Comosg, um projeto social. Que, por não estar preso nas obrigações
curriculares da escola, pode oferecer uma educação diferenciada, nas palavras de Aristides,
capaz de alimentar a imaginação, capaz de apresentar possiblidades que, às vezes, não estão
presentes em convívio familiar e comunitário. Como aconteceu no caso dele e sua experiência
no Projeto Agente Jovem.
Mas é preciso também escolher, é preciso que a criança e, principalmente o jovem,
escolha. Nas elaborações de Aristides, a margem de escolha, a liberdade do sujeito para decidir
seu próprio caminho, e sua índole pessoal, estão sempre presentes. O mesmo poderia ser dito
de Nina, Tati e Marilda. Contudo, esta análise que traz ao primeiro plano a dimensão individual,
sob a égide das ideias de índole e escolhas pessoais, é mais evidente nas elaborações de
Aristides e de Marilda, como veremos a seguir.
Durante uma reunião pedagógica da qual participei, este assunto veio à tona no momento
em que as doações de comida que o Comosg faz para moradoras e moradores do bairro estava
em questão. A doação de comida é uma prática comum no Comosg e, nesta tarde, uma das
funcionárias da cozinha perguntava se doar comida não era uma prática assistencialista que
poderia fazer com que certas pessoas se acomodassem. Foi neste dia que Nina elaborou sobre
a diferença entre assistência e assistencialismo. Para ela, assistencialismo seria a doação
contínua de alimentos ou para fins de ganhos eleitorais ou desvinculada de outras ações. Já
assistência era uma espécie de “ajuda emergencial”, para que as famílias pudessem se erguer,
já que passando fome seria difícil fazer qualquer outra coisa, mesmo procurar um emprego mais
estável. Nas palavras de Nina, a gente dá comida pra pessoa poder usar o dinheirinho dela pra
pegar um ônibus pra ir numa entrevista de emprego, senão como faz?
Marilda complementou a fala de Nina reconhecendo que é preciso sim evitar que as
doações fossem vistas e acionadas como assistencialismo. Um dos caminhos que a direção do
Comosg havia encontrado evitar isso, explicou ela, foi a criação de um registro das famílias que
ganhavam doação. Segundo Marilda, o registro estava funcionando, já que, desde que a prática
começou, algumas famílias que costumavam vir todas as semanas em busca de comida
124
passaram a fazer isso com menor frequência. Neste momento, Aristides comentou que muitas
vezes, os problemas de determinadas pessoas não são exclusivamente financeiros, mas de
ordem moral, e citou o exemplo de um morador jovem do bairro usuário de crack, cuja família
teria uma condição financeira aparentemente confortável, já que não precisavam de doações de
comida e tinham casa própria. Para ele, no caso do jovem em questão, as condições adversas
de vida não poderiam justificar seu comportamento; o problema dele era também consequência
de suas escolhas.
Nina lhe interrompeu e passou a contar as mazelas pelas quais o núcleo familiar do jovem
havia passado quando ele era uma criança, uma saga de humilhações, abusos, fome,
deslocamentos de uma casa desapropriada a outra. E concluiu: é uma pobreza construída, não
é vagabundagem, é miséria, desleixo construído, eles têm vergonha de se pronunciar, vergonha
de ser pobre. É muita humilhação. Não conseguem mudar, não tem estímulo. Nina chamou a
atenção, com paixão, para a dimensão da humilhação do lugar de quem precisa de ajuda, e para
o que esta experiência de humilhação pode produzir no sujeito ao longo dos anos: apatia e/ou
revolta. Sua elaboração pretendia tornar compreensível a vida do jovem e seus problemas. Para
isso, lembrou também da sua própria experiência, todo mês se vendo obrigada a pedir como um
mendigo junto aos órgãos do governo para que paguem as parcelas estipuladas pelo convênio
do Projeto Renascer75. E concluiu: a gente fica indignada, mas tem que ir, se humilhando pra
pedir o que na verdade é direito.
Aristides, com emoção na voz, defendeu que, como Conselho, era preciso fazer alguma
coisa por famílias que vivem em condições de extrema pobreza, não sendo possível
simplesmente aceitar passivamente que as coisas sejam assim. Seria preciso ajudar famílias a
encontrar uma fonte de renda, criar um grupo para dar o suporte e acompanhamento para estas
famílias, defender e reivindicar seus direitos básicos junto ao Estado. Lembrou também das
cestas básicas que sua mãe recebia e de como eram importantes para a organização de seu
núcleo familiar.
Nina comentou que o Comosg, sozinho, não teria condições de dar conta de todas as
demandas, de manter o grupo proposto por Aristides para dar um suporte mais sistemático para
as famílias do bairro; isso teria de ser o papel do Estado. E lembrou, com admiração, do esforço
de Aristides, desde muito jovem, para ajudar sua família. Neste momento, ele pediu a palavra
75Era bastante comum que o Estado atrasasse o pagamento ao Projeto Renascer das parcelas mensais estipuladas
pelos convênios que mantinham com o Comosg. Isso tornava o gerenciamento do Projeto difícil, obrigando Nina
a procurar por doações de comida, por exemplo, para as refeições diárias das crianças com certa frequência. Além
disso, Nina se via obrigada a ir constantemente aos órgãos responsáveis pelos convênios pressionar os gestores
para que os recursos que haviam sido destinados ao Projeto Renascer fossem pagos.
125
novamente e sublinhou mais uma vez a questão moral, a atitude dele (e de outras e outros como
ele) frente às adversidades, sem negar a dimensão da humilhação de receber ajuda, mas
sublinhando que é preciso ter humildade e força de vontade para lidar com estas questões.
Marilda falou em seu apoio, discordando em parte da fala de Nina. Para ela, Aristides estava
certo ao afirmar que esta é também uma questão de educação moral, de valores que devem ser
incentivados e respeitados.
Aristides concluiu seu argumento:
olha, eu trabalhei por $600,00 por 6 anos, atendia todo mundo da melhor forma, trabalhava
direito, chegava no horário. É uma questão de caráter também, e índole, se o governo ajuda
ou não, é a índole da pessoa. Se eu consegui mudar minha condição, fazer faculdade, não
posso achar que sou uma exceção, que os outros não podem conseguir também. Não sou
melhor que ninguém. O que eu posso fazer é ser um agente da mudança, é trabalhar com as
crianças, porque o traficante de hoje foram os meninos que eu lembro de ontem. Tem que
cobrar o Estado e lutar pelos direitos de todos, dar oportunidades pra todos, mas tem que
ensinar o certo e o errado, ensinar responsabilidade pras crianças, respeito.
Marilda concordou com Aristides e complementou que é preciso sempre cuidar para que
não se use a pobreza como uma desculpa, já que os problemas estruturais do país são graves
demais para serem acionados para justificar escolhas que entende serem pessoais. Se ambos
são mais enfáticos ao sublinhar a liberdade de escolha dos sujeitos, ao mesmo tempo, ambos se
preocupam mais quanto aos efeitos que ações autoritárias ou de descaso de instituições
públicas, como a polícia, a escola, o Unidade de Saúde, podem produzir. Isso porque, entendem
que, se as escolhas pessoais são importantes, estas escolhas são feitas também com base na
experiência das crianças e seus familiares. Se a polícia age de forma agressiva e arbitrária no
bairro, é possível que crianças e jovens se sintam revoltados, e escolham se contrapor a ela. O
próprio Aristides pôde sentir a revolta que estas interpelações podem gerar, como vimos acima.
Se a escola está em condições precárias, funcionando sem regularidade, é compreensível que
as crianças e jovens escolham se distanciar dela, sem dar a devida importância a educação
formal. Se empregadores tratam os jovens de forma injusta, mesmo quando demonstram
responsabilidade, é possível compreender sua relutância em seguir trabalhando com disciplina.
Esta era uma das grandes preocupações e dilemas de Aristides, como ensinar as crianças e
jovens sobre responsabilidade, respeito às instituições públicas se as crianças e jovens muitas
vezes têm experiências tão distantes disso em relação às estas mesmas instituições. Ao elaborar
sobre esta questão, na tarde em que o entrevistei em sua casa, Aristides rememorou seu encontro
com a polícia de moto e outras situações de comportamento agressivo de policiais no bairro.
Lembrou também da situação de uma das escolas locais, parcialmente interditada há quase dois
126
anos e com as aulas reduzidas num sistema de rodízio. Estas situações tornavam difícil, segundo
ele, seu trabalho e representam um desafio constante. Já que, ao mesmo tempo em que acredita
que é possível escolher, entende que estas escolhas devem ser situadas dentro de um contexto
sócio-histórico mais amplo. Ademais, como ele sublinha, a gente escolhe entre aquilo que
acredita que existe.
Por esta razão, entende que parte de seu trabalho é promover valores que incentivem
crianças e jovens a escolher seus caminhos pautados em critérios que não se limitem a critérios
financeiros:
Porque se eles forem escolher pelo dinheiro, esta é a grande cilada de tudo. Imagina, tu vai
trabalhar no Mac Donald, ganha o que, $300,00, $400,00. Aí vê o colega no tráfico,
$1000,00, $2000,00... não dá, a diferença é muito grande! Então é que eu digo, a gente tem
que ensinar outra coisa, que tem outros valores no mundo que não só o dinheiro, fazer
alguma coisa que gosta, que trabalha e gosta, e que não prejudica o outro, e que dá pra se
orgulhar... isso vale mais, mais que o dinheiro e o boné de marca.
Este é um dos desafios que tanto Aristides quanto Nina, Tati e Marilda relatam enfrentar
enquanto coordenadores e educadores do Projeto Renascer: o desafio de descontruir, ao menos
um pouco, o desejo de consumo, o desejo de ter produtos de marcas com prestígio. A
importância desse trabalho é tal que, ao refletir sobre os desafios do Projeto Renascer durante
uma reunião com outras instituições responsáveis pela gestão da infância, Marilda comentava
como é difícil concorrer com as aventuras e o dinheiro prometidos pelo tráfico e com o
Shopping, a Decathlon, o Kart e as coisas e marcas que eles oferecem. Para a coordenação do
Projeto Renascer, se o tráfico de drogas seduz crianças e jovens, ele seduz porque oferece
acesso às experiências de emoções intensas e ao consumo. É preciso oferecer alternativas,
novos modos de se fazer no mundo, para as crianças e jovens. Capoeira, esportes, aulas de
teatro e música são a contrapartida que podem oferecer as emoções do tráfico de drogas e os
valores que fomentam, principalmente em relação ao trabalho e aos estudos, são as alternativas
ao prestígio e ao poder financeiro 76. É preciso garantir que crianças e jovens tenham acesso a
estas atividades, para Aristides este é o caminho que pode garantir que façam aquilo que entende
como boas escolhas.
76 Apesar de tecerem críticas ao desejo de consumo exacerbado, e a fixação das crianças por marcas de luxo,
acreditam que é preciso, às vezes, garantir que as crianças tenham acesso a alguns bens de consumo, senão de
luxo, ao menos novos. Nina era quem mais demonstrava esta preocupação. Quando algumas das crianças de menor
poder aquisitivo fazia aniversário, ou se formava no ensino fundamental, ela garantia que esta criança ganhasse
alguma roupa ou tênis novos. Toda criança deve poder ter um dia uma roupa, um tênis novo, comprados numa
loja de verdade, e não só doação e restos, o que os outros não querem mais, me explicou, em uma tarde na qual
levou um menino para escolher um tênis numa das lojas do comércio local.
127
Para Aristides, este é o trabalho de um educador como ele e do Projeto Renascer. A partir
de sua própria experiência, de ter sido (e ser) como os meninos e meninas com quem trabalha,
sua trajetória é acionada como exemplo e ponto de identificação que lhe permite compreender
estas crianças e jovens. Entende que, se ele teve a oportunidade de escolher trabalhar e estudar,
graças aos valores e habilidades que aprendeu em casa, na Igreja, na capoeira e no Projeto
Renascer, é preciso agora garantir que outras crianças tenham as mesmas oportunidades. E estas
oportunidades devem ser conquistadas a partir de um trabalho individual, com crianças, jovens
e seus familiares, e de um trabalho amplo, junto aos órgãos públicos que têm como missão
atender esta parcela da população.
Marilda é a única entre as coordenadoras que acompanhei durante a pesquisa que não
nasceu em Florianópolis. Carioca, mudou-se para a cidade há mais de 15 anos. Marilda é
pedagoga e tem uma trajetória educacional similar à de Tati: fez magistério e depois, já
trabalhando, faculdade de Pedagogia. Foi professora da rede pública de ensino por grande parte
de sua vida profissional, tanto em Niterói quanto em Florianópolis. Quando a conheci, ela já
estava trabalhando no Projeto Renascer, como ACT, há cerca de 7 anos. Marilda mora, com
seu marido, sua filha e seu filho, na Vila Cachoeira. A proximidade de casa é uma das razões
para a escolha do Projeto Renascer como local de trabalho. Mas não a única. Como Tati, Nina
e Aristides, trabalhar no Projeto Renascer é também um modo de atuar na comunidade que
habita.
Sua trajetória de vida e o fato de ser moradora da Vila Cachoeira são acionados como
pontos de identificação com as crianças e jovens com os quais trabalha e esta identificação
influencia sua prática e sua concepção sobre as crianças e jovens. Além disso, Marilda vê nas
crianças e jovens com os quais trabalha traços de seus próprios filhos. Isto é, as crianças com
as quais trabalha não são crianças e jovens distantes, moradores de uma comunidade à qual não
pertence, como são estas crianças e jovens para a professora do Curso de Preparação para o
Mercado de Trabalho, por exemplo. Muito pelo contrário; eles são, em alguns sentidos, como
ela foi, como são seus filhos: são vizinhas, vizinhos, filhos e filhas de amigos e amigas e
membros da Igreja que frequenta. As diferenças que traça são mais sutis do que a diferença
128
delimitada por algumas professoras que trabalham no Comosg, que veem nestas crianças e em
seus familiares “outros” fundamentalmente diferentes de si e dos seus.
Marilda começou a trabalhar com crianças e jovens como voluntária. Conta que, com
cerca de 17 anos, foi até uma ONG perto de onde morava em Niterói oferecer seus serviços,
impulsionada pelo desejo de fazer algo por sua comunidade. Esta atuação foi em parte o que
lhe inspirou a fazer o Magistério, depois a faculdade de Pedagogia. Foi ela quem assumiu a
coordenação do Projeto Renascer quando Tati saiu. Antes da transição, era o braço direito de
Tati. Era comum encontrar as duas na coordenação, confabulando, como diziam. Ou seja,
conversando e articulando para resolver alguma das várias questões que surgiam no cotidiano
da instituição. Durante o período da pesquisa, Marilda era também a vice-presidente do
Comosg, atuando ao lado de Nina na diretoria da instituição. Ela e seu marido são membros
ativos da Igreja Batista. Sua ligação com a igreja é forte e discreta. Como Aristides, Nina e Tati,
Marilda não fala sobre sua religiosidade no contexto do trabalho.
Ao assumir a coordenação, seus esforços, desde o início, foram no sentido de organizar
melhor as coisas. Definir claramente os papéis de cada uma das funcionárias, o que deve ser
feito pela secretaria, pelas professoras, oficineiras, pelas responsáveis pela manutenção da
limpeza e pelas funcionárias da cozinha. Entendia que, parte dos conflitos internos da
instituição, existia em função da não delimitação clara do que era esperado de cada uma das
funcionárias e funcionários. Era também preciso, em sua perspectiva, organizar fisicamente a
instituição, catalogar livros, limpar depósitos, organizar brinquedos, armários, materiais
didáticos. Durante as férias, envolveu funcionárias e algumas das crianças e jovens que
apareciam por ali neste movimento: catalogaram e organizaram os livros que viviam espalhados
por diferentes salas da instituição; faxinaram os armários da coordenação; limparam e
organizaram o pequeno depósito de uma das salas, separando brinquedos em caixas;
transformaram o cafofo, até então entulhado de bugigangas variadas, numa ampla sala. Ciente
das críticas tecidas ao Projeto Renascer, sua postura de organização era em parte uma resposta
a elas, mas também era concretização do que acredita enquanto educadora e líder comunitária.
Este ímpeto de organizar melhor o Projeto Renascer, o Comosg e suas ações, também
influenciou as relações com outras instituições que atuam no bairro. Neste sentido, Marilda
organizou uma reunião com representantes da escola local, da Unidade de Saúde, do Conselho
Tutelar e do CRAES (Centro de Recursos e Apoio à Emergência Social). Seu objetivo era
discutir questões referentes ao atendimento das moradoras e moradores do bairro, a fim de
coordenar as ações das instituições. Durante a reunião, foram discutidos problemas gerais e
casos pontuais de algumas crianças e suas famílias.
129
Em relação às crianças, jovens e seus familiares, Marilda introduziu novas regras e passou
a exigir, com mais afinco, que as regras já existentes fossem levadas mais a sério. Um exemplo
disso diz respeito aos horários de entrada no Comosg: Marilda passou a obrigar que as crianças
chegassem na hora certa ou apresentassem uma justificativa formal para o atraso (um bilhete
ou a presença de um responsável).
Certamente havia organização antes de que Marilda assumisse a coordenação; o que
quero salientar é que Marilda introduz um novo modo de pensar a organização. A organização
passa ao primeiro plano, figura como parte do que as crianças e jovens devem aprender. O papel
do Projeto Renascer, em sua concepção, é também ensinar, a partir da prática e das rotinas e
regras institucionais, organização. A noção de organização no sentido que Marilda a articula,
envolve ideias de autodisciplina, pontualidade, responsabilidade individual, autonomia, relação
com o espaço físico e planejamento.
Para além de práticas burocráticas ou meramente administrativas, as práticas de
organização que Marilda propõe são compreendidas como atividades educativas e de
aprendizagem77. Assim, organizar a rotina da instituição faz parte de sua atuação político-
pedagógica, porque este aprendizado é parte do caminho para que as crianças, jovens e seus
familiares possam superar sua condição de “vulnerabilidade social”. Isto é, é preciso garantir,
a partir do trabalho que realizam, que os sujeitos possam organizar suas próprias vidas. Como
com o trabalho que realizaram com a família Souza. Esta família havia morado no bairro por
alguns anos. Contudo, no final de 2011, haviam deixado Florianópolis em busca de uma suposta
herança.
Os Souza, como comentou Marilda, estavam com tudo organizado antes de deixarem a
cidade. Para ela, haviam superado sua condição de miséria, graças ao trabalho dos profissionais
do Comosg, ao acesso a políticas públicas de assistência social e graças aos seus próprios
esforços de organização. Tinham sua casa, simples, mas bem cuidada, as crianças estavam
matriculadas na creche e na escola, faziam parte do Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil, cuidavam das crianças com carinho e atenção. É importante marcar que estes pais,
quando necessário, levavam as crianças junto com eles nas ruas para vender alho. Isso não
desqualifica seus esforços, segundo Marilda. Afinal, as crianças não iam para as ruas trabalhar
sozinhas, argumenta. Na verdade, se acompanhavam os pais era para evitar que ficassem
77 Marilda não está só ao defender que as práticas de organização são atividades educativas. Neste sentido, ver o
trabalho do educador brasileiro José Carlos Libâneo (2004, 2009).
130
sozinhos sem supervisão em casa 78. E se as crianças participam das atividades de trabalho nas
ruas, participam como quem brinca, não sendo obrigadas a fazer nada com a disciplina e rigor
de um trabalho propriamente dito. O que espero marcar com esta observação sobre a família
Souza é que, se Marilda tem na noção de organização um valor e uma prática norteadores de
sua própria prática político-pedagógica, esta noção é contextual. Há várias formas de
organização familiar, por exemplo, e não apenas um modelo fixo. Na perspectiva de Marilda,
ao Estado cabe garantir que os sujeitos tenham acesso a políticas públicas e instituições que
trabalhem em prol da distribuição igualitária de recursos e acesso às oportunidades. E a parte
que cabe aos sujeitos é a organização, responsabilidade, perseverança. O importante é que,
tendo em mente as condições objetivas e amparadas por políticas públicas geridas com o
objetivo de combater as desigualdades históricas, as pessoas encontrem seu modelo de
organização, o cultivem e, a partir daí, assumam responsabilidade por suas vidas.
Ludmila, segundo Marilda, era outro exemplo de como trabalhar valores de organização
e responsabilidade poderia ser produtivo. Na avaliação de Marilda, a jovem estava aprendendo
a se organizar com responsabilidade depois de ter assumido as oficinas de dança no Projeto.
Ludmila, ex-aluna, que na época estava com 17 anos, era uma explosão de energia, sempre
cantando, dançando, falando, se movimentando. Em função desta necessidade de movimento
constante, a avaliação de seu comportamento, por parte de professoras e coordenadoras,
oscilava entre extremamente positiva e bastante problemática. Isso porque, fora a necessidade
de estar sempre se movimentando, que acabava por irritar certas professoras, era comum ouvir
Ludmila questionando as atividades que deveria executar em busca de uma razão que a
convencesse que a atividade era válida. Ela fazia o que lhe era pedido na maior parte do tempo,
mas, como sempre demandava uma explicação, podia contrariar algumas professoras.
Questionadora, muitas vezes entrava em confrontos; quando isso acontecia, sua energia
tornava-se combativa e explosiva. Depois que deixou o projeto foi convidada, por sugestão de
Marilda, Nina e dela própria, a voltar para assumir as oficinas de dança. Marilda conta que
algumas professoras protestaram, argumentando que Ludmila não tinha formação profissional
em pedagogia e que tinha um comportamento errático e explosivo. Mas a coordenação decidiu
dar à jovem uma chance. O interesse de Ludmila em trabalhar no Projeto funcionou como um
78 O posicionamento de Marilda (e, de modo mais geral, do Comosg) em relação a este caso e a outros similares
que envolvem crianças acompanhando os pais em situações de trabalho, principalmente nas ruas (vendedores,
catadores de material reciclado, etc), contrasta com a postura de algumas funcionárias de instituições do estado
que fazem parte da “rede de proteção da criança e do adolescente” que consideram esta, e outros situações,
altamente problemáticas. Para Marilda, acompanhar os pais não é, necessariamente, o mesmo que realizar trabalho
infantil. É preciso, segundo ela, considerar as condições e práticas de cada grupo familiar e observar as crianças
envolvidas antes de intervir no grupo familiar.
131
ponto em comum entre as duas, me identifico com ela, contou Marilda, foi assim que comecei,
e ela também pensa em fazer Pedagogia. Quando conversamos sobre o assunto, Ludmila já
estava comandando as oficinas há algum tempo. Segundo Marilda, ela estava indo bem, ela
acaba conseguindo controlar as crianças bem melhor do que quem estudou anos, contou
Marilda. Além disso, o fato de que era responsável pelas oficinas fez com que aprendesse a ser
pontual e organizada, muito mais do que quando era aluna, avaliava Marilda. Nas elaborações
de Marilda sobre seu trabalho como educadora e sobre o papel do Projeto Renascer e do
Comosg, a mudança no comportamento de Ludmila, a organização da família Souza, sua
trajetória de vida e a de Aristides, funcionavam como exemplos da importância das ações dos
sujeitos para a superação da “vulnerabilidade”. Entende que, enquanto educadora,
coordenadora do Projeto Renascer e membro da diretoria do Comosg, seu trabalho é pressionar
e fiscalizar os órgãos do Estado para que efetivem os direitos básicos das populações mais
vulneráveis, assim como é preciso trabalhar individualmente com as famílias, crianças e jovens
capacitando-os para também tornarem-se agentes da mudança que precisam. É preciso também,
em sua concepção, assim como para Nina, Tati e Aristides, trazer à tona e discutir abertamente
os problemas enfrentados pelos moradores e moradoras do bairro, pois parte de seu objetivo é
desenvolver o pensamento crítico de crianças e jovens e demais moradores e moradoras do
bairro. Na coordenação, organizou com crianças e jovens discussões sobre desigualdade racial,
direitos humanos, meio ambiente.
132
ensino. A ideia era realizar atividades durante todo o semestre que orbitassem em torno do
tema, incentivando crianças e jovens a refletir sobre alimentação, atividades físicas, leitura,
sobre sua relação com a televisão, o espaço que habitam, uso de substâncias psicoativas.
Contudo, em uma das reuniões com todas as funcionárias antes de começar o semestre, Rose,
que trabalhava na cozinha, lembrou que com os eternos atrasos do pagamento dos convênios,
na maior parte do tempo, só havia salsicha para comer (as salsichas eram doações de um
mercado). Na opinião dela, falar de alimentação e hábitos saudáveis e depois dar salsicha para
as crianças comerem seria absurdo. Marilda pensou um pouco e comentou que sim, seria
absurdo, mas necessário. E esta seria uma ótima oportunidade para conversar com crianças e
jovens sobre alimentação saudável e desigualdade, sublinhando que se é preciso refletir com as
crianças sobre alimentação saudável é também preciso refletir sobre as desigualdades que
impedem algumas pessoas de ter acesso a este tipo de alimentação. Além disso, esta seria a
oportunidade para conversar sobre o que é possível fazer, nas condições dadas, para mudar a
alimentação, lembrando a importância das hortas, como a que o Projeto Renascer começava a
cultivar com as crianças.
De certa forma, o movimento de Marilda ilumina traços apontados por Patrice Schuch
(2011) para que possamos compreender os modos de gestão das crianças e adolescentes no
contexto do Brasil pós-democratização. Segundo a autora, dois processos interligados compõe
a arte de governar crianças no contemporâneo: a ênfase na retórica dos direitos e “uma tentativa
de criar ‘sensibilidades modernas’ e novos tipos de pessoa, baseado nos valores do
individualismo, autonomia e responsabilidade pessoal” (SCHUCH, 2011, p. 37, tradução
livre). Isso porque as ações de Marilda na coordenação fomentavam tanto a reflexividade e a
atuação em relação aos direitos das crianças, jovens (e seus familiares) quanto introduziam
práticas de organização de modo intensivo. Práticas estas que tinham como valores centrais
exatamente as noções de autonomia, responsabilidade e iniciativa pessoal.
Se fomentar a reflexividade e trabalhar a organização a partir da rotina da instituição era
necessário, para que isso funcionasse, na perspectiva de Marilda, era preciso envolver não só
funcionárias e crianças, mas pais e responsáveis neste trabalho. Ao assumir a coordenação,
Marilda introduziu um novo conjunto de expectativas em relação tanto às profissionais que
trabalham no Comosg quanto aos familiares das crianças atendidas. Conversando com ela sobre
esta transição e as mudanças que implementou, ela reflete:
É aquela coisa da coitadificação da criança, tô inventando essa palavra, mas é aquela coisa
de dizer: “a coitadinho, acordou tarde porque tem problema em casa”; “chegou tarde
porque a família é assim assado”; “atrasou porque aquilo, tadinho”... então tudo
justificava, tudo podia. E aí a gente começou a construir algumas regras.
133
Construir regras é o modo que Marilda encontra para implementar seu modelo de
organização enquanto prática político-pedagógica e para fomentar aquilo que ela entende como
responsabilidade e evitar o que, no impulso do momento, denominou coitadificação. Ela
lembra de Manuela, uma pequena de 7 anos, que todas as manhãs chegava atrasada. Em função
dela, e das crianças que faziam o mesmo, era preciso prolongar o café da manhã, servido no
primeiro horário, o que acabava por complicar a vida das cozinheiras. Marilda conta que, depois
que a nova regra foi instituída, Manuela passou a chegar no Comosg no horário certo. Algumas
das outras crianças que chegavam atrasadas de vez em quando, também passaram a ser
pontuais. Para Marilda, isto é um sinal de que as regras produziram efeitos positivos, uma mãe
vem um dia junto pra justificar o atraso, mas todo dia já fica com vergonha, aí começa a
acordar um pouco mais cedo e a mandar a criança no horário.
No entanto, vale marcar que, evitar a coitadificação, este movimento que, ao trazer à tona
as condições adversas da vida dos sujeitos, as aciona como justificativa para algumas de suas
ações, não é o mesmo que negar tais condições e os efeitos que elas produzem. Durante a
entrevista que realizei com ela em sua casa, quando elaborava sobre esta questão, Marilda
refletia sobre os efeitos negativos não apenas das condições socioeconômicas precárias em que
viviam muitos daqueles atendidos, como ponderava sobre os efeitos do racismo que
continuamente invisibilisa a presença negra em Santa Catarina e que nega estes efeitos. Como
dito acima, sob a gestão de Marilda, as crianças e jovens foram convidados a refletir, durante
debates, palestras e encontros casuais, sobre práticas de discriminação racial, exclusão social,
os efeitos no cotidiano dos problemas na infraestrutura do bairro (esgoto ao céu aberto, falta de
coleta de lixo, problemas nas escolas públicas locais).
Nas análises e práticas introduzidas por Marilda ecoam argumentos presentes em
movimentos ligados ao que podemos denominar “neoliberalismo religioso” (HENNIGAN;
PURSER, 2017). A crítica à “mentalidade de vítima” (coitadificação), a ênfase na força de
vontade individual, na responsabilidade pessoal, no planejamento e na organização, presentes
de modo mais proeminente tanto no discurso de Aristides quanto de Marilda, dialogam com
vertentes contemporâneas do evangelismo, do qual ambos fazem parte. Entretanto, é possível
também entender seus argumentos os situando em um movimento mais amplo, aquilo que
Nikolas Rose (1998) associa a lógica do neoliberalismo, que se fortalece a partir da década de
1980, e que, de certa forma, abarcaria também os movimentos neopentecostais. Para Rose
(ibdem), assim como para Foucault (2008), o neoliberalismo é mais do que um fenômeno de
filosofia e economia política, mas constitui uma mentalidade de governo.
134
Segundo o autor, muitas das análises políticas e sociológicas focam na política
macroeconômica, na cultura organizacional, nas mudanças nas políticas de bem-estar social, e
de responsabilização dos cidadãos. Contudo, o que interessa a Rose, e aos fins da presente
análise em particular, é a criação do “self empreendedor” como imagem do humano. Imagem
tão potente, segundo ele, porque não se limita à uma obsessão idiossincrática daqueles à direita
do espectro político. Muito pelo contrário, se esta imagem é poderosa, é porque ressoa com
pressuposições básicas sobre o ser humano que são bastante difundidas atualmente tanto à
direita quanto à esquerda do espectro político. Estas pressuposições estão incorporadas na
própria linguagem que usamos para tornar as pessoas “pensáveis” e em nossas ideias sobre o
que pessoas devem ser. Vejamos, “o self (ou sujeito empreendedor) deve ser um ser subjetivo,
que aspira a autonomia, a busca por satisfação pessoal, que interpreta sua realidade e destino
nos termos da responsabilidade individual e que deve encontrar o sentido de sua existência
modelando sua vida através de suas escolhas” (ROSE, 1998, p. 151).
Sem pretender esgotar esta discussão, o que é particularmente relevante para a presente
análise, é o aspecto sublinhado por Rose (ibdem) de que o vocabulário do empreendedorismo
conecta a retórica política e programas regulatórios à capacidade de auto regulação e auto
direcionamento dos próprios sujeitos. Nesta dimensão de governo político, o
empreendedorismo forja uma conexão entre os modos que somos governados pelos outros e os
modos que devemos nos governar a nós mesmos. Neste sentido, empreendedorismo designa
um conjunto de regras de conduta (e valores) para a existência cotidiana: energia, inciativa,
ambição, cálculo e responsabilidade individual. Desta forma, o empreendedorismo designa uma
forma de governo que é intrinsicamente ética: “o bom governo deve estar enraizado sobre as
formas como as pessoas governam a si mesmos” (p.154). Afirmar que as condições estruturais
importam e devem ser modificadas não significa distanciar-se do “self empreendedor”, já que,
segundo Rose, uma das características desse modo de entender o humano é que “o vocabulário
do empreendedorismo permite que se “traduza” uma racionalidade política em tentativas de
governar aspectos da existência social econômica e pessoal que passaram a ser entendidos como
problemáticos” (p.154). Já que o empreendedorismo “liga uma ética bastante sedutora do self,
com uma crítica poderosa às instituições contemporâneas e à realidade política e um design
aparentemente coerente para a radical transformação dos arranjos sociais” (p. 153).
Apesar de certa pluralidade ética, Rose (ibdem) afirma que os diferentes regimes operam
a partir de um único a priori: “a ‘automatização’ e ‘responsabilização’ do self, a infusão de
uma hermenêutica reflexiva que permita autoconhecimento e autocontrole”. O sujeito deve
tomar a responsabilidade de sua vida em suas próprias mãos, trabalhar a si mesmo, como fez a
135
família Souza, ou mesmo como fez Aristides. Este também é o papel da instituição, já que os
sujeitos necessitam de auxílio para operar estas mudanças (lembrando que, tanto a família
Souza quanto Aristides contaram com o auxílio do Comosg e de políticas públicas). É preciso
equipá-los com um conjunto de instrumentos para que possam gerir sua própria vida, a fim de
que possam controlar suas ações, definir seus objetivos e planejar para atingi-los a partir de
suas próprias forças. Muitas das práticas pedagógicas e disciplinares do Projeto Renascer (como
as conversas na coordenação, por exemplo) podem ser entendidas nestes termos, isto é, como
tecnologias de governo (permeadas por valores pautados na lógica neoliberal e tendo como um
dos “modelos” de sujeito – e desejo – o self empreendedor) que operam cotidianamente para
guiar, capacitar, orientar condutas. Nesta concepção, para que os sujeitos escolham é preciso
realizar, junto às crianças, jovens e seus familiares, um trabalho de conscientização,
reflexividade e auto-organização. Ao mesmo tempo em que é preciso, através de lutas e
mobilizações coletivas, garantir que seus direitos básicos sejam respeitados e que a estrutura
que sustenta a desigualdade social seja revertida. As ações que implementam, as práticas que
incentivam são elaboradas e conduzidas com este duplo objetivo: a mudança individual (em
direção ao “ideal” do “self empreendedor”) e a mudança coletiva (em direção à maior equidade
social).
Por fim, desejo sublinhar que as diferenças entre Aristides e Marilda, de um lado, e Tati
e Nina, do outro, podem ser entendidas como diferenças encontradas entre posicionamentos
mais à esquerda ou à direita do espectro político, mas ainda assim encontram-se no campo
político. Como vimos no capítulo anterior, esta lógica contrasta com aquela acionada por outras
profissionais envolvidas no Projeto Renascer, que entendem sua atuação nos termos mais
marcadamente morais do humanitarismo (pensando em suas ações como ações de caridade, por
exemplo). Contudo, isso não significa que as noções caudatárias do campo religioso, por
exemplo, estejam ausentes das práticas da coordenação. Como vimos, Nina, Tati, Aristides e
também Marilda, têm fortes vínculos com o campo religioso. Voluntariado, caridade, boa ação,
educação moral, são todas ideias que também alimentam suas práticas. Marilda e Aristides
começaram a trabalhar em Projeto Sociais como voluntários, Tati, antes mesmo de começar a
trabalhar no Comosg, já fazia trabalho de caridade com seu grupo espírita e Nina se aproximou
dos movimentos sociais graças também ao que aprendeu na doutrina espírita, que a fez reavaliar
sua atuação política. Contudo, todas essas profissionais procuram constantemente marcar que,
apesar de sua proximidade com estas práticas, as diretrizes centrais que orientam seu trabalho
no Projeto Renascer e no Comosg não devem ser elaboradas neste sentido. Além do mais,
afirmar que o Projeto Renascer e o Comosg não são instituições de caridade, que o trabalho que
136
realizam ali é um trabalho educacional e de assistência social voltado para garantir direitos
políticos e sociais da população local, os localiza no campo político, como agentes de mudança
social. Ao afirmarem que o que fazem não é caridade, as coordenadoras do Projeto Renascer
afirmam também um modelo de Estado e, neste movimento, se afirmam como educadoras,
moradoras do bairro e agentes da mudança pela qual lutam.
Certa tarde, na casa de Nina, conversando com ela, suas filhas e Marilda, elas me
explicaram que uma das coisas que diferencia o Projeto Renascer de outros projetos sociais,
ligados a iniciativas religiosas, filantrópicas ou caritativas, é que sua luta é para que o Projeto
Renascer se torne, um dia, desnecessário. Isso porque entendem que, no momento, o Projeto
Renascer preenche uma lacuna de serviços educacionais e de assistência social que acreditam
ser obrigação do Estado. Na perspectiva dessas mulheres, se o Estado cumprir seu papel e
oferecer educação de qualidade e uma rede de assistência social eficaz instituições como o
Projeto Renascer não serão mais necessárias. Por isso é tão importante não limitar sua atuação
ao atendimento direto das crianças, mas participar dos Conselhos Municipais, reivindicar junto
ao poder público políticas públicas que atendam esta parcela da população, lutar ao lado das
escolas públicas locais e da Unidade de Saúde para que suas demandas por recursos sejam
atendidas. Em outras palavras, seu objetivo final, a finalidade do Projeto Renascer e do
Comosg, é, em seu entender, o fim do próprio projeto.
137
Capítulo 3
Brincar direitinho: o sujeito criança brincante
Chego no Comosg no começo da tarde, antes do início das atividades. A tarde está quente
e sento na sombra, ao lado de Valentina, uma pequena de 6 anos, com grandes olhos brilhantes,
de fala doce, quase delicada e conversamos sobre o final de semana. Ela conta feliz que seus
primos passaram o final de semana em sua casa. Um dos primos é um bebê; ela explica que
adora ele, que gosta de ajudar a cuidar dele, que gosta até de trocar fralda, mas só de xixi, coco
é difícil de limpar e é fediiiiido, diz ela meio rindo, meio traquinas. Entretanto, é o primo mais
velho o campeão de seus afetos: eu gosto MUUUITO dele, de brincar com ele, porque ele sabe
brincar direitinho. Intrigada, pergunto o que exatamente é brincar direitinho, mas Valentina
não tem tempo para responder, já que ela tem de sair correndo para retomar seu lugar na fila e
pular corda.
Quando ela chega na fila, é repreendida pelas outras meninas, alguém lhe diz: saiu da fila
perdeu o lugar. Valentina discorda e uma discussão sobre a legitimidade de sair da fila pedindo
para que alguém guarde o lugar emerge. Cria-se então um impasse. Valentina defende o direito
de voltar para seu lugar prévio, sua delicadeza dando lugar a uma atitude combativa, peito
estufado, olhar altivo, voz firme. Enquanto isso, aquelas que estavam atrás dela na fila, e haviam
permanecido ali, dizem que ela deveria ir para o fim da fila.
