Guião de estudo - Pessoa Ortónimo (1)

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Guia de estudo

Fernando Pessoa, poesia do ortónimo

Contextualização
Fernando, (a) Pessoa

Poeta modernista, Fernando Pessoa tornou as suas palavras ecos da época em que vivia, plena
de euforia, sinónimo de progresso e de rutura, semeadora da dúvida e do questionamento,
impulsionadora da crise da razão e da consciência, da crise do próprio poeta.

No entanto, além dos traços característicos das correntes vanguardistas, concretizada na


experiência dos «ismos» (Sensacionismo, Intersecionismo, Futurismo…) e nos heterónimos, na sua
poesia ortónima encontramos ainda uma vertente tradicional, na senda do lirismo português, marcada
pela melancolia, pela dolência, pincelada de intimismo e de suavidade (influências do Romantismo,
do Saudosismo, do Sebastianismo…).

A poesia do Ortónimo assenta em quatro temáticas essenciais (fingimento artístico, dor de


pensar, nostalgia da infância e sonho e realidade), que formam uma teia, tão complexa quanto
dramática, cujos fios se entrecruzam num labirinto de crença e de descrença, de certeza e de dúvida,
de desejo e de desistência.

Este é Pessoa, ele próprio, sedento de tudo e de nada, na procura incessante do seu ser: um ser
de espírito inquieto, sempre lúcido e racional, condenado ao vício de pensar, obstáculo à verdadeira
felicidade e promotor de uma existência angustiada. O Sonho e a Infância surgem, consequentemente,
como os únicos espaços onde o poeta se pode refugiar, o primeiro em busca de uma felicidade relativa,
o segundo onde, e porque sendo inconsciente, era feliz.

Fingimento Artístico
Segundo a arte poética pessoana, um poema não é um produto direto da emoção, mas sim
produto de uma construção mental, sendo que a sua elaboração se confunde com um «fingimento»
(uma simulação). O poeta assume-se como «fingidor», não sendo alguém que, desonestamente, mente,
mas alguém que simula uma emoção, que encena no seu intelecto uma situação imaginária
representativa da «dor que deveras sente», isto é, intelectualiza e pensa essa dor. O poema
«Autopsicografia» é uma espécie de tratado, em que se explica o processo de criação artística
(poética). Toda a arte é assim perspetivada como resultado de um processo intelectual, em que a
emoção constitui apenas um estímulo.

O poeta não rejeita os sentimentos sinceros e reais, mas sente a necessidade de os recriar por
meio da imaginação e do intelecto. A verdadeira emoção é intransmissível (é impossível verbalizar
com exatidão o que sentimos). Com efeito, o poeta, ao utilizar as palavras para a expressar, está
automaticamente a adulterá-la, a transfigurá-la, a criar convenções, fruto do que está a experienciar
no momento em que a pretende comunicar. A função do poeta não é «sentir» no poema; é provocar o
«sentir» em quem o lê.

Nesta perspetiva, a dor sentida, que envolve os sentimentos, as emoções e as realidades


experienciadas pelo poeta, não é transmitida, mas sim reconstruída intelectualmente, dando origem a
uma nova dor, uma dor fingida, pensada, a qual, por sua vez, chegará ao leitor, que, quando partiu
para a leitura do poema, não conhecia essa dor. O ato criativo completa-se quando este último realiza
a leitura da dor fingida («dor lida») e consegue sentir uma dor semelhante (nunca igual) à dor sentida
pelo poeta.
Ilustremos este processo criativo com uma situação hipotética. Imaginemos o que poderia ter
acontecido, por exemplo, aquando da criação do poema pessoano «Ó sino da minha aldeia».
O poeta sente, num determinado momento do dia, uma nostalgia profunda, decorrente da consciência
de que é impossível recuperar momentos felizes passados ou sente-a apenas porque ouviu um sino da
cidade tocar. Sente a urgência de fazer poema, mas não expressa isto no poema por estas palavras.
Imagina uma situação: um «eu» triste e solitário, que vagueia pela sua aldeia e que, ao toque dolente,
insistente e hipnótico de um sino, recorda o passado irremediavelmente perdido, sendo tomado por
uma imensa saudade. O poeta escolhe o vocabulário, escolhe a métrica, escolhe a composição
estrófica, escolhe o esquema rimático, escolhe recursos expressivos significativos para a mensagem
que pretende transmitir, para a dor que pretende provocar; faz tocar o sino no poema, através de
aliterações e seleção de fonemas nasais, vibrantes e oclusivos. E todas estas escolhas são resultantes
de vários processos cognitivos. Tudo isto se passou na sua mente criativa e criadora. Tudo isto é
conscientemente «fingido» (intelectualizado). E o leitor, inocente do que o espera, parte para a leitura
ou para a audição do poema e, de repente, sente uma nostalgia inexplicável e uma saudade do seu
passado… da sua infância, talvez.
As dicotomias sinceridade/fingimento, imaginação/coração estão, pois, bem patentes na
poesia do ortónimo e apoiam-se nas dicotomias inconsciente/consciente e sentir/pensar.

