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Repertório, Salvador, nº 24, p.86-97, 2015.

ANCESTRALIDADE EM
CENA – O TEATRO DO
NATA

ANCESTRALITRY ON STAGE – THE


THEATRE OF NATA

Fernanda Júlia1

Resumo: O presente artigo visa apresentar, em linhas também de material primordial para a preparação inte-
gerais, a poética cênica do NATA – Núcleo Afro bra- lectual e técnica dos atores/atrizes, gerando princípios e
sileiro de Teatro de Alagoinhas, e discutir o encontro criando procedimentos que coloquem, no foco da cena,
entre o Teatro e o Candomblé, que orientam o processo a nossa herança cultural africana, salvaguardada pelas
criativo do grupo, fazendo uma breve reflexão sobre comunidades de axé (terreiros de Candomblé), no de-
como o NATA está desenvolvendo o seu projeto polí- correr dos séculos. Assim sendo, este artigo visa aliar
tico-poético, através da análise dos processos criativos os conceitos do fazer teatral contemporâneo aos con-
das suas três recentes montagens: os espetáculos Siré ceitos da música e da dança africana e afro-brasileira,
Obá – A festa do Rei, de 2009; Ogum – Deus e Homem, presentes no Candomblé, que fornecem sustentáculos
de 2010; e Exu – A boca do universo, de 2014. Esta à investigação cênica do NATA, propondo uma dis-
análise pretende sinalizar em que medida as manifes- cussão acerca das maneiras como nós, artistas negros,
tações culturais negras, em especial, para o NATA, o podemos colocar em cena a nossa história ancestral, a
Candomblé, podem e devem ser inspirações para a cria- partir do nosso ponto de vista e através do nosso fazer
ção cênica, tanto do ponto de vista da encenação como artístico. A história da cultura negra brasileira precisa
ser contada, sem “exotismo” e caricaturas, e faz-se mais
que necessário que sejam registrados e reconhecidos os
processos civilizatórios construídos pelos africanos e
1
Fernanda Júlia Barbosa é graduada no curso de Di- seus descendentes, na constituição do Brasil.
reção Teatral da Escola de Teatro da UFBA, mestranda
do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Palavras-chave: Teatro. Candomblé. NATA.
PPGAC – UFBA. Diretora fundadora do Núcleo Afro
brasileiro de Teatro de Alagoinhas – NATA, fundado Abstract: This article presents a general overview of
em 17 de outubro de 1998, na cidade de Alagoinhas/ the poetic performance of NATA (Núcleo Afro bra-
BA. Dramaturga, educadora, preparadora de atores e sileiro de Teatro de Alagoinhas), a Brazilian African
pesquisadora da cultura africana no Brasil, com ên- theatre group from the city of Alagoinhas, in Bahia. It
fase nas religiões de matriz africana: o Candomblé. É discusses the guiding boundaries between theater and
Yakekerê (mãe pequena) do Ilê Axé Oyá L’adê Inan, na Candomblé, which the group uses in its creative pro-
cidade de Alagoinhas, iniciada na religião do Candom- cess. The article reflects on how NATA is developing
blé para o Orixá Omolu.
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its political and poetic projects by analyzing the creative Nestes 16 anos de trabalho, o NATA vem reali-
processes of their three recent performances: Siré Oba zando montagens teatrais, oficinas, leituras dramá-
- The King's Feast (2009); Ogun - God and Man (2010); ticas, e movimentando o espaço teatral, com pro-
and Eshu - The Mouth of the Universe (2104). This jetos que discutem, divulgam e valorizam a cultura
analysis aims to trace the extent to which Black cultural afro-brasileira, em Alagoinhas, Salvador, em gran-
events, especially for NATA and Candomblé. It can and
de parte do interior da Bahia e, atualmente, pelo
should be inspirations for scenic creations; from their
unique points of view to their use as primary material Brasil.
for intellectual and technical preparation of the actors, Nossos espetáculos possuem, como eixo nor-
generating principles and creating procedures, which teador, a história, a cultura e a religiosidade afro-
place the focus on the African cultural heritage safe- -brasileira, com o objetivo de desmistificar os pre-
guarded by these Communities (terriers of Candom- conceitos e as imagens pejorativas que povoam,
blé) over the centuries. This article aims to align the histórica e culturalmente, o imaginário coletivo da
concepts of contemporary theater with the conceipts sociedade, resultantes de um processo de coloniza-
of African and Afro Brazilian dance and music pre- ção e racismo.
sent in Candomblé — which give sustaining support to No ano de 2009, no intuito de contribuir efe-
NATA’s scenic research — proposing a discussion of tivamente com essas questões, o NATA estreou o
the ways in which black performers can put ancestra-
espetáculo Siré Obá – A festa do Rei, uma grande
lity on stage, from a Afro-Brazilian point of view, and
through our artistic practice. The history of Brazilian homenagem aos Orixás e a todo o povo de axé
black culture needs to be told without the use and ca- (povo de terreiro) do Brasil. Construída dramatur-
ricature of "exotic", making necessary the registration gicamente através dos Orikis (poesias em exaltação
and recognition of the civilizing processes undertaken aos Orixás), sua encenação inspirou-se nos ritu-
by Africans and their descendants in the construction ais públicos das comunidades de axé (terreiros de
of Brazil. Candomblé) da Bahia.
O Siré Obá foi montado no ano de 2009 e apre-
Keywords: Theater. Candomblé. NATA. sentado no Centro de Cultura de Alagoinhas e
em quatro comunidades de axé (terreiros de Can-
domblé) do município, sendo o primeiro projeto
de um grupo teatral de Alagoinhas a ganhar um
edital público de montagem. Neste mesmo ano,
realizou temporadas no Teatro Vila Velha, em Sal-
Breve histórico vador; apresentou-se no III Fórum Nacional de
Performance Negra, também no Teatro Vila Velha,
O Núcleo Afro brasileiro de Teatro de Ala- e encerrou o I Festival de Teatro do Subúrbio de
goinhas – NATA, fundado em 17 de outubro de Salvador, no Centro Cultural Plataforma.