Frente ao impasse, que a esta altura já estava acalorado, alguém gritou professora, a
Valentina tá furando a fila! Este “professora” foi dito para o ar. Isto é, não foi dito para uma
professora específica, mas era uma espécie de chamado, uma evocação de uma posição de
autoridade que seria capaz de arbitrar e decidir a questão. Esta figura de autoridade se
materializou na figura de Aristides que, ouvindo o chamado, foi até lá ver o que estava
acontecendo. Que confusão é esta?, perguntou ele. Em meio a múltiplas vozes que explicavam
simultaneamente o que havia acontecido, Aristides decidiu: não seria válido guardar lugar,
Valentina deveria se dirigir ao final da fila. Ela sentiu-se injustiçada e arrastando os pés, braba,
bicuda e resmungando, desistiu de brincar e foi sentar-se ali perto, onde permaneceu por um
tempo. Mas não por tanto tempo assim, já que, quando a música que marcava a cadência e os
movimentos do pular corda mudou, ela levantou e foi correndo até a fila, ocupando um lugar
no final dela, à espera de sua vez de pular.
Decido entrar para deixar minha mochila na coordenação e vou pensando sobre o que
Valentina me disse; afinal, o que é brincar direitinho? E, mais importante, em que situações e
para quem? Se afirmo que a segunda pergunta é a mais importante é porque entendo que, como
138
toda avaliação, esta só faz sentido quando levamos em conta quem avalia e a partir de que
situações estas considerações são traçadas e vivenciadas. Valentina certamente acreditava que
sabia brincar direitinho, mas aposto que no momento em que discutia com as outras meninas
sobre as regras da fila, elas avaliariam sua atitude diferentemente.
De certa forma, no Comosg, brincar é um campo de disputas e tensões. Estas disputas
podem dizer respeito à ordem da fila quando se pula corda, ou à eterna questão de se é possível,
ou não, guardar o lugar na fila para alguém e sobre quem tem autoridade para arbitrar estas
questões. Contudo, ao afirmar que brincar é um campo de disputas e tensões, não me refiro
apenas às questões levantadas acima. As divergências e disputas em torno desta atividade
tinham também outra dimensão. Isso porque, por um lado, brincar era considerado, pelas
educadoras e professoras como uma atividade essencial para a formação das crianças, sinônimo
de uma vivência infantil saudável e um direito de toda criança. Por outro lado, certas
brincadeiras eram entendidas como um sinal de problema, como manifestação de uma vivência
problemática da infância, da índole (questionável) de determinadas crianças e, algumas vezes,
também de suas famílias. Ou seja, para aqueles responsáveis pelas crianças no Projeto Renascer
haviam brincadeiras e modos de brincar “certos” e “errados”, brincadeiras consideradas
legítimas, brincadeiras que deviam ser incentivadas, brincadeiras que demandavam intervenção
e supervisão, brincadeiras que eram sinais de problemas e outras ainda que deviam ser
proibidas. Mas as linhas que separavam tais avaliações sobre o brincar não eram nunca
definidas de modo absoluto e muitos impasses surgiam, cotidianamente, para defini-las. Deve-
se permitir ou não que crianças brinquem de lutinha? E dançar funk? E desenhar armas? E
brincar com armas de brinquedo? E brincar com os meninos mais velhos, que não frequentam
o Comosg oficialmente? Deve-se deixar todos os brinquedos disponíveis para as crianças ou
guardá-los? As crianças devem ter horários livres para brincar do que bem entenderem ou é
preciso ocupar todo o seu tempo com oficinas e brincadeiras planejadas previamente? É preciso
sempre supervisioná-las ativamente, interferindo nas brincadeiras? Além disso, por vezes, é o
próprio estatuto de determinada atividade, ação ou relação enquanto brincadeira que parecia
estar em disputa. Muitas vezes, encontrei crianças que haviam sido enviadas para a coordenação
para serem repreendidas por ações que, para elas, eram brincadeiras (e não brigas, ameaças ou
desafios).
Como vimos, estas disputas em torno do significado e lugar do brincar no cotidiano da
instituição não eram apenas internas. Uma das críticas que circulavam no bairro (e entre
algumas professoras) em relação ao Projeto Renascer é que lá as crianças brincavam demais, e
brincavam como brincariam na rua, o que parece agravar o problema. Vimos como Marilda
139
achou necessário abordar esta questão durante a reunião de pais, legitimando a atividade a partir
do argumento que brincar é também uma atividade de aprendizado.
Desta forma, o intuito deste capítulo é explorar estas questões, pensando o brincar. Ao
abordar o brincar no cotidiano do Projeto Renascer não me interessa traçar um inventário das
brincadeiras que observei entre as crianças, mas compreender o brincar como campo de
disputas e modo de subjetivação das crianças. Isso porque, as disputas em torno do brincar
ajudam a trazer à tona o modo como o sujeito criança é concebido, abordado e avaliado e como
participa de seu cotidiano. Decidir se as crianças devem brincar daquilo que desejam ou se
devem participar apenas de brincadeiras elaboradas (e aprovadas) por educadoras, por exemplo,
implica também em avaliar se são capazes ou não de desenvolver atividades consideradas
legítimas sozinhas. Assim, trazer o brincar ao primeiro plano da análise é um modo de explorar
como esta atividade é abordada, avaliada e desenvolvida no Projeto Renascer, mas não apenas
isso. Pensar o brincar é também um modo de explorar as diferentes concepções do sujeito
criança, seus modos de subjetivação, as avaliações que são tecidas sobre estes sujeitos (e seus
familiares) assim como aquilo que funcionários e funcionárias do Projeto Renascer entendem
ser seu trabalho ali. Do mesmo modo que é uma maneira de trazer ao primeiro plano da análise
o modo como as crianças participam e agenciam seu cotidiano no Projeto Renascer, tornando-
se também sujeitos que, em seu brincar, brigar, aprender e refletir, fazem Estado.
79Neste sentido, ver Brougere (1998), Friedmann (2004, 2005), Ignacio (2014), Saura (2014), Nunes (2003),
Kishimoto (2017).
140
etários tivessem tempo livre para desenvolver a atividade de forma, na maioria das vezes,
espontânea80.
No entanto, como vimos, para alguns pais e responsáveis, esses momentos de brincadeiras
espontâneas representavam um problema. Ciente desta questão, Marilda decidiu abordar a
importância do brincar na reunião pedagógica. Quando participei desta reunião, eu já havia
presenciado tanto Marilda, quando Nina e Tati falarem sobre o assunto com familiares das
crianças, moradoras e moradores do bairro e também com professoras, durante as reuniões
pedagógicas. Era sempre importante afirmar o caráter educacional e pedagógico da atividade.
Se para muitos pais e responsáveis frequentar o projeto era importante porque representava uma
oportunidade de acesso à educação, este conceito parecia estar vinculado à ideia de educação
formal e escolar. O Projeto, neste sentido, é concebido como uma extensão da escola e não
como uma quebra. Para que o brincar seja tolerado no contexto escolar, lembra-nos Saura
(2014), ele deve estar declaradamente voltado para fins pedagógicos, produtos e resultados. O
brincar espontâneo, nesta perspectiva, deve ser restrito aos horários de intervalo. A mãe que
conversou comigo no final de uma das festas para a comunidade marcou este ponto: no projeto
da escola seu filho fazia atividades da escola e não brincava o tempo todo.
O tempo do brincar espontâneo, a partir desta perspectiva, parece estar associado à ideia
de “tempo ocioso”. Como nos lembra a antropóloga Rose S. G. Hikiji (2006), o tempo ocioso
80 Soria Chung Saura (2014) entende o “brincar espontâneo” como “o envolvimento de crianças em atividades
livres, escolhidas autonomamente por elas; portanto, atividades não dirigidas por um adulto. Embora o brincar
deva ser promovido e orientando pelo professor/educador, não é decidido por ele” (p.163).
141
é “tempo perigoso”; “cabeça parada, oficina do diabo”, diz o dito popular. Além disso, este
“perigo” tem também uma âncora espacial: o tempo ocioso é relacionado à rua, “ocupar o tempo
é sinônimo de tirar as crianças da rua” (HIKIJI, p.158). Para muitos, parte do “trabalho” dos
projetos sociais é exatamente este, “tirar as crianças da rua”, já que a rua representa “perigo”
(HIKIJI, 2006; BARREIRO, 2008; RODRIGUES, 2011; DE TOMMASI, 2014). Alguns pais
não permitem que seus filhos e filhas brinquem nas ruas do bairro. O pai de Giovanna era um
deles. Ela sempre comentava que não podia nunca passar do portão, nem ela nem seus irmãos
mais velhos. Segundo ela, seu pai queria que ficassem longe de bandidos, traficantes e homens
maus.
Ora, no Comosg, onde a divisão da rua e da instituição não é marcada por barreiras físicas,
onde o espaço é usado no final de semanas por crianças e adultos do bairro para atividades de
lazer, onde crianças e jovens não matriculadas podem entrar, o brincar espontâneo na área
externa dos horários livres pode parecer próximo demais do temido brincar na “rua”. Ou seja,
na avaliação de algumas mães, professoras, etc. brincar livremente neste espaço é brincar como
brincar na rua. O perigo do tempo ocioso é agravado pelo perigo da rua.
Mas, mesmo em meio à crítica, a coordenação garantia tempo livre para as crianças e
jovens brincarem. Estas oficinas apareciam no quadro de horários como blocos de tempo livre,
mas com uma professora responsável. As crianças normalmente ficavam na área externa:
jogavam bola, taco, ping-pong, vôlei, pulavam corda, empinavam pipas, desenhavam, jogavam
cartas, Banco Imobiliário, dançavam funk, brincavam de casinha, de loja, de fazer acrobacias,
brincavam no parquinho e de polícia e ladrão, de bafo, de carrinho. Algumas vezes, crianças de
outros grupos etários (que deveriam estar em outras oficinas) entravam nas brincadeiras, às
vezes crianças do outro turno apareciam e brincavam junto; crianças de fora também vinham.
Contudo, segundo a coordenação, mesmo nestes momentos de fluidez em que a espontaneidade
do brincar era incentivada, era preciso observar as crianças e intervir caso necessário: separando
brigas, arbitrando disputas (como fez Aristides com a polêmica da fila), impondo limites
(espaciais, por exemplo, já que as crianças não são autorizadas a sair da área da instituição),
ajudando as crianças a formularem regras claras para suas brincadeiras a fim de evitar que
alguém saia machucado, auxiliando na escolha das músicas que podem ser coreografadas ou
refletindo sobre os desenhos que produziam. Seja como for, para aquelas que conceberam o
PPP do Projeto Renascer, a presença da educadora como observadora nestes momentos é
essencial, já que observar suas brincadeiras permite que a educadora perceba alguns dos modos
como as crianças veem, sentem e vivenciam seu mundo, assim como as relações que
142
estabelecem entre si. Nesta perspectiva, observar as crianças brincando é entendido como um
modo de aprender sobre elas.
Mas a presença da educadora não deve ser restrita à observação e a intervenções
disciplinares pontuais. Segundo Tati, é preciso ser também brincante. Em um artigo no qual
reflete sobre “o brincar como forma de cuidado” (CABRAL, 2011), Tati afirma que “é preciso
brincar junto”, único caminho para que se possa “entender este momento de criação de
significados para a criança” (p. 5). Este “brincar junto” do qual fala é um brincar durante o qual
a hierarquia “adulto/educadora – criança” deve ser de certa forma borrada e a atividade
compartilhada como co-produção. Em outras palavras, nestes momentos, o lugar sociológico
da adulta-educadora, como figura de autoridade que propõe atividades e direciona seu fluxo,
deve ser posto em suspensão, deixando que a lógica da brincadeira impere. E aqui, mesmo as
brincadeiras dos mais velhos (jogar cartas, desenhar, dançar, jogar bola) estão incluídas.
Contudo, apesar do incentivo da coordenação a este tipo de atitude, era difícil encontrar
professoras ou professores brincando com as crianças desta forma. O comportamento mais
comum por parte das professoras era o de observadora. Observadora que intervinha quando
achava necessário.
No entanto, aqui é preciso diferenciar duas formas de brincar, ainda que de modo
rudimentar: o “faz de conta” e os “jogos”. Às vezes, professoras aceitavam jogar voleibol, ping-
pong ou cartas com as crianças e jovens. Já, em relação às brincadeiras de faz de conta, fora
Tati, não lembro de ter observado outras professoras envolvidas. Se participavam, era no
sentido de questionar as crianças sobre o que faziam, pedindo que elaborassem explicações e
descrevessem suas brincadeiras, sem, no entanto, “entrar” no faz de conta, como fez Luísa em
relação à brincadeira de Mari.
A pequena Mari brincava com massinha e alguns objetos na sala da TV. Ela havia me
chamado para contar a história de sua brincadeira. Em cima da mesa havia um berço de plástico
com um velho boneco de bebê dentro. Ao lado do berço, um ninho de passarinho de massinha
verde e, no meio dele, um ovo vermelho. Do outro lado do berço, uma pequena árvore de Natal,
de plástico. Mari contou que a mãe do bebê havia morrido, assim como seu pai, seus irmãos e
sua avó, agora ele ficou sozinho, me explicou a pequena. Mas estava tudo bem, porque uma
mulher ia cuidar dele, alguém que tinha dinheiro e que ia também amá-lo. Sua maior
preocupação naquele momento era com o ovo do passarinho, que poderia passar frio. Fomos
então em busca de algo para cobrir o ovo na caixa de brinquedos. Quando encontramos um
vestido abandonado por alguma boneca e o enrolamos ao redor do ovo, Mari me explicou que
o bebê ia crescer e cuidar do passarinho, como a mulher cuidava dele. Luísa, uma das
143
professoras que estava por ali, ouviu o comentário de Mari e se aproximou. Ela afagou
carinhosamente os cabelos loiros de Mari e, num tom suave, com um sorriso no rosto, explicou
que isso seria impossível, porque passarinhos nascem e crescem rapidamente, enquanto bebês
demoram muito tempo para crescer e ficar adultos. Quando terminou sua explicação, saiu da
sala. Mari me olhou e disse que isso não ia acontecer, porque esse era um passarinho diferente,
que cresce MUUUUITO devagar, muito mais devagar do que os bebês.
A intervenção de Luísa me ajuda a refletir sobre o modo como, muitas vezes, as
professoras (e a pesquisadora) interagiam com as brincadeiras de faz de conta e também com
determinadas afirmações das crianças. Muitas vezes, frente a brincadeiras de faz de conta,
histórias ou manifestações de opiniões de crianças e jovens, era comum que as professoras
trouxessem à tona e questionassem as incongruências lógicas ou informações do que estava em
questão. Isso funcionava ou como uma forma de informar sobre as limitações da “realidade”
e/ou como uma forma de acentuar o caráter peculiar da imaginação infantil, como algo “fofo” 81.
Como fez Luísa, que carinhosamente esclareceu a temporalidade do desenvolvimento dos
passarinhos e dos bebês. Tudo se passa como se fosse necessário “esclarecer”, “explicar”,
“ensinar” constantemente crianças e jovens, mesmo durante a brincadeira, mesmo antes de
ouvir com atenção o que dizem.
Certa tarde, no início de dezembro, eu brincava com Sarah. Tínhamos em nossas mãos
duas máscaras, uma do Coelhinho da Páscoa e outra do Papai Noel. Sarah me nomeou Papai
Noel, enquanto ela era o Coelhinho da Páscoa. A certa altura, o Coelhinho da Páscoa decidiu
que queria me visitar, em minha casa de Papai Noel, na Praça XV de novembro (praça no centro
de Florianópolis). Imediatamente, do alto de minha sabedoria de adulta, a corrigi; afinal, todo
mundo sabe que ele mora no Polo Norte! Ledo engano! Dias depois, num passeio ao centro da
cidade, qual não foi minha surpresa ao encontrar a casa do Papai e da Mamãe Noel, com direito
a lareira, oficina de brinquedos e ajudantes, no centro da Praça XV!
81E aqui é preciso falar sobre a “fofura” das crianças, entendida enquanto uma das categorias a partir das quais
avaliamos crianças e seus comportamentos. Isso porque, ser ou não considerada uma criança “fofa” muda o modo
como a maior parte das professoras e demais funcionários as tratavam. Há mais meninas do que meninos
considerados fofos e a fofura feminina dura mais tempo (meninos são fofos quando tem 6 anos e são bem
pequenos), ser branca também ajuda a ser fofa. No meu tempo de campo, nenhuma criança negra era tratada como
“fofa”, apesar de serem a maioria. Uma criança fofa recebe mais atenção. Crianças com roupas mais sujas,
rasgadas, com cabelo despenteado, dentes manchados, piolhos, modos mais abruptos, mais corpulentas, não eram
consideradas fofas. A fofura pode ser entendida como uma espécie de poder. As crianças sabiam disso e, como o
Gato de Botas na animação infantil Shrek, usavam sua fofura para conseguir coisas e escapar de punições. Isso
implica em admitir que essa não é só uma avaliação estética (nada é, já que, parafraseando Edmund Leach, toda
estética é uma ética), ser qualificada(o) como fofa(o) tinha também efeito moral. As crianças fofas eram
consideradas mais inocentes, boas, menos inclinadas a mentir. Ninguém desconfia dos fofos e se eram pegos
fazendo algo errado as chances de irem para a coordenação para uma conversa eram bem menores.
144
Como Luísa, mesmo no meio da brincadeira, senti necessidade de “corrigir” Sarah,
explicar o que considerava ser a informação “certa” sobre a casa do Papai Noel. O que me
interessa pensar aqui é: qual o conceito de criança implícito nestas interações? Um sujeito que
não sabe sobre o “mundo”, inocente, confuso. Mas há também um conceito de educação, uma
espécie de obrigação por parte do adulto, de esclarecer, elucidar, explicar, guiar. Muitas das
interações que observei se dão nesses termos, os adultos sentem constantemente a necessidade
(ou obrigação) de explicar o que acreditam ser certo; isso vai desde informações factuais (como
no caso de Luísa e meu), movimentos e habilidades corporais, até comportamentos morais que
devem ser continuamente vigiados e corrigidos. A autoridade que exercem, ao ocupar o lugar
de professoras/adultos na relação, é atualizada e produzida nestes momentos. Parte de ser
adulto, e de exercer a autoridade investida nesta posição, é ter informações, compartilhar
conhecimento, vigiar e corrigir comportamentos morais.
Mas, recuemos um pouco na argumentação para que possamos ter uma visão mais clara
do que quero trazer à tona aqui. Em relação ao tempo e o lugar de brincar no Comosg, quero
explicitar duas posições possíveis. De um lado, o posicionamento que afirma ser necessário que
as crianças e jovens tenham tempo livre para o brincar espontâneo, sem supervisão de adultos,
e de outro há a posição que defende que as brincadeiras devem ser atividades dirigidas, visando
à aquisição de conteúdos pedagógicos. Implícito nestes posicionamentos, há também noções de
“sujeito criança” e, consequentemente de educação, aprendizado e do papel dos adultos e das
crianças nestes processos. Vejamos.
145
3.1.2. O sujeito criança brincante I
Decidir se as crianças podem ou não brincar sem a supervisão ou orientação direta dos
adultos implica em ponderar sobre suas habilidades (corporais, intelectuais e morais) para tanto.
Para que as profissionais envolvidas no cotidiano do Projeto Renascer possam tomar essa
decisão é preciso que tenham uma noção do “sujeito criança”, de suas habilidades tanto
cognitivas, quanto corporais e morais. Também é preciso ter concepções sobre o que as crianças
podem aprender com seus pares, sobre o próprio processo de aprendizagem e sobre o papel
daqueles e daquelas que ocupam o lugar de adultos neste processo. Na rotina do Projeto
Renascer, e do Comosg, foi possível perceber dois posicionamentos em relação ao brincar
opostos. Como vimos, por um lado temos aquelas que defendem que as crianças devem brincar
espontaneamente, sem a supervisão direta de adultos, por outro lado, aquelas que acreditam ser
importante a presença e orientação constante de um adulto. Estes posicionamentos implicam
em duas concepções diversas sobre o sujeito criança. Proponho agora exagerar o contraste entre
estes posicionamentos, para que, ao dar relevo a traços que no cotidiano são mais sutis,
possamos perceber melhor suas diferenças. Em outras palavras, construo estes dois
posicionamentos como espécies de “tipos ideais” (WEBER, 1999), instrumentos de análise, já
que, no fluxo do cotidiano, nenhum deles figura de forma tão esquemática e “pura”. Em outras
palavras, no cotidiano do Projeto Renascer, há diferentes concepções de criança e infância em
disputa. O exercício analítico que proponho, para compreender estas concepções diversas, é o
de trazer à tona seus traços mais marcantes, isolando-os e tornando-os mais evidentes ao
146
compará-los e contrastá-los com as concepções de crianças em outros contextos culturais e
textuais. Vejamos.
Afirmar que é preciso que as crianças brinquem com seus pares espontaneamente, que
este brincar constitui um processo de aprendizado genuíno, tanto físico motor quanto
psicológico, intelectual e social é afirmar que as crianças, enquanto sujeitos, possuem
legitimidade para tanto. Nesta perspectiva, o brincar espontâneo é um momento de aprendizado
e criatividade, além de ser um momento no qual a criança elabora suas experiências. Ao refletir
sobre o brincar no artigo citado acima, Tati afirma que “a criança tem a capacidade de na
brincadeira transformar a realidade e vivenciá-la de outras maneiras” (CABRAL, 2011). Na
análise de Tati, a criança figura como sujeito-agente de seu próprio processo de aprendizagem
e de compreensão do mundo.
A concepção do sujeito-criança, nesta perspectiva, pode ser entendida nos termos
expostos por James e Prout (1990), “as crianças devem ser vistas como ativas na construção e
determinação de sua própria vida social, na dos que as rodeiam, e na sociedade na qual vivem”
(p. 233) 82. Neste sentido, podemos recorrer às concepções sobre crianças de muitas sociedades
indígenas como uma imagem saturada da que temos aqui. Pensemos na concepção de criança
entre os Galibi-Marwono, povo residente dos Territórios Indígenas do Uaçá e do Juminã, no
município do Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa. Segundo a antropóloga Antonella
Tassianri (2015), há, entre os galibi-marwono,
82A formulação de Allison James e Alan Prout (1990) foi elaborado no contexto de delimitação de princípios que
poderiam estar na base daquilo que entendiam como um “novo paradigma para o desenvolvimento de estudos
sobre a infância”. Se aciono o conceito de criança por eles elaborado naquele contexto analítico aqui é por entender
que ele ajuda a formular o conceito de criança em jogo no posicionamento em questão.
147
reconhecer o ambiente, campos alagados, margens do rio, a mata próxima à aldeia, atividades
e saberes constituintes do cotidiano galiwi-marwono. Neste processo de ensino e aprendizagem,
as crianças são consideradas agentes, e validadas como tal, tanto enquanto agentes de seu
próprio aprendizado quanto enquanto sujeitos que podem atuar positivamente no processo de
aprendizado de seus pares; aprendem e ensinam.
Como dito acima, aciono a concepção de criança galiwi-marwono como uma imagem
saturada que me ajuda a compor um modelo. O que quero ressaltar aqui é que sustentar que o
brincar espontâneo é uma atividade válida e necessária enquanto atividade de aprendizagem e
compreensão do mundo é sustentar a potência da criança para tanto. É assumir que a criança
possa ser agente de seus processos e que possa participar do processo de seus pares também de
forma ativa (e produtiva). Além disso, é afirmar que o saber e a possiblidade de regulação moral
dos comportamentos não estão situados apenas na figura do adulto.
Por outro lado, há o posicionamento que acredita que as crianças precisam
constantemente de supervisão e que, para que as atividades sejam válidas enquanto processos
de aprendizagem, é preciso que sejam formuladas por adultos-educadores tendo em mente seus
fins pedagógicos. Nesta perspectiva, as crianças emergem como sujeitos que precisam de
auxílio constante, precisam ser guiados, vigiados e, muitas vezes, controlados.
Podemos ver extremo dessa concepção de crianças e do pensamento infantil no livro
clássico de Willian Golding (2014), “Senhor das Moscas”. No livro, um grupo de meninos entre
6 e 12 anos fica preso em uma ilha deserta, sem a presença de adultos, depois da queda do avião
no qual viajavam. Os meninos do “Senhor das Moscas” são o extremo desta visão de criança
que estou tentando elucidar: egoístas, preguiçosos, alguns astutos e controladores (aqueles que
é preciso controlar), outros estúpidos e passivos (aqueles que é preciso proteger). Em conjunto,
um grupo incontrolável, agressivo demais ou passivo demais; fadados a se destruírem
mutuamente, como o homem hobbesiano antes do contrato social. Apesar da tentativa inicial
de organizarem-se, sem a presença tranquilizadora e ordeira de um adulto, o bando vai
progressivamente cedendo a seus “instintos” até que, por fim, entram em guerra, perdendo-se.
A força “civilizadora”, que poderia salvá-los, são os adultos ausentes; sem eles, a barbaria
impera.
Por radical que seja a concepção de criança do Senhor das Moscas, ela é o extremo de
uma das concepções de criança contemporânea. Seguindo a pista de Tassinari (2009) em sua
leitura do trabalho de Ivan Illich (1971), arrisco afirmar que esta concepção está também ligada
à noção de infância produzida e produtora do sistema escolar (não é coincidência que os
meninos perdidos do Senhor das Moscas são apresentados ao leitor como alunos de uma escola
148
do tipo internato). É a partir do sistema escolar que a posição “criança-aluna”, subordinada
sempre à autoridade da “adulto-professora”, passa a fazer sentido e é constantemente
atualizada. As relações que se estabelecem a partir destes termos, privilegiam um determinado
tipo de aprendizagem (controlado pelo adulto-professor), sempre atrelado ao contexto escolar.
E como bem nos lembra Tassinari (idem): “num contexto escolarizado, esse modelo extrapola
os limites da escola, de forma que a categoria de ‘aluno’ se torna modelar para definir a infância
como um todo” (p.6). O conceito de educação, neste contexto, está sempre ligado ao que as
gerações mais velhas podem ensinar aos mais novos 83. Subtendido nesta concepção está a noção
de que crianças precisam ser “socializadas”, pois são percebidas como “sujeitos incompletos”,
sujeitos que, não tendo assimilado as regras e os códigos de conduta socialmente sancionados,
se deixam levar por seus “instintos”. A regulação de comportamentos “antissociais”,
destrutivos, egoístas ou passivos, inocentes e ingênuos em demasia se dá, no contexto imediato,
pela presença de um adulto (que corrige, regula, ensina, controla, protege, explica) ou, a longo
prazo, pela assimilação dos códigos sociais (via “processo de socialização”, sempre controlado
por adultos).
É importante sublinhar que estas relações não são atualizadas e disputadas apenas por
aqueles que ocupam a posição de adultos. As crianças podem também acionar traços dos
modelos acima desenhados em suas interações. Quando as regras da ordem da fila estavam em
disputa, as meninas evocaram a autoridade de um adulto para arbitrar a questão. Assim como
em algumas ocasiões, esperavam (e demandavam) que eu decidisse as regras da fila,
invalidando os consensos negociados entre elas. Entre as crianças, conhecimento (e aqui incluo
conhecimento corporal), informação, são também poder e produzem hierarquias. O fascínio e
autoridade que Pedro exercia sobre seus colegas não estava somente ligado ao poder físico que
exercia (por estar constantemente enfrentando seus colegas fisicamente), mas estava ligado
também às informações que tinha e que compartilhava com seus colegas em tom professoral e
condescendente. Quando falava sobre macumba, corpo fechado e até os meninos mais velhos
o ouviam com atenção. O mesmo acontecia quando falava sobre a vida de Bob Marley 84.
83 Segundo Tassinari (2009), outras características deste processo de educação “escolarizada” são: “a noção de que
a aprendizagem se dá por passos sucessivos e previsíveis; a idéia de progresso na aquisição de conhecimentos,
como uma seq̈ência de etapas que devem ser seguidas sem variações; a importância atribuída à escrita e à
oralidade para a transmissão de conhecimentos; a abstração dos contextos de prática” (p.6).
84 Se me permito trazer Pedro como um exemplo de relações de subordinação a partir do modelo escolarizado de
Tassari, é porque elas contrastam com outros modos de interação entre as crianças. Como fazia Ayla, por exemplo,
colega de Pedro, que ensinava outras meninas a dançar. Pedro, então com 9 anos, usava seu conhecimento como
um caminho para estabelecer uma autoridade que o distanciava de seus colegas. Já Ayla, que mesmo sendo mais
149
Do mesmo modo, as crianças podem controlar o comportamento moral dos colegas,
repreendendo determinados comportamentos, chamando professoras para que elas o façam ou
calmamente explicando para outra criança como ela deve agir ou resolver algum dilema. Desta
forma, ora reivindicam e demandam que sejam tratados como sujeitos autônomos, capazes
resolver suas questões entre pares, e ora demandam a intervenção e tutela daqueles
reconhecidos como adultos. Ora defendem sua potência frente aos adultos, ora aliam-se a eles
em suas críticas ao comportamento “problemático” de seus pares. Como uma jovem de 14 anos
que conheci durante um evento organizado pela Secretaria de Saúde do Município. O evento
reunia alunos e alunas das escolas municipais de Florianópolis, “multiplicadores” do Programa
Saúde na Escola85. Havia cerca de 200 estudantes reunidos, juntamente com algumas
professoras e palestrantes. Ao relatar sua experiência como “multiplicadora” em sua escola, a
jovem afirmava que era muito difícil trabalhar com adolescentes. E elaborou sobre a questão:
é difícil prender a atenção deles, a gente fala e eles não querem ouvir, não querem saber de
nada ou só querem avacalhar, são preguiçosos mesmo. Acham que sabem tudo, mas não sabem
não. A jovem trazia à tona elementos que atualizam o modelo que percebe adolescentes como
os estudantes perdidos do “Senhor das Moscas”, ao mesmo tempo em que se diferenciava deles.
O importante aqui é sublinhar que, como dito acima, estes dois posicionamentos são
construções analíticas, “tipos ideais” que me auxiliaram a ressaltar traços de avaliações que,
cotidianamente, são acionadas e atualizadas sem a pureza e rigidez do modelo. No fluxo
cotidiano, a mesma profissional pode atualizar traços de um ou outro posicionamento.
Certamente não acredito que crianças são “sujeitos incompletos”. Enquanto pesquisadora da
infância, situo-me ao lado da posição que afirma a agência e capacidade reflexiva das crianças.
Contudo, quando expliquei à Sarah onde morava Papai Noel, sem ao menos dar a pequena o
benefício da dúvida, atualizei traços da posição que deslegitima o conhecimento infantil. Ao
mesmo tempo, agi como que interpelada pela obrigação de “educar”. Ou seja, atualizei traços
de um modelo, que reflexivamente critico, reproduzindo relações de poder e saber que,
nova do que várias meninas, “comandava” as oficinas de dança em função de sua destreza corporal, encarnava um
processo de ensino e construção de autoridade diversos. A autoridade que emanava de sua destreza não criava
distância, mas a aproximava de suas colegas sem se dissolver.
85 O Programa Saúde na Escola foi instituído por Decreto Presidencial em dezembro de 2007 e propõe a articulação
Intersetorial das redes públicas de saúde e educação. Elaborado para atender aos alunos da rede pública de ensino
(Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica e
Educação de Jovens e Adultos), o PSE é uma política pública que procura promover “saúde e educação integral”
através de ações articuladas entre as Unidades de Saúde Municipais e as redes de educação básica. Em cada uma
das escolas envolvidas, estudantes são escolhidos ou se voluntariam para desenvolver “projetos” que explorem a
temática “saúde e educação integral”, são as e os “multiplicadoras (res)”. No encontro que acompanhei as e os
estudantes apresentavam as iniciativas que desenvolviam em suas escolas, jornais, compostagem e hortas,
reciclagem, grupos de teatro, programas de rádio, dança, música, sempre abordando a temática do PSE.
150
enquanto modos de subjetivação, também me constituem, exatamente como acontece com
outras profissionais envolvidas no cotidiano do Projeto Renascer, assim como com as próprias
crianças.
No entanto, ainda não esgotamos a discussão. Há uma outra dimensão das disputas em
torno do brincar, ligada à compreensão da atividade como “privilégio” ou “direito” que também
nos ajuda a esclarecer tanto o lugar que o brincar ocupa no Projeto Renascer, assim como o
estatuto das crianças e de seus familiares enquanto sujeitos.
151
girava em torno de alguns meninos, aqueles que são considerados “problemas”. Algumas
professoras se recusavam a ir para ao passeio se eles fossem também. Segundo elas, o mau
comportamento deles durante o semestre significava que haviam perdido este privilégio.
Durante as semanas que antecederam a ida à praia, elas haviam acionado a permissão para
participar (ou não) da atividade como moeda de troca por “bom comportamento” e obediência.
Os meninos em questão haviam se comportado de maneira problemática, segundo elas, durante
suas oficinas, mesmo depois de alertados que, se não obedecessem, não poderiam ir à praia.
Já Nina e parte da coordenação defendiam outra posição. Era direito desses meninos irem
para a praia, esta era uma atividade do Projeto Renascer, no qual estavam inscritos, não havia
razão para que não fossem. A ida à praia não era, para ela, um privilégio restrito, vinculado à
avaliação do comportamento individual. Além disso, como Nina explicou depois, para alguns
deles, esta era a única oportunidade, durante todo o verão, de irem à praia,
toda criança tem direito de ir pra praia que é perto da sua casa, brincar, se divertir. Quem
sabe se eles pudessem ter esta vivência de criança, sem preocupação, quem sabe não fossem
tão cheio de problema, de raiva. Vou eu agora dizer não vai, não pode? Se aprontam tinha
que conversar antes, brigar com eles. Mas não vou proibir de fazer atividade, de ir pra praia.
No final das contas, os meninos foram para a praia e as professoras que eram críticas a
este posicionamento se recusaram a nos acompanhar. Houve certa tensão devido ao seu
posicionamento, e também um pouco de preocupação quanto ao número de adultos em relação
às crianças pequenas, já que muitas delas não sabiam nadar. Contudo, para a alegria de Nina,
tudo deu certo e os meninos que estavam no meio da disputa se comportaram de modo
exemplar. Eles acabaram fazendo o papel das professoras que não foram: cuidaram dos mais
novos, ajudaram a limpar a praia depois do lanche da tarde, obedeceram às regras e limites
impostos sem contestar (demais). Mas as avaliações sobre o comportamento deles, no dia
seguinte, foram contraditórias.
Para Nina, os meninos e o modo como se comportaram, provaram que ela estava certa:
tratados com respeito agem com respeito. É preciso, segundo Nina, ter paciência com eles,
garantir seus direitos, inclusive o de se distrair, brincar. Dias depois, na reunião com todas e
todos os funcionários do Comosg, ela dizia:
Eles foram um exemplo, esses meninos. Tu vê o Ruan, o caso dele é difícil, mas foi criança,
tava rindo na praia, ajudou com os lanches, recolheu lixo, tava brincando na água com os
152
outros, cuidou dos pequenos. Eles merecem também ser tratados como gente, ter
oportunidade86.
Já para as professoras que criticavam a decisão de levar os meninos à praia, seu “bom
comportamento” foi entendido como uma prova de sua índole questionável. Para essas
profissionais, se os meninos não causaram problemas na praia é porque são dissimulados,
falsos, fingidos. Uma delas comentou comigo que eles agem deste modo com frequência:
aprontam o tempo todo, mas, na frente de Nina (e de outras pessoas da coordenação) são uns
anjinhos, para garantir que manterão seus benefícios. Neste sentido, o “bom comportamento”
deles foi, para elas, uma afronta. Uma das professoras disse dias depois,
São interesseiros, a única maneira de controlar eles seria tirar o direito de ir pra praia, de
brincar, jogar bola, tirar algo que eles gostam. Mas não, eles se comportam bem com ela
[Nina] e ela acha que são assim, que tá tudo bem. A gente é quem sabe quem eles são de
verdade, dissimulados...
Uma das questões que está em disputa aqui é como lidar com as questões disciplinares
que emergem no cotidiano. Cortar o que é entendido como um privilégio é uma das estratégias
propostas. Não duvido que Nina concordasse com esta tática. Contudo, o que ela (e outras
profissionais) entendem como privilégio difere. Brincar, realizar atividades lúdicas e
educacionais (ir para a praia) não são, para elas, privilégios, mas direitos fundamentais das
crianças e jovens, essenciais para seu desenvolvimento e também caminho para a superação (ou
ao menos alívio) das dificuldades que enfrentam. Em outras palavras, o brincar, quem pode
brincar, quando é possível brincar e qual o estatuto da atividade no cotidiano (se é um prêmio,
um direito político, uma necessidade pedagógica, um elemento constituinte da infância) está
sempre em disputa e, como vimos, pode causar tensões e conflitos. Mas há também uma disputa
sobre quem são os meninos “de verdade”, que remete, em partes, às imagens de criança,
infância e educação que esbocei acima. Mas não apenas a elas, pois estão enredadas com
86 Ruan é um dos poucos meninos atendidos pelo Projeto Renascer que todos acreditam já estar envolvido, de
modo mais sistemático, com o movimento do tráfico de drogas. Na mesma reunião, refletindo sobre o seu próprio
trabalho, Nina comentava que nem sempre é possível salvar meninos como ele. Como talvez não fosse possível
salvar a Poliana, uma pequena com um grave problema de saúde, que esperava há meses o tratamento na rede pú
blica. Por isso, dizia ela, era tão importante que eles fossem para a praia: O Ruan pode levar um tiro, pode morrer
logo, a Poliana pode morrer, a gente sabe disso. Podem morrer logo, tenho consciência, mas quero fazer a
diferença no tempo de vida que eles têm. Neste tempo, eles merecem ser tratados como crianças, ter
oportunidades, ir pra praia, brincar. Com isso quero ressaltar que há, para Nina, ainda outra dimensão no seu
trabalho. Sua avaliação sobre a questão da praia se dá também a partir de outros referentes, que ultrapassam o
comportamento imediato das crianças e jovens. Ruan e Poliana, por razões diversas, mas que considera fruto da
desigualdade social, podem morrer logo, e isso está além das possiblidades do Comosg de resolver. O que pode
ser feito, para Nina, é continuar procurando ajudar estas crianças e seus familiares a reverterem a situação e garantir
que tenham alegria e dignidade em seu cotidiano.
153
formulações e valorações que trazem à tona diferentes concepções do sujeito criança e das
econômicas morais em jogo nestas construções, como veremos a seguir.
154
alguns momentos ela e Marilda, também presente, tiveram medo dele e de suas ameaças.
