Ambrosia - CN Crawford_241216_214956

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A todos que desejam que os feéricos os tirem deste mundo
monótono para dançar como chamas acima das montanhas.
(Também a todos que não se importam que eu tenha roubado essa
frase de W.B. Yeats.)
Ambrosia
Copyright © 2024 ALTA NOVEL
ALTA NOVEL é um selo da EDITORA ALTA BOOKS do Grupo Editorial Alta Books
(Starlin Alta e Consultoria Ltda.)
Copyright © 2023 C. N. CRAWFORD
ISBN: 978-85-508-2396-6
Translated from original Ambrosia. Copyright © 2023 by C. N. Crawford as per the
original edi on. The moral rights of the author have been asserted. ISBN 978-
1956290134. PORTUGUESE language edi on published by Starlin Alta Editora e
Consultoria Ltda., Copyright © 2024 by Starlin Alta Editora e Consultoria Ltda.
1ª Edição, 2024 — Edição revisada conforme o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)

C932a Crawford, C. N.
1.ed. Ambrosia : o reino Unseelie e a corte das
lamentações, vol. 2 / C. N. Crawford ; tradução
Nathalia Marques. – 1.ed. – Rio de Janeiro : Alta
Books, 2024.
ePub3.
Título original: Ambrosia
ISBN: 978-85-508-2396-6
1. Ficção de fantasia. I. Marques, Nathalia. II.
Título.

07-2024/131 CDD 813.5

Índice para catálogo sistemá co:


1. Ficção de fantasia : Literatura norte-americana 813.5
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária - CRB-1/3129

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Diretor Editorial: Anderson Vieira
Vendas Governamentais: Cris ane Mutüs
Gerência Comercial: Claudio Lima
Coordenadora Editorial: Illysabelle Trajano
Produtora Editorial: Beatriz de Assis
Tradução: Nathalia Marques
Copidesque: Andresa Vidal
Revisão: Mariana Naime
Diagramação: Rita Mo a
Livro digital: Lucas Camargo

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Ava

O lhei xamente para a poça de água no chão da oresta,


encarando os chifres de bronze que se projetavam da minha
cabeça: pequenos e diabólicos, curvando-se em direção ao céu.
Meus olhos estavam escuros e turvos, de um verde ardósia da
cor do mar tempestuoso. Limpei uma mancha de sujeira da
minha bochecha com a mão trêmula.
Quando eu atravessei o portal de gelo até este lugar, a cor
das pontas do meu cabelo mudou de lilás para um verde-claro.
Minhas roupas também mudaram. Agora eu estava usando
um vestido verde-água grudado ao meu corpo, encharcado
por causa da água do portal. A terra úmida da oresta sujou
meus sapatos brancos e a bainha de renda do vestido.
Com um arrepio de horror, olhei novamente para os
chifres. Meu pulso acelerou.
Demônio.
Esse era o termo Seelie para os Unseelie.
Certa vez, Torin dissera:
— Um rei deve mostrar que tem o poder de derrotar
demônios.
Uma tapeçaria pendurada no Grande Salão de seu castelo
representava um antigo rei Seelie decepando a cabeça de um
demônio de chifres dourados.
Chifres que pareciam muito com os meus…
O medo cravou suas garras em meu coração. Será que
Torin en aria uma lâmina em minha garganta caso me visse?
Ava Jones não tinha esses chifres. Eles pertenciam ao meu
novo eu, um demônio com um nome esquecido.
Ergui a mão para tocar uma das curvas, passando um
dedo sobre a ponta. Era perturbadoramente sensível, fazendo
com que um arrepio percorresse meu corpo. A ado como a
ponta de uma espada feérica. Por um momento, a imagem
súbita dos chifres rasgando a barriga de alguém fulgurou na
minha mente…
Estremeci outra vez. Por baixo do glamour da comum Ava
Jones, um monstro despertava.
Quando afastei a mão da ponta do chifre, uma gota
escarlate brilhava em meu dedo. Eu o en ei na boca, sentindo
o gosto de cobre.
Inspirei, tentando me acalmar. O cheiro da oresta tomou
conta do meu nariz, intenso e primitivo: musgo, terra e notas
de amêndoas doces. O cheiro atiçou levemente algo nos
recônditos mais sombrios da minha memória. A névoa se
ergueu ao meu redor, obscurecendo meu re exo na poça de
água.
Ouvi um farfalhar de folhas e dei um salto, lembrando-me
de um fato terrível e arrepiante que eu havia esquecido por
causa da minha distração: a aranha atrás de mim, uma aranha
assustadoramente grande.
Eu me virei. Uma aranha do tamanho de um cachorro
estava se aproximando, os seis olhos iridescentes xos em
mim.
Comecei a recuar com cuidado, meus sapatos encharcados
por causa da poça. A aranha se aproximou mais, de boca
aberta, exibindo as longas e pontiagudas presas.
Enquanto eu me afastava, amaldiçoei a magia deste lugar
por me fornecer um lindo vestido, mas não uma espada para
me defender. Havia os chifres, é claro — mas eu não estava
disposta a me aproximar tanto.
A aranha chegou ainda mais perto e eu me virei e comecei
a correr na direção contrária.
Corri através da neblina, erguendo meu vestido. Raízes
retorcidas se projetavam da terra úmida sob meus pés
enquanto eu tentava não tropeçar.
Eu mal conseguia ver para onde estava indo no meio da
neblina, e a vegetação espessa arranhava meus braços e
pernas. Eu chapinhei em poças de lama e afastei galhos do
rosto.
O pânico tomou conta da minha mente enquanto eu
tentava compreender minha situação atual. O que
exatamente aconteceu na última hora?
Eu deveria ser a Rainha dos Seelie agora.
Eu deveria estar sentada em um trono, reabastecendo o
reino com minha magia, salvando-o da geada e da fome. Eu
deveria ser a esposa de Torin — pelo menos publicamente. Eu
deveria ter cinquenta milhões na minha conta bancária. Mas
Moria apareceu no meu quarto com uma história sobre uma
irmã assassinada e uma premonição da minha morte. Ela
tinha certeza de que Torin me mataria também. Tinha cado
até feliz com isso.
Meu coração se partiu.
E talvez ela tivesse razão. Porque, pelo que eu entendi, por
questões de honra, um rei Seelie era obrigado a exterminar
um Unseelie como eu.
Fugi pela oresta, as palavras de Torin ecoando na minha
cabeça: Monstros… Demônios… Até mesmo falar deles poderia
chamar sua atenção perversa.
Um ruído baixo e sibilante fez o medo percorrer minha
espinha. Olhei para trás. A aranha monstruosa estava se
aproximando de mim. Corri ainda mais rápido pela neblina,
meus pulmões queimando. Espinhos castigavam meus braços
despidos com furiosas linhas vermelhas. Ao longe, ouvi um
barulho de água e corri em direção ao som. Se eu seguisse o
curso do rio, poderia encontrar alguma aldeia ou povoado.
Eu esperava que a aranha atacasse a qualquer momento, a
sensação de suas patas peludas nas minhas costas, seguida
pela dor ardente das presas afundando em meu pescoço.
Quando tropecei em uma raiz, agitei os braços para me
equilibrar. Peguei do chão uma pedra do tamanho de um
punho, girei e atirei o objeto nos olhos da aranha. A criatura
recuou com um grito e eu voltei a fugir.
Quando alcancei o rio caudaloso, o sol poente tingia a
neblina com uma luz rosa dourada. A água corria agitada
através de pedaços de madeira utuante e descia por uma
encosta suave até uma clareira. Senti um esguicho frio em
minha direção. Mas não vi nenhum movimento na neblina.
Segui o caminho estreito ao longo da encosta do rio. Mais
adiante na oresta, a tonalidade da vegetação se transformou
em tons vibrantes e encantados. Folhas verdes se mesclavam
com o marrom, depois com o vermelho vivo, e os troncos das
árvores variavam do anil ao azul escuro. À medida que a noite
caía, a luz se esvaía em tons crepusculares de violeta e lilás.
Corri ao longo da margem do rio, passando por pedras
escorregadias e raízes retorcidas. A noite estava se
aproximando, e as sombras se tornavam mais densas e longas
ao meu redor. Respirei fundo, tentando imaginar como eu me
orientaria naquele lugar na completa escuridão.
Descendo pelo caminho, alcancei uma enorme árvore que
pairava nas trevas, o tronco de um azul escuro. Seus galhos se
arqueavam sobre o rio, as folhas vermelhas eram iluminadas
pelo luar bem acima de mim. A enorme árvore bloqueava a
passagem, as raízes grossas serpenteando pela encosta até o
rio.
Eu deslizei ao seu redor. Galhos grossos impediam a
penetração do luar e as sombras me envolveram.
Estremeci e, neste momento, alguém me pegou por trás,‐
puxando-me para a escuridão, um braço em volta da minha
cintura e uma das mãos tapando minha boca. O medo correu
em minhas veias.
Eu me debati, atacando meu agressor com os cotovelos e
tentando rasgar sua mandíbula com meus chifres. O aroma de
rocha úmida e terra preencheu minhas narinas e, à medida
que meus olhos se acostumavam à escuridão, percebi que eu
estava sendo arrastada para uma caverna.
Inclinando-se, meu captor sussurrou em meu ouvido:
— Por favor, que quieta, Ava.
Reconheci o tom grave e doce, e ao mesmo tempo
perigoso e sedutor, de sua voz. O aroma de carvalho do rei
Seelie me envolveu, deslizando sobre as extremidades
inconstantes do meu medo. Eu estava presa nas garras de aço
do homem que talvez me quisesse morta.
A pergunta ainda atormentava minha mente: será que ele
me mataria? Porque esse era o trabalho de um rei Seelie.
— Ava. — Seu braço poderoso me prendeu no lugar. — Eu
preciso que você que quieta. Você estava sendo seguida.
Fiquei imóvel, sem resistir mais, e meus músculos
cederam. Lentamente, recuperei o fôlego e ele tirou a mão da
minha boca. Meu coração ainda batia tão rápido quanto o de
um beija- or. Era medo, ou simplesmente o efeito que Torin
sempre teve sobre mim? Eu não sabia ao certo.
Seja qual for o caso, ele não me deixaria ir.
— O que você está fazendo aqui? — sussurrei. — Como
veio parar aqui?
— Segui você através do portal — murmurou ele. — E,
neste momento, estou tentando salvá-la de um demônio. — A
respiração de Torin aqueceu minha orelha, e seu braço
musculoso permaneceu rme em volta de mim. — Ele está
rastreando você.
Ele não percebeu que eu era um demônio?
Meu coração acelerou. Em meu pânico, eu não tinha visto
os outros Unseelie.
— E por que você não me solta?
— Porque posso ver que você é uma Unseelie, e agora
estou questionando tudo. — Havia algo de perigoso por trás
de sua voz sedosa e o medo percorreu minha espinha. — Você
foi enviada para destruir meu reino, criança trocada?
Contraí a mandíbula com a acusação e me virei para
encará-lo. Mas ele não me soltou, então eu estava olhando
diretamente para seus penetrantes olhos azuis, pressionada
contra a muralha de músculos que era o seu peito. Seu
antebraço permaneceu rmemente apertado contra a parte
inferior das minhas costas como uma barra de ferro.
— Enviada em uma missão para destruir seu reino? Não
seja ridículo, Torin. — Minha voz saiu aguda e um pouco alta
demais, ecoando na pedra. — Se tudo isso fosse parte de um
plano maquiavélico, você acha que teria me encontrado em
um bar, bêbada e coberta de molho curry?
Ele arqueou uma sobrancelha escura.
— Fale mais baixo, criança trocada — sussurrou ele. —
Mas se não era sua intenção, você realmente fez um trabalho
notável destruindo meu reino. Meu trono está rachado. Meu
poder se foi. Feéria está envolta em gelo e eu não tenho uma
rainha para curá-la. A fome e o frio tomarão conta do meu
reino, e eu estou preso na própria Corte das Lamentações,
onde tenho a garantia de uma execução horrível se for pego.
Parece um pouco conveniente para os demônios, não é?
Demônios. Lá estava aquela palavra novamente, saindo de
sua boca perfeita. Mas como ele poderia pensar que eu era
uma espiã?
— Não havia plano nenhum — falei entredentes. — Eu
não menti para você. — Minha voz foi sumindo. Eu ainda
estava tentando entender tudo isso. — E eu quero os
cinquenta milhões que você me deve.
O canto de sua boca se curvou.
— Você não pode estar falando sério, criança trocada.
— Assinamos um contrato. Como rei feérico, você não
pode quebrá-lo.
— Você não é uma Seelie. O contrato não signi ca nada.
Eu ainda estava olhando para ele, pressionada contra seu
corpo.
— Essa não é uma regra de verdade, certo? Não estava nas
letras miúdas.
— Você está realmente preocupada com isso agora?
— Seu reino cará bem. Você só precisa encontrar uma
esposa Seelie adequada. Tenho certeza de que consegue. —
Desejei que minha voz não tivesse soado tão ácida. — Mas
você ainda está me devendo.
Seu braço estava apertado em volta de mim, e eu
conseguia sentir sua pulsação através das roupas.
— Sabe, eu realmente não deveria estar perto de você.
— Então talvez você devesse me soltar — falei
calmamente.
— Ao que parece, é o que eu preciso fazer.
Torin

Insanamente, eu não queria soltá-la. Mesmo na escuridão da


caverna, eu conseguia ver as curvas suaves dos seus chifres
acobreados. Ela era uma inimiga milenar dos Seelie, com
chifres diabólicos e tudo — a evidência estava bem diante dos
meus olhos — e eu a havia seguido até a Corte das
Lamentações.
O único ponto positivo nesta situação foi que senti o peso
da maldição da rainha Mab desaparecer. No instante em que
saí do portal, respirando o ar do reino Unseelie, meu peito se
viu livre das garras gélidas da maldição. Era um tipo estranho
de segurança, uma ausência de peso que eu nunca havia
experimentado antes.
Por que a maldição desapareceu? Eu não fazia ideia. Mas
sem o peso dela, eu poderia ceder aos meus desejos… Eu
poderia tocar Ava. Eu poderia beijá-la avidamente e puxar a
bainha de seu vestido até a cintura. Fazia parte da natureza
dos feéricos ceder à luxúria, buscar o prazer acima de tudo…
Mas a pessoa que dominava cada pensamento meu era um
demônio.
Será que ela havia me atraído até aqui? Eu não sabia. No
momento em que vi um estranho seguindo-a — um Unseelie
armado, com chifres e asas — precisei mantê-la segura.
— Não posso car aqui, Ava — sussurrei. — Acho que
ainda tenho um pouco de magia sobrando. Talvez eu consiga
abrir um portal.
Se a rainha Mab me capturasse, eu seria literalmente
esfolado vivo. Ela encontraria um jeito de causar uma morte
dolorosa e humilhante para mim. E ainda assim, de alguma
forma, minha atenção estava paralisada na Unseelie à minha
frente. Ela olhava para mim na caverna escura com grandes
olhos verdes.
— Alguma ideia de como tirar a gente daqui? —
perguntou ela.
A gente.
— Talvez eu tenha magia o su ciente para criar um
portal. Mas você não pode voltar comigo para Feéria, Ava. —
Aqui, a maldição estava suspensa. Mas em casa? Eu
simplesmente a mataria assim que ela se aproximasse.
Seus olhos se semicerraram, então ela bateu os longos
cílios pretos.
— Você realmente vai me privar da companhia
encantadora de Moria?
— Independente de qual tenha sido o nosso acordo, sua
espécie nunca mais poderá pisar em Feéria.
Havia uma guerra travada entre minha mente e meu
corpo, mas eu sabia que não poderia levá-la comigo por dois
motivos importantes. Primeiro, eu quase a matei. Sem
pensar, instintivamente, estendi a mão para ela quando ela se
afastou de mim. A maldição gélida emanou do meu corpo e o
inverno começou a reivindicá-la. Segundo, ela era um
demônio, e foi um demônio quem amaldiçoou nossas terras
com geadas brutais e longos invernos. Meus súditos a fariam
em pedacinhos; eles destruiriam o reino antes de permitir que
uma Unseelie usasse a coroa. Quem poderia culpá-los?
Sofremos durante séculos.
Isso não impedia meu corpo de desejar esse demônio em
particular. De alguma forma, ela era mais atraente em sua
forma atual — selvagem, implacável e sedutora ao mesmo
tempo. Meu pulso acelerou com a proximidade. Há apenas um
momento, senti seu coração batendo contra meu corpo
através do tecido no e úmido de seu vestido. Uma carícia que
teria sido mortal em Feéria…
Meu olhar se moveu para sua boca perfeita, carnuda e
entreaberta. Eu queria provar os lábios de um demônio, fazê-
la gemer de prazer. Porra.
Um som baixo e rítmico ecoou lá fora, interrompendo
minha batalha mental. O barulho causou um arrepio na
minha espinha.
— É a aranha — sussurrou Ava.
Peguei uma pedra e saí da caverna. Seis olhos escuros
reluziam no crepúsculo enquanto a aranha rastejava
lentamente pelo tronco da enorme árvore, as presas pingando
veneno. Senti o sangue latejar no meu crânio. Eu não queria
essa coisa perto de Ava.
Quando a aranha saltou, eu corri para frente e, com uma
pedra, desferi um pesado golpe contra sua cabeça. A aranha
caiu no chão e o sangue cobriu minhas mãos e meu corpo.
Soltei a pedra. O icor azul escuro respingou na minha camisa
branca e eu a tirei. Fui até o rio e descartei a camisa, depois
limpei as mãos ensanguentadas na água fria.
Examinei a oresta escura em busca de movimento. Além
do vento agitando-se por entre as folhas e do estranho canto
dos pássaros, eu não conseguia sentir nada.
Quando voltei para a caverna, Ava franziu a testa para o
meu peito.
— A aranha roubou sua camisa?
— A maioria das mulheres não reclamaria.
— Vejo que seu trono quebrado não afetou seu ego.
Uma verdade arredia se agarrou aos meus pensamentos
por baixo de todas as minhas tentativas de ser racional. Eu
deveria deixá-la aqui e voltar para casa, mas não conseguia.
— Vou me certi car de que você esteja segura aqui, Ava,
mas não posso levá-la comigo para Feéria. E não tenho magia
su ciente para abrir dois portais. — Havia apenas um
lampejo de magia estalando em meu peito.
Sua mandíbula se contraiu. Ela parecia zangada demais
para falar, e seus olhos verdes escuros endureceram.
— Quem estava me seguindo?
— Um grande Unseelie com chifres prateados e asas
escuras, armado com dardos. Mas eu não o vi agora. Acho que
o perdemos na neblina e escuridão.
Ela foi até a entrada da caverna, espiando as sombras.
Depois de um momento, ela se virou para mim, franzindo a
testa.
— Como você vai saber se e quando estarei segura?
Vai lá saber.
Esfreguei a mão no queixo, minha mente agitando-se
como o rio selvagem lá fora. Talvez os Unseelie a recebessem
de braços abertos. Ela era um deles, uma lha da Corte há
muito perdida. Eu retornaria ao meu reino o mais rápido
possível. Consertaria meu trono, restauraria meu poder e me
casaria com… alguém. Talvez Moria. De jeito nenhum eu me
apaixonaria por ela.
Uma rainha só precisava cumprir seu papel, trazer a
primavera de volta. Os celeiros estavam quase vazios, o gado
havia sido abatido para a obtenção da carne e o reino estava
sem dinheiro.
Eu era o rei dos Seelie e minha vida estava uma bagunça
completa.
— Vou observar à distância para ver como os Unseelie
reagem a você. Se a aceitarem, retornarei silenciosamente ao
meu reino e tentarei restaurá-lo. Acho que você estará melhor
aqui do que em Feéria.
Ela respirou fundo.
— Por que você estava tão desesperado para me levar para
uma caverna, então?
Corri meus dedos pelo cabelo.
— Porque aquele demônio estava armado. Seria melhor
encontrarmos alguém inofensivo. Alguém que pudéssemos
matar com nossas próprias mãos, se necessário.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— Parece que vamos ter uma noite bem interessante,
então.
Ela se virou e saiu da caverna, adentrando a oresta
escura.
Eu a segui, observando o balanço inebriante de seus
quadris enquanto ela caminhava por entre as árvores. Quanto
mais adentrávamos a oresta, mais as folhas assumiam o tom
de um vermelho vibrante. Iluminadas pelo luar, pareciam
respingos de sangue.
O quanto eu havia irritado os antigos deuses ao pular
voluntariamente naquele portal? O rei ungido dos Seelie
estava deixando seu povo morrer congelado para garantir a
segurança de um demônio.
Os antigos deuses me escolheram para liderar os Seelie.
Antes da minha coroação, o Deus com Chifres transformou os
nobres do sexo masculino em cervos, e eu provei minha força
derrotando cada um deles. Então, cobertos de sangue,
marchamos até a Espada dos Sussurros para o teste nal dos
deuses.
Somente um grande rei legítimo conseguiria erguer a
espada. Ela havia sido forjada pelos antigos deuses na terra
dos mortos. Feita de aço fomoriano, era capaz de cortar
pedra. Se eu a encostasse na garganta de um inimigo, ele
confessaria seus pecados. E quando um rei legítimo agarra
sua empunhadura, a espada sussurra. No campo de batalha,
nas mãos de um rei, a lâmina sussurra sobre morte e bravura,
sobre corpos destroçados e canções dos deuses. Foi assim que
eu soube que os antigos me escolheram.
Então, o que diabos eu estava fazendo agora?
Ela se virou para mim, franzindo a testa.
— No que é que você tanto pensa?
— Na Espada dos Sussurros — murmurei distraidamente.
Ela suspirou.
— Está delirando?
O canto da minha boca se contraiu. Ela não estava
totalmente errada. Qualquer rei que usasse a espada
começaria a ouvir vozes.
Mas meus pensamentos sobre Ava já eram um tipo
próprio de loucura, e ela já havia me deixado completamente
insensato.
Ava

A luz das estrelas penetrava através dos galhos das árvores


enquanto seguíamos o rio encosta abaixo. Quanto mais
caminhávamos, mais parecia que nos aproximávamos de
algum tipo de civilização. Em meio a troncos retorcidos,
surgiram arcos de pedra em ruínas, cobertos de trepadeiras
com ores vermelhas.
Torin andava atrás de mim e eu lancei alguns olhares para
sua forma atlética e seu peito nu. A luz da lua parecia reluzir
em suas tatuagens pontiagudas, fazendo-as parecerem
lâminas. Uma pequena parte de mim apreciava que ele
estivesse aqui, certi cando-se de que eu estava segura. Outra
parte muito maior de mim se indignava com o fato de que ele
provavelmente iria embora para se casar com outra pessoa.
Ele precisava de uma rainha, e eu não era mais uma opção.
Imaginá-lo sentado no trono reparado, com alguém como
Moria ao seu lado…
Eu não havia sido criada nesses mundos alimentados pela
inimizade entre os reinos. Qual era o sentido de prolongar o
ódio mútuo ao longo de milênios?
Olhei novamente para ele, sentindo um aperto no coração
ao notar sua perfeição física.
— Com quem você vai se casar? — Não sei por que
perguntei quando eu realmente não queria saber.
— Com quem eu vou me casar realmente não importa,
Ava. O ponto é que preciso voltar e consertar meu trono o
mais rápido possível. Se meu trono não estiver intacto, não
tenho poder algum — disse ele em um tom de voz baixo. —
Talvez Moria ou Cleena. Qualquer uma delas seria perfeita
como rainha. Apesar de que, sinceramente, acho que meu
maior amor sempre vai ser eu mesmo. E quem poderia me
culpar, criança trocada…
Eu me virei, interrompendo-o quando pressionei minha
mão em seu peito.
— Moria, não. Ela te odeia. Ela culpa você pela morte da
irmã dela.
— Mas eu realmente matei a irmã dela.
— Por quê?
— O nome dela era Milisandia e eu a enterrei no Templo
de Ostara. — Ele respirou fundo. — Foi um acidente do qual
me arrependo todos os dias desde então. Não consegui contar
a ninguém até agora. Só minha irmã sabia. — Seus tristes
olhos azuis procuraram os meus. — Eu a matei, Ava.
Eu olhei xamente para ele com dor no coração. Eu não
tinha certeza se ele tinha entendido que Moria era perturbada
e perigosa. Ela assassinou Alice, pelo amor de Deus.
— Torin, eu acho que ela não acredita que foi um
acidente.
De repente, seus olhos endureceram e ele levou um dedo
aos lábios. Seu olhar se xou em algo atrás de mim.
— Consigo sentir o cheiro de outro Unseelie.
Inspirei profundamente, captando um novo aroma na
oresta. Sob a argila, o musgo e os cogumelos com cheiro de
amêndoas, um aroma salgado utuava no vento. Enquanto eu
me concentrava, uma canção distante percorreu a oresta.
Aqui, o uxo do rio se tornou mais suave, mais borbulhante
do que agitado. No silêncio da noite, a vida na oresta ao meu
redor parecia estar impregnada de um leve zumbido, como
uma música composta por sons da natureza.
Eu me voltei para o caminho. Um leve brilho azul reluzia
entre as abóbadas de pedra em ruínas mais adiante.
A música parecia me chamar, atraindo-me para mais
perto. Assumi a liderança enquanto Torin diminuía o ritmo,
seus passos quase imperceptíveis. Estávamos escondidos
atrás da densa folhagem avermelhada, e eu espiei a luz azul
através dela.
Avistei a fonte: grandes vaga-lumes azuis brilhantes que
pairavam no ar sobre um riacho sibilante. E ali, apoiando os
braços na margem do rio, estava uma mulher Unseelie. Seu
cabelo branco lustroso caía sobre ombros nus e bronzeados.
Ela usava um pequeno gorro feito de penas vermelhas
brilhantes e um véu verde transparente sobre o rosto. Ela não
parecia particularmente cruel.
Ao esticar o pescoço, avistei escamas iridescentes que
reluziam sobre suas omoplatas.
Eu me virei para Torin, que sussurrou:
— Uma merrow. Acho que não é perigosa. Ela não pode
sair da água.
Inspirei profundamente, tentando sentir o cheiro de
qualquer outra criatura. Não consegui sentir mais nada.
A merrow começou a cantar novamente, uma canção
tranquila e bela que se harmonizava com a melodia inebriante
da vida que nos cercava.
Respirando fundo, empurrei a vegetação e senti as folhas
escorregadias roçarem suavemente na minha pele. A merrow
se virou para me olhar e permaneceu em silêncio. Ela inclinou
a cabeça, a curiosidade brilhando em seus olhos violetas.
Eu sorri hesitantemente.
— Olá.
Ela farejou o ar e falou em uma língua cadenciada e
desconhecida.
— Desculpe, não entendo.
Ela farejou o ar novamente.
— Cromm. Isavell. — Ela sorriu. — Mab.
Ela parecia bastante amigável. Sorri de volta e toquei meu
peito.
— Ava. Mab… é a rainha? Perdão, seu nome é Isavell?
Ela sorriu para mim, seus olhos brilhando.
— Isavell.
Por Deus, eu me sentia uma idiota. Eu me parecia com
uma Unseelie, mas não falava uma palavra da língua.
Isavell, se é que esse era o seu nome, deu uma risadinha.
Ela se levantou da água, exibindo um vestido prateado sem
mangas que grudava em seu corpo molhado. Ela era
realmente encantadora. Talvez os Unseelie não fossem
demoníacos, no nal das contas. Talvez eles tivessem sido
demonizados por seus inimigos ao longo dos séculos, mas na
verdade fossem muito gentis.
Eu me perguntei se Torin já havia decidido que eu estava
segura agora.
Estava pensando no que dizer em seguida quando Isavell
apontou para uma árvore orida. Dei um passo hesitante para
mais perto e ela sorriu para mim de forma encorajadora.
Pequenas frutinhas roxas cresciam entre as ores. Quando
apontei para elas e ergui as sobrancelhas, Isavell assentiu.
Talvez ela quisesse um lanche?
Juntei um punhado de frutinhas e as levei para ela,
agachando-me na beira do rio. Ela colocou uma na boca,
sorrindo para mim. Então ela gesticulou. Ela queria me dar
uma na boca? Algo mais íntimo do que eu estava acostumada
com estranhos, mas talvez fosse assim que os Unseelie faziam
amigos.
Não parecia ser uma Corte das Lamentações.
Abri a boca e ela colocou uma fruta. Quando mordi, um
suco doce e picante se espalhou pela minha língua. Eu
conhecia os avisos sobre comer ou beber vinho nos reinos
feéricos, mas eu era uma feérica.
Eu me agachei na margem do rio e compartilhamos o
restante do punhado das frutinhas. Quando terminamos de
comer, minha mão estava suja de um suco roxo. Fiquei de pé,
querendo perguntar a ela o que eu encontraria se continuasse
andando. Será que eu encontraria uma cidade? Uma cidade
cheia de feéricos lindos e comedores de frutinhas?
Mas eu não conhecia a língua dela, então apontei para o
rio e ergui as sobrancelhas.
A merrow farejou o ar novamente, seu sorriso
desaparecendo aos poucos. Será que ela sentiu a presença do
rei Seelie? Sombras escuras perpassaram seus olhos e seus
lábios se contraíram, expondo caninos brutalmente a ados.
Eu cambaleei para trás.
Ela jogou a cabeça para trás e seu gorro de penas caiu na
água. Ela abriu a boca e soltou um som alto e lamuriante, com
uma palavra que eu reconheci: Isavell, seguida pela palavra
Morgant.
Minha pulsação acelerou.
Isso não parecia mais tão amigável e eu corri de volta para
trás da folhagem. Vindos da direção contrária, sons de passos
e galhos se partindo ecoavam pela noite. Meu coração
disparou. Eu estava sendo caçada.
Antes que eu pudesse compreender totalmente o perigo,
uma dor aguda perfurou meus ombros e outra atingiu a parte
inferior das minhas costas. Imediatamente, o ar deixou meus
pulmões enquanto a agonia tomava conta dos meus músculos
e ossos. Ouvi Torin chamar meu nome enquanto eu caía na
terra úmida. Ele me pegou em seus braços poderosos,
segurando-me rmemente contra seu peito nu, e correu.
Espasmos tomavam conta dos meus músculos enquanto
uma toxina se espalhava pelo meu corpo, e eu lutei para
manter meus braços em volta de seu pescoço. Os dardos
rasgaram minha pele.
— Isso foi um erro — disse Torin, enrijecendo, e me
deixou cair no chão.
A dor atingiu minhas costas, e eu rolei na terra coberta de
musgo. Com a visão embaçada, examinei o chão da oresta
em busca de Torin. Dardos se projetavam de suas costas nuas
como São Sebastião, e ele tentava se apoiar nos braços.
Apoiado nas mãos e joelhos, ele rastejou na minha direção
e arrancou os dardos da minha pele. Eu me movi para ajudá-
lo, mas uma bota o pisoteou, prendendo-o ao chão, e alguém
me puxou por trás.
Ava

E u me virei e olhei para o homem cuja bota estava


pressionada nas costas de Torin, um feérico imponente de
ombros largos, envolto em uma armadura de bronze. Ele
usava uma coroa de escorpiões dourados que repousava sobre
seus chifres, e longos cabelos brancos pendiam em suas
costas.
Engoli em seco.
— Espere. — Minha boca cou seca e não consegui mais
pensar com clareza. — Solte ele. Ele não é daqui. — Será que
ele entendia alguma coisa?
Asas pretas se abriram atrás do homem. Elas eram
translúcidas e nas, como asas de borboleta. Ele poderia ser
bonito, se não fosse pela expressão em seu rosto. Ele parecia
pronto para espancar Torin até a morte.
O homem olhou para mim, semicerrando seus olhos cor
de âmbar. Lentamente, ele tirou a bota das costas de Torin.
Torin se virou, esmagando os dardos, e agarrou a perna do
nosso agressor com ambas as mãos, torcendo o tornozelo do
Unseelie em uma direção e o joelho na outra.
O Unseelie de cabelos brancos caiu no chão e o som ecoou
pela oresta.
Mas o estranho permaneceu no chão por apenas um
instante, e nem Torin nem eu conseguíamos car de pé.
Outros Unseelie se aproximaram de nós. Usando pelagens e
armaduras, couro e musgo, eles gritavam em sua língua
estranha.
Um Unseelie com chifres me agarrou pelos braços e me
levantou.
— Morgant — disse ele, dirigindo-se ao feérico com a
coroa de escorpiões.
O pânico começou a tomar conta de mim enquanto eu
pensava no que aconteceria com Torin neste território hostil.
Meu corpo vibrava com a dor das toxinas, e eu queria me
encolher em posição fetal em algum lugar e vomitar. Mas eu
não podia, porque Morgant estava me puxando para cima, me
colocando em um cavalo. Jogando-me de bruços sobre o dorso
do animal, ele subiu atrás de mim e começou a seguir o
caminho da oresta.
Ergui a cabeça e olhei para trás. O horror me atingiu como
um soco. Amarrado a uma corda, Torin estava sendo
arrastado atrás do cavalo.
Eu não me importava mais com nada além de encontrar
um jeito de tirá-lo daqui. Incapaz de olhar para ele, eu desviei
os olhos.
A oresta se tornou menos densa e um castelo surgiu ao
longe, erguendo-se das rochas e da névoa. Ele pairava sobre
nós, a base se contorcendo como raízes retorcidas de uma
árvore que se fundiam em uma fortaleza gótica.
O veneno percorria minhas veias, turvando minha visão.
Gritei até minha garganta car rouca e um punho golpear a
parte de trás da minha cabeça.
E    um chão irregular, os músculos
queimando e a cabeça latejando. O luar derramava uma luz
fria sobre o cômodo, um tipo estranho de cela. Metade das
paredes parecia ser feita de uma casca azulada que se erguia
em direção ao céu, a centenas de metros de altura. A outra
metade era feita de pedra, com uma porta de ferro embutida
na parede.
Um pontilhado prateado cobria a escuridão acima,
pequenos raios de luz para uma cela estreita e
impossivelmente alta. Aqui, eu tinha somente sombras como
companhia.
Corri os dedos pelas minhas costas, tateando no local
onde os dardos me perfuraram, estremecendo com as
câimbras musculares sempre que eu me movia. Tentei engolir,
mas minha garganta estava seca.
— Torin? — Minha voz saiu rouca.
A única resposta que obtive foi o eco da minha própria voz
nas paredes.
Apoiei a cabeça entre as mãos, tentando conter a náusea
crescente. Eu não sabia se Torin ao menos tinha chegado aqui
vivo.
Talvez ele tenha conseguido abrir um portal para escapar.
Se ele casse aqui, os Unseelie fariam pedacinhos dele.
Com a cabeça entre as mãos, senti ânsia de vômito, mas
não saiu nada. Se os Unseelie eram realmente monstros como
Torin disse, o que diabos isso dizia sobre mim?
Minha garganta estava ressecada como uma lixa.
— Torin? — Tentei novamente, e tive um ataque de tosse.
Eu me levantei do chão e manquei até a porta de ferro. Em
desespero, bati meu punho contra ela.
— Olá? — gritei. — Torin? Alguém? — Quanto mais eu
gritava, mais desesperada por água eu cava. Minha garganta
ardia como se eu tivesse engolido estilhaços de vidro.
O pânico tomou conta de mim e eu me virei para minha
cela estreita e imponente. Meu olhar se voltou para o dossel
perfurado pelo luar acima. À medida que meus olhos se
ajustavam, pude distinguir os tons avermelhados das folhas.
Se eu fosse capaz de escalar essas paredes, poderia escapar
por cima delas. Mas a pedra e a casca eram lisas demais para
servirem de apoio para os dedos.
Minha garganta queimava, e água corrente era tudo que
eu conseguia pensar agora, em como seria reconfortante tê-la
escorrendo pela minha garganta.
Eu me deixei cair contra a árvore e fechei os olhos. Lambi
os lábios ressecados e pensei em Torin tentando correr
comigo em seus braços — então nos imaginei mergulhando
no rio, onde a água cristalina encheria nossas bocas.
Se eu não poderia ter nenhum alívio real para minha sede,
teria que me contentar com a fantasia.
Ava

R aios dourados e suaves brilharam sobre mim, e eu acordei


encolhida no chão. Parecia que eu estava vagando entre a
consciência e a inconsciência há dias. Caso eu consiga sair
viva desta, nunca mais vou subestimar comida ou água.
Ficarei eternamente maravilhada com os milagres do mundo
moderno, como supermercados e chuveiros.
A cada momento — mesmo durante os meus sonhos —
uma única pergunta piscava na minha mente, como um
letreiro neon: O que será que Torin está fazendo agora?
Enquanto eu estava deitada no chão da minha cela de
prisão, comecei a pensar na noite em que ele me mostrou
Feéria vista de um penhasco coberto de neve. Ele me deu
alguns goles de uísque de sua garrafa e contemplamos o
cenário deslumbrante de um lago congelado e das montanhas
escurecidas que o cercavam. A neve cobria as encostas escuras
e castelos sombrios se projetavam do horizonte rochoso.
Janelas emanavam uma luz dourada ao longe, milhares de
lares aconchegantes. Essa memória era agora minha nova
fantasia. Minha nova fuga.
Talvez ele estivesse sentado ali agora, bebendo uísque.
Quão incrível seria o sabor da bebida deslizando pela minha
garganta? E a neve também. Eu me ajoelharia para lambê-la
direto do chão.
Comecei a cair no sono novamente — só por um
momento — quando escutei o rangido de ferro. Meus olhos
se abriram e meu olhar voou para a porta. Quase consegui
sentir o gosto da neve, quase consegui senti-la derreter na
minha boca, e agora a ilusão havia sido arrancada de mim.
Torci para que fosse substituída por água de verdade.
Quando a porta se abriu, uma pontada de medo cutucou
os recônditos da minha mente. Morgant estava na porta,
vestindo um traje de couro verde-escuro. Um raio de luz solar
reluzia no dourado de sua coroa de escorpiões.
Ele trazia uma caneca de pedra, mas sua expressão gelada
fez meu estômago embrulhar.
Tentei car de pé, mas meus músculos estavam fracos
demais, então me recostei na casca da árvore.
— Água — murmurei com a voz rouca. Qualquer
habilidade que eu possuía para seduzir ou persuadir alguém
havia se dissipado nos últimos dias.
Se eu fosse humana, já estaria morta.
Morgant me dirigiu um sorriso sombrio e se ajoelhou ao
meu lado. Seus olhos cor de âmbar se estreitaram.
— Eu lhe darei um gole se você me der as informações que
desejo. — Ele me agarrou pelo pescoço. — Você está fedendo.
Como se eu tivesse alguma escolha sobre meu repugnante
estado atual.
— Por que você estava acompanhada do rei Seelie? —
falou ele em um sotaque que puxava o “r”.
Eu não sabia se eles ainda estavam mantendo Torin em
cativeiro, e não iria con rmar sua identidade ao homem que
poderia esfolá-lo vivo.
— Acompanhada por quem? — perguntei.
Seus dedos apertaram minha garganta.
— Se você quiser água para se manter viva, vai responder
minhas perguntas. Nossa espécie não mente.
Ergui o olhar para a luz que penetrava através dos galhos
das árvores acima. Em algum momento, teria que chover aqui,
com certeza. Só não tinha acontecido ainda.
— Não sei do que você está falando.
Com a mão em volta da minha garganta, ele ergueu a
caneca de pedra sobre minha boca. Ele deixou uma única gota
cair em meus lábios e eu a lambi, desesperada por mais.
— A questão é que ele está falando conosco, traidora. E
não parece se importar nem um pouco com você.
Olhei para Morgant enquanto um sentimento de horror
começava a dilacerar meus pensamentos. Esse tempo todo, eu
estava achando que ele tinha usado o portal para cair fora
daqui.
— Meu nome é Ava, não traidora. — Será que Torin
realmente estava nas masmorras, ou este homem estava
blefando? Porque se eles o estivessem torturando…
A escuridão tomou conta dos meus pensamentos.
Os lábios de Morgant se curvaram.
— O rei Seelie me disse que odeia você. Que ele retornará
ao seu reino para se casar com uma linda mulher chamada
Moria. — Ele inclinou a cabeça. — Ele não é leal a você.
Acredito que ele a considera repugnante, desleixada e
totalmente desprovida de disciplina e so sticação.
Ai.
— Ele disse — continuou Morgant — que escolheu você
para competir em seu torneio simplesmente porque te odeia.
Porque ele não queria uma esposa de verdade. Ele disse que
nunca seria capaz de amar você.
Olhei para o chão e minha visão cou turva. Desde que eu
voltei para casa e encontrei Andrew agarrado com Ashley,
meu coração estava aos poucos se transformando em uma
pedra de gelo. Agora, o frio penetrou em minhas veias e
artérias, espalhando seu manto gelado pelo meu peito. Com
as palavras de Morgant, o último cristal de gelo se solidi cou
em meu coração.
— Acontece que ele não é o rei — falei, de forma estúpida.
— Ele está mentindo para você.
Morgant soltou meu pescoço e me deu um tapa forte no
rosto. O golpe me deixou tonta e a dor se espalhou a partir da
minha têmpora. Caí no chão áspero de casca de árvore e quei
ali deitada, sem me preocupar em me levantar.
Se um dia eu recuperasse minhas forças, arrancaria a
coluna vertebral do corpo desse idiota.
— Se você está tentando proteger um homem que te
odeia — disse ele, pairando sobre mim —, devo dizer que
acho tal comportamento… como é mesmo a palavra na sua
língua? Patético. Também é grotesco para mim que você seja
tão fraca. Sem nenhuma magia. Nenhum poder. Nenhuma
honestidade ou honra. Você não se parece em nada como um
verdadeiro Unseelie. Nós não mentimos. E sabemos quem ele
é. A rainha sabe quem você é.
Fixei meu olhar no dele.
— Pelo menos alguém sabe de alguma coisa, porque eu
não faço ideia. Que tal me deixar por dentro?
— Ela ainda não me contou. — Sua mão forte envolveu
minha nuca em um aperto esmagador. Ele me ergueu no ar,
hematomas se formando sob seus dedos poderosos. Desferi
chutes para trás, agitando as pernas o mais forte que
consegui. Era como chutar um muro de concreto, um que eu
mal conseguia alcançar.
— Onde está sua magia? — gritou ele. — Um Unseelie
não deveria ser tão indefeso.
Ele me soltou e eu caí no chão, encolhendo-me em posição
fetal. Antes que eu tivesse tempo de responder, Morgant me
deu um chute forte nas costelas e uma dor se espalhou pela
lateral do meu corpo. A sensação causada pelas costelas
machucadas me cegou, e meus pensamentos caram escuros
por um instante.
Abracei minhas pernas contra o peito, tentando proteger
meu corpo, minhas costelas.
— Eu não tenho magia. Sou uma feérica comum.
— Não existem Unseelie comuns. — Sua voz furiosa
ecoou pela minha cela. — Todos nós temos magia. Mas você?
Você está estragada. Passou tempo demais entre a espécie
deles.
Era como se a minha mente estivesse sendo assombrada.
Se eu estava “estragada” de acordo com esse monstro, com
certeza me jogar no chão e me chutar nas costelas não estava
ajudando.
— Se eu tivesse alguma magia — falei, ofegante — eu a
usaria. — As palavras saíram como um apelo.
— E, nesse caso, eu posso respeitar você. Mas como você
não tem nada com que revidar, precisa me dar algumas
respostas para sobreviver. Não é mesmo? Porque o rei Seelie
não me disse o que ele estava fazendo aqui. E ele me disse que
seu exército é poderoso, mas não entrou em detalhes. — Ele
se ajoelhou ao meu lado, tirando meu cabelo do rosto
enquanto eu abraçava minhas costelas. — Você não signi ca
nada para ele, Ava Jones. Não há razão para você proteger
nosso rei inimigo. Então me conte sobre a magia dele em
Feéria. Me conte sobre seu exército. Se zer isso, você ganha
uma refeição e água. Se não zer, posso quebrar seus braços.
Ou posso rasgar os buracos onde meus dardos perfuraram
seus ombros. A escolha é sua.
— Eles têm legiões de soldados. E uma magia poderosa.
Eles virão até aqui em busca do rei deles se vocês não o
libertarem. Vão massacrar todos vocês. — Eu não tinha ideia
se alguma dessas palavras era verdade. Se Torin estivesse nas
masmorras da Corte das Lamentações, seu reino estaria
congelado, faminto, quase morto.
Ele mostrou os dentes, os caninos a ados.
— Você está tentando fazer ameaças? Eu a aconselho a
não piorar ainda mais sua situação — disse ele em uma voz
grave e rouca. — Eu a aconselho a fazer o que lhe foi dito.
— Eu realmente não sei nada sobre magia. Eu cresci entre
os humanos. Se a rainha sabe quem eu sou, ela deveria saber
disso. — O esforço de falar estava me exaurindo.
— Como você veio parar aqui?
Rolei de costas, olhando para as folhas.
— Algum tipo de magia que eu não entendi. — Pelo
menos isso era verdade.
Ele ergueu a caneca de pedra.
— Abra a boca se quiser beber.
Odiando a mim mesma pela minha situação patética, abri
a boca, colocando a língua para fora. Morgant deixou
pequenas gotas de água pingarem na minha língua, uma de
cada vez. Eu as lambi até Morgant afastar a caneca
novamente.
— Como era essa magia? E o que você sentiu?
Água.
— Tinha… luzes piscando… e um feitiço… — O esforço de
inventar uma mentira convincente claramente estava além do
meu alcance, e Morgant me estapeou novamente, causando
uma dor tão aguda que uma explosão de luz surgiu por trás
dos meus olhos.
— Não encoste mais em mim — sibilei com tanta
ferocidade quanto consegui.
Morgant cou de pé, seus olhos cor de âmbar cravados em
mim. Ele segurou a caneca de pedra acima de mim e a soltou
no chão de carvalho perto da minha cabeça.
— Você viveu entre os humanos e pode não saber o quão
resilientes os feéricos são. Fisicamente. Você pode perder a
cabeça. Pode rezar pela morte enquanto morre de fome.
Enquanto enlouquece de sede. Mas a morte não virá tão
facilmente.
— Você é um maldito animal — murmurei. As palavras
saíram da minha boca antes que pudesse me conter. Assim
que elas foram pronunciadas, eu sabia que havia cometido um
erro terrível.
Morgant se virou e uma dor percorreu meu ombro onde o
dardo me perfurara, mas ele nem estava me tocando. Eu me
contorci no chão enquanto sua magia excruciante rasgava a
parte de trás do meu ombro.
— Você conhece os dons com os quais Briga me
abençoou? — rosnou ele. — A deusa das cinzas me escolheu
como curador. Posso reconstruir ossos quebrados, pele e
músculos rasgados. Mas a magia que cura também é capaz de
despedaçar um corpo.
Tentáculos a ados de magia perfuraram meus músculos
como garras. Eu não consegui pronunciar uma única palavra,
somente gritos inumanos.
— E aqui estou eu — sibilou ele —, com excelente
controle sobre minha magia, e você sem nenhum. Eu sei que é
assim que os Seelie nos chamam. Animais. Demônios. Mas
aqui, nós respeitamos os animais, as criaturas majestosas da
oresta. Em Feéria, eles os comem. E sabe o que eu acho? Os
Seelie não deveriam usar a palavra como um insulto quando
eles são mais brutais que os próprios animais. Quando eles
cospem em feéricos como você. Patético. Incapaz de invocar
um único o de magia.
Quando ele retirou sua magia agonizante de mim, foi
como uma fera predatória liberando uma presa de suas garras.
Todo o meu corpo tremia e a náusea preencheu meu
estômago.
— Se quiser sair daqui viva — disse ele bruscamente —,
talvez devesse aprender a usar sua magia. Esse é o melhor
conselho que posso lhe dar.
Ele saiu do meu campo de visão e ouvi a porta se abrir e se
fechar.
Pressionei meu rosto contra o chão e tremi
incontrolavelmente. Aquela luz neon continuava brilhando
nos con ns da minha mente, piscando com pensamentos em
Torin. Agora, eu tinha certeza de que ele estava tranca ado
em algum lugar daqui, ainda mais maltratado do que eu.
E, claramente, eu estava delirando de desidratação,
porque estava começando a ver coisas… ver as vinhas e as
folhas se erguendo ao meu redor, estendendo-se na minha
direção…
Um som de batida interrompeu minha visão. Será que
vinha de dentro da minha cabeça?
Deitei-me de costas no chão, a cabeça latejando. O coração
frio como gelo.
Boom. Boom.
Mas mesmo enquanto o barulho continuava, deixei meus
olhos se fecharem. Primeiro, pensei no inverno — em uma
geada envolvendo o mundo em branco. Em gelo que se
arrastava sobre um reino…
Então sonhei com a árvore ganhando vida, afastando-se
das paredes de pedra. Ela estava rastejando, movendo-se pela
oresta, libertando-se em uma sinfonia de rangidos e chiados
de madeira. Folhas vermelhas utuavam pelo mundo ao
nosso redor como gotas de sangue, e Torin e eu estávamos
livres.
O desespero e a dor estavam despedaçando minha mente.
E é por isso que o chamavam de Corte das Lamentações…
Ava

C ada vez que eu acordava, a dor castigava minhas costas e


eu lamentava ter recobrado a consciência. Então, voltava a
dormir, sonhando com limonada gelada, milkshakes de
morango, e mangas…
Sempre no pano de fundo dos meus sonhos, eu ouvia
Torin gritando meu nome, e os sonhos se transformavam em
pesadelos — uma paisagem de pontiagudos pingentes de
gelo, uma tundra congelada onde Torin precisava da minha
ajuda e eu não conseguia encontrá-lo.
Meus olhos se abriram de repente. A dor no meu ombro
havia mudado. Agora era mais uma sensação de queimação do
que uma laceração aguda. Estava inchado.
Alcancei as costas com a mão esquerda e estremeci. A pele
estava quente e dolorida ao toque. Infectada.
Porra. Mesmo que os feéricos se curassem melhor do que
os humanos, ainda podíamos morrer com infecções.
— Ava! — Era a voz de Torin novamente.
Achei que fosse uma alucinação.
A sede rasgava minha garganta, e eu mal consegui
umedecer os lábios o su ciente para responder um “sim” que
saiu mais como um “ihhh?”.
— Ava! — Um som distante e abafado, mas
inconfundivelmente de Torin.
Meu coração batia forte.
— Torin? — falei com a voz rouca.
Tentei rastejar até a parede, de onde vinha sua voz, mas
desabei antes de alcançá-la.
— Ava!
— Estou aqui! — Tentei gritar, mas as palavras não saíam,
e percebi que lágrimas escorriam pelo meu rosto. Fiquei
aliviada por Torin não estar aqui para me ver desmoronar
completamente.
— Estou aqui! — Consegui dizer com a voz embargada.
Ele estava, repetidamente, gritando algo para mim através
da pedra. Mas as paredes eram grossas e eu não conseguia
entender o que ele estava dizendo. As palavras ecoaram na
minha mente até que eu não conseguia mais distinguir o que
era real.
— Você está gritando há dias — bradou ele.
Fiquei confusa. Há dias? Devo ter gritado enquanto
dormia. Com o que ele estava realmente preocupado: comigo
ou com a possibilidade de eu trair os segredos de estado de
Feéria para seus inimigos?
Engoli em seco, minha garganta árida como um deserto.
— Por que você ainda está aqui? — Minha voz soou
irregular. Limpei as lágrimas do rosto. — Vá embora, Torin.
O silêncio se estabeleceu, então ouvi sua voz novamente,
chamando meu nome.
Meus pensamentos caram desfocados e não consegui
entender nada do que ele disse.
Cada pedacinho do meu corpo estava quente demais e frio
demais ao mesmo tempo.
Olhei para o chão e reconheci vagamente o brilho úmido
da água que se acumulara entre as raízes retorcidas. Havia
chovido? Rastejei um pouco para frente e lambi a água da
chuva, maculada pelo gosto de terra.

U    . Respirei o ar denso e pesado


de sujeira. Eu não fazia ideia de quanto tempo quei no chão,
deitada de bruços.
Virei a cabeça e encontrei Morgant na porta, olhando para
mim. Ele trazia uma caneca de estanho, mas dado o nosso
relacionamento até então, provavelmente não seria uma fonte
de alívio.
Ele se ajoelhou ao meu lado e uma pontada de medo
percorreu meu corpo. Quanto tempo eu ainda duraria aqui?
Uma magia fresca e calmante se derramou pelas minhas
costas e penetrou meus músculos. Era como se água limpa
estivesse entrando em meu corpo, eliminando a dor e as
toxinas. Um cataplasma de magia, um bálsamo para a minha
febre.
— Sua ferida infeccionou — murmurou ele.
Tive vontade de dizer algo como “não brinca,” mas
aprendi a lição sobre fazer gracinha com ele.
— Não era minha intenção.
Soltei um longo suspiro de alívio, arqueando um pouco as
costas. Pela primeira vez em muito tempo, consegui me
mover.
— Demorei demais para curá-la — disse ele. — Você
cará com uma cicatriz. Mas a infecção desapareceu. Você
aprendeu alguma magia?
Quando ele retirou sua magia de mim, virei de lado e me
sentei lentamente. Estendi a mão por trás do ombro, as
pontas dos dedos roçando as cristas ásperas da minha pele.
Havia cicatrizes, mas não estava mais dolorido ou quente ao
toque.
Olhei para ele, esperando para ver que novo horror ele
havia reservado para mim, mas ele apenas me entregou a
caneca de estanho. Levei-a aos lábios e bebi intensamente,
depois respirei fundo, tentando ir com calma.
— Não beba rápido demais, vai car enjoada — disse ele,
como se estivesse lendo meus pensamentos.
A luz penetrava através dos galhos das árvores, intensa e
agradável, salpicando de dourado seu cabelo branco. Eu não
tinha percebido que era dia. O mundo realmente poderia ser
bonito quando não se estava contorcendo-se de dor no chão
de uma masmorra.
— É agora que você usa a tática do policial bom?
Ele franziu a testa e eu percebi que ele não fazia ideia do
que eu estava falando.
— Senti através do castelo que seu sangue havia sido
envenenado. Sem uma cura, você morreria. — Um músculo se
contraiu em sua mandíbula quadrada. — Curar faz parte da
minha natureza, mas às vezes é dever de um Unseelie fazer
coisas que machucam os outros. E isso nos machuca. Quando
camos fortes, isso nos queima.
— Hummm.
— Está pronta para nos contar sobre o rei Seelie agora?
Desde que eu nunca admitisse conhecê-lo, Morgant não
poderia me pressionar para obter os detalhes.
— Quem?
Ele se levantou, olhando-me de cima, e tirou um pequeno
pedaço de pão da bolsa de couro que trazia em sua cintura.
— Se quiser viver, coma isso. Mas não rápido demais. Não
voltarei por algum tempo. — Ele olhou para as folhas acima
de nós. — Você terá mais água em breve.
Ele se virou e saiu, batendo a porta atrás de si. Ouvi o
ferrolho de metal deslizar na fechadura, trancando-me aqui.