1998, na cidade de Alagoinhas, surgiu para parti- O espetáculo recebeu três indicações ao Prê-
cipar do I Festival Estudantil Teatro em Destaque, mio Braskem de Teatro 2009: melhor espetáculo
representando o Colégio Estadual Polivalente de adulto, direção revelação, para Fernanda Júlia que
Alagoinhas. Atualmente é formado pelos artis- divide com Thiago Romero a autoria e a direção
tas, Antonio Marcelo, Daniel Arcades, Fabíola Jú- do espetáculo e categoria especial para a direção
lia, Fernanda Júlia, Nando Zâmbia, Sanara Rocha musical de Jarbas Bittencourt, categoria em que foi
e Thiago Romero, conta com o ator colaborador premiado.
Fernando Santana, a parceria indispensável da Ka- Ainda como parte do projeto Siré Obá, o NATA
lik Produções Artísticas, tendo como diretora de realizou, em Alagoinhas, o I IPADÊ – Fórum Nata
produção Susan Kalik e na produção executiva de Africanidade, que reuniu yalorixás, babalorixás
Francisco Xavier e a parceria preciosa do coreógra- (pais e mães de santo), a comunidade de axé, a co-
fo Zebrinha, do diretor musical Jarbas Bittencourt, munidade artística e a comunidade em geral, para a
dos preparadores vocais Marcelo Jardim e Rani discussão de questões relacionadas ao Candomblé
Guerra e do técnico de som Eduardo Santiago. e ao processo criativo do espetáculo Siré Obá.
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Além da montagem de Siré Obá, o NATA re- São Paulo. Neste mesmo ano, integramos a pro-
alizou os espetáculos Axé “Origem, encanto e be- gramação da I Mostra Baiana no Fringe, no Festi-
leza” (2000), Senzalas “A história, o espetáculo” val Internacional de Curitiba, com apresentações
(2002) e Axé! (2003), montagens que colaboraram também do Siré Obá e participação na sexta edição
para o combate à intolerância religiosa sofrida pe- do Festival Latino Americano de Teatro da Bahia
las comunidades de axé, instaurando a discussão e – FILTE – BA, realizado pelo Oco Teatro, quan-
provocando reflexões sobre o tema. do apresentamos o espetáculo Siré Obá no palco da
Em 2010, o NATA estreou o espetáculo Ogum – Sala do Coro do TCA e na tenda do Teatro Popular
Deus e Homem, montagem premiada no I Prêmio de Ilhéus, em Ilhéus BA.
Nacional de Expressões Afro brasileiras, patroci- Em 2014, estreamos o espetáculo Exu – A boca
nado pela Fundação Cultural Palmares, o Ministé- do universo, montagem que integrou a programa-
rio da Cultura, a Petrobrás e o CADON.2 Este es- ção do projeto Exu Sile Oná TCA, que foi o projeto
petáculo participou da segunda edição do Festival vencedor da 19ª edição do TCA.Núcleo, edital que
“A cena tá preta”, do Bando de Teatro Olodum, consistiu em seis meses de ocupação artística do
em novembro do mesmo ano, e realizou o II IPA- NATA, no complexo cultural do Teatro Castro Al-
DÊ – Fórum Nata de Africanidade. ves, com a realização de 28 atividades que se divi-
No ano de 2011, fomos convidados para inte- diram em ações de formação, de intercâmbio com
grar o quadro de grupos residentes do Teatro Vila a Cia do Miolo de São Paulo, de apresentação de
Velha, em Salvador, sendo o primeiro grupo do in- repertório e de atividades integradas e de difusão.
terior do Estado a realizar residência artística no Em sua primeira temporada, no mês de mar-
respectivo teatro. ço deste mesmo ano, o espetáculo Exu – A boca
Em 2012, fomos aprovados no Edital Demanda do universo apresentou-se no Vão Livre do Teatro
Espontânea da FUNCEB e realizamos o projeto Castro Alves e circulou em mais três espaços cultu-
“NATA Oná Ilú Ayê – O NATA pelos caminhos rais da cidade de Salvador, através da nossa ativida-
do mundo”, que consistiu na apresentação do espe- de de difusão, o Irradia.TCA; apresentamos, ainda,
táculo Siré Obá, em quatro comunidades de axé de o espetáculo Exu – A boca do universo, no Cine
Salvador (Terreiros Mokambo, Abassá de Ogum, Ilê Teatro Solar Boa Vista, na arena do Teatro Sesc –
Axé Oxumarê e Terreiro do Gantois) e mais oito co- Senac Pelourinho e no Centro Cultural Plataforma,
munidades de axé, em cidades do interior do Estado totalizando mais de 2.500 espectadores.
(Catu, Alagoinhas, Feira de Santana, Dias D’Ávila, Em maio deste mesmo ano, o NATA partici-
Cachoeira, Santo Amaro, Simões Filho e Inhambu- pou do I Abriu de Leituras, projeto de leituras dra-
pe). Além disso, integramos a programação da V máticas idealizado e realizado pela CAN – Cia Ab-
Edição do Festival Internacional de Artes Cênicas dias Nascimento, que comemorou os dez anos de
da Bahia – FIAC – BA, realizando apresentações do existência do grupo. Nesta oportunidade, o NATA
citado espetáculo na Arena do Teatro Sesc-Senac realizou a leitura dramática do texto Anjo Negro, de
Pelourinho e no Centro Cultural de Alagados. Nelson Rodrigues.
No ano de 2013, o NATA, com o espetáculo No mês de setembro, o NATA fez a abertura
Siré Obá – A festa do Rei, fez parte da programação do Festival de Teatro Brasileiro – FTB, no Centro
do projeto Nova Dramaturgia de Melanina Acen- Cultural Banco do Brasil – CCBB, em São Paulo,
tuada, sob a direção e a produção de Aldri Anun- com a apresentação do espetáculo Exu – A boca
ciação, que desenvolveu um projeto de ocupação do universo.
artística, no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em O espetáculo Exu continuou em cartaz e o
NATA participou, nos meses de setembro e outu-
bro, dos festivais FILTE – BA e FIAC – BA.
2
Centro de Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo dos Em novembro, realizamos nova temporada do
Santos Neves, idealizador e realizador do Prêmio Na- espetáculo Exu – A boca do universo, no Centro
cional de Expressões Afro brasileiras que já está na ter- Cultural da Barroquinha, e este, foi indicado ao
ceira edição. prêmio Braskem de Teatro, em quatro categorias:
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melhor espetáculo adulto, melhor espetáculo do


interior, melhor direção e categoria especial para
Thiago Romero, pelo cenário, figurino e maquia-
gem do espetáculo.