Entretanto, para ambas, as ameaças de Ruan, o comportamento agressivo dele durante a briga
não é mais ou menos “verdadeiro” que seu comportamento responsável e prestativo na praia.
A grande diferença entre os dois posicionamentos que procuro esboçar aqui é que,
enquanto um deles permite que o sujeito seja múltiplo e contraditório sem que uma ação anule
a outra, o outro posicionamento encontra uma síntese, o sujeito é isto ou aquilo; uma das
avaliações morais sobre o sujeito engloba e anula todas as outras. Proponho que pensar esta
diferença a partir da perspectiva de Fassin (2012a, 2013) e a economia moral do humanitarismo.
Como vimos, o humanitarismo traz ao primeiro plano a figura da criança enquanto vítima, um
sujeito, por definição vulnerável, atualizando e expandindo uma construção moral da infância
universal.
Como dito anteriormente, nesta perspectiva, as crianças “em situação de
vulnerabilidade”, como as atendidas pelo Projeto Renascer, são duplamente vulneráveis, tanto
porque encontram-se em situação de vulnerabilidade socioeconômica, quanto por ser esta a
“natureza” do seu ser, tendo em mente a visão universal de criança: são vulneráveis porque são
inocentes (uma qualidade moral do sujeito). Isso significa que é preciso que o sujeito criança
corresponda ao ideal: inocente e incapaz, dócil e facilmente tutelável. A “quebra” com este
comportamento idealizado inverte o polo moral; a vítima pode rapidamente dar lugar à ameaça,
ao perigo, e estas são as duas únicas posições possíveis. Neste sentido, qualquer comportamento
da criança (real ou imaginado) que possa ser lido como “mau comportamento” anulará sua
inocência potencial e a transformará em uma ameaça. Para as professoras que se recusaram a ir
para a praia, os meninos, cujos comportamentos estavam em questão, cruzaram esta linha e, ao
cruzarem a linha, devem perder os “privilégios” reservados apenas àqueles que correspondem
ao ideal. Em outras palavras, a vulnerabilidade (das crianças), na perspectiva do humanitarismo,
é definida pela construção moral do sujeito criança, que dialoga com a imagem “universal” da
criança, expandindo-a exatamente por deslocá-la para o campo moral. A partir do
humanitarismo, ser “inocente” e “dócil” tornam-se imperativos morais para que o sujeito possa
ser classificado como “criança em situação de vulnerabilidade”.
Uma das professoras que não foi a praia me explicou que ela compreendia que muitos
desses meninos enfrentam sérios problemas em seu contexto familiar e comunitário. Contudo,
em sua opinião, estes fatores não poderiam ser acionados como desculpas para o
comportamento deles. Segundo esta profissional, eles deveriam, como outros e outras em
situações similares: apreciar as oportunidades que nós damos, e se comportar bem. Mas eles
são ruim mesmo, gente ruim, mal agradecidos e mimados. Em sua fala, ela tocou em um dos
155
pontos centrais apontados por Fassin (2012a) sobre as relações estabelecidas nos termos do
humanitarismo entre aqueles que “ajudam” e aqueles que recebem “ajuda”, que podem nos
ajudar a compreender a frustração desta profissional e a avaliação que faz dos meninos.
Para Fassin (idem), o humanitarismo constrói relações desiguais entre aqueles que ajudam
e os que recebem ajuda, independentemente das boas intensões dos primeiros. Como vimos no
capítulo 1, isso acontece porque há um paradoxo constituinte na razão humanitária, enquanto
política da compaixão 87. Se por um lado a política da compaixão é uma política da
solidariedade, por outro lado é uma política da desigualdade; afinal, o foco dos sentimentos
morais são principalmente os mais pobres, os mais desafortunados e vulneráveis. Cria-se assim
uma tensão, constitutiva do governo humanitário, entre desigualdade e solidariedade, entre a
relação de dominação e a relação de assistência. Isso pode nos ajudar a compreender a vergonha
que por vezes sente aquele que recebe auxílio. Assim como o ressentimento que sente em
relação àqueles que pensam ser seus benfeitores. Do mesmo modo que nos ajuda a compreender
o desejo de reconhecimento por parte daqueles e daquelas que prestam ajuda, reconhecimento
que, muitas vezes, deve assumir a forma de demonstrações de gratidão. Lembrando que, para
Fassin (idem), esta não é uma questão psicológica ou ética apenas, mas sociológica. Isto é, são
as condições da relação social entre estes sujeitos que estão em jogo e que fazem da compaixão
um sentimento moral cuja única reciprocidade possível se encontra na obrigação daquele que
recebe “ajuda” de demonstrar sua gratidão humildemente, de “corrigir seus erros”, de contar
sua história e seus infortúnios, de seguir as normas estabelecidas por seu benfeitor. Em outras
palavras, é importante que aqueles que recebem auxílio, nestas condições, demonstrem
humildade, ao invés de expressarem revolta, insatisfação, opiniões contrárias ao que é esperado,
demanda por direitos, etc. Ou, como no caso dos meninos em questão, que se comportem “bem”
e não de modo considerado problemático, sem respeitar as regras disciplinares estabelecidas
pelas professoras.
É importante lembrar que as profissionais que sustentavam que os meninos não deviam
ir à praia são as mesmas que descreviam seu trabalho no Projeto Renascer nos termos da
caridade. Para elas, trabalhar com crianças em situação de vulnerabilidade, em um projeto
social, em áreas como o Saco Grande, é realizar um trabalho que, apesar de remunerado pelo
Estado, se situa no campo da “boa ação”. Em outras palavras, a percepção que o bairro é uma
87 Lembrando que, para Fassin (2012a), a compaixão representa a mais completa representação da combinação
paradoxal de coração e razão: a empatia sentida pelo infortúnio do outro gera a indignação moral que pode
impulsionar a ação para que a situação mude.
156
área perigosa da cidade, a situação de pobreza das famílias atendidas, são fatores que
contribuem para a construção dessa imagem de seu trabalho. Entendem que estão ali para
“ajudar” as crianças em situação precária. E, como nos lembra Fassin (2012a), se as relações
se dão nos termos do humanitarismo, quando aqueles que recebem ajuda não demonstram o
comportamento esperado (a “contra dádiva”), é possível que seus benfeitores passem a sentir-
se frustrados, não valorizados por seu trabalho e esforço. Isso nos ajuda a compreender por que
tantas das professoras que sustentam estes posicionamentos demonstram com frequência
enorme frustração por entenderem que seus esforços não são reconhecidos pelas crianças.
Temos então que, se as relações com as crianças são pautadas pelo humanitarismo, há
apenas duas posições possíveis para os sujeitos crianças: inocente e dócil (a vítima) ou, caso as
crianças comportam-se de modo entendido como problemático, perde-se o estatuto de vítima
(e, em certa medida de criança 88) e o sujeito torna-se um problema. Além disso, nesta
perspectiva, aqueles que trabalham com as crianças encontram a contra dádiva da “ajuda” que
entendem dar às crianças, na gratidão expressa por elas, em sua docilidade e na mudança dos
comportamentos entendidos como problemáticos. Por esta razão é tão difícil para estas
profissionais lidar com os momentos de quebra desse ideal. Elas entendem que seu trabalho e
seus esforços não foram apreciados, que não receberam o reconhecimento que merecem.
Lembro das considerações de Aristides neste sentido. Ele contou que foi preciso aprender a não
levar pro lado pessoal quando crianças não se comportavam ou mesmo o desafiavam
abertamente durante as aulas que ele preparava com tanto cuidado. Segundo ele, em seu
processo de formação como professor, foi preciso aprender e lembrar constantemente que
muitas vezes o comportamento das crianças está ligado a fatores externos ao cotidiano do
Projeto Renascer e que uma criança pode ser uma peste uma hora e um anjo no dia seguinte.
Neste sentido, Aristides se alia à perspectiva de Nina e da coordenação do Projeto: a
avaliação do comportamento dos meninos (e de quem são eles “de verdade”) não deve ser
limitada por uma leitura exclusivamente individual, baseada numa polaridade moral. Ou seja,
estes profissionais, na maior parte do tempo, não operam a partir da razão humanitária. Isso
significa que a vulnerabilidade aqui não é entendida como uma condição individual da criança,
88 Ser reconhecido enquanto “criança” pode, muitas vezes, ser uma qualificação moral do sujeito, atestando a
inocência e vulnerabilidade do mesmo. Era comum observar disputas em torno dessa denominação em se tratando
das crianças que apresentavam um comportamento mais desafiador. Lembro de uma reunião interna pedagógica
em que uma das professoras dizia sobre um menino de 10 anos, esse já não é mais criança, de inocente não tem
nada, já se vê a maldade no olho, o ECA não é pra gente como ele. O posicionamento da professora pode parecer
radical, mas é apenas uma face mais explícita de processos menores e cotidianos mais amplos, como descrever
certas crianças como peste, mulherzinha, monstro, bem grandinho. Interessa aqui marcar que ser ou não crianças,
a partir da perspectiva da economia moral do humanitarismo, não é apenas uma condição etária, mas também
moral.
157
pautada pela inocência. O comportamento problemático dos meninos não a anula, já que esta é
entendida como uma condição estrutural, sócio-histórica. Nesta perspectiva, abre-se espaço
para que suas ações sejam compreendidas como parte de um contexto mais amplo, no qual as
possibilidades para os sujeitos são múltiplas e mesmo contraditórias, sem que uma anule ou
englobe a outra. Além disso, seu comportamento individual não lhes retira a condição de
crianças que têm o direito político (e a necessidade educacional, já que brincar é essencial para
o “desenvolvimento global da criança”) de brincar e de atividades de lazer. Se aqui temos um
modelo de criança, este é um modelo que abarca também a possiblidade de que crianças
apresentem comportamentos problemáticos e confrontadores, que devem ser corrigidos, mas
que não retiram dos sujeitos o estatuto de crianças. No caso em questão, foi preciso conversar
com os meninos e com seus familiares em função das faltas apontadas pelas professoras e as
tarefas que executaram na praia (entregando lanches, recolhendo o lixo e ajudando as
professoras a cuidar dos pequenos) foram parte das consequências por estas faltas. O acordo
estabelecido com a coordenação e com Nina, depois de uma conversa, foi que poderiam ir à
praia contanto que ajudassem lá. Para estas profissionais, se é necessário intervir e repreender
quando se comportam de modo problemático, é preciso fazê-lo sem que seus direitos sejam
retirados, inclusive o direito ao lazer e ao brincar. “Privilégio”, naquela tarde, foi ir à praia sem
precisar ajudar as professoras em suas tarefas.
Desta forma, sustento que as profissionais que, juntamente com Nina, defendiam o direito
das crianças de irem à praia, operam, na maior parte do tempo, a partir de uma lógica diversa
do humanitarismo. Isso não significa que sentimentos morais estejam ausentes de suas práticas
ou que não demonstrem compaixão e empatia pelas crianças e seus familiares. Mas, para usar
os termos de Fassin (2012a, 2013), estes sentimentos morais não assumem o lugar do
reconhecimento de direitos, ou de justiça social, nas suas motivações para agir. Ou seja, os
sentimentos morais não se tornaram a força central de sua atuação, que entendem como política.
Esta é uma das razões que não demonstram a mesma frustração quando alguma das crianças
não corresponde às suas expectativas, quando não demonstram gratidão ou quando as desafiam.
Tudo se passa como se a contra dádiva que esperassem por seu trabalho fosse uma mudança
social mais ampla e não apenas uma mudança pontual no comportamento de crianças
específicas. Se as crianças são entendidas como parte de um contexto mais amplo, seus
comportamentos também o são e não se limitam às suas interações particulares em um momento
específico. É esta mesma lógica que lhes permite acrescentar o também ao comportamento dos
meninos e meninas. Além disso, quando demonstram frustração em relação ao seu trabalho,
esta frustração raramente está vinculada ao comportamento específico de alguma família ou
158
criança, mas ligada à falta de estrutura das instituições públicas (como o Conselho Tutelar, o
Posto de Saúde, as escolas locais) para atender as necessidades básicas dessa parcela da
população do bairro de modo geral.
Entretanto, as questões levantadas acima não são as únicas problemáticas que emergem
em torno das atividades entendidas como brincadeiras. Praticamente todos os dias havia alguém
encrencada ou encrencado por causa de alguma brincadeira. No cotidiano do Projeto, algumas
brincadeiras são alvo de atenção especial, outras proibidas, outras são alvo de controvérsias
(Pode ou não pode? Quando pode? Quando não pode? Isto é uma brincadeira, ou não?). Isso
significa que, em relação ao brincar espontâneo, por exemplo, nem todas as brincadeiras
escolhidas pelas crianças eram consideradas válidas por todas e todos os responsáveis. A
brincadeira de lutinha, por exemplo, tende a representar um grande problema; dançar funk
também pode ser considerado inapropriado por algumas educadoras. Mas, mesmo em relação
às brincadeiras consideradas apropriadas por todas e todos, como desenhar e colorir, podem
surgir disputas. Além disso, algumas das práticas entre as crianças, que para elas eram parte do
complexo “brincar-jogar”, não eram conceituadas desta forma por professoras. Vejamos, então,
estas sutilezas do brincar e suas disputas com mais cuidado.
159
Estamos no horário “livre” dos grupos etários G2 e G3, na área externa da instituição,
próxima ao parquinho, um grupo de meninas brinca. Estão (estamos) treinando alguns
movimentos de funk. Tainá e Pietra insistem em me ensinar a fazer o quadradinho, um
movimento quebrado só de quadril que me desafiava desde o início do trabalho de campo,
meses antes. Ali perto no chão de areia, Yuri e Oliver estavam “rolando”, ou melhor, “lutando”.
Frustrada e cansada com minha inaptidão para executar o movimento, de canto do olho eu
observava os meninos há algum tempo. Yuri é menor que Oliver, mas muito mais ágil e, ao que
parece, mais forte. Oliver é maior, movimenta-se com destreza. Minutos antes, com os braços
esticados à frente do corpo ele procurava manter Yuri distante, evitando que Yuri o abraçasse
e o derrubasse. Conheço Yuri e por isso sabia que, se ele derrubasse Oliver no chão, iria
conseguir imobilizá-lo mais cedo ou mais tarde. Penso que era isso que Oliver tentava evitar
com suas esquivas e seus longos braços. Mas foi em vão. Os dois foram ao chão e, no momento
em que dei mais atenção à sua coreografia, Oliver já estava praticamente imobilizado. Yuri
empurrava sua cabeça no chão, mantendo um dos braços de Oliver paralizado, enquanto o outro
estava espremido embaixo de seu corpo. A única coisa que restou a Oliver foi se render, em
meio a vários e dramáticos gritos de aiaiaiaiaiaiai. Uma das professoras que estava também na
área externa ouviu os gemidos de Oliver e viu Yuri o imobilizando. Assim que viu a cena se
dirigiu aos meninos, mandando-os diretamente para a coordenação, dizendo: vocês sabem que
não podem brincar de lutinha, já cansei, deixa a Tati resolver isso, os dois pra coordenação!
Yuri e Oliver alegaram com firmeza que não mereciam ter sido enviados à coordenação
na tarde que descrevi acima, já que, segundo eles, eles estavam apenas brincando de lutinha.
“Mantra” que repetiam sem parar, indignados com a repreensão que entendiam ser uma
injustiça, mas a gente só tava brincando! Mas a gente só tava brincando! Mas a gente só tava
brincando! No entanto, para a professora que enviou os meninos para a coordenação, o
empurra, agarra, puxa e aperta que haviam realizado lá fora, ou seja, a lutinha, era sim um
problema. Isso porque, para ela, assim como para outras professoras e professores, brincar de
lutinha não é uma atividade válida, não é nem mesmo uma atividade que pode ser legitimada
com o estatuto de brincadeira. Por isso é preciso proibi-la e punir as crianças que insistem em
brincar assim. Já para outras profissionais, as lutinhas são uma atividade válida, mesmo que
seja necessário avançar com certo cuidado e conversar com as crianças sobre o assunto,
ajudando-as a brincar sem se machucar.
160
Há dois pontos que espero explorar aqui. Em primeiro lugar, o que está em jogo quando
algumas educadoras e educadores deslegitimam estas interações enquanto brincadeiras? Ou, se
as entendem como parte do brincar, quando acreditam que são problemáticas? Em segundo
lugar, o que permite que as crianças entendam (ou experienciem) suas interações como
brincadeiras? O que permite que Yuri e Oliver possam avaliar a interação que descrevi acima
como uma brincadeira?
Antes que possamos entrar na especificidade das questões propostas acima, gostaria de
apresentar, brevemente, um lugar a partir do qual podemos abordar, analiticamente, o brincar.
Em um artigo intitulado “A Theory of Play and Fantasy”, Gregory Bateson (1987 [1972])
afirma que brincar-jogar (play) tem lugar entre organismos que podem engajar-se em atividades
que envolvem metacomunicação, ou seja, que têm a habilidade de diferenciar mensagem de
tipos lógicos distintos. Tais mensagens atuam como “frames”, ou contextos, provendo
informações sobre como outra mensagem deve ser interpretada. “This is play” é um exemplo
de mensagem metacomunicativa: aqui, o sujeito do discurso é a relação entre os envolvidos.
Em suas palavras: “ ‘this is play’ looks something like this ‘these actions in which we now
engage do not denote what these actions for which they stand would denote’ ” (BATESON,
1987, p. 180). É fácil observar este mecanismo em ação quando observamos crianças brincando
de casinha, cozinhando, embalando bonecas, brincando de monstros devoradores de pessoas.
Da mesma forma, poderíamos dizer que Yuri e Oliver estavam engajados em sequências de
interação nas quais as unidades de ação eram similares, mas não as mesmas, de um combate,
brincavam de lutar. Compartilhavam uma mensagem metacomunicativa, “this is play”, criando
o contexto do brincar. Contudo, brincavam de brigar/lutar e, para muitas educadoras e
educadores, é no brigar/lutar que reside o problema. Parte dos questionamentos que apresentei
acima tocam neste ponto: quais atividades e temáticas do brincar são reconhecidas como
problemáticas e quais são vistas como “normais”. Para abordar estas questões, exploro de modo
mais demorado algumas das brincadeiras mais comuns no cotidiano das crianças no Projeto
Renascer: o desenhar /colorir e o dançar funk. Poderia ter escolhido o pular corda, jogar bola
(vôlei, futebol, ping pong), brincar de polícia e ladrão, casinha, pega-pega, todas atividades
também bastante comuns. Mas abordo o desenhar e o dançar funk por serem atividades
utilizadas muitas vezes durante as oficinas e propostas por professoras. Era comum que a
oficina de Trabalhos Manuais ou de Reforço Escolar incluíssem um tempo para o
desenhar/colorir, assim como o dançar funk era a prática da oficina de Dança (que resultou em
apresentações para os familiares da crianças e moradoras e moradores do bairro nas festas
promovidas pelo Projeto Renascer e pelo Comosg).
161
Já o segundo grupo de questionamentos será abordado a partir da discussão sobre as
lutinhas, barracos e o lugar da jocosidade. Estes questionamentos tocam em outra dimensão do
brincar apontada por Bateson (ibdem), aquela que diz respeito as atividades que são construídas
não sobre a premissa “this is play” mas sobre a questão “is this play? ”. A ambiguidade da
pergunta em aberto nos permitirá refletir sobre aquelas relações que são entendidas e
experienciadas por alguns, em determinados momentos, como brincadeiras, mas que podem ser
abordadas e se desenrolar também como brigas ou enfrentamentos. Vejamos.
Certa tarde, como chovia muito, as crianças passaram seu tempo em atividades
organizadas no espaço interno. Uma das atividades era um concurso de desenhos. Depois de
recolhidos os desenhos, Tati, Marilda e Enilza se reuniram na coordenação para decidir quais
seriam os desenhos premiados. Como eu estava por ali, fui também convidada a votar nos
melhores desenhos de cada grupo, G1, G2 e G3. Entre paisagens, casas, carros, pessoas,
famílias, fogos de artifício, heróis, bonecas, princesas, corações e animais, o desenho de Pedro,
do G2, foi o que mais chamou minha atenção nesta categoria. Era um desenho elaborado, cheio
de detalhes e colorido. A impressão que tive foi que o desenho fora feito com cuidado e atenção.
Era um menino, segurando em uma das mãos uma faca, uma espécie de “faca do Rambo” e na
outra uma arma. Votei nele, o que acabou por gerar um questionamento: poderíamos ou não
votar em desenhos que retratassem armas?
O impasse surgiu quando Enilza, ao ouvir meu voto, falou que o desenho de Pedro não
era válido, exatamente por representar uma arma. Como um modo de justificar meu voto,
argumentei que o desenho de Pedro me parecia, entre todos os desenhos naquela categoria,
como o mais trabalhado; estava claro que Pedro havia se dedicado com mais afinco na
elaboração de seu desenho. Tati comentou que, em nenhum momento, quando explicavam o
concurso para as crianças, elas haviam dito que eles não poderiam desenhar armas. A proposta
feita para elas foi que desenhassem o que quisessem. Desta forma, seria injusto invalidar o
desenho de Pedro por causa da arma. Marilda concordou com ela, acrescentando que algumas
crianças desenham armas com frequência, pois desenham aquilo que faz parte da realidade
delas. E que a melhor atitude não seria a proibição deste tipo de desenhos, mas dialogar com as
crianças sobre o assunto.
162
Enilza continuou marcando sua posição de que é preciso proibir desenhos deste tipo e que
a presença de uma arma em um desenho deve invalidá-lo, desclassificá-lo da disputa. Para Tati,
desenhar uma arma deve ser entendido a partir da perspectiva da criança, é preciso procurar
entender porque uma criança a desenha e, a partir daí, estimular uma conversa sobre armas e
violência, sobre o perigo das armas (de fogo, já que a faca, neste contexto, não foi considerada
uma arma). Ao final, Tati e Marilda votaram em outro desenho, o mesmo que Enilza, uma cena
de conto de fadas retratando uma princesa, um castelo e um dragão.
Passamos então para os desenhos do G3, ou seja, o grupo das crianças mais velhas. O
vencedor foi um autorretrato, elaborado com destreza por um dos meninos mais velhos. Eu,
Enilza e Marilda votamos nele prontamente. Contudo, o desenho de Maria Ísis, de 14 anos,
concorrendo nesta categoria, era também muito bom: uma cobra, chamas de um vermelho vivo
e uma arma. No momento de dar seu voto, Tati ponderou, o desenho da Maria Ísis também está
bom, pena que tem esta arma. Ou seja, para ela, é possível validar o desenho com a arma, como
fez com o desenho de Pedro minutos antes, e abordá-lo enquanto “artefato” que permite o
diálogo com as crianças, mas não é possível votar nele.
De certa forma, tanto para Enilza quanto para Tati, desenhar uma arma é um problema.
O que muda é o modo a partir do qual abordá-lo. Enilza acredita que é preciso proibir tais
desenhos; Tati acredita que é preciso utilizá-los para abordar a temática da “violência” com as
crianças, para provocar uma reflexão.
Neste sentido, é necessário ter em mente o contexto específico a partir do qual tanto Tati
quanto Enilza constroem seus posicionamentos. Ambas moram no bairro. Tati já morou na Vila
Cachoeira e saiu dali por causa de um tiroteio na casa ao lado da sua, quando uma jovem de
pouco mais de 18 anos foi morta. O irmão de Pedro, menino que fez o desenho de arma no qual
votei, foi morto a tiros meses antes do início do trabalho de campo, numa disputa do tráfico de
drogas. Entre os jovens que já frequentaram o Projeto Renascer, há alguns que foram mortos
ou baleados em confrontos armados.
Tanto Tati quanto Marilda refletiam com frequência sobre os dilemas que esta temática
representa para elas enquanto pedagogas. Tati falava sobre conversas com professores durante
a Pós-graduação, que insistiam em afirmar que não era preciso se preocupar com as brincadeiras
que envolvem a temática das armas. Segundo seus professores, é “normal” brincar de polícia e
ladrão, de atirar, etc. Isso não deveria ser uma preocupação dela enquanto educadora.
163
vezes achava que ele não me entendia muito bem. É que as vezes as pessoas acham que a
gente só vê assim, aquele problema, e que quer rotular as crianças. Eu dizia pra ele, “eu
não tô rotulando, é tu que não tá entendendo. Porque é criança de 6, 7 anos, tão brincando
e tão falando que tipo de arma é, pistola e isso e aquilo, sabem nome, sabem tudo. É diferente
do que é com criança que nunca vê nada disso na rua, é diferente da criança que só vê isso
em vídeo game e na TV”.
164
problemas que armas podem representar (tanto para as crianças e seus familiares quanto para a
vida no bairro de modo geral). Em algumas ocasiões, a brincadeira impulsiona uma reflexão,
entre as educadoras, sobre a criança em questão (Será que ele ou ela está apresentando um
comportamento agressivo? Será que houve alguma mudança no contexto familiar da criança?).
Seja como for, fato é que as brincadeiras que envolvem as armas e tiros não passam
desapercebidas. Elas tornam as crianças envolvidas, em sua maioria meninos, visíveis porque
são ligadas aquilo que é qualificado como “violência”.
Poderíamos afirmar então que, em se tratando de brincadeiras, aquelas que evocam ou
acionam agressividade e são parte do que as profissionais do Comosg qualificam como
“violência”, senão provocam reações dos educadores e educadoras ao menos chamam sua
atenção, são visíveis. No entanto, como sabemos, nada é tão simples em se tratando de acionar
a noção de “violência”. Como demonstra o trabalho de Rifiotis (1997, 1999, 2006, 2008a,
2008b), a noção de “violência” está longe de ser um objeto singular, que representa um
fenômeno. A tese de Rifiotis (ibdem), a qual me alio, é que “violência” é uma categoria
descritivo-qualificadora, que, quando acionada, nos revela mais sobre a dimensão moral de sua
construção do que sobre aquilo que espera descrever ou qualificar. Para o autor, “violência” é
um significante vazio, exatamente por abarcar inúmeros fenômenos, bastante diversos entre si.
Nas palavras de Rifiotis (1999, p. 28) “a aparente unidade deste termo resulta de uma
generalização implícita de diversos fenômenos que ela designa de um modo homogeneizador e
negativo”. Nesta perspectiva, o questionamento proposto é “a partir de qual sensibilidade
historicamente construída percebemos distintos fenômeno sob aquela forma singular, negativa
e homogeneizadora” (RIFIOTIS, 2008b, p.226). Entre outras coisas, isso significa que aquilo
que percebemos, o que salta aos nossos olhos, e que qualificamos como “violência” é
construído por modos de subjetivação que, por definição, nos ultrapassam. Um modo de
refletirmos sobre esta faceta da noção de “violência” é pensarmos sobre alguns dos elementos
que surgem durante as brincadeiras de casinha entre as meninas, em contraste com os desenhos
e brincadeiras que envolvem armas.
Em suas brincadeiras, as meninas evocam a autoridade do Conselho Tutelar para resolver
situações que emergiam em seu faz de conta com certa frequência. Como quando algumas
pequenas brincavam de casinha comigo. Enquanto eu, que fui escolhida para ser a vó chata,
ficava em casa cuidando das crianças, suas mães, que eram amigas e vizinhas, penduravam
roupas no varal e conversavam. Elas cogitavam chamar o Conselho pois uma conhecida delas
e seus filhos apanhavam com frequência do marido bêbado. As duas meninas comentavam que
já haviam aconselhado a amiga a procurar o Conselho, mas ela se recusava, então elas decidiram
165
fazer isso por ela. Neste momento, uma terceira menina entrou na brincadeira, como a moça do
Conselho, que veio saber o que estava acontecendo. Antes que as pequenas pudessem continuar,
fomos interrompidas pela chegada do lanche da tarde.
Em outra ocasião em que eu brincava com um pequeno grupo de meninas, uma
representante do Conselho Tutelar aparecia no meio do brincar para repreender uma mãe que
batia muito na filha. Houve também uma filha que, durante a brincadeira, diz para sua mãe, que
ameaça bater nela que, se isso acontecesse, ela iria chamar o Conselho. Já em outra ocasião, a
moça do Conselho levava as crianças embora para morar com os avós porque passavam fome
na casa dos pais. O ponto é que, durante as brincadeiras de casinha, não era incomum que o
Conselho Tutelar fosse acionado para resolver alguma situação problemática. Mas o que
chamou minha atenção, depois de um tempo, foi que apesar das professoras e coordenadoras
estarem sempre atentas aos desenhos, confecção de armas de brinquedo, brincadeiras de
lutinhas e de tiros, era raro que alguma delas se aproximasse das meninas durante as
brincadeiras de casinha quando o Conselho Tutelar aparecia para resolver questões de abuso,
negligência ou violência doméstica. O que desejo sublinhar é que, ao passo que nas brincadeiras
de armas e afins a violência era bastante visível para as educadoras do Projeto Renascer, nas
brincadeiras que envolviam o Conselho Tutelar não era.
Há dois pontos que gostaria de assinalar brevemente sobre esta questão. Em primeiro
lugar, chama atenção o espaço ocupado pelo Conselho Tutelar no imaginar das crianças. As
pequenas meninas com as quais brinquei sabiam de sua existência e sabiam quando recorrer a
ele. Sabemos que o Conselho Tutelar foi criado pela lei 8.069, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, em 1990. Segundo o Art. 131 do ECA, o Conselho é encarregado “pela sociedade
de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente” (BRASIL, 1990). As
pequenas entendiam suas atribuições; sempre que as vi acionando o Conselho Tutelar o faziam
por razões previstas no ECA. Entretanto, o que mais chamou minha atenção foi a invisibilidade
dessa prática no cotidiano, principalmente em contraste com a visibilidade das brincadeiras que
envolviam armas. Esta invisibilidade se torna ainda mais significativa se pensada em relação a
outro episódio que observei durante a pesquisa.
Durante o trabalho de campo, o Projeto Renascer convocou uma reunião entre
representantes de várias instituições que participam da “rede de proteção à infância e
adolescência”. Naquela ocasião, estavam presentes representantes do Conselho Tutelar, da
Escola Municipal local, da Unidade de Saúde local e do Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS). A reunião foi organizada para discutir os “casos” de crianças e famílias
166
considerados mais problemáticos e pensar em soluções conjuntas para os desafios que
representavam. No dia da reunião, que durou toda a manhã, foram discutidos vários casos
particulares, considerados por todos como os mais graves, todos sobre meninos. Meninos que
apresentavam o que era descrito como problemas de agressividade, meninos inseridos em
contextos familiares de abuso e negligência e meninos que estavam se aproximando do
movimento do tráfico de drogas. Acompanhei a reunião e, enquanto os casos eram discutidos,
entendi porque estas situações foram singularizadas e colocadas em pauta. Eram todas situações
bastante problemáticas, que demandavam atenção, alguns casos inclusive já eram
acompanhados por todas as instituições presentes há anos, sem que um encaminhamento
satisfatório fosse efetivado. Todas e todos os presentes procuraram fazer o que estava ao seu
alcance, e, naquela manhão, para cada caso, um plano de ação foi traçado. Os planos envolviam
as mais variadas ações: mudança de um menino para outra sala de aula (na qual suas habilidades
matemáticas fossem mais valorizadas); ajuda para que os adultos responsáveis pudessem
encontrar empregos mais estáveis; encaminhamento da criança ou responsável para psicólogos;
procura de algum estágio que o jovem em questão pudesse fazer para que garantisse uma renda
mínima; apoio para uma mãe que desejava deixar a casa onde morava; tentativa de diálogo com
o Juiz responsável pela vara da Criança e do Adolescente para que casos de algumas famílias e
crianças fossem resolvido; enfim, as ações foram variadas e todos os casos discutidos geraram
um plano de ação. Era evidente a preocupação dos envolvidos, e o desejo desses profissionais
de fazer o possível por esses meninos.
Depois que a reunião terminou, conversando com os profissionais presentes, perguntei se
não haviam casos de meninas encaminhados ao Conselho Tutelar. Foi então que fui informada
que entre as crianças que frequentavam o Projeto Renascer naquele momento, haviam cerca de
80 casos encaminhados ao Conselho Tutelar que esperam alguma ação do órgão. A maioria
desses casos envolviam meninas. Contudo, durante a reunião nenhum caso que envolvesse uma
menina foi discutido. Perguntei então se os casos dos meninos eram de algum modo mais graves
ou urgentes. As profissionais que ainda estavam por ali começaram a olhar os nomes da lista
do Conselho Tutelar, e comentaram que entre os casos envolvendo meninas também haviam
situações bastante problemáticas. Refletindo sobre o assunto, comentaram que estes casos só
não haviam sido debatidos por falta de tempo. Ao serem interpeladas por minhas perguntas, as
profissionais voltaram sua atenção para estes casos, e demonstraram o mesmo cuidado e
preocupação que eu observara durante a reunião. No final das contas, acabaram traçando um
plano de ação para três das meninas na lista e, horas depois, no final da tarde, conseguiram
organizar um atendimento para mais uma das meninas.
167
Certamente estas profissionais, quando convidadas a refletir sobre a temática, levam a
sério os problemas enfrentados pelas meninas, na mesma medida que os casos envolvendo os
meninos. Do mesmo modo, toda vez que eu comentava sobre as aparições do Conselho Tutelar
nas brincadeiras, elas ouviam os relatos com cuidado e refletiam sobre as meninas envolvidas,
às vezes as chamando para uma conversa ou observando as envolvidas com mais atenção. Ou
seja, o que espero trazer à tona aqui não está ligado a intencionalidade ou racionalidade das
profissionais presentes na reunião ou dos e das responsáveis pelas crianças no cotidiano da
instituição.
No entanto, era preciso “apontar” para que as brincadeiras de casinha fossem vistas em
seus detalhes, chamar a atenção para estas práticas para que deixassem de ser invisíveis. Como
a maioria das profissionais ali presentes, eu só as vi realmente, a partir do momento em que fui
convidada a brincar de casinha com as meninas. É como se as brincadeiras dos meninos, mais
ruidosas, confrontadoras, públicas, fossem muito mais visíveis, enquanto as meninas,
“quietinhas” reproduzissem as relações veladas e “discretas” do privado; afinal, brincavam de
casinha. Ao afirmar isso, entendo que o movimento que permite que as brincadeiras de casinha
sejam invisíveis ou que os casos dos meninos “parecessem” mais graves para aquelas que
passavam rapidamente os olhos pela lista, está ligado aos contextos das relações hegemônicas
de gênero (que envolvem questões que tangem as relações entre público e privado, a construção
do masculino e do feminino como atributos naturais de características específicas, etc), tão bem
trabalhados por teóricas feministas 89. Os atos dos meninos, brincando de tiros, lutinha,
desenhando armas, “falam” de manifestações públicas de força, de movimentos que têm lugar
na rua, que perturbam, afrontam. Brincam, replicando ações que são reconhecidas socialmente,
como “violentas”. Acima de tudo, remetem às ações que evocam a ideia de (futuros)
“agressores”, “perigo”. Já as meninas brincam de casinha, penduram roupas, cuidam de
crianças, fazem comida, invisíveis e silenciosas, brincam do invisível trabalho doméstico. Se
replicarem, quando mulheres, as ações das quais brincam, estarão distantes de representar
“perigo” (apesar de poderem “estar em perigo” como aprendemos com os dados de violência
contra mulher em todo o mundo).
89Não tenho a pretensão de desenvolver uma análise das brincadeiras das crianças focada nas questões de gênero.
Entretanto, considero importante marcar desta dimensão, como acompanhamos aqui, pois as relações de gênero
produzem efeitos substanciais, reproduzindo práticas de dominação e relações de poder. Neste sentido, os trabalhos
de Rosaldo e Lamphere (1974), Azevedo (1985), Correa (1981,1983), Gregori (1993), Machado (1998, 2001,
2007), Maluf (1993, 2002), Strathern (2006), foram fundamentais para a construção de meu olhar como
pesquisadora.
168
Se certas práticas são (quase) invisíveis, é porque, enquanto sujeitos, somos efeitos das
relações de poder, que criam, moldam, constituem nossa subjetividade. Ora, as relações
hegemônicas de gênero são relações de poder, modos de subjetivação. Como tal, constituem
sujeitos, invisibilizam e visibilizam práticas, sem que seja necessário que os próprios sujeitos
percebam. Afinal, como nos ensina Butler (1998), o sujeito não é a origem única de sua ação,
mas efeito de uma genealogia que é apagada no momento mesmo em que o abordamos como
origem da ação. No entanto, como também sublinha Butler (ibdem), para Foucault, os
dispositivos de poder são limitativos e habilitantes. Tornar-se sujeito é, ao mesmo tempo, ser
feito súdito cativo, constrangido pelas regras que o constituem, e também ser habilitado e
tornar-se agente a partir deste mesmo movimento. Para Butler (ibdem), trata-se de processos e
não um ato único. São repetitivos, sistemáticos, contínuos, múltiplos e contingentes. É esta
dimensão dos processos de subjetivação e das relações de poder que permite com que as
próprias relações hegemônicas de gênero sejam, há tanto tempo disputadas, contestadas e
transformadas. As práticas das meninas, brincado de casinha, são quase invisíveis, mas não
invisíveis de todo. Pois bastava pouco para que elas viessem ao primeiro plano e produzissem
efeitos.
No entanto, há uma brincadeira, mais comum entre as meninas, que é notadamente
visível, é o dançar funk. Dançar funk é (quase) uma unanimidade entre as meninas. Não que os
meninos não gostem de dançar, mas eles passam consideravelmente menos tempo dançando.
Já algumas das meninas podem passar horas ensaiando passos, coreografias, durante as oficinas
de dança e fora dela. Esta é uma das únicas atividades lúdicas escolhidas espontaneamente pelas
meninas que pode causar polêmica.
O Projeto Renascer oferece oficinas de dança para todos os grupos. Com exceção do G1,
são as meninas que tomam conta dessas oficinas. Os meninos costumam ter oficina de futebol
neste horário90. Nem todas as oficinas de dança são ministradas ao som de funk. Os pequenos
e pequenas do G1 dançam também outros ritmos e, nas apresentações nas festas abertas para a
comunidade, as meninas do G1 normalmente dançam balé. Mas não as mais velhas; elas
dançam funk, nas oficinas e apresentações. No primeiro ano da pesquisa de campo, por
exemplo, a música escolhida para a apresentação da Festa de Final de Ano foi “O show das
Poderosas” de Anitta.
A coordenação do Projeto Renascer não vê problema nas meninas dançando funk.
Contudo, nem todas as músicas de funk são bem-vindas. Como me explicaram as próprias
90 O que não significa que as meninas não joguem futebol. Pois a grande maioria delas joga, em times mistos com
os meninos, durante as oficinas ou em horários livres. Só não durante as oficinas de dança.