A     e a sensação de paredes


vibrando. O som me fez estremecer até perceber que se
tratava de algo que eu precisava desesperadamente: uma
tempestade.
De cima, água fria começou a escorrer pelo meu corpo,
encharcando meu vestido verde. Meus olhos se abriram
imediatamente e eu instintivamente abri a boca. A água da
chuva deslizou pela minha garganta, saciando minha sede.
Um clarão brilhou no céu e o trovão ressoou pelas paredes da
torre. Fiz uma concha com as mãos, coletando a água, e a bebi
avidamente.
Continuei bebendo com as mãos, o máximo que consegui.
A chuva encharcou minha pele.
Sentei-me contra a parede, deixando a água escorrer pelo
meu corpo. Eu me encolhi, tremendo. Mas a água da chuva
parecia estar lavando o mau cheiro da minha cela, arrastando-
o para as raízes da árvore. Desejei fortemente ter um copo ou
alguma coisa para coletar a água, mas Morgant o levou com
ele.
Como esta poderia ser minha única chance de tomar um
banho no futuro próximo, tirei meu vestido e minha calcinha.
Esfreguei meu corpo na chuva, depois peguei o vestido e o
lavei o melhor que pude. Morgant havia feito isso de
propósito, deixando-me sem roupas ou sabonete enquanto
estava sempre imaculado em seu traje de veludo verde e
usando sua coroa dourada. Mais um mecanismo de controle
para me fazer ter que recuperar minha dignidade.
Quando terminei de esfregar minhas roupas, pendurei-as
para secar e me encolhi contra a parede.
Um som de batidas ecoou através de uma das paredes de
pedra e eu quei imóvel. Será que eu ainda estava tendo
alucinações?
As palavras de Morgant repetiam incansavelmente na
minha cabeça.
Se você está tentando proteger um homem que te odeia, devo
dizer que acho tal comportamento patético.
Torin

E u me deixei escorregar contra a parede com a cabeça entre


as mãos. Um rei arruinado. Eu só sabia que precisava tirar Ava
daqui.
A água da chuva se acumulou no chão, misturando-se com
o sangue dos meus pés, onde Morgant usou seus poderes de
“cura” para rasgá-los até deixá-los irreconhecíveis.
Já que eu estava trancado aqui, com veneno correndo
pelas minhas veias, não conseguia invocar magia su ciente
para abrir um portal. E mesmo que eu conseguisse, não
deixaria Ava.
No início, a pior parte da minha prisão foi quando
Morgant en ou um cano de ferro na minha garganta, ou
talvez quando ele me deixou inconsciente, acorrentou-me e
esperou até eu acordar para rasgar os músculos dos meus pés
com sua magia. Ruim, mas não o pior. O pior foi ouvir Ava
gritando e não poder fazer nada a respeito.
Toquei minha garganta, que pulsou com uma dor
latejante.
Gotas de chuva ainda caíam da copa da árvore acima e
escorregavam pelo meu peito nu. Inclinei a cabeça para trás e
as gotas me confortaram como uma bênção gentil dos antigos
deuses.
Desde que falei com Ava através das paredes, tentei
chamar o nome dela mais algumas vezes, mas imaginei que
ela não pudesse mais me ouvir.
Minha mente continuava vagando por uma fantasia na
qual eu a carregava para o meu quarto e a deitava na minha
cama. Sob um amplo teto de vidro, crescia uma macieira. Se
Ava e eu estivéssemos juntos lá, poderíamos comer quantas
maçãs quiséssemos, com seus sucos doces escorrendo por
nossas gargantas. Eu quase conseguia sentir o gosto…
Soltei um suspiro longo e lento. Mesmo que, por algum
milagre, eu nos tirasse daqui e entrássemos em um portal de
volta para Feéria e meu lindo quarto, meu toque poderia
matá-la.
Eu vi o rosto da minha irmã nos recônditos da minha
mente. Tive tantas conversas com ela na minha cabeça nos
últimos dias. Se eu a visse pessoalmente agora, diria a ela que
queria levar Ava para casa. Ela me lembraria que eu não
poderia. Ela me lembraria de manter distância de Ava. Ela me
lembraria que quase matei Ava com uma geada que se
espalhou por sua pele.
Estremeci com a dor em meu corpo quebrado.
Olhei para o meu antebraço. Sob minha pele, os ossos
estavam cicatrizando lentamente onde o demônio os havia
quebrado. Sem minha magia, eu não me curava tão
rapidamente quanto o normal.
Com um grunhido, eu me forcei a me levantar sobre meus
pés ensanguentados. Sempre que eu tinha energia su ciente,
tentava abrir um portal. O que eu precisava
desesperadamente era da Espada dos Sussurros.
Mas era mais fácil invocar magia quando eu estava
completamente ereto, abrindo meu peito para o poder
ancestral dos antigos deuses.
Flexionei meu punho, imaginando a Espada dos Sussurros
em minha mão agora, escavando as paredes de pedra para
chegar até Ava. Uma gota de água deslizou pela minha
têmpora.
Se os antigos deuses haviam me escolhido como seu rei
ungido, eles não me deixariam simplesmente aqui para
morrer, não é mesmo?
Esfreguei a mão na boca, lembrando de Ava tentando
rastejar até mim quando fomos emboscados. Ela estava
tentando tirar os dardos das minhas costas.
A noite caía e tênues tons de violeta e dourado brilhavam
no céu escarlate. Chamamos esse período de crepúsculo,
quando um feérico poderia viajar mais facilmente entre os
mundos. Esta era a melhor hora do dia para apelar aos antigos
deuses.
Minha magia reluziu, brilhando um pouco mais forte, da
cor do entardecer.
Meu corpo doía e me encostei contra a parede,
descansando a cabeça. Eu conseguia imaginar Ava encostada
do outro lado da mesma parede com seus belos chifres curvos.
Nos meus sonhos, eu frequentemente tinha os chifres de
Cernuno, como eu os possuía antes da coroação. O cervo era
capaz de viajar entre os mundos. Olhei para os tons violeta do
crepúsculo por entre as folhas vermelhas, e a chama da minha
magia aumentou um pouco mais.
A magia fria percorreu minhas veias, e a imagem da
Espada dos Sussurros brilhou como uma luz guia em meus
pensamentos. Eu só a havia usado uma vez e ela deixou uma
marca permanente em minha alma. Eu não permiti que ela
me enlouquecesse.
Séculos atrás, o rei Caerleon executou pessoalmente um
traidor após o outro utilizando a Espada dos Sussurros.
Sempre que cava sem traidores, ele encontrava novos, cada
vez mais, até que simplesmente passou a espreitar as ruas de
Feéria. Ele se envolveu com magia sombria e, nas montanhas,
criou um dragão feroz chamado Sinach. Quando o rei
Caerleon cou entediado de matar com a espada, ele usou
Sinach para queimar as pessoas vivas, e Feéria adentrou uma
era violenta e sangrenta conhecia como a Anarquia.
Eu nunca tive vontade de usar a espada. Mas agora? Era o
momento perfeito.
Um vento frio soprava na cela, vindo dos galhos acima.
Apesar de ainda estar quente na minha cela, a neve começou a
rodopiar no ar. Senti os últimos resquícios de magia dos
deuses se acenderem em meu peito e sussurrei as palavras
para criar um portal. Como um cervo, eu transitaria entre
reinos. O ar frio se agitou ao meu redor e a neve começou a
cair com mais força.
Um vento gelado varreu a neve do ar e a girou diante de
mim, formando um vórtice branco que se abriu lentamente,
expondo uma abertura escura no centro. Meu coração
disparou.
Meu peito relaxou. Graças aos deuses, a abertura tinha
trinta centímetros de diâmetro e irradiava uma fraca luz
azulada. Grande o su ciente para o que eu precisava. Estiquei
o braço pela abertura e senti as bordas do portal, duras e frias
como gelo.
Avistei a espada, que possuía punho de obsidiana e bainha
de couro preto. Diz a lenda que a espada foi criada pelo deus
da morte, que escondeu uma de suas echas no pomo e
esculpiu seus cães no punho de pedra escura. Ao agarrá-la,
senti seu poder sombrio percorrer meu corpo.
Puxei a espada e a bainha para a Corte das Lamentações e
o portal se fechou novamente.
Com a espada em mãos, as vozes inebriantes dos deuses
começaram a sussurrar à minha volta em sua língua divina.
Fechei os olhos e sussurrei um agradecimento aos antigos
deuses em seu idioma nativo, uma língua falada apenas por
deuses e reis.
Estou indo ao seu encontro, Ava.
Agarrando o punho com ambas as mãos, agitei a espada,
cortando paredes grossas, uma após a outra. Esculpi portas
para mim. Até ela.
Então eu nalmente a vi, acordando de um sono
profundo. Ela estava coberta pela poeira das pedras.
E nada além disso.
Ava

E u tinha certeza de que meus pesadelos estavam se


tornando realidade quando as paredes começaram a tremer e
uma lâmina a ada perfurou a pedra, abrindo um caminho
através da parede espessa.
Destroços voaram no ar, e o som do aço contra a rocha
ecoou ao meu redor.
No meio da poeira, vislumbrei um braço musculoso e uma
pele dourada, tatuagens envolvendo um braço que eu
reconhecia.
Meu coração disparou. Será que tudo isso era real?
Torin surgiu da abertura, seu peito tatuado coberto de
uma poeira acinzentada. Ele olhou para mim, seus olhos
claros brilhando com uma luz sobrenatural.
Talvez fosse a desidratação e meu estado generalizado de
delírio, mas ele parecia tanto com um deus pairando sobre
mim que prendi a respiração. Um deus machucado e
ensanguentado, mas, ainda assim, um deus.
Como ele ainda estava tão forte depois de ter passado
tantos dias aqui?
Seu olhar percorreu meu corpo lentamente, e eu me
lembrei que estava completamente nua. Deixei meu vestido
secando depois de lavá-lo.
Meu coração bateu forte e abracei meus joelhos contra o
peito.
— Vamos dar o fora daqui, Ava — disse o rei.
Com a espada na mão, ele encarou o tronco da árvore e
fechou os olhos, passando as pontas dos dedos ao longo da
lâmina com reverência. Então, com um movimento amplo, ele
golpeou o tronco. Meu queixo caiu de incredulidade quando a
lâmina deslizou através das grossas paredes de carvalho e
vozes sobrenaturais ecoaram no ar.
Sussurros…
Um nó se formou na minha garganta e eu estremeci. Por
que a espada no tronco me dava a sensação de que eu estava
vendo uma pessoa ser golpeada?
Peguei meu vestido, os músculos tremendo de fraqueza.
Enquanto o segurava na ponta dos dedos, Torin me pegou no
colo e me carregou noite adentro.
O choque da liberdade causou uma agitação no meu peito
e a adrenalina disparou em meus nervos. Eu tinha tanta
certeza de que morreria lá dentro. Não conseguia acreditar
que estávamos sob as estrelas. Segurei o vestido por cima de
mim. Não havia tempo para vesti-lo.
Um som de trompas ecoou do castelo.
— Você está bem? — perguntou Torin. — Eu a ouvi
gritando dias atrás. — Ele estava tentando se mover
rapidamente, mas eu conseguia perceber que ele estava
colocando mais peso no lado direito. — O que ele fez com
você?
— Estou bem. É você quem ele realmente odeia. Torin,
você está mancando? Posso correr por contra própria.
— Vamos pegar um cavalo no cercado — disse ele,
ignorando minha pergunta. Ele desviou o olhar para o meu
corpo novamente.
Puxei a parte de cima do vestido, tentando me cobrir. Eu
não estava sendo modesta. Este não parecia um bom
momento para distrai-lo.
— Torin. Morgant disse que você me acha repulsiva e
desleixada, mas sinto que você não está conseguindo focar na
missão.
— Eu só disse isso para fazer com que ele a deixasse em
paz. Eu não queria que ele pensasse que somos aliados.
Aparentemente, não deu certo. — Ele respirava com
di culdade, e me segurou com força. — Estamos quase lá.
Eu me virei e vi um pequeno cercado de pedra dentro do
qual os cavalos pastavam. Uma multidão cacofônica de corvos
sobrevoou por cima de nós, grasnando descontroladamente
sob o céu noturno.
— Não vou deixar que eles a capturem novamente —
disse ele, quase para si mesmo. Sua voz aveludada era como
um bálsamo contra a devastação dos últimos dias. — Vou
levar você para longe desses malditos demônios.
— Estranho que eu seja um deles — murmurei.
Comigo em seus braços, ele escalou a mureta de pedra. Por
um momento, seus cílios escuros baixaram e seu olhar
encontrou o meu.
— Eles não parecem concordar.
Ele me colocou no chão e eu agarrei a bainha do vestido
para colocá-lo, mas Torin o puxou de minhas mãos e se virou
para o cavalo.
— O que você está fazendo? — sibilei.
— Não temos muito tempo. — Ele dobrou meu vestido e
o posicionou no dorso de um cavalo branco. — Acredite, você
vai querer algo entre seu corpo e o cavalo quando
começarmos a galopar. O vestido é tudo o que temos.
Ele examinou a parede e pegou um cabresto e uma corda
pendurados na pedra.
Tentei cobrir o corpo com os braços e olhei para o castelo,
minha pulsação acelerando. O aço brilhava sob a luz das
estrelas. Os soldados já estavam vindo atrás de nós.
Torin falou com o cavalo em feérico e usou a corda para
formar rédeas. Como se estivesse sob um encantamento, a
égua branca se ajoelhou diante dele, cruzando as patas
dianteiras à sua frente.
— Suba — disse Torin. — Agora.
Dei uma olhada para o castelo pairando sobre nós. Torres
de pedra escura perfuravam o céu, erguendo-se a partir de
raízes retorcidas, metade pedra e metade árvore, com galhos
pretos crescendo em espiral ao redor das torres, envolvendo-
as em cascatas de ores e folhas vermelhas. Era como se um
castelo tivesse surgido do solo e a terra estivesse tentando
arrastá-lo de volta. A enormidade disso tudo formou um nó
em meu estômago.
Subi no cavalo, usando meu próprio vestido como cela, e
agarrei sua crina branca. Acontece que Torin tinha razão.
Realmente era preciso ter algo entre mim e o cavalo, porque
isso já era estranho e desconfortável o su ciente.
Qual era o oposto de uma “lista de coisas para fazer antes
de morrer”? Porque “andar a cavalo pelada” estava na lista de
coisas que eu nunca mais queria fazer. E, no entanto, uma
rápida olhada para os soldados que se aproximavam me disse
que não era hora de me preocupar com o meio de transporte.
Torin montou no cavalo atrás de mim e deslizou um braço
em volta da minha cintura. Com a mão livre, agarrou as
rédeas.
Quando ele falou novamente na língua Seelie, o cavalo
cou de pé.
Torin deu um leve chute na lateral do animal e começamos
a galopar através do cercado, e então por cima da mureta de
pedra. O vento frio da noite agitava meu cabelo e castigava
minha pele nua.
Meu coração disparou enquanto eu me agarrava à crina da
égua como se minha vida dependesse disso. Ainda assim, o
aperto de Torin em minha cintura era rme como aço. E
depois de alguns momentos, comecei a me sentir eufórica.
Depois de tantos dias de nhando em uma masmorra, parecia
que eu havia nalmente voltado à vida.
Apesar de que um top esportivo cairia muito bem nesta
situação.
Assim que tive certeza de que Torin não me deixaria ir a
lugar nenhum — que seu braço poderoso era como uma trava
de segurança ao meu redor — soltei uma das mãos da crina e
tentei segurar meus seios no lugar.
A sensação de estar aqui era incrível, nalmente livre.
Trompas soaram no castelo e o som ecoou pelo reino
estrelado. Meu olhar percorreu as colinas à nossa esquerda,
pontilhadas por pequenas construções de pedra e pelos raios
de luz que emanavam de suas janelas. Ao longe, uma fortaleza
circular se erguia no topo de uma encosta, banhada por uma
luz prateada. E ainda mais além no horizonte, uma cordilheira
escura se elevava contra o céu, seu pico iluminado em
vermelho.
O cavalo acelerou em direção a uma leira de árvores.
Acima de nós, o luar perfurava as folhas vermelhas.
À medida que percorríamos o caminho, a oresta se
adensava a nossa volta, escondendo-nos sob a copa das
árvores. Torin guiou o cavalo por um caminho estreito fora da
rota principal. Uma névoa nos envolveu enquanto
galopávamos mais para dentro da oresta, e Torin conduziu o
cavalo por uma trilha que serpenteava por entre os troncos.
— Meu Deus, você conseguiu, Torin. — Tudo aconteceu
tão rápido que eu quase me esqueci da fuga. Era quase como
um sonho. — Como exatamente você conseguiu uma espada
capaz de cortar aquelas paredes?
— Um presente dos deuses para o rei ungido. Consegui
abrir um portal grande o su ciente para pegá-la. Mas não
consegui mantê-lo aberto por tempo o su ciente para nos
tirar daqui. — Senti Torin se mover atrás de mim e sua
respiração aqueceu meu pescoço. — O que diabos aconteceu
com seu ombro? Foi a magia do demônio?
Assenti.
— Sim. Provavelmente foi quando você me ouviu gritar.
Então a ferida infeccionou e Morgant voltou para curá-la.
— Foi ele quem tirou seu vestido? — Sua voz estava
impregnada de uma violência obstinada. — Eu já quero
arrancar os pulmões dele e enforcá-lo nos portões do castelo,
mas se ele violentou você, encontrarei um jeito de matá-lo
mais lentamente.
— Não. Eu tirei minhas roupas para lavá-las na chuva. Eu
realmente estava precisando de um banho. E comida. Muita
comida. — Eu me recostei em Torin. — Ah, eu vivia
sonhando com sorvete.
— E eu vivia sonhando com maçãs — disse ele baixinho.
Virei a cabeça para ele e nossos rostos roçaram um no
outro. Algo na sensação de seu rosto quente contra o meu me
fez totalmente ciente da minha completa nudez.
Seu polegar repousou logo acima do osso do meu quadril e
roçou minha pele uma única vez, como se estivesse tentando
me confortar.
Apertei rmemente o cavalo com minhas coxas.
— Alguma ideia de para onde estamos indo? — perguntei.
— Na verdade, não. Mas quero nos afastar o máximo
possível do castelo e talvez encontrar algum abrigo. Então
quero encontrar Aquela com Véu. E então vou te dar maçãs na
boca.
Ele soava um pouco delirante, mas eu também estava
delirando, de qualquer maneira.
— Maçãs — repeti. — Calma aí. Quem é Aquela com Véu?
Ele respirou profundamente.
— De acordo com as lendas, ela é um oráculo que vive
entre os Unseelie. Eles a chamam de Aquela com Véu. Ela é o
equivalente Unseelie do nosso oráculo, Modron. Modron só
consegue ver o passado, e dizem que Aquela com Véu
consegue ver o futuro. Alguns dizem que as anciãs são antigos
deuses ou espíritos da terra. Não sei muito bem o que são,
mas se tem alguém que pode nos dizer como sair daqui, é ela.
Só não faço muita ideia de onde encontrá-la. E quando a
encontrarmos, não sei se ela tentaria nos matar.
— Ela tem uma magia poderosa?
Ele inspirou profundamente.
— Acredito que sim.
Meus músculos queimavam com o esforço de me segurar
enquanto avançávamos a uma velocidade vertiginosa.
— Você vê algum sinal de abrigo?
— Ainda não estou procurando. Se encontrarmos um rio,
ajudará a esconder nosso cheiro dos rastreadores.
O vento estava mais frio agora e arrepios percorreram
minha pele nua. Aninhei-me em Torin para me aquecer e ouvi
um murmúrio baixo se formar em sua garganta.
Seus dedos estavam apertados em minha cintura.
Ao nosso redor, a luz da lua penetrava através da copa das
árvores, salpicando o chão escuro da oresta com pontos
prateados.
Por m, um rio surgiu por entre as árvores, cintilante com
a luz da lua.
— Aí está — murmurou Torin, guiando o cavalo para
dentro da água.
O cavalo galopou para dentro do riacho raso e um jato frio
espirrou em mim. Lambi meus lábios, minha garganta ainda
ardendo de sede. A chuva foi boa, mas não o su ciente. Cada
gota de água do rio era uma bênção dos deuses.
O peitoral rme de Torin me aquecia por trás. Segura em
seu aperto, comecei lentamente a relaxar os músculos,
encostando-me nele. Pelo menos por enquanto, eu me sentia
segura com ele. Mas, no nal das contas, provavelmente
ainda estávamos presos neste mundo. Quais eram as chances
de encontrar a mulher com véu? E mesmo que
encontrássemos, será que ela nos ajudaria?
Era como correr em círculos.
Mas enquanto Torin tivesse esperança, eu guardaria meus
pensamentos sombrios para mim mesma. Eu não suportaria
ver a expressão em seu rosto se eu lhe dissesse que achava que
poderíamos estar presos aqui.
Ava

U m vento salgado nos percorreu, castigando minha pele


exposta enquanto disparávamos pelo rio. Pelo cheiro de
maresia, imaginei que deveríamos estar perto do mar. Uma
névoa espessa se formou ao nosso redor.
Quando Torin puxou as rédeas do cavalo, o som da água
corrente rugia, como se houvesse uma cachoeira nas
proximidades.
— Ava, acho que tem uma casa abandonada ali.
Outra rajada de maresia nos atingiu, dissipando parte da
névoa. Por entre os troncos das árvores, pude discernir uma
estrutura de pedra que se erguia na beira do penhasco, uma
pequena cabana com janelas escuras.
Torin me ajudou a descer do cavalo e meus pés
mergulharam na água fria. Peguei o vestido do dorso do
animal e o vesti.
O rei já estava ajoelhado para beber a água do rio e eu me
juntei a ele. Fiz uma concha com as mãos para pegá-la. A água
revigorante do rio desceu pela minha garganta, escorrendo
pelo meu queixo e vestido. Pelos deuses, não me admira que
os antigos adorassem os rios.
Eu ainda estava bebendo quando Torin se levantou.
— Vou me certi car de que a casa está vazia antes de
entrarmos — disse ele. — Traga o cavalo para mais perto da
casa, se precisarmos de uma fuga rápida.
Saí do rio logo depois dele, observando-o entrar na
clareira com a espada na bainha da cintura. Quando meu
olhar baixou para seus pés, senti uma dor no coração ao ver
seus calcanhares dilacerados.
Com o frio da noite, eu me abracei com força, conduzindo
o cavalo para fora do rio até a clareira. Depois de dias na cela
desoladora, a casa parecia extremamente aconchegante.
Escura, mas a ideia de um lugar com uma cama macia me
parecia a de nição de paraíso. Um lado da casa dava para um
penhasco íngreme que se projetava para o mar cintilante, e a
oresta se arqueava de forma protetora sobre os fundos. Uma
porta arredondada conferia à casa uma aparência acolhedora.
À luz da lua, pude ver que a casa havia sido pintada de azul
celeste há muito tempo, mas agora a pintura parecia
desgastada pela maresia. Folhas vermelhas se espalhavam
pelo chão como um tapete bordô.
Eu me aproximei mais da cabana, observando enquanto
Torin desembainhava a espada e subia os degraus até a porta
da frente.
Eu me virei, meu olhar percorrendo duas tumbas tortas
do lado de fora da casa. À medida que eu me aproximava, fui
percebendo os lindos e brutais entalhes na pedra, padrões
retorcidos e entrelaçados, serpentes enroscadas em azul e
roxo. Runas gravavam os nomes daqueles que foram
enterrados ali, mas eu não conseguia lê-las. Trepadeiras azuis
com folhas de pontas vermelhas rastejavam sobre as tumbas,
tão sinuosas quanto os entalhes. Quem quer que tenha sido
enterrado neste lugar, foi amado o su ciente por alguém que
cuidou muito bem de seu sepultamento, gravando seus
nomes para a eternidade.
Ao lado da casa, havia cochos de lata virados de cabeça
para baixo, o que sugeria que em algum momento houve
animais de fazenda ali. Também encontrei um poste para o
cavalo e o amarrei.
Assim que terminei, um farfalhar nos galhos chamou
minha atenção e eu me virei para a oresta.
Meu coração disparou.
Das sombras, um enorme inseto com membros nos de
um prateado cintilante pairava sobre mim. Meu queixo caiu. A
coisa era tão grande quanto um cavalo. Desta vez não era uma
aranha, mas eu não sabia exatamente o que era. Antes que eu
pudesse dar uma boa olhada, ele se virou e desapareceu na
oresta. Soltei um longo e trêmulo suspiro, mas a tensão
ainda enrijecia meus músculos.
Meu alívio durou pouco. No próximo piscar de olhos, a
criatura estava de pé sobre as patas traseiras, a cabeça
brilhando ao luar. Meu coração parou quando ele pairou sobre
mim como um louva-a-deus de metal.
Ele me atacou, uma de suas enormes patas em formato de
foice mirando na minha cabeça. Eu me lancei para fora do
caminho e quei de pé, correndo para longe dele e em direção
ao cheiro do mar.
— Torin!
Cheguei à beira do penhasco íngreme e escuro, não havia
mais para onde correr. Parei em meio a altas ervas marinhas e
me virei para encará-lo. Olhos luminescentes me encaravam e
um par de presas enormes se contorciam e espasmavam
avidamente em sua boca. Ele exionou suas patas em formato
de lâmina.
Finalmente, Torin escancarou a porta e desembainhou a
espada.
O enorme louva-a-deus parou de se mover, inclinando a
cabeça para avaliar a nova ameaça. Quando Torin desferiu um
golpe em seu torso, a criatura saltou para longe, empurrando-
me mais para a beira do penhasco. Por trás, o vento salpicava
de água do mar minhas costas. Muito abaixo de mim, o
oceano se agitava. Prendi a respiração.
O louva-a-deus atacou Torin. Ele agitou a espada,
cortando uma das patas da criatura, que gritou de dor. Uma
pontada de pavor me atingiu enquanto eu me perguntava se
os soldados ouviriam o grito.
Torin desferiu mais um golpe e o inseto voou para longe,
rápido como um raio. Meu coração disparou. O louva-a-deus
poderia facilmente cravar a pata que restou no corpo de
Torin.
Minha mente começou a desfocar, preenchida apenas com
a agitação do oceano e o zumbido baixo e musical da oresta
nas proximidades. Com o vento soprando sobre mim, corri
em direção ao louva-a-deus, colocando-me entre a criatura e
Torin.
— Ava! — gritou ele, mas eu o ignorei.
Meus instintos se xaram em torno de uma ideia: eu
manteria Torin seguro e a oresta me ajudaria.
Enquanto eu encarava o louva-a-deus, imagens da terra
ganhando vida e curvando-se à minha vontade preencheram
minha mente. Imagens das longas ervas marinhas na costa
erguendo-se e puxando o louva-a-deus para o mar…
Soltei um rugido, um grito furioso vindo de algum lugar
das profundezas do meu ser, que o vento capturou e conduziu
sobre as ondas agitadas. Folhas vermelhas foram arrancadas
dos galhos das árvores, rodopiando no vendaval, chicoteando
o rosto da criatura.
O louva-a-deus cambaleou cada vez mais para trás até cair
na encosta do penhasco.
Ava

E u quei ali, parada, tremendo, e olhei para o penhasco


rochoso. Um estalo alto ecoou sobre o som das ondas. O
louva-a-deus havia caído lá embaixo.
Torin estava me encarando com a testa franzida.
— Isso foi… interessante. Você o derrubou do penhasco
no grito?
Meu corpo estalava com a eletricidade que o percorria,
mas deveria ser apenas resquícios do medo, certo? Eu não
sabia se havia invocado magia ou se o próprio vento havia
derrubado o monstro do penhasco.
Prendi a respiração, a náusea subindo pelo meu estômago.
— A casa está vazia?
Ele assentiu.
A fúria da batalha começou a se dissipar do meu corpo,
mas minhas pernas ainda tremiam.
— Ótimo.
— Vou preparar algo para comermos — disse ele. — E um
banho quente para você.
Senti um nó na garganta. Quando ele quebrou a parede da
minha cela, achei que ele parecia um deus. Ele estava
igualmente lindo agora, mas meu olhar se desviou para seus
braços machucados e pés ensanguentados. Tons de vermelho
e roxo se destacavam nitidamente em sua pele.
Inspirei profundamente.
— Seus pés estão sangrando. Podemos usar meu vestido
para fazer curativos.
— Nós dois estamos em péssima condição, não é mesmo?
Mas essa é a beleza de um corpo feérico. Ele se cura. — Ele se
virou, passando a mão pelos cabelos enquanto entrava na
casa.
Arqueei uma sobrancelha. Um bom rei era aquele que
zelava e protegia seu povo, e eu estava começando a ter a
impressão de que o que Torin mais precisava era se sentir
como um protetor, em vez dar prioridade para cuidar de seu
corpo machucado. Tive a nítida sensação de que ele se sentiria
derrotado se não estivesse cuidando de alguém. Eu precisaria
tomar cuidado com minha forma de me expressar.
— Torin? — chamei.
Quando ele se virou para mim novamente, estendi a mão
pelas minhas costas.
— Morgant curou meu ombro, mas ainda sinto uma
pontada de alguma coisa. Você viu algo na casa que pudesse
servir como uma espécie de antisséptico ou pomada?
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Só uma pontada?
— Bem pequena. Mas não faria mal nenhum desinfetá-la
para não correr o risco de piorar.
— Não vi nada lá dentro. — Ele apontou para os galhos
repletos de frutinhas roxas que subiam sobre os túmulos. —
Mas as folhas dessa trepadeira, Entardecer, são praticamente
mágicas. Elas crescem em Feéria também. Se você coletar
algumas delas, posso transformá-las em um óleo antisséptico
que fará maravilhas pelo seu ombro.
Dei um sorrisinho para ele.
— Obrigada.
Ao lado do túmulo, arranquei punhados de folhas de um
azul intenso e brilhante até que minhas mãos estivessem
cheias delas. Quando entrei, Torin já estava ajoelhado diante
de uma enorme lareira de pedra, mexendo em um acendedor
metálico. Quando o fogo acendeu, vislumbrei um caldeirão
pendurado na lareira. Ele tinha o formato de um bule de chá,
com alça e bico. Ao seu lado estava um grande balde. Cerca de
um metro e meio da lareira havia uma enorme banheira de
cobre. Parecia um lugar estranho para uma banheira, mas
imaginei que sem água corrente era o lugar mais fácil para
tomar um banho quente.
Coloquei as folhas em cima da mesa da cozinha e observei
o interior escuro. Além dos raios do luar que entravam pelas
janelas e do brilho fraco de pequenas chamas, não havia
muita luz aqui. Eu sentia o cheiro de ervas secas. Depois de
alguns instantes, meus olhos se acostumaram à escuridão e
consegui me orientar um pouco.
As tábuas do chão rangeram sob meus pés enquanto eu
explorava o espaço. Duas pesadas portas de madeira com
entalhes levavam a outros cômodos. Um deles era um
banheiro com um vaso sanitário de pedra e pouca coisa além
disso. O outro era um quarto com uma cama estreita de
dossel. Vigas de madeira escura cruzavam as paredes brancas
e cortinas claras pendiam das janelas gradeadas.
Quando voltei para a cozinha, Torin havia conseguido
alimentar as chamas da lareira. O fogo o banhava de uma luz
dourada e tremeluzia sobre a gigantesca banheira de cobre.
Peguei uma vela de uma das arandelas na parede e me
inclinei ao lado dele para acendê-la. Com a vela gotejante,
acendi as velas das outras arandelas e logo o pequeno cômodo
estava envolto em uma luz bruxuleante.
Agora eu conseguia ver a sala com mais clareza.
Prateleiras de madeira de pinheiro se projetavam de uma
parede, cheias de pratos e xícaras de barro. Tudo estava
coberto por uma camada de poeira, mas ainda assim parecia
aconchegante e acolhedor.
Torin chamou minha atenção.
— Vá se sentar, Ava. Vou pegar um pouco de água do rio.
Você queria um banho.
Um banho parecia divino, mas foi difícil não revirar os
olhos. A ideia de ele entrando e saindo da casa com os pés
machucados enquanto eu cava sentada era absurda.
Ele cou de pé, e pelo seu jeito de andar, com as costas
retas e rígidas, percebi que estava com dor.
— Preciso curar minhas costas — gritei para ele, tentando
esconder a irritação em meu tom de voz.
Mesmo assim, ele pegou o balde e saiu.
Peguei um almofariz e um pistilo de pedra de uma das
prateleiras. Joguei as folhas no almofariz e as amassei até
formar uma pasta azulada com um brilho oleoso no topo.
Passei o óleo para uma tigela menor.
Torin voltou, empurrando a porta com força, e derramou
a água no caldeirão.
Mergulhei o dedo no óleo. Meu mindinho cou
impregnado da substância azul-sa ra e eu o esfreguei nas
costas. Não senti absolutamente nada porque meu ferimento
já havia cicatrizado.
— Aaah — falei em voz alta, ngindo alívio. — Agora está
melhor. Torin?
Ele parou a meio caminho da porta com o balde e se virou
para mim, a luz do fogo esculpindo seu peito com ouro e
sombras.
Pigarreei.
— Ainda tenho um monte aqui se você precisar. Não
queria desperdiçar.
Fui até ele e o entreguei o óleo. Uma centelha de
divertimento cruzou os olhos de Torin e o canto de sua boca
se contraiu.
— Eu sei o que você está fazendo e eu já sobrevivi a coisas
piores, criança trocada. Não precisa se preocupar comigo.
— Tudo o que me interessa agora é comida — menti. — E
comeremos mais cedo se você puder andar mais rápido. Posso
até morrer se eu não comer logo. E aí você caria com o fardo
da minha morte.
Um sorriso pequeno e pesaroso se formou em seus lábios.
— Isso eu não posso permitir. — Ele pegou o óleo das
minhas mãos. — Mas pode se sentar agora. Estou indo pegar
água para tomarmos banho.
Mordi o lábio, tentando adicionar um tom de desespero
na voz.
— Na verdade, eu me sentiria melhor se pudesse me
mover, Torin. Fiquei tanto tempo trancada em uma cela que
car con nada aqui é a última coisa de que eu preciso. Estou
desesperada para sentir minha liberdade. Além disso, se não
me engano, você me prometeu comida, não? Estou morrendo
de fome. Então eu acharia melhor se você não gastasse o seu
tempo pegando água. — Antes que ele pudesse protestar,
peguei o balde das tábuas empenadas do chão e saí para o ar
livre, impregnado de sal marinho.
Se Torin tivesse algum bom senso, ele estaria limpando e
curando seus pés agora mesmo. Mas talvez as surras de
Morgant tivessem acabado com o bom senso dele.
Do lado de fora, mantive meus sentidos alertas para o
som de soldados se aproximando, mas só ouvi o melancólico
canto de uma coruja, o vento soprando através dos galhos e as
ondas quebrando contra o penhasco. Ajoelhei-me à beira do
rio para encher o balde no curso de água agitado.
Pelos deuses, era incrível estar fora daquela masmorra. Eu
realmente ansiava pela liberdade de andar por aí, mesmo que
meus músculos estivessem queimando.
Com as pernas doloridas, eu me levantei e carreguei o
balde de volta para a casa, sentindo o peso em meu braço.
Quando eu estava me aproximando da porta azul desbotada,
Torin saiu, uma mecha de seu cabelo escuro caindo no rosto.
Desta vez, seus músculos pareciam relaxados, suas mãos nos
bolsos da calça manchada de sujeira. Ele claramente havia
usado o óleo curativo, e eu senti uma pontada de orgulho por
tê-lo ajudado.
— Vou pegar comida para você, criança trocada. Como
você disse, não quero que morra de fome sob minha
responsabilidade.
Um sorriso surgiu em meus lábios.
— Estou morrendo de fome.
Fiz várias viagens de ida e volta ao rio, enchendo o balde e
despejando a água para ferver no bule gigante, e em seguida
na banheira.
Mas eu não iria encher a banheira duas vezes, não é? Era
grande o su ciente para dois.
Enquanto eu entrava e saía da casa, Torin voltou trazendo
um faisão e bagas de zimbro. Enquanto eu enchia a banheira,
ele depenou e salgou a carne, depois a temperou com ervas e
um antigo vinho do Porto que estava em um dos armários.
Ele colocou o faisão em um espeto para assá-lo na lareira.
Por m, a banheira estava cheia de água quente e o vapor
subia em espirais. O cheiro do faisão assando tornava difícil
que eu prestasse atenção em qualquer outra coisa além de seu
sabor, delicioso e suculento.
Torin virou o espeto enquanto o brilho suave da lareira
destacava sua mandíbula de nida e as maçãs do rosto
salientes.
— Torin — falei —, você vai entrar nessa banheira
comigo.
Ele me olhou por cima do ombro, sua expressão ilegível.
— Eu… o quê?
— Isso levou mais de vinte minutos. Não vou encher de
novo. E não vou lidar com a culpa de ser a única a tomar
banho. Nós dois fomos torturados em uma cela. Nós dois
vamos tomar banho, olhando em direções opostas.
Seus olhos brilharam.
— Se você realmente quer me ver pelado, criança trocada,
pode simplesmente pedir.
— Não é isso. — Fechei os olhos. — Vamos olhar em
direções opostas. Eu co virada para a esquerda, e você para a
direita. É o jeito mais prático.
— Como quiser, criança trocada.
Ava

F icamos de costas um para o outro e eu alcancei a bainha do


meu vestido. Agora, o tecido verde já estava mais do que
imundo. Mesmo que eu já tivesse cado nua perto de Torin o
caminho inteiro até aqui, agora, na calma e tranquilidade da
casa, o clima parecia muito diferente. Quando tirei o vestido,
eu me tornei plenamente ciente de cada centímetro da minha
pele despida. A lareira aqueceu um lado do meu corpo e eu
olhei para a banheira que estava atrás de mim.
— Não olhe — falei para ele, mas era mais um lembrete
para mim mesma.
— Assim vai ser complicado entrar na banheira — disse
ele baixinho.
Atrás de mim, ouvi o farfalhar de suas roupas enquanto
ele as tirava. Mesmo contra minha vontade, a imagem de
Torin nu surgiu na minha mente, e imaginei cada curva de
seus músculos esculpidos e duros como ferro.
Era realmente difícil entrar na banheira sem ver nada,
então dei uma olhada por cima do ombro. Desajeitadamente,
passei de costas por cima da borda, parabenizando-me
mentalmente por ter acertado a temperatura — quente o
su ciente para deixar a pele rosada, mas não o bastante para
me queimar. Eu me sentei de pernas cruzadas na água.
Ouvi Torin entrar na banheira atrás de mim e respirar
fundo. A água subiu mais um pouco e atingiu meu peito,
cobrindo meus seios.
— Pelos deuses, Ava. Você está tentando nos ferver vivos?
Isto é o inferno?
— Seus súditos sabem que você é uma or tão delicada?
— Meus músculos relaxaram e cruzei os braços sobre a borda.
Eu deveria estar lavando meu cabelo e corpo, mas só queria
derreter na água quente por um momento. E eu estava
intensamente distraída pelo fato de Torin estar na banheira
comigo, tentando com muito cuidado evitar que seu corpo
tocasse o meu.
Ao lado da banheira, empilhei roupas cuidadosamente
dobradas: calças, botas e camisas brancas limpas que
encontrei guardadas em um guarda-roupa. Meu olhar
percorreu as roupas e pairou sobre o rei Seelie. Pelo canto do
olho, vislumbrei o corpo de um guerreiro, suas tatuagens
escuras que subiam como trepadeiras sobre os músculos
de nidos. Ele exionou os ombros e as sombras e a luz da
lareira destacaram os contornos esculpidos de suas costas.
Meu olhar percorreu os hematomas cor de ameixa em sua
coluna e a fúria ardeu em meu peito. Morgant realmente o
machucou feio.
Suspirando, Torin se inclinou para frente, os braços
cruzados na borda da banheira assim como eu tinha feito
antes. A água quente era um bálsamo para músculos
doloridos e o ar abafado era reconfortante para os pulmões.
Talvez tenha sido a solidão insuportável e dolorosa de
todo o tempo passado na cela, mas tive di culdade em desviar
os olhos dele.
Com o cheiro de carne assada e alecrim subindo no ar,
descobri que meus desejos primordiais estavam cando
confusos. Eu queria cuidar dele, devorar sua carne ou montar
nele? Eu não tinha mais certeza.
Talvez alguma combinação dos três.
Ele me pegou olhando para ele, e minhas bochechas
queimaram de vergonha.
— Ava — disse ele suavemente —, achei que deveríamos
car de costas um para o outro.
Eu me virei bruscamente, minhas bochechas pegando
fogo.
— Você não teria como saber que eu estava olhando se
você mesmo não tivesse olhado. — Eu soava infantil? Talvez.
Atrás de mim, ouvi o som da água escorrendo do corpo de
Torin para a banheira enquanto ele se lavava, depois escutei o
barulho dos seus pés no chão de madeira. Senti uma pontada
de decepção, mas eu não queria sair da água. Este banho era
equivalente ao paraíso.
Mantive meus olhos xos no chão enquanto ele se vestia.
Um minuto mais tarde, Torin se ajoelhou próximo ao
fogo. A camisa branca e limpa que encontrei estava esticada
sobre seus músculos, pequena demais para ele, enquanto ele
virava o faisão no espeto.
Salivei, meu estômago vazio com uma fome intensa.
— Será que o faisão já está pronto?
Eu sinceramente o teria comido cru. Completamente cru.
Mais uma rotação do espeto.
— Ainda não. Não comemos há dias, então podemos
muito bem fazer uma boa refeição.
— Se você me zer esperar ainda mais, posso acabar
virando canibal e devorando você. Acho que estou entrando
em contato com meu lado demoníaco aqui, Torin.
— Parece estranhamento tentador. — Seus olhos estavam
brilhando quando ele se virou para mim. — Acho que eu
poderia lhe dar algumas frutinhas, mas o resto estou usando
em um molho de vinho do Porto…
Eu mostrei meus caninos para ele.
— Vou começar com seus ombros, Torin, arrancando um
pedaço dos seus belos músculos com meus dentes.
Um sorriso se formou em seus lábios, e ele se levantou.
— Há pouco tempo você estava preocupada com o estado
dos meus pés. Agora, você quer me comer vivo. — Ele me
entregou uma pequena tigela de madeira com frutinhas roxas.
— Sou complexa. — Coloquei uma frutinha na boca e a
mordi. Paraíso. Será que eu já tinha comido algo tão doce? —
Eu dividiria com você, mas infelizmente os Seelie e os
Unseelie são antigos inimigos.
— Ainda bem que sou totalmente capaz de esperar pela
refeição de verdade. — O murmúrio aveludado em seu tom de
voz fez meu sangue esquentar.
As bagas de zimbro mancharam meus dedos de roxo.
— Se Morgant vier atrás de nós amanhã e tivermos uma
morte dolorosa nas mãos dele, temos que fazer desta uma
ótima noite.
— É por isso que não vou apressar as coisas, criança
trocada.
— Então, se encontrarmos essa tal mulher com véu, e ela
puder nos dizer como voltar para casa, quanto tempo você vai
esperar para consumar seu casamento com… com seja lá
quem você planeja se casar?
Ela me dirigiu um olhar penetrante, então se levantou e
foi até a mesa da cozinha.
— Vou me concentrar no importante trabalho de fazer o
molho de vinho.
Ele parecia meio abalado enquanto amassava as bagas de
zimbro. Mudei de posição na banheira para poder encará-lo.
Eu não conseguia evitar. Era realmente muito bom olhar para
ele.
— Embora eu tenha certeza de que o molho de vinho
requer toda a concentração que sua linda cabecinha consegue
reunir — falei —, você vai precisar de descendentes reais.
Quem mais vai crescer e massacrar vítimas de sacrifício no
Beltane se você não gerar um herdeiro?
O canto de sua boca se contraiu.
— Sabe, já faz muito tempo que não sacri camos alguém
da sua espécie no Beltane. Os clãs cariam maravilhados.
— Um demônio seria perfeito. Criaturas horríveis. Posso
recomendar Morgant para essa função?
Um sorriso se abriu em seus lábios.
— Acho que ele é o lho da rainha. O lho que sobrou,
pelo menos.
— Também tive essa impressão.
Terminei a última das frutinhas. A essa altura, o banho já
tinha me deixado rosada.
— Vire para lá, Vossa Alteza. Vou sair.
Ele fez o que eu pedi, desviando os olhos.
Não encontrei nenhuma toalha, mas consegui desenterrar
um cobertor de lã velho, então me sequei nele e vesti uma
camisa branca de botões que chegava até a metade das coxas e
um short azul minúsculo. Não consegui encontrar nenhuma
calça que me servisse.
Depois de me vestir, pensei que deveria ajudar com o
jantar, então tirei os pratos das prateleiras antigas e os
coloquei em cima da mesa.
— Vou servir o vinho. E seja lá o que estiver acontecendo
com aquele faisão, vamos comer agora mesmo, porque as
frutinhas acabaram e o faisão tem um gosto melhor do que
sua carne musculosa.
Com um suspiro, Torin começou a tirar o faisão da haste
de metal.
— Tome cuidado para não comer rápido demais. Vai car
enjoada se exagerar depois de dias passando fome.
A luz dourada bruxuleava pelo cômodo aconchegante e fui
até a mesa servir o vinho do Porto.
— Olhe só para nós, tão caseiros, somente um rei Seelie
com uma predileção por sacrifícios humanos e sua inimiga
demoníaca. Compartilhando o pão juntos como velhos
companheiros.
Lá fora, o som de um trovão ecoou pela paisagem.
— Você está realmente obcecada com essa coisa de
sacrifício humano, não é?
— É meio que uma peculiaridade minha. — Eu me virei e,
para meu total deleite, dei de cara com um faisão
perfeitamente assado, a pele crocante de uma deliciosa cor
amanteigada. Eu literalmente babei, e limpei a boca com as
costas da mão. — Por causa disso, toda essa coisa de sacrifício
humano está perdoada.
Torin deslizou o pássaro na mesa e eu me apressei para o
banco de madeira.
A certa altura, eu até já tive boas maneiras, mas elas
morreram na cela há alguns dias, então simplesmente
arranquei uma das coxas e comecei a roê-la como um homem
das cavernas.
— Mais devagar, demoninho.
Nunca na minha vida eu havia comido algo tão divino.
Esta era a comida dos deuses, suculenta e levemente
temperada. Onde foi que Torin aprendeu a cozinhar? Eu
achava que um rei nunca precisaria se preocupar com isso.
Mas, claro, ele realmente parecia gostar de tomar conta das
pessoas, e cozinhar era a maneira perfeita de fazer isso.
O calor queimou minha língua, mas eu não conseguia
parar de comer.
— Ava — disse Torin baixinho, em tom de advertência.
— Tá bem. — Eu me forcei a ir com calma e tomei um gole
de vinho. Suspirei. — É quase como estar em casa, não é? —
Mas algo nisso parecia falso, como se eu estivesse tentando
ignorar tudo o que havia acontecido na masmorra. E assim
que as palavras deixaram minha boca, todos os horrores da
última semana voltaram aos meus pensamentos. A completa
falta de controle. A dor no meu ombro infectado e o desespero
feroz ao pensar que eu morreria sozinha, que ninguém iria me
salvar. Mesmo que eu tivesse nascido aqui e esta casinha fosse
aconchegante, este reino horrível não se parecia em nada com
a minha casa. A saudade cravou as garras a adas no meu
coração, perfurando-o até que eu quase perdesse a vontade de
comer. Olhei para a mesa, tentando controlar minha
expressão. Onde estava aquela alegria que consegui reunir há
alguns minutos?
— O que você costumava comer naquele bar? — Torin
tomou um gole de vinho. — Aquele onde te conheci? É um
lugar que você ia com frequência?
Eu o encarei, surpresa com a banalidade da pergunta
enquanto meus pensamentos espiralavam em uma tangente
tão selvagem. Quando meus olhos encontraram os dele, tive a
impressão de que ele foi capaz de ler com precisão a expressão
em meu rosto, ou de detectar a leve falha em minha voz
quando eu disse casa. E ele deve ter percebido o quanto eu
ansiava por um pouco de normalidade naquele momento.
Era chocante o quão facilmente ele conseguia entender do
que eu precisava.
— Sim — respondi, por m. — Eu ia muito lá com
Shalini. Especialmente às Terças dos Tacos. Mas geralmente
eu estava dura, então comprava nachos, porque eram mais
baratos. — Nunca na minha vida eu teria imaginado que um
dia minha voz falharia de emoção ao pronunciar a palavra
nachos, mas aqui estávamos nós.
— Nachos — repetiu ele, lentamente. Tive a sensação de
que ele não fazia ideia do que era isso, mas estava tentando
entrar no jogo. — Você vai comer isso de novo quando voltar
para casa?
— Com Shalini. — Pisquei, tentando limpar as lágrimas
dos meus olhos. — Mas esta comida é incrível, Torin. Digo
com con ança que é a melhor coisa que você já fez. — Lambi
meus dedos, um hábito nojento e algo que eu nunca faria se
não tivesse passado fome por uma semana.
Relâmpagos reluziram e, alguns momentos depois, a
chuva começou a bater na janela. Uma tempestade havia
começado lá fora.
— Inclusive, onde você planeja dormir? — perguntei.
— Aqui fora.
— No chão? — Assim que as palavras saíram da minha
boca, percebi que precisaria abordar a questão com cuidado. A
verdade é que eu não queria ser culpada por deixar um herói
machucado dormindo no chão de pedra enquanto eu cava
com a cama aconchegante, mas não podia simplesmente dizer
que ele precisava de cuidados. Ele rejeitaria a ideia
imediatamente.
Franzi a testa para ele.
— Eu me sentiria melhor se você e eu estivéssemos no
mesmo quarto. Posso precisar que você me proteja de algum
outro monstro. Também pode ser que eu que com frio.
Seus olhos azuis brilharam mais intensamente.
— Primeiro, um banho, e agora você me convida para
dormir com você?
— Por razões de segurança. Eu sei que você está se
guardando para o casamento, mas tenho certeza de que você
pode se controlar perto de mim.
— Em primeiro lugar, eu nunca disse nada sobre estar me
guardando. Em segundo lugar, eu posso me controlar, criança
trocada. — Um sorriso lânguido se abriu em seus lábios. —
Mas você, por outro lado? Eu vi como você me olhou durante
o banho. Acho que você disse “belos músculos”.
Arranquei mais um pedaço de carne com os dentes. Eu
não havia conseguido encontrar nenhum talher.
— Ah, como você é inocente. Eu estava te encarando
como um pedaço de carne. Do mesmo jeito que eu acho que
este faisão tem belas coxas.
Ele arqueou uma sobrancelha, analisando-me com seu
olhar intenso sob grossos cílios pretos.
— Muito bem. Que seja a cama, então.