Em 2015, no mês de janeiro, o NATA apresen-
tou-se no Polo Teatral, em Camaçari, festival pa-
trocinado pela Braskem, para indicar os melhores
espetáculos do interior da Bahia.
Em fevereiro, realizou a abertura do FLITLÂ
– Festival Itinerante de Teatro Latino Americano
Âmbar, com o espetáculo Exu – A boca do univer-
so, no Teatro Sesc-Senac Pelourinho. Figura 1 – Atriz convidada do NATA, Yalorixá Mãe Rosa de
Em março, participou da Mostra Braskem de Oyá, cantando para Oxalá, na cena final do espetáculo Siré
Obá – A festa do Rei – palco principal do TCA, março de
Teatro, evento patrocinado pela Braskem e pro-
2013. Fotografia: Andréa Magnoni.
duzido pelo Caderno 2 Produções Artísticas, que
colocou em cartaz todas as montagens teatrais in- A formação cultural brasileira, em sua história
dicadas na categoria de melhor espetáculo adulto e nas afirmações dos estudos antropológicos, nos
e infanto-juvenil, com apresentações realizadas no revelou que a formação da cultura do povo bra-
Cine-Solar Boavista. sileiro é resultado das interações entre três matri-
Neste mesmo mês, iniciou o projeto Palco Gi- zes culturais diferentes, a matriz indígena, a matriz
ratório do SESC, pelo qual realizará 33 apresenta- europeia e a matriz africana. As interações entre
ções do espetáculo Exu – A boca do universo, em essas matrizes geraram a “diversidade” cultural do
27 cidades pelo Brasil. povo brasileiro. Porém, na história dita “oficial” da
constituição do país, não são evidenciadas as con-
UMA REFLEXÃO SOBRE A POÉTICA tribuições civilizatórias que as matrizes indígenas
DO NATA e africanas legaram ao Brasil, apenas a matriz do
“colonizador europeu” é vista e entendida como
Um (a) atriz/ator em silêncio, no centro do pal- referencial civilizatório, e esta visão prepondera, de
co, o olhar direcionado à plateia. Olho no olho, esse forma contundente, alijando as demais matrizes de
indivíduo compartilha informações impalpáveis. maior conhecimento histórico e cultural, por gran-
Que corpo é esse? A simples presença desse de parte da população, o que ocasiona o fortaleci-
corpo na cena conta uma história. História que está mento de apenas uma matriz (a matriz europeia),
presente em cada poro do corpo desse(a) ator/ como referência norteadora da construção do ar-
atriz, no som de sua voz, na forma de olhar, de cabouço simbólico-cultural do povo brasileiro.
caminhar, de respirar. Para falar de ancestralidade, é importante com-
Esta (e) atriz/ator, quando entra em cena, não preender que a maior parte da população brasileira
entra sozinha (o). Carrega em cada partícula do foi educada para se nortear, ética, filosófica, cul-
seu corpo a história, a cultura, os valores de onde tural, econômica e socialmente, apenas pelas dire-
veio. Mesmo sem raciocinar muito sobre isso, a sua trizes do pensamento europeu, e na atualidade so-
simples presença em cena fala muito de um deter- mos guiados pelo pensamento “norte-americano”.
minado lugar, de determinadas pessoas e de seus Neste contexto, as demais contribuições culturais
respectivos costumes. perderam-se no limbo simbólico da “alegoria”, do
Assim, quando entra em cena, leva junto consi- “estereótipo exótico” do “folclore”. Assim sendo,
go sua ancestralidade, sua identidade cultural e se a construção identitária do povo brasileiro ainda
torna um referencial identitário para os espectado- está longe de conseguir dar conta da tão falada “di-
res que o assistem. versidade cultural” do Brasil.
Sendo esta assertiva uma obviedade por que en-
tão uma reflexão sobre este tema?
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O processo da colonização europeia no Brasil mundo. Basta dizer que os primeiros homens, o
firmou seus pilares na escravização de mulheres e homo-erectus, assim como o homo sapiens, têm
homens, indígenas e africanos, e a partir daí toda sua origem na África. Os primeiros homens tal
a construção do discurso histórico dito “oficial” e como somos hoje surgiram por volta de 150.000
todo o material produzido através de livros, arti- anos a.C. e eram negros. (LUZ, 2000, p. 25)
gos, periódicos, filmes, músicas e demais mídias,
apresentam a história da cultura indígena e da cul- Esta afirmação de Marco Aurélio Luz é o pon-
tura africana, no país, a partir do processo escravi- to de partida que necessitávamos para propor al-
zatório e seus desdobramentos atuais, ignorando guns questionamentos. Como pode ser “atrasada”
a complexidade das culturas que antecederam as a mais antiga civilização do mundo? Como, se não
histórias de cada indivíduo escravizado no Brasil. através de um olhar enviesado e etnocêntrico, po-
Esta forma de estabelecimento dos fatos históricos demos ainda reiterar que os africanos e seus des-
apaga a diversidade e a grandiosidade da vida cul- cendentes são indivíduos atrasados em busca de
tural, econômica, política, artística e religiosa, dos civilidade? Apresenta-se, na citação a cima, dados
nossos antepassados, indígenas e africanos, e nos importantes para uma reescritura, para um ajuste
faz crer que descendemos de “homens e mulheres do entendimento e para a abertura de novos ca-
sem alma”, meros objetos a serem domesticados minhos de compreensão acerca do valor, da im-
para servirem, como ainda é entendido pelo senso portância e significância da cultura africana e seu
comum à “real civilização do mundo”, a Europa. legado no Brasil.