169
meninas, os proibidões são proibidos, ou seja, os funks com referências a práticas criminosas
ou a práticas sexuais explícitas não tocam no Comosg. Mas esta proibição não as incomodava,
já que elas diziam preferir o funk ostentação. O funk ostentação é o funk cujas letras fazem
referência ao consumo. Marcas de roupas, carros, bebidas, tênis, bonés, compõe muitas das
letras do funk ostentação. No entanto, o que observei, é que na maior parte do tempo, as
meninas, quando estão no Comosg, ouvem e dançam funks de cantoras mulheres, como a
cantora Anitta ou o Bonde das Maravilhas. Estes são funks que, como a música “O aquecimento
das maravilhas”, se referem ao dançar funk e, se não descrevem uma coreografia, como neste
caso, vêm acompanhados de vídeo clips com coreografias que são reproduzidas pelas meninas
à exaustão.
Algumas professoras, no entanto, acreditavam ser inapropriado para as meninas
dançarem funk. Se aceitavam que esta era a atividade lúdica favorita das meninas mais velhas,
a consideravam uma brincadeira que deveria ser desencorajada, ao menos no espaço do
Comosg. Elas entendem que os movimentos de dança do funk são inadequados pois, em sua
análise, remetem ao campo da sexualidade. Além disso, as roupas valorizadas pelas meninas,
que remetem à estética do funk, também são vistas como problemáticas (por serem curtas e
agarradas ao corpo). Suas críticas ao funk falam sobre uma quebra com o comportamento e
estética que entendem ser moralmente adequados para as meninas. Voltando para casa de
ônibus certa tarde, ouvi duas professoras que trabalham na escola local falando sobre isso. Uma
delas disse, num tom de frustração: Que adianta a gente educar na escola se os pais fazem
quadradinho de oito na festa de um ano. A gente educa, eles deseducam... Para aqueles e
aquelas que compartilham sua avaliação do funk, esta prática é não só errada, mas prejudicial,
e deslegitima tanto as crianças quanto os familiares que, em casa, ouvem e dançam funk.
Sabemos que estas profissionais não estão sozinhas. As críticas ao funk, sua estética e dança
como práticas moralmente condenáveis são tão comuns quanto as críticas ao maxixe e ao samba
eram no início do século XX91. O que me parece interessante, no contexto do Comosg, é que,
ao contrário do que poderíamos imaginar, as profissionais mais críticas ao dançar funk não são
necessariamente ligadas aos movimentos evangélicos (normalmente mais conservadores), mas
aquelas e aqueles que menos familiarizados com o cotidiano do bairro.
Isso não significa que as profissionais envolvidas na coordenação não conversassem com
as meninas sobre suas roupas curtas, por exemplo. Nina enchia o saco de Ludmila em função
91 Esta é certamente uma discussão de fôlego, que não tenho como objetivo desenvolver aqui. Neste sentido ver
os trabalhos de Mylena Mizrahi (2010), Hermano Vianna (1990, 2004), Alexandre Barbosa Pereira (2014), Maria
Fonseca de Amorim (2009), Denis Novais (2016), Soares (2010).
170
de seus shortinhos com certa frequência. Estas “enchidas de saco” frisavam que as roupas que
as meninas usavam com tanto gosto não eram adequadas para todos os ambientes, trabalhar
desse jeito não dá! bradava Nina vez ou outra quando encontrava o grupo de meninas do G3 de
pernas de fora. Além disso, como vimos, nem todos os estilos de funk eram permitidos. Aqueles
com referências explícitas às práticas sexuais e criminosas não tocavam no Comosg. Mas a
dança, com seus movimentos de quadril, não era entendida como um problema.
A crítica mais contundente que este grupo de profissionais tecia ao funk dizia respeito à
ode ao consumo do funk ostentação. Para estas profissionais, o maior problema de alguns dos
funks que as meninas e os meninos ouviam no Comosg era que alimentavam o desejo de
consumo e fascinação por certos produtos e marcas de luxo. Estes funks, como o “Plaque de
100” do Mc Guimê, referem-se a um modelo de consumo visivelmente valorizado. Marcas de
carros, bonés, bolsas, bebidas, motos, relógios, roupas são listadas nas canções assim como
fazem parte dos desenhos das crianças. Aprendi muito sobre o logo de marcas de luxo
desenhando com as crianças; estes símbolos estão entre os desenhos mais populares, ao lado de
figuras humanas. Assim, enquanto para um grupo de profissionais, o “problema” do funk são
os movimentos de sua dança, para outro grupo, a questão reside naquilo que, ao cantar, valoriza,
as marcas e ítens de luxo.
Uma última palavra sobre os desenhos. Todas as figuras humanas que as crianças
desenham e colorem são, invariavelmente, brancas, apesar da maioria delas e deles não terem
este tom de pele. Certa tarde, um grupo de oito crianças, das mais variadas idades, dividiam
uma mesa e uma caixa de sapatos cheia de lápis de cor. Elas coloriam figuras que uma das
171
professoras havia impresso. A figura mais popular naquela semana era de uma menina
segurando um pequeno cachorro. Sentei ao lado delas e resolvi terminar de colorir um desenho
que havia sido deixado inacabado na mesa. O cachorrinho nos braços da menina já estava
colorido e a figura da menina tinha um enorme risco marrom, que a atravessava. Marrom
chocolate. Primeiro colori o cabelo de preto. Depois, aproveitando o risco marrom, decidi pintar
a pele da menina da mesma cor. Quando Alice, uma menina de 12 anos, viu o que fazia ela
imediatamente comentou: Tati é racista, pintando a menina de marrom. Isso é preconceito Tati,
coitadinha dela.
Ao ouvir isso, catei uma variedade de lápis de cor da caixa, branco, rosa claro, vários tons
de marrom, bege e preto. Perguntei a todos na mesa se alguma daquelas cores eram parecidas
com nossas peles. As crianças menores que estavam por ali acharam a ideia interessante;
arregaçaram suas mangas para fazer a comparação, colocando vários lápis ao lado do braço até
achar algo que achassem apropriado. Às vezes, um lápis as satisfazia, outras achavam que a
combinação de duas cores diferentes seria mais apropriada. Duas meninas do G3 também
gostaram da ideia e acabaram por se decidir por tons de marrom mais claro. Alice me fulminada
com os olhos, paralisada. Então, um dos meninos menores, que tinha escolhido um marrom
bem escuro, pegou o lápis chocolate que eu havia usado até então, colocou ao lado do braço de
Alice e disse sorridente: este é o teu. Ela empurrou a mão dele para longe, levantou
abruptamente, derrubando a cadeira, e saiu carrancuda. O restante das crianças voltou ao seu
desenho. O menino que mostrou a Alice o lápis resolveu pintar o super-herói-ninja que
desenhava com o lápis que decidira ter o tom de sua pele, ele é igual a mim, disse ao terminar,
sorridente Depois deste incidente, Alice passou quase duas semanas sem falar comigo.
Novamente nos deparamos com o invisível. O fato de as crianças sempre representarem
figuras humanas brancas, mesmo em um contexto onde a grande maioria dos humanos não
eram brancos, passava desapercebido, mesmo para aquelas professoras e professores que
procuravam discutir as questões raciais quando elas se apresentavam de modo mais explícito.
Como Aristides, que toda vez que ouvia alguma criança usando o adjetivo “preto” de modo
pejorativo fazia questão de se auto identificar como negro e de conversar com as crianças sobre
o assunto. Ou Marilda, que enquanto coordenadora foi cuidadosa em relação a esta temática,
promovendo debates e conversas com as crianças e jovens. Ou Tati, que conversava com as
crianças com frequência sobre esta questão. Contudo, a branquitude das representações
172
humanas era invisível, ao ponto de que, para Alice, preconceito e racismo eram eu colorir uma
boneca com o lápis marrom92.
Entretanto, ainda não esgotamos as discussões sobre as disputas, entendimentos e
desentendimentos que se desenrolam em torno do brincar. Na última parte do capítulo, exploro
as brincadeiras que podem ser entendidas não a partir da premissa, “this is play”, mas sim da
pergunta, “is this play?”, que deixa em suspensão o estatuto da atividade por vezes até mesmo
para aqueles envolvidos na interação. Vejamos.
.
3.2.2. “Is this play?”: Lutinhas e barracos
Entro na sala dos espelhos com algumas das meninas e lá estão Ayla, Ludmila e Pietra,
treinando a coreografia de um funk que eu ainda não conhecia. As meninas que me
acompanhavam se juntam a elas e sento em uma das cadeiras encostadas na parede para
observá-las. Pedro aparece por ali e senta ao meu lado. Ele diz estar com um pouco de dor de
cabeça, por isso não quer jogar futebol, e pede para me mostrar sua assinatura na minha
caderneta de campo. Ele está feliz porque finalmente criou uma assinatura que lhe agrada. Há
dias ele e outros meninos treinam assinar seus nomes em minhas cadernetas.
92 Entendo que as questões raciais, sendo elas invisíveis ou não, são um dos elementos constituintes dos modos de
subjetivação dos sujeitos, tanto das crianças quando de seus familiares e dos profissionais envolvidos no cotidiano
do Projeto Renascer. Além disso, ser negro ou branco em um estado como Santa Catarina, que ao longo de sua
história tem procurado construir a imagem de um estado “europeu” e branco é ainda mais relevante (ALENCAR,
2009; SILVA, 2012). Entretanto, esta não é uma questão que trabalharei de modo mais detalhado. Neste sentido,
ver Cavalleiro (2014); Rossato e Gesser (2001); Sherriff (2001).
173
Depois de um tempo, Pietra se aproxima de nós. Ela caminhava em nossa direção com as
mãos na cintura e o rosto sério, fechado. Quando chega a meio metro de distância faz um
pequeno movimento com a cabeça que tantas vezes observei quando algum conflito estava para
ser iniciado. Trata-se de um movimento sutil, um pequeno movimento da cabeça para trás, uma
leve e rápida elevação do queixo, repetida uma ou duas vezes com o rosto sério e a boca serrada.
Pietra, depois de fazer este movimento, continuou a aproximação e encostou levemente suas
pernas nas pernas de Pedro, que permaneceu sentado. Ao fazer isso, começou a falar, e tu seu
folgado, que mancada foi aquela de tirar o celular da gente aquele dia no campinho? Vacilão
porra. Ao falar isso, bateu com força sua mão na carteira, fazendo em grande barulho, e
continuou, tu é um vacilão mesmo, se acha o máximo só porque anda com os caras mais velhos.
Mas tu vai ver, isso não vai ficar assim. Pedro não se levantou (nem havia espaço), mas a
encarrou de frente e, também com a voz alterada, respondeu, eu faço o que quero, vacilona é
tu, que vem aqui folgar comigo. Vai encarar? Tenta, pra tu ver o que acontece. Eu estava, como
dito, sentada ao lado de Pedro e, a esta altura, comecei a ficar preocupada. Temia que a
discussão se transformasse em embate físico.
Ao ouvir a resposta de Pedro, Pietra se inclinou para frente, apoiando uma mão na
mesinha da cadeira de Pedro e outra na minha, “fechando” Pedro entre seus braços, continuou
a discussão, tu é um vacilão, um merda mesmo, tu vai se dar mal, escuta o que tô te dizendo,
isso não vai ficar assim. Naquele momento, tive certeza que as coisas só poderiam piorar e
estava realmente preocupada. Este me parecia o pico da discussão e temia pelo que poderia
acontecer nos próximos instantes. Mas neste momento, Pedro e Pietra, ao continuarem sua
discussão acalorada, xingando-se e ameaçando-se mutuamente, começaram a esboçar alguns
sorrisos de canto de boca. Discutiam, mas também sorriam. Foi quando percebi que seu embate
era algo além, algo mais do que um embate. Os dois pareciam envolvidos em uma espécie de
jogo de “não pode rir”; era preciso discutir, mas, a cada frase, ficava mais difícil manter o
semblante sério. Até que nenhum dos dois conseguia mais manter a cara fechada e acabaram
sorrindo abertamente. Ela então se endireitou, deu um tapinha atrás da cabeça de Pedro e me
perguntou o que estávamos fazendo.
Depois que Pietra foi embora, percebi que, no final das contas, Pedro e Pietra estavam
“brincando de brigar”. Questionados sobre o que aconteceu naquela tarde, depois do acontecido
(e a temporalidade é importante, como veremos a seguir), Pedro, Pietra afirmaram que estavam
brincando. Dias depois, resolvi conversar com eles sobre o assunto. Naquela tarde, estávamos
na Sala da TV, fazendo “nada”, juntamente com outras meninas, todas do G3. Aproveitei que
Pietra tinha dito que ela era braba e comentei sobre a discussão com Pedro, dizendo que naquela
174
tarde eu achei que os dois estavam brigando mesmo. Os dois riram e disseram que aquilo era
normal. Pietra completou, a gente briga mas não briga, eu tava só tirando ele mesmo. Tirando
neste contexto, significa que ela estava tirando sarro, tirando onda, ou seja, gozando de Pedro.
Continuei pressionando a questão, perguntando como eles sabem se é sério ou não. Pedro,
depois de pensar um pouco, falou dá pra ver na cara que não é briga, a gente vê na hora. A
amiga de Pietra, Pérola, refletindo sobre o assunto disse que interações como a que observei
entre Pedro e Pietra são tipo brincar de barraco. Quando ela elaborou a questão nestes termos,
ouve um consenso geral na sala.
Barraco é um termo usado para descrever discussões ruidosas, escandalosas; nos
barracos, a possibilidade embate se tornar físico está presente, mas não é uma regra. Os
barracos, presentes em cenas comentadas de novelas, em vídeos compartilhados nas redes
sociais, em conversas cotidianas, é uma prática valorizada em determinadas situações.
Barraqueira ou barraqueiro pode ser um adjetivo acionado tanto para elogiar quando para
marcar uma característica negativa do sujeito, dependendo do momento e situação. Ao ouvir
relatos sobre barracos, (fossem eles reais ou representados em novelas) o que percebi é que se
o barraco é armado pelo protagonista da história para defender algo que, no contexto da fala,
é considerado moralmente certo, este é um “bom” barraco. Já se o ponto do relato é marcar a
impostura moral do protagonista barraqueiro, acentua-se seu caráter negativo. Além dessa
ambiguidade, resolvida apenas pela avaliação daqueles que relatam e/ou refletem sobre o
barraco, para as meninas e meninos que observei, o barraco conserva uma potencialidade
lúdica. Tanto porque elas e eles parecem se divertir brincando de barraco, quanto porque
gostam de compartilhar histórias de barracos, imitando gestos, falas e tons de voz e rindo
gostosamente a cada novo lance da trama. Assim, os barracos podem ser brigas (como um
barraco homérico que presenciei entre Nina e Ludmila) ou brincadeiras (como o que relatei
acima); podem conter ludicidade e/ou seriedade, mas como saber? É para explorar esta questão
que proponho seguir Bateson (1987) em seu questionamento, “is this play?”.
Lembremos que para o autor, o brincar-jogar implica que aqueles envolvidos na interação
compartilhem uma mensagem metacomunicativa que funciona como que um enquadre para a
interação: “this is play”. Isto é, a relação é estabelecida a partir de um enquandre no qual
compreende-se que as ações nas quais os sujeitos estão envolvidos não denotam aquilo que
normalmente denotariam (Bateson, 1987). Contudo, para Bateson, é preciso estar atento ainda
a outra forma de brincadeira/jogo:
175
Very brief analysis of childhood behaviour shows that such combinations as histrionic play,
bluff, playful threat, teasing play in response do threat, histrionic threat, and so on form
together a single total complex of phenomena. And such adult phenomena as gambling and
playing with risk have their roots in the combination of threat and play. It is evident also that
not only threat but the reciprocal of threat – the behaviour of the threatened individual – are
part of this complex. (...) But this leads us to the recognition of a more complex form of play;
the game which is constructed not upon the premise ‘This is play’ but rather around the
question ‘Is this play?’ (p.182).
Isto é, segundo Bateson, há outra possibilidade para o brincar/jogar: aquela que mantém
a pergunta em aberto, “is this play?”. Aqui, o estatuto das interações (é uma brincadeira ou não)
não é predeterminado, como quando crianças brincam de casinha, desenham, pulam corda ou
jogam Banco Imobiliário. A disputa também não está ligada a uma métrica valorativa que
decide que a atividade pode ser legitimada como uma brincar ou não, como desenhar armas.
Nas interações como as de Pedro e Pietra, a resposta para a questão, “isto é uma brincadeira?”
só pode ser encontrada e negociada no momento mesmo da interação, por aqueles envolvidos.
Assim, ela não depende de um acordo tácito pré-estabelecido pelos participantes; assim como
não depende de valorações externas. São os sujeitos envolvidos nesta forma de relação
paradoxal que negociam, à medida em que a relação se desenrola, qual seu estatuto. Como diria
Pedro, a gente vê na hora. Mas antes que possamos explorar com mais cuidado esta questão,
gostaria de apresentar mais uma brincadeira que opera a partir da mesma duplicidade da
potência não definida “é brincadeira ou algo diferente?”, as lutinhas.
Uma das brincadeiras mais problemáticas no cotidiano do Projeto são as brincadeiras de
lutinhas, comuns entre a maioria dos meninos. Para algumas educadoras, essas interações
físicas não devem nem ao menos ser consideradas parte do brincar. Isto é, não devem ascender
ao estatuto de brincadeira, sendo consideradas algo errado que os meninos insistem em fazer.
E eles insistem em fazer.
As lutinhas são mais frequentes entre os meninos entre 6 a 10, 11 anos. Quando se tornam
mais velhos, a frequência com que brincam de lutinha diminui, mas a prática não desaparece,
mesmo porque os mais velhos parecem se divertir brincando de lutinhas com os mais novos.
As meninas também se engalfinham (ludicamente) com meninos, mas com frequência menor.
As lutinhas, assim como as brincadeiras com armas, são um assunto delicado para as
educadoras e educadores. Para algumas, brincar de lutinhas é realmente algo que pode ser
entendido como “normal”. Seguindo as discussões dentro do campo da educação, acreditam
que este é um momento em que as crianças, especialmente os meninos, podem vivenciar certa
intimidade (toques, abraços) “disfarçada” como masculina (Reed, 2005); podem aprender sobre
sua própria força e limites e como controlá-los (Jones, 2004). Além disso, brincar de lutinhas
pode ser entendido como uma forma de comunicação social em crianças que as ajuda a lidar
176
com seus sentimentos (Marques, 2010); e como um modo de vivenciar e ressignificar a
agressividade de forma positiva (Magalhães Barbosa et al, 2017). A própria Tati aborda esta
questão em um artigo sobre o brincar, problematizando seu desconforto inicial frente às
brincadeiras de lutinhas. Ela conclui que foi necessário para ela, enquanto educadora, aprender
a abordar as brincadeiras de lutinhas a partir de um lugar produtivo, afirmando que isto se fez
necessário, pois as crianças, ao brincarem desta forma, estão “interagindo, medindo forças,
negociando, criando novos significados para suas ações” (Cabral, 2011).
Entretanto, tanto no artigo quanto em suas reflexões informais sobre o assunto, Tati
ressaltava ser sempre um desafio aceitar com naturalidade as brincadeiras de lutinhas e outras
brincadeiras que remetessem a agressividade ou violências. Um desafio que acreditava ser
válido, mesmo que demandasse dela atenção e a superação de suas reações negativas iniciais.
Esta dificuldade surgia, para Tati, assim como para muitas das professoras, porque estas
profissionais têm em mente o contexto específico vivenciado pelas crianças que frequentam o
Projeto. Algumas das crianças enfrentam problemas de agressões físicas e verbais em seus
núcleos familiares, outras já presenciaram agressões, ou foram agredidas nas ruas, seja por
policias, conhecidos ou estranhos. Novamente, como na questão das armas, o que Tati sublinha
ao falar de seu desconforto, é que o contexto específico em que estas crianças vivem lhes
apresenta situações “reais” de confrontos agressivos. Sua preocupação é que, se autorizadas a
brincar de lutinhas livremente, elas naturalizem a violência, sem problematizá-la.
Neste sentido, a frequência com que uma criança brinca de lutinhas pode ser um
indicativo de um problema de “agressividade” ou um sinal de que há problemas em seu contexto
familiar. Mais do que uma simples brincadeira, o modo e a frequência como certas crianças
brincam lutinhas é abordado como um sinal, que pode indicar problemas familiares ou
comportamentais. Por isso era necessário observar com cuidado, como pensavam Tati e
Marilda, pois, apesar de ser uma prática “normal”, ela pode também ser uma espécie de índice,
que indica algum problema que a criança está enfrentando.
Outro grande problema, para as educadoras, das brincadeiras de lutinha é que esta é uma
brincadeira, aparentemente sem regras. Inclusive, este é um dos esforços de algumas
educadoras: estabelecer regras para esta brincadeira. Quando repreendem as crianças, algumas
procuram levá-los a explicitar no discurso quais seriam as regras da lutinha. Sua maior
preocupação é que, sem isso, as crianças acabem se machucando ou que, o que começou como
uma brincadeira, transforme-se numa briga. Regras claras, estabelecidas em comum acordo,
serviriam para evitar estes desfechos.
177
Neste sentido, o que preocupa é a natureza paradoxal do brincar-jogar. Como nos lembra
Wasterfors (2014), seguindo o pensamento de Bateson, o brincar-jogar é lábil, principalmente
em se tratando de brincadeiras como as de lutinhas, e pode incluir elementos sérios e incertezas
sobre o estatuto do próprio brincar-jogar. Algo pode ser real, durante a brincadeira-jogo, ou faz
de conta, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Manifestações de poder, intimidação, coerção,
estabelecimento de hierarquias podem estar “escondidos” nas lutinhas ou barracos de
brincadeira, exatamente por causa da qualidade paradoxal do brincar-jogar. Além disso,
crianças e jovens “brincam com o brincar” (Wasterfors, 2014), deixando aqueles e aquelas ao
seu redor incertos sobre se suas ações são “reais” ou não. Como fiquei em relação Pietra e
Pedro. Naquela tarde, Pietra podia estar realmente irritada com Pedro. Dias antes, ele havia
abruptamente pego de volta o celular que emprestara às meninas para que gravassem a
coreografia de um funk que ensaiavam. Na ocasião, ele fora autoritário e, sem maiores
explicações, chegou, gritou com elas, e pegou o celular. Todas estavam brabas com ele. Depois
disso, Pietra e as demais meninas o haviam ignorado sistematicamente, deixando-o cabisbaixo.
Aquela tarde era a primeira vez, desde o incidente, que alguma delas lhe dirigia a palavra. Será
que Pietra e Pedro estavam falando sério? Suas ameaças mútuas eram reais, um blefe, ou as
duas coisas ao mesmo tempo?
Estas questões podem ser melhor compreendidas se, como Bateson, pensarmos nos
termos do enquadre aberto, “is this play?”, pois ele permite que a qualidade paradoxal de certas
formas do brincar-jogar venha ao primeiro plano da análise. Durante as lutinhas, se às vezes os
meninos acabavam realmente brigando, é porque, durante seus golpes e contragolpes, o
enquadre dúbio do “is this play?” acaba por atualizando a possibilidade da briga. Isso pode
acontecer porque alguém falou algo que ultrapassou o limite do outro, porque um chute ou soco
doeu mais do que o esperado, porque um dos expectadores disse algo, enfim, as razões são
múltiplas, circunstanciais e contingentes. Impossível prever ou planejar. Por esta razão também
que foi, somente após a interação correr seu curso, que Pedro e Pietra puderam afirmar que era
uma brincadeira. Porém, afirmar que os dois estavam brincando de barraco, não significa
afirmar que os dois não tenham tocado em temas sérios, pois brincavam e também estabeleciam
limites para suas relações. Contudo, ambos reconheceram, enquanto interagiam, a possiblidade
do lúdico, atualizando a relação enquanto brincadeira, com seus sorrisos de canto de boca. A
possibilidade de que a situação se desenrolasse como uma briga mais séria estava aberta e foi
negociada na interação. Mas nem sempre o desfecho se dá nos termos do lúdico.
Certa tarde, Luísa, uma das professoras de educação física, entrou na sala de TV e
repreendeu vários meninos. A professora os mandou para a área externa, já que, segundo ela,
178
aquele não era o horário deles estarem ali. Alguns deles saíram imediatamente, mas Pedro não.
Ele estava perto da porta e, ao ouvir Luísa chamando sua atenção, havia voltado até onde estava
parada a professora. Ele se aproximou dela, realmente se aproximou dela, quase encostando seu
peito em sua barriga. Pedro veio com o peito estufado, os braços para trás, a cabeça erguida.
Encarrou a professora e, com uma voz firme, cheia de autoridade e agressividade começou a
falar, tu não manda em mim, eu faço o que quero, não vou a lugar nenhum, vai querer encarar?
Enquanto falava, empurrava com força a parte superior de seu corpo contra a professora, que,
olhando para baixo (já que Pedro tinha pouco mais da metade de sua altura), se desequilibrou
um pouco e deu pequenos passos para trás para não cair. Pedro continuava a bradar sem parar,
ameaças e desafios, tenta me tirar daqui, quero ver, ninguém manda em mim, tenta pra ver o
que acontece. Enquanto falava, continuava a encarar Luísa, pressionando seu corpo contra o
dela. Havia muitas crianças na sala, entrando e saindo, algumas jogando cartas e Banco
Imobiliário nas mesas ao redor, ninguém parecia dar atenção à cena. Luísa me parecia estar sem
reação. Olhava para Pedro sem falar nada, sua expressão era vazia. A cena foi rápida, Pedro foi
rápido, em sua fala e gestos. Quando terminou, Luísa, sem falar nada, saiu da sala, já chamando
a atenção de outros meninos que corriam no corredor. Quando ela saiu, Pedro riu e calmamente
saiu da sala. Afinal não tinha mesmo interesse em permanecer ali. Quando Luísa chamou sua
atenção ele já estava deixando a sala com os amigos para jogar taco na área externa.
Acredito que possamos traçar um paralelo entre a interação entre Pedro e Pietra e a
interação entre Pedro e a professora Luísa. A ideia é que, em ambas as situações, a questão “is
this play?” estava de certa forma presente (ao menos para Pedro). Isso porque não foram as
únicas vezes em que observei situações que poderiam ser compreendidas nestes termos:
aparentes confrontos que eu, num primeiro relance, acreditava serem brigas, verdadeiros
barracos, ou momentos em que crianças ameaçavam e desafiavam a autoridade das professoras
e professores, mas que tinham um desfecho diverso ao que vimos com Pedro e Luísa. Um
desfecho que, como nas brincadeiras de lutinhas (nas quais ninguém sai chorando), confirmava
a potência lúdica da interação, sem que com isso anulasse as manifestações de poder,
intimidação, coerção, estabelecimento de hierarquia que poderiam também estar sendo
sutilmente negociadas.
Certo dia, um grupo de crianças estava na grande mesa da coordenação. Alguns faziam
seus deveres da escola e outro pequeno grupo fazia bijus com miçangas coloridas. Eu ajudava
dois pequenos com seus deveres e separava miçangas para Maria Ísis, Pedro, Pietra e Ludmila.
Tati estava por ali, conversando conosco enquanto resolvia questões da coordenação no
computador. Quando o horário do lanche do final da tarde se aproximava, Tati pediu que todos
179
guardassem cadernos, lápis de cor, miçangas e bijus em seus respectivos lugares. Os pequenos
obedeceram prontamente. Com os deveres finalizados, estavam morrendo de vontade de ir lá
fora. As meninas que faziam bijus se enrolaram um pouco, mas começaram o movimento. Pedro
ignorou o apelo de Tati e continuou a colocar miçangas no fio que tinha nas mãos. Tati reforçou
o pedido, Pedro “pareceu” não ouvir. É quando Tati o chamou pelo nome, Pedro, acabou o
tempo, hora de guardar as miçangas. Pedro olhou para ela e, sério, respondeu, tô de boa, não
terminei ainda. Tati lhe explicou que ele podia terminar no dia seguinte, mas que era hora de
guardar as coisas. Pedro continuou impassível. Ele se virou e olhou para ela pela primeira vez
desde que a interação começara e falou furioso, vou terminar aqui primeiro, já falei! Voltou
seu olhar novamente para seu trabalho e começou a proferir xingamentos, ameaças e desafios
a quem ousasse tirá-lo dali, quero ver quem tem coragem!, bradava irritado. Pois eu tenho
coragem seu atentado!, disse Tati com a voz firme. Ela levantou, caminhou até a mesa com o
semblante sério, parou ao lado dele com as mãos na cintura e disse no mesmo tom firme: ô
quirido, tu não me atenta que hoje eu não tô boa! Nisso, ela começou a rir e complementou:
Um piá, um pingo de gente desses me atentando! Era o que me faltava! Ela tocou em Pedro,
um leve “apertão” carinhoso no ombro, e apontou para as miçangas espalhadas na sua frente.
Pedro balançou os ombros como quem quer se livrar do toque e começou a guardar as miçangas
resmungando, mas tu é chata mesmo. Pedro resmungava e sorria, não havia dureza em sua voz.
Tati sentou ao seu lado, observou o colar no qual ele estava trabalhando e o ajudou a guardá-lo
de modo que as miçangas não se soltassem. Enquanto isso, perguntava quem iria buscá-lo
naquela tarde e se estava tudo bem em casa. Pedro respondia com calma. Toda a fúria das
primeiras respostas esquecida, terminou de guardar as coisas e foi comer, já que é a vez do seu
grupo etário no refeitório.
Nas três situações descritas, ao ser interpelado por uma repreensão (caso de Pietra) ou a
imposição de um limite para suas ações (Luisa e Tati), Pedro branda irritado, ameaça e desafia.
No entanto, os desfechos são diversos; em primeiro lugar, porque esta é a potência mesma da
relação, tendo em mente que abordo estas interações como momentos em que o enquandre “is
this play?” é uma possibilidade. Desta forma, se as abordarmos nestes termos, sabemos que
trazem em seu bojo tanto a possiblidade do lúdico quanto do conflito. Presenciei também
interações entre as crianças ou entre crianças e professoras, que pareciam ser brincadeira, ou
que um daqueles envolvidos tentava trazer para este enquadre do lúdico, mas que acabavam
como verdadeiras brigas, outras não. O mesmo pode ser dito em relação às brincadeiras de
lutinha. Por vezes elas tornavam-se brigas, com lágrimas, xingamentos e machucados, e em
outros momentos, mesmo que as coisas parecessem estar se escalando e tornando-se uma briga,
180
todos acabavam rindo. No entanto, para além da característica paradoxal dessas relações,
durante a pesquisa foi possível identificar outra regularidade. A saber, para algumas professoras
e alguns professores, tudo se passa como se fosse impossível reconhecer a abertura que o
enquadre “is this play?” permite explorar.
Para algumas pessoas, em determinadas situações, “is this play?” é um enquadre possível.
Cabe experienciar a relação, ver na cara da pessoa, na hora, que o englobante da interação
imediata não é o sério (que a transformaria em um confronto, ameaça “pura” ou briga).
Enquanto que, outras, esta não era uma possiblidade de relação. Certamente, estas sutis
negociações são sempre contextuais, mas o que espero sublinhar é que entre certas pessoas há
uma abertura maior para que o desfecho acabe tomando o caminho da jocosidade, do lúdico,
como com Pedro e Pietra. Na relação que os dois estabeleceram, o sério e o jocoso se
sobrepunham; o desfecho jocoso não significa que coisas “sérias” não tenham sido negociadas.
Com Luísa o desfecho foi diverso. Luísa recuou frente ao confronto, confirmando a autoridade
de Pedro para intimidá-la, tornando a interação toda “séria”. Pois, parafraseando Wasterfors
(2014), embora brincar-jogar possa muito bem conter seriedade, a seriedade não contém
brincar-jogar. Isto é, Pedro e Pietra, assim como Pedro e Tati, brincavam, contudo, também
negociaram “seriamente” elementos de suas relações. Pietra deixava claro que a atitude de
Pedro em relação ao celular foi problemática, e Tati estabelecia que era sua a autoridade para
decidir a hora que terminar a atividade, mesmo que estas relações tenham tido um desfecho no
registro da brincadeira, com risadas e sorrisos. Já no caso de Luísa, a possibilidade do lúdico
parecia não estar presente, ao menos para ela. Será que para Pedro ela estava ali? E o que
permite com que algumas pessoas reconheçam a possiblidade do enquadre “is this play?” e o
atualizem? Ou, o que faz com que não reconheçam a possibilidade deste enquadre? Para
responder estas questões, é preciso novamente trazer à tona o “sujeito criança” e como é
concebido por seus interlocutores.
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3.2.3. O sujeito criança brincante III
Numa tarde de inverno, chegando ao Comosg, mal cruzei a porta de entrada, dei de cara
com Kaio e outros dois meninos, bloqueando meu caminho. Sem muitas alternativas, parei para
conversar com eles. Kaio me olhou sério e fez um pequeno movimento com a cabeça que indica
que o assunto que vai iniciar é sério e que pode ser o início de um confronto. Isto é, ele jogou
o queixo levemente para cima e fixou do olhar em mim dizendo em seguida: não trouxe a tua
câmera.
Uma semana antes eu havia deixado minha câmera fotográfica com ele. Minha ideia era
deixar a câmera por uns dias com as crianças e jovens que quisessem. Pedia que tirassem foto
daquilo que achassem interessante, daquilo que tivessem vontade. Depois disso, eu gravava as
fotos em um CD, que ficava com eles, e imprimia as 10 fotos que escolhessem. Kaio foi o
primeiro a ficar com câmera. As negociações para a construção da lista que determinava a
ordem e o período que cada um daqueles que desejassem ficaria com a câmera foram
disputadíssimas. Os meninos foram os mais envolvidos; poucas meninas demonstraram
interesse em ficar com a câmera 93. Kaio estava com a câmera há seis dias; aquela era a tarde
93Esta atividade surgiu mais do desejo de possibilitar que as crianças e jovens tirassem fotos do que como recurso
metodológico. Isso porque, na época da pesquisa, praticamente nenhuma das crianças e jovens tinham um aparelho
de celular que tirasse fotos. Contudo, as fotos eram valorizadas, mesmo entre as meninas que, apesar de não
demonstrarem tanto interesse em levar a câmera para casa, pediam com frequência para tirar fotos delas e as
182
que deveria devolvê-la. Acredito que ele sabia que esquecer a câmera seria um problema, já
que atrasaria o rodízio entre as outras crianças interessadas (e ansiosas).
Quando Kaio falou que esqueceu a câmera, houve um momento de silêncio, todos me
observavam atentamente. Foi um momento breve, mas cheio de tensão e expectativa. Como eu
não reagi de imediato, Kaio repetiu, agora com a voz mais firme: não trouxe mesmo, esqueci e
daí? Qual é o problema? Disse isso se aproximando de mim, mãos nas costas e peito estufado,
olhar altivo, fixo no meu. Respondi, calmamente, sem tirar os olhos dele: bom, é isso, fazer o
quê. Mas a gente dá um jeito, posso passar na tua casa contigo no final da tarde para pegar a
câmera. Já aproveito e falo com a tua vó, acrescentei, com um sorriso no canto da boca 94. Ao
ouvir isso, Kaio relaxou seu corpo e sorriu. Tirou as mãos de trás do corpo, mostrando-me a
câmera, que escondera no bolso de trás da calça. Quando vi a câmera ri e a peguei das mãos de
Kaio, que exibia seu melhor sorriso traquinas, os outros meninos sorriam também. Certamente
eles sabiam que Kaio escondera a câmera e observavam silenciosa e atentamente para ver a
minha reação ao suposto esquecimento. Senão penso que algum deles teria reprendido Kaio
com o eloquente adjetivo de vacilão acionado nestas ocasiões. Afinal, os dois meninos ali
presentes estavam entre os mais ansiosos por sua vez de levar a câmera para casa.
Kaio então falou que ele havia tirado muitas fotos, e tirei um monte de foto de cachorro
cagando, completa. Os meninos dão risada, e Kaio me observa, traquinas. Pergunto séria: e
você quer que eu imprima essas fotos, do cachorro cagando Kaio? Se você tirou um monte é
porque esses são teus interesses, podia ter tirado de tanta coisa né, e escolheu os cachorros.
Os meninos ao redor voltam a rir, dessa vez com mais entusiasmo e começam a especular as
razões para Kaio ter tirado fotos de cachorros cagando. Kaio, agora sério, endireita o corpo e
me fala em alto e bom tom: tá maluco! Eu não tirei foto de cachorro cagando não, só tirei foto
‘da hora’ (legais). Só falei isso pra ver a tua cara! Peguei a câmera e rindo, fui deixar minha
mochila na sala da coordenação.
Kaio brincava comigo. Se eu tivesse agido como ele esperava, ficando brava porque ele
esqueceu a câmera ou brigando com ele por causa das supostas fotos de cachorros cagando, eu
não teria achado graça, mas ele e seus dois “comparsas” sim. Seria uma brincadeira às minhas
imprimir. Às vezes eu passava muito tempo com grupos de meninas tirando fotos delas, que pareciam nunca se
cansar. No final das contas, apenas os quatro primeiros da lista tiveram oportunidade de levar a câmera para casa,
já que ela acabou quebrando e foi impossível consertá-la.
94 Mencionar a avó de Kaio, com quem ele vivia, não foi um ato ingênuo de minha parte. Eu a conhecia, havia ido
à casa deles algumas vezes e, dias antes, conversado com ela sobre a câmera. Sabia que ela repreenderia Kaio por
ter esquecido a câmera e sabia que Kaio preferiria não desapontar sua avó, uma mulher carinhosa e firme. Ambos
sabíamos que ela iria encher o saco dele por causa do esquecimento.
183
custas, uma burla, mas, para eles, estaria no campo do lúdico, do jocoso ainda assim. Quando
me falou sobre os cachorros, Kaio queria ver minha cara, debochava de mim. Como veremos
no próximo capítulo, uma das razões mais comuns para as crianças e jovens serem mandados
para a coordenação para uma conversa, é exatamente isso, o “deboche”. Mas o que interessa
aqui não é exatamente a dimensão do deboche, mas o início de nossa interação, quando Kaio,
de peito estufado, voz firme e olhar duro, me enfrentava. Arrisco afirmar que, naquele
momento, eu e Kaio estávamos envolvidos numa interação como as trabalhadas no item
anterior, “is this play?”: era um enquadre possível e ambos entendemos isso. Mas isso foi
negociado durante nossa interação. Eu desconfiei que Kaio pudesse estar brincando, mas ele
estava tão sério, tão desafiador, que não tive certeza. Se tivesse ralhado com ele, por esquecer
a câmera, poderíamos ter tido uma briga, principalmente se eu ficasse incomodada por ter feito
o papel de “boba”, quando ele tirasse a câmera do bolso. Não seria a primeira vez que Kaio se
envolveria em uma discussão séria por algo assim. Se eu tivesse simplesmente ignorado, e não
ligado, Kaio poderia achar que não só me enganou, como também me intimidou com suas
bravatas. Também não teria sido a primeira vez que Kaio produziria este efeito, como fez Pedro
com Luísa que, intimidada, deixou que Pedro ficasse na sala, ignorando o menino como se ele
não a tivesse confrontado e ameaçado. Por isso me permiti mencionar a vó com um leve sorriso.