Dor de pensar
A atitude permanente de intelectualização das emoções e o estado consciente não só da
incapacidade de aceder a um «eu» que dorme profundamente em si (o inconsciente), mas também da
efemeridade da vida e de que nela tudo passa, fazem com que o poeta não consiga usufruir dos
momentos que esta lhe oferece. A consciência da realidade que o envolve, da sua pequenez em relação
a ela e das suas limitações e fragilidades impedem-no de ser feliz.

A incapacidade de se libertar desse estado de hiperlucidez e de constante análise da realidade


(ou autoanálise) provoca-lhe insatisfação e sofrimento, pois questiona tudo, sofre e angustia-se, não
conseguindo dar resposta às suas inquietações. Pessoa, apesar da dor que tal atitude acarreta, não nega,
nem quer negar, a sua essência humana – ele é um ser pensante!

Em poemas como «Ela canta pobre ceifeira», «Gato que brincas na rua» ou «Não sei ser triste
a valer», o sujeito poético inveja a «alegre inconsciência» daqueles seres que vivem instintivamente
e que são felizes, porque não questionam a realidade nem a existência, porque estão/são «viúvos» da
consciência, porque são assim, profundamente «inteiros». O que neles «é florescer», obedecendo às
«leis fatais/ Que regem pedras e gentes», no sujeito lírico «é ter consciência» da sua fragmentação,
da sua impossibilidade de autoconhecimento total, situação, que, de tão angustiante que é, o faz
desabafar.

Por vezes, afirma que o seu desejo é sentir, no entanto, e de forma paradoxal, ambiciona
igualmente estar consciente desse estado inconsciente que lhe traria felicidade, facto que também lhe
causa frustração, pois compreende que tal feito é impossível.

Nostalgia da infância
Dececionado com a vida e desfragmentado pela angústia que o invade e por essa excessiva e
alucinante «dor de pensar», Pessoa refugia-se, momentaneamente e pela memória, no tempo da
infância. A infância representa o tempo da inocência e o momento em que todos somos felizes, porque
inconscientes, porque mais próximos dos nossos instintos e da nossa condição animal, porque mais
próximos da essência do gato, que brinca descontraidamente na rua.
O poeta remete-nos para uma infância que, recuperada pela memória e reconstruída pela
imaginação, é idealizada como um paraíso perdido, um porto de abrigo, o único momento possível
de felicidade. A infância surge, pois, como uma época recordada com saudade e nostalgia, podendo
até não corresponder à infância vivida pelo poeta, mas na qual ele era feliz sem o saber. Convém
também salientar que a memória, ao recuperar as vivências passadas, também as reconstrói: nunca o
que se recorda corresponde inteiramente ao que se viveu.

Sonho/ Realidade

A dor de pensar e a angústia existencial que dilaceram o «eu» fazem com que este se tente
evadir através do Sonho. A dimensão onírica surge, assim, como uma tentativa de fuga à realidade
que oprime e causa sofrimento em Pessoa. O poeta cria uma outra realidade, imaginando-se outro,
um ser capaz de ultrapassar as suas inquietações, um ser realizado.

No entanto, o sonho não dissolve as frustrações e insatisfações do poeta, porque não passa de
uma ilusão, de um estado de felicidade efémera. Tendo consciência desse fracasso, desse «impossível
jardim», feito do calor dos trópicos (o sul do «eu», o inconsciente), o poeta volta à realidade
quotidiana, (ao Norte frio do «eu», a sua consciência), mas onde reencontra, desnorteado, as suas
dores e ansiedades, intensificando-se assim o seu estado de desilusão, a sua angústia existencial.

Linguagem, estilo e estrutura

São utilizados diferentes recursos que imprimem ritmo e musicalidade ao texto poético
pessoano, marcando com expressividade as ideias apresentadas. Vejamos esses recursos.

*Quadra e quintilha e versos frequentemente em redondilha maior (formas da lírica tradicional


portuguesa) ou octossílabos, com tendência para regularidade estrófica e rimática:
*quadra, em redondilha maior – o poema «Autopsicografia» é composto por três quadras, sempre em
rima cruzada;
*quintilha, em redondilha maior – o poema «Às vezes, em sonho triste», composto por quatro
quintilhas, com rima emparelhada nos dois primeiros versos e rima cruzada entre os segundo e quarto
versos e entre os terceiro e quinto versos.

Musicalidade: presença de rima, aliterações e transporte:

- Aliteração: «No ar limpo como um limiar» / «Ela canta pobre ceifeira», v. 6

- Rima e Transporte (Encavalgamento):

«Ah, poder ser tu, sendo eu! A

Ter a tua alegre inconsciência, B

E a consciência disso! Ó céu! A

Ó campo! Ó canção! A ciência B

Pesa tanto e a vida é tão breve! C

Entrai por mim dentro! Tornai D


Minha alma a vossa sombra leve! C

Depois, levando-me, passai!» D

«Ela canta, pobre ceifeira», vv. 17-24

● Vocabulário simples, mas simbólico (rico semanticamente);


● Construções sintáticas simples;
● Pontuação expressiva;
● Recursos expressivos abundantes:

- metáfora
- antítese
- comparação
- repetição
- gradação
- interrogação retórica
- apóstrofe
- personificação
- anáfora

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