Esse equívoco vem sendo duramente combatido Para melhor exemplificar a construção de um
e nós, descendentes de povos indígenas e afrodes- processo civilizatório negro-africano, devemos
cendentes, após lutas e grandes desafios, estamos atentar para o significado das construções dos qui-
conseguindo escrever a nossa história, do nosso lombos e seus desdobramentos históricos. Os qui-
ponto de vista, através das nossas visões de mundo. lombos representaram e representam, ainda hoje,
Por esse e outros motivos, acredito ser pertinente muito mais que apenas o espaço de fuga das negras
um grupo de teatro negro poder discutir, através de e negros escravizados, mas, sim, uma forma deter-
seu fazer artístico, através da sua visão de mundo, minante da edificação de reinos africanos no Brasil.
a importância e a relevância do Candomblé para a Tomando como exemplo, o quilombo de Palmares
cultura, a política, as artes e a economia do Brasil. o mais famoso dos quilombos brasileiros, talvez
Em seu livro “Agadá – Dinâmica da civilização seja esta síntese histórica, que demonstra as estra-
africano-brasileira”, o autor, Marco Aurélio Luz, tégias de resistência do povo negro contra a escra-
traz preciosas contribuições para a compreensão vidão, e sua força de adaptação e re-amalgamento
efetiva da construção civilizatória do povo africano das estruturas culturais. Ainda citando Marco Au-
no Brasil. É importante dizer que as mulheres e rélio Luz, podemos perceber que:
homens africanos que foram trazidos à força para
Os quilombos e seus desdobramentos na luta
cá não colaboraram apenas para a construção do
do negro pela libertação, implantando e expan-
país, mas sim fundaram aqui um processo civili- dindo a tradição de seus valores e suas formas
zatório negro-africano. Um processo civilizatório de organização e produção social nas Américas,
é muito maior que apenas uma “contribuição na se constituem nos princípios libertários mais
constituição da nação”; nossos antepassados ci- importantes para o fim da opressão colonialista
vilizaram este país, pois o legado cultural africano escravista, na sua forma moderna o capitalismo
formou, modulou, influenciou e modificou a cons- imperialista. As comunidades-estado negras es-
tituição da sociedade brasileira, desde o início. Es- palhadas pelas Américas constituem uma forma-
tas afirmações encontram eco no pensamento de ção social paralela, cujos valores caracterizam-se
Marco Aurélio Luz: por uma continuidade transatlântica da tradição
africana que se antagoniza com a estrutura e os
A história da civilização negra se perde na noi- valores impositivos coloniais-imperialistas. Mais
te dos tempos. É a civilização mais antiga do do que um quilombo, o reino afro-brasileiro dos
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Palmares se desenvolveu e teve diversos desdo- O legado dos valores africanos que permitiu uma
bramentos no decorrer da história. Seus valores continuidade transatlântica está consubstanciado
inspiradores da luta anticolonialista permanecem nas instituições religiosas. São dessas instituições
nos dias atuais. Essa pujança marcada por esse que se irradiam os processos culturais múltiplos
continuum atenta que ele foi a forma viável que que destacam uma identidade nacional. Desde a
melhor atendeu à edificação da nação brasileira África, a religião ocupa um lugar de irradiação
no decorrer do período colonial. (LUZ, 2000, p. de valores que sedimentam a coesão e a harmo-
263-274) nia social, abrangendo, portanto, relações do ho-
mem com o mundo natural. (LUZ, 2000, p. 32)
Em consonância com a citação a cima, pode-
mos compreender a importância histórica que o O Candomblé representa o lugar de salvaguar-
quilombo de Palmares representou na luta anti- da de toda a herança africana, como bem descreve
colonialista e na edificação da nação brasileira no Marco Aurélio Luz na citação a cima, e no Brasil,
decorrer do período colonial e encontrando ecos sua constituição significou e ainda significa o forta-
de sua relevância até a república. Deste modo o lecimento da nossa relação com o continente afri-
Candomblé plantou suas sementes de criação no cano, pelo viés daquilo que herdamos dos nossos
interior dos quilombos, na nova configuração tran- antepassados negros.
satlântica do povo negro e em sua reorganização Estudar esta página de nossa história revela a
cultural, e principalmente como necessidade de perversão do processo de dominação imputado
resistência, por parte do povo negro escravizado, aos nativos, chamados índios, e aos africanos se-
de proteger aquilo que é a síntese da sua cultura questrados e trazidos para o então chamado Brasil.
o “culto aos antepassados”. A religiosidade africa- Para além das perversões do sistema colonizató-
na é calcada na memória, no conceito totêmico de rio, a análise do surgimento e do fortalecimento do
pertença, de origem, de conter e estar contido na Candomblé comprova a capacidade do povo negro
natureza, ponto de partida da construção divina e de resistir; comprova as estratégias de luta e con-
da ancestralidade daqueles que aqui estiveram an- servação da memória e dos costumes; e compro-
tes. As divindades são ancestrais míticos, ancestrais va, ainda, o quanto a identidade cultural é de suma
primordiais que geraram todos os outros ancestrais. importância para a afirmação de um povo e sua
Estas noções, tão caras aos africanos, são a única constituição enquanto nação. O Candomblé é uma
riqueza não retirada pela escravidão. E esta riqueza construção cultural brasileira, foi criado no Brasil,
lhes renovou o poder, a força, e através dela estabe- durante o processo da escravidão, porém é impor-
leceu-se um grande fenômeno, o Candomblé. Este tante compreender que ele é resultado da união de
fenômeno é composto por um complexo conjunto comunidades étnicas africanas diferentes e de seus
de preceitos, conceitos e regras, que reuniu o povo descendentes nascidos no cativeiro. Africanos de
negro em estado de resistência contra o domínio diversas nações passaram por cima de suas dife-
do colonizador, para manter vivas as tradições, renças étnicas, religiosas, econômicas, filosóficas e
reinventar e adaptar preceitos e preservar a memó- intelectuais, aliando-se a negras e negros, nascidos
ria das suas “culturas”. Afinal, estamos falando de durante o regime escravista, para encontrar formas
um continente que contêm meia centena de países de resistir. Esta resistência foi toda pautada naquilo
e milhares de línguas, costumes e valores. que o africano e nós, afrodescendentes, temos de
O Candomblé é um fenômeno civilizatório, mais precioso, a ancestralidade, esta noção de fazer
um grande instrumento tecnológico de resistência, parte, de integrar um grande coletivo e de respeitar
tanto do ponto de vista energético-espiritual quan- a senioridade fez com que, através da fé, todos os
to do ponto de vista prático, na luta do dia a dia do elementos importantes da cultura africana e afro-
negro africano, para não se entregar à escravização -brasileira fossem guardados, de modo a passar
sem lutar. Marco Aurélio Luz afirma: de geração a geração, e chegarmos ao século XXI
percebendo o quão valoroso significa saber-se e
entender-se identitária e culturalmente.