Se ele tivesse realmente esquecido a câmera, e tivesse realmente me confrontando, a menção
de sua avó seria uma lembrança de que ele não podia agir dessa forma. Senão, a menção da vó
seria apenas uma pequena “piada” entre nós; afinal, eu a conhecia e ele já tinha me dito que
ela era braba, que quando ele aprontava ela não parava de falar nunca mais. Seja como for,
esta era uma possibilidade de interação, tanto para mim quanto para Kaio, quase como se
brincássemos de barraco, como Pedro e Pietra. Uma troca amigável de bravatas, Kaio me
enfrentando e eu mencionando sua avó.
Durante o trabalho de campo no Comosg, observei educadoras e educadores assumirem
uma atitude similar quando alguém os enfrentava, como Pedro a Luísa ou Kaio a mim. A tensão
se dissolvia, na maioria das vezes, a partir de um acordo tácito: assumir que o que estava em
jogo era uma relação do tipo “is this play?” e agir para abrir espaço para uma resposta positiva:
sim, “this is play”, a gente ri e segue a vida. Contudo, como disse, nem todos assumem esta
posição sempre. A reação de Luísa também era comum entre algumas profissionais em relação
a algumas crianças. Estes meninos e meninas acabavam sempre por gerar reações como a de
Luísa: as professoras, intimidadas pelas ameaças e bravatas das crianças, se afastavam e as
crianças conseguiam fazer o que desejavam. Quanto mais esta experiência se repetia, mais estas
crianças a acionavam como uma estratégia de negociação de autoridade ou de possiblidade de
184
liberdade para decidir o que queriam fazer. Minha hipótese é que, em parte, é assim que crianças
como o Pedro vão construindo sua autoridade. Proponho que, na interação com Luísa, a
possibilidade de uma reação que confirmasse a jocosidade também existia, ao menos para ele,
mas não foi acionada. Em situação similar, na qual Aristides havia mandado Kaio para sua
oficina, em outra sala, vi Aristides estufar o peito, numa postura caricatural de malandro, e ir
andando em direção ao menino, lentamente empurrando Kaio até que ele tivesse recuado até a
porta, já rindo. Mas, como Luísa recuou, Pedro experienciou uma pequena vitória, que
confirmou seu poder naquele momento. Mas porque ela recuou frente a Pedro? Luísa era uma
educadora competente, suas oficinas eram criativas e organizadas, com as crianças entretidas
em seus afazeres sem maiores confusões. Contudo, alguns meninos a intimidavam, assim como
intimidavam outras educadoras e educadores.
Entendo que isto está ligado ao fato que, como vimos anteriormente, para algumas
profissionais, as crianças são isso ou aquilo (boas ou más; vítimas (da pobreza) ou perigo;
criança ou peste; bem-comportadas ou malcomportadas). No humanitarismo, são estas as
posições possíveis para o sujeito criança vulnerável: (1) ou alguém que precisa de proteção, já
que é duplamente vulnerável (graças à sua condição de criança, entendida nos termos da criança
universal e graças à vulnerabilidade que a pobreza lhe empresta); (2) ou alguém que, tendo
agido de modo inadequado (demonstrando ingratidão, revolta, comportamento agressivo ou
desafiador) perde seu estatuto de criança (o monstro, a peste, aquele que “já sabe muito bem o
que faz”) tornando-se, entre outras coisas, a encarnação do perigo. Ora, se a criança é isso ou
aquilo, o menino que ameaça, desafia e xinga não pode ser uma criança inocente e a ele só resta
a posição de verdadeira ameaça. Nestes termos, é difícil que a profissional envolvida na
interação consiga acionar o registro do jocoso, ou mesmo acionar sua autoridade etária, frente
ao confronto. O menino esbravejando na sua frente é, para ela, não mais um menino, mas
representa o perigo (o “bandido”, o “menor infrator”) que tanto teme.
Além disso, se é possível que um menino de 10 anos enfrente uma educadora e imponha
sua autoridade a partir de ameaças, é porque, de algum modo, sua “figura” (menino de 10 anos,
morador da periferia) pode representar perigo. Pedro, assim como outras crianças que
frequentam o Comosg, não são alheias ao modo como são representadas e vistas. ntendem que,
parte de ser morador de bairros periféricos, é ser visto como um “perigo em potencial” 95.
95 Aglair Bernardo (2007) analisa as imagens produzidas por câmeras de vigilância na cidade de Florianópolis,
demonstrando que o “olhar vigilante”, daqueles que monitoram as imagens produzidas por câmeras espalhadas
pelas ruas da cidade, por shoppings, prédios e lojas não é um olhar ingênuo, neutro. Corpos, gestos e estéticas
remetem a esquemas classificatórios que identificam “sujeitos suspeitos”. Jovens, de andar despojado, usando
jaquetas de moletom largas, bonés, capuz, são interpelados por esse olhar, são constituídos como “sujeitos
185
Conversando com um grupo de meninas do G2 e G3, aprendi que toda vez que elas vão ao
Shopping Center, um segurança as segue. Tainá tinha apenas 9 anos e já afirmava odiar ir ao
Shopping por isso, a gente se sente bandido, até quando vou com a mãe é assim. A professora
do curso de Preparação para o Mercado de Trabalho falou mais de uma vez em sala que seus
amigos a achavam corajosa por estar ali, num bairro perigoso. Um pequeno de 6 anos me
contou numa segunda-feira, quando lhe perguntei sobre o final de semana, que havia levado
uma “geral” da polícia no domingo à tarde ao lado do campo de futebol. Algumas das
professoras que conheci confessaram sentir medo de meninos e meninas de 6, 7 anos. São as
mesmas que nunca repreendiam ou falavam com os meninos mais velhos, por acreditarem que
eles realmente representavam perigo 96. Ou seja, não é um espanto que as crianças percebam
que podem representar a figura do “perigo” 97, principalmente os meninos. Sabendo disso, às
vezes, procuravam acionar esta imagem para conseguir o que desejam. Tudo se passa como se,
em alguns momentos, “testassem” esta possibilidade de interação; se funcionava, confirmavam
sua autoridade, se não funcionava, aceitavam o limite imposto. Claro que nem sempre
aceitavam os limites ou faziam o que lhes era pedido. Presenciei brigas, discussões e disputas
entre estes meninos e meninas e educadoras como Marilda e Tati (que entendo não acionarem
traços do humanitarismo com frequência). Em outras palavras, o que espero sublinhar não é
uma regra fixa, mas regularidades nas interações e os efeitos que modos diversos de interação
(e captura dos sujeitos) produzem. Mesmo porque, a hipótese é que esta “imagem” das crianças
como “perigo” (que se opõe à imagem de “criança vítima”), produzida pelo fluxo de discursos,
valores e relações de poder do humanitarismo, é dos modos de subjetivação que constituem os
sujeitos crianças.
Neste sentido, o que observei é que, para aquelas e aqueles que atualizam traços do
humanitarismo com mais frequência, estas “formas mais complexas do jogar-brincar”, dadas
nos termos do “is this play?”, sempre encontram uma resposta negativa, “não, isso não é uma
brincadeira”. Ou melhor, para estas profissionais esta não é uma possiblidade de relação. A
“imagem” dessas crianças como horríveis ou perigosas não permite que a relação se desenvolva
suspeitos” – perigo. As imagens desenham também um mapa da cidade, dividindo o espaço em zonas suspeitas –
as favelas – nas quais o olhar vigilante, em nome da Segurança Pública, adentra casas. Nestes lugares não há o
espaço privado. Sujeitos e espaços suspeitos, jovens e bairros populares.
96 Estas professoras não são exceções monstruosas, profissionais más que devem ser expurgadas, mas sujeitos que,
em algumas situações, reproduzem e produzem configurações, valores, medos que fazem parte do senso comum
ou, em outros termos, reproduzem e produzem modos de subjetivação e relações de poder hegemônicos. Por isso
não as nomeio, já que a questão aqui não é singularizar profissionais, mas trazer à tona efeitos das relações de
poder, modos de subjetivação e diferentes modos de captura do sujeito criança (vulnerável).
97Assim como sabem que, em determinadas circunstâncias, podem também ser capturados enquanto “vítimas”, já
que são interpelados desta forma com a mesma frequência.
186
nos termos, mesmo que paradoxais, do “is this play?”. Pensemos nas profissionais que deixaram
o Projeto depois de menos de um mês de atividades, alegando, entre outras coisas, o medo que
sentiam das crianças e do bairro. Para elas, crianças como Pedro representavam “perigo”, ou
algo forte o suficiente para fazê-las recuar frente às suas bravatas, como Luísa, e até mesmo
pedir transferência do bairro. Se não recuam, ou se amedrontam, entram em uma discussão com
as crianças, atualizando a possibilidade do sério, da briga, sempre em aberto no enquadre “is
this play?”. Era comum que algumas professoras estivessem constantemente gritando e
brigando com algumas crianças, discussões acaloradas. Gritos, ameaças e até lágrimas. Se
algum dos meninos ou meninas as desafiassem, a resposta era, quase sempre, o confronto. A
professora que estivesse envolvida falava ainda mais alto, ordenava e ameaçava. Nestas
ocasiões, era comum que algumas crianças não recuassem frente ao confronto e desafiassem, a
cada resposta, ainda mais a educadora. Muitas vezes, era preciso levar todos os envolvidos até
à coordenação.
Mas, como vimos, algumas profissionais não levam a sério quando as crianças tentam
fazer isso, ou seja, elas não ouviam suas bravatas no registro sério. Tati era perita em entrar no
registro da brincadeira, do jocoso, e negociar o que queria a partir dali. Nina, Marilda, Aristides
e algumas das professoras e funcionárias98, faziam isso, não com tanta frequência, mas também
com maestria. Entretanto, mesmo que não recorressem ao registro da brincadeira, atualizando
a relação dos termos do “this is play”, também não lhes conferiam autoridade para que os
ameaçassem ou enfrentassem. Nestes momentos, acionavam a hierarquia etária, tratando seus
confrontos como atos de crianças que, enquanto tal, não tem autoridade ou poder para
desestabilizá-los emocionalmente nem para desobedecê-los. Para isso, não gritavam nem os
ameaçavam; apenas repetiam o que desejavam das crianças num registro de voz mais sério. Na
falta de expressão melhor, repetiam o que queriam que as crianças fizessem ou deixassem de
fazer, com “autoridade” na voz. O importante é que o desafio, o confronto, não era “aceito” e
não os desestabilizava emocionalmente. E, com isso, não quero dizer que esses profissionais
não se irritassem com as crianças, que não ficassem brabos ou impacientes, pois ficavam. Como
mencionei anteriormente, acredito que a melhor maneira de descrever seu comportamento
possa ser encontrada nas reflexões de Aristides, quando afirmou ter aprendido (com Tati, Nina
98 Percebo, tardiamente, que as funcionárias envolvidas na limpeza do Comosg e na cozinha estão ausentes nas
discussões e descrições da tese. Isso não significa que estas mulheres não sejam ativas no cotidiano. Elas acolhem,
conversam e brigam com as crianças diariamente. Negociam regras, limites, dão conselhos, agrados, carinho e
broncas também. Como são moradoras do bairro, conhecem os familiares das crianças e seus problemas e são
parte das profissionais que se situam ao lado de Nina, Tati, Marilda e Aristides nas discussões sobre as crianças e
nas relações com elas.
187
e Marilda) a não levar para o lado pessoal. Aprendeu, como elaborou, que as crianças não
desobedecem ou desafiam a ele pessoalmente, Aristides, mas ao professor, à sociedade, ao
mundo que é injusto com eles muitas vezes. Para Aristides, entender isso foi entender que é
possível não se ofender com o comportamento das crianças, mas também, como coloca,
entender o contexto tod,o mas não deixar passar, tem que sempre ensinar respeito, limite né!
Outra dimensão, que nos fala sobre a recorrência de situações que podem ser enquadradas
nos moldes do “is this play” é que, sendo uma possibilidade, elas podem ser acionadas como
estratégia disciplinar, mesmo quando as crianças não estão ameaçando ou brigando nestes
termos ambíguos. Ou seja, pessoas como Nina, Tati, Marilda e Aristides “resolvem” situações
reais de conflito que, para as crianças e jovens, não estão dadas nestes termos. Lembro de Kaio
brabo, chutando, ameaçando Tati (ele não tinha dúvidas que “this is NOT play”), mas ela
abordou a reação dele nestes termos, e ele acabou relaxando um pouco. Ou seja, a ambiguidade
das relações do “is this play?” pode ser acionada também como uma saída para confrontos que
não começaram nestes termos. A linha que separa uma coisa da outra é sempre muito tênue e é
sempre contextual. Impossível traçar um padrão, um conjunto de regras. Esta é apenas uma das
possiblidades a serem atualizadas na relação que, entre outras coisas, traz à tona a proximidade
do lúdico e do confronto. Este traço de jocosidade, que nestas situações pode surgir como uma
alternativa ao confronto, pode também ser a causa do conflito. O deboche, as gracinhas estão
entre as maiores causas de visitas à sala da coordenação para uma conversa.
Por fim, é importante sublinhar que pensar as múltiplas faces e as disputas e desacordos
que emergem em torno do brincar no cotidiano do Projeto Renascer foi um caminho para pensar
sobre os modos de subjetivação da “criança (e infância) vulnerável”. Para isso, na primeira
parte deste capítulo exploramos as disputas em torno do brincar partindo de questionamentos
sobre onde, como e quando brincar, relacionando o modo como estas questões são abordadas
no Projeto Renascer com modos distintos de subjetivação das crianças, também abordados na
segunda parte do capítulo. Entretanto, nesta segunda parte, chegamos às discussões sobre as
concepções do “sujeito criança brincante” a partir das brincadeiras lutinhas e dos barracos de
brincadeira, examinadas a partir das considerações de Bateson sobre uma forma paradoxal de
brincar, aquela que é baseada não no compartilhamento da mensagem metacomunicativa “this
is play”, mas na pergunta “is this play?. Explorar estas relações nos ajudou a refletir sobre as
diferentes concepções do “sujeito criança” e introduziu a questão de como estas diferentes
concepções podem influenciar as avaliações feitas sobre seus comportamentos. Isto é, explorar
o brincar nos permitiu introduzir questões que tocam aquilo que é entendido como “bom” ou
“mau” comportamento. Vejamos a seguir com mais atenção como estas avaliações são traçadas
188
e como as profissionais do Projeto Renascer e do Comosg lidam com as ações das crianças que
são entendidas como transgressões de regras e limitem.
189
Capítulo 4
Transgressões, resistências e participação. As conversas e o caderno
No final da tarde, entro na sala da coordenação para pegar minha mochila e Kaio está
sentado na cadeira da coordenadora, girando lentamente. Há outras crianças por ali,
conversando. Ele está com um par de óculos de plástico azul vibrante, empréstimo do Mr.
Potato largado em cima da mesa. Quando me vê Kaio diz, Tati, tira uma foto aí de eu pagando
de coordenador. Nisso, cruza os braços e faz uma cara séria, bicudo, cômico. Achei impossível
não rir, Kaio fazia graça. Rio. Nisso ouço, logo atrás de mim, a voz de uma das professoras,
braba: saí daí Kaio e vai embora. Para de encher o saco e de mexer no que não é teu! Kaio
olha por sobre os óculos, se debruça na mesa e fala com seriedade, calmamente, não é assim
que a gente fala com os colegas professora. Vamos fazer uma reflexão e conversar da
importância de manter o respeito com os colegas. Todas crianças que estão por ali riem. Kaio
imitou Aristides muito bem. A professora, porém, não acha graça e sai da sala dizendo, menino
folgado, só serve pra incomodar!
*
Kaio era um menino de 10 anos, considerado por muitas das professoras do Projeto
Renascer um grande problema, uma peste, debochado, não tem respeito, mimado, folgado, bem
grandinho para saber o que está fazendo, impossível, horrível. Parte do que irritava estas
professoras era a atitude que descrevi acima. Kaio adorava fazer gracinhas, debochar, como o
encontramos no capítulo anterior, escondendo a máquina fotográfica, falando sobre fotos de
cachorros cagando, só para ver minha cara. Kaio também se metia em outros tipos de confusão:
brigava com colegas, desafiava as professoras, trocava objetos (ora aparecia com um tênis, ora
com um celular, ora com óculos de sol 99). Como tinha dificuldades para se concentrar,
principalmente se tivesse que ler algo, não ficava parado por muito tempo; andava pela sala das
99A troca de objetos entre crianças era uma das questões que surgiam no cotidiano e que eram acompanhadas com
atenção. A maioria delas trocava objetos com frequência. Os adultos responsáveis pelas crianças no Projeto
Renascer entendiam que deviam manter estas atividades sob vigilância por algumas razões. Primeiramente,
temiam que as crianças mais novas, ou mais ingênuas, fossem enganadas pelos mais velhos. Além disso, às vezes
as crianças trocavam objetos que tinha acabado de ganhar, ou que não tinham autorização para trocar, o que poderia
causar-lhes problemas em casa. Havia também o perigo de, a partir das trocas, encontrarem-se inseridas em redes
de trocas que envolviam ítens roubados. Tênis, celulares e bonés eram os objetos mais preocupantes neste sentido.
A maioria das vezes, quando uma criança trocava algo que parecia suspeito, as coordenadoras “rastreavam” os
objetos para garantir sua procedência e, caso alguma coisa estivesse sob suspeita, seria confiscada e avisavam pais
ou responsáveis.
190
oficinas que exigiam concentração, conversa com os colegas, mexia em coisas que não devia 100.
Se alguém lhe interpelasse e o repreendesse, raramente aceitava os limites impostos
passivamente; alguns dias ralhava e ameaçava, outros respondia com gracinhas. Nestas
situações, suas respostas eram rápidas, sua mente ágil e seu temperamento volátil. Ele, assim
como alguns outros meninos, era considerado por parte das funcionárias como um grande
problema; para outras, Kaio era um desafio. Mas todas concordavam que, em determinados
momentos, era preciso repreender Kaio, assim como era preciso repreender aquelas e aquelas
que faziam algo considerado problemático, errado. No entanto, o modo como as funcionárias
lidavam com as crianças nestes momentos, o que consideravam digno de uma repreensão mais
dura e quais as consequências, para as crianças, dessas ações, variavam consideravelmente entre
as funcionárias.
Neste capítulo vamos abordar estas diferenças e as ações das crianças que são
consideradas, em determinadas situações, como afrontas, desafios, desobediências, desrespeito;
enfim, que são consideradas transgressões às normas e regras que deveriam obedecer. Interessa
explorar quais ações são consideradas transgressões, em que contextos e como aqueles
envolvidos na situação lidam com estes momentos de quebra. Um dos caminhos para
refletirmos sobre as transgressões das crianças, o modo como são abordadas e suas
consequências, vai ser examinarmos o caderno no qual os eventos considerados mais graves
são registrados. Além disso, vamos examinar as conversas na coordenação. Devido à
centralidade dessas práticas no cotidiano da instituição, neste contexto de análise os cadernos
e as conversas são abordados como dispositivos disciplinares (FOUCAULT, 1984) e práticas
éticas (FOUCAULT, 1997). Como tal são instrumentos de educação moral, acionados em
momentos de “quebra moral” no fluxo cotidiano. Eles funcionam como momentos de reflexão
ética (ou “demanda ética” nos termos de Zigon (2007)), nos quais é importante marcar para as
crianças quais valores e práticas devem ser perpetuados e quais atitudes são desencorajadas 101.
100 Apesar de ter 10 anos e de estar frequentando o quarto ano, Kaio não sabia ler. Ele reconhecia a maioria das
letras, mas tinha dificuldades para juntá-las. Percebi isso no dia que fui à sua casa, quando ele me pediu para ler
um gibi para ele. Naquela tarde, Kaio decidiu me contar seu segredo, envergonhado e me pediu para que não
contasse isso para seus colegas. Já o conhecia há mais de um ano e somente naquele momento entendi porque era
tão difícil para Kaio acompanhar as oficinas de Reforço Escolar e de leitura propostas.
101 Para Jarret Zigon (2007), um caminho possível para a pesquisa sobre moral na antropologia é o foco nos
momentos que denomina “moral breakdown” (traduzido livremente aqui como “quebra moral”). Segundo o autor,
na maior parte do tempo somos sujeitos morais que avaliam, escolhem e hierarquizam sem que precisemos parar
o fluxo cotidiano para ponderar nossas ações. Ou seja, agimos moralmente sem que seja preciso avaliar cada ação.
No entanto, às vezes ocorrem “quebras” nestes fluxos, ou porque nos deparamos com situações inusitadas, sobre
as quais é preciso refletir, ou porque alguma regra/norma é quebrada, um valor tensionado. Nestes momentos,
denominados pelo autor de momentos de “demanda ética”, somos obrigados a refletir sobre as ações em questão,
ponderando valores, normas e escolhendo o melhor curso de ação. Os momentos de “demanda ética”, segundo o
autor, são também momentos em que nos colocamos (e nos constituímos) enquanto sujeitos morais.
191
Como vimos nos capítulos anteriores, para a coordenação do Projeto Renascer e direção
do Comosg, se é importante contribuir na formação das crianças enquanto sujeitos políticos
(cidadãos), é de igual importância contribuir para sua formação enquanto sujeitos morais; daí a
importância das conversas, das quais as anotações no caderno são, quando se acredita ser
necessário, o registro. No entanto, as conversas e o caderno não são os únicos modos de lidar
com as questões disciplinares e os momentos de quebra que emergem no cotidiano. Educadoras
e funcionárias repreendem e corrigem as crianças com frequência no dia a dia, sem que seja
necessário a recurso da coordenação. Desta forma, interessa também abordar alguns desses
momentos e compreendê-los em relação aos diferentes efeitos que produzem.
As transgressões, e desvios do comportamento desejado (que vão desde atos de
desobediência, “gracinhas”, desafios a autoridade, até fazer “corpo mole”, dissimulação (ou se
fazer de rogado), submissão falsa, ignorância fingida), são abordadas aqui também como
momentos em que as crianças oferecem resistência às manifestações de poder que as interpelam
e constituem. Isto é, as transgressões e os desvios de comportamento são entendidos também
como “formas cotidianas de resistência” (SCOTT, 2002) acessíveis às crianças; além disso,
podem ser também abordadas como formas de “participação” (RIBEIRO, 2015) das crianças
em um cotidiano que, muitas vezes, não podem controlar. Por fim, interessa refletir sobre o que
as diferentes abordagens em relação ao comportamento “transgressor” das crianças nos falam
sobre o modo como a coordenação do Projeto Renascer entende o trabalho que desenvolvem
lá.
192
4.1. Pequenas transgressões?
Todos os dias no Projeto Renascer, em algum momento, alguma criança fazia algo que
era considerado “errado” e era, de algum modo, repreendida, fosse por alguma das funcionárias
ou por outra criança. As broncas e repreensões eram quase tão comuns quanto as risadas, gritos
empolgados e o barulho de pés correndo. As vozes que repreendiam surgiam, às vezes irritadas,
às vezes resignadas, às vezes bem humoradas e às vezes exasperas, repreendendo meninos por
insistir, pela milésima vez no dia, em pegar as pipas no horário errado; meninas por brigarem
sobre a ordem da fila; crianças por saírem do Comosg sem autorização; por brigarem; por
brincarem de lutinha; por chutarem a bola de futebol dentro da instituição; por pegarem a bola
sem pedir autorização; por não entrarem na oficina no horário devido; por se fazerem de
rogados e ignorar os pedidos das professoras; por se fazerem de bobos; por fazerem gracinhas,
brincadeiras sem graça; por estarem na coordenação no horário da oficina; por não respeitar a
fila do refeitório; por não lavarem as mãos antes de comer ou puxarem a descarga depois de
usar o banheiro; por não usarem tênis para jogar futebol; por jogarem a mochila no chão; por
correrem no corredor; por subirem na grade da janela; por mexerem nas coisas dos outros; por
não respeitarem as professoras; por não respeitarem o colega; por conversarem demais; por não
pararem quietos...
193
Enfim, a lista é quase interminável, pois, como aprendemos com Foucault (1997), no
espaço esquadrinhado pelo poder disciplinar, “funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade
(desatenção, negligência, falta de zelo), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo
(atitudes ‘incorretas’, gestos inadequados, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência)”
(FOUCAULT, 1997, p. 149). Neste contexto, as pequenas transgressões diárias, como as
mencionadas acima, podem ser abordadas como “formas de resistência cotidianas” a um poder
que as conforma e constitui. Empresto a expressão “formas cotidianas de resistência”, do
historiador James C. Scott (2002), que a aciona para analisar a resistência camponesa. Scott
(ibdem) argumenta que, para “trabalhadores que operam, por definição, numa desvantagem
estrutural e sujeitos à repressão”, as formas “cotidianas, fragmentadas e difusas” de resistência
são muitas vezes a única forma de resistência possível. Se me permito dialogar com sua análise,
proposta para pensar um contexto tão diverso da presente tese, é porque entendo que as crianças,
assim como os camponeses dos quais fala Scott, encontram-se em uma posição de
“desvantagem estrutural e sujeitas à repressão”, ou seja, são sujeitos que tem muitas de suas
ações delimitadas por aqueles que ocupam uma posição estruturalmente superior. Para as
crianças, a possibilidade de grandes rebeliões ou revoltas está ausente, ou seja, reverter, de
modo permanente, as posições estruturais etárias e institucionais nas quais se assenta o poder
disciplinar não é uma possibilidade. Neste contexto, o poder disciplinar organiza rotinas,
delimita espaços, gestos, discursos, rege os pequenos atos, disciplina, modela comportamentos,
organiza o tempo de modo produtivo. Para se opor a ele, muitas das resistências possíveis são
prosaicas, pequenas: não entrar na sala da oficina no horário determinado; fazer graça da
instrução de uma das professoras; pegar a pipa num horário errado; pedir a bola para várias
pessoas até que uma delas a pegue; fingir que não ouviu a professora.
Todos os dias, havia crianças que entravam correndo na coordenação, em busca de pipas
ou bolas. Esta era uma cena que se repetia sempre: um grupo de crianças entrava na
coordenação à procura de suas pipas (ou de uma bola). Uma das professoras vinha atrás e
ordenava, voltem para lá [para fora ou para sala da oficina], não é hora da pipa [ou bola] ainda.
As crianças saíam; minutos depois voltavam, queriam as pipas (ou bola), eram seguidos pela
professora que os mandava de volta para o pátio (ou para oficina); saíam, voltavam, seguidos
por outra professora... e a cena se repetia. Lembro da pequena Aurora, que uma tarde começou
suas tentativas de conseguir a bola, num horário em que deveria estar na oficina de Reforço
Escolar. Ela veio até mim e me pediu para ir até a coordenação pegar uma bola de vôlei para
ela e sua amiga jogarem. Sabendo das regras, perguntei quem era a professora que tinha
194
autorizado o uso da bola. Ela apontou para o professor de futebol que, coincidentemente, na
hora olhava em nossa direção. Ele negou. Aurora se afastou e, instantes depois, a vi na sala da
coordenação, pedindo uma bola para Marilda e apontando para mim. Não deu certo. Ouvi
Marilda mandá-la para a sala de sua oficina. Dali a pouco, Aurora estava do lado da professora
de Educação Física, que dava oficina para o G1 e tinha uma pilha de bolas ao seu lado. Não
ouvi o que disse Aurora, mas ela apontou para Marilda, que naquele momento atravessava a
área externa em direção ao Cafofo. Desta vez Aurora conseguiu o que desejava. A professora
lhe deu uma bola de vôlei. Ela foi correndo, com um sorriso no rosto, em direção à sua amiga.
Aurora conseguiu o que queria, jogar vôlei com a amiga. Foi criativa, persistente e
estratégica, demonstrou iniciativa e tenacidade. Todas qualidades valorizadas pelas educadoras
do Comosg que, em outra situação, renderiam a Aurora a alcunha de “menina esperta”; no
entanto, nesta ocasião, a tornavam “espertinha”. O espaço entre “esperta” e “espertinha”, entre
“ter iniciativa” e “desobedecer” é o espaço da norma. Quando as crianças demonstram esta
mesma iniciativa, criatividade e tenacidade em relação a algo legitimado pela norma, suas ações
são avaliadas como positivas. Se o que fez foi errado, uma transgressão, ela o é a partir da
perspectiva da norma. Contudo, para Aurora seus atos podem assumir outros significados.
Assim como muitas das ações das crianças que são avaliadas como transgressões e podem ser,
para as crianças, modos de realizar as atividades que lhes interessam, de concretizar seus
desejos, expressar desconforto, lidar com frustrações, agir no mundo, encontrar caminhos para
realizar atividades que consideram interessantes, elaborar aprendizados, lidar com o tédio etc.
Neste espaço, entre o que é legitimado pela norma (ou pela autoridade que pode fazer a norma)
e o que as crianças fazem cria-se atrito; microconflitos emergem e a imposição de
micropenalidades. Neste jogo, as professoras se frustram e sentem que são, continuamente,
desrespeitadas. As crianças se inquietam porque sentem que são continuamente tolhidas.
Eu assistia uma oficina com o G1, quando um grupo de crianças tinha uma figura para
recortar e não havia tesouras suficientes para todas as crianças, então, enquanto algumas
recortavam, outras esperavam. A instrução, repetida algumas vezes pela professora, era que as
crianças não conversassem entre si. Era o início da tarde, uma ou duas crianças, sonolentas
dormiam nas carteiras, enquanto outras recortavam, algumas conversavam baixinho. A
professora estava separando material para a próxima etapa da atividade na frente da sala.
Kaique, um pequeno de 6 anos, se remexia na cadeira inquieto. Era visivelmente difícil
para o menino ficar parado. Depois de alguns minutos, ele virou para um lado e se esticou todo
em direção à sua colega, quase caindo da cadeira. Só não caiu porque usou a carteira dela como
apoio; seguro, pediu a tesoura para a menina, que ainda recortava seu desenho. Como ela não
195
podia lhe dar a tesoura, começou a conversar com ela. Nisso, foi repreendido: senta direito
Kaique e espera a tua vez de usar a tesoura com calma. Sentou direito, por instantes. Levantou
e começou a andar pela sala, olhando o trabalho dos colegas. Senta Kaique, já falei. Kaique
sentou quieto, por 3 segundos. Virou então para o outro colega e começou a conversar
empolgado, quase caindo da cadeira novamente. Para quieto um pouco Kaique, disse a
professora. Kaique parou. Pouco depois, levantou novamente, foi até Giovanna, que dormia
com a cabeça apoia nos braços cruzados sobre sua carteira. Ele parou atrás dela e lhe deu um
tapinha na cabeça dizendo: acorda Giovanna. Ela acordou, muitas crianças riram. Ao ver
Kaique e entender o que acontecera, Giovanna dispara: professora, o Kaique me bateu! A
professora, séria e com a voz alta, o repreende mais uma vez, Kaique, para de incomodar! Vai
sentar, é a última vez que eu aviso, se você fizer mais alguma coisa vai pra coordenação.
Kaique para e senta. Momentos depois, conversa com um colega, novamente inclinando a
cadeira para o lado. A professora vê e comanda já falei pra sentar direito Kaique! E para de
incomodar os colegas! Kaique para. Levanta logo em seguida, vai até o outro lado da sala pegar
a tesoura de uma menina que já havia acabado de recortar. Volta correndo. No caminho derruba
uma cadeira e uma caixa de lápis de cor, fazendo um enorme barulho. É a gota d’água para a
professora. Ela olha para ele irritada e diz, eu avisei Kaique, que da próxima vez você ia para
a coordenação! O menino respondeu prontamente, mas é injusto professora, eu só fui pegar a
tesoura!
Kaique obedeceu a professora imediatamente todas as vezes que ela pediu para sentar,
parar, ficar quieto. O motivo que o leva até a coordenação, em sua opinião, é injusto, já que ele
havia levantado para pegar a tesoura. Além disso, ele havia obedecido prontamente a professora
em todas as suas intervenções anteriores. Já a professora fica frustrada por ter que
continuamente pedir-lhe que pare quieto, sente que o menino não a respeita (que foi o que
relatou para a coordenadora minutos depois). O que para ela eram pequenas transgressões,
pequenas afrontas à sua autoridade como professora, para Kaique eram tentativas de pegar a
tesoura, de conversar com os colegas enquanto esperava, oportunidade de zombar de uma
colega que dormia; enfim, momentos nos quais Kaique “participava”, interagia com o mundo.
Em nenhum momento ele se recusou a obedecer a professora e a desafiou. É neste sentido que
entendo que estas “formas cotidianas de resistência” ou transgressões podem também ser
abordadas enquanto modos de “participação” das crianças em seu cotidiano. A perspectiva que
me permite abordar as transgressões e resistências das crianças como formas de “participação”
delas em seu cotidiano é inspirada por discussões como a desenvolvida por Ribeiro (2015). Em
um artigo no qual discute a importância de etnografias da participação de crianças e
196
adolescentes em contextos de “proteção à infância”, a autora contrapõe a noção de participação
como “tomar a palavra” (ou “dar a palavras às crianças”) à uma perspectiva etnográfica, que
está interessada nos modos como as crianças tomam parte nas relações cotidianas (RIBEIRO,
2015)102. Sua crítica à primeira acepção de participação infantil, aquela articulada tendo em seu
centro a noção de “dar voz” às crianças, é que ela é construída sob o pressuposto da “falta de
participação ou voz”, que invisibilisaria formas outras de participação, acessíveis às crianças, a
partir de uma visão adultocêntrica. É neste sentido que abordo os atos de desobediência, as
gracinhas, desafios à autoridade, etc, como atos de participação das crianças, como modos
como as crianças “tomam parte nas relações cotidianas”. Afinal, a elas não é permitido fazer as
regras da instituição, organizar os horários ou rotinas a que são submetidas. Penso que estas
pequenas transgressões cotidianas podem ser abordadas enquanto “espaços minúsculos de ação,
nos quais as crianças se movimentam, em interação, e que podem ser tomados como espaços
de micropolíticas” (RIBEIRO, p. 51), nos quais “negociam” suas possiblidades de ação e a
partir dos quais “resistem” às investidas do poder que as constituem e interpelam.
Além disso, muitas vezes, se as crianças expressam diretamente algum desejo em relação
ao que querem fazer em determinado momento, alguma crítica, opinião ou frustração em
relação às suas rotinas, obrigações ou ao que se espera delas, são repreendidas e/ou
deslegitimadas. Como fez a professora do Curso de Preparação para o Mercado de Trabalho,
quando Luana, uma das meninas do G3 ali presentes, comentou que sua rotina corrida, com a
escola, o Projeto Renascer e suas obrigações em casa era cansativa. A professora discordou
102 O trabalho de Ribeiro é acionado aqui como um exemplo de uma longa linha de estudos sobre crianças e
infâncias que, partindo de uma perspectiva etnográfica, buscam trazer ao primeiro plano da análise os modos como
as crianças participam ativamente de seu mundo social. Neste sentido, ver COHN (2000, 2005), BRITO (2014),
GREGORI (2000), LOPES DA SILVA (2002), TASSINARI (2009, 2015, 2016), PIRES (2010), OLIVERIA
(2005), CARDOZO (2016), FARIA (2014), entre outros.
197
com a cabeça e respondeu: Eu já fui jovem, sei que isso não é assim, é sempre história. Vocês
são felizes e não sabem, nessa vida boa, só tem que estudar e vir pro Projeto. Naquele dia, a
professora conversava com um grupo de meninas e meninos, alguns do G3 e outros que não
frequentavam o Projeto Renascer e estavam ali apenas para fazer o curso. O mais novo entre
eles tinha 12 e a mais velha, 15 anos. Aquela era a primeira aula e a professora dizia que eles
teriam de aprender a levar a vida a sério e deixar de ser interesseiros. Isso porque, continuou,
vocês nunca querem nada com nada, se ajudam em casa é só pra poder sair, são uns
dissimulados, como qualquer adolescente. Foi neste momento em que Luana falou.Ela se
defendia, marcava que realmente tinha muitas responsabilidades, que cuidava da casa,
cozinhava, lavava roupas e ainda assim ia para a escola e para o Projeto Renascer.
A professora dialogava com uma noção de adolescentes centrada na experiência das
classes média e alta, às quais pertence. Para ela, assim como para outras profissionais que
trabalham no Projeto Renascer, esta é a imagem dessa fase da vida, pautada em suas próprias
experiências. Estas profissionais universalizam o período de “moratória social” que
experienciaram ou que proporcionam a seus filhos e filhas e avaliam o comportamento dos
jovens do Projeto Renascer a partir destes termos 103. Neste contexto, quanto mais próximas as
crianças estivessem de ser descritos como adolescentes e, como tal, receber toda a carga
negativa associada a este termo (os aborrecentes, como eram descritos), menos legítimas eram
suas avaliações e reivindicações e menor o espaço para participação avaliada como positiva 104.
Assim, quanto mais velhos ficavam, mais fácil era que suas atitudes fossem avaliadas como
transgressões e mais frequente eram os momentos em que recorriam às “formas cotidianas de
resistência”.
103 O conceito de “moratória social” tem origem no campo dos estudos da juventude, e diz respeito à separação,
temporal e espacial, dos jovens proporcionada pelos anos do ensino médio, típica da modernidade. Este é um
espaço limiar, no qual é permito que o sujeito “postergue várias exigências sociais, tais como trabalho, matrimonio,
ter filhos e formar o próprio lar” (GROPPO, 2015).