E      e me deixei afundar na


cama mais confortável e macia que já vi. Os músculos das
minhas coxas pareciam contraídos e exaustos, mas meu corpo
estava envolto em maciez, fundindo-se à cama. E com a chuva
batendo na janela, meus olhos já estavam começando a se
fechar.
Mas eles se abriram imediatamente quando ouvi Torin
entrando no quarto com seu cabelo preto despenteado. Ainda
assim, de alguma forma, ele estava impecável sob a luz
prateada, e já havia tirado a camisa pequena demais. Na
verdade, agora ele estava vestindo somente um dos shorts
que eu encontrei, que eram extremamente justos. De cintura
bem baixa, eles mostravam cada centímetro de seu abdômen
de nido.
Ele estava fazendo isso de propósito para provar alguma
coisa? Dado seu olhar diabólico, eu diria que sim.
Fechei os olhos e as palavras que ele me disse em Feéria
ecoaram na minha mente.
Porque se fôssemos você e eu no bosque de carvalhos durante o
Beltane, eu faria você gritar meu nome, me chamando de seu rei.
Eu faria seu corpo responder a cada comando meu, estremecendo
de prazer embaixo de mim, até você esquecer que o mundo
humano um dia existiu…
Ele passou a mão pelos cabelos enquanto se aproximava
da cama, os olhos xos em mim de um jeito que fez uma onda
de calor percorrer meu corpo.
Virei-me de lado, determinada a afundar na cama e cair no
sono.
Fechei os olhos, mas eu sabia a verdade. Eu não
conseguiria dormir nem por um minuto com Torin seminu ao
meu lado. Se sairmos daqui, ele vai se casar com uma princesa
Seelie cheia de julgamentos, lembrei a mim mesma.
Tentei imaginá-lo no altar com Moria ao seu lado. Quão
deslumbrantes eles cariam juntos.
Puxei as cobertas até o queixo.
Assim que Torin se deitou ao meu lado na cama, seu
delicioso aroma de carvalho tomou conta de mim, e senti o
calor e o poder que irradiavam dele.
Quando seu braço roçou minhas costas, minha pulsação
disparou.
E claro que o rei Seelie percebeu.
— Seu coração está acelerado — murmurou ele.
— Ansiedade.
Para minha surpresa, ele me puxou com força contra seu
corpo, seus braços esculpidos me envolvendo gentilmente. Eu
conseguia sentir o ritmo de seus batimentos cardíacos contra
o no tecido da minha camisa.
Eu estava perfeitamente ciente de quão pouca roupa eu
estava vestindo e da sensação de que cada centímetro da
minha pele nua ansiava por seu toque.
— Ava, você está segura comigo. — Ele afastou meu
cabelo do rosto e passou levemente as pontas dos dedos pelas
minhas têmporas. — Aquele animal deixou um hematoma em
você.
Senti uma pontada de culpa porque ele estava sendo
surpreendentemente gentil, e não era a ansiedade que fazia
meu coração disparar. Achei que, com toda a sua autoestima,
ele teria percebido a mentira.
Seu corpo se curvou contra o meu, e meus músculos
relaxaram.
Ele respirou fundo.
— Qual é a sensação?
Meus pensamentos voavam em todas as direções,
nenhuma delas apropriada para duas pessoas que
concordaram plenamente que não poderiam car juntas.
— Qual a sensação de quê?
— Dos chifres.
— São um pouco sensíveis, eu acho. No vento frio.
— O que acontece se eu tocar em um?
— Acho que nada. — Mas assim que eu pronunciei as
palavras, sabia que estavam erradas, porque só o pensamento
disso já me causou arrepios.
Ele estendeu a mão. Um toque lânguido na curva do meu
chifre deixou um rastro de calor que fez meus cílios
tremularem. Uma onda de desejo percorreu meu corpo,
varrendo qualquer pensamento da minha mente. Pressionei
meus quadris contra ele e o ouvi prender a respiração.
Arqueei minhas costas e me virei para ele.
— Você está tentando me seduzir?
Ele encostou os lábios na minha orelha.
— Minha amiga demoníaca — ronronou ele —, se eu
estivesse tentando seduzi-la, você já estaria gemendo meu
nome agora mesmo. Mas não estou fazendo isso, não é?
Porque você é um lindo demoninho que eu nunca poderia ter.
— Eu estaria gemendo seu nome agora mesmo? — Eu o
encarei e meu olhar deslizou para a curva sensual de seus
lábios. Eu odiava o quanto eu queria sentir o gosto daqueles
lábios mais uma vez. — Não sei dizer se você se acha tanto
assim ou se faz parte da sua performance de rei.
— Ah, digo isso de forma genuína e totalmente garantida.
Minha boca se contraiu.
— Isso é só o que todo mundo diz quando você é o rei. Por
exemplo, como Henrique VIII supostamente era o maior
esportista de sua época. — Franzi a testa. — Você não acha
que talvez isso tivesse ocorrido porque todo mundo estava
com muito medo de dizer a verdade, devido ao seu hábito de
cortar cabeças? Talvez todas aquelas simpáticas damas Seelie
do Beltane não estivessem com vontade de irritar o Rei
Superior. Talvez você seja o Henrique VIII do sexo.
Ele se apoiou em um braço e me dirigiu um sorriso lento e
malicioso, os olhos tornando-se mais escuros. Uma onda
sedutora de calor emanava dele.
— Agora, isso — murmurou ele na curva do meu pescoço
— me parece um maldito desa o, criança trocada.
Ava

E ntão, criança trocada — sussurrou ele, sua respiração


aquecendo meu pescoço —, o problema é que, se por acaso eu
não conseguir sair da Corte das Lamentações, não posso
morrer com você pensando que eu sou o Henrique VIII do
sexo. E eu farei você gemer meu nome. — Sua voz grave e
suave acariciou minha pele, enviando uma corrente perversa
de adrenalina pelo meu corpo.
O luar penetrava pela janela, lançando um brilho prateado
em seu rosto impossivelmente lindo. Eu não podia me
permitir amá-lo, mas podia desejá-lo. Seus olhos
sobrenaturalmente azuis estavam carregados de um perigo
latente e ardiam com intensidade.
Ele estendeu a mão de novo e acariciou suavemente meu
chifre direito, percorrendo-o devagar da base até a ponta.
Enquanto o fazia, ele examinou meu rosto, observando
minha boca se abrir e minhas pálpebras baixarem e
tremularem com o prazer proibido de tudo isso. Sob o tecido
no da minha camisa, meus mamilos enrijeceram e uma onda
de calor percorreu minha espinha.
— Isso é trapaça — falei, sem fôlego.
— Mas como eu poderia resistir a ver aquela expressão
em seu lindo rosto novamente? — A voz dele estava rouca.
Ele se inclinou e roçou os lábios no meu pescoço, depois os
dentes na minha garganta. Sua língua percorreu minha pele,
apreciando o meu gosto, e o resto do mundo desapareceu. Eu
não conseguia pensar em mais nada além da sua língua
venerando meu corpo.
Uma de suas mãos deslizou pela minha barriga e depois
para dentro do meu short. Seus dedos percorreram meus
quadris de um lado ao outro, como se memorizassem minhas
curvas com o toque. Pelos deuses, suas carícias lânguidas
estavam acendendo a chama do desejo dentro de mim.
À medida que minha respiração se tornou mais
super cial, movi meus quadris em direção a ele. Quando meu
corpo encostou no dele, pude senti-lo, grande e duro contra
mim. Sua excitação óbvia só me deixou mais desesperada por
ele. O tecido no de algodão era insuportável contra minha
pele, e meu corpo ardeu com o desespero torturante de tirá-lo
de mim. Todas as minhas terminações nervosas pulsavam,
latejando por ele.
Quando movi meus quadris contra ele novamente, ele
soltou um gemido baixo. Respirando fundo, ele agarrou meu
short e tive a nítida impressão de que ele estava prestes a
perder o controle. De arrancá-lo do meu corpo e mergulhar
em mim…
Ele nunca precisou se conter tanto quando lutávamos.
Naquela época, sempre pareceu tão fácil para ele manter o
controle total, cada um de seus movimentos cuidadosamente
calculados. Mas agora eu conseguia sentir a tensão nos seus
músculos e o aço rme de seu peito.
Sua boca se afastou da minha garganta, a mão ainda
agarrando meu short com força. Senti sua respiração
aquecendo minhas costas, exatamente no lugar onde Morgant
rasgou meu ombro. Gentilmente, as pontas dos dedos de
Torin percorreram a cicatriz.
— Não dói mais, né?
Seus lábios substituíram as pontas dos dedos e seu beijo
enviou uma onda de calor irradiando do ponto onde sua boca
encontrou minha pele. Entre beijos, ele murmurou:
— Vou eviscerar aquele homem algum dia. Sabia disso?
— Não pense sobre o futuro. — Com o rosto corado, eu
me deitei de costas para ter uma melhor visão de seu rosto
dolorosamente lindo.
Comigo, Torin não conseguia se entregar por completo.
Não quando sabia que tudo isso teria um m.
Um lampejo de pesar perpassou seus traços perfeitos.
— Ava. Pensei em você o tempo inteiro na minha cela. No
quanto eu desejava tê-la ao meu lado, abraçada comigo.
Suas palavras me atordoaram, assim como esta versão de
Torin com a guarda baixa. Meu peito corou sob a intensidade
de seu olhar.
Quando tentei me lembrar no que eu pensava enquanto
estava naquela cela de prisão, tudo cou confuso na minha
mente. Apenas lampejos agudos de desespero e um vislumbre
em terceira pessoa de como seria minha aparência lambendo
a água da chuva do chão. Eu me senti tão desamparada lá.
Mas, com Torin, eu me sentia segura, mesmo que
tecnicamente fôssemos de facções inimigas.
Toquei a lateral da sua bochecha e tracei os contornos de
suas maçãs do rosto salientes.
Torin deve ter visto a mudança na minha expressão.
— Do que você está se lembrando? — perguntou ele.
Soltei um longo suspiro, tentando sorrir. Isso não estava
tomando o rumo que eu esperava.
— Nada que eu queira me lembrar. Talvez seu trabalho
seja afastar minha mente da masmorra.
— Ava, você sabe que nunca poderemos ser… — Sua voz
vacilou.
Ele precisava de algo de mim, mas eu não sabia ao certo o
quê. Tudo o que eu sabia era que há um momento ele estava
tão perto de me tocar exatamente onde eu queria, e agora eu
estava me lembrando de coisas que preferiria deixar
enterradas. Senti que o momento estava oscilando à beira do
precipício, como se eu estivesse prestes a perder o que
desesperadamente ansiava.
— Acho que você deveria simplesmente me beijar — falei.
— Por que se preocupar com o futuro? Pode ser que amanhã
estejamos mortos.
Um lampejo de angústia perpassou suas feições divinas,
mas desapareceu em um instante, substituído por um sorriso
sedutor em seus lábios e uma expressão acalorada em seus
olhos.
Eu tinha renunciado aos homens, e a ele especi camente.
Mas agora eu estava desesperada para sentir algo rompendo a
dormência gelada em meu peito. Estar perto de Torin era
como lava derretendo através de uma rocha vulcânica.
Respondendo ao meu comando, ele se inclinou e
reivindicou minha boca com a dele. Seus lábios roçaram
suavemente os meus, como uma pergunta, e minha resposta
foi abrir os meus para o seu beijo, roçar minha língua contra a
dele. Seus músculos se retesaram e eu absorvi cada parte dele
— seu cheiro, a sensação dele contra mim. Ele me beijou
como se fantasiasse com isso há meses.
Uma corrente elétrica percorreu minha pele exposta.
Enquanto me beijava, ele deslizou a mão por baixo da
minha camisa, acariciando meus quadris, movendo-a
lentamente sobre minhas costelas. Meus mamilos
endureceram de antecipação sob minha camisa branca. Ele
desceu a mão até meus quadris novamente. A maneira como
ele me tocou fez meus músculos se contraírem com a certeza
de que ele sabia exatamente como me fazer estremecer de
prazer.
— Quero saborear cada momento com calma, Ava.
Lentamente, provocando-me, ele traçou movimentos
circulares com as pontas dos dedos sob o cós do meu short.
Uma sensação latejante e selvagem cresceu no meio das
minhas coxas. Eu ansiava por ele.
Mas ele estava indo com calma e continuou a fazer os
movimentos circulares e libidinosos sobre meus quadris.
Minha respiração cou irregular e ele mudou de posição,
encaixando seus quadris entre minhas coxas. Ele me beijou
lentamente, saboreando-me, e deslizou a mão para apertar
minha bunda, e eu movi meus quadris contra ele.
Seus dedos agarraram meu cabelo, dando leves puxões
enquanto me beijava. Com cada movimento lânguido de sua
língua, meu corpo implorava por mais. Com uma mordida em
meu lábio inferior, ele interrompeu o beijo.
— Eu amo o seu gosto. — Sua voz saiu rouca, quase
desesperada.
Eu precisava de mais contato com seu corpo, da minha
pele nua contra a dele. Comecei a desabotoar minha camisa e
ele olhou para baixo, observando, seus olhos ardendo.
Quando tirei a camisa, seu olhar percorreu meu corpo como
uma carícia sensual, demorando-se sobre meus seios
despidos. Minha respiração acelerou quando seus olhos se
ergueram novamente, pausando em meus lábios. Havia um
brilho selvagem em meio ao azul claro de seus olhos, um
desejo primitivo que parecia fracamente contido. O rei Seelie
estava prestes a perder o controle.
Inclinando-se novamente, ele me beijou com o fervor
desesperado de um homem que pensava que poderia morrer
amanhã e que apenas um beijo poderia salvá-lo. Ele
pressionou seus quadris contra mim, com força e lentamente,
e eu quei molhada. Com a respiração acelerada, arranhei
suas costas com as unhas, meus dentes roçando seu ombro,
uma sugestão da minha ameaça de antes.
Sua mão deslizou para dentro do meu short e ele o puxou
para baixo.
— Tire isso. — Sua voz havia mudado, agora assumindo
um tom baixo e autoritário de um rei acostumado a conseguir
o que quer.
Ele se recostou, observando-me enquanto eu o tirava.
Torin poderia ter tirado minha roupa, mas ele queria me ver
fazer isso, e a sensação de seus olhos em mim me fez pulsar
de desejo por ele.
Uma expressão primitiva ardeu em seus olhos e o calor
irradiava pelo ar ao nosso redor.
— Ava, se eu pudesse ter você sempre nua por perto, eu
seria um homem feliz. — Ele olhou para mim, absorvendo
cada pedacinho meu. — Na verdade, é privilégio de um rei
estar cercado de beleza. E é privilégio de um rei se deixar levar
por seus desejos mais perversos.
Ele deslizou para baixo, seu abdômen entre minhas coxas.
Ele beijou meu mamilo. Sua língua lambeu e traçou
movimentos circulares, fazendo-me querer gritar. Movi meus
quadris contra ele, deixando-o saber exatamente o quanto eu
precisava dele.
— Demônio — murmurou ele contra minha pele. Mas
desta vez eu adorei o som daquela palavra em sua língua, o
timbre rouco e reverente.
Arqueei minhas costas e abafei um grito enquanto ele
acariciava e lambia meu seio em um ritmo frustrantemente
indolente. Eu o queria dentro de mim.
Uma de suas mãos desceu pelo meu corpo, a gentileza
misturando-se com a possessividade enquanto ele deslizava a
mão por entre minhas coxas, que estavam escorregadias de
excitação.
— Por hoje — sussurrou ele —, isto me pertence.
Com suas palavras, minhas pernas se abriram mais, e eu
me movi contra ele, cando cada vez mais desesperada por
algum alívio enquanto seus dedos entravam e saíam de mim.
— Torin — falei, sem fôlego, arranhando suas costas mais
uma vez. — Quero você. Agora.
Ele afastou os lábios do meu mamilo e olhou para mim. E
para minha imensa frustração, seus dedos também pararam.
— Um rei Seelie não se apressa por ninguém.
Especialmente quando sua inimiga completamente
encantadora está em sua cama, nua e molhada para ele.
Pelos deuses, ele era um provocador implacável, e eu não
conseguia parar de me mover contra sua mão. Eu estava tão
perto, mas precisava de mais dele.
— Tire suas roupas.
Ignorando minha exigência, ele voltou a chupar meu
mamilo e meus dedos dos pés se curvaram.
Ele estava me tocando exatamente onde eu precisava dele,
seus dedos se movendo habilmente enquanto o prazer se
intensi cava dentro de mim. Um calor se espalhou pelo meu
peito e ele levou sua boca à minha novamente. Ele me beijou
profundamente, acariciando minha língua com a dele. Soltei
um gemido contra sua boca. Meus músculos caram tensos e
em seguida relaxados enquanto meu corpo era percorrido por
tremores. À medida que eu atingia o orgasmo, meus
pensamentos se tornaram fragmentados. Um prazer carnal e
sombrio percorreu meu corpo em ondas pulsantes que
zeram meu sangue correr mais rápido.
Enquanto espasmos dominavam meu corpo contra o dele,
uma cor oresceu em minha mente: o azul claro divino dos
olhos de Torin.
Quando abri os olhos novamente, eu o encontrei olhando
para mim como se estivesse hipnotizado. Com a mão ainda
entre minhas pernas, ele me beijou mais uma vez.
Com o rosto corado, recuperei o fôlego. Torin passou os
braços em volta de mim e eu suspirei contra a pele brilhante
de seu pescoço.
Sem dúvidas, Torin fez de sua missão cuidar daqueles com
quem se importava.

A    , meio confusa, com frio,


sentindo falta do calor de Torin.
Quando me virei para ele, eu o encontrei sentado na beira
da cama. Ele estava com as mãos sobre os joelhos e a cabeça
abaixada.
— Torin?
Ele se virou para mim, o azul triste de seus olhos
perfurando a escuridão, seu cabelo bagunçado. À luz da lua,
tudo nele contrastava — tatuagens escuras contra a pele
branca, olhos claros contra cabelos pretos como petróleo.
— Só um pesadelo — disse ele baixinho. — Sabe, Ava, eu
só disse a Morgant que não me importava com você porque
não queria que eles a usassem contra mim. Se eles soubessem
que você é importante para mim… não quero nem imaginar o
que eles teriam feito.
O primeiro brilho dourado do calor começou a derreter o
gelo em meu coração.
— Não sei se ele acreditou em você. Ele parece
incrivelmente bom em detectar mentiras.
Minha respiração cou presa em meus pulmões quanto
ele sustentou meu olhar por mais um minuto, e então se virou
novamente. Ele correu os dedos pelo cabelo.
— Quando treinamos em Feéria, senti que passei a
conhecer cada movimento seu, criança trocada. Como você
pensava. Como você respirava. E você não é uma Unseelie de
verdade. Você não faz parte deste lugar amaldiçoado.
— Sobre o que era seu pesadelo?
— Eu estava sonhando com minha mãe. Quando estou
acordado, minhas memórias sobre ela são vagas. Mas quando
durmo, consigo ter sonhos vívidos sobre ela. E não sei se os
sonhos são baseados em memórias ou em algo que minha
mente conjurou. Acho que esse foi uma memória. — Sua voz
parecia desolada. — Desta vez, eu estava ao lado da cama
dela, vendo-a morrer. A maldição fez veias roxas percorrerem
sua pele. Eu a amava, mas a achei parecida com um monstro
enquanto morria. Eu me lembro de car com muita raiva
porque ela não se levantava para cuidar de mim, porque acho
que sabia que ela já não cuidaria mais de mim. E eu não sabia
de quem mais eu poderia sentir raiva. Então… esses foram os
últimos momentos dela comigo. Eu sendo um pirralho
malcriado.
Um nó se formou na minha garganta e eu me aproximei
dele. Passei um cobertor sobre seus ombros largos e o segurei
no lugar com o braço.
— Tenho certeza de que ela queria você perto dela.
Mesmo se estivesse sendo um pirralho malcriado.
Ele se inclinou para mim.
— A questão é que eu sei que sou um rei em território
inimigo. Preciso sair daqui, e preciso tirar você daqui também.
Mas realmente não consigo parar de pensar em como seria
caçar a rainha Mab e Morgant, e acabar com a vida de ambos.
Sacudi a cabeça.
— E então o que aconteceria? Você morreria em um reino
estrangeiro. Os Seelie e os Unseelie passariam de uma guerra
fria para uma guerra real, e todos morreriam.
— Claro, você tem razão, criança trocada. — Ele se virou,
deitando-se de volta na cama comigo.
Ele se deitou, abraçando-me por trás, e quando sua
respiração começou a car pesada novamente e seu batimento
cardíaco desacelerou, meu corpo se fundiu ao dele.
Torin

A luz da manhã entrava pela janela da cozinha, realçando o


vapor que subia de duas canecas.
Ava havia encontrado grãos de café na casa, o que parecia
um milagre. Agora, ela estava sentada com as mãos em volta
de uma caneca, olhando para a lareira.
— Eu gosto daqui.
Eu também não tinha vontade de ir embora. Aqui, eu
poderia tocar Ava como quisesse. Por outro lado, a qualquer
momento poderíamos ser caçados, alvejados com dardos,
espancados e então executados. Eu seria morto como inimigo
dos Unseelie, e ela como traidora de sua própria espécie. Não
era exatamente a situação ideal.
Tomei um gole de café e a cafeína já começou a clarear
minha mente. Meus músculos caram tensos com a
ansiedade de fazer alguma coisa, de levá-la para um lugar
seguro.
Com minhas roupas roubadas, eu me levantei da mesa.
— Deveríamos pegar a estrada. — Fui até a lareira e
apaguei as chamas com um jarro de água.
Eu me virei para olhar para Ava, seu cabelo iluminado pela
luz perolada da janela. De olhos fechados, ela esticou os
braços sobre a cabeça em um movimento preguiçoso e felino.
Senti um aperto no coração.
Será que eu fui um idiota por ter ido para a cama com ela
na noite anterior? Obviamente, sim. Mas não acho que eu
teria sido capaz de recusar.
Ela olhou para mim.
— Alguma ideia de onde achar Aquela com Véu?
Tudo o que eu tinha era apenas uma vaga lembrança de
ter ouvido falar dela. E, sinceramente, eu nem sabia se ela era
real. Só conhecia a lenda: uma anciã imortal e sem olhos que
vivia em uma montanha nevada e rodeada pelo fogo que
previa o futuro para os Unseelie.
Ela nos ajudaria? Ainda estava em uma montanha? Ela era
ao menos real?
Quem sabe?
Uma onda aguda de arrependimento tomou conta de
mim. Eu deveria ter tentado levar Ava de volta para Feéria. Eu
deveria ter feito o meu melhor para abrir um portal quando
eu ainda podia.
Esfreguei os olhos.
— Precisamos procurar uma montanha rodeada pelo fogo.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Você quer dizer um vulcão? Acho que vi um ao longe.
Ao Leste. Quando sairmos da oresta, teremos uma visão
melhor.
— Ava, não posso prometer que vamos encontrar essa
mulher, ou que vamos conseguir o que queremos dela, mesmo
que a encontremos.
Ela deu de ombros.
— Não tenho ideias melhores.
À   ,   muito para encontrarmos
nosso destino. Da cachoeira, avistamos ao longe uma
montanha escura e nevada que dava para um reino de pedras
e folhas vermelhas. À distância, o cume da montanha
lembrava uma joia avermelhada repousando em seu pico.
Espirais de fumaça avermelhados subiam para o céu noturno.
Assim que eu a vi, uma centelha de esperança começou a
arder em minha mente. Se eu conseguisse chegar a esse
oráculo, poderia tirar Ava desta maldita Corte das
Lamentações.
Ava estava montada no cavalo à minha frente. Ela se
recostou em mim e eu inspirei seu cheiro da oresta selvagem
Unseelie e do ar depois de uma tempestade. Fechei os olhos,
aproveitando o momento. Porque quando eu voltasse para
Feéria, minha criança trocada não poderia vir comigo.

E     . No caminho


rochoso, o céu estava começando a escurecer, assumindo um
tom violeta atravessado por listras laranja, e os últimos raios
de sol penetravam através das folhas das árvores sobre nós.
O ar cheirava a fumaça e cinzas, e os cascos do cavalo
esmagavam pedras pretas no caminho.
— Ava — sussurrei —, como saberemos se o vulcão está
prestes a entrar em erupção?
— Só podemos torcer para que não aconteça.
Quando o caminho se tornou pedregoso e íngreme demais
— rochas pretas e escorregadias, cobertas de neve —
descemos do cavalo. Deixei que Ava caminhasse à minha
frente, para o caso de ela tropeçar na escuridão, e
continuamos a pé.
Perto do topo da montanha, sombras se acumularam ao
nosso redor, e o ar se tornou mais frio. Cinzas e neve cobriam
as rochas e os galhos escurecidos e sem folhas. Sob a na
camada de branco, uma lava escura marcava sulcos na
montanha.
— Você está preocupado com o que está acontecendo em
Feéria? — perguntou Ava enquanto escalava as rochas.
Era estranho o quão pouco eu estava pensando nisso. Até
agora, toda a minha vida tinha um único propósito: cuidar
dos meus súditos e fazer o meu reino prosperar. Aqui, no
meio do reino inimigo, meus pensamentos haviam
claramente tomado outro rumo.
O ar frio castigou minhas bochechas.
— Não consigo imaginar o que está acontecendo, mas
espero que Orla tenha se declarado regente e assumido o
trono… — Minha voz foi sumindo. — Mas nunca achei que
ela fosse forte o su ciente para isso. Talvez ela tenha
nomeado outra pessoa como regente na minha ausência.
— Acho melhor você torcer para que não tenha sido
Moria. — Sua respiração formou uma neblina ao redor dela.
Senti um aperto no peito.
— Se não houver uma rainha no trono, temo que todos
estarão mortos quando eu voltar.
À medida que nos aproximávamos do topo da montanha,
a densidade das árvores diminuiu até restarem apenas neve e
cinzas. Deste caminho estreito e gelado, eu ainda não
conseguia ver bem o cume. Mas quando olhei para baixo, a
oresta vermelho-sangue se espalhava no sopé da montanha.
Ava se apoiou em uma parede rochosa à nossa esquerda e
seguimos a trilha sinuosa que subia até o pico.
Quando chegamos ao cume, espirais de fumaça
avermelhados se erguiam sobre nós e uma luz laranja vinda
da cratera aquecia o ar. Jatos de lava derretida espirravam
para cima das profundezas do vulcão.
Mas meu olhar estava xo na estrutura impossível que
desa ava a gravidade acima de nós: um castelo estreito sobre
uma coluna íngreme de rocha escura. Como uma or estranha
em um caule de pedra, a fortaleza estava iluminada pela luz
vermelha do fogo abaixo. Cordas de aparência frágil, feitas de
vinhas, conduziam à entrada do castelo. Um vento frio soprou
sobre nós.
— Isso é incrível — sussurrou Ava, encarando a estrutura.
Respirei profunda e lentamente enquanto a centelha de
esperança ardia mais forte em meu peito. Se alguma coisa por
aqui era o lar de uma velha e esquisita bruxa das montanhas,
certamente era esse castelo bizarro.
E, agora, esta era nossa única chance de escapar e levar
Ava de volta ao reino mortal, onde era o seu lugar.
Tudo dependia do que aconteceria a seguir.
— Ava — falei, baixinho —, deixe que eu entro primeiro.
Ela se virou para mim.
— Certo. Vou car vigiando — disse Ava, com fumaça
escapando de sua boca.
Eu me pendurei nas vinhas. O vento gelado se agitava ao
meu redor, fazendo a neve girar em torno de mim em
vórtices. Meu coração disparou de ansiedade. Alguns
espinhos perfuraram meus dedos e eu mantive o olhar xo na
entrada escura acima. Por m, eu me icei das vinhas ao chegar
à porta. A luz da lua penetrava através da abertura de janelas
estreitas e cinzas que cobriam o chão lá dentro.
O lugar estava repleto de lanternas feitas de crânios de
feéricos com velas apagadas no interior. Um relâmpago
iluminou as paredes, revelando uma escultura em baixo-
relevo de uma mulher com véu e chifres, seu corpo cercado
por padrões retorcidos e frondosos. Um arrepio passou pelo
meu corpo. Pelo menos eu sabia que estava no lugar certo.
Meu olhar percorreu caracteres Unseelie gravados nas
paredes. As mesmas palavras, repetidamente, e, por um
momento, pensei ter sido capaz de entender a língua
estrangeira. De algum lugar profundo nos recônditos da
minha alma, as palavras ecoaram.
Eu queimo.
Prendi a respiração e desviei o olhar, desconcertado com
seja lá qual magia tomava conta dali. Eu só precisava que a
mulher do castelo aparecesse.
Um poço de pedra cava no centro do saguão. Como ela
poderia ter um poço em um lugar destes? Espiei pela borda e
vi um vazio que arrepiou os cabelos da minha nuca.
Lá fora, o som melancólico de uma coruja cortou o
silêncio. Fui até uma escada e farejei o ar. Aqui cheirava a
cachorro. Talvez lobos.
— Torin! — A voz de Ava fez meu coração disparar e corri
de volta para a porta.
Quando olhei para fora, eu a vi tentando escalar as vinhas.
Uma haste de echa se projetava de suas costas. Meu sangue
gelou quando vi Morgant voando atrás dela, suas asas escuras
batendo no céu noturno.
Saltei da entrada com a espada na mão. Quando aterrissei
na rocha, uma onda de dor subiu pelas minhas pernas, mas eu
mal percebi. Cheguei tarde demais. Morgant havia puxado
Ava e a estava carregando no ar.
Enquanto eu corria pelo caminho rochoso, os Unseelie me
cercaram, armados com espadas e arcos. Meu coração batia
como um tambor de guerra.
Um demônio Unseelie com longos cabelos escuros e
presas estava na dianteira, empunhando sua espada.
— Aonde você pensou que estava indo? — perguntou ele.
— Ninguém entra ou sai daqui exceto pela vontade da rainha,
e você, cão Seelie, será enforcado diante dos portões do
castelo e eviscerado de acordo com a vontade dela.
Agarrei a Espadas dos Sussurros, concentrando-me no
feérico de cabelos escuros. Eu não tinha tempo para pânico, e
nem o luxo de cometer um único erro. Eu estava em grande
desvantagem numérica. Pelo menos havia treinado para isso.
Um Unseelie de cabelos brancos e chifres apontou uma
echa para mim.
— Largue a espada.
Um terceiro deu um passo à frente.
— Se você facilitar, poderemos lhe dar uma morte rápida.
Cerrei os dentes. Essa promessa não parecia muito
provável.
O arqueiro de cabelos brancos disparou uma echa que
reluziu ao luar enquanto voava em minha direção. O tempo
pareceu desacelerar e eu a bloqueei com minha lâmina. O de
cabelos escuros gritou e correu ao meu encontro com a espada
erguida, mas seu grito de guerra me deu a oportunidade de
me preparar para o ataque. Eu me esquivei para a esquerda,
bloqueando seu ataque, depois voltei para a direita
novamente, cortando suas entranhas. A Espada dos Sussurros
cantava para mim enquanto o sangue pingava sobre a lava
escura.
Tu és a morte. O suspiro nal. És as sombras frias e
silenciosas ao m.
O soldado de cabelos brancos ergueu a lâmina, mirando
na minha barriga. Em um único golpe, a Espada dos
Sussurros partiu sua arma. Outro soldado me atacou de cima
e eu en ei minha lâmina em sua virilha, inutilizando-o. Eu
me virei, ajustando a empunhadura da arma, e desviei de um
machado. Em seguida en ei a espada na garganta do homem.
Ele caiu no chão, seu machado ressoando na rocha.
Girei, ncando a Espada dos Sussurros no ombro de um
homem, a lâmina cortando-o ao meio.
Eu estava tentando car de olho no arqueiro enquanto
lutava, mas ele havia desaparecido nas sombras. Sempre
pensei nos arqueiros como covardes, atacando de longe.
Eu me virei, en ando a lâmina no pescoço do meu
próximo agressor, então girei novamente para cortar o peito
de um demônio com chifres.
Enquanto eu preparava minha espada para outro ataque,
uma dor excruciante me atingiu por trás. Uma ponta de echa
havia perfurado minha carne, perto da parte inferior da
minha coluna, e eu caí de joelhos.
Meu sangue rugia em meus ouvidos enquanto eu tentava
manter a espada em punho. Outra echa perfurou meu
ombro e eu caí para a frente sobre as mãos. Sangue espirrou
da minha boca. Agarrei a espada com a toda a minha força,
mas o punho escapou de minhas mãos.
Ava

A jornada até o topo da montanha pareceu longa e


demorada. A descida, por outro lado…
Rápida e brutal, uma corrida a cavalo por um terreno
escuro e rochoso. Deitada de bruços sobre o dorso do animal,
eu sacolejava a cada irregularidade do caminho. Pelo menos
Morgant teve a decência de tirar a echa das minhas costas
antes de amarrar minhas mãos.
A dor irradiava por todo o meu corpo a partir do ponto
onde a echa perfurara minhas costas. Morgant estava me
segurando, uma das mãos agarrando meus braços e a outra
rme nas rédeas do cavalo.
Dada a quantidade de sangue que escorria de mim, se eu
fosse mortal, já teria batido as botas.
Fechei os olhos, pensando em Torin. Eu o vi pular do
castelo e me arrependi amargamente de tê-lo chamado. Será
que ele conseguiu se esconder deles caso tivesse cado lá
dentro? Talvez, mas tal atitude não era de seu feitio.
Eu estava desesperada para saber se ele tinha encontrado
Aquela com Véu. Talvez ele já soubesse como sair daqui.
Quando abri os olhos, vi o castelo surgir em meu campo
de visão, pedra e árvores tortas entrelaçadas sob um céu
estrelado.
— De volta à masmorra, então? — falei entredentes.
— Se você me irritar.
— E se eu não te irritar?
Em vez de responder, ele incitou o cavalo, apressando-o
em direção à entrada do castelo.
Por m, Morgant foi diminuindo a velocidade até parar.
Ele desceu do cavalo primeiro e depois me puxou para o chão
pelos braços amarrados. Caí com força sobre o lado em que a
echa havia me perfurado. Não queria lhe dar a satisfação de
ouvir meu grito, então consegui silenciá-lo.
Ele me ergueu pelos pulsos.
Eu poderia perguntar mais uma vez para onde ele estava
me levando, mas sabia que jamais me responderia.
Portas pretas enormes em estilo gótico, cravadas na
fortaleza, se abriram com um rangido conforme nos
aproximávamos. Aos empurrões, ele me conduziu até um
corredor de madeira escura esculpida. A luz das velas
bruxuleava sobre um chão musgoso, e vinhas pendiam de um
teto de madeira abobadado.
Morgant guiou o caminho à minha frente, virando-se para
me olhar com uma satisfação sombria.
— Quero que saiba que estamos com o seu grande rei
Seelie. Vamos destruí-lo antes de matá-lo. Arrancaremos a
pele dele e a daremos de comer às nossas aranhas. Os reis
Seelie sempre dizem que são protegidos pelos seus antigos
deuses. Vamos provar que não.
Senti meus pensamentos se escurecerem até se tornarem
nada além de uma visão de vinhas espinhosas erguendo-se da
terra para rasgar Morgant em pedacinhos. Mas o homem
estava tentando provocar uma reação minha, e eu não lhe
daria essa satisfação.
Após algumas centenas de metros, chegamos a uma
pequena antessala com uma porta de madeira cravejada com
joias verdes.
Morgant a empurrou, revelando uma escadaria azul-
escura em espiral e de madeira. Os degraus pareciam ter sido
esculpidos a partir do tronco de uma enorme árvore. Subimos
e subimos, meus braços ainda amarrados e minhas pernas
tremendo de exaustão.
Tudo o que ele havia feito até agora fora pensado para me
desorientar e fazer eu me sentir impotente — a fome e a
desidratação, o isolamento. Contar-me como ele mataria
Torin. A ideia era que se eu me sentisse sem esperança,
contaria a eles o que quisessem.
Eu não tinha como saber se eles realmente estavam com
Torin.
Morgant apertou um pequeno botão na parede. A porta se
abriu. Estávamos em uma torre ao ar livre, e a luz da lua
iluminava galhos escuros que se entrelaçavam no chão de
pedra. Uma longa mesa de carvalho ocupava o centro.
Bem acima do reino, uma brisa suave agitava meu cabelo.
Inspirei o ar fresco com um toque de ervas e mel. Olhando
para o lado, eu podia ver o dossel avermelhado da oresta a
algumas centenas de metros abaixo, ao qual a luz da lua
conferia um toque prateado. Sobre o dossel, sombras se
moviam. Ao olhar com mais atenção, percebi que eram
borboletas gigantes sobrevoando a oresta.
Um arqueiro alado de cabelos escuros esvoaçantes e asas
brancas cruzou o céu noturno. Meu olhar encontrou o dele,
que apontou uma echa para mim. Meu coração disparou,
mas ele não atirou. Mais um arqueiro passou, a echa
também mirada em mim. Entendi a mensagem, alta e clara.
Eu me virei para a torre, mas minha cabeça começou a
girar enquanto sombras perpassavam minha visão. Eu havia
perdido muito sangue, e cambaleei.
Morgant agarrou meu braço.
— Você é fraca.
Que perspicaz, Tarzan. Talvez tenha algo a ver com a echa
que atirou nas minhas costas.
Segurando meu braço, ele começou a entoar um feitiço, a
voz inexpressiva e severa. Sua magia percorreu minhas costas
como água morna, aliviando a dor. Uma onda de calor tomou
conta do meu corpo, e meus músculos relaxaram. Quando ele
terminou, soltou meu braço e desamarrou meus pulsos.
Esfreguei minha pele irritada.
Sombras rastejavam pelas pedras musgosas ao meu redor.
— Fique onde está — disse Morgant. — A rainha deseja
falar com você. Mas não se aproxime demais dela. Você está
sendo observada.
— Percebi.
— Não se mexa — disse Morgant rispidamente, virando-
se para a porta.
Não sei para onde ele achava que eu poderia ir, sem asas.
Morgant endireitou a postura, olhando para as estrelas, e
bradou:
— Imperatriz da Floresta, Rainha Mab do Cromm
Sombrio, nossa grande governante.
Ele abriu a porta e a rainha entrou, cada centímetro dela
irradiando ouro e prata. Os cabelos platinados caíam em
ondas pelas costas, e ela usava uma delicada coroa de platina
com as extremidades pontiagudas. A pele clara irradiava uma
luz prateada, da mesma cor do vestido, um traje prata
cravejado de pérolas. Apenas suas tênues asas pretas se
destacavam.
Seu olhar dourado claro percorreu meu corpo, observando
minhas roupas. Seus lábios se curvaram.
— Então esta é a espiã.
Respirei fundo. A rainha dos Unseelie estava diante de
mim, parecendo muito mais jovem do que eu esperava. Supus
que ela deveria ter uns 40 anos, mas mal parecia.
Ela semicerrou os olhos.
— Por que você viria aqui tão despreparada? O seu mestre
Seelie quer que você morra?
— Não estou aqui como espiã. Caí em seu reino através de
alguma magia. Foi só isso.
Ela arqueou uma sobrancelha escura.
— E o rei dos Seelie simplesmente caiu atrás de você? Esta
é a sua história?
— Sim. Havia uma fenda mágica entre nossos mundos, é
só isso. E ele não é o rei. O nome dele é Alan.
Ela sorriu com desdém.
— O rei dos Seelie já a rmou que não se importa nem um
pouco com você. E mesmo assim, se esforçou muito para
ajudá-la a escapar. Acho que alguém deve estar mentindo.
— Se nos permitir voltar para casa, nunca mais precisará
se preocupar conosco.
— Alan. — Ela riu. — Você é uma mentirosa. Que
decepção. Não mentimos no reino dos Unseelie. Se você
tivesse sido criada aqui, teria aprendido o valor da
honestidade.
Eu queria perguntar o que ela achava do valor da bondade,
mas eu não tinha nenhum poder nesta situação, então quei
de boca fechada.
Ela se aproximou de mim e ergueu meu queixo,
examinando meu rosto. Era uns trinta centímetros mais alta
do que eu, irradiando luz e poder, e eu sentia a pulsação sobre
minha pele. Eu quase conseguia ver a magia cintilante se
contorcendo ao redor dela, eletri cando o ar.
Ela soltou meu queixo.
— Se você tivesse sido criada aqui, sentiria dor cada vez
que uma mentira escapasse dos lábios. Apesar de que, se você
o amasse, talvez mentiria mesmo assim. O amor nos queima,
não é? E esse fogo nos torna mais fortes. — Ela soltou um
longo suspiro. — Você sabe como uma espada se torna forte?
Como a Espada dos Sussurros, por exemplo, que seu rei um
dia possuiu.
Eu a encarei.
Um dia possuiu?
— Aqui no meu reino, adoramos a deusa das cinzas —
continuou ela. — Dizem que a deusa das cinzas, Briga, tem
apenas um olho, e seu corpo é coberto de fuligem. Ela se
sacri cou por nós. Dizem que ela é uma gigante naquela
montanha que vocês escalaram, o Monte Tienen. Aquela com
Véu fez dele sua morada.
Meu coração acelerou. Então estávamos no lugar certo.
Será que Torin poderia já ter uma resposta?
Mab sorriu.
— As chamas de Briga nos tornam fortes e nos puri cam.
Em sua forja sagrada, uma espada deve suportar o calor, a
pressão e o martelo enquanto o aço é temperado. Só então ela
pode se tornar forte o su ciente para cumprir seu propósito.
A deusa das cinzas nos ensina que o amor também é uma
forja. E é de lá que vem a magia dos Unseelie, Garota Perdida.
Da dor do amor e da perda. Então, talvez você mentiria pelo
seu rei, mesmo que doesse. Talvez suportasse as chamas, ou
se sacri casse, como ela faz. Talvez se tornasse mais forte e
vivesse verdadeiramente como uma Unseelie.
Suas palavras tinham uma natureza hipnotizante, e eu me
perguntei se estava me colocando sob um feitiço.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Mas a pergunta é: ele faria o mesmo por você?
Ava

U m calafrio percorreu meu corpo. Ela estava tentando me


provocar, mas eu não daria nem um único detalhe sobre
Torin.
— Eu realmente não o conheço.
— E quem, exatamente, é você?
Lá estava aquela pergunta de novo.
— Ava Jones.
— Um nome humano.
Dei de ombros.
— Fui criada entre eles.
— Por quê? Como você deixou este reino?
Dei de ombros novamente.
— Não faço ideia. Alguém me levou para o reino humano
e me deixou lá. Achei que você soubesse quem eu era.
Ela me olhou nos olhos, e senti como se minha alma
estivesse sendo examinada e decifrada.
— Vejo que os humanos te ensinaram a ser fraca e
preguiçosa, assim como eles, que te criaram para esconder seu
grande poder Unseelie, de modo a nem saber que ele existe.
— Ela olhou para Morgant. — Podem relaxar. A ameaça que
ela representa é quase inexistente. Essa pobre coitada foi
completamente neutralizada. Estou surpresa que você não
tenha percebido de imediato. Talvez seja isso que acontece
quando um Unseelie não consegue ao menos falar a própria
língua.
Uma centelha de curiosidade se acendeu dentro de mim.
Qual seria esse poder Unseelie que eu supostamente possuía?
Minha mente estava uma confusão, e eu esfreguei meus
pulsos onde havia sido amarrada com cordas. A pele estava
irritada e em carne viva.
Ela gesticulou para a mesa.
— Junte-se a mim para o jantar. Não recebemos muitos
hóspedes estrangeiros aqui.
Que surpresa. Talvez seja porque as pessoas não gostam de
ser espancadas em masmorras ou algo do tipo.
Morgant puxou a cadeira na cabeceira da mesa para ela, e
a rainha fez um gesto para que eu me sentasse ao seu lado.
Eu me sentei. Meu estômago rugia, e a fome tomou conta
de mim. O faisão estava delicioso, mas eu não tinha comido
quase nada hoje.
Ela ergueu uma das mãos.
— Morgant, mande os criados trazerem nossa comida e
ambrosia. — Ela se virou para mim e apoiou os cotovelos na
mesa, o queixo sobre as mãos.
Parecia uma postura muito casual para uma rainha brutal.
Lambi os lábios. Eu não fazia ideia do que era ambrosia,
mas minha boca já estava salivando. A única coisa que
estragava o momento era a pontada de culpa em meu peito.
Onde quer que Torin estivesse agora, eu duvido que ele
estivesse prestes a comer.
A rainha semicerrou os olhos para mim.
— Imagino que o rei Torin ainda esteja chateado por eu
ter matado os pais dele. Usei uma maldição lenta e
desagradável. — Ela sorriu para mim e piscou os cílios com
delicadeza. — E talvez ele esteja zangado com a própria
maldição. Ele te contou como funciona?
Engoli em seco. Eu não queria responder a uma única
pergunta sobre ele. Minha estratégia agora era simples: falar
o mínimo possível.
Mab ergueu o olhar para a lua, e seus olhos assumiram um
tom profundo de verde.
— No entanto, estava predestinado. Tudo isso está escrito
nas estrelas. Por um tempo, eu havia perdido a fé no meu
destino. Agora, posso vê-lo escrito mais uma vez. — Os
cantos de seus lábios se curvaram, e ela olhou para mim
novamente. — E quando eu acabar com o rei Seelie, terei o
que eu quero. Meus herdeiros sentarão no trono de Feéria
pelo resto dos tempos, transformando-o novamente no reino
dos Unseelie. Sabia que a terra era nossa desde o início? Pelo
menos, nós a compartilhávamos.
Um arrepio percorreu minha espinha. Pelos deuses, Torin
precisava sair daqui urgentemente, e eu só podia esperar que
ele já tivesse arrumado um jeito de darmos o fora daqui.
Havia algo particularmente fanático na maneira como os
olhos dela brilhavam ao falar de destino.
A porta se abriu com um rangido, e criadas vestidas de
preto começaram a trazer um banquete digno de uma rainha:
tigelas de barro fumegantes repletas de feijões, cenouras,
ervilhas e molhos que exalavam aromas de especiarias. Uma
mulher com tranças pretas trouxe uma bandeja de madeira
com pequenos espetos de queijo e tomate assados e uma
grande tigela de arroz. Uma terceira mulher surgiu com uma
salada fresca decorada com pétalas de ores e um pão
achatado e amanteigado.
— Espero que goste da comida. Ao contrário de Feéria,
não comemos cadáveres em meu reino.
Precisei de um instante para perceber que ela se referia à
carne de animais. Então eu não mencionaria o faisão da noite
anterior.
Eu tinha uma vaga noção de que deveria esperar a rainha
começar a comer primeiro, mas era culpa dela que eu estava
morrendo de fome, então comecei pelo pão. Quando você está
realmente faminto, nada parece melhor do que um pão com
manteiga. Enquanto eu comia, alguém encheu nossas taças
com um líquido azul-claro que cintilava sob o luar — presumi
que era a ambrosia.
Coloquei os molhos e os feijões no pão, en ando tudo na
boca. Cada momento aqui parecia como se pudesse ser o
último, então por que não encher a barriga? A comida
apimentada deixava uma ardência deliciosa na minha língua,
e eu a lavava com a ambrosia.
Pelos deuses, eu faria qualquer coisa para matar essa
rainha e substituí-la por Torin. Ele merecia estar aqui
conosco, comendo queijo assado. Ah, pelos deuses. O sabor do
queijo era extraordinário, temperado com gengibre e coco,
além de algo delicioso que fazia minha língua arder. Não sei se
era pimenta naga ou alguma especiaria exclusiva do reino
Unseelie, mas a ardência aumentava cada vez mais.
Dei mais um gole na ambrosia. Estava gelada e fresca, com
sabor de frutas silvestres. Imediatamente, a sensação de
ardência na minha boca desapareceu. Mas a rainha não estava
bebendo, o que me fez pensar se eu estava prestes a car
embriagada.
Lambi os lábios.
— Será que eu poderia pedir um pouco de água em vez da
ambrosia?
Ela me olhou xamente.
— É apenas néctar concentrado de orquídea negra.
— E o que isso faz com alguém que não está acostumado?
— Espetei uma folha de alface porque pelo menos isso não
era apimentado.
— Talvez solte sua língua um pouco. O que o rei Seelie
tem planejado para nós? Uma invasão? É para isso que serve
essa missão de espionagem?
— Meu companheiro e eu só queremos voltar para casa, e
se você puder nos ajudar, nunca mais vai precisar falar
conosco. — A ambrosia tinha subido à minha cabeça. Meu
corpo estava quente e formigante, e eu sentia minhas
bochechas vermelhas.
Ela batucou os dedos na madeira envelhecida da mesa.
— Seu companheiro está acorrentado agora. — Ela deu
um gole na bebida, observando-me sobre a borda da taça. —
E se você está se perguntando se estou mentindo, gostaria de
lembrar que nós não mentimos. — Ela ergueu a mão
novamente. — Morgant! Traga o rei arruinado.
Senti um nó no estômago e minha respiração acelerou.
Eu me virei para a porta, e o ar deixou meus pulmões
enquanto Morgant e um Unseelie de cabelos amejantes
arrastavam Torin para dentro. O sangue escorria em seu
peito, e ele se esforçava para manter a cabeça erguida.
Uma escuridão tremulou dentro de mim e, por um
instante, eu me perguntei o que aconteceria se eu arrancasse
as asas da rainha e a jogasse do topo da torre.
Ela estava nos testando, e a melhor coisa que eu poderia
fazer agora era manter minha boca fechada e uma expressão
neutra no rosto. Ela estava mostrando-o para mim por um
motivo, para ver como eu reagiria.
Torin olhou para cima.
— Ah, rainha Mab. Que bom vê-la novamente. — Seu
tom de voz era surpreendentemente monótono. Quase
entediado. — Acho que da última vez que eu a vi, você estava
amaldiçoando toda a minha família.
Engoli em seco. Pelo que parece, não estávamos mais
ngindo que ele era um feérico comum chamado Alan.
— É por isso que você veio aqui com esta Unseelie?
Vingança? — O olhar dela alternou entre Torin e eu, seus
olhos cor de âmbar estreitando-se. — Um de vocês morrerá
primeiro. Ainda não decidi quem. Morgant, você acha que
algum deles sabe voar?
Morgant, claramente pressentindo que era uma pergunta
retórica, apenas arqueou uma sobrancelha.
Com um movimento rápido, Torin conseguiu libertar seus
braços.
— Está realmente tão desesperada por companhia, Mab?
Não tem amigos, não é? — Ele ergueu o olhar para o céu, e eu
sabia que ele tinha visto os arqueiros.
O luar reluzia em sua pele. Ela inspirou profundamente.
— Acho que eu preciso de entretenimento. Se eu fosse
uma pessoa prática, você já estaria morto. Mas eu tenho
sonhos e visões que gostaria de satisfazer.
Mab era como um gato brincando com sua presa.
— Escute, Vossa Alteza. — Minha mandíbula estava
cerrada, mas eu tentei manter um tom amigável. — Por que
você não liberta o Seelie enquanto eu co aqui? Eu sou uma
de vocês, mas ele claramente não pertence a este lugar. Caso
contrário, receio que você possa atrair todo o exército Seelie
para cá, prontos para queimar tudo até virar cinzas.
Ela soltou um sibilo, e o som era como o barulho da água
apagando o fogo.
— Mas não há uma rainha no trono de Feéria, não é?
Deve estar em um estado lamentável agora. Congelando.
Dragões circulando como abutres, prontos para se banquetear
com os mortos congelados. Sabia que eles colecionam
cadáveres? — Sua expressão mudou enquanto ela parecia
satisfeita com a ideia, e ela me dirigiu um sorriso radiante. —
Acho que caremos com vocês dois para nos divertirmos. Não
será legal, Morgant?
Meus dedos se cerraram em punhos.
— Solte ele.
— Ava — disse Torin, como se estivesse tentando acalmar
uma fera selvagem.
Um silêncio inquietante se abateu sobre nós até que a
rainha Mab levou um dedo aos lábios.
— Acho que ela realmente se importa com ele. — Sua voz
era como um vento gélido, e um arrepio percorreu minha
espinha. — Uma Unseelie verdadeiramente perdida, tão doce
e triste ao mesmo tempo. — Ela olhou Torin de cima para
baixo. — Entendo por que ela gosta dele. Posso ter o dobro da
sua idade, mas não sou cega.
Torin deu um passo em direção a ela e, apesar de seu
estado maltratado, seus movimentos eram uidos e graciosos.
— Minha querida rainha. Você é realmente sozinha.
Ele estava ertando com ela?
Apesar do sangue escorrendo por seu peito, ele ainda era
tão bonito que meu coração doía. Talvez ele conseguisse usar
o charme para dar o fora aqui?
Ela levou um dedo aos lábios.
— Como dizem, é solitário no topo. Você está se
oferecendo para mim? Nunca me deitei com um Seelie, nem
com um homem tão bonito quanto você.
Pelos deuses. A comida estava começando a azedar no
meu estômago.
— Vossa Alteza — começou Morgant. — Há seguran…
Mab levantou a mão.
—Pode deixar que eu pergunto quando quiser sua
opinião. Mas eu poderia usar sua força, Morgant. — Ela se
virou para mim. — Ainda estou pensando em jogar esta pobre
coitada da torre para ver se ela pode voar. Achamos que ela
consegue?
— Eu a aconselharia a não fazer isso. — A voz grave e
suave de Torin cortou o ar noturno, seu tom de advertência
era como uma lâmina a ada.
— E uma vez que ela estiver fora do caminho, Torin, o que
aconteceria se eu o levasse para a cama para ver se você
conseguiria provar seu valor a uma rainha?
Torin cerrou a mandíbula.
— Se você encostar um dedo em Ava — disse ele
suavemente, seu tom impregnado de violência —, arrancarei
sua espinha, Vossa Alteza.
Olhei para os arqueiros voando em círculos lá em cima, as
asas brancas batendo no ar. Mais uma echa no lugar certo, e
ele estaria morto.
A rainha arregalou os olhos.
— Então você realmente se importa com ela, no nal das
contas. Que interessante. Um rei Seelie que se importa com
sua amiguinha Unseelie. — Ela cruzou os braços. — Bem, se
você vai fazer ameaças, não poderá car na minha cama sem
algemas. Não acha que seria melhor se suas mãos estivessem
livres?
O que diabos ela estava tramando? Mordi o lábio. Tive a
impressão de que ela formulava muitas frases como
perguntas, o que me fazia pensar se, de alguma forma, ela não
podia mentir, e se as perguntas não seriam então algum tipo
de alternativa.
Ela foi rebolando até ele e passou o dedo por sua clavícula.
— Torin, querido. Pensei que já tinha decidido como
matar você quando chegou aqui. — O dedo dela desceu pelo
peito dele. — Achei que eu iria te espancar até que você
desmaiasse e então te selar dentro de uma árvore, para que,
quando acordasse, estivesse enterrado vivo dentro de um
carvalho. Então, morreria lentamente de fome ao longo de
algumas semanas enquanto era devorado por insetos. Aqui,
nós retribuímos à oresta.
As garras frias do pavor envolveram meu coração.
— Qual é o seu problema? — murmurei para mim mesma,
incapaz de me conter.
— Ah, não se preocupe. — Agora, seus dedos estavam
percorrendo o abdômen dele. — Isso foi antes. — Ela se virou
para mim. — Mas sabe de uma coisa? Eu nunca quis me
deitar com um homem fraco. Não acha que um comedor de
cadáveres deveria provar seu valor? Não deveríamos ver suas
habilidades no campo de batalha? — Suas bochechas
cintilavam com um brilho prateado. — Aqui está minha
oferta magnânima. Permitirei que um de vocês deixe o reino.
— Ela agitou seus longos cílios escuros. — Mas somente após
um duelo entre os dois. Torin, querido. — Ela se moveu para
trás dele, passando a mão por seus ombros musculosos. —
Amanhã, sua tarefa é lutar contra a Garota Perdida diante de
uma multidão dos meus súditos, e cravar sua espada nela. Se
você provar seu valor para mim do jeito que eu exijo,
permitirei que retorne ao seu reino triste e debilitado.
Senti um aperto no peito.
— Você precisa que ele me mate?
— Não se preocupe, minha pobre coitada — disse ela em
um tom tranquilizador. — Se você conseguir perfurá-lo, eu a
deixarei ir. Se quiser. E nem preciso de favores extras de sua
parte. Você é realmente uma garota de sorte. — Seus olhos
cor de âmbar alternaram entre Torin e eu. — Quer saber de
uma coisa? Meus súditos têm estado entediados
ultimamente, e eu adoraria entretê-los. Eles carão
empolgados. Não precisam lidar com toda essa coisa de geada
e fome que vocês têm em Feéria, e as vidas deles são tão
confortáveis que acaba cando entediante. — Ela sorriu. —
Eles precisam de um pouco de derramamento de sangue. Então,
amanhã, vocês dois vão lutar. E um de vocês deve empalar o
outro para que tudo isso termine.
Ela mordeu o lábio de maneira sedutora e agitou os cílios
para Torin.
— Mas eu nunca gostei de compartilhar. Quando vejo
alguma coisa que eu quero, não gosto que mais ninguém a
tenha. Torin, querido, se eu te pegar tentando, de alguma
forma, se aproximar da Unseelie Perdida, haverá
consequências. Você já se perguntou qual a sensação de ser
castrado? Ou de ser despedaçado por cavalos puxando seus
membros em todas as direções? Gostaria de descobrir?
Torin não estava mais respondendo. Ele apenas a
encarava, seus olhos assumindo um tom de azul-escuro.
A rainha se afastou dele cuidadosamente e juntou as
pontas dos dedos de forma conspiratória. Ela se virou para
Morgant.
— Antes de levá-los aos seus aposentos, cure o rei Seelie.
Quero que ele esteja saudável antes da luta. E, como alguém
acabará empalado amanhã, deixe-os car em quartos da torre.
Separados, é claro. — Ela dirigiu um olhar incisivo para Torin.
— Fui muito clara quanto a esse ponto, não é? Estou
ordenando que não se aproximem um do outro.
Eu me senti tonta, com falta de ar.
— E se nos recusarmos a nos matar amanhã?
— Garota Perdida. — Ela inclinou a cabeça, e sua
expressão era quase maternal. — Eu planejo jogar você da
torre. Acho que é uma escolha misericordiosa, na verdade.
Você é uma traidora, mas é uma Unseelie. Mas Torin? Como
inimigo de nosso reino e invasor de nossas terras, acredito
que a maioria dos meus súditos diria que ele merece uma
morte muito lenta, humilhante e agonizante. E, Garota
Perdida, será que não seria doloroso para você assistir a tudo
isso antes de ser jogada da torre? O amor pode doer mais do
que as piores torturas que somos capazes de conceber.
Suas palavras suavemente pronunciadas ecoaram no ar
como um sino fúnebre.
Ava