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Foi observando o dia a dia das comunidades de Quer dizer, um extremo confronto, sincero, dis-
axé (terreiros de Candomblé), espaço do qual faço ciplinado, preciso, total – não apenas um con-
parte, por ser iniciada no culto aos Orixás, desempe- fronto com seus pensamentos, mas um encontro
nhando o cargo de Yákekerê (Mãe pequena) do Ilê que envolve todo o seu ser, desde os seus ins-
Axé Oyá L´adê Inan, sede do NATA, na cidade de tintos e seu inconsciente até o seu estado mais
lúcido. (GROTOWSKI, 1971, p. 67)
Alagoinhas, que podemos compreender as noções
de sagrado, o respeito aos mais velhos e às crianças,
Acreditamos que o teatro ocupa um lugar privi-
o valor da vida, da natureza, o transe, o equilíbrio en-
legiado, é a arte do “encontro”, como bem afirma
tre o material e o espiritual, e aprofundar o conceito
Grotowski, sendo, ainda, o espaço do ver e ser vis-
da reversibilidade entre ser humano e divindade.
to, e de todas as reflexões inerentes a estas ações.
Todos estes conhecimentos foram preservados
Desse modo, vemos nesta forma de expressão um
durante séculos, no interior das comunidades de
lugar em que o rito e a arte possam se encontrar.
axé, responsáveis por salvaguardarem toda a he-
A herança das matrizes culturais africanas contri-
rança do povo negro africano no Brasil. Esta he-
buiu em grande parte de nossa formação cultural,
rança, que deveria ser de conhecimento de toda a
por isso fomos buscar no Candomblé o material
população e, por conseguinte, valorizada, vem há
necessário à construção de um fazer teatral funda-
séculos lutando contra um processo violento e vi-
mentado no teatro-físico ritual.
goroso de invisibilização. O autor Marco Aurélio
O uso do termo teatro-físico ritual reflete a ten-
Luz relata a antiguidade da nossa ancestralidade
tativa de mostrar que, através da ativação da me-
africana, quando afirma que:
mória cultural da atriz/ator, e de sua religação com
A civilização negro-africana é a mais antiga da os elementos conscientes ou não das divindades
humanidade, e como tal, através do Egito fara- primordiais, no caso os Orixás, é possível adqui-
ônico, influenciou marcadamente diversas outras rir um autoconhecimento que nos religue à nossa
culturas, até mesmo aquelas que são alardeadas história cultural e corporal, sem deixar de dialogar
como constituintes da base da civilização ociden- com as pesquisas contemporâneas sobre o teatro, já
tal, como o mundo antigo grego e romano, mal- desenvolvidas. São princípios que se encontram em
grado as distorções ocorridas na absorção do sa- campos e linguagens diferentes, mas que conver-
ber egípcio por esses povos. (LUZ, 2000, p. 487) gem para novas formas de fazer e atuar. Não sem
propósito, Eugênio Barba sinaliza que o encontro
Assim, partindo da premissa de que a ancestra- entre culturas, teatro e ritos, não significa cair no
lidade africana é a ancestralidade primordial da hu- sincretismo, mas encontrar uma “base pedagógica
manidade, nós do NATA – Núcleo Afro brasileiro comum” e “princípios básicos comuns”, por meio
de Teatro de Alagoinhas fomos buscar no Candom- de experiências diversificadas, seja no teatro, seja
blé a matéria-prima para a construção de um fazer nas manifestações culturais. Ainda segundo ele, “os
cênico fundamentado no teatro físico e na rituali- teatros não se assemelham nas suas representações,
dade, onde, ao transitarmos nas fronteiras entre o mas em seus princípios” (BARBA, 1995, p. 9).
Candomblé e o Teatro, colocamos em cena a beleza A poética3 teatral do NATA nasce da necessi-
e a grandiosidade da nossa herança cultural negro- dade de ver em cena a história e a contribuição ci-
-africana, preservada no Brasil pelo Candomblé. vilizatória do povo negro. É um teatro pautado na
Portanto, o NATA acredita na força do Teatro, valorização e divulgação da nossa herança ances-
esta arte milenar, que nasceu do rito, do encontro tral, como forma de preservação e desmistificação
do indivíduo e de sua ligação com a ancestralidade, dos conceitos pejorativos construídos em séculos
com a noção de pertencimento e de origem. Sobre de escravização e racismo.
o teatro, como o “grande lugar do encontro”, afir-
ma Grotowski:
A essência do teatro é o encontro. O homem 3
O conceito de “poética” aqui posto está pautado no
que realiza um ato de auto-revelação é por assim pensamento do teórico Luigi Pareyson, em seu livro Es-
dizer, o que estabelece contato consigo mesmo. tética e teoria da formatividade (1993).
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realização desta pesquisa cênica nas encenações do


NATA, seguimos as seguintes etapas:
Rituais instauradores – Esta é uma imersão
sensorial realizada no interior da comunidade de
axé (terreiro de Candomblé), no caso do NATA, no
Ilê Axé Oyá L’adê Inan, na cidade de Alagoinhas, que
tem por objetivo realizar as cerimônias propiciató-
rias para a construção da montagem, desde oferen-
das, banhos energizadores, pedidos de autorização
para as divindades, até as experimentações cênicas
realizadas a partir do contato íntimo dos atores com
Figura 2 – Atriz do NATA – Fabíola Júlia em cena no os quatro elementos essenciais da natureza: terra,
espetáculo Siré Obá – A festa do Rei – no palco principal do fogo, água e ar. Levando em consideração que cada
TCA, em março de 2013. Fotografia: Andréa Magnoni. um desses elementos é regido por certo número de
Orixás, essas divindades são separadas, por seu ele-
Na busca deste objetivo, o NATA já estreou mento da natureza, e o objetivo é colocar os atores
as montagens Siré Obá – A festa do Rei, Ogum – em contato com as energias, as cores, as músicas, os
Deus e Homem, o show afroperformático Adupé! alimentos e as lendas de cada um desses Orixás, e
e a montagem Exu – A boca do universo. Nestes as reverberações energéticas de cada elemento pri-
espetáculos, nos inspiramos nos rituais públicos do mordial da natureza presente na personalidade de
Candomblé e narramos, através dos itans,4 orikis,5 cada divindade, além de ficarem também em conta-
adurás6 e orins,7 os mitos e demais histórias sobre a to com o dia a dia da comunidade de axé e poderem
cultura negra afro-brasileira. observar e aprender mais sobre a cosmologia e a
No teatro “primitivo”, onde o sensorial está cosmogonia da nossa cultura ancestral africana.