104 Havia, por parte de algumas profissionais, uma enorme dificuldade em “imaginar” uma vivência outra desta
fase da vida. Lembro de uma professora que, depois de ouvir de um menino de 6 anos que ele sabia trocar fraldas,
porque às vezes cuidava da irmã, o chamou de mentiroso. Outra professora duvidava que uma das meninas, de 7
anos, houvesse sido responsável na casa de sua mãe pelos trabalhos domésticos. Ela dizia que isso era impossível,
história da menina para sair da casa da mãe (a pequena havia acabado de seu mudar para a casa do pai). A dúvida
da professora nascia do fato de que a menina, quando chegou ao Projeto Renascer, não reconhecia letras ou
números, não sabia desenhar ou colorir e não sabia praticamente nenhuma brincadeira ou jogo infantil. Para ela,
qualquer criança saberia fazer essas coisas, que eram naturais. O fato de a pequena não saber, em sua opinião,
provava que ela tinha problemas neurológicos e de caráter (já que acreditava que a menina mentia sobre sua
experiência) e não que havia tido uma experiência outra da infância.
198
Vejamos como estas relações se dão e como as e os responsáveis pelas crianças no Projeto
Renascer interagem com elas nestas situações.
199
Tanto as meninas com a bola de vôlei, como Kaio no episódio no início do capítulo,
irritam e, de certa forma, confrontam as professoras com quem interagem nas situações
descritas acima. Em ambos os casos, as interações com as professoras começam porque as
crianças transgrediam as regras que deveriam determinar suas condutas. As meninas “matam”
sua oficina e, além disso, pegam a bola em um horário que não deveriam. Kaio senta na cadeira
da coordenadora e pega o Mr Potato sem autorização (o brinquedo deveria estar na caixa de
brinquedos). Estes fatos, por si só, já poderiam ser descritos como transgressões das normas de
conduta que poderiam render, como vimos, repreensões. No entanto, as crianças não “aceitam”
as repreensões passivamente. Kaio faz graça, leva a sério sua posição de “coordenador de
brincadeira” e, imitando Aristides, repreende a professora pela linguagem que usou com um
colega (o professor e coordenador Aristides de brincadeira). É engraçado, todas as crianças ali
presentes riem. Mas é também, na perspectiva da professora, uma afronta à sua autoridade. Ela
operava no registro do sério, repreendia o menino. Já as meninas, ao serem repreendidas,
ignoram a professora. É certo que a ouviram, já que mesmo eu, que estava ainda mais longe
dela, ouvi. Mas as meninas não aceitam a reprimenda fingindo que não a ouvem. Quando a
professora chega perto o suficiente para tornar esta atitude impossível, debocham de seu
nervosismo, enquanto, ao mesmo tempo, fazem o que lhes é pedido, devolvem a bola e vão
para a oficina. Mas não sem marcar que sua submissão à professora não é absoluta; desafiam-
na ao “largar” a bola para que role para longe, obrigando a professora a correr atrás dela e vão
para a sala rindo.
Em ambos os casos as crianças não só transgridem as regras, mas transgridem o
comportamento esperado delas frente a uma reprimenda, uma dupla afronta à autoridade. No
cotidiano do Projeto Renascer, estas ocasiões são as que representam o maior desafio para as
educadoras, ou seja, situação nas quais as crianças não apenas desobedecem, mas apresentam
um comportamento que desafia a autoridade que os interpela, seja com humor, como Kaio, ou
com dissimulação, como as meninas.
As estratégias das coordenadoras e professoras para lidar com estas situações eram
variadas e dependiam de inúmeros fatores, como acontecia na maior parte das vezes em que as
crianças opunham resistência. Tati, como vimos, muitas vezes recorria ao registro do lúdico,
do jocoso, para lidar com essas situações nas quais era preciso disciplinar as crianças. Fazia
isso de dois modos. Em primeiro lugar, ela reconhecia a possiblidade lúdica, jocosa de certas
interações que poderiam também dar origem a brigas ou serem qualificadas como desafios e
enfrentamentos, isto é, situações nas quais o enquadre “is this play?” era uma possiblidade.
Normalmente era assim que Tati fazia com que os meninos do G3, mais dispostos a se contrapor
200
a limites, fizessem o que ela queria, mesmo quando isso significava abdicar das atividades que
prefeririam fazer.
Lembro de uma tarde na qual um grupo de meninos jogava cartas na Sala da TV, alguns
do G2, outros do G3. Nenhum deles deveria estar ali, já que todos tinham alguma oficina e uma
das professoras já tinha lhes pedido para saírem dali. Eu estava com um grupo de crianças em
uma das mesas na sala, era o horário livre delas e jogávamos STOP. Quando Tati entrou na sala
e viu os meninos jogando cartas, ela foi direção deles dizendo,
mas que bonito! Vocês acham que isso aqui é casa de jogatinha meus quiridos?! Pedro e
Bernardo, vão os dois pra coordenação que eu sei que vocês têm coisa da escola pra fazer,
e o restante lá pra fora, tomar um sol, correr atrás da bola que é pra ver se melhora essas
cara de vocês que não tá bonito.
Um dos meninos a olhou sério e respondeu com firmeza, tô de boa de futebol hoje, vou
ficar por aqui. Eu já sou bonito. E continuou a dar cartas calmamente. Tati riu, mas é muito
folgado! Ô Zé Bonitinho, segue o bonde e vai tomar um ar, senão te pego pra ajudar a arrumar
a sala. Meio contrariado, ele levantou resmungando e saiu.
Nesta situação, Tati acionou a jocosidade para chamar a atenção dos meninos, mesmo
quando um deles parece não lhe dar atenção. Entretanto, ele também parecia abrir a
possibilidade da jocosidade. Mas Tati usava o registro do lúdico quando esta não era uma
possiblidade dada de antemão, acionando o enquadre “is this play?” mesmo quando a criança
que levava a bronca e discutia não o acionava. Enfim, Tati acabava sempre brincando com as
crianças, entre broncas, durante as conversas na coordenação. Ela não era a única. Algumas
funcionárias da instituição responsáveis pela cozinha e pela limpeza também agiam dessa forma
com certa frequência.
Outra estratégia acionada por Tati, Marilda e Aristides, era ignorar as crianças quando
essas opunham resistência fazendo gracinhas, zombando ou tentando iniciar um conflito.
Agiam como se não se sentissem interpelados pelas gracinhas ou respostas das crianças e não
reagiam diretamente às provocações. Numa das anotações do caderno, a conversa era
conduzida por Aristides. No caso em questão, três meninos haviam brigado por causa de cartas
de um jogo, que as crianças colecionavam e trocavam entre si. O relato registrado no caderno
descrevia a situação e seguia, afirmando que, quando chegaram na coordenação, os meninos se
recusavam a ouvir o que Aristides lhes dizia:
Breno não ouvia o que o professor tinha para falar, tirando sarro da cara do professor. O
professor esperou eles tirarem sarro e fez uma reflexão sobre o empréstimo de cartas .
201
Aristides recorria a esta estratégia com frequência. Ele permanecia impassível frente às
gracinhas e deboches das crianças e, assim que eles se cansavam, retomava sua conversa
calmamente, propondo as reflexões que acreditava serem necessárias. Essa era uma de suas
marcas enquanto professor, reconhecida facilmente pelas crianças; por isso a imitação de Kaio
relatada no início do capítulo havia sido engraçada. Na ocasião, a professora havia sido bastante
abrupta com Kaio quando o repreendera por estar sentado na cadeira da coordenadora. O
menino imitava a tranquilidade de Aristides frente a situações assim, quando crianças o
respondiam de forma abrupta ou desrespeitosa. Já, em outras ocasiões, as resistências das
crianças podiam resultar em uma discussão acalorada. Mencionei anteriormente uma dessas
discussões entre Nina e Ludmila. Ela havia sido chamada na coordenação para uma conversa
porque estava sempre atrasada e muitas vezes não participava das oficinas e o que começou
como uma conversa acabou como um barraco, nas palavras de Ludmila. No entanto, em relação
às coordenadoras, discussões como estas eram bastante raras. Nina e algumas funcionárias da
cozinha e da limpeza recorriam às discussões acaloradas com mais frequência. Contudo, seja
como fosse, este grupo de profissionais enfrentava, consideravelmente, menos problemas
disciplinares. No cotidiano do Projeto, algumas professoras recorriam ao recurso das conversas
na coordenação, instrumentos acionados apenas em casos considerados “mais graves”, com
mais frequência do que outras profissionais. Isto é, algumas dessas profissionais conseguiam
conter as transgressões e resistências com mais facilidade do que outras, como veremos a seguir
em relação à Marilda e uma das professoras.
Dois meninos do G1 estavam em cima da casinha do parquinho. Sua diversão era subir
no telhado da casinha e, logo em seguida, pular em cima de um monte de grama que estava ao
lado. Pulavam felizes. Normalmente meninos do tamanho deles não pulavam da casinha. Esta
atividade era proibida porque eram muito pequenos e a altura entre a casinha e o chão era muito
grande para eles. Contudo, o monte de grama e folhas deixados ali os possibilitava esta pequena
aventura fora do comum. Subiam, faziam uma enorme folia, mexiam com as crianças lá em
baixo, riam, faziam pose e depois pulavam, e voltavam a subir, repetindo a brincadeira como
só crianças conseguem.
Uma das professoras saiu lá fora e viu a cena. Ela caminhou com firmeza até a casinha.
Chegou perto quando os envolvidos na brincadeira estavam lá em cima. Ela olhou a cena, séria
e os mandou descer, já! Eles a ignoraram e continuaram a fazer pose, rindo. Ela insistiu, desçam
já daí! Vocês sabem que não podem subir no telhado da casinha! Eles continuaram rindo,
conversavam entre eles como se ela não estivesse ali. Eu já falei, tô mandando descer, disse,
dessa vez gritando. Nisso, um dos meninos resolveu olhar para ela, você não manda em mim!
202
Quero ver me fazer descer. Ela, bastante alterada continuou, vocês tão no espaço do Comosg,
eu mando aqui sim! Tratem de descer AGORA! Desçam ou eu vou chamar a Marilda. Ao ouvir
isso, o mesmo menino respondeu, ai que meda [medo], a Marilda uiii! Enquanto falava, fazia
gestos caricaturais de medo, para a alegria de todos que estavam ali; o outro menino repetiu,
entre risadas, a Marilda, que meda, uiuiui. Os meninos e as crianças por ali achavam aquilo
hilário e riam com gosto.
A funcionária então saiu à procura de Marilda, bufando. Pouco depois, Marilda apareceu
na porta de entrada da instituição, ela falou lá de longe com a voz firme, desçam já daí, e
venham pra coordenação que quero conversar com vocês. Os meninos pularam lá de cima e se
dirigiram para a coordenação. O falador foi resmungando entre os dentes, uia! o cara não pode
fazer nada que já perseguem.
No caso descrito acima, o que tirou os meninos do telhado da casinha, e acabou com a
brincadeira, não foi a menção da Marilda, que implicava, por parte da professora, a ameaça de
que iriam acabar na sala da coordenação, para uma conversa que iria, provavelmente, ser
registrada no caderno. O que parou os meninos foi a presença física de Marilda chamando-os.
Assim que ela apareceu e pediu que eles descessem da casinha, eles desceram e, mesmo que
resmungando sobre as supostas “injustiças” da vida, seguiram suas instruções. O que os levou
a obedecer a Marilda e não a professora que os chamava? Certamente a autoridade investida na
posição de coordenadora ocupada por Marilda ajudou. No entanto, Marilda e também Aristides
já eram respeitados na maior parte do tempo, mesmo quando Tati era a coordenadora. Assim
como algumas das funcionárias que trabalhavam na cozinha e na limpeza ou o professor de
violão.
Para entendermos esta questão, gostaria de lembrar do confronto entre Pedro e Luísa, na
sala da TV, mencionado no capítulo anterior. Como vimos, quando Pedro enfrentou Luísa, ela
recuou, conferindo autoridade ao menino. Argumentei que, em situações similares, alguns
profissionais, como Aristides e Tati, acionariam a possível dubiedade da interação (entendida
no enquadre do “is this play?”) e, a partir daí, do registro do jocoso, do lúdico, afirmariam sua
posição de autoridade frente às crianças. Argumentei também que, para que esta virada seja
possível, é preciso que aqueles interagindo com as crianças as percebam a partir de uma
economia moral que aceite a possiblidade da multiplicidade dos sujeitos. Isto é, é preciso que
quem interage com as crianças possa percebê-las a partir de múltiplas posições de sujeito. Se
as únicas posições de sujeito possíveis às crianças são as posições excludentes de “vítima” ou
“perigo”, o menino na frente de Luísa, bradando ameaças, só poderia representar o “perigo”, já
que estava longe da postura subserviente associada à vítima no humanitarismo. Se retomo esta
203
construção analítica é porque penso que ela pode nos ajudar a compreender por que algumas
funcionárias e funcionários têm, na maior parte do tempo, menos problemas disciplinares com
as crianças.
Por um lado, isso lhes permite um campo maior de negociação com as crianças. Se não
se sentem ameaçadas por elas, podem interagir com mais liberdade, ou seja, sentem-se livres
para confrontar e impor limites pois não temem por sua integridade física em nenhum momento.
Algumas profissionais, como Tati e algumas das funcionárias responsáveis pela limpeza e pela
cozinha, acionam a jocosidade com frequência; outras, como Marilda, permanecem no registro
da seriedade, mesmo quando as crianças tentavam confrontá-la com gracinhas e deboches;
algumas funcionárias da cozinha e Nina são consideradas pelas crianças como brabas; elas
impõem respeito e calam gracinhas e respostas espertinhas literalmente no grito. Aristides
mantém a calma estoicamente ou, como Tati, aciona o lúdico. O que todas e todos têm em
comum é que não têm medo das crianças, mas as abordam enquanto crianças, que, às vezes,
são irritantes, mal-educadas, desafiadoras, agressivas, chatas, teimosas, mas, ainda assim,
crianças. Entre estes profissionais, em nenhum momento este estatuto está em jogo; seu
comportamento desafiador, espertinho ou agressivo, não lhes retira este lugar social. E crianças,
enquanto sujeitos sociais, são múltiplas, educadas, respondonas, agressivas, carinhosas, chatas,
espertas e espertinhas. Além disso, sendo crianças, estão inseridas em uma hierarquia etária,
sujeitas à autoridade dos adultos. Isto é, qualquer que seja sua posição na hierarquia
204
institucional, professora, cozinheira, coordenadora, responsável pela limpeza, são
hierarquicamente superiores às crianças e parte da autoridade que exercem sobre as crianças
emana desta posição.
Já, para as professoras que percebem as crianças a partir das possibilidades dadas pela
economia moral do humanitarismo, determinados comportamentos das crianças extinguem a
possiblidade de que sejam entendidas como crianças. Nesta perspectiva, crianças são, por
definição, seres inocentes, vulneráveis, dóceis. Estas são característica morais das crianças.
Claro que esta perspectiva admite pequenas transgressões, desobediências e gracinhas, mas há
um limite105. A partir do momento em que a criança cruza esta linha, seu estatuto de “criança”
é posto em xeque, tonam-se bem grandinhos para saber o que estão fazendo. Ao cruzarem esta
fronteira, os sujeitos perdem seu estatuto de crianças, tornam-se sujeitos que, na maioria das
vezes, representam perigo. Neste movimento, a autoridade etária também é diluída; o medo
distancia, mas, ao mesmo, aproxima. A criança passa a exercer autoridade sobre a professora,
como fez Pedro com Luísa106.
Mas, independentemente de qual seja o pressuposto a partir do qual operam as educadoras
e educadores, às vezes é preciso conduzir as crianças até a sala da coordenação para uma
conversa que, por vezes, é seguida de um registro no caderno. Este é o grande rito disciplinar
(e ético) do Projeto Renascer. Passamos agora para sua análise.
105 Este limite é traçado com base em vários fatores que, muitas vezes, não são diretamente relacionados com os
comportamentos individuais das crianças. Neste sentido, questões de gênero e raciais fazem diferença: se a criança
é considerada “fofa” ou não, quem são seus familiares, o local de moradia. A combinação desses e outros fatores
é o que acaba por determinar os limites daquilo que é considerado aceitável no comportamento da criança e o quão
distante, ou próximo, ela está de cruzar a linha do “perigo”.
106 É interessante marcar que, nem sempre, é o comportamento da criança que faz com que ela cruze esta linha.
Nesta economia moral, como vimos, os pais ou responsáveis podem facilmente se converter nos algozes, que
“negligenciam” as crianças e, neste movimento, acabam por expor as crianças a situações que os tornam bem
grandinhos. Isso significa que, se as crianças têm uma família reconhecida como “estruturada”, dificilmente os
comportamentos desafiadores das crianças serão entendidos como ameaças. Ou seja, seus comportamentos,
mesmo quando muito parecidos daqueles considerados pestes, não são classificados desta forma. Lembro de uma
conversa entre um menino que frequentara o Comosg e uma das professoras que identifico como operando,
majoritariamente, a partir do humanitarismo. Nós três observávamos um grupo de meninos do G1 brincando no
final do dia. Alguns deles se engalfinhavam numa brincadeira de lutinha, derrubando algumas cadeiras que
estavam no pátio. Ao ver a cena, Jefferson comentou: nossa, vocês têm que ter muita paciência. Eu lembro como
a gente incomodava, eu e o Bento, sempre brincando de lutinha e sempre na coordenação pras conversas com a
Tati. A professora discorda com a cabeça e diz: o Bento sim, vê como ele acabou, mas você não, nunca foi
problema, tem uma família estruturada. Bento é um dos meninos dos quais falamos no início da tese. Ele havia
sido morto em função de conflitos gerados pelo tráfico de drogas; alguns de seus familiares também estavam
envolvidos. Jefferson era filho de uma família descrita por esta profissional como “estruturada”: sua mãe e seu pai
eram bastante presentes em sua vida e ambos tinham um emprego de carteira assinada (fato raro entre as crianças
atendidas pelo projeto). Para a educadora, mesmo que Jefferson e Bento fossem, quando crianças, melhores
amigos, era impossível lembrar deles como iguais.
205
4.2. O rito disciplinar e ético
Aristides entra na coordenação, com o semblante sério, conduzindo Tainá (10 anos),
Camile (9 anos), Glau (6 anos) e Gael (8 anos). Ele pede que as crianças se acomodem nas
cadeiras perto da mesa onde estou trabalhando, consultando documentos sobre o Projeto
Renascer. Ele fecha a porta da coordenação e ficamos apenas nós lá dentro. As três meninas
aproximam suas cadeiras e Gael fica mais afastado. As cadeiras formam uma espécie de meia
lua. Aristides senta-se de frente para os quatro e pergunta: Tainá, o que aconteceu? Ela aponta
para Gael e responde num só folego:
Ele bateu no Dudu. Pegou a bolinha dele e bateu nele. O Dudu tava jogando bolinha, o Gael
veio e pegou a bolinha dele, e depois bateu nele. A gente foi e bateu no Gael, eu dei um soco
e um chute, aí ele xingou a Camile. Eu só defendi meu irmão, porque ele é pequeno.
Aristides ouve atentamente. Quando Tainá termina seu relato, ele olha para Gael e
pergunta: Gael, o que aconteceu? Gael, endireita as costas e, num tom indignado, responde:
elas vieram, as três, e me bateram, me chutaram e xingaram. Ao ouvir isso, Aristides lhe
pergunta: e você? Bateu no Dudu? Pegou a bolica dele? Gael responde, desta vez falando
baixinho e olhando para as mãos: ele tinha jogado a bolica pra cima, aí eu fui lá e peguei. Acho
que bati nele, mas ele não queria a bolica. Assim que Gael começa a falar, Tainá e Camile
tentam interromper. Nisso, Aristides olha para elas e pergunta: o nome de vocês é Gael agora?
Esperem que agora é a vez do Gael falar.
Quando Gael termina, Aristides abre o pequeno caderno que tem nas mãos. Este caderno
contém anotações sobre o comportamento das crianças que foram levadas até a coordenação
para uma conversa. Ou seja, foram levados até lá por uma professora, funcionária ou
coordenadora, para conversar com alguém da coordenação, porque fizeram algo considerado
errado.
Aristides folheia o caderno e comenta, olhando para Tainá e Camile: é a terceira vez que
vocês duas aparecem aqui nesses últimos tempos porque bateram em alguém. Ele escreve algo
no caderno e continua: já conversamos sobre isso, não é assim que resolvemos problemas, não
é com violência, porque violência gera violência. Bater todo mundo sabe, conversar ninguém
sabe.
Tainá o interrompe, braba: sempre os meninos são os anjinhos, as professoras tratam eles
como anjinhos. Aristides argumenta que naquele momento ninguém estava falando isso, eu não
206
acho que meninos são anjinhos, aqui ninguém é anjinho. Tainá não se conforma e, com o apoio
de Camile, continua sua argumentação: mas as professoras agem como se os meninos fossem
anjinhos, é sempre nossa culpa! Termina a frase num tom indignado, bufando e, de cara
fechada, cruza os braços na frente do peito. Gael permanece calado. Ele está meio em pé,
encostado na mesa ao seu lado, com o rosto apoiado em uma das mãos, olhando para as
meninas.
Depois do desabafo de Tainá, Aristides, num tom um pouco impaciente, fala: a culpa é
de todo mundo. Não é batendo que a gente resolve nada. Os meninos não são anjinhos, nem
vocês. Agora, Tainá, fala para o Gael qual é o problema. Tainá endireita a coluna, olha para
Gael e fala, num tom mais calmo: só quero que tu não bata mais no meu irmão, primeiro porque
ele é meu irmão, e também porque ele é pequeno. Aristides então lhe diz:
e quando alguma coisa assim acontecer você pode vir falar comigo, e eu posso conversar
com o Gael ou outra pessoa, se eles não te ouvirem. Mas não é para bater, violência só gera
violência. Temos que conversar para resolver os nossos problemas na vida .
Mas Tainá não se convence e responde indignada: tá, aí ele vem aqui pra secretaria e o
Dudu fica machucado e ele fica sem nenhum machucadinho? Ele só vem aqui e nada acontece,
e o Dudu continua machucado, isso não é justo! Ao ouvir as palavras de Tainá, Camile
concorda entusiasticamente. Exasperado, Aristides fecha o caderno abruptamente e diz:
então tá! E é isso. Todo mundo bate em todo mundo e esta é a solução? Então vocês me
dizem qual é a solução, que eu já não sei mais. O que vocês me sugerem? Como a gente pode
resolver isso?
Termina de falar e olha para os quatro. Gael olha para os pés, Glau continua calada,
Camile olha para Tainá que responde: eu sei que não tenho razão, mas é que eu odeio quando
alguém bate no meu irmão. Aristides respira fundo e abre novamente o caderno. Obrigada
Tainá, diz ele. E, se dirigindo a Camile pergunta: e você Camile, porque bateu no Gael? O que
você tem para dizer para ele? Ela olha para Aristides e, com um sorriso no rosto, fala: ele bateu
no meu cunhado e eu fui lá defender ele. Intrigado, Aristides pergunta: como teu cunhado? Que
cunhado? Ainda mais sorridente Camile responde: minha irmã [Glau] é namorada dele, vive
beijando, abraçando ele, se é meu cunhado eu defendo.
As três meninas riem, e Gael, de cabeça baixa, ri também. Aristides volta a ficar
impaciente: isso não é piada Camile, não é hora de fazer piadas, estamos falando sério aqui.
Camile se endireita na cadeira, olha séria para Aristides e fala com a voz firme:
207
tu sabe que eu tinha quatro pessoas na minha família, agora já perdi duas, foi muito triste.
Só tenho duas pessoas agora, minha mãe e minha irmã, tenho que defender elas. Ele xingou
minha mãe, bateu no meu cunhado, tenho que defender!
é triste Camile, que você tenha perdido pessoas da tua família, mas não é isso que está em
questão. Não é porque você perdeu pessoas que pode bater nos outros, temos que conversar
e não bater nos outros.
Todos ficam em silêncio e Aristides continua: Tainá, o que você tem para dizer para o
Gael? A menina cruza os braços novamente, endireita a coluna e, olhando para Gael, diz: não
bate mais no meu irmão e desculpa pelo soco. Em seguida, sem que Aristides precise intervir,
Camile completa: desculpa Gael, e não quero que tu bata no meu cunhado de novo. Todos
riem, Glau quebra seu silêncio: desculpa por ter puxado teu cabelo Gael. Os olhares se voltam
para Gael, que está em pé ao lado de sua cadeira. Ao perceber que todos lhe observam, Gael
fala com convicção: eu já pedi desculpas! Aristides responde rapidamente: eu não ouvi. Sendo
seguido pelo eco das três meninas: eu também não! Gael murmura em alta velocidade:
desculpa. Aristides questiona: desculpa por quê? Gael responde baixinho, desculpa por... e
suas palavras se perdem no som que inunda a sala quando a porta é aberta e alguns meninos
entram em polvorosa à procura de suas pipas. As quatro crianças aproveitam a quebra e, com o
consentimento de Aristides, saem da coordenação. Ele escreve mais alguma coisa no caderno e
sai também. Uma das professoras o chama na área externa.
O caderno referido acima era uma espécie de “Livro de Ocorrências Escolares” (LOE),
tão comum nas escolas públicas brasileiras. No “Livro de Ocorrências Escolares” são anotadas
“situações que afetam de forma negativa o andamento das aulas” (FONSECA et al, 2014). O
nome lembra os Boletins de Ocorrência, emitidos em delegacias policiais para registro de um
suposto crime. Desta forma, não é de se espantar que, as anotações na maioria dos LOEs sigam
uma lógica similar aos Boletins de Ocorrências: data, nomes dos envolvidos, descrição do fato
e assinatura dos envolvidos. O Projeto Renascer não é uma escola, mas como vimos ao longo
da tese, isso não impede que muitas das práticas de seu cotidiano reverberem práticas escolares.
O caderno onde são anotadas as questões disciplinares é uma dessas práticas e as anotações ali
apresentam uma estrutura similar à estrutura apontada por outros pesquisadores para o LOEs
(FONSECA et al (2014); MORO (2003), GAMA (2009)). No entanto, ao contrário do que estas
208
pesquisas encontraram nos LOEs, no Projeto Renascer a linguagem usada nos registros do
caderno não remete à linguagem policial, não há “vítimas”, nem “acusados”, nem
“infrações”107. Além disso, no caderno há o registro do encaminhamento que a coordenação dá
ao caso, sendo isso necessário e, muitas vezes, a coordenadora ou coordenador que faz a
anotação registra alguns pontos centrais da conversa que teve com as crianças.
Assim, ali são anotadas, com mais ou menos detalhes, todas as confusões, enfrentamentos
e conflitos que alguma das funcionárias e funcionários na instituição percebem como graves o
suficiente para ser marcados, tanto no caderno quanto com uma conversa “oficial” com a
coordenadora ou o coordenador responsável. Pois o rito do caderno sempre envolve uma
conversa, isto é, uma tentativa de reflexão com as crianças envolvidas sobre seu
comportamento. Essas reflexões podem ser mais breves (como no caso descrito acima) ou
envolver longos diálogos que duram uma hora ou mesmo toda uma manhã. Na verdade, mais
importante que as anotações em si, são as conversas na coordenação. É esta dupla, caderno –
conversa na coordenação e seus encaminhamentos, o principal recurso disciplinar do Projeto
Renascer para situações consideradas mais problemáticas. Como dito acima, estas são situações
que as professoras, professores e funcionárias não conseguem resolver sozinhos, ou que
consideram que ultrapassaram o limite das pequenas disrupções diárias e devem ser marcadas
com uma conversa na coordenação e um registro no caderno. Às vezes, é o próprio coordenador
(ou coordenadora) quem conduz as crianças à coordenação, como no caso acima, porque
acredita que uma repreensão rápida não bastaria. Mas, nem sempre que alguém é enviado ou
chamado na coordenação, a conversa vai resultar em uma anotação no caderno. Algumas
conversas bastam por si só, ou seja, nem toda conversa vai para o caderno, mas toda anotação
no caderno envolve uma conversa. Além disso, nem todas as transgressões chegam até a
coordenação; na maioria das vezes, as crianças são repreendidas rapidamente pelas professoras
e funcionárias quando fazem algo considerado errado e, logo em seguida, todas e todos
continuam as atividades.
Quando as crianças são encaminhadas à coordenação, o primeiro passo é esclarecer os
motivos que as levaram até ali. Como veremos a seguir, na maior parte das vezes as crianças
chegam até ali ou porque brigaram entre si ou em função de um conflito com uma professora
ou funcionária da instituição. Para cada uma dessas situações há procedimentos diversos. Em
casos de brigas, é preciso ouvir todos os envolvidos, como acompanhamos com Aristides, as
meninas e Gael. Nas palavras de Tati, isso é importante porque atrás de um tapa normalmente
107 Mas isso não significa que alguns profissionais não acionem a linguagem e procedimentos policiais com as
crianças, como veremos adiante.
209
tem um xingamento. Muitos registros no caderno que envolvem brigas contêm uma descrição
do que cada uma das crianças envolvidas relatou aos coordenadores:
Pedro Lucas e Yuri estavam na rua, o Yuri achou que o Pedro Lucas estava falando dele.
Assim o Yuri começou a bater no rosto dele. Os dois ficaram grudados, se agredindo.
Importa esclarecer quem fez o quê durante as brigas por algumas razões. Primeiro, é
preciso responsabilizar as crianças pelo que fizeram, entender se alguém deve pedir desculpas,
ou se é preciso entrar em contato com pais e responsáveis, etc. A partir de uma perspectiva
disciplinar, se “castigar é corrigir” e não apenas punir, é preciso entender a transgressão em
seus detalhes, entender a conduta da criança em relação à sua própria trajetória e ao conjunto
de crianças atendidas, e a partir daí traçar um plano, um encaminhamento108. Além disso,
quando registrados no caderno, estes episódios permitem que se documente o comportamento
individual das crianças entendido como transgressor e que suas ações sejam compreendidas em
relação ao seu comportamento passado. Ao consultar o caderno, Aristides pôde ver que as
meninas já haviam sido enviadas à coordenação naquele semestre por um comportamento
similar.
Mas elucidar quem fez o quê em seus detalhes também é importante para que as crianças
possam refletir sobre suas ações. Para que possam tomar parte no processo que se espera, que
não seja apenas punitivo, mas resulte um uma mudança de comportamento duradoura. Assim,
é preciso que as crianças “trabalhem sobre si mesmas”, avaliem as ações que as levaram até à
coordenação e proponham alternativas para seus comportamentos. Nas conversas que
acompanhei, um dos questionamentos chave envolvia perguntar às crianças se elas acreditavam
que um tapa, ou um xingamento, havia resolvido de algum modo seu problema inicial; o que
poderiam ter feito para evitar a briga; que comportamento seria mais adequado. Enfim, o
108Lembro que, segundo Foucault (1997), no regime do poder disciplinar, a arte de punir “não visa nem a expiação,
nem mesmo exatamente a repressão” (1997, p. 152). Como demonstra Foucault, ela faz funcionar cinco operações
distintas: (1) é preciso “relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é
ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir”; (2)
“diferenciar indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra”; (3) “medir em termos quantitativos e
hierarquizar em termos de valor, as capacidades, o nível, a ‘natureza’ dos indivíduos”; (4) “fazer funcionar, através
desse medida ‘valorizadora’, a coação de uma conformidade a realizar”; (5) “traçar o limite que definirá a diferença
em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal” (idem, p. 152- 153).
210
objetivo era que as crianças elaborassem alternativas, imaginassem caminhos que não
passassem pelo confronto físico ou verbal. Como vimos acima, nem sempre esta parte conversa
acontecia sem percalços. Tainá questionou a justiça desse procedimento; afinal, seu irmão
ficaria machucado e o Gael sem nenhum machucadinho. Enquanto Camile procura tornar as
suas ações legítimas usando a perda (trágica, pois violenta e abrupta) de dois membros de sua
família como justificativa.
Já, caso as crianças fossem encaminhadas à coordenação em função de algum conflito
com as professoras ou funcionárias, o procedimento era um pouco diferente. Neste caso, a
professora ou responsável relatava o que havia acontecido e essa era a versão registrada no
caderno. Neste caso, só havia uma versão do conflito, a versão daquela ou daquele que ocupasse
a posição hierarquicamente superior, na qual estava investida a autoridade e legitimidade para
relatar o evento. Normalmente, a professora ou funcionária que mandava as crianças para
coordenação relatava a transgressão e voltava para suas atividades, deixando as crianças na
coordenação para a conversa. Aqui também as crianças eram incentivadas a refletir sobre o
modo como se conduziram durante a interação que resultou no conflito. A maioria dos casos
resultava em algum tipo de encaminhamento. Os mais comuns eram pedidos de desculpas
(como em relação à briga das meninas e Gael), e chamar os pais ou responsáveis para uma
conversa. Algumas vezes, as crianças eram suspensas das atividades (fosse por horas ou dias).
Por fim, caso houvesse alguma anotação no caderno, era preciso que as crianças assinassem
seu nome no final do registro, marcando assim sua responsabilização.
Esta era de certa forma, a “estrutura” básica deste mecanismo disciplinar e ético, acionado
quando alguém entendia que as crianças haviam cometido uma transgressão que passava dos
limites das pequenas transgressões cotidianas (fosse por sua gravidade ou em função da
repetição de pequenas transgressões). Vejamos agora, com mais cuidado o que os registros no
caderno nos dizem e o que eram as conversas na coordenação.
4.3. Os cadernos
211
Em 2012, foram 67 casos anotados no caderno: 53 envolviam apenas meninos; 6 apenas
meninas; 6 meninos e meninas; uma entrada era sobre a mãe que solicitou ajuda com o cartão
do Bolsa Família e outra, logo no início do ano, era sobre dependentes químicos usando o
espaço do Comosg109; 19 das anotações eram sobre um estudante apenas; 25 casos envolviam
dois estudantes; 12 das entradas envolviam três crianças; em 5 entradas quatro crianças estavam
envolvidas; em 3 entradas, cinco crianças e, em um caso, dez estudantes foram chamados.
Alguns estudantes aparecem apenas uma ou duas vezes nas anotações; outros aparecem mais.
Pedro Lucas e Yuri são os meninos que mais figuram nas páginas do caderno de 2012, cada um
estava envolvido em 8 casos; Ariel é a menina que mais aparece, 4 vezes.
Em 2012, em relação aos motivos que levaram aos registros, dos 67 casos registrados, 37
dizem respeito a brigas; 26 mencionam deboche, falta de respeito com a professora e responder
à professora; 4 são porque as crianças saíram sem autorização do Comosg; 2 por não entrarem
na oficina; 2 porque as crianças subiram no telhado da casinha do parquinho; 2 porque as
crianças desligaram o relógio de energia do Comosg; 1 por roubo de biscoitos; 1 por colocarem
palitos de sorvete no aparelho de DVD; 1 por que a crianças estavam mexendo nas coisas de
um colega sem autorização e, finalmente, 1 porque a menina estava querendo se fazer de
adolescente.
Já em 2013, foram 104 entradas no caderno: 86 envolvendo apenas meninos; 9 apenas
meninas; 8 com meninas e meninos. Uma das anotações é sobre a visita de uma mãe que veio
falar sobre o comportamento dos filhos. Em 36 casos há apenas um estudante envolvido; em
37, dois estudantes; em 13 casos haviam três alunos envolvidos; em 4 casos, quatro alunos; em
9 casos, cinco alunos, e casos envolvendo seis, sete, oito, onze e treze estudantes apareceram
apenas uma vez. Novamente, alguns aparecem apenas uma ou duas vezes, enquanto outros
mais. Pedro Lucas aparece em 14 anotações, Bernardo em 13, Andrei em 12, Breno e Pedro em
9. Quanto às meninas, Ariel aparece em 4 anotações e Allana em 3.
Em relação às causas que levaram as crianças à coordenação e ao registro no caderno em
2013 temos, 50 casos que envolvem brigas; 39 que envolvem deboche, falta de respeito com a
professora e responder à professora; 13 registros são porque as crianças saíram sem
autorização; 5 porque não entraram para suas oficinas; 4 registros porque as crianças estavam
109 Nesta entrada lemos: Dependentes químicos usando o espaço do COMOSG. Solicitamos a Nina para tomar
providências. A Nina informou que vai pedir para o Jair fechar a porta hoje. Durante o trabalho de campo,
observei que era comum que dependentes químicos ficassem sentados na frente do Comosg. Eles chegavam
normalmente no final do dia e utilizavam o tanque que ficava na parte externa da instituição, permanecendo por
ali, muitas vezes, durante a noite. Contudo a presença deles não era contínua; muitas vezes não apareciam por
meses. De acordo com funcionários da instituição, moradores do bairro, eles desapareciam por causa de ações
policiais ou dos traficantes da região.
212
pulando da casinha do parquinho; 1 registro por jogar pedra numa janela e 1 registro por jogar
pedra em passarinhos; 2 registros por que a criança mexeu nas coisas de um colega sem
autorização; 1 registro porque crianças cuspiram no reservatório de água; 1 registro porque uma
criança apareceu com dinheiro no Comosg e distribuiu entre os colegas e 3 registros porque
alguma criança levou um celular diferente para o Projeto Renascer.
Há algumas coisas que chamam a atenção em relação a estes números. Primeiro, como
fica claro, a grande maioria das entradas nos cadernos diz respeito ao comportamento de
meninos. As meninas quase não figuram no caderno, mas isso não significa que não cometam
transgressões ou que não sejam repreendidas. No entanto, transgressões relacionadas a elas
acabam não sendo abordadas como questões que chegam ao ponto de serem registradas.
Voltarei a esta questão com mais demora a seguir. Percebe-se também que a grande razão que
leva os meninos à coordenação para uma conversa que termina com o registro no caderno são
as brigas, seguidas de perto por situações que envolvem o que é denominado deboche, falta de
respeito, fingir que não ouviu, responder à professora. Quanto ao número de crianças citadas
em cada um dos episódios, o mais comum são os casos que envolvem 1 ou 2 crianças. Na
maioria das vezes, se há apenas uma criança envolvida, ela é conduzida à coordenação e
repreendida por falta de respeito/deboche. Ou seja, nestes casos, o problema que leva a crianças
até a coordenação se desenrola, na maioria das vezes, entre a criança e uma das professoras.
Mas esse não é o único motivo para uma criança ir sozinha para a coordenação. Algumas vezes
elas acabam lá por ter faltado oficinas ou saído sem autorização. Já, em se tratando de duas ou
mais crianças, as brigas ganham destaque, seguidas de perto pela falta de respeito/deboche.
Nestes casos, muitas das anotações apontam estas duas razões juntas: as crianças tanto estavam
brigando quanto, quando repreendidas, debocham, riem da cara da professora, respondem (ou
seja, não aceitam passivamente a reprimenda oral, argumentando com a professora ou
professor). Quando os registros envolvem somente crianças, eles tendem a descrever as nuances
e reviravoltas da situação com detalhes: quem disse o que, quem fez o que, isto é, é possível ler
um registro das versões de cada uma das crianças sobre o ocorrido. Quando o problema envolve
crianças e uma professora ou funcionária da instituição, os registros tendem a ser breves e
contêm apenas a perspectiva da professora ou funcionária sobre o que aconteceu.