M eu coração ainda batia forte contra minhas costelas


enquanto Morgant me guiava pelos corredores de pedra
repletos de vinhas do castelo.
Uma morte lenta, humilhante e agonizante…
Arandelas se projetavam das paredes, feitas de um
material que lembrava osso polido. A luz morna das velas
bruxuleava sobre os cabelos brancos de Morgant e sobre sua
enorme silhueta, atingindo também as portas de madeira. Se
chegasse a isso…
Se chegasse a isso, eu de nitivamente não seria capaz de
enfrentá-lo em uma luta. Nem conseguiria derrotar Torin,
então eu tinha exatamente zero planos para o dia seguinte. E
mesmo que eu fosse capaz de ferir Torin, eu não queria isso.
Pelo menos acho que ganhamos um pouco de tempo. Mais
tempo para descobrir se ele havia encontrado Aquela com
Véu. Mais tempo para seduzir a rainha, ou seja lá o que fosse
preciso para sairmos vivos daqui.
As botas de Morgant ecoavam no chão de pedra, e ele se
virou para mim.
— Você tem sorte que nossa graciosa rainha não arrancou
seu coração. Ela está lhe dando a dádiva da chance. E a morte
pela espada é certamente preferível a qualquer outra coisa
que ela possa conceber.
Minha boca estava cheia de saliva, como se eu estivesse
prestes a vomitar.
— Amanhã vamos descobrir quão sortuda eu sou.
Morgant, onde está Torin?
Ele mostrou os dentes em uma expressão agressiva, mas
eu tinha a impressão de que ele não estava tão irritado quanto
aparentava.
— Você precisa parar de fazer perguntas. Meu conselho é
que deixe as coisas como estão. A rainha ordenou que vocês
dois se mantenham distantes. — Ele me dirigiu um olhar
penetrante. — Descanse, para que possa matá-lo amanhã.
Você pode até ser uma traidora, mas já foi uma de nós. E eu
quero ver você matar o rei arruinado.
Senti um nó no estômago. Sim, eu era habilidosa na
esgrima. Mas Torin havia passado a vida inteira treinando
com os melhores espadachins de Feéria e metade de seus anos
aceitando desa os de reis gananciosos e seus lhos.
Massacrando-os para defender seu trono. Ele provavelmente
carregava dezenas de mortes nas mãos.
Por m, chegamos a uma porta arqueada de madeira, e
Morgant a abriu. Respirei o ar úmido que cheirava a
manjericão, limão e mogno. Arcos de madeira azul pairavam
sobre mim, e nas paredes havia janelas gradeadas que davam
para o reino de estrelas e folhas vermelhas. Uma lareira de
pedra irradiava uma luz bruxuleante sobre a cama e sobre um
tapete cor de vinho que cobria o chão.
Era um milhão de vezes melhor do que a masmorra,
exceto pelo manto de pavor frio e pesado que se abatia sobre
mim.
Morgant parou na entrada e cruzou os braços enormes.
Sombras se agitavam sobre seus cabelos longos e suas
vestimentas de couro.
— De onde você veio?
A frustração cresceu dentro de mim.
— Pelo que me lembro, você disse que Mab já sabia.
— Ela ainda não me informou.
— Bem, eu não faço ideia. Até onde eu sei, é possível que
minha família tenha sido glamourizada no reino humano por
centenas de anos. — Caí na cama e soltei um longo suspiro.
— Sinceramente, duvido que eu consiga dormir esta noite.
O fato de eu estar conversando com o torturador da
rainha era um sinal da minha falta de perspectiva.
Ele franziu a testa e apontou para uma banheira de cobre
próxima à lareira.
— Há algumas ervas lá que podem ajudar você a se
acalmar antes de dormir.
— O que você pode me contar sobre o duelo de amanhã?
— Se fosse do desejo de Vossa Alteza que você soubesse
de alguma coisa, ela teria lhe dito. Ela sempre tem um plano, e
não comete erros. Tudo o que você pode fazer é descansar
esta noite e matar o rei amanhã. — Morgant apontou para
uma cômoda de madeira escura. — Roupas ali. Sua porta será
fortemente protegida. Não tente sair. — Ele se aproximou e
ergueu meu queixo, seus olhos perfurando os meus. — Não
tente ver seu cão Seelie, ou ambos morrerão. E então eu terei
o prazer de acabar com o sofrimento do vira-lata. Será pior do
que a morte pela espada. Estamos entendidos?
Sombras gélidas perpassaram minha mente, e eu imaginei
as vinhas ao nosso redor enrolando-se nele e arrastando-o
para longe.
Afastei sua mão bruscamente.
— Não me toque de novo.
Os cantos de seus lábios se curvaram.
— Na verdade, talvez você se pareça com uma de nós.
— Por que você odeia tanto o Torin?
Uma brisa correu pelo quarto, agitando seus cabelos.
— Ele envia assassinos atrás de nós, usando feéricos com
a habilidade de transitar entre os mundos. Uma vez, acordei
com um assassino Seelie em meu quarto. Consegui matá-lo,
mas meu irmão não teve a mesma sorte. Sob ordens de Torin,
ele foi assassinado enquanto dormia.
Ah. Isso explica a nossa recepção.
Morgant saiu e bateu a porta atrás dele.
Eu me sentei em silêncio, meu corpo formigando de
exaustão e nervosismo. Ainda me agarrava a um o de
esperança: de que Torin tivesse aprendido algo com aquela
anciã. Senão precisaríamos encontrar um jeito de fugirmos.
Empunharíamos nossas espadas contra a rainha se necessário
— escapar ou morrer tentando. Ou talvez houvesse alguma
brecha?
Ela falou alguma coisa sobre perfurar ou espetar. E se eu
perfurasse um dedinho? O lóbulo de uma orelha? Feéricos são
obrigados por juramentos, certo? Ela teria que libertar um de
nós se perfurássemos um pedacinho de pele. A pessoa
libertada poderia solicitar a ajuda de Feéria.
Após alguns minutos, preparei um banho quente e entrei
na banheira, inspirando o aroma de manjericão e lavanda.
Com a lareira crepitando ao meu lado, minha mente começou
a divagar e minha visão cou turva. Por um momento, era
quase como se as vinhas estivessem rastejando sobre o chão
de pedra, contorcendo-se como algo vivo. Ofegante, eu me
sentei ereta na banheira.
Quando pisquei os olhos, a visão desapareceu.
Enrijeci a mandíbula. O estresse estava me afetando. Saí
da banheira, a água escorrendo do meu corpo como pequenos
riachos. Uma brisa úmida percorreu o quarto, arrepiando
minha pele.
Peguei uma toalha e fui até a cômoda, deixando pegadas
molhadas no caminho. Ao abrir as gavetas, encontrei
camisolas brancas cuidadosamente dobradas. Vesti uma e
apaguei as velas do quarto.
Enquanto eu me deitava na cama, um vulto passou pela
varanda, chamando minha atenção. Eu me sentei e agarrei os
lençóis junto ao peito. Uma silhueta pairava do lado de fora da
janela. No instante seguinte, reconheci a forma atlética e
olhos azuis-claros que perfuravam a escuridão. Agora, ele
usava uma camisa branca e engomada.
Torin.
Minha pulsação acelerou. Ele estava enlouquecendo? Com
os olhos xos nos meus, entrou sorrateiramente no quarto,
levando um dedo aos lábios.
Joguei as cobertas para longe e me aproximei dele na
ponta dos pés, diminuindo a distância entre nós até sentir o
calor que irradiava dele. Torin colocou uma mecha do meu
cabelo atrás da orelha, inclinando-se para sussurrar:
— Não sei o que vai acontecer amanhã, Ava, e não sei se
vai ser possível. Mas se tivermos uma chance de escapar,
precisamos aproveitá-la. Precisamos usar nossas espadas para
nos libertarmos. — Ele passou o polegar pela minha
bochecha. — Eu não sei como vamos fazer isso. Pela primeira
vez na minha vida, realmente não faço ideia do que fazer.
Senti um aperto no coração.
— Então, acho que você não encontrou Aquela com Véu?
Ele sacudiu a cabeça.
— O castelo parecia estar vazio.
Inspirei profundamente.
— E que tal uma pequena perfuração? Eu tenho a
sensação de que ela é muito especí ca sobre sua escolha de
palavras. Ela não disse que tínhamos que nos matar, não é?
Que tal um pequeno ferimento em um local inofensivo? Um
de nós poderia se liberar e buscar ajuda.
Ele assentiu.
— Boa ideia. Então você me perfura.
Sacudi a cabeça. Pensei que faria mais sentido que ele
fosse libertado. Ele era o rei. Mas realmente não tínhamos
tempo para discutir a respeito.
— Ouviu o que ela disse que faria caso você fosse pego
aqui?
Ele acariciou minha bochecha.
— Espero evitar esse destino, criança trocada. Mas eu
precisava te ver.
— Por quê?
— Porque quero car com você enquanto eu puder. — Em
vez de ir embora, inclinou-se e pressionou seus lábios contra
os meus. Ele me beijou suavemente, mas quando passei a mão
sobre sua camisa branca, sentindo seus músculos rmes, o
beijo se intensi cou. Eu me entreguei ao beijo lento e
agridoce. Naquele momento, eu não estava preocupada com o
duelo ou com o seu reino, nem pensando em nada no mundo
além dele e da sensação de sua língua contra a minha, de suas
mãos descendo pela minha camisola, apertando-me contra
ele.
O resto do mundo desapareceu, os Seelie e os Unseelie, e
tudo o que restou fomos nós, iluminando-nos mutuamente.
Um amanhecer surgido de dentro.
Não era o su ciente, e eu achava que jamais seria.
Um grito ressoou através da porta e seus músculos
enrijeceram. Meu corpo congelou e o pânico tomou conta de
mim.
— Torin — sussurrei ofegante —, você precisa ir. Agora.
Ele se aproximou, sussurrando:
— Em Feéria, congelarei qualquer uma que eu ame, Ava.
Matarei a pessoa que eu amar. Essa é a maldição da rainha
Mab. E é por isso que você não pode vir comigo, minha
criança trocada.
Suas palavras tiraram meu fôlego, e enquanto ele se
afastava, seus melancólicos olhos azuis brilhavam na
escuridão.
— Parte da maldição determinava que eu não podia
contar a ninguém. Só Orla sabia. Eu matei alguém que amava,
Ava. Não permitirei que aconteça de novo.
Ele se virou e saiu para as sombras, misturando-se com a
noite.
Eu quei parada, sentindo meu coração se partir. Mal ouvi
o som da tranca deslizando na porta ou das dobradiças
rangendo ao se abrir.
Quando Morgant entrou no quarto, Torin tinha
desaparecido.
Ele franziu a testa para mim.
— Senti seu coração disparar. Você deveria dormir, Ava.
Mas meu coração ainda batia como o de um animal
caçado, e eu achava que nada poderia me ajudar a dormir.
Ava

M organt me conduziu por um corredor com abóbadas


cobertas de musgo que se erguiam a centenas de metros de
altura. O som dos meus passos ecoava nas paredes de pedra.
Esta manhã, eu acordei ao amanhecer e me vesti com
roupas simples e pretas para o duelo. Eu não sabia se tinha
dormido em algum momento, mas minha mente não parava
de pensar se eu tinha ou não descoberto uma brecha.
Perfurar, não matar… Essas palavras ecoaram na minha
mente a noite inteira.
— Morgant — falei —, a rainha parece ser muito precisa
em suas palavras.
Ele se virou para mim, assentindo uma única vez.
— Concentre-se apenas em matar o rei Seelie.
Eu não estava em um bom estado para um duelo. Minha
mente parecia turva e abafada, meus nervos gritavam de
exaustão e pânico.
Morgant me conduziu a uma sala com colunas de pedra
imponentes em ambos os lados e alas cheias de espectadores
Unseelie. Os raios de sol da manhã penetravam através de
janelas altas e estreitas, lançando um brilho dourado sobre a
multidão de feéricos com chifres, cascos e longas caudas. Eles
estavam trajados de verde, e algumas das mulheres usavam
vestidos de um no tecido rendado. Todos os olhares se
voltaram para mim, e um murmúrio se espalhou pelo salão.
Por alguns instantes, deixei meu olhar vagar pelo local,
assimilando a estranha beleza desse lugar.
Do outro lado do salão, Mab estava sentada em um trono
ornamentado que parecia surgir das raízes da árvore, seu
vestido de pérolas espalhando-se pela base. Uma coroa clara e
delicada reluzia sobre seus cabelos brancos.
Torin estava diante dela. Isso poderia ter sido algum tipo
estranho de casamento, se não fosse pelos quatro arqueiros
que voavam acima dele, apontando-lhe suas echas. Outros
três apontavam as armas para mim.
Um tapete verde-musgo se estendia ao longo do salão, as
inconfundíveis folhas de um vermelho vivo estavam
espalhadas como gotas de sangue contra pedras azuis e
pretas. Folhas avermelhadas pendiam de vinhas escuras que
serpenteavam por cada coluna e parede. Este lugar estava
tomado por essa vegetação estranha.
Quando dei mais alguns passos para dentro do salão,
Morgant desembainhou uma espada e me entregou pelo cabo
de bronze. Ele se afastou, arqueando uma sobrancelha para
mim.
De seu trono, Mab girava um cetro de madeira retorcida
que se enrolava em torno de uma esfera brilhante. Ela cou de
pé e se dirigiu à multidão na língua Unseelie, suas palavras
ecoando pelo salão.
Um guarda de cabelos vermelhos e compridos traduziu o
que ela disse para minha língua.
— Meus súditos. Algum de vocês tem ideia de a quem
pertence esta Unseelie perdida?
Suas palavras mexeram com meus nervos, causando uma
esperança desesperada de que alguém se manifestasse e este
espetáculo perturbador pudesse ser evitado. A reunião de
uma mãe e sua lha há muito perdida seria, sem dúvida, uma
distração, um espetáculo tão comovente que dispensaria
qualquer derramamento de sangue hoje.
Examinei a multidão novamente, procurando
desesperadamente por alguém que se parecesse comigo. E
quando meu olhar nalmente pousou sobre um par de chifres
acobreados, minha pulsação acelerou. O homem, largo e
atlético, talvez tivesse idade o su ciente para ser meu pai,
tinha chifres parecidos com os meus. Cabelo preto, olhos
escuros, pele marrom clara e tatuagens — ele não era
exatamente igual a mim, mas…
— Pai? — falei, desesperadamente. — Pai!
Ele franziu a testa e olhou com nervosismo para uma
mulher com asas à sua direita. Eu não tinha ideia do que ele
estava dizendo na língua Unseelie, mas o tom indicava
claramente que a mulher era sua esposa, e era provavelmente
uma defesa frenética de sua delidade.
Senti um aperto no coração, e após mais um momento de
silêncio constrangedor, o guarda de cabelos vermelhos estava
novamente traduzindo para a rainha.
— Ninguém reivindica a Garota Perdida — disse ela. — O
duelo acontecerá de acordo com nossas regras tradicionais de
esgrima. Sem adagas, sem correr em círculos. Se saírem da
área coberta de musgos, meus arqueiros atirarão em vocês. Se
falharem em fazer o que eu digo, atirarei a Unseelie Perdida
do alto da nossa torre. Para o rei Seelie, encontrarei um
destino mais criativo.
O último comentário provocou um perturbador
murmúrio de satisfação na multidão, e seus olhos brilharam.
Fechei os olhos, ligeiramente horrorizada ao descobrir que os
membros da minha própria espécie eram sádicos implacáveis.
Então, na minha língua, a rainha clamou:
— Assumam suas posições. Até o nal deste duelo, exijo
que usem suas espadas para perfurar o coração, pescoço,
estômago ou globo ocular do seu oponente até que a espada
surja do outro lado.
O chão desapareceu sob os meus pés. Sem furos, então.
— Como já expliquei a Torin — gritou ela —, se qualquer
um de vocês tentar escapar ou pensar que são capazes de
desa ar uma rainha, meus arqueiros irão incapacitá-los.
Então, eu jogarei Ava da torre e executarei o rei Seelie. — Ela
sorriu. — Fui clara?
Merda.
A rainha acabou com qualquer resquício de esperança que
eu tinha. E agora, meu coração batia tão forte que eu não
conseguia mais ouvir meus próprios pensamentos. Um suor
frio surgiu em minha testa, e meu olhar se voltou para a
entrada, em busca de uma rota de fuga. Mas uma leira
inteira de guardas estava diante das portas de madeira,
echas apontadas para nós.
O pavor enviou calafrios pelo meu peito enquanto eu me
aproximava de Torin. Se quiséssemos encontrar algum jeito
de sair dessa, não poderíamos entrar em pânico.
A rainha Mab sorriu.
— O soar da trompa marcará o início.
Os olhos claros de Torin estavam xos em mim, e ele se
aproximou graciosamente. De alguma forma, com os lábios
levemente curvados e a postura elegante, ele não parecia estar
tomado pelo pânico que me roubava o fôlego.
Dei uma rápida olhada por sobre seu ombro, e eu me
perguntei se seria possível atacá-la antes de sermos alvejados.
As batidas do meu coração pareciam reverberar nas
paredes e nos tetos abobadados. O ar em meus pulmões não
parecia su ciente, e eu conseguia ouvir cada inspiração e
expiração como o rangido de uma dobradiça enferrujada.
A trompa soou e não tive mais nem um instante para
pensar. Torin avançou contra mim, sua espada cintilando,
assim como seus olhos azuis.
Ele se lançou à ação casualmente demais, investindo
contra minha espada. Completamente no controle de si
mesmo enquanto o horror sombrio de nossas escolhas se
fragmentava em minha mente.
Nossas espadas colidiram enquanto eu defendia, tentando
simplesmente acompanhar o ritmo dele. Será que ele estava
pegando leve comigo?
Pelo menos eu estava habituada a uma pista de esgrima
do jeito que eu sempre havia treinado. Sem lápides ou raízes
de árvores no caminho. Talvez eu devesse simplesmente focar
em sobreviver até dominar meu pânico.
Torin atacou novamente, e eu defendi. Ele estava me
testando, tentando entender como eu funcionava na pista de
esgrima, mas eu ainda não fazia ideia de onde isso daria.
Eu planejo jogar você da torre…
Ergui minha lâmina e esperei mais uma vez pelo ataque de
Torin. Ele investiu e, desta vez, eu contra-ataquei,
empurrando sua lâmina para o lado e desferindo um golpe.
Torin se esquivou, e então estávamos novamente no ritmo da
esgrima que conhecíamos tão bem. Depois de tantas horas
praticando, aprendendo os movimentos e peculiaridades um
do outro, era mais uma dança do que uma luta.
Uma morte lenta e agonizante…
Enquanto eu me concentrava em nós dois, em seu lindo
rosto e na forma graciosa como ele se movia, na memória do
nosso beijo da noite anterior, meu pânico começou a
desaparecer. À medida que nos movíamos — atacando,
defendendo, esquivando — o mundo pareceu ganhar vida ao
nosso redor, plantas surgindo das pedras e folhas vermelhas
rodopiando no ar. Quando ele atacou novamente, eu contra-
ataquei. Para frente e para trás — ataque, defesa, ataque,
defesa, ataque, defesa — enquanto folhas vermelhas
pairavam no ar, utuando em uma brisa ao nosso redor. O
mundo era uma sinfonia de lâminas colidindo e folhas
tremulando.
Talvez pudéssemos simplesmente dançar assim para
sempre.
Mas enquanto lutávamos, eu enfrentava di culdades,
achando a lâmina de aço um pouco mais rígida do que eu
estava acostumada. Eu conseguia defender bem, mas o
contra-ataque parecia lento.
Quando Torin pulou para trás, avancei com uma série de
estocadas e investidas, sabendo que ele seria capaz de
acompanhar cada movimento da minha lâmina. Tal como
ocorria quando praticávamos juntos, ele neutralizou meus
ataques com movimentos a ados de defesa.
— Estou cando impaciente! — protestou a rainha, sua
voz não mais um sussurro suave. — Quero sangue derramado
no meu salão.
Sua voz me arrancou do foco em Torin, e eu diminuí o
ritmo. Desta vez, quando ele defendeu com força, sua espada
se chocou contra a minha, que se partiu ao meio. As folhas
vermelhas como brasas ao nosso redor caíram no chão, e
Torin encarou minha espada quebrada com uma expressão de
horror.
Eu olhei para minha lâmina partida, recuperando o fôlego.
Meu corpo formigava de adrenalina, e de algo mais — uma
sensação desconhecida de poder.
Torin se virou para a rainha.
Ela pressionou os lábios em uma linha na.
— Você deve prosseguir. Fui clara?
— A lâmina dela está quebrada. — A voz de Torin ecoou
pelo salão. — Não posso enfrentá-la assim. Isso não é uma
luta.
Ela cou de pé, seus lábios curvando-se e suas asas
escuras abrindo-se atrás dela.
— Então você desiste? Está escolhendo sua própria morte
agonizante? Prefere ser castrado e esquartejado?
O ar abandonou meus pulmões, e um redemoinho de
folhas vermelhas se ergueu do chão ao nosso redor, agitando
o ar. Será que meu próprio pânico era a causa?
Eu me virei, procurando Morgant enquanto o medo
queimava minhas veias.
— Tenho outra espada — gritou Morgant.
Fui tomada pela surpresa ao perceber que ele me fazia
essa oferta sem a aprovação da rainha, mas mesmo assim ele
se aproximou rapidamente e me entregou sua própria espada.
— Obrigada — sussurrei.
Ele assentiu uma única vez. Eu sabia que só estava me
dando a espada porque queria ver Torin morto, mas mesmo
assim eu estava grata.
Eu me virei para Torin, a nova lâmina brilhando ao sol,
a ada como a presa de uma víbora. Respirei fundo até
preencher meus pulmões de ar, tentando recuperar aquela
sensação de controle.
Torin deu um passo à frente, os olhos xos nos meus, e a
dança recomeçou, um gracioso minueto de ataques e defesas.
O mundo ganhou vida ao nosso redor, um redemoinho de
folhas vermelhas rodopiando no ar.
Até onde eu sabia, não tínhamos um plano além de
prolongar a luta o máximo possível, além de saborear cada
último suspiro, cada momento juntos, cada passo nesta
estranha valsa.
Pelo menos, era o que eu pensava.
Mas Torin tinha outros planos.
Quando eu ataquei com um movimento que eu sabia que
ele conseguiria defender, Torin deslocou o corpo à frente da
minha lâmina.
A lâmina de aço ncou diretamente em seu coração.
Ava

R etirei minha espada do peito dele, o horror me atingindo


como um soco no estômago enquanto eu encarava o sangue
de Torin pingando da lâmina. Cambaleei para trás
novamente. Torin estava deitado de costas no chão,
sangrando, e eu senti o mundo escurecer ao meu redor.
Um silêncio terrível se abateu sobre o salão que
momentos atrás estava tomado pelo entusiasmo, e eu não
conseguia formular um único pensamento.
O sangue de Torin escorria do peito, espalhando-se sobre
o musgo. Eu encarei minha própria espada, recusando-me a
acreditar na cena diante de mim.
Deve ser um truque. Meus pensamentos foram tomados
por um terrível silêncio. Nenhuma palavra era capaz de
explicar meu completo horror enquanto eu encarava o
sangue.
Um grito cortou o silêncio, alguém perguntando a ele por
que tinha feito aquilo. Um grito distante, envolto pela
quietude.
Ele não podia responder.
Por m, a realidade se impôs, e eu corri para o lado dele,
pressionando freneticamente minhas mãos contra seu peito
para conter o sangue, mas a espada tinha perfurado seu
coração, e ele não se mexeu. Não havia sinal de batimento
cardíaco. Minhas mãos tremiam incontrolavelmente.
Ele fez de propósito. Eu tinha visto o olhar em seu rosto
por uma fração de segundo, a intenção por trás daquele
movimento. Minha espada havia perfurado o peito dele, mas
eu senti a lâmina a ada em meu próprio coração, e era
impossível respirar ou pensar.
Só então eu percebi que quem gritava com ele era eu,
perguntando por que diabos ele tinha pulado na frente da
minha espada. Lágrimas embaçavam minha visão.
Mas eu sabia a resposta, não é? Ele havia me dito. Ele
vivia tomado por uma culpa esmagadora por ter matado
alguém que amava.
É só que…
Agora ele queria que eu sofresse a mesma maldição? Seu
sangue cobria minhas mãos. Não conseguia sentir seu coração
bater, e o uxo de sangue diminuía cada vez mais.
— O amor é uma forja nas profundezas ardentes do
monte Tienen. — A voz melodiosa da rainha Mab utuava
pelo salão. — Ele nos torna mais fortes, mas a dor é
excruciante. Não é mesmo, pobre coitada?
Quando olhei para a rainha Mab, para o sorriso
presunçoso em seu rosto, a ira que tomou conta de mim fez
meu sangue arder. Cerrei os dentes e apertei o punho da
espada. Ao meu redor, folhas se ergueram do chão e
rodopiaram no ar. A fúria ardente fazia meu corpo vibrar.
A expressão no rosto da rainha era eufórica, radiante. Ela
estava se deleitando com este circo de horrores. Seu inimigo,
o rei Seelie, tinha sido morto pelas mãos de sua amada. Que
vitória para a Rainha das Lamentações.
Um poder sombrio originado das pedras sob meus pés
percorreu meu corpo. Como ela ousou acabar com a vida dele?
Das pedras ao nosso redor, a vegetação ganhou vida,
serpenteando em direção à rainha. Eu não sabia se era minha
magia ou a dela. Tudo o que eu sabia era que queria
estrangulá-la até a morte.
Mas precisava ser rápido. O tempo parecia desacelerar
enquanto eu corria pelo chão coberto de musgo. Um passo,
dois…
Minha lâmina, embebida no sangue de Torin, estava
destinada à sua garganta. Eu não me importava mais com o
que aconteceria comigo, e eu tinha certeza de que morreria de
qualquer forma.
Eu estava diminuindo a distância entre Mab e eu quando
uma echa me atingiu por trás, perfurando meus ossos.
Ouvi sua voz ecoando pelo salão.
— Garota Perdida, se vai mirar na rainha Seelie, é melhor
não errar.

A     , sentindo cheiro


de sangue misturado com terra e musgo. Na masmorra mais
uma vez, a escuridão era quase total.
Minhas unhas haviam crescido demais, e se curvavam
sobre as raízes da árvore.
Eu me sentia estranhamente desconectada da dor
lancinante nas minhas costas. Minha mente ainda não
conseguia assimilar o que tinha acontecido — a espada
perfurando o peito dele, seu sangue escorrendo pelo musgo
— mas as cenas continuavam a se repetir in nitamente na
minha cabeça.
Eu sentia como se tivesse visto tudo aquilo à distância,
uma cena de horror desdobrando-se ao nal de um túnel.
Não poderia ser eu quem o perfurou.
Permaneci deitada, inspirando o odor da terra.
Eu não conseguia pensar em um único motivo para me
dar ao trabalho de me mover.
Torin

A lâmina entrou — não tão perfurante como eu pensava,


mais como um soco no peito seguido por uma espécie de
incredulidade vertiginosa pelo que eu tinha acabado de fazer.
Com as pedras sob minhas costas, eu me senti como se
estivesse sendo esvaziado — meus ossos, meu crânio. Meu
corpo foi tomado por sombras frias e pelo aroma quente dela,
como cedro queimando.
Eu não conseguiria viver tendo matado outra mulher que
amava. E qual era o sentido de nós dois morrermos? A rainha
Mab nunca permitira que eu vivesse, apesar de suas
promessas.
A luz atravessava as abóbadas acima de mim, e eu não
estava mais na Corte das Lamentações. Em vez disso, eu via
Ava diante de mim. Lá estava ela, parada diante do portal de
Feéria quando ainda era uma garotinha, tentando voltar para
um reino que eu já governava quando criança. A pequena Ava
tinha lágrimas escorrendo pelas bochechas rosadas, e
segurava uma mochila do Mickey Mouse. Ela amava sua mãe,
Chloe, mas ninguém mais achava que seu lugar era no mundo
humano.
A voz da minha própria mãe ecoou em meus
pensamentos, e a visão desapareceu com ondulações, como
uma pedra atirada em um lago.
Você está morrendo, Torin.
Eu teria que morrer em algum momento, mãe.
Eu sempre me orgulhei de tomar conta das pessoas,
antecipando suas necessidades e fazendo com que se
sentissem confortáveis. Um rei e uma rainha eram como pais
de um reino inteiro. Uma faísca aguda de pânico atravessou
meus pensamentos turvos, pois quem tomaria conta das
pessoas de Feéria agora?
Mas Ava estava segura…
Quando entrei pela primeira vez naquele bar e dei de cara
com aquela feérica de cabelos escuros me encarando,
tagarelando bêbada, nunca teria sido capaz de imaginar que
tudo acabaria assim.
Em algum lugar da minha alma habitava uma vida
imaginada, uma em que Ava era minha esposa. Uma em que
ela dormia em meus braços e beijava meu pescoço. Uma em
que tomávamos café juntos em uma mesa iluminada pelo sol
da manhã.
Na minha vida imaginada, ela se deitava na cama ao meu
lado para ler um livro.
Mas essa vida era tão tangível quanto fumaça.
Ava não poderia ser minha esposa. Apesar de que, à
medida que minha mente se esvaziava, eu não conseguia
lembrar exatamente por quê… Era uma razão estúpida.
Será que esse era o som de Ava gritando?
Meus pensamentos retornaram como o uxo intenso de
um rio trazendo diferentes memórias gravadas em minha
mente. Eu estava com minha mãe, caminhando atrás dela. A
neve cobria os campos, mas Feéria ainda tinha uma rainha,
então pingentes de gelo gotejavam pelo caminho. Em alguns
lugares, a neve derretida revelava trechos brilhantes de
grama. Quando minha mãe se virou para me olhar, senti um
orgulho imenso dela por trazer a primavera e por ser a mulher
mais bela de Feéria. Mas, enquanto adentrávamos na oresta
cada vez mais, ela não parava de tossir, e eu odiava esse som.
Por que eu sentia como se ela estivesse fazendo de propósito?
Ninguém ca doente de propósito.
Eu estava desmoronando porque sabia que ela não seria
mais capaz de tomar conta de mim.
O rio da memória mudou de curso, e agora eu estava ao
seu lado na cama, fazendo um cartão para ela com lápis e
papel. Alguém havia me convencido de que a magia da cura
poderia ser criada através de um cartão.
Mais uma mudança de curso.
Agora, eu estava correndo pelos corredores do castelo,
anos depois da morte da minha mãe. Orla estava gritando e,
quando arrombei a porta de seu quarto, descobri que seu
vestido havia pegado fogo na lareira. Uma enfermeira deveria
estar tomando conta dela, mas a mulher deve ter adormecido.
Eu me lembro de sentir que ninguém além de mim seria capaz
de cuidar dela.
Na Corte das Lamentações, eu encarei as folhas vermelhas
que caíam sobre mim, atingido mais uma vez pela constatação
de que eu estava morrendo e nunca mais veria Ava ou Orla.
Mesmo que meus pensamentos estivessem prestes a ser
interrompidos para sempre, eu tinha a certeza de que sentiria
terrivelmente a falta delas.
Quando levei Ava até o penhasco com vista para o vale de
Feéria e apontei para as cordilheiras e tribos, nunca teria
imaginado que um dia eu me jogaria intencionalmente na
frente da lâmina de uma Unseelie deslumbrantemente bela.
Shalini

U m véu branco de geada se espalhava sobre os vidros


antigos das janelas, obscurecendo minha visão do mundo
nevado lá fora. Respirei junto ao vidro, embaçando-o, e passei
a mão sobre ele para obter uma visão do reino.
O frio que atravessou o vidro me fez tremer, então segurei
o cobertor com mais rmeza ao meu redor para me aquecer e
olhei para a lareira. Mais uma vez, as chamas haviam se
reduzido a brasas. Eu não conseguia manter essa maldita
lareira acesa. A temperatura no castelo continuava a
despencar, baixa o su ciente para minha respiração formar
uma névoa ao meu redor. Neste momento, eu estava usando
três camadas de roupas: roupa térmica, pijama, então calças
de couro, uma camisa e dois suéteres — e um cobertor sobre
isso tudo.
Minha mente voltou dois anos no tempo, quando eu
trabalhava em um escritório e estava afogada em uma
torrente in nita de tarefas no Jira. Todas as noites, eu
trabalhava até às nove e comprava comida para viagem, curry
ou pizza. Eu estava cada vez mais entediada com minha vida,
até o dia em que entrei decidida no escritório e pedi demissão.
Gerald era um homem condescendente de 55 anos que,
uma vez, bêbado em uma festa da rma, a rmou que
antigamente já teve uma carreira de “dublê de pênis” na
indústria pornográ ca canadense. Foi profundamente
satisfatório dizer a ele que eu não voltaria.
Eu não precisava do dinheiro. Quem em sã consciência
trabalhava dez horas por dia quando tinha milhões na conta
bancária da última startup?
Os primeiros meses de aposentadoria foram incríveis.
Ioga, almoços por conta própria, livros intermináveis, um
tour de vinhos em Sonoma… Tudo começou com euforia, que
se transformou em contentamento, depois em complacência,
até se tornar o mais absoluto tédio. A quantidade de vinho
que eu estava bebendo continuava aumentando. Comecei a
beber cada vez mais cedo, primeiro às cinco, depois às quatro.
E será que começar às duas não era aceitável quando não
tinha nada mais para fazer?
Eu estava começando a car desesperada por uma história
para contar, uma aventura.
E foi assim que eu vim parar aqui, em um castelo gelado
com temperaturas que, contra todas as expectativas,
continuavam a cair.
Também foi assim que perdi minha melhor amiga há duas
semanas. E é por isso que ainda estou aqui, esperando pelo
seu retorno.
Eu não iria embora sem ela.
Apertei o cobertor ao meu redor, meus pensamentos mais
uma vez vagando para o desaparecimento de Ava.
Eu não estava lá para ver como aconteceu, mas Aeron,
sim. Ava havia caído através de um algum tipo de portal
mágico, e Torin a seguiu. Em questão de instantes, o portal
foi fechado por gelo e, logo em seguida, pedra. O trono do rei
se quebrou, e uma geada invernal tomou conta do reino.
Agora, o frio mordaz se instalava em cada recanto de
Feéria, em cada pedaço de tecido e vidro. Esfriava o chá
quente antes mesmo de ser servido e castigava as bochechas e
os dedos expostos. Fazia meus dentes baterem quando eu me
deitava na cama e se in ltrava em meu corpo como um
fantasma enquanto eu dormia. Aqui, o frio era um hóspede
indesejado que nunca ia embora.
Enquanto eu olhava por entre a geada na janela, um
grande dragão preto e vermelho cortava os céus tempestuosos
ao longe, as asas estendidas no pôr do sol. Um arrepio
percorreu minha espinha.
Eu sabia que estava segura no castelo — pelo menos, eu
achava que estava segura aqui. Mas o horror era instintivo, e a
visão do dragão fez meu coração acelerar. Eu não acreditava
que os humanos tivessem evoluído mentalmente para lidar
com a visão de dragões de verdade.
Até onde eu sabia, dragões não eram comuns em Feéria
também. Ninguém do castelo parecia querer se aventurar lá
fora, o que não ajudava a acalmar meus nervos.
Supostamente, o dragão era um sinal de que algum tipo de
magia sombria se aproximava, ou talvez um sinal de que o
dragão estava esperando as pessoas morrerem de frio para
que pudessem assar nossos corpos e fazer um banquete.
Dragões acumulavam coisas, e havia rumores de que este
dragão acumulava corpos.
Uma batida ecoou na porta, e eu pulei tão alto que quase
saí voando.
— Quem é? — perguntei.
— Aeron. — Sua voz atravessou a porta de carvalho.
Soltei um longo suspiro. Talvez ele me aquecesse. Eu ainda
não havia conseguido convencê-lo a compartilhar a cama
comigo — não porque ele não quisesse, mas por causa de
algum voto de castidade que não fazia sentido algum. Mas eu
podia perceber que ele estava tentado, cando por perto por
mais tempo, tomando a iniciativa de me beijar.
Com os dentes batendo, fui até a porta. Eu realmente o
havia visto pouco nas últimas duas semanas. Ele estava
trabalhando sem parar, entregando comida para famílias
famintas, tentando manter as casas aquecidas.
Quando abri a porta, ele estava de pé no corredor, cada
respiração sua exalando fumaça dos lábios azulados. Ele
segurava um prato com um único pedaço de pão, o que me
causou um aperto no coração.
— Entre aqui — falei. — Você está congelando.
— Pensei que pudesse estar com fome. — Meu estômago
roncou alto, e ainda assim eu não estava com muita vontade
de comer. O estresse tinha esse efeito sobre mim.
Eu me sentei na cama com o prato de pão sobre o colo e o
cobertor nos ombros.
— O que eu realmente quero, mais do que pão, é que você
que aquecido ao meu lado. Você cou lá fora no frio o dia
inteiro, não foi?
— Você precisa manter o fogo aceso. — Aeron foi até a
lareira. — Não quero que que aqui sozinha, congelando.
— Não entendo como tudo mudou tão rápido — falei. —
Há algumas semanas estávamos comendo banquetes inteiros,
e agora tudo o que restou foram tempestades de neve e
racionamento de comida.
Ele se ajoelhou, tentando reacender o fogo.
— Torin não queria se casar até que fosse absolutamente
necessário. Se Ava tivesse assumido o trono, estaríamos
desfrutando da primavera agora. Torin recebeu promessas de
dinheiro, que usaríamos para comprar comida. Os humanos
ofereceram uma quantia enorme para lmar as provações,
mas o contrato também requeria um casamento. Sem o
casamento, não farão o pagamento. Os celeiros estão vazios.
O gado foi abatido. Visitei casa após casa hoje. Os jovens e os
idosos estão cando doentes sem o calor e a nutrição de que
precisam. As pessoas estão comendo todos os animais de
fazenda. As galinhas estão congelando até a morte, então não
chocam mais ovos. Nada cresce em Feéria há anos. Já
estávamos nos últimos estoques quando Torin desapareceu.
Senti um aperto no peito. Alguém precisava assumir o
controle aqui.
— O que Orla está fazendo?
— Ela se recusa a assumir o trono. Ela tem certeza de que
Torin estará de volta a qualquer momento. E acho que ela tem
razão. Ela é completamente leal, e Torin nunca quis que ela
ocupasse o trono. Ele acha que ela é fraca demais e que a
magia a mataria.
Ele se virou para mim.
— A situação não está boa. Não temos mais tempo a
perder. Se Torin tivesse algum controle, sei que ele não
permitira que isso acontecesse. Se ele pudesse estar aqui, ele
estaria. Estou preocupado que ele esteja… — Aeron se calou
por um momento. — Que ele esteja preso ou algo assim.
A preocupação tomou conta de mim. Se Torin estava em
apuros, Ava também deveria estar.
Coloquei o prato de pão na mesinha de cabeceira.
— E esse dragão que eu sempre vejo?
Ele veio até a cama.
— É a maldição que os demônios jogaram sobre nós há
muito tempo. Quando a geada se aproxima, a magia sombria
toma conta. O dragão está circulando como um abutre,
esperando para devorar os mortos, para se alimentar da nossa
destruição. Nosso reino não os via há séculos, mas acho que
eles são atraídos pela miséria e pelo desespero.
Quando ele se sentou à minha frente, puxei o cobertor de
cima de mim e o enrolei sobre nós dois. Ele pegou minhas
mãos frias nas suas e as esfregou, depois soprou para
esquentá-las.
Quando olhou para mim novamente, seus cabelos
dourados caíam sobre seus olhos, e suas bochechas estavam
coradas pelo frio. Mesmo com o caos ao nosso redor, ele ainda
conseguia manter aquele charme perfeito e despreocupado.
— Eu não entendo o que aconteceu — disse ele. —
Continuo tentando juntar as peças do que vi, tentando dar
algum sentido a isso. Moria veio até aqui falar com Ava, mas
não permitiu que eu chegasse perto o su ciente para ouvir.
Em seguida, Ava foi até a sala do trono falar com Torin. E
então eu vi quando Torin a tocou, e o gelo se espalhou pelo
corpo dela. Mas eu não entendo por que Torin a congelaria.
Imagino que tenha sido um acidente, mas nunca o vi perder o
controle de sua magia antes.
Uma lembrança perturbadora cruzou minha mente, um
fragmento de uma conversa que eu tinha ouvido.
— O quanto você con a em Torin? — perguntei.
— Sinceramente, eu con aria minha vida a ele. Eu o
conheço desde que éramos crianças.
Eu me aproximei dele.
— Eu não con o em Moria — comecei. — Ava também
não con ava nela, mas seja lá o que ela disse para Ava, foi
convincente o bastante para perturbá-la. Eu não ouvi a
conversa inteira, mas consegui pegar um pouco. Moria acusou
Torin de matar a irmã dela. Acho que a irmã de Moria pode
ter sido a dona do diário que encontramos. Ela era namorada
ou amante de Torin, ou algo do tipo.
Aeron me encarou.
— Milisandia. Foi isso o que Moria disse? Milisandia
desapareceu. Mas é traição acusar um rei de assassinato ilegal.
E, claro, Torin não é um assassino. Ele só mata de acordo com
a lei.
— Então talvez Moria estivesse mentindo. Mas algo sobre
aquela conversa fez Ava sair correndo para falar com Torin, e
agora ambos desapareceram. E se Torin estava tentando
encobrir o que fez?
Aeron cou imóvel.
— Talvez você tenha ouvido errado.
Senti uma pontada de irritação.
— Eu não ouvi errado — falei, mais bruscamente do que o
necessário. Quando foi a última vez que eu comi?
Provavelmente já fazia tempo demais.
Ele me encarou, franzindo a testa.
— Torin nunca falou sobre Milisandia depois que ela
desapareceu, mas eu sempre presumi… bem, presumi que ela
tivesse fugido com outra pessoa, que tivesse começado uma
nova vida com alguém do outro lado das montanhas. Você
precisa entender, Shalini. Eu o conheço desde que éramos
garotos. Ele não é um assassino, e eu não vou tolerar uma
acusação dessas.
Mordi meu lábio.
— Tudo bem, mas quando Ava o questionou sobre isso,
Torin a congelou com sua magia. — Os dedos de Aeron ainda
estavam frios como cubos de gelo. — Você não acha isso
estranho?
— Vivemos em tempos estranhos.
Senti um aperto de tristeza no peito. No m das contas,
Torin parecia ser um milhão de vezes mais con ável do que
Moria.
— Então, como trazemos Ava de volta de onde quer que
ela tenha ido? — perguntei. — Não há algum tipo de magia?
Você deve ter bruxas Seelie por aqui que saberiam dizer onde
estão ou o que aconteceu com ela.
Uma luz alaranjada tremulava na lareira. Aeron realmente
fez um bom trabalho ao reacender o fogo.
— Orla enviou soldados em busca de uma anciã chamada
Modron — disse ele. — Ela mora muito além do congelado
rio Avon. Dizem que Modron é tão antiga quanto a própria
Feéria, e pode ser que ela seja a única pessoa capaz de
consertar o trono de Torin. Ela é uma contadora de verdades e
nos fornece vislumbres do que aconteceu no passado.
— Tão antiga quanto a própria Feéria? — Ergui as
sobrancelhas. — Como ela conseguiu viver por tanto tempo?
— Ninguém sabe. Alguns dizem que ela é uma deusa ou
um espírito da natureza. Eu acho que ela é uma Dearg-Due
que atrai humanos para Feéria e bebe litros do sangue deles.
Para manter seu coração batendo.
Meu lábio se curvou.
— Sério?
— Ninguém mais faz isso na corte. Meio que saiu de
moda. Acho que ninguém a vê há décadas.
Eu o encarei.
— Moria é uma Dearg-Due, não é? Ela voltou para o seu
reino?
Aeron sacudiu a cabeça.
— Não. — Seu rosto empalideceu. — Na verdade, ela tem
aconselhado Orla. Se o que você disse é verdade, que ela fez
acusações traiçoeiras contra Torin, devo informar Orla
imediatamente. Vamos trazê-los de volta — disse Aeron com
mais con ança do que sua testa franzida sugeria. — Tenho
certeza de que Modron nos ajudará a descobrir a verdade. E
tenho completa fé no rei.
O frio castigava minha pele, e eu assenti.
— Sabe, é impossível car aquecido aqui, mesmo com o
fogo. Isso não é um frio normal. Mas de onde venho, dizem
que o calor humano é a melhor maneira de aquecer outra
pessoa.
— É mesmo? — Ele ergueu as sobrancelhas, e seus olhos
assumiram um olhar sedutor.
Olhei para seus lindos lábios, e então de volta para seu
rosto. Como alguém podia ser tão perfeito?
Uma promessa sedutora brilhava em seus olhos.
— Não há um dia em que eu não pense em desistir do
meu voto.
Ele deslizou a mão pelo meu pescoço, puxando-me para
mais perto. Com o toque de seus lábios nos meus, brasas se
transformaram em um calor fundido dentro de mim, e então
eu estava empurrando-o para a cama.
Ele me beijou de volta, profundamente, e parecia o beijo
de um homem que havia pensado intensamente nisso, a cada
momento de cada dia.
Quando minha mão deslizou sob seu uniforme, sentindo
o calor de seus músculos abdominais, ele gemeu em minha
boca.
— Espere — sussurrou ele. — Eu não posso.
Maldito seja, Torin.
Uma batida alta soou na entrada do meu quarto, e eu
prendi a respiração, meu olhar pairando relutantemente sobre
a porta. Tentei não soltar um gemido alto de irritação.
Suspirando, notei que alguém havia deslizado uma carta
por baixo da porta, o que era estranho. Eu não me sentia
importante o su ciente para receber cartas aqui. Eu era
apenas uma humana que tinha ultrapassado sua estadia por
várias semanas.
Aeron beijou meu pescoço, seus lábios quentes contra
minha pele.
— Não vai abrir a porta? — murmurou ele contra meu
pescoço.
— Espere aí, Aeron. Já volto para você.
Por mais doloroso que fosse, eu me forcei a me afastar
dele, meu coração disparado. E se fossem notícia sobre Torin
ou Ava?
Peguei um envelope cor de creme com uma caligra a
marrom na superfície. Estava endereço a Shalini.
Quando o abri, encontrei um convite, inscrito com a
mesma tinta marrom e ornamentado nas bordas.
Querida Shalini,
Conseguimos localizar Modron, e nossos soldados estão
retornando com ela neste momento. Enquanto isso, temos
trabalhado arduamente para manter cada família alimentada e
vestida durante esta geada amaldiçoada. Esta terrível tragédia
que se abateu sobre nosso reino não é um acidente da natureza,
mas o agelo da maldição maligna dos demônios. Pedimos que não
culpe o rei Torin por sua ausência neste momento de necessidade.
Temos somente um verdadeiro culpado: os demônios que nos
assombram e nos atormentam por séculos.
Enquanto aguardamos a chegada de Modron, solicitamos a
presença de todos os membros da corte na sala do trono amanhã
ao anoitecer, para que possamos discutir a situação atual e
descobrir como trabalhar juntos.
Estava assinado por Moria e Orla. Senti um nó no
estômago, meu coração acelerou.
Eu não tinha certeza se estava pronta para descobrir o que
aconteceu com Ava, e eu sabia que não con ava em Moria
para chegar à verdade.
No fundo do meu coração, eu sabia que Ava estava em
apuros.
Com um lampejo de remorso, percebi que eu quase queria
permanecer no seguro casulo da ignorância com Aeron por
mais um tempinho.
Ava

E m Feéria, congelarei qualquer uma que eu ame, Ava. Matarei a


pessoa que eu amar. Essa é a maldição da rainha Mab. E é por isso
que você não pode vir comigo, minha criança trocada.
Meus olhos se abriram de repente, e uma tristeza gélida
tomou conta de mim. Eu ainda estava deitada de bruços sobre
as raízes na masmorra. Mais uma vez, minhas costas estavam
rasgadas. Eu não acho que eu tenha dormido por mais de
vinte minutos em… seja lá quanto tempo estava ali.
Toda vez que eu adormecia, via Torin novamente, como se
ele estivesse vivo diante de mim.
Quero car com você enquanto eu puder.
Virei a cabeça e olhei para cima. Uma suave luz prateada
perfurava o dossel de folhas acima de mim.
Esta cela era diferente da que eu tinha sido colocada
antes, aquela em que Torin atravessou a parede. Havia menos
luz e era mais apertada. Meu olhar percorreu as cinco tigelas
de comida que tinham trazido para mim. Desta vez, eles
estavam me alimentando, mas eu não queria comer.
Eu não tinha apetite nenhum, seja por causa da infecção
ou porque eu tinha matado o homem que amava. Torin. A
memória disso era como o peso de milhares de pedras sobre
meu peito, esmagando minhas costelas.
Minha vida normal parecia a milhões de anos de
distância. Eu mal conseguia me lembrar de Feéria, quanto
mais do apartamento que compartilhei com Andrew.
O mundo humano parecia um sonho distante e
acinzentado, vago e irreal. Eu me lembrava vagamente de um
quarto com paredes brancas e uma cozinha no andar de baixo.
Um edredom azul. O bar para onde eu ia com Shalini toda
semana…
Parecia totalmente coisas de outro planeta.
Minhas lembranças de Feéria eram um pouco mais
vibrantes — o castelo escuro imponente, os vales nevados e
as montanhas. Mas pensar nisso doía. Na maioria das vezes,
eu pensava em Torin.
O rei Seelie e as quatro paredes apertadas ao meu redor
eram todo o meu universo agora.
Estremecendo, alcancei a ferida nas minhas costas. A pele
estava quente e inchada. Infectada novamente. Eu me sentei,
o que fez minha cabeça girar e meu estômago se contrair de
náusea. Cada centímetro de mim estava sensível ao toque,
meu corpo alternando entre o calor e o frio.
Fechei os olhos, delirante. Meu cérebro continuava me
forçando a reviver aqueles momentos com as folhas
vermelhas rodopiando ao nosso redor e as vinhas que
pareciam vivas estavam se contorcendo sobre as colunas.
Por um momento, durante a luta, pensei que as folhas e
vinhas estivessem respondendo a mim, mas deve ter sido só
imaginação. Eu estava desorientada pela dor e pela febre,
perdendo a noção da realidade.
O som da fechadura chamou minha atenção, e a porta
rangeu ao abrir. A enorme gura de Morgant pairava na
entrada. Se eu tivesse alguma energia e força, eu o teria
atacado, mas eu nem conseguia car de pé. Uma luz quente
invadiu o cômodo, vinda das tochas no corredor. Morgant
franziu a testa para a comida no chão.
— Por que você não está comendo?
Eu não lhe daria a satisfação de uma resposta, então
simplesmente o encarei de volta.
— Está tentando morrer aqui? — perguntou ele
bruscamente. — Porque neste reino, Mab, a Imperatriz do
Cromm Sombrio, tem o privilégio de escolher quando seus
prisioneiros vivem ou morrem. E é ela quem escolhe como
perecem.
Inclinei a cabeça, mantendo a boca fechada.
Ele farejou o ar.
— Sinto cheiro de podridão.
Eu o dirigi um sorriso sombrio.
— Bem, Morgant, acho que a culpa é minha. Consigo
perceber que pensar não é sua maior habilidade e que você
provavelmente não tem mais do que dois neurônios se
esfregando um no outro, mas quando você tranca alguém em
uma cela pequena por vários dias, a pessoa começa a feder. E
sabe de uma coisa, Morgant? Eu realmente não dou a mínima.
— Por quê? — questionou ele bruscamente.
— Por que o quê? — retruquei.
— Por que você não se importa?
Eu o encarei, a fúria crescendo dentro de mim.
— Você e sua rainha zeram de tudo para deixar claro
para mim que eu não tenho controle nenhum. Vocês
controlam quando eu tenho comida ou água. Controlam se eu
vivo ou morro. E me forçaram a matar o homem que eu
amava.
— Você tem controle. Você tem magia, mas se recusa a
usar. Sabia que pode se curar? — Ele se agachou, olhando
para mim como se estivesse investigando uma espécie
alienígena. — Você quer vingança?
Com a pergunta, uma pequena centelha de luminosidade
se acendeu dentro de mim. É claro que eu queria vingança. Eu
queria matar ele e sua rainha, mas eu não estava em posição
de realizar meus desejos. Mordi meu lábio.
— A rainha é sua mãe? Ou você é o consorte dela? Ou
ambos?
Seus lábios se curvaram.
— Ela é minha mãe.
— Vejo que você herdou as asas pretas e a alma perversa.
— Todos nós temos asas pretas na família real — disse ele
bruscamente. — Alguns são só muito estúpidos para usá-las,
e você não sabe nada sobre a minha alma.
— Certo.
Ele farejou o ar.
— Suas costas estão infectadas novamente. Você se recusa
a se curar.
Quando não respondi, ele me pegou pelo ombro e me
virou para ver minhas costas. Eu estava usando as mesmas
roupas pretas sujas e ensanguentadas há dias, e a falta de
oportunidades de se tomar um banho aqui explicava por que a
ferida tinha infeccionado tão rápido. Resmunguei enquanto
ele rasgava minha camisa, expondo meu ombro infectado.
— Com licença? — retruquei. — Você não tem
exatamente o melhor jeito de lidar com as pessoas.
— E ainda assim, não há mais ninguém aqui para te
ajudar, não é? — disse ele em um tom calmo.
Fechei os olhos. Se Torin estivesse vivo, ele me ajudaria.
Afastei o pensamento doloroso quando Morgant passou os
dedos sobre a região infectada. A dor me fez franzir a testa,
mas em poucos instantes, a magia calmante de Morgant
percorreu minha pele, curando-a como água morna.
Por que ele estava me curando? O que mais essas pessoas
queriam de mim?
Quando ele terminou, alonguei o ombro, respirando
profundamente. Eu me virei para ele, meu cabelo sujo caindo
na frente dos meus olhos.
— Por que você está aqui? — perguntei.
— Coma sua comida — disse ele rudemente.
Ele pegou uma das tigelas metálicas do chão, uma cheia de
arroz e vegetais, e a empurrou para mim. Eu encarei a comida,
quase histérica com o pensamento de que essas pessoas se
orgulhavam de serem vegetarianas enquanto claramente se
deleitavam com o sadismo.
Isso parecia mais uma jogada de poder. Ele estava
ordenando que eu comesse só porque eu não queria. Morgant
simplesmente queria que eu soubesse que era ele quem estava
no comando. Meu olhar encontrou o dele, e eu quei em
silêncio novamente.
— Os Unseelie não são fracos — disse ele em voz baixa.
Inclinei a cabeça.
— E eu não sou uma de vocês. Vocês me enojam.
Tudo aconteceu num piscar de olhos, seu braço poderoso
estendendo-se e me agarrando pelo pescoço. Em um instante,
estávamos no chão e, no próximo, ele estava de pé enquanto
me erguia pela garganta e me sufocava.
— Você tem mais poder do que pensa, Garota Perdida, e a
única maneira de sobreviver é aprender a usá-lo. Eu quero que
você sobreviva. Mas somente através da dor se alcança a
verdadeira força. Entende?
Ele me largou no chão e eu caí com força, a dor
percorrendo minha coluna.
O que não te mata te fortalece.
E foi assim que eu acabei de ser brutalizada por um feérico
musculoso, à la Nietzsche.
— Você perfurou o rei Seelie — disse ele. — Agora é uma
de nós. Todo Unseelie é possuidor de magia, mas você não
nos será útil até que consiga invocar a sua.
Ele se virou. A porta bateu atrás dele e eu ouvi o trinco
deslizar. Será que realmente achavam que eu seria um deles?
Que eu emprestaria minha magia ao reino se pudesse invocá-
la?
Mas uma única coisa que Morgant disse ardia em minha
mente. Uma pequena fonte de luz rodeada de sombras. Um
lampejo de sentido para a minha vida.
Vingança.
As pessoas não precisam de conforto para prosperar, ou
prazer; elas só precisam encontrar um sentido.
Fechei os olhos, e o eco da voz de Torin sussurrou na
minha cabeça.
Quero car com você enquanto eu puder.
As palavras dele irradiaram em meu peito.
Quando abri os olhos novamente, as folhas vermelhas do
chão da prisão haviam se erguido no ar.
Shalini