acima do sentido semântico, onde o ator é um ins- Ativação da energia sexual – A cultura tradi-
trumento de ligação entre o plano das divindades cional africana é toda ela pautada no contato ínti-
e o plano dos homens, onde o teatro é o encontro mo de seu povo com a sexualidade, com o copular,
do material com o imaterial, neste teatro, onde o com o procriar. O ato sexual não é visto com res-
corpo e a cena são muito mais importantes que o trições, e sim como a liberdade do corpo e o con-
texto, é que encontramos material para a constru- tato com o divino. Em muitas músicas dedicadas
ção dos espetáculos acima citados. aos Orixás, são exaltados os atributos de virilidade
Para o desenvolvimento deste trabalho cênico, e potência do pênis de Ogum ou Xangô ou a beleza
o NATA vem elaborando a pesquisa cênica que in- dos seios de Oyá ou Yemanjá. Para a cultura tradi-
titulou poeticamente de “Ativação do Movimento cional africana, sexo é estar vivo e em contato com
Ancestral”. Esta pesquisa vem gerando princípios o divino. Neste momento do processo, os artistas
e procedimentos para o processo de encenação do envolvidos são convidados a entenderem o valor
grupo, desde 2009. da energia que vem do baixo ventre, dos canais por
O processo metodológico está em desenvolvi- onde entram e saem energia do nosso corpo. A
mento, análise e reflexão, no projeto de pesquisa energia sexual, neste contexto, está atrelada direta-
de mestrado, que desenvolvo no Programa de Pós- mente ao prazer, no sentido mais amplo da palavra.
-Graduação em Artes Cênicas PPGAC – UFBA, O prazer está ligado à liberdade, ao jogo, à troca. O
sob a orientação da Prof.ª Drª Sônia Rangel. Para a aparelho genital é foco desses exercícios e a ativa-
ção pélvica e anal são responsáveis pela irradiação
dessa energia, expandindo-a para todo o corpo da
4
Itans – Lendas dos Orixás. (o) atriz/ator e para quem a/o assiste.
5
Orikis – Poesia em exaltação aos Orixás. Preparação corporal, vocal e Poeirão cênico
6
Adurás – Rezas ritualísticas do Candomblé. – Após o período dos rituais instauradores, os ato-
7
Orins – Cantos para os Orixás e para os ancestrais. res voltam para a sala de ensaio e realizam as aulas
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de preparação corporal, através da dança afro e da Desde 2009, com o espetáculo Siré Obá, o NATA
capoeira; em seguida, iniciam as aulas de prepara- vem trabalhando a partir destas proposições, o que
ção vocal, onde investigamos a musicalidade africa- vem nos mostrando, a cada espetáculo, o quanto um
na e afro-brasileira, sua melopeia e prosódia. Após mergulho em nossa herança cultural é necessário e
estes estudos, listamos as imagens norteadoras do pertinente, além de muito enriquecedor.
espetáculo e, a partir daí, são propostos exercícios
cênicos que partem de improvisações corporais, UM PROJETO SOBRE A ANCESTRALI-
ainda sem a utilização da linguagem falada, mas DADE NEGRA
apenas pela utilização do corpo e das vocalizações
das imagens corporais geradas nos exercícios, que O NATA ambiciona, em seu projeto político-
são estimulados por músicas, cantos, danças, chei- -poético, a construção de um espetáculo para cada
ros, cores e imagens poéticas. Todo este aparato uma das divindades do panteão ioruba cultuadas
gera um processo de construção de materiais cêni- no Brasil, sendo, no total, dezessete espetáculos.
cos, a serem selecionados e aprofundados, no de- No encalço da realização deste ambicioso projeto,
correr da construção do espetáculo. “Poeirão” vem já estreamos três montagens. Para melhor compre-
da imagem da poeira sendo levantada pelo vento, ensão do nosso projeto poético-político, farei uma
onde um grande número de elementos é alçado no breve reflexão sobre as montagens Siré Obá – A
ar. Utilizando esta metáfora o NATA neste pro- festa do Rei, Ogum – Deus e Homem e Exu – A
cesso faz um levantamento indiscriminado de ma- boca do universo.
teriais cênicos, a serem selecionados e editados no
decorrer da montagem do espetáculo. SIRÉ OBÁ – A FESTA DO REI
Urdimento da obra cênica – Neste momento,
todo o material imagético, levantado no poeirão cê- O espetáculo Siré Obá – A festa do Rei foi o defla-
nico, que foi estimulado pelos rituais instauradores grador da proposta político-poética do NATA. Após
e pela ativação da energia sexual, é selecionado e, encontrarmos o teatro do Bando de Teatro Olodum,
seguindo o que propõe a concepção da montagem, da Cia dos Comuns e do Coletivo Abdias Nascimen-
é aprofundado, visando apurá-lo e deixar apenas o to – CAN,8 compreendemos a necessidade de evi-
“essencial”. denciar, em nosso trabalho cênico, a nossa identidade
Chegada do Texto – Durante todo o proces- cultural negra, para fortalecermos a criação de refe-
so de experimentação, fragmentos e frases-chave renciais identitários negros e preservarmos a nossa
do texto foram utilizados como disparadores da riqueza cultural, para as futuras gerações.
criação de material cênico. Após um período de Siré Obá – A festa do Rei é uma celebração, uma
experimentação, o texto chega e juntos analisamos homenagem às divindades africanas que compõem
a funcionalidade das cenas, seus encaixes e pro- a cosmogonia iorubana. Inspirados dramaturgica-
posições. Unindo os materiais produzidos à dra- mente pelos Orikis (poesia em exaltação aos ori-
maturgia proposta, retiramos deste encontro uma xás), realizamos a montagem de um espetáculo-
síntese. A partir desta síntese, as cenas vão sendo -festa, que une religião e arte. O espetáculo segue
finalizadas, no que tange a sua estrutura, e preen- a sequência das músicas cantadas e tocadas para
chidas, no decorrer dos ensaios, até adquirirem a os Orixás, nos rituais públicos do Candomblé, ce-
forma que será apresentada ao público.