Um fato que chama atenção na comparação entre os registros nos dois anos é que número
de entradas entre 2012 e 2013 quase dobrou. Alguns fatores podem nos ajudar a entender este
aumento. Primeiramente, 2013 foi o primeiro ano em que Tati não estava mais na coordenação
do Projeto. Sem sua presença, as relações disciplinares mudaram um pouco. É inegável que
Tati era uma grande influência no cotidiano da instituição, já que estava lá há mais de 10 anos.
213
Sua ausência produziu efeitos e um deles foi no sentido disciplinar. Tati exercia uma autoridade
quase inquestionável; as crianças raramente a desafiam seriamente e tendiam a obedecer a seus
pedidos e comandos com mais facilidade do que a outras profissionais. Além disso, em 2013,
havia cerca de 40 crianças a mais matriculadas no Projeto. Outro fator que, na leitura de Marilda
fez diferença, foi que os meninos no “centro do caderno” (aqueles que aparecem na maioria
das anotações) em 2013 estavam frequentando o Projeto Renascer todos no mesmo turno. Em
2012, eles ficavam divididos entre o turno da manhã e o da tarde, e dois deles, em função de
atividades da escola, não iam ao Projeto todos os dias. Para Marilda, este foi um fator decisivo
para a escalada nos eventos problemáticos, juntou todo esse grupo, porque são adolescentes e
crianças que tem as histórias parecidas, muito fortes, e eles se identificam, chamam atenção,
juntou todo esse potencial deles pra confusão e foi isso. Assim, 2013, sem a presença de Tati,
com mais crianças e com o grupo de meninos mais problemático no mesmo turno, apresenta
quase o dobro dos registros no caderno.
O ano de 2013 viu também o aumento dos telefones celulares no bairro. Assim, uma
“nova categoria” de encaminhamento para a coordenação surgiu: a criança que aparecia com
um celular desconhecido. Em 2012, a maioria das funcionárias e funcionários da instituição
não tinham telefone celular, pais e responsáveis também não, nas fichas de matrícula era
bastante incomum encontrar um número de celular. Mas, em 2013, as coisas mudaram um
pouco. Os celulares ainda era artigos incomuns, mas não mais raros; cerca de metade das
funcionárias e funcionários já os tinham e algumas mães e familiares das crianças também. Ou
seja, mais celulares circulavam pelo bairro, mas não o suficiente para que uma criança com um
celular na mão não chamasse a atenção. Em um ambiente marcado pela precariedade financeira,
crianças com celulares ou com dinheiro o suficiente para distribuir entre os colegas (como
aconteceu em 2012) chamavam a atenção, como ficou devidamente anotado no caderno. Se já
havia um cuidado em relação aos objetos que eram trocados, quando celulares apareciam, este
cuidado era redobrado, e os responsáveis contatados.
Os problemas anotados no caderno nem sempre se limitam a questões disciplinares e nos
ajudam a refletir sobre a diversidade de questões que as profissionais que ali trabalham
procuram resolver. Em 2012, uma das anotações dizia respeito ao pedido da mãe de uma das
crianças matriculadas, que queria ajuda para aplicar pelo Bolsa Família. Esta era uma prática
comum, apesar de figurar no caderno apenas uma vez. Muitas moradoras do bairro, tivessem
ou não suas crianças matriculadas no Projeto Renascer, pediam a ajuda das funcionárias da
coordenação do Projeto Renascer para preencher formulários, acessar sites da Internet e
214
entender documentos. A maioria delas era analfabeta ou tinha dificuldades para entender os
meandros da burocracia estatal.
As anotações no caderno também nos permitem vislumbrar o lugar do Projeto Renascer
no bairro e o diálogo que mantém com outras instituições. Em algumas das anotações,
encontramos referências a problemas que aconteceram na escola onde as crianças estudam.
Muitas vezes são as próprias professoras que pedem ajuda às coordenadoras do Projeto
Renascer. Numa dessas ocasiões, a coordenadora registra que é preciso chamar a mãe de um
menino para que conversem sobre as agressões no Laura Lima. Neste caso, uma das
professoras da escola havia pedido à Tati ajuda para lidar com o menino que, segunda ela,
estava brigando demais na escola. Houve também um caso de suspensão, recurso que era usado
com bastante parcimônia, de uma menina porque ela havia roubado um objeto da Creche Local.
Consultando os cadernos também é possível vislumbrar o cuidado que as profissionais
tinham para que o que acontecesse no Comosg não extrapolasse suas fronteiras e fosse resolvido
“fora” do espaço e da estrutura institucional. Como em um dos casos relatados no caderno,
sobre uma briga. Segundo o relato, a mãe de Raul, um menino do G2, havia vindo a
coordenação reclamar que ouvira Maria Ísis, do G3, xingar seu filho de menina durante um
jogo de futebol110. A mãe estava muito nervosa e exigia uma providência da coordenação. O
registro continua afirmando que as coordenadoras conversaram com a mãe, explicando os
procedimentos em casos assim, fazemos uma reflexão com os envolvidos. Isto é, dentro da
lógica interna da instituição, seria necessário chamar Raul e Maria Ísis para que ambos
conversassem sobre o desentendimento. A mãe, ainda nervosa, decidiu não seguir o
procedimento padrão, mas levar o filho para casa. Em seguida, vem a parte do relato sobre a
conversa com Maria Ísis que, depois que a mãe de Raul foi embora, foi chamada na
coordenação.
Maria Ísis alega não saber o que está acontecendo, pois a mãe de Raul a ofendeu [...].
Conversamos no sentido de esclarecer o ocorrido e pedimos o máximo de calma, pois o
mundo está cheio de violências e que os nossos problemas sejam resolvidos no Comosg.
Orientamos também Maria Isis no sentido do tratamento também com outras crianças e que
suas atitudes sejam repensadas, pois gestos rudes podem refletir em nós mesmos.
Conversamos novamente com a mãe de Raul para que tudo seja esclarecido.
Tanto no texto do registro quando nas conversas que seguiram o episódio, era evidente
o cuidado com que a situação estava sendo tratada. Isso porque, Maria Ísis e Raul vinham de
110Como sabemos, dentro da lógica de relações de gênero pautadas pelo machismo, chamar um menino de menina
é ofensivo, já que as qualidades atribuídas ao feminino são vistas como pejorativas se acionadas para descrever o
masculino.
215
duas famílias que pertenciam a lados opostos nas disputas locais. Ambas as famílias eram
conhecidas, todos sabiam de suas desavenças, que já tinham escalado e envolvido confrontos
armados no passado. A preocupação das coordenadoras era que a briga entre Maria Ísis e a mãe
de Raul pudesse ser o estopim de algo maior. Por isso marcar, para Maria Ísis, para a mãe, para
o menino e no registro no caderno, a importância de procurar resolver os problemas que
surgiam no Comosg, no Comosg. Há referências a casos similares em outras entradas dos
cadernos, quando crianças ameaçam de chamar pessoas de fora para bater em algum colega
com o qual tinham um conflito.
Lembro do que dizia Tati, durante uma conversa na sala da coordenação. Os dois
meninos estavam ali em função de uma briga e haviam sido levados até a coordenação pela
própria Tati. Contudo, não foi exatamente a briga que os levou até lá. No meio da briga, Nathan
havia dito a Erik que chamaria o Fulano (um jovem do bairro) para bater nele, e o Erik tinha
respondido que ele chamaria seu primo para bater no Fulano. O problema era que, dizia-se no
bairro que, tanto Fulano quanto o primo Erik, estavam envolvidos no tráfico de drogas, mas a
partir de lugares diferentes.
Quando chegaram na coordenação, depois de dar oportunidade para que os meninos
contassem, cada um a sua versão da história, Tati marcou seu ponto: Nathan, tu prestou a
atenção no que tu falou? Por uma discussão de parquinho, tu quer chamar outro rapaz pra
bater num colega teu, aqui do Projeto! Tu não é assim cara! Nathan, com a voz presa na
garganta respondeu: ai Tati, mas é foda, ele fica me chamando de magrinho. Ao ouvir isso, Tati
216
sorri e diz com seu melhor sotaque manezinho: mas tu é magrinho quirido! Neste momento,
até Nathan sorriu. Tati continuou, agora com seriedade e firmeza:
Ele não precisa até chamar de magrinho, pode te chamar pelo nome, melhor, beleza. Agora,
você vai dizer assim, Erik, eu não gosto que me chamem de magrinho, isso me ofende. E tu
Erik, vai aprender a respeitar o colega! O cara não ri, não gosta do apelido, para com a
brincadeira. Respeita, deixa de ser bobo quirido. Mas uma coisa que vocês dois tem que
aprender na vida é que se foi você quem fez alguma coisa, é com você, não é com outra
pessoa. Você não pode ter uma discussão com alguém e chamar outra pessoa pra tentar te
representar. Isso é uma atitude covarde, senão um chama ciclano o outro o beltrano e as
pessoas vão vir brigar por uma coisa que não é responsabilidade delas!
Como no caso de Maria Ísis e Raul, a preocupação de Tati era que uma briga de
parquinho acabasse se tornando algo maior, caso pessoas de fora fossem chamadas. No
contexto em que vive, esta era uma preocupação constante, já que no bairro haviam facções
distintas disputando território. As crianças eram moradores de espaços controlados por grupos
diferentes e algumas delas tinham laços com pessoas envolvidas com grupos rivais. Em sua
conversa com os meninos, Tati dialogava com um valor que lhes é caro, a coragem, e a partir
daí procurava ensiná-los a responsabilizarem-se por seus atos, e a resolverem seus problemas
por si só. Como ela mesma já havia comentado comigo, era preciso se contrapor à lógica que
ela relacionava ao tráfico de drogas, a obrigação de “vingar a honra” de seus aliados. Isso era
ainda mais importante já que alguns meninos haviam perdido alguém próximo em confrontos
armados. As disputas do bairro nunca chegaram a causar problemas sérios dentro da instituição.
Contudo, se a convivência tranquila de crianças e moradores era possível na área do Comosg,
era também em função das pequenas intervenções cotidianas e do cuidado das coordenadoras
para que os conflitos que se desenvolviam no espaço da instituição não atravessassem a rua.
Neste sentido, as conversas na coordenação, como a que acompanhamos acima, eram
essenciais. Voltaremos a este ponto a seguir. Contudo, antes que possamos voltar nossa atenção
para as conversas, gostaria de explorar com mais detalhes uma dimensão específica dos
registros no caderno, a saber: o fato de que são os meninos (e não as meninas) seus grandes
protagonistas.
217
4.3.1. Os meninos do caderno e as meninas ausentes
Em 2012, dos 67 registros, 53 envolviam apenas meninos; em 2013, dos 104 registros,
86 envolviam apenas meninos. Alguns meninos figuram com mais frequência nos registros; em
2012, Bernardo e Pedro Lucas estão no centro de alguma confusão em 8 registros cada um. Já
em 2013, Pedro Lucas figura em 14 registros, Bernardo em 13, Andrei em 12 e Pedro e Breno
em 9 registros cada um. Muitas vezes, estes meninos aparecem no mesmo registro, ou seja, é
algo que faziam juntos que os leva até à coordenação, fosse uma briga e/ou sair sem autorização
e/ou faltar oficinas e/ou deboche, falta de respeito. É inegável que os meninos são os
protagonistas do caderno e que, mesmo entre os meninos, há alguns que estão “no centro” do
caderno. Sobre este aspecto dos registros no caderno gostaria de propor dois conjuntos de
reflexões interligadas. Em primeiro lugar, interessa refletir sobre esta discrepância, entre os
registros que envolvem as meninas e os meninos. Interessa compreender o que esta ausência
das meninas nos registros do caderno pode nos dizer sobre as construções de gênero entre as
crianças e aquelas e aqueles envolvidos em seu cotidiano. Em segundo lugar, gostaria de refletir
com mais cuidado sobre os meninos “no centro” do caderno.
Olhando os números do caderno podemos facilmente ter a impressão que as meninas
não cometem transgressões; afinal, entre 2012 e 2013 foram 168 registros nos cadernos e as
meninas figuravam em apenas 29. Mas, ao mesmo tempo, gostaria de ter em mente o que disse
Tainá durante a conversa na coordenação com Aristides, quando foi repreendida junto com
Camile, por brigas frequentes. Quando Aristides aponta as outras ocasiões em que elas haviam
brigado, a pequena demonstrara frustração, argumentando: sempre os meninos são os anjinhos,
as professoras tratam eles como anjinhos [...] é sempre nossa culpa! Penso que devemos levar
o que disse a pequena Tainá a sério. No entanto, como é possível que Tainá se sinta dessa forma,
se no caderno encontramos quase que exclusivamente situações que envolvem apenas
meninos? Proponho pensar sobre estas diferenças a partir de um jogo entre o visível e o invisível
que as relações hegemônicas de gênero ajudam a construir e acredito que o “caso do roubo das
paçocas” possa nos ajudar.
Era dia de Festa Junina. Crianças e professoras fantasiadas, brincadeiras e bandeirinhas.
Na hora do lanche da tarde, uma enorme mesa fora arrumada na área externa, com muitas
guloseimas juninas, paçoca, pé de moleque, maria mole, pipoca e salgados feitos pelo pessoal
da cozinha. Além disso, uma rede de supermercados havia doado muitos bolos. A mesa estava
bonita e farta. Quando as crianças foram liberadas das brincadeiras para comer, houve uma
enorme confusão: pequenas mãos ávidas agarravam paçocas, copos, bolos, pipoca. Algumas
218
professoras tentavam pôr ordem na bagunça, sem muitos resultados. As crianças se
amontoavam e se acotovelavam ao redor da mesa; algumas pegavam mãozadas de paçoca e pé
de moleque enchendo bolsos. Uma das professoras, vendo um grupo de meninos pegando mais
paçocas do que considerava adequado, se aproximou deles repreendendo-os. Ao serem
interpelados por ela, os meninos foram até a outra ponta da mesa, onde retomaram suas
atividades, estocando paçocas no bolso enquanto comiam bolo e pipoca.
A professora ficou ainda mais irritada. Ao ser parcialmente ignorada, juntou-se a outra
profissional, igualmente escandalizada com o comportamento dos meninos. Eu estava perto da
mesa, ao lado de Marilda, servindo refrigerante para as crianças quando as duas professoras
vieram até Marilda, então coordenadora, reclamar dos meninos. Elas relataram o roubo das
paçocas, indignadas, são sempre os mesmos Marilda, disse uma delas. Eles fazem por desaforo,
é essa falta de educação que eu não aguento, complementou a outra. Marilda ouviu as queixas
sem falar nada. Quando as duas terminaram, ela foi até onde os meninos estavam e disse com
calma, peguem só o que vocês vão comer, depois, no final da festa, o que sobrar a gente divide.
As duas professoras, que continuavam ao meu lado, avaliaram que a atitude de Marilda
havia sido muito branda. Ficaram ainda mais frustradas ao perceberem que Marilda conversava
com Nina, que disse em voz alta, olhando para as professoras, mas a festa é pra eles! Deixa
eles comerem o quanto quiserem!
Um tempo depois, não haviam mais paçocas da mesa. Era intrigante que o que eram
enormes pilhas de paçocas, fossem pratos vazios; havia, realmente, muita paçoca no início da
festa. Quando constataram que as paçocas já haviam acabado, as duas professoras voltaram a
demonstrar indignação com os meninos. Falavam sobre a má educação deles, a falta de respeito
em voz alta. Um dos professores de futebol, que também participava da festa, foi perguntar às
professoras o que havia acontecido. Logo depois da conversa, ele reuniu os meninos envolvidos
perto de uma das paredes da instituição. Ele lhes pediu que encostassem as mãos na parede,
com os braços estendidos e as pernas afastadas, o procedimento padrão das “gerais” policiais.
Cerca de 8 meninos, entre 6 e 12 anos de idade, levando uma “geral” do professor, que tirava
as paçocas que encontrava em seus bolsos. Em nenhum momento o professor gritou ou foi
agressivo com os meninos. Assim que ele pediu que colocassem as mãos na parede, eles sabiam
exatamente o que fazer, e o fizeram sem reclamar ou demonstrar estranhamento. Afinal, a
maioria deles, incluindo o menino de 6 anos, já havia “levado geral” da polícia em outras
ocasiões; aquilo era parte de seu cotidiano. Foram poucas as paçocas encontradas, só 11. Ao
final da revista, os meninos foram dispensados. Mas o mistério continuava, onde tinham ido
219
parar as paçocas? O consenso entre aquelas professoras e professores envolvidos nesta busca é
que os meninos tinham comido o que haviam pego e que iam passar mal a noite.
No final da tarde, quando as crianças começavam a ir para casa, Branca de Neve, uma
menina de 10 anos, grandes olhos e comportamento “exemplar”, parou do meu lado. Ela abriu
a mochila e discretamente me mostrou o que tinha dentro: um montão de paçocas! Com um
sorriso maroto no rosto e uma piscadela, ela fechou a mochila e foi embora.
220
paçocas, isto é, são extremamente visíveis. É estas expectativas que Branca de Neve dialogava:
sabia que ela estaria acima de qualquer suspeita naquela tarde.
Entretanto, é exatamente o que torna os meninos extremamente visíveis que, em outras
situações, os torna invisíveis. A sensação de Tainá, compartilhada por Camile, de que as
professoras não repreendem os meninos tanto quanto as meninas, pode estar ligada a esta
“invisibilidade” dos meninos, principalmente aqueles que são considerados “problemas”.
Meninos como Pedro, que constantemente desafiam as regras, confrontam tanto as figuras de
autoridade quanto os colegas, acabam, de certa forma, se tornando invisíveis. Muitas
professoras lidam com o desafio que estas crianças representam, ignorando-os. Isso lhes dá
mais liberdade, acabam circulando com mais facilidade pela instituição porque poucas são as
professoras que chamam sua atenção. Pedro, por exemplo, passou quase o ano todo sem
frequentar uma das oficinas com seu grupo, a própria professora comentou comigo. Ela disse
que, mesmo sabendo que o menino deveria estar em sua oficina, decidiu não insistir para que
ele viesse, nem avisou a coordenação. Segundo ela, fazer algo sobre o assunto, obrigar o menino
a entrar na sala só ia lhe causar problemas, já que ela o considerava uma peste. Ela argumentava
que o obrigar a entrar na oficina só ia fazer com que sua dinâmica de sala ficasse mais difícil,
porque Pedro a contrariaria durante toda a oficina, incomodando os colegas, fazendo gracinhas,
tirando a atenção de todo mundo 111.
Além disso, graças a questões levantadas no âmbito dos estudos de gênero, sabemos que
há uma tendência a monitorar e reprimir o comportamento das meninas com mais austeridade,
já que as expectativas sobre o comportamento considerado adequado para meninas tendem a
ser mais rígidas. Neste sentido, Tainá estava certa: as meninas são, realmente, interpeladas com
mais frequência para que ajustem seus comportamentos. Enquanto era possível para os meninos
ficarem sentados com as pernas abertas de modo displicente, por exemplo, as meninas eram
constantemente repreendidas por adotar esta postura. Também eram reprimidas com mais
frequência se apresentavam comportamentos considerados agressivos ou se falavam palavrão.
Isso não significa que as meninas não briguem, ou apresentem comportamentos mais
111As poucas meninas que representam desafios disciplinares mais sérios, como Ariel, a menina que mais figura
no caderno, ou Maria Ísis que, apesar de não aparecer nos registros do caderno, era considerada um problema,
também desfrutam, de certa forma, dessa invisibilidade. Mas as duas eram exceções, meninas que, graças à
agressividade que demonstravam quando confrontadas, eram evitadas por muitas professoras. Contudo já que a
maioria das meninas não apresentava um comportamento abertamente agressivo com frequência, elas não
desfrutam dessa dimensão de invisibilidade que vem da tentativa, por parte das professoras, de evitar o conflito.
221
agressivos. O que observei, neste sentido, era que elas eram mais cuidadosas em relação a isso,
mais “discretas”.
A primeira vez que percebi que as meninas também tinham seus momentos de
agressividade foi sem querer. Ao virar a curva do corredor, surpreendi Tete, peito estufado,
desafiando Augusto ao lado do bebedor. Tete tinha a metade do tamanho de Augusto, mas
avançava sobre ele decidida, dentes cerrados, prestes a brigar. Depois desse dia, passei a
observar as meninas com mais atenção e percebi que os momentos em que demonstravam
agressividade, brigavam entre si e com os meninos, eram muito mais frequentem do que eu
pensara. No entanto, elas eram, certamente, mais “discretas”, cuidavam para que não houvesse
professoras por perto. Ao contrário dos meninos, que brigavam e esbravejavam onde estivessem
(uma das razões para o número elevado de registros no caderno), as meninas, a maior parte do
tempo, só o faziam quando acreditavam que ninguém as observava. Se a cena do bebedouro me
impressionou, outras cenas vieram depois: Ema braba, empurrando a prima mais nova; Bárbara,
sempre quieta e doce, dando uma bronca em uma amiga enquanto a segurava pelo braço com
força; a pequena Valentina, com seus grandes olhos negros, chutando a canela de Pepe, que a
desafiava. No entanto, vi todas estas cenas de canto de olho, discretamente. Quando conversei
com algumas meninas sobre isso, perguntado se nunca brigavam, Pietra comentou que,
normalmente, menina briga no banheiro. Além disso, as meninas acrescentaram que, entre
222
meninas, o mais comum são os barracos. Mulher é barraqueira Tati, foi a explicação de
Júlia112.
O modo como as meninas interagem está ligado, entre outras coisas, com referenciais
do feminino que constroem uma corporalidade fluida, maleável, e possiblidades de ação
acolhedoras, gentis, maternais. Delas, espera-se que sejam sensatas, emocionais, mas não
agressivas. Já o modo como os meninos interagem está ligado, entre outras coisas, com um
modelo de masculinidade que valoriza o confronto físico, as demonstrações de força e
agressividade, falar alto, o corpo que ocupa espaço, duro113.
Vistos de longe, grupos de meninas e meninos demonstram este contraste, e as pequenas
disrupções nos modelos hegemônicos, principalmente nos modelos do feminino. Lembro de
observar, numa tarde ensolarada, dois grupos, um de meninos e outro de meninas, vindo da
Vila Cachoeira para o Comosg. Os meninos vinham andando. Eram cinco, bonés, bermudas e
chinelos. Dois deles carregam as camisetas displicentemente nas mãos. Faziam barulho,
ocupavam espaço, na calçada, na rua. Uns vinham mais à frente, outros atrás; distante, um
cachorro os acompanhava. Andavam arrastando os chinelos, com as pernas levemente abertas.
Os braços balançam ao lado do corpo, às vezes empurram aquele que estava ao seu lado. Um
deles enrolou a camiseta que segurava na mão sobre si mesma e, quando se deu por satisfeito,
começou a usá-la para atingir os colegas. Imaginei os estalos quando a camiseta bateu nos
braços, dorso e pernas dos outros meninos. Ele fez isso três ou quatro vezes, até que um deles
lhe deu um tapa na cabeça que fez seu boné voar longe. Do outro lado da rua, na calçada, o
grupo de meninas se movimentava. Todas estavam muito próximas umas das outras; eram 4
meninas entre 11 e 13 anos, braços dados, conversando, rindo. Quando uma das meninas da
ponta dizia algo, suas cabeças ficam mais próximas, como se trocassem confidencias.
Caminhavam juntas, uma pequena parede móvel de pernas, shorts, chinelos e risadas. Quando
um dos meninos falou algo para elas, ouvi uma delas gritar, ti fodi! Eles continuaram a mexer
com elas, elas os ignoraram mais um pouco, mas, logo em seguida, uma delas lhes mostrou o
dedo do meio dizendo algo que não ouvi, mas que, pela expressão em seu rosto, não era um
112 Este contraste entre a “passividade” demonstrada por meninas frente a figuras de autoridade escolares e seu
comportamento entre pares em espaços onde as professoras não circulam é apontado em outras pesquisas sobre o
tema. Neste sentido, ver Carvalho (2001), Pereira (2010), Santos (2007)
113 Penso que, em alguns aspectos, este poderia ser considerado o modelo de “masculinidade hegemônico” no
contexto do bairro. Nos termos propostos por Connel e Messerschmidt (2013), o conceito de “masculinidade
hegemônica” não deve ser compreendido como um termo fixo “é desejável eliminar qualquer uso da masculinidade
hegemônica como fixa, trans-histórico. Esse uso viola a historicidade do gênero e ignora a evidência massiva das
transformações nas definições sociais da masculinidade” (p.252). É exatamente esta característica a abertura para
as discussões de historicidade das construções de gênero e o reconhecimento da possibilidade de outras
construções da masculinidade que o torna interessante.
223
elogio ou gracejo. Todos atravessaram a rua. Os meninos ficaram ao redor da pedra na frente
do terreno do Comosg, as meninas vieram até onde eu estava e sentaram do meu lado. Uns
mala, ficam se achando, disse Pietra, se referindo aos meninos.
O que observei durante a pesquisa é que é exatamente esta construção da masculinidade
que a coordenação do Projeto Renascer procura disputar. Neste sentido, o trabalho de Aristides
com os meninos é esclarecedor. Sua figura oferece um contraponto à masculinidade
hegemônica. Aristides é um capoeirista, é forte, se vira desde muito novo contribuindo para o
orçamento doméstico, tem uma moto, tem uma ligação forte com a mãe, é temente a deus, todos
valores compartilhados com a construção da masculinidade hegemônica. No entanto, fala sobre
sentimentos e demonstra emotividade, não permite que os meninos falem de modo depreciativo
sobre meninas e mulheres ou “mexam” com elas, raramente responde a afrontas, não demonstra
agressividade ou briga. Como vimos, Aristides é conhecido por manter a calma mesmo frente
às afrontas abertas das crianças. Além disso, falava abertamente sobre o assunto, conversa com
os meninos sobre o que significa ser homem, sublinhando a importância da honra masculina,
mas a desvinculando do controle do feminino e da agressividade em suas conversas. Aristides
era acionado, pelas coordenadoras, como um exemplo para os meninos no “centro” do caderno.
Isto é, aqueles considerados como os maiores desafios do Projeto Renascer.
Quando Marilda falava dos meninos mais citados no caderno de 2013, ela inicia sua
fala comentando que todos eles têm em comum histórias parecidas, muito fortes. Neste
pequeno grupo, o mais novo dos meninos tinha 10 anos e o mais velho tinha 14 quando terminei
o trabalho de campo. São esses os mesmos meninos cujos nomes figuram na lista de
encaminhamentos ao Conselho Tutelar e que tiveram seus casos abordados na reunião a que
me referi anteriormente, juntamente com outros quatro casos. A maioria deles já circula nas
redes de Proteção à Infância e Adolescência há alguns anos. Suas experiências de vida eram
parecidas com a história de Ariel, a única menina que figura no caderno mais do que 3 vezes
(ela aparece 6 vezes em 2012 e 4 vezes em 2013). Um desses meninos teve seu caso
encaminhado ao Conselho Tutelar pela primeira vez aos 5 anos. Naquela época, o pequeno já
havia precisado de cuidados médicos por maus tratos algumas vezes. Outro, conhecido pelo
Conselho Tutelar desde muito novo, também já havia sido inserido no Sistema Socioeducativo,
tendo recebido uma medida socioeducativa por furto. Assim, eram sujeitos que representavam
224
quase de forma ideal tanto a figura da “vítima” (de maus tratos, negligência) quanto a figura do
“perigo”.
Estes eram os meninos mais invisíveis e visíveis do Projeto Renascer. Visíveis, pois
seus comportamentos, às vezes bastante confrontador e agressivo, chamava a atenção de todos
e todas, crianças e professoras. De certa forma, eles “ostentavam” sua força e autoridade. No
entanto, como vimos na descrição da interação entre Pedro e Luísa, e Pedro e Pietra, suas
demonstrações de agressividade eram, muitas vezes, mais um jogo do que um comando. Isto é,
algumas vezes, os meninos “brincavam” com a possibilidade de impor seus desejos a partir da
força, acionando a dubiedade das relações estabelecidas nos termos no “is this play?”. Quanto
mais seus interlocutores os levavam a sério, mais fácil era que se comportassem dessa forma e
quanto mais velhos se tornavam, mais comum era esta atitude. O que, ao mesmo tempo,
tornava-os cada vez mais “invisíveis”, pois a maioria das professoras e das crianças não se
sentiam seguros para confrontá-los sobre seus comportamentos.
Para a coordenação do Projeto Renascer, suas trajetórias de vida, constituídas por um
número surpreendente de eventos dramáticos, entre abusos, abandonos, mortes, fome,
agressões físicas (algumas vezes cotidianas), exposição a substâncias psicoativas ilegais, a
ambientes nos quais as armas de fogo são objetos comuns, eram acionadas como o lugar a partir
do qual deve-se se refletir sobre suas ações. Não exatamente como uma justificativa como me
explicaram Marilda e Tati, mas como o contexto no qual eles aprenderam a ser gente. Assim,
expostos a situações que colocavam sua integridade física, moral e psicológica em perigo com
225
frequência, vão crescendo, sem confiar em ninguém, achando que é assim que se vive, achando
que a vida dele é nada, que ninguém se importa. Crescem com ódio, fome, dor e tristeza. Acham
que são lixo, são tratados como lixo, desde que são pequenos, disse Nina. Quando ela insistia
em não expulsar ninguém do Projeto Renascer, nem mesmo os meninos no centro do caderno,
era porque acreditava, como vimos, que expulsá-los só iria reiterar aquilo que criou o problema
em primeiro lugar.
Apesar da oposição que enfrentava neste sentido, Nina não recuava. Recusava-se a
expulsar os meninos. Era preciso então encontrar formas de lidar com suas transgressões.
Muitas vezes, os meninos ficavam suspensos do Projeto Renascer por alguns dias. Ao contrário
do que imaginei num primeiro momento, isso os incomodava. Primeiro porque se estavam
suspensos não podiam frequentar o espaço da instituição, não podiam ficar sentados na pedra
lá na frente vendo o movimento da rua, não podiam usar o campo de futebol, nem a mesa de
ping pong e não tinham direito às refeições diárias. Além disso, não podiam participar das
oficinas de capoeira ou futebol, nem assistir as oficinas de dança, ou jogar Banco Imobiliário
(uma das atividades favoritas dos meninos durante seus horários livres), nem conversar com
Tati, Marilda ou Aristides na coordenação. Para alguns desses meninos, ser suspenso também
significava ter problemas em casa, com pais e responsáveis.
No entanto, em alguns casos, o recurso a suspensão não parecia apropriado às
educadoras. Já que, no que se refere a estes meninos, as questões de disciplina e os
encaminhamentos são questões complexas, sem solução fácil. Os encaminhamentos
demonstram tentativas de abordar os desafios. Numa dessas ocasiões, encontramos uma entrada
com descrição detalhada sobre um problema envolvendo três desses meninos, Pedro Lucas,
Breno e Andrei. Tudo começa com os meninos saindo do Comosg sem autorização. Depois de
desaparecerem por um tempo durante a tarde, eles reaparecem, segundo o relato, soltando
bombinhas na frente da escola. Ao serem repreendidos por uma das professoras, eles começam
a xingá-la, do outro lado da rua, mas acabam voltando para o terreno do Comosg, onde voltam
a brigar com a professora, acusando-a de X9, por ter contado à coordenadora que eles haviam
saindo sem autorização. Inicia-se então uma discussão aos berros entre a professora e os
adolescentes, que acaba com todos na sala da coordenação. Depois dessa descrição, lê-se:
226
Ficaram, realmente, os três na coordenação, organizando arquivos e materiais para o
Comosg, junto com Marilda. Muitas vezes, quando as coordenadoras tinham disponibilidade,
encaminhamentos como este eram comuns, quando os meninos, ao invés de serem suspensos,
tinham que ficar mais tempo próximos das coordenadoras, ajudando-as com tarefas,
conversando. Lembro de uma aula de capoeira durante a qual Aristides, ao invés de mandar
Pedro sair por seu comportamento desafiador, determinou que ele teria de fazer um pedaço da
sua tarefa escolar antes de cada tentativa de fazer o movimento de capoeira que procurava
aprender. Na maioria das vezes, os meninos acabavam por obedecer às determinações da
coordenação. Poucas foram as vezes em que algum deles desafiou, abertamente, a autoridade
das coordenadoras ou de Nina. Durante o trabalho de campo, apenas Ruan desafiou, brigou e
ameaçou Nina e Marilda a ponto de assustá-las. No entanto, Ruan voltou à instituição alguns
dias depois, pediu desculpas e, depois de uma longa conversa, pôde voltar às atividades. Tendo
“aprontado” novamente no dia seguinte, indo para a coordenação para uma conversa,
dispensado da coordenação, “aprontado” mais uma vez, indo para a coordenação... e assim
voltado à rotina.
Ao insistir em manter os meninos no Projeto Renascer, as coordenadoras tornam
explícitos tanto o modo como concebem estes meninos como o que entendem ser seu trabalho
ali. Por um lado, mantê-los no Projeto é uma recusa em aceitar que eles sejam definidos apenas
por seus comportamentos desafiadores. É preciso pensar em encaminhamentos para que este
comportamento possa ser modificado, mas é preciso lembrar que eles são também outras coisas;
que são solidários e responsáveis em outras ocasiões por exemplo. Por outro lado, estas
profissionais entendem que seu trabalho como educadoras é também pensar em alternativas
para trabalhar com estes meninos e seus familiares. Além disso, é preciso entender que nem os
meninos, nem seu trabalho, deve ser avaliado em termos individuais ou morais. Se os meninos
não mudam seu comportamento em função das intervenções e ações promovidas pelo Projeto
Renascer, isso não os invalida nem como crianças, nem como público-alvo. Assim como não
invalidada o trabalho que é realizado ali.
227
Parte do desejo daqueles responsáveis pela condução do Projeto Renascer era
proporcionar condições para uma mudança naquilo que consideravam ser problemático na vida
das crianças. Como vimos, ao acompanhar a trajetória de Tati ou as reflexões de Nina sobre
Ruan e Poliana, a questão central não era exatamente salvar estas crianças. Pois a ideia de
salvar cada um deles individualizaria questões que entendiam como de ordem social mais
ampla. Então, parte do trabalho deveria abarcar as condições familiares e comunitárias da vida
das crianças. Seria ilusório, explicavam, acreditar que é possível mudar a vida desses meninos
trabalhando apenas junto a eles, sem lutar por melhores condições na escola, acesso a serviços
de saúde (como de saúde mental), infraestrutura no bairro, oportunidade de aceso a políticas de
pleno emprego para os familiares, etc. Por isso, durante a reunião com as outras entidades da
rede de proteção à infância e adolescência, mesmo quando discutindo os “casos” pontuais
desses meninos, Marilda e Nina sempre propunham ações mais abrangentes que contemplassem
as escolas locais, o Posto, o Projeto Renascer, a Vila Cachoeira, os centros comunitários, etc.
Isso porque, para elas, é impossível separar estes “casos” individuais das questões mais gerais.
Contudo, entendem que este trabalho é um trabalho a longo prazo. Se insistem em não expulsar
ninguém, em manter a porta da coordenação aberta aos familiares, em continuar, às vezes
irritados, às vezes frustrados, às vezes jocosos, às vezes cansados e às vezes esperançosos, é
porque entendem seu trabalho como um trabalho político, pedagógico e social. Neste sentido,
228
as pequenas vitórias e derrotas cotidianas estão inseridas num projeto de transformação social
e política mais amplo, que independe de comportamentos individuais.
Mas, se parte do trabalho era no sentido de procurar garantir que seus direitos básicos
fossem respeitados (daí as ações mais amplas junto às outras instituições), era também parte de
seu trabalho educar as crianças moralmente, ensinar-lhes valores, desconstruir determinadas
lógicas, provocar a reflexão sobre aspectos que consideravam problemáticos. Por isso propor
encaminhamentos alternativos à suspensão, conversas mais longas, acompanhamentos mais
próximos. Vejamos agora, como as conversas na coordenação ajudam a compor este quadro.
4.4. As conversas
Conversar é uma das práticas chaves no cotidiano do Projeto Renascer, acionada para
resolver conflitos, como prática disciplinar e ética, como acolhimento, lazer, ajuda. Isto é, as
conversas na coordenação não se limitam a momentos de repreensão e são, não apenas uma
prática, mas um valor central no cotidiano da instituição.
A sala da coordenação era um dos lugares mais movimentados do Comosg. Fossem
crianças, funcionárias, moradores e moradoras do bairro, sempre havia algumas pessoas por ali.
A maioria delas vinha em busca de Tati ou Marilda (as duas coordenadoras que acompanhei
mais de perto), queriam conversar, pedir ajuda, contar novidades, matar tempo. Quando mães,
pais, moradoras e moradores do bairro chegavam para conversar, eram sempre recebidos com
atenção. Às vezes, a coordenadora percebia que era preciso pedir a todos que estavam ali se
retirassem para que pudessem ter uma conversa privada. Os motivos que levavam essas pessoas
ao Comosg eram variados. Às vezes as pessoas vinham em busca de doações de comida ou
roupas; muitas vezes vinham em busca de ajuda com seus problemas. Se eram recebidos com
atenção e cuidado é porque, como vimos, para a coordenação do Projeto Renascer e a direção
do Comosg, parte de seu trabalho é também auxiliar os familiares das crianças e os moradores
e moradoras do bairro. No entanto, vale marcar que, para essas mulheres, essas conversas não
eram entendidas a partir da lógica do “desabafo”, na qual a “escuta” é a forma de ajuda oferecida
(FASSIN, 2012a). Se escutavam seus interlocutores era para, junto com eles, encontrar um
caminho para solucionar ao menos algum de seus problemas. Entretanto, o que nos interessa
neste momento, são as conversas enquanto uma prática disciplinar e ética, principalmente no
que toca à interação com as crianças.
A maioria das crianças gostava de ficar na coordenação. Isso significava que sempre havia
ao menos um pequeno grupo delas por ali. Dependendo da hora, as coordenadoras aceitavam a
presença das crianças com tranquilidade, conversavam, ajudavam com os deveres, ouviam
229
novidades e problemas. Outras vezes, mandavam todas as crianças embora, na tentativa de
esvaziar a coordenação para poderem se dedicar, em silêncio, às atividades administrativas que
lhes cabiam ou para ter uma conversa (com alguma criança ou moradora do bairro) com mais
privacidade. No entanto, esta era uma tentativa sempre frustrada a longo e médio prazo já que,
pouco depois, a coordenação estava novamente cheia, fato que não passava desapercebido, nas
palavras de Tati:
Aí eu brinco com eles, que essa coordenação parece que tem mel nas paredes. Se eles
coubessem todos aqui iam querer passar o dia. Não para nunca, sempre tem alguém que
quer conversar, é menina que quer contar dos namorados, é gente pedindo conselho, ajuda,
é criança querendo brincar, é uma loucura!