E u segurava uma xícara de chá frio nas mãos enluvadas


enquanto caminhava pelo corredor. Ao meu lado, Aeron
soltou um suspiro profundo, o que fez com que surgisse uma
nuvem de vapor ao redor de sua cabeça. Ele se inclinou para
mim, sussurrando:
— Tentei perguntar sobre o conserto do trono de Torin.
Moria parecia especialmente desinteressada em fazer com
que isso aconteça.
— Há algo muito errado com ela — falei para Aeron
entredentes.
Entramos na sala do trono, meu coração disparado. Ele
sabia o quão nervosa eu estava para descobrir o que havia
acontecido com Ava, então preparou para mim um chá de
ervas soporíferas. A bebida esfriou quase que imediatamente.
O salão estava lotado de um lado a outro por uma
multidão Seelie, cada espaço preenchido por um feérico
ansioso para saber o que acontecera com seu rei. A raiva e a
tensão faziam o cômodo zumbir, uma vibração crescente de
desespero. Era a energia nervosa de uma multidão faminta e
em pânico, o que me deixava com os nervos à or da pele.
Até ler a carta no dia anterior, não tinha me ocorrido que
as pessoas poderiam culpar Torin por seu próprio
desaparecimento. Mas é claro que culpariam. Era seu dever
tomar conta delas, e ele não estava presente. O rei havia
sumido quando mais precisavam dele. Seja qual fosse a razão,
não importava — para os Seelie, um rei deve ser forte e capaz
de proteger seu povo. Um rei deve defender a coroa contra
todas as ameaças, ou não está apto a governar.
Neste momento, não me importava se as pessoas
pensassem que eu era uma humana rude que havia
prolongado demais sua estadia ali. Ava era minha melhor
amiga, e eu queria saber o que estava acontecendo. Então fui
abrindo caminho pela multidão até chegar mais perto da
frente, ignorando os resmungos.
Ao atravessar o amontoado de gente, avistei o trono
quebrado do rei. O trono da rainha e o que restava do de Torin
estavam envoltos por uma camada de gelo, e estalactites
pendiam dos arcos de pedra acima.
Dei uma olhada para Aeron. Seus lábios estavam
apertados em uma linha rme. Senti que ele estava tão
nervoso quanto eu, mas não queria admitir.
Por m, Orla entrou por uma porta de madeira atrás dos
tronos e foi até o estrado gelado, com Moria em seu encalço.
As duas não poderiam parecer mais diferentes, e cou
imediatamente claro quem estava realmente no comando.
Orla tinha uma aparência frágil, tremendo em um casaco de
pelagem preta. Ela parecia ainda menor do que da última vez
que eu a tinha visto, como se o estresse da situação a estivesse
diminuindo sicamente.
Moria, por outro lado, parecia quase intocada pelo frio.
Ela usava um vestido de seda vermelho-escuro que se abria
em um decote, exibindo a pele de porcelana. Luvas pretas
compridas cobriam as mãos e antebraços, e ela usava um
batom de um vermelho intenso. O cabelo cor de vinho estava
preso em um penteado alto, e uma capa da mesma cor cobria
seus ombros.
Ele ergueu o queixo, encarando a multidão.
— Obrigada a todos por se juntarem a nós em nosso
momento de tragédia. Somos o reino Seelie, e nosso povo
governa esta terra há milhares de anos. Nos momentos em
que nossos reis e rainhas não puderam governar, sempre nos
unimos sob a orientação das princesas e reis menores do
reino.
Orla ergueu o rosto, seus olhos claros não conseguindo
focar na multidão.
— Modron está a caminho, e ela nos ajudará a descobrir a
verdade. — Sua voz soou fraca e áspera. — Enquanto
aguardamos sua chegada, Moria achou que deveríamos ouvir
todos vocês. Por favor, compartilhem conosco as di culdades
que enfrentam agora que a geada está tomando conta do
nosso reino.
A quietude pairava sobre o ambiente, o silêncio
interrompido apenas por sons de tosse e dentes rangendo.
Depois de um minuto, alguém lá no fundo gritou:
— Encontrei minha mãe no chão de casa. Sua pele estava
preta por causa da geada.
— Meus bebês não param de tossir, e não consigo manter
a casa aquecida o su ciente! — exclamou uma mulher. —
Precisamos de alguém no trono. Estou disposta a fazer isso se
ninguém mais quiser. De verdade. Eu posso?
— Meus lhos estão morrendo de fome — rosnou um
homem robusto. — Quanto tempo vocês esperam que esse
racionamento dure? Nunca precisamos racionar. E me
perdoem a expressão, mas onde diabos está o rei quando
precisamos dele? Talvez ele pudesse aparecer por aqui e
explicar aos meus lhos pessoalmente por que eles só podem
fazer uma refeição por dia.
— Coloquem alguém no trono! — O grito de uma mulher
ressoou pelas abóbadas altas. — Se nosso rei não é capaz de
cuidar de nós, ele não é nosso rei.
Tecnicamente, isso não se con gurava como traição?
Torin ainda era o rei, e pedir sua substituição deveria ser um
crime sério. Mas ele não estava ali, não é mesmo?
Moria abriu os braços.
— Obrigada, amigos Seelie. Enfrentaremos isso juntos.
Em alguns dias, quando Modron chegar, obteremos respostas
e elaboraremos um plano.
Orla franziu a testa para ela. Parecia incerta, mas não
estava dizendo nada.
Moria gesticulou para ela.
— A princesa Orla e eu gostaríamos de enfatizar mais
uma vez que a causa de toda a miséria e tragédia que se
abateu sobre nós são os demônios, e somente os demônios.
Eu sei que vocês estão frustrados com o rei Torin, mas foram
os demônios que amaldiçoaram Orla e mataram seus pais.
Foram eles que amaldiçoaram nosso reino. Eles são a razão
pela qual seus lhos estão morrendo de fome. São a razão
pela qual seus pais estão congelando até a morte em frente às
lareiras frias. Por favor, poupem sua raiva para eles. Os
demônios são a razão pela qual vocês tiveram que abater seu
gado até não sobrar quase nada, e pela qual seus lhos
perdem as forças. Nós sempre os tememos. Nem mesmo os
chamamos pelo devido nome, mas já fomos fortes outrora, e
talvez sejam os demônios que deveriam nos temer. Talvez não
devêssemos ter tanto medo de chamá-los por seus nomes,
porque o que há de tão grandioso e aterrorizante em ser um
Unseelie? — Sua voz estava permeada de veneno.
Um murmúrio de concordância se espalhou pela multidão.
Enquanto eu observava o cômodo, a multidão parecia
completamente extasiada.
Moria ergueu a mão.
— Minha irmã, Milisandia, sempre disse que são os
Unseelie que deveriam nos temer — continuou ela, andando
de um lado para o outro pelo estrado gelado. — Antes de
desaparecer, ela me alertou que chegaria o dia em que
precisaríamos lutar contra eles. Ela sempre dizia que
deveríamos declarar guerra aos Unseelie e seus aliados
traidores dentro da nossa corte. Eles atacaram nossa família
real, amaldiçoando todos eles. Amaldiçoaram nosso reino por
séculos, fazendo com que a fome e o frio se abatessem sobre
nós. Então, não culpem o rei Torin pela visão das costelas e
rostos magros de seus lhos. Ele pode não estar aqui, mas ele
não é um Unseelie, não é? Ele não os ama, não é? Ele não nos
abandonaria aqui para morrer de fome a menos que tivesse
uma razão muito boa. E devemos permanecer unidos contra
nossos inimigos milenares.
Algo não fazia sentido em seu discurso. Super cialmente,
parecia que ela estava tentando proteger o rei da raiva por sua
ausência, dando aos seus súditos outro bode expiatório. E as
pessoas chamadas de demônios durante centenas de anos
eram um bode expiatório perfeito.
O problema é que eu sabia que ela odiava Torin.
Por que ela iria querer proteger o homem que acusava de
assassinar a irmã?
Ava

M esmo nesta pequena cela de prisão, as sementes da minha


vingança estavam começando a germinar — a única e
exclusiva razão da minha existência. O sentido que iluminava
minha vida.
Eu achava que jamais voltaria à minha antiga vida, nem
veria Shalini novamente. Mas eu poderia tentar matar a
rainha, e isso era o su ciente para estampar um sorriso em
meu rosto.
E Morgant tinha razão. Todo Unseelie possuía magia —
até mesmo eu.
Raios de luz penetravam através das folhas lá em cima,
salpicando o chão de madeira retorcida com ocos dourados.
Enquanto eu olhava para o alto, pensava nos olhos azuis e
melancólicos de Torin enquanto ele se sentava na cama ao
meu lado. Enquanto pensava em sua mãe. Por alguma razão,
minha magia funcionava melhor quando eu pensava nele.
Senti uma onda de poder percorrer meu corpo. Tentáculos
de calor surgiram sob meus pés e subiram pelas minhas
pernas e coxas, em seguida espalhando-se pelo meu estômago
e peito. Eu não me sentia sozinha quando usava minha magia,
porque conseguia sentir a energia vital da árvore, sua
consciência. Imaginei os galhos movendo-se e balançando
acima de mim, permitindo a entrada de mais luz solar.
Eu podia sentir sua alma.
Os galhos sobre minha cabeça se abriram, e fui banhada
pela luz do sol. Inclinei a cabeça para trás. A sensação do calor
na minha pele era magní ca, um presente desta árvore que eu
acabei por transformar em meu novo lar.
Inspirei profundamente, absorvendo os raios solares. Um
formigamento se espalhou pelas minhas costas.
Mas…
Mesmo com esse poder, eu ainda sentia como se alguma
parte da minha magia estivesse presa dentro de mim. Meu
poder era como o magma aprisionado sob a terra congelada.
Quando ouvi o som de metal contra metal, recolhi a magia
para dentro de mim. Os galhos das árvores se moveram de
volta ao seu lugar, cobrindo o cômodo de sombras mais uma
vez. Algumas folhas caíram no chão da cela.
Morgant abriu a porta e trouxe uma pequena banheira de
cobre para dentro da cela. Ele a colocou no chão, junto com
roupas limpas e um sabonete em barra.
— A rainha decidiu que tenho permissão para me lavar
agora? — perguntei.
— Não pedi permissão a ela.
— Então por que está se empenhando em me deixar mais
confortável?
— Porque você é uma de nós — disse ele.
Um sentimento de culpa tomou conta de mim. Eu era um
deles porque havia matado Torin.
— Você poderia ter curado ele, não é? — perguntei.
Morgant deu de ombros.
— Quem sou eu para desa ar as ordens explícitas da
rainha?
Cerrei a mandíbula.
— Você e sua mãe têm um relacionamento realmente
perturbador.
— Os métodos dela podem até parecer brutais — disse ele
—, mas os interesses da família são sua prioridade. Os Seelie
têm tentado invadir nosso reino há décadas. Torin enviou um
assassino que matou o lho dela. Meu irmão. Mab é a razão
pela qual permanecemos um reino soberano. Mas nosso
sucesso depende de seus métodos cruéis ao nos proteger. Sem
ela, seríamos dominamos pelos Seelie.
Senti um nó na garganta.
— Ela me disse que eu seria libertada se matasse o rei.
Achei que vocês cumprissem suas promessas.
Seus olhos cor de âmbar cortaram a escuridão.
— Talvez essa fosse a intenção, antes de você tentar matá-
la. Mas a única razão de você estar viva é que um dia pode ser
útil para nós.
Ele abriu a porta e a bateu atrás de si. Ouvi a tranca voltar
ao seu lugar.
Com um suspiro, eu me virei novamente para as plantas
espinhosas que subiam pelo tronco da árvore e pelas paredes
de pedra. Pensei em Morgant parado no salão enquanto Torin
morria na frente dele.
Sob meu controle, as vinhas começaram a se mover.
Fechei os olhos, sentindo meus pensamentos se mesclarem
com os da árvore que havia se tornado meu lar, relaxando sob
o calor do sol em sua copa. De onde eu estava, conseguia
sentir as raízes enterrando-se no solo, entrelaçadas com uma
delicada rede de micélio e fungos que se espalhava sob o
reino. Respirei fundo, empolgada. Cada ser vivo aqui estava
conectado e interagindo entre si. Comunicando-se.
Mas a árvore estava sob um fardo pesado. As pedras
esmagavam seus galhos, prendendo-a sob seu peso. O poder
percorria meu corpo, mas eu sentia o peso das pedras em meu
peito.
Abri os olhos abruptamente, sem fôlego.
Eu não sabia muito bem por que isso importava, mas
continuava me perguntando o que eles haviam feito com o
corpo de Torin. Eu estava tomada pela sensação horrível de
que fariam um espetáculo com ele. Isto é o que os reis feéricos
faziam: colocavam a cabeça do inimigo em uma estaca e
penduravam o corpo nos portões do castelo.
Um inimigo vencido.
Eu não fazia ideia de como eram as tradições funerárias
dos Seelie, mas sabia que eles gostariam de ter o corpo de seu
rei de volta e que ele merecia ser enterrado ao lado dos pais.
Senti um aperto no peito ao pensar nisso. Quantos dias
haviam se passado? Eu não queria lembrar dele como um
cadáver, mas me sentia responsável por levá-lo de volta à
Feéria.
Morgant achava que eu poderia ser útil para ele. Mas eu
tinha outros planos.
Um dia, quando eu tivesse total controle sobre minha
magia, eu libertaria a árvore e enrolaria essas vinhas
espinhosas ao redor de sua garganta.
Shalini

M eus nervos estavam à or da pele enquanto eu esperava


que Moria subisse no estrado congelado mais uma vez.
Modron — a anciã da verdade — chegou hoje mais cedo.
Nunca foram os homens os encarregados de viver em
cavernas e prever o futuro, não é mesmo? Eram as anciãs do
mundo que contavam as fofocas e histórias sobrenaturais.
O silêncio se abateu sobre o salão, quebrado somente pelo
arrastar de pés e pelo farfalhar de capas e casacos de pele. Um
som de tosse ecoou pelo teto. Sombras projetadas pela luz
bruxuleante das tochas utuavam pelo salão. Não era a
atmosfera mais festiva do mundo.
Enquanto esperávamos, sussurros irrequietos ecoavam
pelo corredor. Por m, Moria subiu no estrado, o barulho de
seus saltos ressoando no chão. Ela se abraçou em uma
demonstração de vulnerabilidade.
— Sem uma liderança, estamos passando fome aqui em
Feéria, amaldiçoados pelos Unseelie. E se quisermos seguir
em frente, precisamos saber o que aconteceu com o rei Torin.
Convocamos a senhora Modron para que possamos
nalmente saber o que aconteceu com o nosso rei Seelie.
Meu coração batia a mil por hora enquanto eu esperava
para descobrir o que havia acontecido com minha melhor
amiga. Eu me inclinei para Aeron, e ele passou o braço sobre
meus ombros.
Vestida de cinza com um véu de seda sobre o rosto, a
anciã entrou no salão, com um braço entrelaçado ao de Orla.
Eu não sabia quem estava guiando quem. Ambas pareciam
frágeis e propensas a escorregar a qualquer momento no chão
coberto de gelo.
Através do no tecido de seu véu, vislumbrei o rosto
ossudo e branco de Modron. Lembrava estranhamente uma
caveira, e um arrepio percorreu minha espinha. Uma de suas
mãos ressequidas segurava uma bengala retorcida. As longas
unhas prateadas se enroscavam ao redor do cabo de madeira,
e cada baque da bengala causava ssuras no gelo enquanto ela
atravessava o estrado.
Por m, ela parou, e Orla se afastou dela.
Através do véu, vislumbrei seus grandes e cavernosos
olhos.
— Vocês desejam saber o que aconteceu com seu rei. E a
noiva dele. — A voz dela não passava de um silvo, mas de
alguma forma conseguiu atravessar o salão e me causar um
arrepio na espinha. — Vocês desejam ver o passado. — Ela
soltou uma risada baixa e perturbadora. — Eu costumava
viver entre vocês. Nenhum dos que estão vivos se lembra
daqueles tempos. Mas outrora, eu vivia aqui na corte. Mas é
mais fácil me deixar lá fora, na natureza, não é? Até
precisarem de mim. — Mais uma risada baixa.
Ande logo com isso, mulher. Tudo parecia um pouco
passivo-agressivo demais para o que precisávamos naquele
momento.
Ela ergueu o véu, proporcionando a visão do queixo
envelhecido e dos longos dentes brancos, que eram
perturbadoramente a ados como lâminas. Os lábios eram
escuros e reluzentes. Ela sorriu e inspirou profundamente.
Quando soltou o ar, uma nuvem saiu da boca, uma névoa
densa que se estendeu sobre o estrado. Lentamente, guras
começaram a se formar dentro da nuvem.
Uma bela mulher de cabelos brancos estava sentada em
um trono de raízes de árvores, com asas pretas em suas
costas. Ali, diante do trono, estava Torin com uma espada em
mãos.
Engoli em seco. Torin estava ali como se a estivesse
protegendo.
Por um momento, eu não fazia ideia do que estava vendo.
Mas a reação furiosa da multidão rapidamente me deu uma
dica.
Quando olhei para Aeron, vi uma expressão de horror
estampada em seu rosto. Eu me inclinei para mais perto dele
e sussurrei:
— Unseelie?
Seus olhos estavam xos em Modron enquanto ele
assentia.
— Não entendo — disse ele, soando atordoado. — Ele
está diante do trono da rainha Mab.
Meu pulso acelerou. Eu estava começando a ter uma ideia
do plano que Moria havia tramado, dos os que ela havia
tecido para formar uma monstruosa tapeçaria de traição.
Ela cou boquiaberta diante da imagem, uma das mãos
sobre a boca.
— O que é isso? — perguntou Orla.
Pelos deuses. Isso era terrível e constrangedor. Orla não
conseguia ver a imagem, e cou ali no escuro enquanto todos
viam o irmão dela diante da rainha inimiga.
— Ele está com a rainha Mab! — gritou Moria em uma
imitação de choque. — De pé diante de seu trono. Ele a está
protegendo.
A visão desapareceu no ar sobre os tronos, e uma nova se
formou — um rosto que fez meu coração disparar. O rosto
bonito de Ava entrou em cena, só que agora ela tinha dois
chifres curvos e acobreados despontando de sua cabeça. Seus
olhos haviam se tornado verdes, e ela estava inclinada para
trás apoiada em Torin. Os dois estavam a cavalo em um
caminho que parecia montanhoso, e uma oresta de árvores
vermelho-sangue se abria atrás deles. Enquanto Ava se
inclinava para trás contra Torin, podia-se ver a expressão de
êxtase no rosto dele, os olhos fechados enquanto ele
saboreava o momento.
Gritos de raiva ecoaram no ar, gritos de traidor e vadia
demoníaca, e eu tive vontade de me encolher nas sombras.
Será que essas visões eram reais?
Embora eu estivesse feliz por ver que os dois estavam
ilesos, senti um nó no estômago ao ver os chifres. Para mim,
não importava se ela era Seelie ou Unseelie, e aparentemente
para Torin também não. Mas a multidão ao meu redor
clamava por sangue.
Eu me inclinei para Aeron e sussurrei:
— Você tem certeza de que isso é real?
A expressão consternada em seu rosto me disse que sim.
Ele estava completamente pálido enquanto encarava Modron.
Tive a sensação de que ele queria proteger o rei e sua irmã,
mas também não queria me deixar.
Uma aura escarlate de perigo e violência emanava de cada
canto do salão, fazendo meus músculos enrijecerem.
— Ele nos abandonou pelos malditos demônios! — gritou
alguém. — E ainda vamos deixar o trono livre para esse
infeliz?
Uma sensação terrível começou a subir pela minha
espinha. Moria tinha falas prontas para este momento, não é?
Ela tinha incitado a multidão a um estado de fúria, e então
mostrado a eles a evidência mais condenatória possível.
Moria levou as mãos às bochechas enquanto olhava para
as imagens.
— Mas… isso não faz sentido, não é? Por que nosso rei se
juntaria aos Unseelie? — Seu tom era mais teatral do que
Hannah G. na quarta temporada de Atadas e Costuradas
quando ngiu um aneurisma cerebral para levar Cole ao seu
quarto de hotel. — Minha irmã já foi sua pretendente —
continuou Moria —, e ninguém odiava os demônios mais do
que ela. Torin não teria sido capaz de assassinar Milisandia,
não é?
Eu já tinha ouvido a opinião dela sobre esse assunto.
— Modron! — gritou ela. — Por favor, mostre-nos o que
aconteceu com Milisandia! Por favor.
Era uma performance com toda a so sticação de uma
garota de 13 anos cantando no musical Really Rosie, mas essas
pessoas nunca tinham assistido a um musical com atuação
ruim, então elas não sabiam a diferença.
— Não — gritou Orla. — Não é por isso que estamos
aqui.
Mas Modron não deu ouvidos à princesa Orla. Com um
som baixo e sibilante, Modron cuspiu outra nuvem no ar, e a
névoa acinzentada tomou forma acima do estrado. Na névoa,
entrou em cena uma mulher bonita, de cabelos vermelhos
como sangue, vestindo uma capa branca. Ela estava em um
templo em ruínas coberto de neve. Uma lágrima escorria pelo
seu rosto, e sua expressão parecia angustiada.
Na névoa acinzentada, Torin tomou forma ao seu lado,
sua expressão sombria. E quando ele se virou bruscamente
para longe dela, ela agarrou seu braço. Ele se virou de volta
para ela, com uma expressão horrorizada no rosto. Gelo
passou do corpo dele para o dela, congelando-a a partir do
ponto onde seus corpos se tocaram.
Moria gritou, e o som tomou conta do salão.
— Não é o que parece! — gritou Orla. — Não é o que
parece! — Ela estava gritando isso repetidamente, mas sem
maiores explicações, o que não era exatamente útil.
Uma névoa tomou conta dos meus pensamentos
enquanto eu assistia ao que Modron nos mostrou a seguir —
o próprio rei enterrando um corpo no Templo de Ostara.
Cavando a terra invernal com uma pá.
Moria se virou para Orla.
— Você sabia disso, princesa. — Sua voz estava carregada
de veneno. — Você sabia antes de eu mostrar. O que mais
você sabe? Você também está em conluio com os ratos
Unseelie?
Mas tudo o que Orla conseguia dizer era:
— Eu não posso falar sobre isso. — Ela cambaleou para
trás no estrado, parecendo frágil.
Por que ela não estava explicando?
A multidão estava gritando com Orla agora, suas vozes
histéricas. Ela deu alguns passos para trás no estrado. Alguns
guardas vestidos com uniformes azuis, como Aeron,‐
posicionaram-se diante da princesa. Mas agora eles pareciam
incertos, como se talvez não devessem protegê-la.
O corpo de Aeron estava tenso ao meu lado, e ele se
inclinou para sussurrar:
— Saia daqui imediatamente.
Um lampejo de fúria brilhou nos olhos cor de bordô de
Moria.
— Torin é o único de sua família que não recebeu uma
maldição. Talvez os Unseelie o tenham poupado porque
poderiam usá-lo.
Isso tudo tinha tomado um rumo perfeito para Moria.
Todos os os sórdidos haviam sido tecidos bem diante de nós,
formando a imagem que ela queria que nós víssemos.
Talvez Modron estivesse dizendo a verdade, mas isso não
signi cava que era toda a verdade. Depois de 24 temporadas
de Atadas e Costuradas, eu sabia reconhecer uma edição
tendenciosa quando via uma.
As visões foram cuidadosamente selecionadas.
— Eu jamais esperaria descobrir que nosso rei nos traiu
— gritou Moria, sua voz tornando-se cada vez mais selvagem.
— Eu jamais sonharia que ele seria capaz de assassinar minha
irmã para proteger os Unseelie.
Uma clara mentira. Ela já o havia acusado de assassinar
sua irmã. Mas quem acreditaria em mim, a amiga humana da
“vadia demoníaca”?
— Milisandia queria guerra com os demônios, e ele não.
— Ela começou a andar pelo estrado, adotando um tremor na
voz que, francamente, fazia com que ela soasse
desequilibrada. — Agora ele vive entre eles. Com a rainha
deles. E é por isso que devemos nos manter vigilantes. Quem
mais entre nós tem simpatia pelos Unseelie? Quem sabe
quem mais entre nós pode estar tentando destruir nosso
reino de dentro para fora?
Mas eu tinha lido o diário de Milisandia, e ela nunca disse
nada sobre os Unseelie. Era tudo sobre como Torin era lindo e
como ele não podia tocá-la. Havia alguma coisa sobre a
premonição de Moria de que ele a mataria e enterraria seu
corpo no Templo de Ostara. Moria sabia que isso aconteceria
mesmo antes de acontecer.
Minha mandíbula enrijeceu.
Eu não sabia o que Torin e Ava estavam fazendo, mas
sabia que Moria estava mentindo descaradamente.
Foi só então que eu percebi que os olhares da multidão
haviam se voltando para mim, cheios de suspeita. Aeron
deslizou o braço ao meu redor, sua mão se movendo para o
cabo da espada.
À minha volta, a multidão entoava o nome de Moria
enquanto Aeron me conduzia para fora do salão, seu braço
poderoso como um escudo ao meu redor.
— Se esconda, Shalini — sussurrou ele. — Eu preciso
levar você e Orla para um lugar seguro.
Ava

E u estava deitada de costas, a garganta seca como areia.


Sabe-se lá por quê, mas Morgant desistiu e parou de me
trazer comida e água há vários dias.
Abaixo de mim, as raízes eram retorcidas e nodosas, e
fechei os olhos, desejando que elas se movessem um pouco.
Mentalmente, adentrei a consciência da árvore, sentindo
o glorioso calor do sol sobre uma coroa de folhas tocadas pelo
fogo. Absorvi o poder da luz que a alimentava. Quando eu
estava mentalmente fundida com a árvore, não sentia mais
sede.
Sob minhas costas, as raízes soltaram um lamento,
nivelando-se. Encarei os galhos escuros acima de mim,
desejando que eu pudesse invocar a chuva.
A habilidade mais recente desenvolvida por mim era ouvir
vibrações através das raízes e do micélio. Agora, eu conseguia
ouvir os sons dos passos pelo castelo, avisando-me quando
um grupo de guardas marchava escada acima.
Pelas marcas que eu havia feito na pedra, eu tinha certeza
de que estava trancada nesta cela há mais de um mês. A cada
dia que passava, minha magia se tornava mais forte e estável.
Eu conseguia convocar vinhas à vontade, fazê-las cortar o ar
como lâminas. Conseguia torcê-las em um nó. Conseguia
compelir os galhos das árvores a se abrir. Quando chovia,
conseguia separá-los para receber mais água.
Dia e noite, eu conversava com Shalini e Torin. Às vezes,
eles pareciam tão reais que era como se estivessem aqui.
Eu quase conseguia ouvir Torin na cela comigo, me
chamando de criança trocada.
Meu estômago roncou. A falta de comida me deixava
letárgica.
Às vezes, eu mergulhava em sonhos nos quais eu estava
em casa novamente, na minha casinha suburbana com minha
mãe. Quando os sonhos começavam, eu me sentia
completamente em paz, tomada de amor. Era essa a volta
para casa que eu queria quando pedi isso ao portal. Eu queria
assistir a lmes com minha mãe ou me sentar à mesa da
cozinha com ela em um silêncio confortável enquanto ela lia
as notícias. Mas nos sonhos, ela sempre saía em direção a
outro cômodo. Ela vagava até a cozinha para fazer o jantar, e
lentamente a sensação de paz se tornava áspera e espinhosa, e
meu coração começava a acelerar. Aos poucos, eu percebia que
ela nunca mais voltaria, e sentia um buraco se abrindo em
meu peito.
Os sonhos com Torin eram ainda piores. Neles, eu estava
ao lado dele em Feéria, no Templo de Ostara, ou observando o
vale que rodeava o lago gelado. Em cada um desses sonhos, eu
me virava para ver seu belo rosto. Nos sonhos, um lampejo
daquela expressão vulnerável e desprotegida que eu tinha
visto brevemente na pequena cabana sempre atravessava seu
rosto, um raro momento em que ele deixava a máscara de
poder e controle de um rei cair.
E então, contra minha vontade, minha própria mão
ncava uma adaga em seu coração, e eu gritava.
Ouvi a fechadura deslizar na porta e me sentei. Eu não
queria parecer desesperada por água, deixar Morgant saber o
quanto eu estava feliz em vê-lo, mas era difícil esconder meu
alívio.
Mas, quando o vi na porta, ele estava de mãos vazias.
Ergui uma sobrancelha.
— Vejo que está me privando de comida de novo.
— Ordens da rainha.
— Por quê?
Uma linha se formou entre suas sobrancelhas.
— Ela disse que, se você não tem magia, não serve para
ela.
— Então por que você está aqui? — perguntei
bruscamente.
— A rainha planeja jogar você da torre.
Fiquei de pé sobre pernas trêmulas, encarando-o.
— Ela prometeu que me libertaria se eu matasse Torin.
Ele cou completamente imóvel, como um predador, e
seus olhos cor de âmbar escureceram para um tom de
caramelo.
— Ela vai libertar você, como prometido. Mas, antes, ela
vai jogar você da torre.
Minha visão escureceu por um momento, e os olhos azuis
de Torin surgiram subitamente na minha mente,
emoldurados por seus cílios escuros.
— O que você fez com o corpo de Torin?
Se eu conseguisse descobrir como voltar para Feéria,
talvez pudesse envolvê-lo em um cobertor e levar o rei
arruinado de volta.
— Nós o mantivemos onde pudesse ser visto por todos —
disse Morgant.
Uma violência ardente percorreu meu corpo.
Atrás da cabeça de Morgant, as vinhas espinhosas se
contorceram e serpentearam pelas paredes de pedra.
Quando Morgant percebeu o movimento, seus olhos se
moveram rapidamente e seus músculos se contraíram. Eu não
dei a ele nem um segundo para pensar.
O amor nos leva a fazer coisas terríveis…
Com um movimento do meu pulso, os tentáculos a ados
se fecharam em torno de sua garganta, fazendo o sangue
escorrer. Contraí os lábios, expondo os dentes enquanto eu
fazia as vinhas subirem com um movimento rápido.
Morgant chutou o ar, e eu dei um passo para trás. Uma
corrente de magia originada das raízes das árvores uía para
dentro do meu corpo, extinguindo a fadiga dos meus
membros.
— Morgant, planejo deixar isso bem doloroso até que me
diga o que eu quero. E se me der as respostas que eu procuro,
vou deixar você viver. Onde está a Espada dos Sussurros?
Seu rosto estava vermelho como um tomate, e os pés
chutavam as pedras. Girei o pulso, desenrolando as vinhas
para deixá-lo cair no chão. Ele caiu com força, com um baque.
— Aprendi minhas técnicas de interrogatório com você,
Morgant. Obrigada por isso. — Minha voz estava tomada de
acidez. As vinhas se enrolaram em torno de sua garganta
novamente. — Como eu saio da Corte das Lamentações?
Ele tossiu e estendeu a mão para a garganta que sangrava.
Apertei as vinhas em torno do pescoço novamente,
sufocando-o até que seu rosto começasse a car roxo.
— Última chance, Morgant. Como eu saio deste reino?
Quando as vinhas se afrouxaram o su ciente para ele
falar, Morgant disse:
— Aquela com Véu, Cala, é quem pode dizer a você. Ela
está aqui no castelo. A Espada dos Sussurros também está
aqui. Tudo o que você quer está no castelo. Cala está na Torre
do Crepúsculo, a oeste. — Seu sangue pingou no chão. — Não
somos como os Seelie. Eles vivem para o prazer. Nós vivemos
para o dever. Nossa força reside no amor.
Foi uma declaração tão surpreendente que eu não
consegui terminar o trabalho de direcionar as plantar para
rasgá-lo ao meio.
Ou talvez tenha sido a pequena gentileza que ele havia me
mostrado ao me oferecer um banho e sabonete.
Mas a hesitação daquele momento lhe deu a chance de se
levantar do chão, estendendo a mão para mim, e então
aconteceu, quase sem que eu percebesse o que estava fazendo.
O chão começou a tremer, e pedras caíram das paredes. A
árvore enorme que formava metade da minha cela começou a
soltar grunhidos, a se mover. Um barulho alto tomou conta
da cela enquanto pedras continuavam a cair ao nosso redor.
Morgant ergueu os braços sobre a cabeça, protegendo-se.
Era o tempo que precisava para passar por ele e entrar nos
túneis do castelo, sentindo o gosto da liberdade nos lábios.
Inspirei profundamente, correndo pelo corredor da
masmorra.
Eu esperava estar pronta para isso, porque eu ainda tinha
a sensação de que grande parte do meu poder estava
enterrada sob as rochas, desesperada para se libertar.
Uma sensação de calor e formigamento percorria minhas
costas.
Shalini

A s árvores ao redor da cabana estavam cobertas de gelo e


neve. Na oresta remota, tudo ao meu redor estava branco. A
neve transformava as árvores em montes disformes como
fantasmas congelados. E o fato de eu ter começado a
conversar com esses fantasmas era provavelmente uma boa
pista de que eu estava passando tempo demais sozinha.
Dentro da cabana, eu vivia imaginando que estava cercada
pelos mortos congelados. Grandes estalactites pendiam dos
galhos das árvores como espíritos angustiados. Elas reluziam
ao sol, fazendo os galhos das árvores se curvarem sob seu
peso, até que uma rajada de vento congelante soprava e a
estalactite caía no chão com um estrondo abafado. Eu dava
um pulo de susto sempre que isso acontecia.
Eu não tive muito tempo para organizar minha viagem até
aqui. Moria rapidamente havia dado início a uma busca
frenética, tentando descobrir quem poderia ter se mantido
leal a Torin. A única maneira de sair de Feéria era com a
permissão do monarca, e a rainha Moria preferiria me ver
morta do que me deixar sair. Aparentemente, eu era uma fã de
demônios.
Há um mês, Aeron me trouxe às pressas até este refúgio
distante. Orla estava em um outro local. Cleena em outro.
Acho que éramos alvos de “alta prioridade”. A princesa Cleena
costumava ser a amiga mais próxima de Moria, mas passou a
detestá-la desde que Moria tentou matá-la na arena.
Engraçado como isso pode realmente estragar uma amizade.
Agora, o crepitar do fogo, um único livro e meus amigos
espíritos congelados me faziam companhia. A ideia de que a
minha aposentadoria precoce havia me entediado agora
parecia estranha e ridícula.
O vento trouxe o som de um uivo selvagem, e eu me
abracei, tremendo. Os ventos invernais faziam ecoar o
lamento melancólico de uma Banshee.
Engoli em seco. Alguém estava prestes a morrer. E se
Cleena não conseguisse controlar seu grito de Banshee,
poderia acabar sendo ela mesma.
Aeron não disse isso em voz alta, mas acho que
deveríamos saber o mínimo possível sobre os outros que
estavam escondidos. Dessa forma, se algum de nós fôssemos
capturados, não seriam capazes de arrancar respostas de nós
através de tortura. Sempre que essa ideia perturbadora me
ocorria, eu falava com meus amigos espíritos e pedia para que
me matassem com suas mãos de estalactites antes que eu
pudesse ser capturada.
Será que estava perdendo a cabeça?
Sim.
O ponto alto do meu dia era me sentar diante do fogo.
Aeron, abençoado seja, havia me fornecido um acendedor
automático, e enquanto eu estava nesta cabana, ele se movia
entre os esconderijos, dando uma olhada em todos e
fornecendo-lhes comida da melhor forma que podia. Sempre
que alguém na cidade era maculado com o epíteto de “fã de
demônios”, ele tentava levá-los para um lugar seguro antes que
fossem capturados.
Ele não me contava sobre aqueles que ele não conseguia
salvar, ou sobre o que via acontecer no castelo, e isso me dizia
que era uma situação particularmente sombria. A nal, esta
era uma cultura em que as pessoas casualmente diziam coisas
como: “Ah, sr. Durian, sim, eu decapitei seu lho em um
duelo”, ou “E então nós sacri camos os humanos depois da
festa”.
Meus dentes estavam batendo. No início, quando Moria
assumiu o trono, todos presumiram que a primavera voltaria.
Esse era todo o propósito de ter uma maldita rainha no trono.
Nós esperamos pelo calor, pelo degelo, mas Moria não estava
sentando o traseiro naquele trono.
O problema era que, como qualquer bom tirano, Moria
sabia que se as pessoas estivessem felizes e confortáveis, ela
perderia o domínio sobre o poder. Ela precisava da raiva e do
medo delas, ou talvez sua legitimidade pudesse começar a ser
questionada. Calma aí, por que você é a rainha, a nal…?
Se as pessoas estivessem confortáveis, talvez acolhessem
Torin de volta se ele retornasse. Talvez esquecessem de ter
raiva dos demônios, e ela precisava desesperadamente que as
pessoas se mantivessem unidas contra um inimigo comum —
um que somente ela poderia derrotar.
Somente sob a ameaça constante de um ataque dos
Unseelie ela poderia exercer esse controle, então quando as
pessoas perguntavam a ela por que ainda estavam congelando
em suas camas e por que o frio ainda corroía nossos ossos, ela
ainda tinha um bode expiatório. A culpa era dos demônios e
de qualquer traidor que os apoiasse.
Eu me voltei para o fogo crepitante e me ajoelhei,
esfregando as mãos uma na outra e soltando o ar nelas para
aquecê-las. Aeron havia me trazido mais uma maravilhosa
surpresa: ele conseguiu roubar um único livro da biblioteca do
castelo, um romance gótico do século XVIII chamado O Monge
Amaldiçoado. Para algo escrito há séculos, era
surpreendentemente obsceno, e eu me perguntava se o
conteúdo tinha sido intencional. A nal, Aeron era meio que
um monge por ter feito votos de castidade. Era difícil não
pensar em algumas das passagens mais picantes do livro
como algo que poderia acontecer se ele nalmente
abandonasse o voto.
O rangido da porta se abrindo atraiu minha atenção, e eu
me deparei com Aeron entrando na sala envolto em pelagens
e arrastando ocos de neve em seu encalço. A brisa gelada que
percorreu o cômodo castigou minha pele, e ele se virou para
fechar a porta.
— Trouxe pão e queijo para você.
Senti meu coração se encher de ternura ao vê-lo,
enfrentando as temperaturas congelantes apenas para me
garantir um sanduíche.
— Você precisa ter cuidado, Aeron. Como está
conseguindo essa comida sem que percebam?
Ele me entregou um pacote de papel, e eu retirei o bloco
congelado de pão para aquecê-lo junto ao fogo.
Ele se sentou ao meu lado na lareira, mexendo no fogo
com um graveto, a luz fraca das chamas aquecendo suas
bochechas.
— Não sou só eu, Shalini. Há uma pequena rede de
pessoas que não con am na rainha, aquelas leais a Torin
porque o amavam. Aquelas que sabem que ela poderia ter
acabado com este inverno há um mês. Uma espécie de
resistência. As pessoas estão passando fome, algumas
acreditam na história dela de que é tudo culpa dos demônios,
mas Moria está perdendo o controle sobre elas. E quanto mais
ela perde o controle, mais retalia através da violência.
Engoli em seco.
— O que ela está fazendo?
Ele encarou o fogo.
— Ela tem um dragão chamado Sinach, e está usando a
fera para caçar pessoas. Depois ela as queima. Ela quer que a
gente pense que ela é uma versão feminina do rei Caerleon.
Ele costumava deixar pilhas de corpos por onde passava.
Senti um nó no estômago.
— Ah.
Ele se recostou, sentando-se de pernas cruzadas diante
das chamas bruxuleantes. Ele parecia exausto, e eu tive
vontade de abraçá-lo e mantê-lo seguro aqui. Mas se esconder
em uma cabana enquanto seu reino era destruído não fazia
parte de sua natureza.
— Esse frio — acrescentou ele — está começando a
parecer menos uma estratégia política calculada e mais uma
vingança. Acho que ela está furiosa conosco. A irmã dela
morreu, e nenhum de nós ao menos percebeu ou se importou.
Todos pensávamos que Milisandia estivesse desaparecida,
mas não investigamos. E então descobrimos que o rei, tão
amado por todos, estava envolvido.
— Você ainda não sabe o que aconteceu?
Ele sacudiu a cabeça, encarando as chamas.
— Independentemente de qual tenha sido a razão dele, eu
sei que foi boa. Eu conheço Torin. Talvez ela fosse tão
desequilibrada quanto a irmã. Não sei. Talvez tenha sido um
acidente. — Ele olhou para mim. — Eu sei que ele enviou
assassinos para a Corte das Lamentações para matar a rainha
Mab e a família real como vingança pelo que ela fez. Um dos
lhos de Mab foi morto. Eu sei que Torin não é aliado deles. É
difícil para mim acreditar que ele conseguiu sobreviver lá, que
a rainha Mab não mandou matá-lo imediatamente. Mas só
consigo imaginar que ela o mantém vivo apenas o su ciente
para atormentá-lo da forma mais brutal possível.
Eu me arrepiei.
— Bem, Modron não nos mostrou tudo, não é? Só o que
Moria queria. — Aqueci minhas mãos perto do fogo. — Será
que se eles conseguissem voltar para Feéria, Torin poderia
recuperar o trono?
— Ele não tem magia. — Ele passou a mão pelo cabelo. —
Moria posicionou soldados ao redor de seu trono, impedindo
que alguém leal a Torin encontre um jeito de resolver isso. Se
ele voltar, não terá nenhum poder para lutar. — Ele se virou
para me olhar, seus olhos cintilando à luz das chamas. — Não
entendo como eles foram parar na Corte das Lamentações. O
quanto você conhece Ava? Você con a nela, mesmo ela sendo
uma Unseelie?
— Para mim, vocês são apenas feéricos. — Eu o cutuquei.
— Será que os Seelie são realmente tão melhores? Porque
agora estamos encolhidos no meio de uma oresta congelada,
escondidos de uma rainha que quer queimar as pessoas com
seu dragão.
Ele inclinou a cabeça.
— Você tem um ponto.
Uma sensação de nostalgia tomou conta do meu peito.
— Aeron, sabia que eu daria qualquer coisa para te levar
para um barzinho na minha cidade natal? Eu estava tão
desesperada para sair de lá e ver Feéria. Ava me avisou que
nem tudo seriam ores, mas eu precisava ver com meus
próprios olhos. Sabia que eu daria qualquer coisa para assistir
um jogo de basquete com você em um bar? Tomando cerveja?
E eu nem gosto de basquete. — Minha voz saiu áspera e meio
histérica.
Sua expressão se suavizou.
— Quando tudo isso acabar, você pode me levar ao seu
barzinho.
— Você já comeu cachorro-quente?
Ele me olhou como se eu estivesse falando um idioma
desconhecido.
— Com certeza, não.
— Nas terças à noite estão pela metade do preço no Trevo
Dourado. Acho que até agora eu nunca tinha percebido quão
incríveis aqueles cachorros-quentes são. Um cachorro-quente
com molho chili e queijo derretido… — Minha boca já estava
salivando. — Eu sei que as pessoas criticam os americanos,
mas quem mais teria essa ideia genial? É genial, Aeron. —
Acho que eu estava gritando.
Lá fora, um rugido ecoou no horizonte como uma
avalanche, e quando olhei pelas janelas, os galhos estavam
sendo sacudidos, derrubando a neve que havia se acumulado.
Por um momento, eu me perguntei se eu e minha grande
empolgação por cachorros-quentes tínhamos sido a causa.
Mas no instante seguinte, um rugido de dragão fez um
arrepio de medo percorrer todo o meu corpo.
Senti um aperto no coração.
Eu queria me en ar sob a cobertas e me encolher —
porque, vamos ser sinceros, eu não tinha nenhuma habilidade
para lutar contra dragões —, mas Aeron me segurou pelo
braço.
— Não podemos car aqui. Ele vai queimar a cabana. —
Aeron me puxou em direção à porta tão rápido que eu quase
perdi o equilíbrio. Assim que eu pisei do lado de fora, o frio já
estava castigando minha pele. Ainda bem que eu nunca tirava
a minha capa.
Lá fora, na neve, eu me virei e vi o dragão planando baixo
pelos céus, as escamas brilhando sob a luz invernal — de um
preto intenso que se mesclava a um bordô profundo na cauda,
as cores de fuligem e sangue seco. Ele voou por cima de nós e
soltou um jato de fogo para o céu cinzento. O calor preencheu
o ar, e as estalactites derretiam dos galhos e caíam na neve ao
nosso redor. Enquanto o dragão dava voltas no ar, Aeron me
puxou para o norte. Corri pela neve, e o ar cheirava a dragão e
madeira queimada.
Senti como se uma serpente tivesse se enrolado em meu
peito, deixando-me sem fôlego.
Enquanto Aeron me incentivava a continuar em frente, a
neve penetrava através do couro no das minhas botas e
castigava meus dedos dos pés. A pegada dele no meu pulso
estava rme como aço, e eu sabia que o estava atrasando. Mas
meus músculos estavam pesados, tremendo. O pânico tomou
conta de mim, até que eu não conseguia mais entender o que
Aeron estava me dizendo.
O dragão fez um arco acima de nós e, em seguida, desferiu
um jato de fogo nas árvores ao sul. Os troncos explodiram em
chamas, e a oresta ardeu como um exército de tochas
gigantes. Uma parede de fogo irrompeu diante de nós,
bloqueando o caminho.
Aeron desviou e me puxou na direção oposta. Vibrações
de medo percorriam meu corpo. Sob o pânico descontrolado
dos meus pensamentos, eu só tinha a vaga esperança de que
Aeron tivesse um plano.
Atrás de nós, as asas do dragão batiam no ar, e ele dava
voltas novamente, agitando as chamas com as asas. O som era
ensurdecedor e ritmado, mesclando-se ao rugido em meus
ouvidos, abafando qualquer pensamento. A neve rodopiava ao
nosso redor, misturando-se com as brasas.
Eu estava sem fôlego para perguntar para onde estávamos
indo e se ele tinha algum plano. Nossos pés rangiam sobre a
neve, e o dragão soltou outro rugido.
E, ainda assim, estávamos vivos. O dragão já poderia ter
nos matado uma dezena de vezes.
Por que eu tinha a sensação de que ele estava nos guiando
exatamente para onde queria que fôssemos?
Ava