Ensaios abertos – São ensaios realizados com
a presença de espectadores, com o objetivo de per-
8
Grupos de teatro que pesquisam cenicamente a heran-
ça cultural africana. O Bando de Teatro Olodum, dirigi-
cebermos em que grau de qualidade cênica e de
do atualmente por um colegiado interno, composto por
comunicação o espetáculo está. Após a apresen-
integrantes do grupo e o Coletivo Abdias Nascimento
tação do que temos do espetáculo, nós ouvimos – CAN, sob a direção de Ângelo Flávio, são grupos de
os espectadores e as análises e reflexões realizadas Salvador, e a Cia dos Comuns, dirigida pelo ator Hilton
neste encontro impactam diretamente a estrutura Cobra, é sediada no Rio de Janeiro. Estes três grupos são
ou reestrutura da montagem. grandes referências cênicas para o teatro do NATA.
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lebrando, junto com espectador, a grandeza e os


feitos dessas divindades.
Através do teatro, da dança afro, da música e
da poesia, o espetáculo mostra a beleza, a poesia
e a filosofia do culto aos Orixás, desmistificando
preconceitos e combatendo a intolerância religiosa.
Foi durante a montagem deste espetáculo que,
como encenadora, experimentei e propus aos de-
mais artistas criadores do grupo uma plataforma
de criação cênica, pautada em nossa ancestralidade
e no diálogo contínuo entre a tradição cultural ne-
gra e a contemporaneidade. Figura 3 – Atores do NATA, Fabíola Júlia e Nando Zâmbia,
Neste processo, o NATA percebeu que as in- em cena, no espetáculo Siré Obá – A festa do Rei – no
vestigações sobre o teatro ritual, a dança, a músi- palco principal do TCA, em março de 2013. Fotografia:
Andrea Magnoni.
ca africana e afro-brasileira, o Candomblé, o teatro
contemporâneo e a performance, eram elementos sua característica de “senhor da tecnologia” e seu
fundamentais para atingirmos o objetivo que alme- desejo de ser “humano”. As venturas e desventuras
jávamos, que sempre foi o de colocar em cena a deste deus-homem e deste homem-deus, através
história dos nossos antepassados africanos, através de seus feitos, seu amor pela grandiosa Oyá e sua
do nosso ponto de vista e da nossa visão de mundo, parceria com Iku (a morte), sua companheira de
realizando um fazer teatral desde dentro para fora.9 jornada, foram material de pesquisa para a constru-
Siré Obá é um espetáculo construído para pro- ção da montagem.
por o diálogo entre o sagrado, no teatro, e o cênico Ogum entregou à humanidade o segredo do
do Candomblé. Este diálogo provocou um fluxo fogo e foi o grande transmutador. Além de senhor
interessante, pois levou o público do “terreiro” da guerra, é também senhor da tecnologia, da en-
para o teatro e o público do teatro para o “terrei- genharia do universo. Seu talento para transmutar
ro”, uma vez que o espetáculo fora montado para os elementos o fez descobrir o metal e, a partir daí,
atender a estes dois espaços. Realizamos tempo- a humanidade deu um salto tecnológico, saindo da
radas em vários edifícios teatrais de Alagoinhas, idade da pedra para a idade dos metais.
Ilhéus, Salvador, São Paulo, Curitiba, e também em Utilizando seis itans (lendas) do orixá Ogum, o es-
doze terreiros de Candomblé entre Salvador e o petáculo, através de uma estrutura lírico-narrativa,
interior do Estado da Bahia. Neste momento, per- conta a história desta divindade, desde o momento
cebemos para quem dirigíamos nosso discurso cê- que ele pede a Olodumare,10 através de Exu, que o
nico e quais as motivações nos alimentavam, para transforme em humano. Desta maneira, torna-se o
aprofundar ainda mais este pensamento teatral. wasiawjú.11 Focando em sua qualidade de senhor da
tecnologia, o espetáculo tanto visualmente quanto
OGUM – DEUS E HOMEM em sua interpretação, por parte dos atores, trazia
fortes elementos contemporâneos, como a música
A segunda montagem da pesquisa cênica do eletrônica, os figurinos inspirados em grandes mo-
grupo, o espetáculo Ogum – Deus e Homem nar- delagens das passarelas internacionais e um cenário
rou a história do orixá Ogum, com um recorte de futurista, inspirado nos programas de computador.
Ogum – Deus e Homem foi a montagem de fi-
nalização da minha graduação, em direção teatral,
na Escola de Teatro da UFBA, e oportunizou a
9
Expressão cunhada pela etnóloga Juana Elbein San-
tos, como conceito metodológico aprendido com a
ritualidade do Candomblé para a sua tese de doutorado,
publicada no livro “Os nagô e a morte – Pàde e Asèsè e 10
Deus de todos os destinos, para os iorubas.
o Culto Égun na Bahia”. 11
Do ioruba: aquele que vai à frente.
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verticalização da pesquisa cênica “Ativação do mo- EXU – A BOCA DO UNIVERSO


vimento ancestral”.
Seguindo as etapas citadas anteriormente, per- O espetáculo Exu – A boca do universo foi a
cebemos que esta montagem exigia de nós mais ação culminante do projeto Exu silé oná TCA – Exu
verticalidade no que tangia à comunicação com o abre os caminhos do novo TCA, projeto vencedor
espectador, por isso, vários elementos da encena- do Edital TCA.Núcleo “Em Construção” – Edi-
ção trabalharam a favor da aproximação da plateia ção Especial 2013/Uma Homenagem a Lina Bo
ao universo do orixá Ogum, além de sustentar a Bardi. Nesta edição, o edital consistia na realização
concepção cênica da montagem. Dentre estes vá- de uma ocupação artística de cinco meses, onde o
rios elementos, destaco o figurino e a música. grupo selecionado faria parte da programação do
O figurino foi todo concebido como um “gran- teatro, com diversas atividades, além das apresen-
de desfile de moda”, trabalhando os elementos mí- tações dos espetáculos de repertório e a estreia da
ticos dos orixás, como as cores, por exemplo, em nova montagem do grupo.
figurinos supercontemporâneos. Assim sendo, o NATA iniciou a ocupação artís-
A música foi um experimento à parte. Abrimos tica, em outubro de 2013, e estreou em março de
mão dos atabaques, agogôs e xequerés em cena, para 2014 o espetáculo Exu – A boca do universo, que
adaptar os ritmos do Candomblé a uma batida ele- consiste em um espetáculo de celebração à vida.