114Esta não é uma preocupação fútil. Segundo dados do Ministério da Saúde (2018), a maior parte dos casos de
violências sexuais contra crianças registrados pelo Sistema de informação de Agravos de Notificação (Sinan),
ocorreram dentro da casa das crianças e adolescentes e os agressores eram pessoas do convívio das vítimas,
geralmente familiares. Assim, incentivar as crianças a criar o hábito de conversar sobre o que lhes aflige, é um
modo de garantir que saberão pedir ajuda quando necessário.
230
conversas como uma prática ética é porque entendo que, nesses momentos, o que está em jogo
é também a constituição das crianças como sujeitos morais. Já que, quando as crianças vão para
a coordenação, na maior parte das vezes, para que possam voltar às suas atividades, elas devem
não apenas “ouvir” o que diz o coordenador, mas conversar, refletir sobre seu comportamento,
sobre o que sentem e como entendem o que aconteceu. Na maior parte das vezes, não há uma
“punição” específica. Alguns casos considerados mais graves podem resultar em suspensão das
atividades por um ou mais dias, em conversas com os pais e responsáveis. Mas, na maioria das
vezes, não há nem anotações no caderno nem um encaminhamento punitivo. O que é preciso é
refletir, conversar e, quando necessário, pedir desculpas para colegas ou professoras. Nem
sempre as coordenadoras têm disponibilidade para estas conversas; nestes casos, as crianças
são repreendidas brevemente, ficam na coordenação por um tempo e depois saem. Mas esta não
é a regra. Quando o evento que levou as crianças a coordenação é registrado no caderno, muitas
vezes, os pontos centrais abordados durante a conversa que precede o registro também são
anotados. Como a maior parte dos registros diz respeito a brigas, o foco dos registros recai sobre
a ideia de que a conversa é o melhor modo de resolver conflitos.
232
não estava conseguindo dormir à noite, e quando dormia, tinha pesadelos com bichos e
acordava com muito medo. Medo de assaltarem sua casa, medo de dormir perto da janela. Conta
que a mãe o obrigava a dormir no domingo à tarde, o que também era fonte de angústias.
Segundo Henry, era por isso que estava tão inquieto, a ponto de incomodar a professora. No
encaminhamento, a coordenadora escreveu que era preciso conversar com a mãe dele, para que
ela fizesse algum tipo de chá com propriedades relaxantes (camomila, maracujá) para ele beber
antes de dormir. Além disso, registraram que iam pagar ao jovem para cortar a grama do
Comosg. O intuito era que ele ficasse cansado e dormisse melhor, e que, com o dinheiro,
pudesse contribuir um pouco com o orçamento familiar, aliviando suas preocupações. Se foi
possível para a coordenadora entender que o problema de Henry não era exatamente, ou apenas,
uma questão que envolvia a atitude inquieta em sala, foi porque as responsáveis pela
coordenação moravam no bairro e sabiam detalhes da vida das crianças que ultrapassavam o
cotidiano na instituição ( no caso de Henry, sabiam de acontecimentos que haviam abalado
bastante a família dele e explicavam o medo de dormir, de ficar perto da janela e a preocupação
financeira). A entrada sobre Henry demonstra que, para as coordenadoras, a maior parte do
tempo, era importante não apenas abordar as questões disciplinares, mas procurar compreender
porque a criança estava se comportando de forma problemática.
Talvez fosse por esta razão que as crianças insistissem em ficar por ali. Afinal, as
conversas na coordenação não eram apenas momentos de repreensão, mas tinham um valor
afetivo. Eram momentos em que tinham oportunidade de compartilhar angústias e problemas,
momentos nos quais eram acolhidos. Mas isso não é tudo.
Certa tarde, João Miguel, do G3, insistia em ficar por ali, mesmo depois de Tati ter pedido
para ele ir para sua oficina umas três vezes. Nisso, dois meninos entraram na coordenação,
conduzidos por uma das professoras. Algo havia acontecido e ela os trouxera para uma conversa
com Tati. Ela então mandou as outras crianças que estavam por ali para fora. João Miguel ficou
para trás. Ela olhou para ele e perguntou, mas porque criatura você quer ficar aqui dentro?
Vaza, já falei! João Miguel, sorrindo, respondeu: quero ficar aqui porque adoro os papos da
coordenação. Tati, meio rindo, meio braba, foi conduzindo João Miguel até a porta dizendo: ai
meu deus, isso aqui não é terreiro que recebe todo mundo de braços abertos! Vaza, vaza que o
papo aqui é sério. O menino riu e, enquanto saía disse: mas até as tuas broncas são engraçadas
Tati, principalmente se não é comigo!
João Miguel não estava sozinho em sua avaliação das broncas de Tati. Como vimos
acima, este flerte com o lúdico era uma das marcas de suas práticas. João Miguel estava certo.
Suas broncas eram realmente também um pouco engraçadas, o que não lhes retirava a
233
seriedade. Tanto que as conversas que as coordenadoras mantinham com as crianças e os efeitos
em seu comportamento eram reconhecidos para além dos limites da instituição. Presenciei
profissionais que trabalhavam na escola pedindo a ajuda de Tati ou Marilda, para resolver
questões disciplinares que surgiam na escola. Encontrei, inclusive, algumas anotações nos
cadernos neste sentido. Num dos registros do caderno, Tati escreve, falar com Andrea, [mãe]
do Bernardo sobre agressões no Laura Lima. Laura Lima é uma das escolas locais. Foi uma
das professoras de lá quem veio até o Comosg pedir a ajuda de Tati, já que o menino frequentava
também o Projeto Renascer. Neste caso específico, nada acontecera no Projeto Renascer, as
agressões de Bernardo tiveram lugar na escola. No entanto, ao ser procurada pela professora,
Tati resolveu conversar tanto com o menino (como pude observar no dia), como com a mãe
dele. Os familiares das crianças também procuravam as coordenadoras em busca de ajuda com
as questões disciplinares que enfrentavam com os pequenos. Lembro do bilhete que transcrevi
no capítulo 1, que havia encontrado entre os documentos do Comosg:
Tati, conversar com o Washington do que ele está fazendo, hoje eu não posso ir no Comosg
e amanhã eu vou. Tati, nem eu o Washington está respeitando, não sei o que fazer para ele
melhorar. Pode deixar de castigo, eu não me importo. Qualquer coisa me liga.
Beijos, Carina.
Lembro também de uma ocasião em que Marilda ficara sabendo através de algumas
meninas que Ema havia brigado na escola pela manhã. No meio da tarde, Marilda pediu para
conversar com Ema na coordenação. A conversa não foi registrada no caderno, também não
foi a escola quem entrou em contato com o Comosg para mediar a questão. A iniciativa foi de
Marilda que, ao saber o que havia acontecido, avaliou ser necessário conversar com ela, mesmo
que a briga tenha acontecido na escola.
Esta atitude está ligada à ideia de educação que orienta as práticas dessas mulheres e de
Aristides. Todas elas acreditam que é preciso estar atenta ao comportamento da criança como
um todo, e não apenas ao que a criança demonstra quando está ali. Por isso o diálogo com mães,
pais, avós, avôs, cuidadores e professores era considerado tão importante. Marilda e Tati
estavam sempre assuntando, como me diziam, procurando entender porque certa criança estava
triste ou desanimada. Seria uma mudança de humor normal? Fome? Frio? Alguma mudança ou
problema no contexto familiar? Na escola? Estas perguntas eram importantes, porque
compreender as nuances, mudanças e disrupções no cotidiano das crianças e as auxiliava em
seu trabalho.
234
No entanto, este processo nem sempre ocorria sem percalços. As crianças, algumas vezes,
resistiam. Se recusavam a conversar, não respondiam às perguntas, faziam piadas, discutiam
com as coordenadoras, se recusavam a entrar na sala da coordenação. Em um dos registros do
caderno, três meninos haviam sido mandados para a coordenação por causa de uma briga.
Depois da descrição da briga, lemos:
Os três ficaram rindo e de bobeira. Já conversei com eles, mas eles não levam a sério a
conversa. Deixei eles na coordenação com o objetivo de que eles sintam a falta da
brincadeira e levem a sério as atividades desenvolvidas no Comosg.
115Como já foi tido ao longo da tese, as coordenadoras entendiam estes dois fenômenos, o tráfico de drogas de um
lado, e a ostentação do consumo de outro, como dois fenômenos distintos que podiam estar relacionados, mas não
necessariamente. Nesta perspectiva, o consumo ostentatório era o fenômeno englobante, pois podia ser um valor
para traficantes, funkeiros, evangélicos, católicos, espíritas, trabalhadores, empresários, etc. Em suma, entendiam
que este é um valor compartilhado tanto por muitos moradores do bairro quanto pela sociedade englobante; por
isso a preocupação com sua força de sedução entre as crianças.
235
O que eu acho difícil, é porque eles [as crianças] vêm com uma ideia de que o bom é ser
esperto e ser esperto é trapacear. Eu acho que isso tem muito do que o tráfico oportuniza. E
aí eles meio que, acreditam que ser esperto é fugir da polícia, é fazer coisas erradas e
conseguir fugir. Aí eu brinco com eles, ser esperto não é fazer isso. Isso é ser esperto naquele
momento, mas sempre a casa vai cair. Tu tem que passar pela vida sem esse tipo de
experiência.
Neste caso, o que está em disputa é o que algumas crianças entendem por ser esperto, que
Tati acredita estar pautado pelos valores e práticas do tráfico. O que é interessante nesta
“disputa” é que, ao menos em seu relato, Tati não exclui por completo a possibilidade de sentido
do ser esperto que relaciona aos valores associados ao tráfico de drogas. Admite que naquele
momento, no momento em que o sujeito ou foge da polícia, ou consegue ter sucesso em
investidas perigosas, transgressoras ou ilegais, o sujeito demonstra sim esperteza. A questão
para a qual ela escolhe chamar a atenção são as consequências dessa esperteza, nos termos em
que ela está posta. A ideia de que algo sempre acaba dando errado (a casa sempre cai),
reverbera avaliações que jovens envolvidos com o tráfico de drogas e outras formas de
contravenção fazem de suas vidas (DASSI, 2007, 2010; VIEIRA 2009, 2014). Segundo Vieira
(2009, 2014), os jovens envolvidos com o “mundo do crime”116 com os quais realizou suas
pesquisas, afirmam que o desfecho de suas histórias na “vida do crime” é, indubitavelmente,
“hospital, cadeia ou caixão”, a não ser que “mudem de vida”. É com esta noção que Tati dialoga
em seu relato, sobre como conversa com as crianças para lhes encorajar a ser espertos a partir
de um outro lugar. Isto é, Tati não invalida moralmente a priori a noção de esperteza que
relaciona ao tráfico de drogas, mas usa a própria configuração moral a partir da qual esta noção
de esperteza é construída para desestabilizá-la, já que a ideia de que a “vida no crime” leva,
invariavelmente, a um fim trágico, é compartilhada por todos.
No entanto, se há códigos e condutas compartilhados entre o “mundo social” e o “mundo
do crime” (FELTRAN (2008a, 2008b), VIEIRA (2014)), há também momentos de ruptura e
oposição. A dificuldade está em traçar diretrizes que possam ser compartilhadas com as
116 Dialogo aqui com o conceito de “mundo do crime” nos termos propostos por Feltran (2008a, 2008b). Ele o
desenvolve para pensar as “fronteiras” entre o “mundo social” das periferias de São Paulo e o “mundo do crime”
local. Neste contexto de análise, o “mundo social” é entendido como “a totalidade das relações sociais que
conformam e estão presentes nas dinâmicas de relações sociais nessas periferias” (p. 101), e o “mundo do crime”
é definido a partir da acepção nativa que a utiliza para designar “o conjunto de códigos e socialidades estabelecidas,
prioritariamente no âmbito local, em torno de negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos e furtos” (FELTRAN,
2008b, p. 93). Além disso, para Feltran (2008a), o “mundo do crime” designa, acima de tudo, uma experiência,
“relativamente regular, que oferece aos indivíduos que ingressam nela vivências de experiências-limite”
(FELTRAN, 2008a, p. 101). Para o autor, o “mundo do crime” está contido no “mundo social” e “integra-o como
uma de suas partes. Assim, neste “mundo do crime” local “há uma parte de códigos de conduta que são
compartilhadas com o restante do ‘mundo social’, e outra parte, que se distingue dele, sendo às vezes mesmo
oposta a eles” (ibdem).
236
crianças quando estas oposições e rupturas estão em jogo. Um episódio relatado por Tati pode
nos ajudar a compreender os dilemas que enfrentam neste sentido, de modo mais claro. Durante
uma de nossas conversas na coordenação, Tati comentava que uma das práticas comuns no
Projeto Renascer é alertar as crianças sobre os perigos das drogas.
A gente fica tentando fazer uma lavagem cerebral, drogas são ruim, fiquem longe das drogas,
drogas são uma porcaria. É ruim usar, é ruim vender, é ruim tudo, deixa doente, é ilegal,
traz problemas para o bairro... e a gente martela, fala, fala e fala. E aí, as crianças escutam,
e foi nessa que a gente se meteu numa confusão.
Tati contou que três meninos, dois com 6 anos, matriculados no Projeto Renascer, e um
amigo deles mais novo, de 5 anos, estavam brincando em um terreno baldio do bairro quando
encontraram duas sacolas de plásticos escondidas em baixo de pedras. Segundo eles relataram
depois para Tati, eles perceberam na hora do que se tratava: eram pacotes com papelotes de
crack. Sendo drogas, eram algo ruim, por isso os meninos resolveram jogar as sacolas em um
matagal ali por perto. Tati ficou sabendo de tudo isso porque, poucos dias depois, o pai de um
deles chegou desesperado, no meio da tarde, no Comosg em busca do filho e seu colega. De
acordo com Tati, o pai estava totalmente transtornado, e lhe contou, desesperado, que havia
sido procurado por traficantes, a quem as drogas pertenciam. Eles haviam descoberto que sua
mercadoria havia desaparecido e, perguntando aqui e ali, ficaram sabendo que os três meninos
haviam sido vistos brincando no local e que disseram ter jogado as drogas fora. O pai estava
bastante preocupado e queria conversar com os meninos. Tati o acalmou um pouco, prometendo
ajudá-lo a resolver a questão. Os meninos foram chamados e contaram que haviam sim achado
os pacotes e jogado fora porque droga é errado, não podia ter drogas na Vila. Depois de alguma
tensão, a questão foi resolvida.
No entanto, o episódio fez Tati ter ainda mais consciência das sutilezas de seu trabalho,
da responsabilidade que tem em relação à educação e ao bem-estar das crianças e dos cuidados
que os profissionais ali precisavam ter em relação ao “mundo do crime” local. Mas, mesmo
assim, é preciso manter em aberto a possibilidade de um diálogo crítico e reflexivo em relação
ao que entendem como valores associados às práticas do tráfico de drogas. Isso é importante
pois é uma possibilidade de aproximação com aquelas e aquelas envolvidos de modo mais sério
nessas práticas.
Como dito anteriormente, a porta da coordenação estava aberta a todos, inclusive a
jovens que já estavam mais ativamente envolvidos com o “mundo do crime”. Alguns deles
gostavam de vir até a coordenação conversar com Tati. Como vimos no Capítulo 2, esta
abertura causava conflitos com algumas das profissionais do Projeto Renascer, mas o
237
argumento de Tati era que estes jovens eram também alguém para além do tráfico e era com
este além que ela estabelecia relações e conversava, com quem procurava estabelecer um
vínculo. Para Tati, assim como para a coordenação do Projeto Renascer, estas são
oportunidades de fazê-los pensar sobre suas escolhas e seu futuro:
Aí eu digo pra eles, quando dá vocês comem Ruffles, lanche, compram esses bonés e essas
malditas calças, não guardam dinheiro pro outro dia. Oh meu filho, aprende uma coisa, se
tu tá na merda, se tu tá envolvido com isso, então tu aprende a guardar dinheiro pra tu
comprar uma casa, pra fazer tuas coisas e sair da merda, porque um dia tu vai querer sair,
todo mundo quer, pergunta pros mais velhos que ainda tão vivos.
Esta era uma tentativa de fazê-los refletir, de mudar seu comportamento, de apresentar
alternativas. E se um jovem, ou seus familiares lhe pedia ajuda para procurar outros caminhos
para suas vidas, as coordenadoras ou Nina, procuravam encontrar um estágio, uma fonte de
renda alternativa, algo que pudesse interessá-los. Contudo, seus recursos eram limitados.
Mas, como dito acima, Tati, assim como outras profissionais envolvidas na coordenação
do Projeto Renascer, traçava um limite claro, não negociava com traficantes. Se conversava
com os jovens, dava broncas, conselhos, pegava no pé, tudo que fazia era a partir da
“fronteira”117 que nunca cruzava. Lembro de uma ocasião, em que um jovem lhe ligou pedindo
ajuda. Ele estava com problemas com traficante local. Na ocasião, Tati, apesar de oferecer ajuda
financeira para que o jovem fosse para a casa de parentes em outra cidade, se recusou a
conversar com o traficante em favor do jovem. Comentando o episódio Tati disse, ele me pediu
pra bater um psicológico com o outro. Ah! Não vou bater, isso tá fora do meu limite, não dá,
não posso me meter nisso. Negociar, pedir assim, não dá, não posso me meter nesses negócios
todos. Se é possível conversar com os jovens, acolhê-los, dar broncas, conselhos, não é possível
cruzar a fronteira e enredar-se em negócios e relações diretamente ligados ao tráfico de drogas
local. Acredito que este limite, estabelecido e reestabelecido continuamente, era um dos fatores
que fazia com que as disputas entre grupos rivais, que marcaram em tantos períodos a rotina do
bairro, nunca atingiram o espaço do Comosg, que permaneceu sempre neutro.
Desta forma, é possível afirmar que as conversas são um instrumento de disciplina, de
educação política e moral das crianças, assim como uma prática pedagógica. Neste sentido,
entendo que conversar não é apenas uma prática disciplinar (FOUCAUL, 1997), mas pode ser
entendida também como uma prática moral, ou melhor, ética (FOUCAULT, 1984). Em outras
117 Seguindo a formulação de Feltran (2008a, 2008b), entendo que “nenhuma fronteira demarca uma divisão
estanque entre dois domínios; em vez disso, o que qualquer fronteira procura é regular os modos da relação, dos
fluxos (de pessoas, mercadorias, discursos) entre eles” (FELTRAN, 2008b, p. 94). Assim, as fronteiras marcam
tanto a participação em um conjunto comum, quando a “distribuição em quinhões” (ibden).
238
palavras, conversar não é só parte de uma prática punitiva, que visa corrigir e tornar produtivo
o tempo da punição, seguindo a lógica do poder disciplinar (ibdem). É, ao mesmo tempo, uma
prática ética, pois não se limita à relação que estabelece com a norma, mas implica uma relação
consigo mesmo (FOUCAULT, 1997). O que conversar procura encorajar entre as crianças é,
entre outras coisas, uma relação de “cuidado de si”, na qual as crianças são incentivadas a
conhecer a si mesmas, aprender a controlar-se e expressar-se, aperfeiçoando-se e
transformando-se. E este é um dos objetivos centrais do Projeto Renascer, na perspectiva das
coordenadoras. Se parte do seu trabalho é agir junto ao Estado (pressionando, conversando,
reivindicando, implementado políticas públicas, articulando parcerias) para garantir que os
direitos básicos da população com quem trabalham (e da qual fazem parte) sejam garantidos, a
outra parte deste trabalho (igualmente importante) é trabalhar junto às crianças, seus familiares
e demais moradores do bairro para que estes sujeitos possam “trabalhar em si mesmos”,
aperfeiçoando-se também enquanto sujeitos morais.
239
Considerações Finais: “O(s) Perigo(s) de uma Única História”
240
imaginei que era chegar ali e neginho enfrentando, ameaçando e coisa e tal. Mas não, foi
tranquilo, foi um desbloqueio. Porque em todo lugar, a gente cria o rótulo. Mesma coisa
com a criança, tu cria o rótulo, é problema, é perigoso, é violento. Mas quando tu convive,
vai entendo o contexto da criança, vai conhecendo, tu vê que não é só isso, que tem além.
A afirmação deste além é o ponto chave para o qual gostaria de chamar a atenção. Se o
medo inicial das crianças é o que Aristides e as professoras que pediram transferência têm em
comum, o que os diferencia é exatamente este além, que Aristides aprendeu a articular depois
de conhecer as crianças e a partir das conversas com Tati, Nina e Marilda. Já que, como vimos
ao longo da tese, este além está presente nos discursos e práticas dessas mulheres, assim como
está presente na compreensão de mundo de várias das funcionárias responsáveis pela limpeza
e refeições, do professor de violão, das professoras de dança. Quando Marilda me explicava
que as crianças e jovens não obedecem às vezes, está implícito que, outras vezes, elas
obedecem; se elas também são fogo, é porque às vezes não o são. Para todas estas e estes
profissionais, as crianças podem sim ser difíceis, e até perigosas às vezes, mas elas não se
limitam a isto, porque há algo além. De certa forma, é sobre este além ou a ausência dele que é
esta tese. Ao longo dela, espero ter ajudado o leitor a refletir sobre os pressupostos que o tornam
possível (ou impossível) e sobre os efeitos que estes modos distintos de conceber as crianças e
jovens produzem no cotidiano do Projeto Renascer.
Como vimos, afirmo que se as crianças e seus familiares são apreendidos a partir da
economia moral do humanitarismo, nos termos propostos por Fassin (2012b), este além é
excluído. O humanitarismo diz respeito ao governo da precariedade, das vidas daqueles que se
encontram em situação de “vulnerabilidade”. A partir dele, a própria leitura da categoria
“vulnerabilidade”, elaborada como categoria socioeconômica para ressaltar a dinâmica da
reprodução da desigualdade social para além da noção de pobreza (ABRAMOVAY et all,
2002), é deslocada e despolitizada. Já que, nos termos de Fassin (2012a, 2012b, 2013), o
humanitarismo é um modo de governo da precariedade que mobiliza a empatia no lugar do
reconhecimento de direitos. Como dito anteriormente, nesta economia moral, o “sofrimento”
toma o lugar da “desigualdade”, o “trauma” toma o lugar do “reconhecimento das violências”
e mobiliza-se a ideia de “compaixão” ao invés da “justiça”. Entre outras coisas, isso significa
que o humanitarismo reproduz relações bastante assimétricas de poder, entre aqueles que
podem “ajudar” e aqueles que, em uma posição de desvantagem estrutural, “recebem ajuda”.
Há, nesta perspectiva, uma diferença essencial entre os que recebem ajuda e os que a dão, já
que a política da compaixão é, ao mesmo tempo, uma política da solidariedade e uma política
da desigualdade. Afinal, o foco dos sentimentos morais são principalmente os mais pobres, os
mais desafortunados e vulneráveis. Isto é, o “público-alvo” do Projeto Renascer, nesta
241
perspectiva é o “outro” desafortunado. No entanto, vimos que, para algumas profissionais,
Nina, Tati, Marilda, Aristides e outras funcionárias envolvidas com as tarefas da cozinha e da
limpeza, a divisão entre eles (o “público-alvo”) é inexistente. Mesmo que num primeiro
momento, como aconteceu com Aristides, existisse uma diferenciação entre eles e aqueles com
quem trabalham, no cotidiano do Projeto Renascer esta divisão deixou de existir. As crianças
com quem trabalham são como eles foram um dia, como são seus filhos, filhas e familiares. Por
outro lado, para outras profissionais, as crianças com quem trabalham constituem um “outro”,
sujeitos que são, fundamentalmente, diferentes de si e que, em função desta diferença (que é
moral, além de econômica), necessitam de “ajuda”. Trabalham a partir destas perspectivas
diferentes implica em práticas educacionais diversas, em estratégias de diálogo e disciplina
diversas, como acompanhamos ao longo da tese.
Ao trazer ao primeiro plano sentimentos morais (como a compaixão) e despolitizar as
discussões sobre desigualdades sociais, o humanitarismo produz uma “única história” sobre
aqueles na posição de receber. Nesta economia moral, pautada na compaixão, não há espaço
para o além, para a multiplicidade de histórias que ajudam a compor o quadro mais amplo das
condições sócio-históricas, culturais, ambientais e individuais que nos auxiliariam a
compreender as vidas dos sujeitos. As crianças são vítimas, inocentes, frágeis, ou são
impossíveis, bem grandinhas, perigosas até. Para aquelas e aqueles que operam,
majoritariamente, a partir da economia moral do humanitarismo, se as crianças (e seus
familiares) não são “perigosos” são “coitados”. Já que o medo é apenas um lado da história, um
lado da moeda, do outro lado encontramos a pena. Muitas destas crianças, quando não inspiram
medo, inspiram pena, uma espécie de “piedade condescendente e bem-intencionada” da qual
fala Chimamanda Ngozi Adichie (2009), em uma de suas falas mais conhecidas, intitulada “O
perigo de uma única história”.
A autora nigeriana conta que, quando chegou no dormitório de sua universidade nos
Estados Unidos da América, sua colega de quarto ficou confusa, Chimamanda não era o que
ela esperava de uma “africana”. Na conferência em que elabora sobre esta experiência, Adichie
(2009) comenta que, quando se conheceram sua colega ficou surpresa ao perceber que
Chimamanda falava inglês; decepcionada porque ela ouvia Mariah Carey e não “música tribal”
e estranhou o fato de que Chimamanda sabia usar um fogão. Já o que surpreendeu Chimmanda
foi perceber que, mesmo antes de a conhecer, sua colega já sentia pena dela.
Mas o que permite que isso aconteça? É a questão que nos propõe Adichie em sua fala.
Para ela, isso é possível porque sua colega de quarto tinha uma “única história” sobre a África,
uma história de catástrofes, desastres e incapacidades. Para a jovem estadunidense, “a África
242
era um lugar de lindas paisagens, belos animais e pessoas incompreensíveis, lutando entre si
em guerras sem sentido, morrendo por causa da pobreza e da AIDS, incapazes de falar por si
mesmos e esperando para serem salvos por um piedoso estrangeiro branco”. Ao longo de sua
vida, a estudante estadunidense deve ter ouvido, inúmeras vezes, várias versões dessa mesma
história. Então, quando encontrou uma “africana” foi a partir desta história de desgraças e
incapacidades que estabeleceu uma relação com ela, pautada pela pena. Ou seja, antes mesmo
de a conhecer, a jovem estadunidense já havia inserido Chimamanda numa relação na qual a
nigeriana era alvo de uma espécie de “piedade bem-intencionada e condescendente”.
Exatamente Chimamanda fizera em relação a Fide, um menino que trabalhava em sua casa
quando ela era criança. Adichie conta que, quando criança, sentia muita pena de Fide, pois sua
mãe sempre falava sobre como ele e sua família eram pobres. Se a pequena Chimamanda não
terminava a comida em seu prato, sua mãe dizia: “Termine sua comida! Você não sabe que as
pessoas como a família de Fide não têm nada?”. Assim, a autora conta que era impossível para
ela imaginar que eles eram outra coisa além de “pobres”. Sua “pobreza” era a “única história”
sobre eles, na qual não havia espaço para pensar sobre eles como pessoas que também criavam
coisas belas, por exemplo. No entanto, quando ela foi ao vilarejo de Fide e viu os cestos que
sua família produzia, Adichie se surpreendeu. Então eles também produziam coisas belas!
Neste sentido, elabora Adichie, se sua colega de quarto tinha uma história sobre ela, a
“menina africana”, Chimamanda também tinha uma única história sobre Fide, o “menino
pobre”. Nestas histórias únicas, não havia espaço para muito mais do que “piedade
condescendente”, embora bem-intencionada. Também não havia muito espaço para os sujeitos
e sua criatividade; a família pobre de Fide, era, em sua imaginação, um conjunto de sujeitos aos
quais faltava tudo e que nada criavam; assim como para sua colega, os africanos eram sujeitos
rodeados por desgraças, “incapazes de falar por eles mesmos”, à espera da generosa ajuda dos
brancos. Para Chimamanda Adichie, é aqui que reside “o perigo de uma única história”: elas
criam estereótipos. “E o problema dos estereótipos não é que eles sejam falsos, mas que eles
são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história”.
Mas será que Chimamanda Adichie, ao chegar aos Estados Unidos, também não tinha
uma única história sobre sua colega de quarto e sobre a “América”? Não, nos diz ela. Pois a
dinâmica que produz uma única história é uma dinâmica pautada por relações de poder. O que
as relações de poder realizam é uma espécie de apagamento das múltiplas histórias. Elas
produzem um “outro” exotizado, congelado. Em outra chave de interpretação, diria que “uma
única história” produz uma única posição de sujeito, captura o sujeito num lugar fixo e
invisibiliza sua pluralidade. Como vimos ao longo da tese, para as crianças com as quais
243
convivi, a construção de uma “única história” sobre elas significa que serão vítimas ou perigo,
dignas de pena ou inspiradoras de medo. Nesta leitura, não são nada além, não são também
outra coisa. Contudo, esta não foi a primeira vez em que me deparei, enquanto pesquisadora,
com “os perigos de uma única história”.
Durante minha primeira pesquisa de campo, numa instituição que recebia jovens
cumprindo medidas socioeducativas de internação, lembro de um episódio que me marcou.
Estávamos sentados no pátio externo, numa tarde quente de verão, e os jovens falavam sobre
suas infâncias. Eu estava sentada no chão com eles, e um dos monitores estava ouvindo a
conversa, em pé, a uma certa distância. Tusti comentou conosco que, quando tinha oito aos e
morava com sua avó, ele havia roubado o curió de seu vizinho. Douglas, outro jovem presente,
falou rindo, olha só, o pangaré já era ladrão desde criança. Todos rimos e a conversa seguiu,
recheada de histórias sobre as traquinagens que aprontamos enquanto crianças. Entretanto, qual
não foi minha surpresa quando, dias depois, ao ler o relatório diário que os monitores escreviam
sobre o comportamento dos jovens, encontrei a história de Tistu e do curió. Só que no relatório,
esta história não era aludida como eu a havia ouvido, mas como um comentário sobre a
“periculosidade” de Tistu, uma prova de que ele não estava preparado para ser liberado. O
comentário do monitor foi o seguinte:
O adolescente faz bastante comentários voltados para aspectos negativos, hoje contou a
história de seu primeiro roubo, com oito anos, para se gabar. Acho bastante imaturo, suas
perspectivas de futuro positivo são duvidosas.
Contudo, minha surpresa foi ainda maior quando, meses depois, ao ler seu Relatório
Situacional, redigido pela psicóloga e pela assistente social, que seria encaminhado para o Juiz
da Vara da Criança e do Adolescente responsável por seu caso, li o seguinte:
Segundo o próprio adolescente, ele já está envolvido em más companhias desde criança,
tendo inclusive realizado seu primeiro furto aos 8 anos.
Aquilo que para mim foi uma história sobre travessuras da infância, muito parecida com
aqueles que eu e meu irmão fazíamos ao roubar frutas de vizinhos e chocolates no mercado,
torna-se ali uma prova de que Tistu era um sujeito perigoso, com uma longa carreira no crime.
O mesmo padrão se repetia nas fichas da maior parte dos jovens com os quais convivi durante
esta primeira pesquisa. No prontuário de Jefferson, li que ele “roubou uma gaiola de curió aos
10 anos”; Carlos “brigou aos 9 anos com um primo de 21 anos e foi esfaqueado por ele”; Gaya
foi “expulso da escola aos 10 anos”, assim como José e Tiago (mas Tiago com 8 anos);
244
Romarinho “furtou roupas com apenas 9 anos”; Douglas “fugiu de casa para roubar aos 9 anos”.
Eu poderia continuar e citar acontecimentos da infância dos 35 jovens cujas fichas tive aceso,
todos registrados e articuladas para compor sua biografia de “delinquente”, para compor uma
única história sobre suas vidas.
Hoje, mais familiarizada com o trabalho de Foucault, entendo que a construção de Tistu
enquanto “delinquente” é parte da dinâmica de produção de sujeitos daquilo que o autor
denomina “poder disciplinar” (Foucault, 1987). Nas palavras de Vianna (2002, p. 299), “aqui,
como aponta Foucault para pensar a gestação de modelos normativos de poder, o “delinquente”
é construído antes da delinquência em si, como alguém que ‘sempre foi’, ‘sempre demonstrou’,
ou seja, que é portador de uma essência que o faz naturalmente propenso ao ato que um dia,
como predestinado, irá finamente concretizar”. Se entendermos “delinquência” nos termos de
Foucault (1987), poderíamos dizer que ela é também uma maneira de contar uma única história
sobre alguém. A construção biográfica que constitui a figura do delinquente é a construção de
uma única história sobre o sujeito. Não há além; há apenas a “história única da delinquência”.
Se a possibilidade da produção do “delinquente” já estava dada pelas relações tecidas pelo
poder disciplinar, acredito que a economia moral do humanitarismo a exacerba. O que permite
que os sujeitos se desvinculem deste lugar é a multiplicação das histórias. Se Aristides perdeu
o medo das crianças da Vila Cachoeira não foi apenas porque era morador do bairro, mas porque
aprendeu a ouvir outras histórias sobre as crianças e seus familiares, sobre o contexto
sociopolítico no qual estão inseridos. Aristides, com a ajuda de Nina, Marilda, Tati, Edvania,
Rose, das crianças, seus familiares, das leituras que fez na faculdade, na Igreja, das conversas
ouvidas no Posto de gasolina que trabalhava, aprendeu a multiplicar histórias. Neste sentido,
multiplicar histórias é um ato político que, como o trabalho desenvolvido pelo Projeto Renascer
e pelo Comosg, ajuda-nos a perceber outras realidades e produz efeitos significativos tanto na
vida dos sujeitos quando no tecer das políticas públicas e do Estado.
Como vimos, os sujeitos atendidos pelo Projeto Renascer e pelo Comosg constituem uma
parcela da população abordada por políticas públicas como “crianças e seus familiares em
situação de vulnerabilidade social”. Contudo, o status de “vulnerabilidade” pode ser acionado
a partir de lugares diferentes e produzir efeitos distintos, tanto pelos sujeitos apreendidos como
em “situação de vulnerabilidade”, quanto pelos sujeitos que se ocupam de desenvolver e
implementar políticas públicas para esta parcela da população. Por um lado, a “vulnerabilidade”
pode ser mobilizada para sublinhar a necessidade de se garantir que os direitos básicos e
fundamentais dos sujeitos sejam mantidos, num movimento que aciona, primordialmente, um
campo de ação político. Por outro lado, a “situação de vulnerabilidade” pode ser mobilizada
245
para inspirar compaixão, empatia, num movimento que aciona sentimentos morais e, a partir
deles, incita ajuda sob as formas de caridade ou filantropia, como acontece a partir da
perspectiva humanitarista. Em outras palavras, a ideia que procurei desenvolver, inspirada pelo
trabalho de Fassin (2012, 2013), é que, por um lado, temos uma “leitura moral” da situação de
vulnerabilidade e, por outro, temos uma “leitura sociopolítica da vulnerabilidade”, cada qual
com seus desdobramentos, que implicam em diferentes modos de captura dos sujeitos, de
propostas de intervenção e até modelos de Estado.
Desta forma, o enfraquecimento de políticas públicas com viés social e educacional para
populações vulneráveis pode estar também ligado a estas diferentes leituras da condição da
vulnerabilidade. Uma leitura política da vulnerabilidade, implica no fortalecimento de políticas
públicas que focam em questões sociais, educacionais e de redistribuição de renda, já que esta
condição é entendida como fortemente ancorada em questões históricas que tocam
desigualdades sociais e justiça social. Se o relevo muda e a vulnerabilidade é mobilizada para
inspirar compaixão, acionando o campo moral com mais ênfase que o político, as políticas
caritativas e filantrópicas ganham força, assim como ganham força as políticas de segurança.
Já que os “sujeitos vulneráveis” (sejam eles crianças ou não), compreendidos a partir do
humanitarismo são vulneráveis desde que sejam dóceis, tuteláveis. A quebra (real ou
imaginária) com este comportamento, os retira a condição de “vítimas” os transformando em
“perigo”, justificando políticas públicas que focam questões de segurança a partir da repressão
e fortalecimento do Estado policial.
É neste jogo que reside a potência da multiplicação das histórias e que nos permite evitar
os “perigos de uma única história”. Esta força pode ser pensada em relação ao modo como
estas profissionais articulam as políticas públicas que implementam e compõem. Pois esta
leitura permite que ajam em inúmeras frentes, ao lado de outras instituições, em prol desta
parcela da população. Neste sentido, as ações e práticas que propõem e procuram implementar
não se limitam às políticas caritativas, filantrópicas ou securitárias.
Além disso, no cotidiano do Projeto Renascer, a potência deste posicionamento podia ser
observada em atos prosaicos, no modo como as coordenadoras lidavam com brincadeiras,
questões disciplinares cotidianas, nas conversas e embates. Para as funcionárias do Projeto
Renascer, operar a partir desse além significava ter menos embates com as crianças, não sentir
o medo constante de algumas delas, ou sentir-se frustrada e desafiada a cada peripécia
truculenta. Para as crianças, este além significava a possiblidade de ser reconhecido enquanto
sujeito digno de atenção e cuidado mesmo quando erravam ou aprontavam. Significava a
possiblidade de demonstrar frustração, raiva e tédio, sem que isso anulasse seu estatuto de
246
crianças. Além do que, significava a possibilidade de ser mais do que uma “vítima” ou “perigo”
e quebrar com esta espécie de “destino” que lhes é traçado ao serem capturados, a partir do
humanitarismo, como “crianças em situação de vulnerabilidade”.
No Livro das Mil e Uma Noites, Sharazard conta histórias para escapar o destino de uma
única história. A cada noite ela desdobra uma única história em histórias e assim cria outra
possibilidade para a história na qual havia sido inserida quando casou-se com o sultão. Nesta
história, ela morreria no primeiro amanhecer depois de casar-se, vítima do medo do sultão da
traição. Na história que o sultão conta sobre casamento e mulheres, havia apenas um enredo
possível, a traição da mulher amada. Por isso era preciso matar cada mulher que esposava no
primeiro amanhecer. Até Sharazard, a multiplicadora de histórias...
247
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