C aminhei através do enorme túnel, as paredes feitas de


raízes azuis musgosas e pisos cobertos de líquen. Vinhas
escuras entrelaçadas serpenteavam sobre as paredes
arredondadas com folhas cor de vinho. Enquanto eu andava
na ponta dos pés, meu coração era uma fera selvagem.
Sob o castelo, meus olhos se ajustavam à escuridão, e meu
coração batia forte no peito. Sombras tremeluziam ao meu
redor, agitando-se pelos túneis arborizados como espíritos
inquietos.
Através das raízes retorcidas sob meus pés, eu sentia as
vibrações de feéricos se movendo em algum lugar por perto.
Quando fechei os olhos, pude vê-los: um grupo de soldados
vindo rapidamente em minha direção. É claro que o tumulto
que eu causei deve ter alertado o palácio inteiro, mas não
imagino que suspeitem que eu tenha escolhido adentrar ainda
mais no castelo.
Fiquei imóvel, e o som de trompas ecoou no ar… o alarme
dos Unseelie.
Observei com atenção o corredor ao meu redor até
encontrar uma grande fenda escura nas raízes da árvore azul.
Eu me aninhei na fenda de carvalho e me cobri com os galhos
e as vinhas, envolvendo-me em sombras.
Prendi a respiração à medida que o som dos passos se
aproximava. Protegida pelas plantas, observei o grupo de
guardas passar por mim, dirigindo-se para a cela onde cobri
Morgant de pedras.
Assim que os soldados dobraram a esquina, eu me livrei
das vinhas. Comecei a correr, ansiosa para me afastar o
máximo possível da cela.
Quando cheguei a uma estreita escadaria em espiral, subi
apressadamente. Eu precisava de luz e janelas para me
orientar e descobrir para qual lado era o oeste. Mas, enquanto
subia, não demorou muito para meus músculos começarem a
queimar. Eu estava extremamente desidratada, e toda a
minha energia provinha da adrenalina.
No primeiro andar, a casca azulada da árvore se fundia a
uma pedra da mesma cor. De trás de uma coluna, espiei o
corredor. Havia sombras reunidas sob os arcos imponentes.
Pessoas se moviam apressadamente por entre as colunas sob
as abóbadas altas de pedra. Neste andar, janelas com vidraças
de diamantes se estendiam até o teto à minha esquerda. Do
lado de fora, a luz penetrava através das folhas vermelhas,
conferindo-as tons de coral e dourado. No nal do corredor,
um ponto distante de luz rosada atravessava as janelas.
Minha mente delirante precisou de um tempo para decidir
se o sol estava nascendo ou se pondo. Mas eu tinha certeza de
que já era noite, a luz avermelhada do pôr do sol banhando o
piso frio. Então, lá estava o oeste.
Era o crepúsculo, quando o véu entre os mundos se
tornava tênue e sombras oscilavam entre os vivos e os
mortos. Na minha imaginação, eu quase conseguia sentir o
aroma amadeirado de Torin e ouvir o timbre aveludado de sua
voz.
A solidão tomou conta de mim, e a dor foi tão grande que
quase perdi o equilíbrio. Respirei fundo e tentei aguçar os
sentidos.
Com a luz que vinha do oeste inundando o ambiente, eu
sabia para onde precisava ir. Mas não conseguia chegar do
outro lado do corredor com todas essas pessoas andando de
um lado para o outro. Os alarmes ainda soavam, e todos
provavelmente estariam procurando pela prisioneira fugitiva.
Do meu esconderijo, eu me segurei nas pedras enquanto
escaneava o corredor em busca de um caminho para o outro
lado. O que eu precisava era de uma distração.
Eu me ajoelhei, pressionando a ponta dos dedos no chão
de casca de árvore sob meus pés, e fechei os olhos. Imaginei o
castelo inteiro, as pedras azuis que pareciam surgir das raízes
nodosas e os galhos salpicados de rubi que se enroscavam em
torno dele de forma protetora, como o abraço de uma mãe. Eu
tinha cada galho mapeado na minha mente. Uma onda de
poder pulsava dentro de mim enquanto eu sentia o castelo
inteiro sob o controle da minha magia. Agora, eu controlava
este lugar. Eu respirava com ele.
Ao norte, imaginei um desses enormes galhos escuros
movendo-se só um pouquinho, e então chocando-se contra as
janelas ao seu lado.
O chão do castelo tremeu, e o som de vidro estilhaçado
ecoou pelos corredores.
Minha magia vibrava, passando da árvore para dentro de
mim. Senti vagamente as vibrações do vidro quebrando. Com
o sacolejo da árvore, folhas avermelhadas começaram a cair
do lado de fora, e os corredores de pedra foram tomados pelo
som de comandos gritados na língua Unseelie, provavelmente
direcionando os soldados em direção ao tumulto.
O caos reinava, o que me causou um arrepio sombrio.
Enquanto o castelo era dominado pela anarquia, meus
próprios pensamentos se aquietaram.
Depois de tudo o que zeram a Torin e a mim, uma parte
cruel minha queria deixar este lugar em ruínas. Eu queria
arrancar a árvore das pedras que a seguravam e enterrar a
rainha sob uma pilha de escombros.
Mas eu precisava me controlar. Meu trabalho não estaria
concluído até recuperar o corpo de Torin.
Eu me esgueirei de volta para a escadaria, encostando a
cabeça nas pedras frias. Protegida aqui dentro, entrei em
sintonia com as vibrações do castelo, e meu coração começou
a bater mais rápido, acompanhando o ritmo que ecoava
através da pedra. Passos de guardas se aproximando, o som
da armadura dos soldados ressoando pelos corredores. Prendi
a respiração. Se eu hesitasse por tempo demais, estaria morta.
Eu me ajoelhei novamente e passei as pontas dos dedos
sobre a casca áspera, deixando minha mente mergulhar no
universo da árvore, sentindo a vida que ela absorvia dos raios
do sol poente. Com uma onda de magia, a seiva correu por
suas veias, pingando de suas folhas. Aproximei os galhos de
mim através da parede sul, e eles se chocaram contra as
janelas da torre próxima, quebrando as vidraças.
Quando olhei para o corredor, os soldados de Mab
estavam todos confusos, sacando suas espadas enquanto se
debatiam com a seiva e o vidro que caíam sobre eles. O que
eles pensavam que iriam fazer com suas espadas, matar a
árvore? Com um ar de desprezo, ordenei que os galhos se
enrolassem ao redor deles, atirando-os pelas janelas
quebradas. Seus gritos tomaram conta do ambiente, junto
com o cheiro metálico de sangue.
Agora, o corredor estava quase vazio, mas escutei passos
escada acima, vindo em minha direção. Prendi a respiração, e
a árvore respirou por mim.
Com as pontas dos dedos tocando o chão, z com que a
árvore expelisse ar até o ambiente car cheio de oxigênio puro
— o su ciente para fazer a cabeça de um homem girar, para
fazê-lo cambalear como um bêbado. Quando o primeiro
soldado Unseelie se arrastou escada acima, agarrando-se às
paredes, bastou um chute em seu peito para fazer toda a
tropa recuar escada abaixo.
A árvore exalou minha respiração. Mesmo assim, eu
estava começando a me sentir tonta. Quando me levantei, a
euforia turvou minha mente.
Eu me apoiei no batente da porta para me equilibrar, e
senti um alívio ao ver que o corredor ainda estava vazio.
Agora, apenas uma mulher de aparência frágil se movia em
minha direção. Ela parecia pálida, aterrorizada. Usando um
delicado vestido branco e uma coroa de ores, ela pisava
cuidadosamente sobre o vidro quebrado e a seiva, que
brilhava como pedras preciosas sob os raios amejantes do
sol. O mundo era um lugar sangrento e belo, sobretudo na
Corte das Lamentações.
Recuei para a escadaria e prendi a respiração, esperando
até que ela estivesse a centímetros da porta.
Com um movimento de pulso, vinhas de folhas
avermelhadas se enrolaram em torno de seu pescoço e de sua
boca, e eu a arrastei para dentro da escadaria enquanto ela
chutava e se debatia. Um instinto de sobrevivência sombrio se
ativou dentro de mim, e eu apertei um pouco mais em torno
de seu pescoço até que seus olhos se fechassem e seu corpo
casse inerte. Eu não fazia ideia se tinha controle o su ciente
para sufocar alguém sem matar. Mas quando confrontada
com minha própria morte, eu aceitaria colocar em risco a vida
de um estranho. Quando seus músculos relaxaram, soltei as
vinhas e olhei para ela com uma pontada de culpa.
Ela parecia ter cerca de 40 anos e parecia magra e frágil, de
cabelos pretos e tatuagens nas bochechas. Eu supus que
poderia ser mãe de alguém. Seu peito ainda subia e descia, o
que acalmou meus nervos. Era uma coisa a menos para me
preocupar se eu conseguisse sair daqui. Eu me despi na
escadaria, tirando as roupas imundas de prisioneira. Com o
coração disparado, coloquei seu vestido branco e ajustei a
coroa de ores na minha cabeça para esconder meus chifres
acobreados. Empurrei seu corpo inconsciente para o canto da
escadaria e z uma tentativa meio desleixada de cobri-la com
minhas roupas. Também tirei seus sapatos e eles quase me
serviram, só um ou dois tamanhos maiores.
Com meu novo disfarce, comecei a andar em direção à
extremidade oeste do castelo. Eu escutava o som do vidro
quebrado sob meus sapatos roubados. Segui a luz em direção
ao oeste, apressando-me para a Torre do Crepúsculo.
Eu estava a apenas alguns metros de distância…
Alguém me agarrou pelos cabelos, puxando-me para trás.
— Aqui está ela — rosnou ele em meu ouvido. — A rainha
Mab está procurando por você. Ela quer te jogar da torre.
Uma lâmina já estava em minha garganta, pressionando
contra minha pele.
Ava

A menção ao nome da rainha Mab fez com que a fúria


tomasse conta de mim, uma raiva tão intensa que fez minhas
pernas tremerem, uma ira a ada como espinhos, que viria a
me libertar.
Visualizei tudo em minha mente à medida em que ocorria.
Atrás de mim, uma vinha perfurou o crânio do feérico. Seus
músculos perderam a força e ele desabou no chão. Eu me virei
e dei de cara com mais dois Unseelie boquiabertos. Não houve
tempo para as palavras se formarem em minha mente, e nem
para eu admitir para mim mesma o monstro que eu poderia
me tornar. Uma violência amejante, quente como uma forja,
queimou todo pensamento racional dentro de mim. Minhas
vinhas espinhosas atravessaram os outros dois feéricos,
separando as cabeças dos corpos.
Havia respingos de sangue ao meu redor e no meu novo
vestido branco.
Meu corpo tremia. Eu sou a morte.
O primeiro feérico que matei estava irreconhecível, seu
rosto des gurado sob longos chifres prateados. Desviei o
olhar dos outros dois, tentando bloquear os gritos dos
soldados presos nos galhos do lado de fora.
Tremendo, eu me voltei para a escadaria.
O que eu era capaz de fazer?
Talvez as pessoas aqui na Corte das Lamentações
devessem ter se perguntado isso antes de decidirem pagar
para ver. Talvez devessem ter pensado nisso antes de me
trancarem em uma prisão e me forçarem a matar alguém que
eu amava. Talvez todo esse sangue e gritos fossem culpa deles.
Quando cheguei aos andares superiores da torre, a
carni cina tomava conta dos meus pensamentos. Da
escadaria, o interior da torre reluzia com uma luz amejante.
Passei pela entrada e cheguei à própria Torre do
Crepúsculo. A luz pareceu mudar, penetrando pelas janelas
em tons mais escuros de lilás e violeta.
O ar deixou meus pulmões com a visão de três enormes
lobos prateados sentados de forma protetora ao redor da
gura no centro da sala. Uma chama ardia em uma fogueira
de pedra diante dela, iluminando a mulher curvada e seus
lobos. Um véu azul-escuro cobria seu rosto, caindo sobre o
tecido prateado de seu vestido. Ela permaneceu imóvel como
pedra. As únicas partes expostas dela eram as mãos pálidas e
enrugadas e os enormes chifres prateados que se projetavam
de sua cabeça. Tive a clara impressão de estar invadindo um
lugar que não compreendia completamente.
Um dos lobos ergueu a cabeça, semicerrando os olhos para
mim e soltando um rosnado baixo. Um arrepio percorreu
minha espinha.
Um movimento rápido chamou minha atenção. Não havia
vidro nas janelas altas, apenas o ar livre e as vinhas que se
entrelaçavam do lado de fora. Quando dei mais um passo para
dentro da torre, as vinhas se contorceram.
— Isavell — murmurou a mulher.
O nome ativou uma lembrança em minha mente. Eu já
tinha sido chamada assim antes.
— Preciso da sua ajuda. Por favor. Preciso saber como sair
da Corte das Lamentações.
— É assim que você chama o nosso reino? — disse ela,
sem se mexer, e tive a impressão perturbadora de que suas
palavras vinham de dentro da minha cabeça.
Respirei fundo, a frustração ardendo como brasa dentro
de mim.
— Por favor, me diga como voltar para Feéria.
— Você retornará para Feéria pelo rio Avon. Lá, em um
templo abandonado à deusa das cinzas, você encontrará um
espelho pendurado na parede, um que pode se abrir a
qualquer mundo nomeado. — Pequenas faíscas rodopiavam
ao redor dela. — Ao leste do castelo, ao longo do rio. É lá que
está o templo.
Fechei os olhos, tão aliviada a ponto de chorar. Mas uma
sensação perturbadora tomou conta de mim. Parecia fácil
demais.
— Por que você me ajudaria a escapar?
Ela inclinou a cabeça para trás em um movimento brusco,
e seus lobos se atiçaram, expondo seus caninos.
— Eu somente prevejo o futuro. — Sua voz ecoou. — E
nada acontece neste castelo sem o consentimento da rainha.
Tudo ocorre conforme os desejos dela. Seu próprio senso de
controle é apenas uma ilusão. — As chamas se ergueram mais
altas ao seu redor.
Eu a encarei, e apesar do fogo que se erguia, uma sensação
de terror fez meus ossos gelarem.
— Então nada do que eu decidir importa de verdade.
— Você tem outra pergunta para mim.
Minha respiração estava acelerada.
— Onde está o corpo de Torin?
— Você queima por ele? Ele queima por você?
Não era a resposta que eu estava procurando.
— Onde está o corpo dele?
— Você o encontrará na sala do trono.
— Eles o deixaram lá? Por quê?
— Eu prevejo o futuro, não o passado — sibilou ela. — É
lá que você o encontrará. E os soldados dela estão vindo atrás
de você agora. Se não sair daqui neste exato momento, vão‐
capturá-la. E se você não comer ou beber logo, vai morrer.
Meus lábios se curvaram.
— Achei que o que eu faço não importa, porque a rainha
controla tudo.
— Ela vai jogar você da torre.
Meu coração disparou. Senti as vibrações subindo pela
escadaria, o som da armadura dos guardas chegando pelas
pedras sinuosas.
Olhei para as janelas abertas, de onde as vinhas pendiam
para dentro da torre, agarrando-se às pedras. Quando estendi
as mãos, as vinhas azuladas se enrolaram em volta dos meus
pulsos, erguendo-me no ar. Aterrissei contra a parede,
amortecendo o impacto com as pernas dobradas, e rastejei
para o lado de fora da torre. O vento noturno me atingiu,
soprando o cabelo em meu rosto. As plantas formaram uma
espécie de cinto protetor ao redor da minha cintura.
Sob o escuro céu noturno, rastejei pela parte externa da
torre até alcançar o andar de baixo, e então desci mais até o
terceiro andar.
Eu não conseguia parar de pensar no que a anciã havia
dito — que, no nal das contas, a rainha Mab estava no
controle de tudo o que acontecia ali. Mas o que eu deveria
fazer com essa informação? E será que era mesmo uma
informação precisa? Tudo o que eu podia fazer era continuar
seguindo em frente.
Segui para leste pela superfície externa do castelo,
evitando as janelas.
Quando olhei para baixo, vendo o chão ao longe, meu
coração disparou. Puta merda, eu estava muito alto. Uma
sensação de tontura embaçava meus pensamentos. A anciã
tinha razão. Se eu não conseguisse água em breve, tudo
estaria acabado.
As vinhas azul-escuras me carregavam pelo exterior do
castelo, levando-me para baixo até o andar com as janelas
estilhaçadas. Abaixo de mim, alguns guardas de armadura
ainda estavam pendurados.
Eles chutavam o ar, debatendo-se e gritando. Mirei em
uma abertura o mais longe possível dos soldados presos. As
vinhas me baixaram e me jogaram através da janela
estilhaçada. Aterrissei sobre os cacos de vidro e comecei a
correr.
Cambaleei apressadamente pelos corredores em direção à
sala do trono com um sentimento crescente de medo se
espalhando pelo meu corpo como veneno.
Porque… pelos deuses, eu não sabia se realmente queria
fazer isso. Eu não sabia se conseguiria vê-lo morto. O horror
da situação poderia terminar de estilhaçar o que ainda restava
da minha mente fragmentada, e eu já estava a meio caminho
de me tornar um monstro.
E ainda assim… havia aquela sensação mais uma vez, de
que ele estava ali. O poder brutal e masculino do rei Seelie. Eu
continuava imaginando que conseguia sentir o cheiro dele,
que não poderia sair daqui sem ele…
Minhas narinas se dilataram quando o cheiro desapareceu
novamente, substituído por um sentimento doloroso de
perda.
E agora havia algo mais, uma pontada na minha barriga.
O cheiro de vegetais cozidos e o aroma pungente de carvão
tomava conta dos corredores abobadados. Quando inspirei,
senti o cheiro de comida. E de algo mais. Carvão queimando,
aço derretendo. Mas o que eu precisava era de comida.
Quando virei no corredor, a luz da lua penetrava através
das janelas estilhaçadas. Plantas cor de fogo escalavam as
paredes de cobalto, e algumas brasas ardentes rodopiavam no
ar. Minhas pernas tremiam incontrolavelmente. A anciã tinha
razão. Eu estava desesperada por água, e não sabia se
conseguiria percorrer o resto desse castelo sem ela. Eu jamais
conseguiria voltar para Feéria com o corpo de Torin sem
beber nada. Se ao menos eu pudesse me alimentar de luz
como a árvore.
Segui o cheiro de comida até chegar a uma cozinha. Era do
tamanho da sala do trono, e eu espiei pela quina da parede.
Avistei uma enorme lareira, com mais de dois metros de
altura e feita das mesmas pedras azuladas. Uma panela de
metal preta borbulhava no centro da lareira, uma espécie de
caldeirão que exalava o aroma mais delicioso do mundo. Eu
não sentia mais uma fome normal, mas um instinto de
sobrevivência ardente que gritava comigo. Logo eu desmaiaria
sem comida e água.
Infelizmente, embora o restante do castelo estivesse
vazio, a cozinha estava repleta de criados, todos usando
aventais e toucas brancas. Os cozinheiros estavam cortando
legumes e andando de um lado para o outro com sacos de
farinha. Meu olhar pairou sobre uma pilha de cenouras que eu
queria muito pegar, mas um homem robusto com um
carrinho de mão se aproximava de mim.
Recuei rapidamente para o corredor e esperei até que ele
saísse arrastando o carrinho de mão atrás dele.
Ele cou imóvel quando seus olhos captaram as manchas
de sangue no meu vestido, mas os tentáculos azuis
espinhosos já o silenciavam ao redor de sua garganta. Seu
carrinho de mão atingiu o chão com um baque, e eu agarrei
um pedaço fumegante de pão, tão quente que queimou meus
dedos. Com a mão livre, peguei uma jarra de água e dei o fora
dali, procurando um lugar tranquilo para comer e beber. Eu
agarrava meu novo tesouro como uma espécie de ave de
rapina esfarrapada. Atrás de mim, as vinhas formaram uma
barreira no corredor, mantendo-me segura.
Eu não parei de andar até encontrar uma entrada que
dava para uma espécie de templo vazio. Perto da entrada,
encontrei um cômodo escuro coberto de vegetação. Eu me
acomodei em um canto e espiei para dentro do templo,
certi cando-me de que não havia ninguém por perto.
Do outro lado das lajes de pedra, havia um altar com uma
lareira no centro, ladeado por colunas. Talvez fosse um
templo para a deusa das cinzas, cuspindo brasas ardentes no
ar. Espadas reluzentes erguiam-se do arco rochoso sobre as
chamas. Da forja fumegante, erguiam-se lamentos de
fumaça.
Encolhida no meu canto, levei a jarra aos lábios, bebendo
a água com voracidade. Meus músculos relaxaram enquanto
eu saciava minha sede. A água nunca teve um gosto tão
incrível. Ela escorria pelos cantos da minha boca enquanto eu
a bebia em um só gole.
Só depois de beber metade percebi que não era água, mas
ambrosia. Passei a língua pelos lábios, saboreando o gosto
adocicado. Merda. Eu poderia facilmente beber tudo, mas isso
me deixaria bêbada, e rápido. Meu corpo já formigava sob sua
magia sedutora, e o ar ao meu redor parecia acariciar minha
pele e a seda delicada do meu vestido.
Eu me forcei a parar de beber a ambrosia e dei uma
mordida no pão quente, fechando os olhos diante da explosão
de sabores. Depois de algumas mordidas, diminuí o ritmo
para não car enjoada.
Respirei profundamente, absorvendo o cheiro de carvalho
queimado e carvão. Brasas ardentes rodopiavam pelo ar. A
ambrosia estava fazendo eu me sentir em sintonia com tudo
ao meu redor, com o próprio castelo que se erguia do solo,
com o cheiro metálico e quente de aço derretendo. As palavras
O amor é uma forja surgiram na minha mente como um
letreiro incandescente.
Estava na hora de encontrar Torin novamente, e a euforia
desta ambrosia poderia me ajudar a me preparar
mentalmente para o choque de ver seu cadáver.
Mas enquanto eu mastigava, senti vibrações sutis pelo
chão, o eco de passos pelo corredor. Nas sombras, prendi a
respiração, observando enquanto uma mulher vestida de
cinza cruzava o templo. Eu me mantive fora de vista por um
momento, e então me virei para vê-la alimentar as chamas na
forja do altar. Ela estava banhada em uma luz rosada, os
cabos das espadas acima dela iluminados em tons
alaranjados.
Ela pegou um pedaço de aço, aquecendo-o no fogo, e
então alcançou um martelo para moldá-lo. O som das batidas
no metal ecoava ao meu redor. Mas meus pensamentos se
xaram nos cabos das espadas acima dela, e eu precisei de um
momento para perceber o motivo.
Meu coração disparou ao ver uma espada especí ca, com
cabo de obsidiana. A Espada dos Sussurros pertencia ao rei
Seelie, e eu não sairia daqui sem ela.
Em questão de segundos, minhas vinhas se enrolaram ao
redor da sacerdotisa, envolvendo seu pescoço e fazendo-a
desmaiar. Deixei cair meu pão e pisei delicadamente sobre o
corpo dela.
Precisei subir no altar, o calor queimando minha pele,
para alcançar a espada. O cabo estava quente ao toque, mas
não o su ciente para queimar.
Quando o agarrei, ouvi as vozes dos deuses sussurrando
ao meu redor, e a voz poderosa de Torin ressoou pelos
corredores.
Meu coração disparou.
Eu estava cando louca, ou era realmente a voz grave dele
ecoando do corredor onde eu o tinha matado?
Comecei a correr.
Shalini

O ar gelado castigava minha garganta e meus pulmões. Uma


pequena parte de mim pensava que eu deveria gritar com
Aeron e mandá-lo continuar sem mim, mas mesmo se eu
conseguisse reunir coragem para fazer isso, não tinha fôlego
para gritar.
Dei uma rápida olhada para trás. O dragão dava voltas no
céu, conduzindo-nos em direção ao castelo. Toda vez que
tentávamos desviar o curso, o maldito monstro incinerava o
caminho com um jato de calor. O mundo ao meu redor era
metade gelo e metade tempestade de fogo.
Aeron se virou para mim, eu nunca o vi demonstrar medo
antes. Seus olhos estavam arregalados, o rosto pálido. Ele me
abraçou de forma protetora.
— Não podemos ir mais longe, meu amor — disse ele
entre respirações ofegantes. — Essa coisa está tentando nos
forçar de volta para Moria. Talvez ela queira um julgamento.
Eu me agarrei a ele, meu coração disparado. Eu não
acreditava que havia alguma saída desta situação. O uso da
palavra “julgamento” por parte de Aeron parecia um
eufemismo — um último ato de bondade da parte dele para
que eu mantivesse a esperança viva até o último suspiro.
Mas ambos sabíamos que Moria não planejava nos deixar
vivos.
Um rugido ressoou no horizonte, e o dragão mergulhou
no céu, deixando um rastro de fogo atrás de nós, o calor
queimando o ar. Com um rosnado, Aeron segurou meu braço
novamente e me puxou com a desesperança frenética de um
homem prestes a morrer.
A neve gelada castigava meus dedos dos pés.
No que diabos minha vida havia se transformado?
Eu mal conseguia formular um pensamento coerente,
apenas fragmentos apavorados sobre como era melhor nos
arriscar a enfrentar a justiça de uma rainha maligna no futuro
do que sermos queimados vivos. Será que existia uma morte
pior do que morrer queimado? Tive a perturbadora sensação
de que isso era algo que eu descobriria aqui em Feéria. O
mundo ardia atrás de nós. À nossa frente, o gelo o fazia
reluzir.
As chamas do dragão nos forçaram a chegar mais do perto
do castelo, e a fumaça obscureceu o ar ao nosso redor,‐
fazendo-me tossir. Cinzas se misturavam com neve, e o
castelo de torres pontiagudas entrou em nosso campo de
visão, junto com uma legião de soldados em armaduras
prateadas. A luz do sol re etia sobre eles de forma ofuscante
enquanto marchavam adiante.
Meus pensamentos se aquietaram.
Eu não conseguia mais respirar com a fumaça queimando
os pulmões e a oresta ardendo atrás de nós. Minha mente
jogava um cabo de guerra entre o pânico e a sobrevivência, e o
pânico estava vencendo a disputa, tornando meus membros
pesados. À medida que diminuí o ritmo, Aeron deixou meu
braço escapar ao seu aperto.
Não sei se foi a exaustão ou o medo, mas meu corpo
simplesmente não conseguia mais se mover, os músculos
travados.
Caí de joelhos na neve. Aeron se virou, agarrando-me
pelas costelas, como se fosse me carregar até um lugar seguro.
E, por mais que eu o amasse por isso, eu sabia que não
tínhamos mais para onde correr.
— Sinto muito! — gritei para Aeron.
A culpa tomou conta de mim. Se eu não estivesse aqui,
Aeron teria dado um jeito de sair desta.
Gritos ecoaram enquanto os soldados de armadura
prateada nos alcançaram e arrancaram Aeron de mim. Seus
olhos em pânico estavam xos em mim no momento em que
senti um chute nas costas e caí de bruços na neve. Mãos
ásperas prenderam meus pulsos em algemas congelantes de
ferro e, em seguida, colocaram outra ao redor da minha
garganta.
Quando o soldado me puxou para car de pé, senti como
se meus braços estivessem sendo arrancados das articulações.
Eu tremia descontroladamente, cambaleando pela neve.
Os soldados nos conduziram até o castelo. E à medida que nos
aproximávamos, uma onda de horror percorreu meu corpo.
Nas paredes do castelo havia gaiolas penduradas em
longas correntes de ferro. Em uma delas, vislumbrei a silhueta
pálida da princesa Orla, tremendo descontroladamente. Ela
provavelmente estava congelando.
Olhei para ela, meus olhos ardendo. Eu me perguntei se
ela havia gritado muito, e quando decidiu parar.
As outras gaiolas? Tive uma sensação horrível de que
estavam vazias, esperando por nós.
Torin

A rainha havia elaborado para mim uma espécie de trono de


folhagem densa e espinhosa, com folhas vermelho-sangue,
que me prendiam a uma pedra.
E hoje, a anarquia reinava na Corte das Lamentações. Do
meu pequeno trono espinhoso, eu conseguia ouvir os gritos e
os berros. Vidros sendo quebrados. Conseguia sentir o
miasma acre do pânico tomar conta do castelo. O cheiro de
sangue no ar.
Eu não fazia ideia do que estava acontecendo, mas estava
gostando.
Flexionei os braços e antebraços, tentando enfraquecer as
plantas. Os tentáculos sombrios da rainha ganhavam vida ao
seu comando e rasgavam minha pele sempre que eu tentava
me libertar.
Impulsionado pela raiva e determinação, eu já havia me
libertado deles quatro vezes até agora, tentando chegar até
Ava. A cada vez, as malditas coisas talhavam minha pele com
lacerações sangrentas. E a cada vez, era capturado novamente
em questão de minutos, estrangulado por plantas espinhosas,
e arrastado de volta ao trono. As vinhas estavam por toda
parte, escuras como hematomas salpicados de vermelho. E a
rainha controlava todas elas, tentáculos vivos que se
espalhavam ao meu redor. Eu havia aprendido a odiar a visão
delas.
A cada fuga bem-sucedida, o número de soldados de
guarda aumentava. Agora, devia haver cerca de trinta deles
me encarando, seus dedos inquietos sobre os cabos das
espadas. Mesmo enquanto o caos tomava conta do castelo, os
soldados permaneciam de guarda, mantendo-me preso aqui.
Mesmo assim, eu tinha certeza de que conseguiria me
libertar novamente.
Valeu a pena todas as vezes. Nos breves momentos em
que estive livre, consegui matar treze soldados, e quando o
tédio batia com mais força, eu me lembrava com carinho das
mortes. Na verdade, o ponto alto do último mês foi quando
consegui roubar a espada de um deles. Por alguns instantes,
me senti como um deus novamente. Eu me senti vivo, como
se mais uma vez segurasse a Espada dos Sussurros. Eufórico,
decapitei e feri sete soldados, matando o máximo que pude,
até que a maníaca rainha alada retornou com sua prisão de
vinhas.
Eu não fazia ideia do porquê diabos eu ainda estava vivo.
No começo, consegui compreender. Ela ordenou que seu lho
idiota, Morgant, me curasse, e me colocou aqui como uma
estátua arruinada, uma exibição triunfante de um rei Seelie
conquistado.
Mas quantas semanas já haviam se passado? Certamente
umas seis.
Hematomas cobriam meus braços, e as vinhas salpicadas
de vermelho marcavam minha pele. Estranhamente, a rainha
deixou as manchas de sangue no chão onde a espada de Ava
perfurou meu coração, uma mancha cor de vinho sobre o
musgo e a pedra. Era tudo parte da cerimônia, uma
demonstração de poder.
Mas o que tinham feito com Ava?
Ela tinha prometido que se Ava me matasse, eles a
libertariam. Esse foi seu juramento. Essa foi toda a razão pela
qual me joguei na frente da espada de Ava, para que ela
pudesse voltar à sua vida normal como se nunca tivesse me
conhecido. Como se eu nunca a tivesse arrastado do mundo
seguro dos humanos para o mundo brutal e sangrento dos
feéricos.
Mas com o passar dos dias, comecei a duvidar da palavra
de Mab. De alguma forma, eu conseguia sentir a presença de
Ava aqui, um sopro de vida em um mundo estéril.
Às vezes, eu imaginava que podia ouvir sua voz, sentir sua
pele. Neste exato momento, eu sentia sua presença se
aproximando.
Mera fantasia? Talvez.
— Estou aqui! — gritei mesmo assim.
Mas onde diabos estava a rainha enquanto alguém
esmagava e destroçava seu lar? Porque ela controlava cada
mínima coisa que acontecia aqui.
Meu coração começou a acelerar, e me desvencilhei das
plantas, sem me importar que estivessem dilacerando minha
pele. Mas os soldados não estavam olhando para mim, e
nenhum deles percebeu. Eles sacaram as espadas e olharam
para os próprios pés.
E o melhor momento possível para matar o máximo deles
era enquanto estivessem distraídos.
No entanto, eu devia estar delirando. Porque poderia jurar
que ouvia a Espada dos Sussurros falando comigo do outro
lado do salão neste momento.
Ava

D e um recanto escondido, dei uma olhada para dentro do


salão. A rainha Mab tinha colocado um pequeno exército
guardando o corpo de Torin, pelo menos duas dezenas de
homens.
Eu poderia enforcar cada um deles com facilidade, só que
minha magia não estava mais funcionando.
Do meu esconderijo, eu havia tentado controlar as vinhas
escuras e arroxeadas que pendiam de cada coluna e parede no
grande salão. Mas era como se outra mente sombria já as
estivesse controlando. Quando tentei adentrar a consciência
das plantas, senti uma poderosa e perturbadora presença,
uma sensação que me causou arrepios pelo corpo inteiro.
Mas supus que eu não precisava me ater às plantas fáceis.
A magia da oresta tornava viva cada pedra aqui, a partir do
poder revigorante da árvore. E talvez houvesse outra forma,
menos óbvia, de tirar esses soldados do meu caminho.
Olhei para o chão de pedra, focando os pequenos brotos
de ervas daninhas que cresciam entre as rachaduras, frágeis
com suas folhas delicadas. Ordenei a elas que crescessem —
mais altas, maiores, enrolando-se nos tornozelos dos
soldados. Elas serpentearam para cima como mãos emergindo
de uma sepultura, arrastando os vivos para debaixo da terra
com os mortos.
Fixei o olhar em um homem de longos cabelos prateados.
Suas asas brancas batiam freneticamente no ar. Minhas ervas
rastejaram até ele, formando um torniquete de raízes em seus
tornozelos e prendendo-o no chão. Elas serpentearam pela
sua barriga, costas e asas, restringindo seus movimentos. O
soldado caído gritou por sua rainha.
Espadas retiniram no chão enquanto as ervas faziam os
soldados caírem de joelhos. Cada vez que eles cortavam uma
planta com suas espadas, outra crescia em seu lugar,
tentáculos de vegetação enrolando-se por suas pernas e
arrancando as espadas de suas mãos.
Minha concentração foi quebrada quando alguém atacou
um dos soldados, agarrando a cabeça e quebrando o pescoço
com um estalo repugnante.
Enquanto o soldado caía no chão, ergui o olhar para o
rosto do feérico mais lindo que eu já havia visto, e o mundo
cou em silêncio.
Era Torin, movendo-se e respirando, parecendo um deus
da vingança com os olhos azuis amejantes e o corpo
marcado pela batalha. Seus braços estavam cheios de cortes
sangrentos e a camisa branca estava esfarrapada. Senti um
forte aperto no coração.
Será que eu estava bêbada de ambrosia?
Por um momento, não consegui me mexer. Permaneci
imóvel nas sombras, mal respirando, enquanto sua vingança
se abatia sobre os soldados de Mab. Um calor ardente
derreteu o gelo sob minhas costelas.
Tive a fraca impressão de estar gritando o seu nome
enquanto irrompia do meu esconderijo, com a espada em
mãos. E enquanto eu corria em sua direção, Torin se virou
para mim, e nossos olhares se encontraram.
O sorriso em seus lábios era impossivelmente lindo. Com
seus olhos azuis intensos xos nos meus, ele recuou,
afastando-se dos soldados presos em minhas plantas. Meu
coração batia forte no peito, e eu sentia o sangue martelando
na cabeça. Saltei sobre os soldados, indo de encontro ao
peitoral rme de Torin.
Gentilmente, ele pegou a espada da minha mão, então
passou os braços ao meu redor, segurando-me com rmeza.
Eu pressionei meu corpo contra seu peito ensopado de
sangue, sentindo as fortes batidas do seu coração sob o no
tecido branco de sua camisa. Deslizei minha mão sobre seu
peito quente, sentindo seus batimentos.
Senti as vibrações de sua voz em seu peito.
— Aí está. Eu estive procurando por você.
— Morgant te curou. — Minha voz era um sussurro quase
inaudível. É claro que eu queria dizer mais um milhão de
coisas, os poderes que despertei e a destruição que causei. O
plano para sair deste lugar, para encontrar o espelho no
templo abandonado. Mas meus pensamentos eram um
emaranhado selvagem de palavras que eu não conseguia
desvendar completamente, não quando eu estava perdida na
euforia do seu cheiro perfeito e vivo. A sensação de seu corpo
contra o meu fez o resto do mundo desaparecer, seus
músculos contraindo-se ao meu redor enquanto ele apertava
ainda mais o abraço.
Ele beijou o topo da minha cabeça.
— Eu estava tentando chegar até você.
Eu estava agarrada a ele tão rmemente quanto os galhos
das árvores nas paredes do castelo. Ele estava tão
incrivelmente tangível e real, e eu não queria me afastar dele
jamais.
E mesmo enquanto eu derretia em seu peito, um
pensamento terrível cruzou minha mente…
Por que a rainha o queria vivo? Por que ordenar a Morgant
que o curasse?
Uma sensação gélida e sombria tomou conta de mim.
Nada acontece neste castelo sem o consentimento da rainha…
Como se estivesse lendo meus pensamentos, Torin
enrijeceu os músculos e se afastou de mim, olhando por cima
do meu ombro.
Ele ergueu a mão para mim de forma protetora,
sinalizando para que eu me afastasse.
Será que eu precisava de proteção agora? Eu havia deixado
um rastro de sangue em meu caminho.
Devagar, eu me virei para encarar a rainha.
Do outro lado dos soldados presos, a rainha Mab surgiu
no salão. Uma coroa de hera e joias repousava em sua cabeça,
e os cabelos brancos ondulavam sobre uma capa de pelagem.
Ela arqueou uma sobrancelha ao olhar para as ervas daninhas
que aprisionavam os soldados de uniforme azul.
— Vejo que não libertou Ava, como prometido — disse
Torin, sua voz permeada de uma ameaça sutil.
A rainha parou do outro lado dos soldados.
— Eu não disse quando a libertaria. Ou se a jogaria da
torre antes. E acho que z outra promessa, não foi? Que se
você fosse ver a Garota Perdida na noite anterior ao torneio,
haveria consequências.
Olhei para as vinhas acima dela, mas não consegui
dominar força vital delas com minha magia, não quando já
estavam sendo possuídas por outra.
— Está vendo, Garota Perdida? — Ela irradiava luz. —
Você não é a única capaz de controlar a vegetação ao nosso
redor. — Mab sorriu, seus dentes brancos como ossos. — É
claro que eu não mataria Torin tão rapidamente. Acho que
mencionei alguma coisa sobre castrá-lo, e esmagar
lentamente o que restasse dele em uma árvore. Isavell, você
sabe o que ele fez com meu lho?
Engoli em seco. Não era uma pergunta que eu queria
responder, mas Torin o fez.
— Eu nunca enviei assassinos atrás de seus lhos. Eu os
enviei para matar você.
— Meus lhos dariam suas vidas para me proteger, e eu
faria o mesmo por eles. Acredito que este é o fardo do amor.
Mas você nunca conheceu a dor excruciante de perder um
lho. Você nunca conheceu a dor da morte de alguém quando
ela é pior do que a sua própria. Eu a senti duas vezes.
Ela começou a se aproximar cuidadosamente dos soldados
presos, e enquanto o fazia, uma das grossas vinhas
arroxeadas se projetou das paredes e tentou alcançar a espada
de Torin.
Ele a cortou com sua lâmina, assim como as próximas que
o atacaram. Um novo sentimento de horror cresceu dentro de
mim. A magia da rainha era como a minha própria.
Mas eu não tinha tempo para re etir sobre essa conexão
entre nós porque agora ela estava enviando suas armas
espinhosas em minha direção. Torin fez um movimento
giratório, e a Espada dos Sussurros cortou cada uma delas. Ele
não conseguiria manter esse contra-ataque implacável para
sempre.
Eu ainda sentia como se um poder infernal dentro de mim
estivesse enclausurado no interior de pedras congeladas. Se
eu ao menos pudesse desencadear uma onda de poder, seria
capaz de assumir o controle no lugar dela.
Dei um passo para longe de Torin, tentando pensar com
clareza em meu próprio coração batendo no peito.
Em quase todo ser vivo ao meu redor, eu sentia a marca da
magia venenosa dela. Ela maculava cada bra viva, exceto
aquelas ervas fortes e espinhosas enroladas nos soldados. Eu
ainda as controlava mentalmente, e poderia fazê-las se
esticarem na direção dela. Longos dedos avançaram para
alcançar a rainha.
Ela desviou, adentrando mais no salão, e se virou para
olhar para nós.
— Hum, receio que não seja o su ciente. Mas sabe,
Isavell, eu queria te contar sobre o que os pais dele zeram.
Eles prometeram um encontro entre nossas famílias.
Prometeram que iríamos realizar o comércio entre os reinos
depois de todos esses anos. Que compartilharíamos magia e
comida, que nos uniríamos contra a crescente ameaça dos
mortais. E eu nunca imaginei que um membro da realeza
seria capaz de mentir. Nós não mentimos aqui. Mas era uma
emboscada. Quando os vi trazendo a cabeça decepada do
touro, soube que eu havia sido traída. Eles exigiram que eu
acabasse com a maldição da geada. Mas não foram os Unseelie
quem os amaldiçoou, não é mesmo? — Sua voz cou mais
alta. O sorriso desapareceu de seu rosto e a fúria contorceu
suas feições. — Os Unseelie não são responsáveis pela geada
em Feéria — rugiu ela. — A culpa é toda sua, Torin.
A fúria dela era como uma névoa tóxica no ambiente,
fazendo minhas pernas tremerem. Uma ira que só poderia
estar à altura da minha própria.
Inclinei a cabeça, ignorando o barulho e o caos ao meu
redor, até que tudo que senti foi o chão de pedra sob meus pés
e a brisa fantasma que farfalhava as folhas das minhas ervas
daninhas.
Fechei os olhos e ordenei que crescessem, que
irrompessem das fendas. Um poder bruto e primitivo
emergiu do meu corpo, uma magia tão feroz que causou
rachaduras ferventes em meu peito gelado. O chão sob meus
pés se abriu com a força das plantas que se erguiam. As ervas
daninhas irromperam das pedras, rasgando o chão sob nós.
Senti meu corpo afundar, pedras e poeira chovendo ao
meu redor, até cair no chão arborizado abaixo. As raízes
retorcidas da árvore pressionaram minhas costas, e sobre
mim estava um corpo rme e musculoso em uma camisa
branca esfarrapada e encharcada de sangue. Torin arqueou o
corpo, cobrindo-me como um escudo, recebendo todo o peso
das pedras que caíam ao nosso redor. Estávamos rodeados por
plantas enormes e retorcidas.
Uma corrente de calor uía através da poeira que cobria
seu cabelo escuro, suas sobrancelhas, seus cílios. Quando
olhei por cima do ombro dele, pude ver o buraco que minhas
plantas haviam aberto no chão, com pelo menos seis metros
de diâmetro.
A rainha e eu concordávamos em uma coisa: daríamos
tudo de nós para proteger aqueles que amamos.
Estendi a mão para tocar seu rosto por um momento, e o
canto de sua boca se curvou em um pequeno sorriso.
Mas esta era a nossa chance de escapar. Torin passou por
mim, pegou a espada que estava por perto e me levantou do
chão. Ao nosso redor, os soldados estavam começando a se
mover e a empurrar as pedras caídas.
Torin começou a correr em uma direção, mas eu peguei
sua mão para fazê-lo parar por um momento.
Examinei rapidamente a rede de túneis de carvalho ao
nosso redor. Através da rede viva da árvore, eu sabia qual
túnel nos levaria a uma noite de luar.
— Por aqui — sussurrei, começando a correr. O ar
empoeirado tornava um pouco difícil de respirar. Aqui
embaixo, sombras tomavam conta do túnel escuro.
— Era você? — perguntou Torin baixinho. —
Controlando as plantas?
Minha respiração estava ofegante, mas tentei responder
mesmo assim.
— Parece que tenho um pouco de magia, no nal das
contas.
Deixamos a pergunta implícita pairar no ar, aquela sobre
minha magia ser perturbadoramente semelhante à da rainha
Mab.
Se nos aproximássemos o su ciente das paredes externas,
eu poderia tentar mover as enormes raízes, criando uma
abertura para nós, apesar de não ser a maneira mais sutil de
escapar.
— Por que você pulou na frente da minha espada? —
perguntei bruscamente.
— Ela prometeu libertar você.
— Ela não mente, mas isso não a torna con ável, não é?
Ela tem soluções alternativas.
— Ava. — Sua voz grave saiu um pouco aguda demais. —
Não é como se tivéssemos muitas opções.
É claro que ele tinha razão, mas percebi que eu ainda
nutria uma centelha ardente de raiva por ele. Como se ele
tivesse me abandonado por maldade e não para salvar minha
vida. A parte vazia e solitária de mim não parecia saber a
diferença, ou se importar, focando apenas o fato de que eu
havia sido deixada para trás.
— Torin, acho que consigo nos tirar daqui. Encontrei
Cala, Aquela com Véu. Segundo ela, há um templo à deusa das
cinzas abandonado perto do rio. À leste do castelo. Lá há um
espelho que pode levar a gente para onde quisermos ir.
Eu estava cuspindo as palavras entre respirações
ofegantes, e sabia que o esforço de falar diminuía minha
velocidade, mas eu precisava contar a ele de qualquer forma.
Se por acaso eu não conseguisse sair da Corte das
Lamentações, talvez ele conseguisse voltar para casa.
— Eles amam a deusa das cinzas aqui — murmurou ele.
— O amor é uma forja — disse ele em tom zombeteiro.
Assim que as palavras saíram de sua boca, ele olhou para
trás.
Ele levou um dedo aos lábios e eu senti as vibrações dos
soldados correndo em nossa direção. Olhei para trás por cima
do ombro e senti um nó no estômago ao ver tochas agitando-
se no ar, aproximando-se de nós em uma velocidade que eu
não conseguia mais superar. Meses em cativeiro não me
tornaram mais forte.
Mas o que eu tinha era o poder de me esconder.
Agarrei Torin pelo braço e o puxei para uma fenda atrás de
mim, uma abertura formada por raízes entrelaçadas. Com
minha magia percorrendo a pele, ampliei o espaço entre as
raízes, formando uma abertura grande o su ciente para nós
dois.
Empurrei Torin para dentro do buraco, captando um
brilho de surpresa em seus olhos. Então entrei de costas
contra ele e invoquei uma cortina de vinhas para nos
esconder. A mão de Torin deslizou em volta da minha cintura,
um antebraço poderoso em volta da minha barriga, seus
dedos logo acima de um dos ossos do meu quadril. Tão perto
dele, eu conseguia sentir seus músculos rígidos de tensão
atrás de mim. Claramente ainda havia um pouco daquela
ambrosia em minhas veias, porque a proximidade de Torin
era uma distração selvagem, e seu cheiro terroso me envolvia
como uma carícia. Através do tecido de sua camisa, sentia seu
coração bater nas minhas costas. À medida que os soldados se
aproximavam, descansei a cabeça contra ele, bem na curva de
seu pescoço.
Ele abaixou um pouco a cabeça, como se quisesse
sussurrar alguma coisa, mas os soldados estavam perto e ele
não disse nada. Ainda assim, sua respiração aqueceu a lateral
do meu rosto como a luz do sol na copa de uma árvore.
Quando seu polegar percorreu meu quadril em uma carícia
lenta, fechei os olhos e senti meu corpo derreter contra o
dele.
Puta merda. Como ele conseguia ser tão sexy em uma
hora destas? Eu nunca mais queria deixá-lo ir, nunca mais
deixar existir nem mesmo um centímetro de espaço entre
nós.
No entanto, eu teria que deixá-lo ir. Quando ele voltasse
para Feéria e encontrasse uma nova esposa…
Uma rachadura gelada se espalhou pelas brasas do meu
peito.
Melhor não pensar nisso agora.
Melhor pensar em simplesmente tentar sobreviver.
Melhor pensar em sair da Corte das Lamentações com nossos
corpos e mentes intactos.
Quando não se ouvia mais os passos dos soldados, senti
Torin exionando os músculos atrás de mim. Ele se inclinou e
sussurrou:
— Senti sua falta, criança trocada.
— Vou tirar você daqui, Torin — sussurrei de volta.
— Você está me salvando? — Havia um tom de
divertimento em sua voz grave.
A questão era que, sim, eu estava salvando-o.
Atravessei o véu de vinhas e conduzi Torin pelo corredor
escuro.
Caminhamos por mais alguns minutos até que eu
consegui sentir as raízes da árvore banhadas pelo luar. A
liberdade estava do outro lado dessas raízes.
— É aqui — sussurrei para Torin. — Cuidado com os
destroços.
Meu corpo formigava por causa da ambrosia enquanto eu
passava as pontas dos dedos pelas raízes retorcidas. Com a
mão sobre a casca, senti o vento que soprava nas folhas dos
galhos.
O mundo ao nosso redor estremeceu, e terra e poeira
caíram do teto até que as raízes se deslocaram e se separaram.
E então havia um céu estrelado sobre nós.
Assim que uma abertura grande o su ciente se abriu nas
raízes, Torin pegou minha mão e saímos correndo noite
adentro. Respirei o ar fresco e quente da Corte das
Lamentações.
A sensação de euforia e o sorriso ofuscante de Torin me
iluminaram por inteiro.
Aqui fora, o ar percorreu minha pele. Só precisávamos
chegar ao rio, encontrar o templo em ruínas.
Meu olhar pairou sobre o cercado onde os cavalos estavam
imóveis e calmos sob o luar, alheio ao caos no castelo.
Ao longe, um brilho vermelho iluminava o céu, uma
centelha de rubi contra as sombras. Precisei de um momento
para compreender. O vulcão havia entrado em erupção. Esta
noite, a deusa das cinzas estava viva e furiosa.
Caminhamos uns seis metros na grama até que eu ouvi o
barulho da árvore se movendo atrás de mim. Senti um nó no
estômago.
Com um pavor crescente, eu me virei e dei de cara com as
vinhas escuras da rainha serpenteando das paredes de pedra.
O ar deixou meus pulmões.
Só tive tempo de gritar um breve alerta para Torin antes
que as vinhas se enrolassem em minha cintura, erguendo-me
do chão em direção ao céu.
Shalini

E u estava diante do tablado, em um salão que eu nunca


havia visto antes, ouvindo os murmúrios da multidão ao meu
redor.
Meus dentes batiam descontroladamente. Aqui dentro
não estava muito mais quente do que lá fora, e ferros frios
prendiam meus pulsos atrás das costas. Olhei para a esquerda
e senti um aperto no peito ao ver Aeron. Seu cabelo loiro
pendia diante de sua cabeça abaixada, e ele nem sequer me
olhava agora.
Atrás de mim, havia uma leira de soldados armados com
espadas em punho. Acima deles, guras grotescas de gigantes
estavam esculpidas na pedra sobre a entrada do salão. Entre
os gigantes estava representada a balança da justiça. Porque
essa seria a performance de hoje, não é? Inspirada na estética
da justiça. Só não no real conceito de justiça, disso eu tinha
certeza.
Este lugar era chamado de Salão das Guildas, e eu estava
certa de que o teto alto havia sido projetado para intimidar,
assim como todo o resto de seu design. Aeron havia me dito
que este salão era onde as guildas da cidade se reuniam para
discutir seus negócios, mas também onde eram realizados
julgamentos importantes— como julgamentos por traição.
Um tapete vermelho-sangue se estendia do fundo do salão
até o tablado. Janelas estreitas de vitrais se estendiam até o
teto, e candelabros lançavam uma luz bruxuleante sobre as
pessoas amontoadas no salão para assistir a nossa
condenação — e todos nós já sabíamos o veredito. Isso não
terminaria comigo saindo livre e levando Aeron a um
barzinho.
O olhar de Aeron encontrou o meu e um músculo se
contraiu em sua mandíbula.
— Nós vamos sair desta — disse ele baixinho.
Ele estava tentando ser gentil, e eu assenti, ngindo
acreditar nele.
A única forma de manter minha sanidade neste momento
era imaginar vividamente meu pequeno apartamento e o
Trevo Dourado. Nesta situação, meu mundo de fantasia não
era o mundo de contos de fadas. Era um bar sujo de cerveja
com nachos de qualidade duvidosa. Esse era o meu paraíso. E,
enquanto eu pudesse, manteria esse mundo reconfortante
vivo em minha mente.
Quando Moria cruzou o estrado, com a cauda do vestido
arrastando sobre o tapete vermelho, eu soube que estávamos
prestes a assistir mais uma performance. Seu cabelo cor de
vinho caía em ondas sobre uma capa branca como a neve, e a
coroa brilhava em sua cabeça como pingentes de gelo.
— Me dói — começou ela — que tenhamos que continuar
a erradicar o agelo da traição em nosso reino. Mas ainda
estamos famintos, ainda estamos congelando aqui em Feéria.
Porque mesmo com uma rainha, minha magia não pode
competir com as maldições que os Unseelie e seus aliados
lançaram sobre nós. Os Unseelie têm agentes malignos aqui
em Feéria para executar suas vontades. Conspirando com
Torin após sua traição. — Ela percorreu o palco como Lady
Macbeth, com a mão sobre o estômago, como se tudo não
fosse simplesmente um grande papo-furado.
Ela girou de forma dramática para nos encarar, e me
perguntei como, exatamente, o sistema legal funcionava em
Feéria. Eu tinha a impressão de que não teríamos a cortesia
de uma representação legal.
Enquanto ela discorria sobre traição e espiões demoníacos
secretos, Aeron ergueu a cabeça. Sua mandíbula se contraiu, e
seus olhos reluziram com um brilho feroz.
— Tudo o que ela está dizendo é mentira — rosnou ele.
— O rei Torin não nos traiu. Foi você quem nos traiu ao se
recusar a se sentar no trono. — Ele olhou para mim, os olhos
ardendo. — Estive com Shalini por semanas. Se ela é uma
espiã, pode me chamar de princesa.
Meu coração se encheu de ternura com sua tentativa de
me defender, mas eu sabia que era inútil. A defesa de Aeron
foi interrompida quando soldados o pegaram pelos braços e o
arrastaram para fora.
O pânico tomou conta de mim. Gritei seu nome enquanto
ele era levado para fora do salão. Alguém tapou minha boca
com a mão, e fui forçada a olhar para a rainha. Lutei para me
desvencilhar do meu agressor, meus braços queimando pela
posição desconfortável em que estavam, torcidos às minhas
costas.
Os lábios da rainha Moria se contraíram em uma linha
na e vermelha.
— Já terminou sua birra? — perguntou ela, e então
ergueu os olhos para o teto, suas íris cor de vinho reluzindo.
— Quando eu era criança, se aprontasse alguma travessura,
meu pai, o rei dos Dearg-Due, me dava tempo para pensar no
que eu tinha feito, tempo do lado de fora do castelo em uma
pequena jaula. Lá fora, sob o olhar zombeteiro dos
camponeses, no frio congelante do inverno, aprendi o valor
da obediência. — Seu olhar percorreu a multidão novamente,
os olhos brilhando. — Ele queria que eu fosse forte, como o
rei Caerleon nos velhos tempos, o líder mais forte que os
Seelie já tiveram. E enquanto eu estava lá fora, me tornando
mais forte, apenas minha irmã mais velha vinha ajudar. Ela
me alimentava e me trazia água em segredo. E também um
pano para que eu pudesse me lavar e tentar preservar um
pouco da minha dignidade. E onde essa bondade, essa
indulgência, a levou? O rei a enterrou sob a terra congelada.
Ela se virou para nos encarar novamente, com lágrimas
correndo por suas bochechas. Pela primeira vez, tive a
impressão de que sua demonstração de emoção era
verdadeira.
— Neste mundo — continuou ela —, as mulheres não
podem ser fracas. As pessoas esperam que sejamos
indulgentes e maleáveis, e quando somos, nos esmagam como
uma criança pisoteando uma or. É por isso que, diante de
vocês, está uma Rainha de Ferro, tão forte e implacável
quanto um rei. — Ela ergueu o punho, e suas bochechas
coraram.
— Só eu sou capaz de protegê-los dos demônios que
querem fazer-lhes mal. Só eu sou capaz de protegê-los dos
demônios que querem fazer seus lhos passarem fome. Só eu
tenho a coragem e a força de espírito para fazer o que é
necessário, mesmo que o necessário seja desagradável. Só eu
estou disposta a fazer o trabalho sujo, porque sei o que
acontece quando as mulheres são fracas — gritou ela. —
Aprendi isso com minha irmã. — Ela se virou, andando de um
lado para o outro no tablado. — Ela foi a única pessoa em
quem já con ei, a única pessoa que já amei. E todos vocês
esqueceram que ela existia.
Sua voz ecoou pelos arcos congelados acima de nós, e ela
pareceu perceber que estava saindo do roteiro. Ela se virou
novamente para nós, os olhos selvagens.
— Não fui capaz de protegê-la do rei Torin e de sua
perversidade, mas vou proteger vocês. Não vou cometer o
mesmo erro novamente.
Eu podia senti-la ao meu redor — a energia da multidão
que absorvia cada palavra dela. Cada olhar que eu encontrava
estava transbordando de ódio.
Mordi o dedo que pressionava minha boca. Eu precisava
de pelo menos um minuto para me defender, para explicar,
para tentar convencê-los de que Aeron e eu não tínhamos
nada a ver com o congelamento do reino.
Soldados me levaram embora, e eu gritei para a multidão
que Moria poderia se sentar no trono e acabar com tudo isso.
Ela tinha esse poder. Mas ninguém parecia me ouvir, e os
soldados me arrastaram para fora com brutalidade redobrada.
O pânico tomava conta da minha mente, e eu mal conseguia
respirar.
A multidão me empurrava e me sacudia de um lado para o
outro, e eu me perguntava se eu ao menos conseguiria chegar
até as gaiolas lá fora, ou se eu estava prestes a ser espancada
até a morte ali mesmo, no chão de pedra, mas os soldados
fecharam um círculo ao meu redor. Eu estava grata por sua
proteção temporária, mesmo sabendo que eles me
mantinham viva somente para que eu pudesse ser pendurada
em uma gaiola gelada, para morrer em público como um aviso
para os outros.
Meu medo se transformou em um rugido em minha
mente, até que senti como se estivesse me separando do meu
próprio corpo. Parecia que tudo estava acontecendo à
distância com outra pessoa — uma pobre mulher empurrada
pelos corredores, até o ar gelado lá fora. Uma pequena boneca
quebrada en ada em uma gaiola gelada. Eu sabia que ela
sentia o frio cortante em sua pele, mas eu mesma não o
sentia. Ao longe, ouvi o som de correntes raspando contra a
pedra enquanto erguiam a gaiola pelas paredes escuras do
castelo. Aqui, ela congelaria como um aviso aos outros, como
uma mensagem para que o reino fosse mantido sob controle.
Somente quando as correntes pararam de se mover contra
as pedras, eu recuperei o juízo, e um arrepio de horror me
deixou sem fôlego. Um vento cortante soprou sobre mim,
agitando meu cabelo.
Um feérico poderia sobreviver aqui por talvez uma
semana ou duas, mas uma humana como eu? Eu não achava
que tinha muito tempo.
Pelo menos eles haviam removido as algemas, e eu me
enrolei na minha capa tanto quanto possível, tentando
proteger o rosto e as mãos sob a lã grossa.
De uma gaiola acima de mim, eu podia ouvir Aeron
gritando meu nome.
Ava