trônica. Esses elementos traziam a mitologia ioru- O espetáculo narra, sem compromisso cronoló-
ba para bem perto dos espectadores e os convidava gico, momentos em que Exu se mostra diferente
a dialogar conosco, a perceber que este legado é daquilo que tanto se pregou na cultura ocidental
uma herança de todo e qualquer brasileiro, inde- sobre o orixá que rege a comunicação e a liberda-
pendente de credo, raça ou classe social. de no Candomblé. Optando por uma dramaturgia
O espetáculo Ogum – Deus e Homem levou músico-poética, por atores que personificam as di-
para a plateia do Teatro Martim Gonçalves, em sua versas concepções de Exu, o humano e o divino se
maioria, um público que nunca havia entrado num entrelaçam na celebração à condição de estar vivo.
edifício teatral, as comunidades de axé, que ficam Exu, em suas várias facetas, mostra-se no espetácu-
localizadas nas periferias da cidade, lotaram a tem- lo como alguém que valoriza o movimento da vida,
porada do espetáculo, o que reforçou ainda mais do falar ao agir, do pensar ao sentir.
a nossa responsabilidade, com o objetivo de levar Nesta montagem, o NATA conseguiu um me-
a comunidade negra a se ver e ser vista no espaço lhor equilíbrio, no que tange o encontro entre o
midiático, que é o teatro, contribuindo com o for- Teatro e o Candomblé. Exu é o Orixá da comu-
talecimento de sua referencialidade negra. nicação e desmistificar os conceitos pejorativos
sobre Exu e nos comunicar com qualquer especta-
dor, sendo ele de Candomblé ou não, era e conti-
nua sendo nosso foco mais premente.
Exu obteve uma excelente aceitação, tanto por
parte do público, quanto por parte da crítica, e vem
lotando todas as apresentações, em todas as cidades
do Brasil, por onde estamos passando, através da
edição 2015 do projeto Palco Giratório do SESC.
Em busca de amadurecermos nossa poética e
de contribuirmos cada vez mais com a ocupação
da nossa cultura nos espaços de mídia, como tea-
tro, cinema, tv e redes sociais, o NATA, organiza-
Figura 4 – Ator Val Perré, em cena, interpretando o orixá
-se para a construção do próximo espetáculo sobre
Ogum, no espetáculo Ogum – Deus e Homem, setembro
de 2010 – Teatro Martim Gonçalves – Escola de Teatro da os Orixás e Exu, e o jogo de búzios nos indicará
UFBA. Fotografia: Labfoto. qual será nossa próxima montagem.

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UMA BREVE CONCLUSÃO ços midiáticos, e também, buscar revelar a com-


plexidade desta cultura em sua efetiva contribuição
A cultura brasileira é riquíssima e diversa, o que civilizatória para o Brasil.
faz com que a história da constituição desta cultura
tenha mais protagonistas. É de suma importância, REFERÊNCIAS
para a emancipação de um país, que seus indivíduos
tenham consciência da sua identidade cultural, que BARBA, Eugênio. Queimar a casa: origens de um
compreendam efetivamente de onde se originaram diretor. São Paulo: Perspectiva, 2010.
seus costumes, seus valores, quais povos contribu- BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A arte se-
íram para a constuição da sociedade onde vivem. creta do ator: Dicionário de antropologia teatral. São
O Candomblé, neste sentido, deve ser visto para Paulo: Hucitec; Campinas, SP: Editora da Uni-
além da expressão religiosa, o que não minimizaria camp, 1995.
sua ação, pois a religião, para o povo africano, está BRANCO, João. Nação teatro: história do teatro em
contida em todas as instâncias da vida, porém, em se Cabo Verde. Cabo Verde: Instituto da Biblioteca
tratando de compreensão antropológica e cultural, no Nacional e do Livro, 2004.
sentido aqui posto neste artigo, a análise acerca do COPELOVITCH, Andrea. A construção do persona-
Candomblé rompe as barreiras da subjetividade re- gem através do ritual: uma proposta de aprendizado
ligiosa e avança para a objetividade e a subjetividade para o ator. 2001. 96 f. Dissertação (Mestrado em
da constituição da identidade cultural de um povo, o Direção Teatral) – Escola de Comunicação e Artes
que nos possibilita olhar para além da liturgia e refletir de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Pau-
sobre a sua contribuição no campo sociocultural. lo, 2001.
Um elemento definidor sobre o Candomblé FERRACINI, Renato. Arte de não interpretar como po-
é a construção e o fortalecimento do sentido de esia corpórea do ator. São Paulo: Hucitec, 2003.
“pertencimento”. Aquele que sabe pertencer a al- GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de Um Teatro Pobre.
gum lugar tem noção de origem, de identidade, de Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1971.
história e ancestralidade. Em se tratando de uma LUZ, Marco Aurélio. Agadá – Dinâmica da civilização
população que tem na sua história a violência do africano-brasileira. 2ª ed. Salvador: Edufba, 2000.
processo escravagista, saber-se pertencendo a um MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São
coletivo, a um grupo, a uma etnia, é empoderador. Paulo: Perspectiva, 1995.
Ao compreender a necessidade de empoderamen- ______. Afrografias da memória. São Paulo: Perspec-
to da população negra, faz-se relevante ampliar os tiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
espaços de divulgação da história e da constituição BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à
cultural e social do povo negro, em diversos espa- representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp;
São Paulo: FAPESP; Imprensa Oficial, 2002.
PAREYSON, Luigi. Estética e teoria da formatividade.
Tradução de Efraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1993.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2001.
PAVIS, Patrice. A encenação contemporânea: origens,
tendências, perspectivas. Tradução de Nanci Fer-
nandes. São Paulo: Perspectiva, 2010.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: padè,
asèsè e o culto egun na Bahia. Tradução da Universida-
de Federal da Bahia Petrópolis: Vozes, 1986.
Figura 5 – Atores do NATA – da esquerda para a direita: Thia-
go Romero, o ator colaborador Fernando Santana e os atores
Daniel Arcades e Antonio Marcelo, em novembro de 2014 –
Espaço Cultural da Barroquinha. Fotografia: Andréa Magnoni.
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