E u estava pendurada nas vinhas espinhosas da rainha, meus


pés a apenas alguns centímetros das pedras do castelo.
Com sua magia poderosa, ela as apertou ao meu redor,
prendendo meus braços junto ao peito. O medo me dilacerava
com suas garras a adas. O poder da rainha era mais forte do
que o meu, e eu não tinha certeza se conseguiríamos sair
deste lugar. O pânico pressionava contra minhas costelas.
Olhei em volta, procurando por Torin, mas não vi nenhum
sinal dele.
Banhada em prata, a rainha Mab assumia uma postura
vitoriosa. Seu lho, Morgant, estava atrás dela, seus músculos
e trajes rasgados pelas minhas vinhas espinhosas, o sangue
escorrendo por seu corpo. Suas asas escuras pendiam imóveis
em suas costas, e ele segurava a espada de Torin. Seus olhos
cor de âmbar estavam xos em mim, a cabeça meio abaixada.
O vento noturno agitava o cabelo da rainha enquanto eu
lutava contra sua prisão de espinhos. Minha respiração estava
ofegante enquanto, lentamente, ela se aproximava cada vez
mais.
— Eu estava tentando dizer algo a você, Isavell, mas você
nos pegou de surpresa.
— Então esse é meu nome, não é?
Quando ela se aproximou mais um pouco, percebi que ela
não se achava tão vitoriosa quanto eu havia pensado de início.
Ela mantinha a cabeça erguida e a postura ereta, mas a boca
estava tensa. E, de perto, consegui perceber a rigidez de seus
ombros curvados.
A rainha estava com medo. Mas medo do quê? Olhei para
Morgant, e percebi nele a mesma postura rígida, punhos
cerrados e veias proeminentes nos antebraços.
— Antes de jogar você da torre, é melhor que saiba o que
aconteceu. — Sua voz falhou um pouco. Será que ela estava
com medo de mim?
O canto de sua boca se contraiu.
— Deveríamos juntar nossas famílias e discutir uma
futura aliança. A mãe de Torin propôs um noivado entre
nossos herdeiros. Sempre quis meus herdeiros Unseelie no
trono de Feéria. Eu aceitei, é claro — disse ela bruscamente,
como se eu a estivesse repreendendo por sua decisão. — Mas
então eles me pediram para remover a maldição da geada do
reino. — Ela mostrou os dentes. — A maldição não era
minha, eu não podia removê-la. Era de Modron, a que vê o
passado. É ela quem odeia os Seelie.
— Do que você está falando?
— Ninguém a queria por perto — disse a rainha Mab,
ignorando minha pergunta. — E quem poderia culpá-los?
Aquela mulher era venenosa, ela revelava os segredos de
todos. Há muito tempo, o rei a baniu da corte, e ela
desencadeou a onda invernal que tomou conta do reino. Ela
enviou os Erlkings e os dragões de seu lar na oresta para
atormentar os Seelie. Eles devem matá-la para quebrar a
maldição. Não tenho nada a ver com isso.
Cerrei os dentes, vasculhando o parapeito da torre
mergulhado em sombras em busca de algum sinal de Torin.
— Por que você está me contando tudo isso?
— No banquete, a rainha Seelie pegou minha lha nos
braços, ngindo brincar com ela — sibilou Mab. — A rainha a
deu para uma ama segurar. Alguém trouxe a cabeça decepada
de um touro preto. Uma ameaça bárbara, não é? Tentei correr
até minha lha, mas o rei Seelie me congelou, e assisti
enquanto a ama assassinava minha herdeira diante dos meus
olhos. Esmagando-a contra as rochas. Então, quando eu
amaldiçoei a família real Seelie, acredite, eles zeram por
merecer.
Eu a encarei, sem entender mais nada.
— Eles mataram sua lha?
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Aparentemente, a ama era uma mestra da ilusão.
Talvez ela não tenha conseguido lidar com as ordens de seu
rei. Porque aqui está você, Isavell. Viva.
Eu já suspeitava, mas ouvir isso em voz alta teve um efeito
vertiginoso e desorientador. A náusea subiu pelo meu
estômago. Não é de se admirar que eu tivesse deixado um
rastro de sangue por onde passei, e que matar me parecesse
tão natural. Um verdadeiro monstro me deu à luz.
O vento agitava o cabelo branco da rainha.
Será que ela sabia que a força total da minha magia estava
tão próxima da superfície neste momento? Que eu quase
conseguia sentir o gosto das cinzas na minha língua? Antes,
ela era mais forte. Mas agora? Minha magia era um rio
violento de lava sob uma rocha fria, e estava prestes a
irromper.
O amor é uma forja.
Respirei profundamente, fervendo de raiva. Então era
assim que ela enxergava o amor?
— Então, é assim que você recebe a lha que achava estar
morta? Deixando-a ser trancada em uma masmorra?
Açoitada? Passando fome? Minha verdadeira mãe é quem
cuidou de mim.
Uma faísca cruzou seus olhos.
— Sua mãe humana te tornou fraca.
Morgant desviou o olhar de mim, e eu senti que ele estava
com vontade de desaparecer nas sombras.
Enquanto eu o encarava, as peças se encaixaram em
minha mente. Ele não sabia quem eu era até Mab ordenar que
curasse Torin. Ele deve ter cado confuso depois disso. Foi
então que ele começou a levar sabonete para mim, a me dar as
dicas de que eu precisava para sobreviver.
A rainha Mab semicerrou os olhos.
— Não era isso o que eu queria, Isavell. Eu queria uma
herdeira Unseelie. Uma lha com magia. Com asas. Porque,
sem tudo isso, você não é minha herdeira. É verdade que você
conseguiu invocar um pouco de magia. Você fez um ótimo
trabalho destruindo minha casa.
Ergui uma sobrancelha.
— Eu só z o que a árvore queria. Ela quer se livrar destas
pedras. De sua corte sufocante.
— Você acha que conhece minha casa melhor do que eu?
Eu sou esta árvore. O castelo é uma criança que seguro em
meus braços. Acho que ninguém nunca disse a você como a
maternidade pode ser um fardo terrível.
Inspirei profundamente, sentindo um aperto no coração.
Talvez Chloe tenha me deixado “fraca,” mas ela nunca me
tratou como um fardo.
Minha raiva estava prestes a me sufocar.
— O que você quer de mim?
— Eu quero uma herdeira que não esteja quebrada,
Isavell. Quero minha lha. E todas essas mortes não
signi cam nada se nós, os Unseelie, não tivermos o que
merecemos, o reino de Feéria.
Uma porta se abriu na torre, e três soldados surgiram
arrastando Torin pelos pulsos, que estavam rmemente
envolvidos em algemas de folhagem espessa. Seu olhar
encontrou o meu, seus olhos claros melancólicos.
— Soltem ele — rosnei.
Um sorriso sombrio se formou nos lábios da rainha.
— Eu não queria fazer minha lha gritar, mas uma rainha
faz o que é preciso. Ava, o que farei em seguida doerá mais em
mim do que em você.
Senti um nó no estômago, e olhei para Morgant. Seus
olhos pareciam buscar os meus. Suplicantes. Suas palavras
ecoavam na minha cabeça…
Na família real, todos nós temos asas. Alguns são só muito
estúpidos para usá-las.
— Você já tem sangue nas mãos. — Por apenas um
instante, ela abaixou as vinhas até que eu estivesse ao seu
alcance, e ergueu a mão para tocar minha bochecha. Seus
olhos brilhavam. — Você é minha lha, e isso doerá mais do
que os outros. Mas eu me pergunto às vezes: o que é mais
uma morte, quando já sou assombrada por um mar de sangue
em meu passado? Quando é tudo pela glória de nosso reino?
Cerrei os dentes. Tentáculos amejantes da minha magia
aprisionada acariciavam o gelo em meu peito, derretendo-o.
— A morte de Torin — cantarolou ela — não pesará em
minha alma de forma alguma. A nal, ele assassinou meu
lho. Vou sufocá-lo.
Olhei para Torin novamente, sentindo minha alma
queimar. As vinhas da rainha rastejavam sobre seu pescoço,
envolvendo sua garganta. O terror tomava conta de mim
enquanto eu as via apertarem cada vez mais, roubando seu ar.
Seus olhos se arregalaram, e o pânico dominou meu peito.
A rainha monstruosa foi quem me deu à luz.
— Então me jogue da torre, Vossa Majestade — gritei. —
É o que prometeu fazer desde que nos conhecemos.
Meu coração batia forte contra minhas costelas.
— Muito bem, então. — A expressão de Mab era sombria
enquanto ela movia o pulso e a vinha disparava para a noite
ventosa, muitos metros acima do chão rochoso lá embaixo.
Respirei fundo, e a vinha se desenrolou.
O vento me atingia violentamente, e o chão se aproximava
muito rápido.
Enquanto despencava, o tempo começou a passar mais
devagar. Nos recantos da minha mente, eu vi Torin, uma
criança em sua própria coroação após a morte dos pais. Sua
expressão era séria demais para um garoto da idade dele, e a
pequena testa estava franzida.
O vento agitava meu cabelo enquanto eu caía, e minhas
memórias passaram pela minha cabeça: Chloe fazendo
mingau quente para mim no café da manhã, a intensa solidão
que senti em seu funeral. Shalini rindo tão alto a ponto de
roncar. O dia em que conheci Torin no Trevo Dourado…
A expressão em seu rosto naquela noite na cabana,
quando ele me contou sobre sua mãe.
A rocha fria em meu peito se partiu, e a magia fervente
acumulada nalmente explodiu. Uma sensação cálida de
formigamento percorreu minhas costas.
Um poder abrasador irrompeu de dentro de mim, e
minhas asas se abriram, rasgando o tecido no do meu
vestido. Fiquei sem fôlego, eufórica.
O bater das minhas asas era instintivo, uma parte inata de
mim. Eu pairava a apenas alguns metros do chão, perto o
su ciente para ver os seixos azuis-escuros no caminho e as
nuvens de poeira formadas pelo movimento das asas.
Minhas asas nas e escuras agitavam o ar atrás de mim, e
os músculos relaxavam e contraíam contra minhas
omoplatas. Como um batimento cardíaco, elas pulsavam
rítmica e automaticamente. A sensação do vento correndo
pelos ossos delicados das asas causava uma sensação de
euforia pelo corpo inteiro.
Meu coração batia forte contra as costelas, e o poder ardia
em meu corpo. Jamais havia me sentido tão forte em toda a
minha vida.
Olhei para cima e vi Morgant pairando no ar sobre mim,
com o braço esticado. Ele estava a centímetros de mim. Eu o
encarei enquanto o vento agitava seu cabelo branco. Lá estava
ele, pronto para me pegar.
Um sorriso torto se formou em seus lábios, e ele me
entregou a espada de Torin.
— Você precisa sair daqui, Isavell. Leve seu rei Seelie para
casa antes que algo aconteça com ele.
Minha respiração saiu trêmula. Ele realmente estava me
deixando fazer isso?
Batendo as asas no ar, voei até o parapeito do castelo.
Minha magia enviava formigamentos pelos meus membros
enquanto eu pairava sobre a torre, observando a rainha. Com
um rosnado, assumi o controle das vinhas e as ordenei em
direção a ela, prendendo-a em um caixão de vegetação. À
medida que as plantas iam ao seu encontro, ela rosnou.
Com um movimento rápido do pulso, libertei Torin das
vinhas. Ele arfou e levou as mãos à garganta.
Voei até ele e passei os braços em torno de sua cintura. Ele
fez o mesmo, seus antebraços envolvendo-me com rmeza.
Inspirei o cheiro dele, de terra e madeira misturado com
seu sangue, e o carreguei pelos céus. O esforço de erguê-lo
quase me manteve presa ao chão, e uma dor percorreu
minhas asas quando levantamos voo. O vento nos atingia
violentamente enquanto eu o carregava sobre o muro da
torre, e o peso de Torin nos puxava em direção ao chão.
Agora eu podia voar, mas minhas asas não foram feitas
para carregar um homem grande e musculoso. Eu as inclinei
para diminuir o impacto da queda, esperando por um pouso
suave.
Não foi o que aconteceu. Pousamos com força em um
emaranhado de membros e asas, o chão nos atingindo com
um baque.
Fiz uma careta e procurei por Torin. Sujo de terra e
sangue, ele arqueou uma sobrancelha para mim e deu um
sorriso torto.
— Pouso gracioso.
— Vamos até os cavalos, Torin.
Mordi o lábio, virando-me para olhar o castelo. Eu poderia
destruí-lo. Poderia usar a árvore para arrancar pedra por
pedra e enterrar todos os Unseelie lá dentro, então não
precisaria me preocupar com ninguém nos seguindo.
Mas eu não fazia ideia de quantas pessoas eu estaria
matando, e os olhos assombrados da rainha não saíam da
minha cabeça. Engoli em seco.
Eu só precisava que meu irmão a mantivesse presa por
tempo su ciente para nossa fuga.
Ava

O s cascos dos cavalos batiam forte contra as rochas,


levantando poeira. Estávamos cavalgando há horas.
Depois de pousarmos, minhas asas desapareceram
novamente. Agora, eu me inclinava para trás, recostando-me
em Torin. Ele me abraçava rmemente enquanto
cavalgávamos para leste, seu braço como uma barra de ferro
em volta da minha cintura.
Depois de todo aquele tempo, de todas aquelas semanas
na cela revivendo a morte dele na minha mente até estar à
beira da loucura, era difícil acreditar que ele realmente estava
ali comigo. Tangível bem atrás de mim, palpável como a terra
sob nós.
Depois de um mês de escuridão, agora eu sentia como se o
sol me iluminasse de dentro para fora.
Mesmo depois de várias horas, meu coração não havia
diminuído seu martelar incessante. O vento deslizava por
nós, trazendo consigo o cheiro de lava e cinzas.
Suspirei.
— Se eu for para casa, para o apartamento de Shalini,
quais são as chances de eu encontrar Aeron por lá?
— Bem altas, eu diria. Supondo que Orla esteja
governando na minha ausência.
Mordi o lábio.
— O que você quer dizer com isso?
— Somente o monarca de Feéria pode conceder permissão
para saídas ou retornos. — Sua voz grave ressoou em seu
peito. — E eu não estive por lá para conceder permissão.
— Então, se eu quisesse fazer uma visita, precisaria
perguntar a você primeiro?
— Ava, meu amor. — Sua voz soava rouca e trêmula. —
Você não poderá visitar Feéria. A maldição não funciona aqui,
mas funcionará em meu reino. Você não pode car perto de
mim em Feéria.
Senti como se pedaços de vidro perfurassem meu coração.
Tudo o que eu conseguia compreender agora era que eu não
estava pronta para pôr um m em tudo isso.
— Claro.
— Mas, Ava, se você voltar para casa e tiver vontade de
en ar uma espada na garganta de Andrew, por favor, me
avise, certo? Eu tenho plena convicção de que consigo matá-lo
sem nenhuma consequência.
— Obrigada. Tenho certeza de que consigo realizar meus
próprios assassinatos agora. — Minha voz soou fraca, e eu
sentia um peso no peito. — Você ouviu o que Mab disse? Que
a culpa da maldição de vocês é de alguma anciã Seelie
ranzinza. Modron, a que vê o passado. Ela disse que se
Modron for morta, a maldição será desfeita.
— Você acredita nela?
Respirei fundo.
— Mab é uma pessoa terrível. Mas eu realmente não acho
que ela mente.
Quando chegamos ao templo em ruínas na beira do rio,
raios do sol da manhã atravessavam as folhas, incendiando-as
com o primeiro rubor do amanhecer. As pedras arruinadas do
templo estavam salpicadas de luz dourada, e um telhado
desmoronado se abria para o céu.
Torin puxou as rédeas do cavalo, fazendo-o parar do lado
de fora do templo. Ele desmontou primeiro, depois me pegou
pela cintura, para me ajudar a descer.
Olhei para o meu corpo sujo e manchado de sangue e dei
um mergulho rápido no rio, lavando a sujeira, o sangue, e só
Deus sabe o que mais. Bebi algumas mãos cheias de água
cristalina. Eu nunca mais subestimaria a água. Mas eu não
podia perder muito tempo aqui, então saí do rio.
Uma onda de esperança tomou conta de mim quando
entramos no templo. No lado oposto às colunas truncadas,
havia um altar. Assim como Cala havia dito, um espelho
pendurado sobre uma forja vazia re etia os raios de luz da
manhã. Meu peito relaxou enquanto eu o encarava.
Finalmente eu libertaria Torin deste lugar.
Eu me virei para ele, a luz da manhã tingindo de dourado
suas feições perfeitas. Somente agora eu tinha tempo para
pensar no que isso signi cava, e um nó se formou na
garganta. Esta seria a última vez que nos veríamos. Ou, pelo
menos, a última vez que nos tocaríamos, até algum momento
no futuro, quando não sentíssemos mais o calor
incandescente do amor.
— Vá em frente — murmurei. — Diga o nome do lugar
para onde você quer ir.
Torin se virou para o espelho, apoiando as mãos em cada
lado da moldura. Meu coração se partiu, e respirei fundo.
— Você deveria ir primeiro. — Ele se virou para mim.
Sacudi a cabeça.
— Vá. — Porque havia mais uma coisa que eu queria
fazer, e não acho que ele aprovaria.
Ele acariciou minha bochecha com a mão.
— Esta é a última vez que posso tocar em você, Ava. Sei
que precisamos sair daqui, mas só preciso de um pouco mais
de tempo.
Meu coração começou a acelerar, e tentei sentir as
vibrações de cavalos ou soldados se aproximando pelo solo.
Não senti nada.
— É claro que eu achei você bonita desde a primeira vez
que eu a vi — disse ele —, mas isso mudou para algo mais
quando vi você no torneio, quando deixou que Eliza te
acertasse apenas para preservar sua honra. Você mal a
conhecia, e os Seelie não foram muito receptivos com você…
Foi quando percebi que estava perdidamente apaixonado por
você. Eu deveria ter parado naquele momento. Deveria ter
acabado com tudo, cancelado o casamento.
Senti um nó na garganta.
— Não faz sentido se punir por decisões tomadas no
passado, Torin. Tudo o que podemos fazer é seguir em frente.
Ambos estamos vivos, o que agora parece um milagre.
— Não posso ir embora sem te beijar uma última vez. —
Sua voz estava tomada de tristeza.
Ele se inclinou, e seus lábios pairaram sobre os meus. Uma
de suas mãos percorreu meu cabelo, entrelaçando os dedos
entre os os. Torin pressionou os lábios contra os meus,
apoiando-me de costas contra a parede fria.
Uma última vez…
Essas palavras ecoaram em meu peito como uma canção
agridoce. Um último beijo, um último abraço.
Sua língua se moveu conforme o beijo se tornava mais
intenso, e o desejo tomou conta do meu corpo. Seu poder
primitivo, quente e vibrante percorreu minha pele, e me
concentrei para absorvê-lo, pois esta seria a última vez. O
pensamento de perdê-lo perfurou meu peito, e tudo o que
queria era devorá-lo por completo.
A água do rio umedecia meu corpo, e cada centímetro meu
parecia vivo, tocado pelo ar intenso da oresta. Eu estava
plenamente ciente de cada parte onde o vestido molhado
estava grudado contra minha pele.
Com uma das mãos em meu cabelo, Torin moveu a outra
para minha cintura. Ele me beijava com um calor
extraordinário, como se quisesse memorizar meus lábios, o
que me dizia que seu coração também estava partido com a
separação.
Ele se afastou lentamente, os olhos azuis ardendo com a
possessividade de um rei.
— Queria poder levar você comigo.
Estendi a mão para sua camisa esfarrapada,
desabotoando-a. Será que esta seria mesmo a última vez que
meus dedos percorreriam seu abdômen esculpido e as espirais
das tatuagens em sua pele?
— Eu também queria isso, Torin. Você não faz ideia.
Mesmo enquanto a tristeza castigava meu peito, meu
desejo por ele exalava como vapor da minha pele exposta.
Com cuidado, ele desceu uma alça do meu vestido,
expondo meu seio. Torin ergueu a mão, acariciando-me e
deixando meu mamilo duro como pedra contra sua palma.
Ele levou a boca ao meu pescoço, lambendo a água do rio
da minha pele.
Tentei memorizar seu cheiro enquanto o inspirava, o
cheiro musgoso e mágico de uma oresta encantada. Este
seria o último momento em que sua magia primitiva e terrena
se entrelaçaria em mim. Eu precisava memorizar a sensação
dele, o seu cheiro. Porque quando ele partisse, eu estaria em
um mundo tomado pelas sombras.
Arqueei as costas, pressionando meu seio contra sua mão.
Cada uma das extremidades sensíveis dos meus nervos ardia
com uma verdade surpreendente: que eu era dele, e ele era
meu. Com ou sem maldição, nós pertencíamos um ao outro,
unidos por uma profunda conexão. E a ideia de que este era o
nosso último momento juntos era impossível de suportar.
Meu pescoço queimava onde seus lábios tocavam minha
pele com repetidos beijos quentes e lânguidos. Ele se movia
em um ritmo indolente, controlando-se, mas eu conseguia
sentir seu desespero por trás de cada beijo abrasador. A forma
como seus dedos apertavam meu corpo, a rigidez de seus
músculos. O rei Seelie estava em guerra pelo controle de si
mesmo.
Inclinei o pescoço, apoiando a cabeça contra a parede do
templo. Ele era o homem mais lindo que eu já tinha visto, e
um desejo líquido pulsava dentro de mim. Entrelacei meus
dedos em seu cabelo escuro, gravando a sensação em minha
memória.
Como eu poderia deixá-lo ir depois de tudo isso?
Eu não sabia se já tinha me sentindo realmente viva até
este momento. Cada centímetro da minha pele ansiava por
seu toque, e eu saboreava o roçar de seus lábios contra mim,
tentando gravar cada momento em meu coração para sempre.
— Você sabe que pertencemos um ao outro, não é?
— Sim. — A palavra pareceu arrancada dele contra sua
vontade.
Sua mão passou do meu seio para minha cintura, seus
movimentos frustrantemente lentos. Principalmente porque
poderíamos ser descobertos a qualquer momento, e acabaria
comigo se Torin fosse capturado novamente.
— Torin, não quero que isto acabe. — Suspirei. — Mas
não quero que encostem um dedo em você de novo.
— Não posso me apressar com você. Se este for o único
momento em que podemos estar juntos… — Ele me segurou
com rmeza e não terminou sua frase. Como se tivéssemos
todo o tempo do mundo, ele ergueu o rosto e inclinou seus
lábios contra os meus, beijando-me libidinosamente.
Meu corpo ardeu de desejo.
Eu ansiava por suas mãos em mim, e uma dor latejante se
acumulava entre minhas coxas. Deslizei a ponta dos dedos
sobre o cós de sua calça. Ele inspirou profundamente.
— Vestido. Tire. — Havia um tom de desespero em sua
voz rouca, e ele começou a tirá-lo de mim.
Sob o vestido, eu estava completamente nua e molhada de
desejo por ele. Uma pequena faísca nos recônditos da minha
mente estava ciente de que poderíamos ter que atravessar
aquele espelho a qualquer momento, e eu voltaria para casa
nua. Mas a maior parte da minha mente não se importava
nem um pouco, e cada toque de Torin incinerava qualquer
pensamento racional.
Seus olhos percorreram meu corpo, e ele cou rígido como
se estivesse me vendo nua pela primeira vez. Seus olhos,
normalmente tão frios, ardiam de desejo. Ele contraiu a
mandíbula, e eu senti que ele estava perdendo a batalha pelo
controle de si mesmo.
— Ava. — Havia um tom suplicante em sua voz rouca. —
Eu queria ter todo o tempo do mundo com você, para me
lembrar, mas… — Ele não nalizou a frase novamente,
respirando fundo.
Ele agarrou com força meus quadris com uma das mãos,
prendendo-me contra a parede de pedra, exatamente onde ele
me queria. Com a mão livre, ele me acariciou entre as coxas,
seu toque insuportavelmente leve. Seu autocontrole estava
falhando porque, quando ele me tocou onde eu estava
molhada, soltou um gemido baixo. Ele irradiava desejo, e uma
de suas mãos me segurava com rmeza no lugar.
Cada centímetro da minha pele nua estava extremamente
sensível, ansiando por ele. Quando ele deslizou dois dedos
para dentro de mim, o prazer tomou conta do meu corpo.
O rei Seelie estava desfrutando do meu corpo,
perigosamente excitado, assim como eu. Ele estava instigando
meu desejo, fazendo-o alcançar um estado selvagem e
primitivo.
Abri minhas coxas ainda mais para ele. Respirei
profundamente, meus seios nus e corados subindo e
descendo.
Ele me acariciava em movimentos circulares e libidinosos,
provocando-me até que eu precisasse desesperadamente de
alívio.
— Torin — sussurrei —, preciso de mais de você.
— Eu sabia que um dia faria você gemer meu nome,
criança trocada. — Apesar do perigo, apesar de seu desejo
evidente, nada parecia apressá-lo. Ele estava me provocando,
deleitando-se com minhas palavras suplicantes, até que
nalmente, cheguei ao meu limite, e um tremor percorreu
todo o meu corpo. Meu clímax fez com que eu me movesse
contra sua mão, ofegando seu nome. Meus dedos estavam
entrelaçados em seu cabelo escuro, e eu os soltei lentamente.
Ofegante, eu desabotoei sua calça, liberando seu membro
ereto. Deusa das cinzas, eu já o havia sentido antes, mas
agora eu sabia com certeza que os homens feéricos eram
diferentes em todos os sentidos.
Agora, de forma mais frenética, ele me ergueu, abrindo
minhas coxas ainda mais, e encaixou seus quadris entre
minhas pernas. Com minhas costas pressionadas contra a
parede, ele fez uma pausa antes de me penetrar. Meus quadris
pressionavam contra seu membro, e então, lenta e
cuidadosamente, ele me penetrou. Ele se movia para dentro
de mim um centímetro de cada vez, os olhos xos nos meus.
Ele começou a entrar e sair de mim, com uma ternura que
beirava a reverência. Minhas unhas arranharam suas costas,
subindo até seu cabelo, e eu puxei seu rosto para mais perto
do meu.
— Ava. — Meu nome em sua língua era um gemido rouco
que incendiou meu sangue. — Eu destruiria meu próprio
reino por você, se isso signi casse que poderíamos car
juntos. — Ele pressionou sua boca contra a minha em um
beijo profundo.
Ele destruiria seu reino por mim…
Essas palavras me destroçaram. Destruíram-me. Porque
eu nunca esperei ouvi-las dele, e meu amor por ele me
inundou.
Ele se movia lentamente dentro de mim, uma penetração
profunda que enviava ondas de prazer através do meu corpo.
Arranhei suas costas, instigando-o a ir mais rápido, mais
fundo. Sua língua roçou contra a minha, e seus quadris se
moveram contra os meus, seu corpo exatamente onde eu
precisava dele. Ele me penetrava de novo e de novo, e faíscas
tomavam conta da minha mente. Finalmente, o prazer do
êxtase tomou conta de mim, e eu contraí meu corpo que o
envolvia, arqueando as costas e cravando as unhas nele.
Enquanto ele atingia o clímax, sussurrou meu nome com um
tom de desespero que partiu meu coração. Enquanto eu
observava o olhar extasiado em seu rosto, seus olhos
fechados, estremeci contra ele em uma onda de prazer
remanescente.
Seus músculos relaxaram, e ele se inclinou contra mim,
recuperando o fôlego. Mais um beijo longo, prolongando o
prazer. Quando Torin se afastou, ele me olhou nos olhos.
— Ava, você me desfez completamente de todas as formas
possíveis. Estou retornando ao meu reino como um homem
arruinado. Mas com você, não acho que eu tenha escolha.
Você é um comando que eu não posso recusar.
— E mesmo assim, nunca mais vamos nos ver.
Ele suspirou profundamente.
— Para manter você viva.
Engoli em seco.
— A maldição não funciona aqui. Como você sabe que
funcionaria no mundo humano?
— Porque só haveria um jeito de testá-la, criança trocada.
Eu morri por você uma vez, e faria tudo de novo… Eu
destruiria reinos inteiros para ir ao seu encontro novamente.
Mas não vou colocá-la em risco.
Nossos corpos reluziam com o orvalho da manhã, e nos
apoiamos um no outro, músculos relaxados. Ele estendeu a
mão para minha bochecha e me beijou mais uma vez,
suavemente. Um beijo reverente.
Tínhamos que ir agora, antes que fosse tarde demais,
antes que nos encontrassem, mas nenhum de nós parecia
querer ser o primeiro a desfazer o abraço.
Ava

O s tons rosados e perolados do amanhecer tingiam o céu.


Torin pegou sua espada e eu coloquei meu vestido úmido,
torcendo um pouco a peça para tirar a água dele. Neste
momento, senti as vibrações distantes de cascos batendo
contra as trilhas da oresta.
Meu coração acelerou e tentei desamassar o vestido com
as mãos, o tecido ainda manchado com o sangue de outras
pessoas.
— Torin. — Tentei manter minha voz calma e rme. —
Você tem que ir agora. Nós temos que ir agora.
Ele se virou para mim por apenas um momento, e
encostou a testa na minha. Um último beijo, um toque de
seus lábios nos meus.
— Eles estão vindo, Torin.
Ele se afastou de mim e se virou para o espelho, não
conseguindo mais olhar nos meus olhos. O objeto possuía
uma moldura de espirais prateadas e estava pendurado sobre
a forja vazia. Torin tocou o vidro com as pontas dos dedos. Ele
inspirou profunda e tremulamente, e sua voz estava rouca.
Assim que ele terminou de dizer Feéria, uma luz prateada
explodiu ao seu redor, tão brilhante que quase me cegou.
Protegi os olhos com as mãos. A magia vibrou sobre minha
pele, agitando as gotas de água do rio que ainda cobriam meu
corpo.
Quando abri os olhos novamente, Torin tinha
desaparecido, levando a espada consigo.
Olhei para onde ele estava agora há pouco, sentindo um
vazio no peito. Minhas emoções oscilavam entre o alívio por
ele estar seguro e o vazio agudo de sua ausência.
Uma lágrima desceu pela minha bochecha, e eu a limpei
com a palma da mão. Por que respirar parecia tão difícil?
Com um suspiro trêmulo, eu me aproximei o espelho e
engoli em seco.
A questão era: eu não poderia deixar Torin inteiramente
no controle da questão do meu retorno à Feéria, não é? Ele
estava determinado a se sacri car para expiar o que havia
feito à irmã de Moria. Eu con ava quase que cegamente nele,
mas não con ava que seria capaz de cuidar de si mesmo de
forma adequada.
Aqui, bem na minha frente, estava uma ferramenta
mágica capaz de abrir reinos e criar portais entre os mundos.
Eu não poderia simplesmente deixá-lo aqui. Então, cerrei os
dentes e soquei o vidro no canto inferior esquerdo.
Assim que a dor tomou conta dos nós dos meus dedos e os
cacos cortaram minha pele, percebi a estupidez de não ter
usado uma pedra para quebrar o espelho. Mas não adianta
chorar pelo leite derramado. Uma rachadura se formou no
canto esquerdo, e arranquei um pedaço triangular.
Agora, as vibrações dos soldados que se aproximavam
estavam mais intensas, cada vez mais perto. Segurei o pedaço
na mão e encarei o resto do espelho na parede. A superfície
mágica cintilava e ondulava.
Com o coração acelerado, falei o nome da minha cidade.
Um clarão irrompeu ao meu redor, e eu senti como se
estivesse caindo. Segurei rmemente o pedaço do espelho
enquanto afundava no vazio. Aterrissei com força, os pés
descalços diretamente no asfalto. Eu posso até ter colocado
meu vestido de volta, mas deixei os sapatos roubados na
Corte das Lamentações.
Cambaleei, tentando recuperar o equilíbrio, e meus
ouvidos zumbiram com o som de algo passando rápido bem
ao meu lado. Uma brisa fresca me envolveu.
Desorientada, pisquei os olhos e olhei ao redor.
Eu estava no centro da cidade, perto da estação de ônibus.
O dia estava amanhecendo. Um ônibus saiu do terminal,
andava e parava, soltando pequenas nuvens escuras de
fumaça.
Jornais voavam pela rua, impulsionados pelo vento.
Como o espelho mágico Unseelie escolheu esta estação de
ônibus? Imagino que por ser o centro da cidade e o ônibus ser
nosso principal meio de transporte.
Meus pensamentos divagaram.
Uma senhora idosa com sacolas de plástico nos pés estava
empurrando um carrinho de repolhos na minha direção. Ela
olhou para mim com um olhar de reprovação e murmurou:
— Não precisamos do seu tipo de gente por aqui.
Ergui as mãos para os meus chifres e descobri que eles
ainda se projetavam da minha cabeça. Pelo menos minhas
asas não estavam expostas.
Quando olhei para baixo, percebi que estava usando um
vestido branco encharcado de água do rio e com marcas de
sangue, e que ele estava praticamente transparente. Meus pés
descalços estavam cobertos de sujeira, e eu estava com um
pedaço a ado de espelho na mão, o que provavelmente
poderia ser considerado uma arma. Resumindo, eu parecia
um pesadelo ambulante.
Meu estômago roncou, e dei uma olhada para o
McDonald’s do outro lado da rua. Puta merda, aquilo seria
delicioso agora, mas eu não tinha dinheiro, e eles
provavelmente chamariam a polícia.
Comecei a andar. Daqui, eram quase dois quilômetros até
o meu apartamento, mas Andrew morava lá. De jeito nenhum
eu apareceria lá como se tivesse sofrido um colapso nervoso.
Como se minha vida tivesse sido arruinada pela minha
incapacidade de lidar com a vergonha das fotos nuas que ele
havia espalhado.
Eram somente mais dois quilômetros até o apartamento
de Shalini. Comecei a correr, esperando chegar lá antes que
algum policial me parasse com perguntas constrangedoras. A
calçada estava fria e suja sob meus pés descalços, e eu tentava
não pensar no que estava pisando.
Pelos deuses, eu já estava com saudades de Torin. Eu não
conseguia parar de pensar na sensação das pontas dos meus
dedos em seu peito, no cheiro glorioso dele.
Ao chegar às ruas mais vazias perto do apartamento dela,
diminuí um pouco o ritmo para recuperar o fôlego. As únicas
pessoas na rua tão cedo pela manhã eram alguns corredores
que evitavam cuidadosamente olhar para mim.
Não olhe para a mulher quase nua.
Outrora, eu gostava de correr pelas ruas por diversão.
Agora? Acho que eu não voltaria a fazer isso. Qual era o
sentido de correr se eu podia voar de verdade?
Finalmente, dobrei a esquina na rua de Shalini e meu
estômago deu um nó.
Pelo amor da deusa das cinzas…
Lá estavam eles, usando roupas esportivas cinzas e
elegantes, praticamente iguais: Andrew e Ashley. Saindo para
uma corrida matinal.
Parei de andar, praticamente congelando no lugar. Ashley
segurou o braço de Andrew, e seu rosto cou pálido.
Eu sabia que eu estava igualzinha a um monstro agora.
Por que este encontro parecia pior do que passar um mês
na masmorra Unseelie?
Estremeci e acenei levemente para Andrew. Infelizmente,
o casal feliz agora estava entre mim e a entrada do prédio de
Shalini.
Pigarreei e apontei para o portão atrás deles.
— Estou indo para a casa de Shalini. — Eu realmente não
queria me aproximar mais, não queria que eles
inspecionassem de perto o meu estado e perguntassem por
que eu estava coberta de sangue.
O nariz de Andrew estava franzido, os olhos se
estreitando como se ele não conseguisse acreditar no que
estava vendo.
— Ava, o que aconteceu com você? As revistas de fofoca
disseram que você teve um colapso nervoso depois de ser
deixada. Isso é tipo, um surto psicótico?
Enrijeci a mandíbula.
— Foi isso o que eles disseram?
Ele olhou para o topo da minha cabeça.
— Foram os chifres? Eu não sabia que feéricos tinham
chifres. — Seus lábios se contraíram em um evidente sinal de
repulsa. — Foram eles que causaram o colapso?
O cabelo loiro de Ashley estava preso em um rabo de
cavalo tão apertado que repuxava a pele de seu rosto. Ainda
segurando o braço de Andrew, ela inclinou a cabeça, a testa
franzida.
— Você está… bem? — Sua voz estava anormalmente
aguda, e ela pronunciava cada palavra lentamente, como se
estivesse falando com uma criança perdida. — Deveríamos
chamar alguém para vir te buscar?
— Estou bem. Não posso falar sobre o que eu estava
fazendo — arrisquei. — É assunto de feéricos. Magia.
Ultrassecreto. Vocês não entenderiam. — Não percebi o quão
insana essa explicação soaria até que as palavras já tivessem
saído da minha boca. — Não importa — falei bruscamente.
— O que é isso que está segurando? — perguntou
Andrew. — Por que você… onde estão suas roupas? E seus
sapatos?
— Na verdade, não é da sua conta, não é? — retruquei.
— Você quase arruinou minha vida, sabia? — disse
Andrew de forma brusca. — Todos simpatizaram com a pobre
feérica abandonada. Eu fui demitido.
— E aí você vendeu fotos nuas minhas. — Respirei fundo.
— Sabe de uma coisa? Eu realmente não me importo mais.
Com nada disso.
Ele deu de ombros, as bochechas corando.
— Mas talvez as pessoas devessem saber como você é de
verdade. Por que eu não podia estar com uma feérica. Então
talvez eles entenderiam e teriam um pouco de compreensão
sobre eu só querer ter uma vida normal.
Semicerrei os olhos para ele.
— Sabia que Torin realmente não gosta de você?
O lábio de Andrew tremeu.
— Mas ele não é seu namorado, não é? Disseram que você
não vai se casar com ele de verdade. Disseram que você sumiu
depois que ele te rejeitou no altar. — Ele me olhou de cima a
baixo, analisando meu estado esfarrapado. — Ava, você
realmente deveria procurar ajuda.
Por um momento ofuscante e incandescente, eu vi a mim
mesma correndo até ele e cravando o pedaço de espelho em
seu ombro. Não o su ciente para matá-lo, mas o bastante
para fazê-lo se arrepender profundamente de cada decisão
que o trouxe até aqui.
Mas agora eu estava no mundo humano. E aqui nós não
atacávamos as pessoas com um pedaço de vidro. Aliás, eu
gostava que aqui era assim. Certo?
Pelo menos, eu costumava gostar.
Enrijeci a mandíbula e passei apressadamente por ele na
calçada.
Assim que ultrapassei os dois, cheguei aos portões pretos
de ferro forjado do prédio de Shalini, que eram só de enfeite,
porque nunca os vi trancados. Dei uma olhada para o jardim
cheio de begônias e ásteres, pensando em como ele era
arrumado em comparação com a Corte das Lamentações.
Bonito e civilizado.
Fiquei parada do lado de fora do prédio de tijolos e apertei
a campainha do apartamento.
Esperei alguns minutos, sentindo um leve aperto no
peito.
Cruzei os braços enquanto a brisa castigava minha pele.
Será que ela tinha cado em Feéria?
Se ela não estava no apartamento às seis da manhã, então
provavelmente tinha cado. Mas será que foi por escolha
própria? Será que todo o reino congelou quando Torin partiu
sem deixar uma rainha? Eu não fazia ideia, mas uma sensação
de náusea começou a subir pela minha garganta.
Apertei a campainha de outro apartamento — e então de
mais um, até que alguém nalmente atendeu com uma voz
irritada e sonolenta.
— O que é?
— Desculpe — falei, na minha melhor imitação da voz de
Shalini. Virei a cabeça para o lado caso houvesse uma câmera.
— É Shalini. Será que você poderia abrir pra mim? Esqueci
minha chave. — Sem mais palavras, o estranho destrancou a
porta de madeira pesada, e eu a empurrei.
Subi as elegantes escadas de azulejos até o apartamento
dela. Eu obviamente não tinha a chave, mas o que eu tinha
neste momento era uma falta de paciência insana e a força
física aprimorada de uma feérica.
Depois de bater várias vezes e chamar o nome dela, dei
três chutes fortes na porta — até que a madeira se partiu logo
acima da maçaneta.
Quando a abertura estava grande o su ciente, en ei a
mão através da madeira estilhaçada e destranquei a porta por
dentro.
Assim que entrei, o cheiro de lixo e mofo me atingiu com
força. Pigarrei enquanto uma sensação de mal-estar tomava
conta de mim. Quando entrei na cozinha, larguei o pedaço de
espelho mágico sobre a mesa.
Ali, encontrei uma caixa de donuts, completamente
coberta de um mofo felpudo cinzento e esverdeado. Franzi o
nariz e joguei a caixa no lixo.
Eu provavelmente deveria comer algo, então abri um
armário e peguei uma caixa de Cheerios e enchi um copo com
água da pia.
Comi como uma criança pequena na mesa da cozinha,
en ando punhados de cereal seco na boca. Enquanto
mastigava, minha mente espiralava, pensando no que poderia
ter acontecido.
Shalini deve ter cado sabendo que eu tinha desaparecido,
e ela era a amiga mais leal que já tive. Talvez ela não quisesse
deixar Feéria sem saber o que tinha acontecido comigo. Talvez
Torin a mandasse para casa quando voltasse para o seu reino.
Ela voltaria para cá num piscar de olhos, aliviada, talvez
com um novo namorado em seu encalço, e nós nos
abraçaríamos e beberíamos vinho, contando uma à outra tudo
o que aconteceu nas últimas semanas. Ou meses? Quanto
tempo realmente tinha se passado? De alguma forma, parecia
que tinham se passado horas e anos ao mesmo tempo.
Umedeci o cereal seco com água fresca da torneira. Puta
merda. Será que eu nunca tinha percebido o quão incrível era a
água potável? Era o néctar dos deuses, e estava acessível a
qualquer momento. Era a única coisa que eu ainda gostava
deste lugar.
Quando enchi a barriga e bebi o su ciente de água, fui
para o quarto de Shalini. Como ela era minha melhor amiga,
achei que não se importaria se eu pegasse algumas roupas
emprestadas.
Abri suas gavetas e tirei um par de leggings escuras e uma
camiseta de mangas compridas, então entrei em seu banheiro
de azulejos cor de creme.
Liguei o chuveiro, deixando o vapor tomar conta do
ambiente. Enquanto a água esquentava, comecei a entrar em
um estado de torpor, ouvindo o som reconfortante da água
batendo nos azulejos. Tirei o vestido manchado de sangue e o
joguei no lixo. Despida, entrei no chuveiro e deixei a água
quente escorrer pelo meu corpo. Peguei um frasco de
sabonete líquido para me limpar. A sujeira dos meus pés
girava no ralo, formando um pequeno redemoinho de lama.
O que será que Torin estava fazendo agora?
Saí do chuveiro cheirando a baunilha e civilização. Sequei
meu cabelo com uma toalha e vesti as roupas limpas, depois
fui para a sala e caí no sofá. Quanto tempo será que levaria
para Shalini voltar quando percebesse que estou aqui?
Mordi o lábio, olhando para o nada. Ela voltaria para casa,
não é? Com a permissão de Torin, ela poderia entrar e sair dos
reinos. Mas a preocupação latejava nos recônditos da minha
mente.
Pigarreei quando meus pensamentos nervosos
começaram a sair de controle. Eu realmente não fazia ideia do
que aconteceu depois que deixei o reino. Torin se perguntava
se sua irmã havia assumido o controle, mas quem poderia
saber? Talvez ninguém tenha assumido e todos tivessem
morrido de fome. Talvez Moria tenha assumido, ou a bruxa
amargurada que amaldiçoou o lugar.
Eu me levantei e comecei a andar de um lado para o outro.
Quanto tempo eu aguentaria antes de ceder e usar aquele
pedaço de espelho?
Uma voz masculina, hesitante e preocupada, interrompeu
meus pensamentos.
— Olá?
Ergui a cabeça e olhei para a porta.
Alguém, presumi que o vizinho de Shalini, estava à porta,
um homem usando uma camisa azul-clara de botões com
cabelos castanhos bem curtos.
— Tudo bem por aqui? Achei que tivesse acontecido uma
invasão. Desculpe, quem é você?
Esfreguei a testa. Eu só precisava que as pessoas me
deixassem em paz. E, pelo visto, meu tempo na Corte das
Lamentações tinha me feito esquecer como me comportar
normalmente, porque murmurei isso em voz alta.
— Era pra você estar aqui? — perguntou ele.
— Sou colega de quarto de Shalini — disse. — A colega de
quarto nova dela.
— Ela não está aqui há um bom tempo — retrucou,
olhando com nervosismo para meus chifres.
Eu realmente queria que tivesse como fechar a porta, mas
eu a havia quebrado demais.
Fui me aproximando dele lentamente.
— Sua ajuda não é necessária aqui. — Mostrei meus
dentes com um rosnado. — E eu o aconselharia a não mexer
no que está quieto. Nunca se sabe o que pode acontecer a
alguém que cruza o caminho do Cromm Sombrio.
Ouvi os ecos do meu irmão na minha ameaça.
O estranho cou branco como leite e se apressou escada
abaixo.
Torin

O portal me lançou em um chão de pedra frio. Uma luz


glacial entrava por uma janela gradeada e um frio intenso
tomava conta do ambiente. Eu estava de volta ao meu castelo,
mas, por algum motivo, no quarto de Orla. O espelho havia
me mandado para cá.
A própria Orla não estava aqui.
Enquanto meus olhos vasculhavam o quarto da minha
irmã, um arrepio de pavor percorreu minha espinha. Estava
ainda mais frio do que quando eu saí, e o ar estava carregado
de um cheiro de fumaça e enxofre. Será que este lugar estava
tão desolado por causa da minha separação forçada de Ava?
Não, não era isso. Gritos vindos do lado de fora
atravessavam as paredes. A quietude normalmente serena do
castelo havia sido substituída por uma intensa tensão
pairando no ar, cravando suas frias garras sobre minha pele.
Fiquei imóvel. Uma voz serpenteou pelo ar, uma que eu
reconheci.
A voz de Orla.
Ela estava chamando meu nome de algum lugar. Será que
ela sentiu meu retorno? Se ela tivesse deixado o reino, quase
morrido e então retornado, achei que eu conseguiria sentir
sua presença em meu sangue.
Mas seus gritos…
Aqui em cima, o castelo parecia vazio, assombrado. A
fumaça que se formava da minha respiração envolvia minha
cabeça em uma névoa gelada. Saí para o corredor. Apesar de
ser dia, as paredes estavam envoltas em escuridão. Sombras
cinzentas se contorciam sobre as pedras.
Agarrei o punho da minha espada. Hoje, o castelo parecia
um túmulo de pedra.
A Espada dos Sussurros cantava para mim. Tu és a morte.
Tu és o isolamento gélido que acompanha o derradeiro suspiro.
As paredes exalavam uma presença maligna e eu não me
sentia mais bem-vindo aqui. Minha magia não havia
retornado ao meu corpo, o que signi cava que meu trono
ainda estava destruído. Aqui em Feéria, eu me sentia como
um rei vazio andando por estes corredores, despojado do
poder que antes corria em minhas veias.
Quando ouvi o bater distante dos calcanhares dos
soldados nas pedras, eu me escondi nas sombras de um
quarto vazio. Eu precisava ver a quem os soldados serviam
antes de partir para o enfrentamento, precisava descobrir se
eu era um inimigo em meu próprio reino. Com a Espada dos
Sussurros, poderia vencê-los em uma luta, um por um. A
lâmina entoava ininterruptamente em meu crânio, sedenta
por sangue.
Mas esta não era a fortaleza Unseelie. Estes eram meus
soldados, parte de um exército sob meu comando. Eu
provavelmente conhecia metade deles pelo nome, mesmo
agora sendo um intruso aqui. Não poderia simplesmente
matar todos eles.
Enquanto eu estava atrás da porta, pensei na sensação de
Ava pressionada contra mim enquanto estávamos escondidos
naquela alcova, seus quadris se movendo para trás… A única
faísca de reconforto neste pesadelo era a ideia de Ava em casa,
salva do mundo cruel dos feéricos para o qual eu a arrastei.
Neste momento, ela provavelmente estava aninhada em uma
cama confortável, com a barriga cheia de comida quente.
Pela fresta da porta, observei a tropa de soldados passar.
Meu coração disparou quando meu olhar pousou no emblema
da realeza Dearg-Due: espirais brancas e pontiagudas sobre
um fundo vermelho intenso.
Moria? Será que ela havia roubado o controle das mãos de
Orla? Mas se ela estava no controle, não havia explicação para
o frio gelado do inverno que tomava conta do reino. Uma
rainha poderia trazer a primavera simplesmente sentando-se
no trono.
Então, o que diabos estava acontecendo por aqui
enquanto estive fora?
Quando os soldados deixaram o meu campo de visão ao
dobrar em uma quina, saí do meu esconderijo.
Ouvi mais uma vez: Orla chamando meu nome, sua voz
atravessando as janelas de vidro, vinda do leste. Comecei a
correr até chegar à ala leste, e os sons de gritos do exterior
atravessaram as janelas estreitas. A preocupação tomou conta
de mim.
Este lugar era milenar, construído muito antes do
conceito de janelas que podiam ser abertas, então usei a
Espada dos Sussurros para quebrar o vidro. Eu me inclinei
para o frio torturante e olhei para a imensidão de paredes
escuras do castelo abaixo de mim.
Horror e repulsa me atingiram como um soco no
estômago. Correntes estavam penduradas pela lateral das
paredes, sustentando gaiolas geladas que pendiam logo acima
do chão coberto de neve. Elas balançavam levemente com o
vento glacial. Eu me lembrei de já ter lido que o rei Caerleon
fez isso com alguns de seus inimigos.
Contei dez gaiolas ao todo.
O vento trouxa a voz de Orla lá de baixo.
Cerrei os dentes, fazendo cálculos mentais rápidos. Eu
poderia tentar consertar meu trono e recuperar meu poder,
ou poderia correr pelo castelo e me aproximar das jaulas por
baixo. Mas o castelo era enorme. E me mover pelo interior
por tempo demais arriscava minha prisão e execução pelas
mãos da nova monarca. E então, os últimos momentos de
Orla se resumiriam a congelar naquela jaula.
A outra opção… a outra opção era simplesmente descer
pelas correntes com a Espada dos Sussurros e chegar
diretamente à Orla. Elas estavam penduradas na ala leste, que
não tinha ponte levadiça ou portão. Não vi nenhum soldado
patrulhando lá embaixo. Qual o sentido de patrulhar uma
jaula trancada?
Soltei um longo suspiro e uma nuvem de fumaça se
formou em volta da minha cabeça. A opção mais segura para a
sobrevivência de Orla era ir diretamente até ela. Aqui e agora.
Uma rajada de vento gelado me atingiu e eu rastejei
através do vidro quebrado, com a espada em punho.
Fragmentos zeram cortes nas minhas mãos e pernas,
mas eu ignorei a dor. Assim como ignorei o vento gelado que
me açoitava.
A neve chicoteava a pele exposta através das minhas
roupas rasgadas. Eu não tinha uma bainha para a espada,
então a carreguei em uma das mãos e usei as pernas e o outro
braço para descer pela corrente. As correntes congeladas
grudavam em meus dedos, então a cada minuto eu trocava de
mão. Desci por uma corrente pela lateral do meu castelo,
castigado por ventos congelantes.
Quando um rugido ressoou atrás de mim, o medo
embrulhou meu estômago. Eu me virei lentamente e dei de
cara com um dragão vermelho e preto voando pelos céus.
Montada no dragão havia uma mulher de vermelho, com
o cabelo cor de vinho utuando atrás dela como uma âmula
ensanguentada.
Moria. Ava me avisou que ela era terrível… Eu só não achei
que seria tão ruim assim.
A criatura soltou uma onda de fogo laranja e quente
contra um céu cor de cinzas.
Nos velhos tempos do rei Caerleon, ele se envolveu com
magia sombria. Especi camente, usou um dragão vermelho e
preto chamado Sinach para incinerar seus inimigos. E aqui
estava ela, uma reencarnação do pior tirano de Feéria —
praticamente o rei Caerleon de vestido.
Desci mais rápido pelas correntes. A qualquer momento,
Sinach poderia atacar esta parede de jaulas, derretendo as
correntes e a mim mesmo, queimando os prisioneiros vivos.
Meus músculos começaram a congelar, mas eu me forcei a me
mover o mais rápido possível.
No frio mordaz, imaginei que estava perdendo a pele dos
dedos enquanto descia pela corrente congelada. Eu já havia
descido alguns andares quando olhei para baixo. Desta
distância, ao olhar para as gaiolas, pude ver um braço
projetando-se de uma delas. Era um braço que eu reconhecia,
tão magro e delicado, de uma pele pálida que havia se tornado
azulada com o frio.
A raiva tomou conta de mim.
Orla chamou meu nome novamente, em uma voz
angustiada. Desta vez, gritei para ela:
— Estou chegando, Orla. — Não consegui evitar.
Precisava que ela soubesse que eu estava tentando salvá-la
deste inferno.
Quando olhei por cima do ombro novamente, Moria e
Sinach estavam se aproximando.
A jaula de Orla cava logo à direita da corrente pela qual
eu estava descendo, e eu estava desesperado para chegar até
ela primeiro.
Quando eu estava a uns seis metros da jaula mais
próxima, soltei a corrente e pulei. Caí com força, e o choque
fez as pernas tremerem. O meu peso fez a gaiola balançar,
mas eu me equilibrei em cima dela. De lá, saltei mais três
metros no ar congelante até a jaula de Orla.
Olhei para o chão abaixo de nós. A neve estava a cerca de
cinco metros.
— Aguente rme — gritei contra o vento.
Eu me inclinei sobre a borda de metal e olhei para dentro.
Orla estava encolhida e congelada, sem sequer a pequena
misericórdia de uma capa. A neve estava salpicada em seus
cílios e grudada nos cabelos. Seus lábios estavam azuis.
— Torin — disse ela —, Moria enlouqueceu. Ela está
usando dragões, está usando Modron. Está tentando nos
matar. Ela convenceu o exército de que você está do lado de
Mab.
Eu não precisava ouvir mais nada.
Desferi um golpe com a Espada dos Sussurros para abrir a
fechadura. A porta enferrujada se abriu, rangendo na
dobradiça.
— Você consegue pular? — gritei contra o vento.
Ela assentiu, indo até a porta da gaiola, o corpo tremendo
violentamente.
— O chão está a cerca de cinco metros abaixo de você,
Orla. Você vai cair na neve e vai precisar achar o caminho até
a oresta. Ajudo você assim que puder.
Para Orla, esse salto seria mais difícil do que para os
outros. Ela não conseguia ver o chão. Mas Orla sempre fazia o
que precisava sem reclamar.
Ela se jogou da jaula e caiu com força na neve, perdendo o
equilíbrio. Em instantes, ela já estava de pé e correndo para a
oresta, o vento açoitando seu vestido.
Pulei para a próxima gaiola, onde reconheci a voz grave de
Aeron.
— Torin — gritou ele —, eles vão matar você.
Eu me inclinei para alcançar a lateral da jaula, o metal
congelado queimando minha pele através das roupas.
A lâmina cortou a fechadura. Gritei para ele ir atrás da
minha irmã. Ele pulou da gaiola, virando-se para olhar para
mim, e apontou para outra jaula à minha direita.
— Shalini — gritou ele.
E com uma pontada de horror, percebi que Moria havia
prendido um humano em uma dessas jaulas, alguém que
poderia facilmente morrer congelado.
Com o coração disparado, pulei para a gaiola dela e cortei
o metal da fechadura. A porta se abriu com um rangido e
Aeron gritou seu nome repetidamente, sua voz tomada de
desespero. Olhei para dentro da jaula e a vi se arrastando,
tentando rastejar até a porta aberta. Sob a capa, seu corpo
parecia rígido por causa do frio. Ela praticamente caiu da
gaiola diretamente nos braços abertos de Aeron. Ele a
carregou no colo em direção à oresta, seguindo os passos de
Orla.
Eu me agachei, pronto para pular até a próxima jaula, mas
algo me impediu. Uma leira de soldados vestidos de
vermelho surgia no meu campo de visão, arqueiros entre eles.
Meu coração batia forte como um tambor de guerra enquanto
eu os observava se ajoelhar na neve, com echas apontadas
para mim.
Eu não tinha certeza de muitas coisas neste momento, só
de que eu já tinha sido atingido por echas demais nos
últimos tempos. Disso eu tinha plena certeza.
Um dos soldados gritou uma ordem para atirar. Eu me
preparei, esperando pela saraivada de echas.
Mas apenas o vento torturante me atingiu. Talvez, nesta
paisagem infernal, eles pudessem entender que sua nova
rainha não desejava o melhor para eles.
— Vocês me conhecem! — gritei para o vento congelante.
— Eu sou o seu rei. E o que quer que tenha acontecido
enquanto estive preso nas terras inimigas, o que quer que
tenham dito sobre mim, vocês devem saber quem eu sou de
verdade. Que sempre z o meu melhor para proteger Feéria,
para manter todos vocês seguros. Alguns de vocês serviram
comigo durante anos. E nunca foi assim enquanto eu era o rei,
não é?
Meu olhar pairou sobre um homem de cabelos azuis e pele
cor de bronze que eu reconheci.
— Lonan! Sua família se juntou a mim para comemorar o
nascimento de sua irmã mais nova. — Desviei o olhar para
outro, um de cachos dourados cuja família possuía uma
fazenda de gado. — Malo, eu ajudei a negociar o con ito
entre a fazenda da sua família e a do vizinho quando a cerca
dele estava desmoronando nas suas terras.
Lá em cima, Sinach desceu um pouco mais com Moria em
suas costas. Ele estava a uns trinta metros de nós.
A criatura lançou uma labareda amejante sob as nuvens
cinza-escuro. Os soldados olharam por cima dos ombros para
a explosão de chamas, e a tensão hesitante se transformou em
garras a adas.
Ergui minha espada.
— Eu ainda possuo a Espada dos Sussurros. Eu ainda fui
abençoado pelos antigos deuses como seu rei escolhido. A
rainha Unseelie Mab me prendeu em seu reino contra minha
vontade, e lutei com unhas e dentes para voltar para vocês.
Sobre Sinach, a coroa de Moria brilhava como fragmentos
brutais de gelo. Ela gritou para a tempestade.
O dragão fez a volta, aproximando-se ainda mais, e o
miasma venenoso do medo tomou conta do ar. Sinach bateu
as asas, agora a apenas seis metros atrás dos soldados. Ele
soltou uma explosão abrasadora de chamas que atingiu a neve
atrás deles.
Um dos arqueiros disparou uma echa e eu a bloqueei
com minha lâmina. E então uma segunda. Os soldados
estavam apavorados com o dragão, então cumpriam as ordens
da rainha. Como eu poderia culpá-los? Ninguém gostaria de
morrer queimado.
Meu sangue rugiu nos ouvidos.
Com um reinado pautado no terror, Moria controlava o
reino com mãos de ferro. Enquanto o dragão cuspia chamas,
as echas continuavam voando em minha direção, até eu não
conseguir mais bloquear todas. Uma delas perfurou minha
barriga, outra meu braço. A dor tomou conta de mim e o
impacto da segunda echa me derrubou da jaula.
Caí com força na neve, e o impacto reverberou na minha
coluna. E enquanto meus soldados prendiam correntes em
meus pulsos e garganta, eles sussurravam desculpas para
mim. Sussurravam que não sabiam a verdade, que até onde
eles sabiam, eu havia me tornado um fã de demônios, mas eu
podia ouvir a dúvida em suas vozes.
Aqui sempre foi frio, mas isto — Sinach, as jaulas, o terror
palpável — isto era um pesadelo tornando-se realidade.
Eles me arrastaram pela neve e me colocaram em uma
carroça. Estremeci de dor enquanto as echas dilaceravam
minha carne.
Eu senti cada solavanco quando a carroça começou a
andar, sacolejando sobre a terra congelada. Não era
exatamente as boas-vindas que eu estava esperando.
Para onde diabos estavam me levando?
Ava

E ncarei o pedaço de espelho. Eu quase não havia me mexido


na última hora.
Na Corte das Lamentações, aprendi que eu precisava estar
pronta para fugir a qualquer momento, e sentia esse senso de
urgência subindo pela minha espinha. Com o fragmento de
espelho na mão, caí no sofá de Shalini.
Esperei, olhando para o nada no mundo humano
cinzento.
Sobre uma mesa perto do parapeito da janela, havia uma
planta Aspidistra de folhas murchas e amarronzadas,
denunciando a ausência de sua dona. Meus músculos
enrijeceram. Eu conseguia sentir sua sede, sua solidão, sua
proximidade da morte. Inclinei a cabeça e invoquei a vida de
volta para a planta, e a sensação da magia que me envolveu
era como o calor do sol em minha pele. A planta brilhou com
uma luz dourada e as folhas se tornaram verdes novamente.
Eu me levantei e acariciei as folhas macias com a ponta
dos dedos. Era uma escolha muito humana para uma planta,
domesticada e civilizada.
Mas Shalini também tinha um lado selvagem, e foi ele que
fez com que ela acabasse em Feéria, em primeiro lugar.
Ao lado da planta, havia um livro verde em cima da mesa.
Sob as folhas secas, estava escrito em letras douradas: W.B.
Yeats.
Voltei para o sofá e folheei as páginas. Um poema me
chamou a atenção, e meu coração disparou.
Feéricos, venham me tirar deste mundo monótono,
Pois eu gostaria de viajar pelo vento com vocês,
Correr sobre a maré selvagem,
E dançar como uma chama acima das montanhas.
Senti o pulsar do sangue nas minhas veias. Eu estava
destinada a dançar como uma chama acima das montanhas.
Nós, feéricos, fomos moldados no fogo de uma deusa das
montanhas, forjados para correr pelos céus salpicados de
estrelas. Não nascemos para ser civilizados.
Não nascemos para comer malditos Cheerios.
E eu jamais poderia car aqui sem saber se meus amigos
estavam bem. Depois de tudo pelo que passei, eu nunca mais
subestimaria a segurança de alguém.
Torin tinha me dito que enquanto seu trono estivesse
destruído, ele não teria poder algum. Então, será que ele
estaria retornando como rei? Ou alguém o havia usurpado?
Levando em consideração meus conhecimentos sobre os
feéricos — que éramos implacáveis e viscerais —, eu tinha
uma forte suspeita de que a última alternativa era a correta.
Eu não tinha muita coisa agora além de uma falta de
paciência insana e uma determinação ardente em manter
seguros aqueles que eu amava.
Irre etidamente, corri até o guarda-roupa de Shalini e
peguei o casaco de inverno mais pesado e um par de botas até
o joelho.
Totalmente vestida, olhei para o pedaço de espelho e
gritei Feéria.
TORIN
Algemas geladas envolviam meus pulsos, e uma coleira de
ferro apertava minha garganta. Olhei para baixo, para o
sangue que jorrava do meu corpo, para as echas cravadas na
minha pele. O sangue tinha congelado nas minhas roupas.
Meus soldados haviam me acorrentado a um poste no
centro do an teatro de pedra. Uma camada espessa de gelo e
neve cobria o chão sob meus pés.
Moria e Modron estavam onde eu costumava presidir os
duelos durante os julgamentos. Quanto tempo fazia desde a
vitória de Ava nesta arena? Parecia séculos. Ao pensar nela, o
pesar tomou conta de mim, um sentimento frio de perda, pois
eu nunca mais a veria.
Então era isso?
O frio corroía minha pele, e as sombras pareciam se
adensar ao meu redor, tremulando sobre o gelo como
espíritos congelados. Quando eu morresse, seria separado das
pessoas que amava.
Atordoado, observei a multidão nos assentos de pedra do
an teatro. A raiva sussurrava sobre minha pele. Isto seria
uma execução pública de um rei derrotado.
No palco de pedra, Moria usava uma capa de um bordô
intenso que combinava com o cabelo, e longas luvas brancas.
Um sorriso estava estampado em seus lábios.
Modron estava ao seu lado. A anciã usava uma capa de um
cinza escuro como fumaça. Eu não conseguia parar de pensar
no que Mab tinha dito a Ava: matar Modron colocaria um m
em tudo isso.
Um vento gelado percorreu a arena, trazendo consigo
rajadas de neve. Ainda não fui informado de como morreria,
mas imaginei que seria de uma forma mais criativa do que
morrer de frio. Provavelmente algo no nível das ameaças de
Mab: eviscerado, castrado ou enterrado vivo em uma árvore
congelante. Os humanos podem até ter criado artes incríveis,
mas os feéricos eram imensamente criativos quando se
tratava de métodos de execução.
A arquibancada estava cheia de Seelie, aquecidos em
pelagens espessas.
Moria tirou o capuz bordô de sua capa. Graciosamente, ela
desceu do tablado e cruzou a arena repleta de neve. Eu a
observei, tomado por um ódio ardente enquanto ela
caminhava pelo gelo, o vento agitando sua capa. Se eu tivesse
magia, acabaria com tudo isso em questão de minutos.
Ela parou a alguns metros de mim, sorrindo em minha
direção de um jeito que fez meu sangue gelar ainda mais.
— Você vai me matar congelado, Moria? — perguntei. —
É esse o seu plano? Mostrar a todos que o rei não tem mais
poder nenhum?
Ela pestanejou os longos cílios para mim. Sob o capuz, sua
coroa cintilava como gelo na luz tênue.
— Ah não, meu querido, você não vai morrer congelado.
Isso foi o que você fez com minha irmã antes de enterrá-la no
templo. Morrer congelado é uma alternativa muito agradável
para você. Quero que você morra aterrorizado, gritando e
completamente fora de controle. Quero que você morra
dominado pelo verdadeiro terror.
Eu sabia que ela queria que eu perguntasse o que ela faria,
que implorasse pela minha vida, mas eu não estava disposto a
fazer isso, porque ela nunca cederia aos meus pedidos.
Ela fez um gesto para as multidões que preenchiam as
arquibancadas.
— Eles estão aqui para testemunhar o que farei com um fã
de demônios. Eles verão até onde estou disposta a ir para
proteger o reino de quem o deixou para morrer de fome.
A força da ira me deixou sem ar. Foi por isso que ela
deixou o reino car cada vez mais frio. Era muito mais fácil se
safar da tirania quando o reino estava em guerra. Tudo o que
ela precisava fazer era colocar a culpa nos traidores.
— Você não vai durar como rainha — falei. — Eles vão
perceber que é você quem está fazendo as pessoas sofrerem.
Vão encontrar uma nova rainha, alguém que lhes concederá a
primavera de que precisam.
Ela se aproximou de mim, os lábios cor de vinho próximos
à minha bochecha enquanto sussurrava:
— Mas Torin, isso é tudo culpa sua. Eu os ajudei a
entender isso.
— Por que está fazendo isso, Moria? — Meu tom estava
impregnado de violência.
Ela recuou, seu sorriso desaparecendo.
— Você não pode mais me chamar assim. O termo correto
é Vossa Majestade.
Algo cintilou em seu quadril sob a capa, e a raiva tomou
conta de mim ao ver a Espada dos Sussurros. Ela já era uma
tirana, mas aquela espada a transformaria em um monstro
completamente desequilibrado.
— Por que estou fazendo isso? — sibilou ela. — Porque
você tirou de mim a única coisa que eu amava. Meu pai me
ensinou a punir meus inimigos. Ele me criou para ser forte
como o rei Caerleon e os poderosos reis de antigamente.
— Caerleon não era forte. Ele era um sádico paranoico e
sedento por sangue, e você está indo pelo mesmo caminho.
— A corte dele era respeitada. — Ela olhou por cima do
ombro. — Aliás, Modron é minha nova amiga. Sabe, ela
estava muito solitária. Viveu sozinha com o rio por séculos. E
agora ela tem a mim. — Ela se virou para mim com um
sorriso astuto. — Sabia que ela é capaz de controlar o rio? O
Avon. Ela pode fazê-lo transbordar.
Ah. Ela planejava me afogar. Era uma ideia menos criativa
do que eu havia previsto.
Quando Moria sorriu desta vez, ela deixou as presas à
mostra e lambeu uma delas.
— Nos velhos tempos, os Dearg-Due bebiam sangue. Mas
nos dias de hoje isso é considerado vulgar, não é? Nossa
sociedade se tornou muito frágil. — Ela franziu a testa. — Eu
fui destinada a este momento. Está escrito nas estrelas. Foi
por isso que passei por todo aquele inferno quando criança.
Foi por isso que os deuses me amaldiçoaram com a dor de
perder a única pessoa que amei. Foi tudo por este momento. É
o destino, Torin. Eu me tornei forte por causa de tudo isso.
Não, você se tornou uma lunática.
Ela se virou e voltou a subir os degraus.
Enquanto eu tentava me livrar das correntes, ela fez um
discurso que ecoou sobre as pedras da arena. Um discurso
cheio de propaganda, sobre como eu adorava os demônios e
como eu estava conspirando para destruir meu próprio reino.
Aparentemente, eu havia sido seduzido por uma vadia
perversa, animalesca e com chifres.
Enquanto ela falava, trabalhadores estavam selando as
entradas do túnel que davam para a arena.
Voltei a pensar em Ava. Independentemente do que
acontecesse aqui, pelo menos ela estava segura. A certeza
disso me faria morrer su cientemente feliz. Orla também
tinha uma chance de sobreviver. Aeron tomaria conta dela.
Morrer com a esperança de que as pessoas que eu amava
estivessem seguras era tudo que eu podia esperar, não é?
Fechei os olhos, pensando em Ava dormindo
tranquilamente em uma cama quentinha. Quando ela dormiu
ao meu lado na Corte das Lamentações, ela roncou levemente.
Eu podia imaginar seu peito subindo e descendo. A imagem
me causou um aperto no coração.
O barulho ensurdecedor de pedras rachando me arrancou
dos meus devaneios e fui tomado pelo susto enquanto
gêiseres gelados irrompiam das rochas ao meu redor e a água
do rio inundava a arena. Fluxos de água irrompiam ao meu
redor. Água turva jorrava por toda parte do an teatro,
congelando meus pés.
Modron entoava um canto com uma expressão estranha e
extasiada no rosto. Espirais de magia sombria emanavam de
seu corpo e ascendiam até o céu cinzento.
A água gelada castigou minha pele até meus dedos carem
completamente dormentes. Do alto, o dragão mergulhou sob
o céu tempestuoso, e murmúrios de medo percorreram a
multidão.
A voz de Moria ecoou no ar.
— Sinach ajudará na execução deste traidor. Somente
quando o fã de demônios estiver morto, quando sua traição
for expurgada da terra, a primavera retornará ao nosso reino.
Quando o dragão pousou no estrado de pedra ao lado
dela, senti um nó no estômago. O frio não me assustava, mas
o fogo era algo completamente diferente. Meu corpo
congelado havia começado a deixar meu raciocínio lento,
como se até mesmo meu cérebro estivesse envolto em gelo.
Com a mente entorpecida, eu não conseguia compreender
exatamente o que estava acontecendo. Para que a água se ela
planejava usar Sinach?
A água já estava na altura da minha cintura. Será que
queria me queimar só da cintura para cima?
Quando ela gritou um comando em uma voz aguda, meu
coração disparou.
No palco de pedra, Sinach cou de pé nas patas traseiras,
lançando um jato de chamas na água. A arena explodiu em
gritos. As pessoas não queriam assistir a isso.
Aos poucos, através da névoa que entorpecia meu cérebro
congelante, juntei uma coisa com outra. Ela não ia me afogar.
Ela ia me ferver vivo.
Ava

O espelho me deixou a leste do castelo, e eu imediatamente


percebi três coisas: primeiro, o fragmento mágico não tinha
vindo comigo; segundo, vestir o casaco de Shalini tinha sido
uma das melhores decisões que já tomei, porque aqui deve
estar fazendo uns vinte graus negativos; e terceiro, este lugar
havia se transformado em um verdadeiro inferno.
E isso de fato sugeria que Torin não tinha recuperado sua
magia.
O terror tomou conta de mim. No lado leste do castelo
havia gaiolas penduradas nas paredes com prisioneiros presos
dentro delas. Algumas das gaiolas estavam abertas, mas a
maioria continha pessoas, congeladas e quase mortas. Uma
ânsia subiu pela minha garganta. Se o trono de Torin
estivesse intacto, se sua magia tivesse retornado, ele jamais
permitiria isso.
Examinei as gaiolas desesperadamente, procurando por
Shalini. Nenhum sinal dela. Um lampejo de boas notícias.
Em uma das gaiolas, uma mulher rastejou até as barras. A
neve cobria seu cabelo preto e as orelhas pontiagudas.
— Me ajude — disse ela com voz rouca. — Estamos aqui
por nossa lealdade ao rei. Por favor, me ajude.
— Quem governa aqui agora?
— Moria. Ela pegou o rei. Ela o levou para o an teatro. —
Sua voz estava histérica. — Me ajude, por favor.
O horror me atingiu como um soco no estômago.
— Para o an teatro? Por quê?
— Não sei! — gritou ela. — Me solte para que eu possa
pensar melhor.
Eu inspirei e o ar gelado castigou meus pulmões, sentindo
como se meus pensamentos estivessem sendo partidos em
dois. Eu poderia correr para o an teatro agora ou poderia
tentar consertar o trono. Se eu devolvesse a ele o poder
avassalador de um rei Seelie, talvez conseguisse se salvar.
Dei alguns passos para trás na neve, mantendo o capuz de
Shalini sobre meus chifres.
Quando olhei para a esquerda, vislumbrei dois soldados
marchando à distância. Seus uniformes de cor bordô faziam
com que parecessem gotas de sangue contra uma paisagem
toda branca.
Essa não era a cor favorita de Moria?
Ao longe, ouvi o lamento melancólico de uma Banshee
ecoando no ar. Talvez Cleena.
Um arrepio percorreu minha espinha. Alguém estava
prestes a morrer.
Olhei para as gaiolas mais uma vez e invoquei vida da
terra congelada. Era muito mais difícil fazer as coisas
crescerem aqui do que na Corte das Lamentações. Em Feéria,
uma espessa camada de gelo cobria a terra, aprisionando o
mundo vivo sob o inverno. Nas profundezas da minha mente,
eu me conectei às plantas sob o solo, sentindo sua luta para se
livrar do gelo.
Fechei os olhos e pensei nas chamas da deusa das cinzas
que dançavam acima da montanha na Corte das Lamentações
e no calor sedutor do reino Unseelie. Pensei em Torin me
beijando intensamente no templo abandonado da deusa das
cinzas. O amor é uma forja…
Cerrei os dentes e fechei as mãos em punhos. Vinhas
estavam se chocando contra o gelo, lutando para se libertar.
Abri os olhos. Plantas irromperam da terra invernal,
subiram aos céus rapidamente e se enrolaram nas portas das
gaiolas.
Com um movimento de pulso, as vinhas abriram as portas
enferrujadas de ferro. Deixei o casaco pesado de Shalini na
neve para alguma das vítimas e abri as asas. Elas irromperam
das minhas costas rasgando a camisa de Shalini, e alcei voo.
Os soldados ouviram o barulho das gaiolas se abrindo e
vieram correndo.
Contornando o lado norte do castelo, voei através do
portão levadiço aberto e depois sob os tetos altos.
Gritos ecoavam atrás de mim, mas eu estava me movendo
rapidamente, e a sala do trono não era longe do portão
principal. Atrás de mim, alguns arqueiros atiraram echas que
passaram por mim inofensivamente.
Minhas asas agitavam o ar mofado do castelo, e voei
diretamente para a sala do trono. As pedras reluziam com um
brilho de gelo e neve, e um arrepio percorreu minha espinha.
Cinco soldados usando pelagens pretas guardavam o
trono, com espadas na cintura, mas assim como na Corte das
Lamentações, pequenas ervas cresciam entre as rachaduras
no chão. Os soldados correram na minha direção, mas eu
invoquei vinhas espessas e espinhosas. As plantas se
enrolaram em torno dos guardas, e as espadas caíram no
chão.
Presos na armadilha de plantas, eles gritavam por
reforços. De trás, uma echa passou zunindo por mim, perto
demais.
Eu me virei. Concentrei-me nas pequenas ervas perto da
porta e as invoquei, tornando-as maiores, mais altas,
entrelaçando-as até formarem uma barreira protetora contra
as echas.
Com o coração disparado, voei sobre os soldados caídos e
aterrissei atrás do trono de Torin. A luz invernal penetrava
através das janelas de vitrais, banhando o trono destruído em
profundos tons de dourado e azul.
Passei as pontas dos dedos pelas pedras geladas e
imaginei os pedaços do trono se unindo novamente. Uma
magia morna percorreu meu corpo, acariciando minha pele.
Lentamente, raízes cresceram entre os fragmentos,
unindo-os. A magia zumbia e zunia pela minha espinha,
fazendo meu coração disparar e meu corpo brilhar. Peça por
peça, o trono se recompôs, as raízes apertando-se, cavando
nas pedras até que o trono se tornasse metade pedra, metade
raiz, assim como o castelo de Mab. Assim como um trono
Unseelie…
Musgo cresceu entre as ssuras até que, por m, um trono
vivo se ergueu, levemente deformado, mas intacto.
Do outro lado do meu escudo de plantas, soldados
golpeavam a barreira.
Eu girei e alcei voo. Chutei o vitral e abri meu caminho
para o dia invernal lá fora. O vidro se estilhaçou ao meu redor
em fragmentos de luz colorida.
Fui atingida por um vento congelante enquanto saía do
castelo. No vento, ouvi o som de gritos. Tentei discernir
alguma coisa através do barulho, a adrenalina percorrendo
meu corpo.
Que horrores Moria estava causando?
Torin

O fogo do dragão explodiu na água. No início, a sensação era


de um banho quente, um alívio do gelo. Meus dedos
descongelaram, e os músculos relaxaram. Então, tornou-se
um banho escaldante, do tipo que Ava gostava. A água cou
ainda mais quente, do jeito que eu imaginava que deveria ser
um lago vulcânico. Modron fez a água subir até os meus
ombros, e o vapor espiralava ao meu redor em uma névoa
espessa.
Estremeci, preparando-me para mais calor. Mas, justo
quando pensei que minha pele estava prestes a ser queimada
permanentemente, um poder gelado tomou conta de mim.
Minha magia de gelo jorrou pelas veias, e meu sangue fez a
força pulsar. Uma euforia selvagem tomou conta de mim.
Quando meu trono quebrou, perder minha magia foi
como perder um dos meus sentidos. Agora, ele havia
retornado para mim, mais aguçado do que nunca. O poder era
quase esmagador, ressoando através dos meus ossos. Uma
magia gelada emanava do meu corpo, esfriando a água
fervente do rio.
Será que os deuses haviam me abençoado?
Quebrei as correntes que prendiam meus pulsos,
mantendo as mãos escondidas sob a água. Assim que Moria
percebesse que eu estava livre, ela me encurralaria com Sinach
para me queimar vivo.
A névoa se erguia ao meu redor. Assim que a água atingiu
meu pescoço, arranquei a coleira que me prendia ao poste.
Mergulhei sob a superfície turva, enviando correntes
geladas para fora do meu corpo. Nadei pela água agitada e
lamacenta do rio — algumas correntes eram impulsionadas
pelo calor, outras resfriadas pela minha magia. Mas com gelo
e fogo de dragão se misturando, o calor era suportável.
Quando eu estava perto do estrado, emergi da água em
uma explosão de gelo. Uma ira glacial irrompeu do meu corpo.
Este era meu reino, e eu o protegeria desses monstros, das
sombras aterradoras que o ameaçavam.
Sinach rugiu, cuspindo fogo em mim, mas eu o bloqueei
com gelo. Uma corrente violenta de gelo irrompeu do meu
peito, extinguindo as chamas do dragão. O gelo começou a se
espalhar pelas escamas da criatura, e ela recuou.
Moria montou no dragão, e Sinach decolou para os céus,
as escamas pretas e marrons cintilando com o gelo. Enquanto
eu subia no estrado, procurei por Modron. A anciã já havia
desaparecido. Os espectadores nas arquibancadas estavam
correndo, em busca de saídas.
A Espada dos Sussurros ecoou dentro da minha cabeça. Eu
precisava recuperá-la.
Desci correndo as escadas externas do an teatro,
seguindo Sinach a pé. Eu estava correndo descalço pela neve,
mas o frio não me afetava mais.
Eu corria contra o vento em minhas roupas brancas
rasgadas. À minha esquerda, árvores escuras e sem folhas
estavam alinhadas no campo nevado, e o castelo era uma
pequena sombra contra a vasta imensidão branca.
Movi os braços para pegar impulso, as pernas queimando
de exaustão. A neve se agitava ao meu redor enquanto corria.
Eu conseguia correr rápido, mas não rápido o su ciente para
acompanhar Sinach.
O que será que tinha acontecido para eu ter recuperado
meu poder? Talvez tenha sido obra de Aeron.
Eu não tinha tempo para pensar sobre isso porque Moria
e Sinach estavam voando em círculos novamente, as escamas
geladas do dragão cintilando sob o céu opaco de inverno.
Assim como o rei Caerleon, ela tentaria me queimar vivo.
Só que agora não era mais tão fácil me matar.
Sinach se aproximou, carbonizando a terra com um fogo
devorador. Eu contra-ataquei com uma lufada de ar gelado
que extinguiu as chamas. As asas escuras de Sinach batiam no
ar, e ele abriu a boca em um rugido, as presas reluzindo na luz
fraca do inverno.
O ar foi incendiado com mais uma explosão de chamas da
boca do dragão, mas minha magia formigou na espinha e
irrompeu do meu peito. A geada percorreu as escamas do
dragão, tornando-as brancas e brilhantes. Os movimentos de
Sinach caram bruscos e desajeitados.
Moria virou o dragão para longe de mim, indo em direção
ao castelo. Eu a segui a pé novamente, os pés afundando na
neve.
Enquanto eu corria para o castelo, avistei uma gura de
asas pretas como as de uma mariposa. Meu mundo virou de
cabeça para baixo.
Ava, meu amor, o que diabos você está fazendo?
Ava

O mundo lá embaixo era um mar branco interrompido


somente pela leira de árvores sem folhas à minha direita.
Pingentes de gelo pendiam dos galhos escuros e pontiagudos.
Enquanto eu voava, não conseguia parar de pensar no que
Cala havia dito. Nada acontece neste castelo sem o consentimento
da rainha…
Se era verdade, como eu havia escapado, a nal?
Só que a rainha tinha me dito muito claramente o que ela
queria, não é mesmo?
Aos poucos, tudo fez sentido em minha mente.
Tudo o que aconteceu na Corte das Lamentações estava
sob seu controle. A prisão, o duelo, as regras sobre Torin e eu
não nos vermos sob pena de uma morte horrível, as muitas
promessas de me jogar da torre…
Tudo o que aconteceu na Corte das Lamentações foi um
teste, com o objetivo especí co de descobrir se a rainha
conseguiria o que queria.
O som de gritos ao longe me causou arrepios na nuca,
interrompendo meus pensamentos. Cada centímetro deste
lugar, cada rocha e encosta nevada, cada lâmina a ada de gelo
— tudo exalava uma brutalidade ameaçadora. Quando estive
aqui pela primeira vez para a competição, Feéria pareceu
sinistra. Mas agora? A terra fria e rochosa exalava violência.
O vento carregava o cheiro de enxofre e cinzas. E da
direção do an teatro, uma forma monstruosa surgiu nos
céus. Um arrepio gélido percorreu minhas terminações
nervosas.
Um dragão planava sob as nuvens cinzentas, suas asas
batendo no céu invernal. Montada em suas costas estava uma
gura vestida de vermelho, uma mancha de beladona
agridoce contra tinta e osso.
Senti um aperto no estômago. Minha magia de plantas,
apesar de incrível, não era a melhor defesa contra um
verdadeiro inferno de chamas. E com a espessa camada de
gelo que cobria a terra como um túmulo, eu precisava de
tempo e concentração para libertar a vegetação.
Voei em direção às árvores esqueléticas. Quando me virei,
o dragão voou mais perto, incendiando o ar com uma rajada
de vento escaldante que chamuscou minhas asas e minha pele
exposta.
As garras do pânico se cravaram no meu estômago
enquanto eu me apressava para as árvores, posicionando
minhas asas para ganhar velocidade em troca de menor
controle. Aterrissei na neve em uma confusão de membros e
asas. Estremeci quando a dor percorreu os ossos da asa. Mas
não havia tempo para cuidar dos meus ferimentos, porque o
dragão estava vindo em minha direção.
O medo incendiou meus pensamentos como um raio.
Eu estava deitada na margem de uma oresta, com
árvores escuras e desfolhadas erguendo-se como chifres da
terra branca. Este era meu exército e, as árvores, meus
soldados. Enquanto o dragão se aproximava, pronto para
soltar mais uma rajada de fogo, os galhos a ados se
estenderam sobre mim como mãos em direção à fera.
Pingentes de gelo caíam na neve conforme os galhos se
moviam e se enroscavam em volta do pescoço do dragão.
O monstro desabou no chão gelado e a força do impacto
sacudiu a terra. Uma nuvem de neve cintilante se espalhou ao
redor do dragão, congelando-o. Meu corpo foi coberto pela
neve.
Meu sangue ferveu com a adrenalina de um caçador ao
derrubar uma presa, e as árvores formaram uma gaiola ao
redor do animal.
Em meio à nuvem de neve, eu havia perdido Moria de
vista.
Eu me levantei, estremecendo de dor por causa das asas
machucadas. O inverno acariciou minha pele.
O dragão estava a apenas uns cinquenta metros de mim
agora. A criatura estava de costas para mim, mas se eu não me
afastasse o su ciente dele, o monstro poderia se virar e me
incendiar com suas chamas.
Flexionei as asas algumas vezes. Meu plano era voar perto
das árvores para evitar o dragão, mas com as asas
machucadas, acho que eu não conseguiria fazer isso.
Cada vez que minhas asas batiam no ar, uma dor aguda
irrompia na esquerda. A neve chicoteava meu rosto, e eu
cerrei os dentes, tentando voar mais alto, mais rápido.
Consegui ganhar alguma altitude, mas uma asa parecia
pesada, e meu voo estava serpenteante e desajeitado. Queria
desesperadamente chegar até Torin. Será que eu tinha
conseguido devolver o poder dele? Esperava que sim. E se
Moria já o tivesse matado? A nal, ela estava voando para
longe do an teatro, como se já tivesse terminado o trabalho.
Fui tomada por uma torrente de pensamentos sombrios e
frenéticos. Eu não poderia perdê-lo novamente.
Meu coração estava disparado enquanto eu me esforçava
para continuar voando, as lágrimas embaçando minha visão
— até que meu olhar pousou em outra gura juntando-se à
briga. Ao longe, através dos redemoinhos de neve, avistei
alguém usando trapos brancos manchados de sangue. Meu
coração se encheu de esperança ao ver Torin correndo
descalço pela neve, uma gura minúscula contra a imensidão
branca. O alívio fez lágrimas quentes escorrerem pelo meu
rosto.
Mas antes que eu pudesse voar lenta e desajeitadamente
para mais perto dele, uma mão agarrou rmemente meu
tornozelo, e Moria me puxou para baixo.
Caí de costas com força, grunhindo com a dor excruciante
que percorreu os ossos da minha asa. O medo subiu pela
minha garganta. Agora eu realmente não conseguiria voar
para longe dela.
Enquanto xava o olhar em mim, ela mostrou as presas.
Tentei freneticamente me erguer nos cotovelos, mas no
próximo instante suas presas vampíricas já estavam rasgando
minha garganta. O terror tomou conta de mim enquanto uma
toxina corrosiva invadia meu corpo, fazendo meus músculos
travarem. Fui tomada por uma sensação de queimação que me
consumia de dentro para fora.
Olhei para as árvores escuras sobre nós e invoquei um dos
galhos. Ele cortou o ar como um dedo irregular que se enrolou
em torno da cintura de Moria e a arrancou de cima de mim.
Levei a mão à garganta enquanto o veneno se espalhava pelo
meu sangue.
Moria rosnou, lutando contra o galho. Meu sangue
pingava do seu corpo até a neve, salpicando o chão branco
enquanto ela se agitava contra o galho ao seu redor.
— Demônio!
Atordoada, tentei me levantar. Gotas escarlates caíam na
neve da ferida em meu pescoço, e eu não sabia se conseguiria
car de pé por muito tempo.
— É meu trabalho — gritou Moria — proteger meu reino
dos demônios. As pessoas acham que uma mulher como eu
não é capaz disso? É meu trabalho mostrar a eles que sou
capaz. Meu Sinach! Queime os traidores.
Senti um aperto no peito.
Dentro de sua prisão, o dragão ergueu a cabeça. Recuei,
preparando-me para o fogo, mas ele não estava olhando para
mim.
Os olhos vermelhos e brilhantes do dragão estavam em
Torin.
Eu gritei o nome dele e tentei voar novamente. A dor
atravessou minha asa, e caí de volta na neve, tonta pela perda
de sangue.
O fogo do dragão incinerou o ar, um calor abrasador que
eu conseguia sentir daqui, mas Torin defendeu a explosão
com um vento gelado que cortou a paisagem. Sua magia
castigou minha pele. Meus dentes começaram a bater e eu me
apoiei no chão com as mãos, deixando duas impressões
vermelhas contra o branco imaculado. O sangue escorria da
minha garganta rasgada.
Moria se libertou do galho, gritando por Modron, sua voz
irregular e histérica. Inclinando-se contra o vento violento,
ela se enrolou em sua capa com rmeza e seguiu na direção de
Torin.
Eu precisava lutar contra ela — Torin não poderia lutar
contra dois monstros ao mesmo tempo —, mas eu mal
conseguia car de pé. Atordoada, eu me levantei novamente.
Ainda assim, minha magia era poderosa. Eu deveria ser
capaz de me curar. Foi o que Morgant me disse.
Toquei minha garganta destroçada e fechei os olhos,
imaginando o rosto severo e belo do meu irmão, o curandeiro
e o esmagador de ossos. Talvez eu não fosse capaz de curar os
outros como ele, mas eu deveria ser capaz de me curar. Minha
visão cou turva.
Olhei para minha palma manchada de sangue e neve e
pensei na magia de Morgant nas minhas costas. Quando ele
retirou a infecção das minhas costas, a sensação foi de água
quente escorrendo pela pele. Com a recordação da sensação, a
magia acariciou minha pele. Lentamente, senti a força pulsar
nos músculos enquanto a pele da minha garganta se
recuperava.
Dentro da minha cabeça, eu vi a árvore azul retorcida
onde nasci, os galhos sobrecarregados pelo peso do castelo.
Tudo tinha sido um teste. Mab queria ter certeza de que
eu era forte o su ciente para matar meus inimigos. O amor
era uma forja — dolorosamente cruel, mas capaz de nos
tornar mais fortes mesmo assim.
Eu queimo por ele.
O poder invadiu meu sangue enquanto o corte no meu
pescoço cava completamente curado e a dor na minha asa
quebrada diminuía.
Procurei por Torin na tempestade de neve, e meu coração
disparou. Moria havia pulado em cima dele e afundado as
presas em sua garganta.
Ava

O dragão rugiu, preso entre galhos escuros. Eu interrompi o


rugido com mais uma leva de árvores e vinhas que se
enrolaram em torno de sua garganta, impedindo-o de abrir a
boca.
Consegui bater as asas. Elas ainda estavam doloridas e
fraturadas, mas haviam cicatrizado o su ciente para eu me
forçar a voar. Eu as inclinei atrás de mim para planar através
do vendaval. O vento invernal me impulsionava, e o ar gelado
castigava meus pulmões a cada respiração.
Com a adrenalina pulsando nas veias, pousei atrás de
Moria.
O sangue de Torin tingia a neve, e eu a puxei pelos cabelos
para longe dele. Ela se virou para mim, as presas
ensanguentadas expostas e o corpo todo sujo de sangue. Com
a força de uma rainha do Cromm Sombrio, eu soquei sua
garganta violentamente. Ela caiu para trás, de costas na neve.
Torin tentou se sentar, mas o sangue escorria de sua
garganta.
Tentei invocar uma vinha da terra congelada para
envolver Moria, mas as plantas estavam presas sob o gelo.
Moria levou as mãos à garganta, os olhos arregalados
enquanto tentava respirar.
— Torin — gritei entredentes —, o gelo!
A compreensão iluminou seu olhar. Uma magia azul-clara
percorreu a paisagem, e o solo começou a tremer. Com as
mãos na garganta sangrando, Torin partiu o gelo, e uma
grande fenda se abriu na terra, expondo a grama morta cerca
de um metro abaixo.
Segurando a própria garganta, Moria caiu na abertura
sobre a grama congelada. Eu me aproximei da borda do gelo e
olhei para ela lá embaixo. Ainda estava ofegante.
— Demônio — murmurou ela.
Meus pensamentos silenciaram e minha mente era como
uma madrugada assombrada, quieta, até que um único
pensamento incandescente iluminou a escuridão: matar a
rainha.
Moria tentou se erguer da fenda, a Espada dos Sussurros
reluzindo em seu quadril. O tempo pareceu desacelerar à
medida que um poder milenar percorria meu corpo, com
cheiro de oresta e grama fresca. A vida fazia meu corpo
vibrar e minha pele formigar. E quando meu peito se encheu
de uma luz dourada, arqueei as costas e lancei minha magia
contra a rainha.
Uma vinha pontiaguda e espinhosa irrompeu da grama,
perfurando suas costelas. Soltei um longo suspiro trêmulo,
encarando meu trabalho.
O corpo de Moria pendia suspenso no ar sobre a fenda,
seu sangue pingando na grama congelada.
Sombras sussurravam através de mim. Mab não queria me
libertar até que eu estivesse forte o su ciente para matar
monstros. E agora?
Eu era um monstro.
Eu me virei, minha pulsação acelerando ao ver a garganta
dilacerada de Torin. Ele havia se sentado na neve por um
momento, mas estava perdendo sangue. Ele desabou no chão,
e eu me ajoelhei ao seu lado, apertando sua garganta com a
mão para estancar o sangue.
Torin havia sido golpeado com uma espada no coração por
mim, então eu aceitaria correr o risco de congelar ao seu
toque.
— Torin — gritei, com as mãos em sua garganta —, você
está livre dela. Moria está morta. Use sua magia para se curar.
Ele olhou nos meus olhos por um momento, e uma faísca
de eletricidade surgiu entre nós. Seu poder gelado percorreu
meu corpo, mas não me congelou. Mantive a mão em sua
garganta, sentindo o pulsar frio de sua magia na minha pele.
Enquanto se curava, o queixo de Torin caiu ao perceber
que estávamos nos tocando. Ele substituiu minha mão pela
dele.
— Você me tocou, Ava — disse ele bruscamente. — Você
nem deveria estar aqui. Eu disse a você para não vir.
Engoli em seco.
— A maldição se foi, Torin.
Ele me encarou.
— Como você poderia saber disso?
— Porque a rainha Mab me disse o que ela queria.
Demorei um pouco para juntar todas as peças, mas agora tudo
faz sentido.
A terra tremeu novamente, e as sombras pareceram se
alongar ao nosso redor, adensando-se. Sobre nós, o céu
cinzento fervilhava e se contorcia, agitando-se com nuvens de
tempestade.
Um estrondo ressoou no horizonte, e da névoa de neve
branca, uma gura escura se aproximava, uma sombra contra
a paisagem cor de osso. Sua capa envolvia seu corpo esguio
como uma fumaça escura, e seu capuz cobria seu rosto. Ela se
aproximou da linha das árvores e desapareceu na oresta,
mas eu conseguia sentir seu poder maligno daqui.
Modron estava nos caçando.
— O que você achou que aconteceria? — gritou ela. Sua
voz soava dissonante e estrati cada, como dez pessoas
agonizantes gritando ao mesmo tempo. — O que você achou
que eu faria quando os Seelie me exilaram? Quando o rei
Finvarra se cansou da verdade? Achou que eu aceitaria
calada?
Torin cou de pé. Sua garganta estava curada agora, e
tudo o que restava do ferimento era uma cicatriz vermelho-
escura. Ele cambaleou pela neve até o corpo de Moria e pegou
sua espada. Sussurros ecoaram pelo ar, um som assustador,
como um coro dos mortos.
Torin segurou o cabo da espada. A fenda era tudo o que
nos separava de Modron.
Uma inquietação subiu pela minha espinha ao som de um
estrondo profundo sob a terra, como um vulcão entrando em
erupção.
— Você deveria sair daqui — gritou Torin. — Voe.
— De jeito nenhum. Mas vou dar uma olhada no que está
acontecendo.
Bati minhas asas no ar nevado, e subi aos céus para ver
melhor. Assim que eu me erguia acima da linha das árvores, o
medo tomou conta de mim.
Do leste, de onde o rio Avon corria, um tsunami estava
vindo em nossa direção, rugindo sobre a neve e consumindo a
oresta. A onda tinha uns vinte metros de altura, uma torre
de água turva que ceifaria a vida de todos em seu caminho.
Fiquei sem fôlego. Aquela onda monstruosa afogaria
todos nós. Ela varreria as aldeias, inundaria o castelo. Levaria
embora cada casa e fazenda do reino.
Minha mente estava a mil por hora, eletri cada pelo
pânico enquanto eu tentava descobrir como pará-la.
— Torin, tem um tsunami vindo — gritei. — Precisamos
de uma fenda maior para envolver o castelo, a cidade.
Precisamos de muralhas.
Ele agiu sem questionar, e o gelo se partiu com um estalo
alto, como se um deus imponente estivesse circulando a
cidade e as aldeias.
Desci até a grama, cando ao lado dele.
— Está a menos de dois quilômetros de distância. Se
trabalharmos juntos, acho que podemos construir uma
muralha mais rápido.
Examinei a paisagem branca, mas já não conseguia mais
ver Modron. Ainda assim, eu podia sentir sua magia uindo
pelo chão.
Pressionei as botas contra a neve, sentindo minha
conexão com a terra. A pulsação da primavera podia ser
sentida lá embaixo sob meus pés, e a luz se derramava do meu
corpo, um dourado pálido que escorria dos meus membros e
pontas dos dedos, aquecendo o mundo ao meu redor.
O poder fazia meu corpo vibrar, um calor derretido que
rachava a superfície gelada. Grama, plantas e raízes
irromperam do solo, entrelaçando-se e disparando em direção
aos céus.
Enquanto minha muralha crescia, Torin a revestia de gelo,
tornando-a sólida como rocha. Ela tinha vários metros de
espessura, uma barreira de gelo e primavera que se erguia aos
céus tempestuosos.
Eu sou a herdeira do Cromm Sombrio, forjada nas montanhas
da deusa das cinzas, e protegerei aqueles que amo.
Um poder milenar irrompeu da minha mente, como
chamas dançando sobre rochas escuras, um céu noturno
tingido de vermelho pelo fogo. Quilômetros de vinhas e
galhos retorcidos surgiam da terra enquanto o poder
percorria meu corpo. Eu já não era mais Ava. Eu era um
recipiente da deusa das cinzas.
Um círculo de vida se erguia ao redor da cidade, e o gelo
de Torin revestia as plantas, preenchendo as rachaduras. A
magia Seelie e Unseelie se entrelaçava, como nos velhos
tempos. A imagem de Mab continuava presente em minha
mente enquanto as plantas cercavam Feéria. Eu tinha dito a
Torin que nós pertencíamos um ao outro, e aqui estava a
prova.
A primavera percorria meu corpo como uma corrente de
calor.
Quando terminamos nosso trabalho, meu corpo tremia,
sem forças. Enjoada, eu tentava conter o tremor.
Torin se virou, observando o horizonte nevado.
— Modron. — Ele cuspiu o nome como um xingamento.
Segui seu olhar e a vi emergir da oresta. Ela estava
tentando fugir despercebida, como fumaça ao vento. Torin a
seguiu.
Enquanto ele ia atrás dela, o tsunami se chocou contra as
paredes, enviando uma onda de choque pelo solo que me fez
cair.
Eu me virei, o coração disparando à medida que grandes
rachaduras começavam a surgir em algumas partes das
muralhas de gelo. Das profundezas do meu ser, invoquei mais
magia, preenchendo os buracos e rachaduras com musgo e
raízes.
A água se chocava com força contra as muralhas, fazendo-
as tremer.
Eu me virei para Torin e o vi abrir mais uma fenda de uns
três metros na frente de Modron.
Ele não precisava pedir. Agora nós conhecíamos o ritmo
um do outro, e eu sabia o que fazer. Com o último sibilar
fervente da minha magia, invoquei uma parede de espinhos,
aprisionando Modron.
Ela tropeçou quando seu caminho foi bloqueado e se virou
para nós.
— Tudo o que eu z foi dizer a verdade — bradou ela, e
sua voz ecoou pela neve. — Mas os Seelie preferem viver com
mentiras. Não é mesmo?
Os sussurros da espada de Torin ecoaram pelo ar em uma
sinfonia assombrada. A lâmina atravessou o pescoço de
Modron, e o capuz cinza-escuro caiu na terra, vazio. Somente
sua cabeça permaneceu, rolando sobre a neve. Fiquei olhando
para a cena horrível, com as mãos no estômago. Minhas
reservas de magia estavam completamente esgotadas, e o
cansaço tomava conta do meu corpo.
Eu me ajoelhei na neve, e Torin largou a espada e correu
até mim. Ele me envolveu com os braços, e eu me apoiei nele.
— As muralhas — murmurei contra seu peito. Mas
enquanto as palavras saíam da minha boca, consegui sentir o
degelo no ar. O calor que acariciava minha pele não vinha
apenas de Torin. O sol emergia de trás das nuvens.
— A magia dela se foi — disse Torin, com a voz rouca. Ele
me pegou no colo, carregando-me em direção ao castelo. — A
onda está recuando.
Eu me apoiei contra Torin enquanto raios de luz
douravam a paisagem branca e brilhavam contra as muralhas
de gelo. Olhei para cima, observando as nuvens escuras de
tempestade se dissiparem e o céu azul abrir. Nossas muralhas
de gelo começaram a brilhar.
— Para onde você está me levando? — perguntei,
escutando o ritmo constante de seu coração.
Ele respirou fundo.
— Nossos inimigos estão mortos, meu amor. Os Seelie
vivem para o prazer, não para a guerra. E com isso em mente,
criança trocada, há muito tempo tenho sonhado em te dar
maçãs na boca no meu quarto.
Ava

A cordei emaranhada nos lençóis de Torin e suspirei


profunda e tremulamente. Acho que eu havia dormido
algumas horas, e sonhei com Torin jogando-se na frente da
espada. Sonhei com minha queda da torre, mas sem as asas se
abrindo nas minhas costas. E então sonhei com Moria, seu
corpo pendendo frouxamente daquela vinha, o sangue
escorrendo por baixo dela.
Estremeci, erguendo o olhar para o teto de vidro
ensolarado acima da cama de Torin. A luz dourada atravessava
as folhas da árvore em seu quarto, salpicando tudo em tons
de coral.
Agora acabou, certo?
Pelo menos, eu esperava que sim. Mas uma preocupação
me incomodava. Eu ainda não fazia ideia de onde Shalini
estava quando a onda atingiu. Senti um nó na garganta.
Eu me levantei, e meu olhar percorreu a macieira que
crescia no centro do quarto dele. Torin me trouxe para cá e me
disse para comer quantas maçãs eu quisesse. Em vez disso,
simplesmente caí em um sono profundo, atormentado por
pesadelos.
Peguei uma maçã de um tom de vermelho profundo da
árvore e dei uma mordida. O sabor tomou conta da minha
boca. Pelos deuses, isso era o paraíso. Torin disse que achou
que a árvore estava morta até matarmos Modron.
Voltei para a cama dele, devorando a maçã. Quando olhei
para o teto de vidro, meu coração saltou de alegria ao ver o
pôr do sol mais uma vez. Eu nunca o havia visto tão lindo em
Feéria.
Enquanto eu estava terminando a maçã, Torin abriu a
porta do quarto, sorrindo para mim enquanto tirava os
sapatos.
— Você está acordada.
Minha pulsação acelerou.
— Você encontrou Shalini e Orla?
— As duas. E Aeron. Ele as estava levando para uma
cabana na oresta quando a onda atingiu, mas estavam
dentro dos limites de nossas muralhas.
Soltei um longo suspiro.
— Estão todos bem?
Ele se deitou ao meu lado na cama, a luz do sol banhando-
o de cima.
— Eles vão car bem, mas Moria os prendeu em gaiolas.
Precisam de tempo para se recuperar.
Meus olhos se arregalaram, uma fúria gélida percorrendo
meu peito.
— Shalini também? O que diabos Shalini já fez de mau
para alguém?
— Nada, é claro. Mas ela era sua amiga, então foi
automaticamente considerada uma fã de demônios.
Bem, acho que o fato de a pessoa que eu queria matar já
estar morta é uma coisa boa. Assim, eu não precisaria me dar
ao trabalho.
— E ela está bem?
— Teve algumas queimaduras de frio, mas eu a curei. De
certa forma, ela parece melhor do que Orla. Acho que Orla
cou mais tempo na gaiola. Ela parece muito abalada com
toda a situação. — Ele passou a mão pelo cabelo. — Ela ca o
tempo inteiro falando sobre o frio como se não conseguisse se
aquecer.
Estremeci com esses pensamentos sombrios.
— Deve ter sido horrível. Posso ver Shalini?
— Ela está dormindo, mas em breve poderá vê-la. É claro.
— Ele se aconchegou na cama ao meu lado. A luz do sol
penetrava pelo teto, iluminando suas feições em tons de
dourado.
Eu me virei para me deitar no peito de Torin, e ele passou
um dedo pela minha lombar. Lambi os lábios, sentindo o
gosto doce e característico de maçãs. A luz aquecia minha
pele, e eu sentia como se me alimentasse dela, assim como as
árvores.
Meus músculos doíam de exaustão. Depois de extinguir
toda a energia do meu corpo, a força estava lentamente
voltando para os meus membros. Ainda assim, eu tinha
vontade de dormir por dias nos braços de Torin.
Passei os dedos sobre a cicatriz avermelhada em sua
garganta.
— Está vendo? Ainda estou viva. — Arqueei uma
sobrancelha. — Nada de maldição.
— Ainda não consigo entender. — Ele segurou meu dedo
em sua mão. — Como você tinha tanta certeza?
Eu não tinha cem por cento de certeza, mas não precisava
falar isso agora.
Eu me virei de costas e me aninhei na dobra do braço dele.
— Mab me disse várias vezes que o que ela queria era que
seus herdeiros ocupassem o trono de Feéria. Com nós dois
juntos, ela conseguiria isso. — Sorri ao sentir o coração de
Torin contra meu braço. Passei tanto tempo pensando que ele
estava morto. Eu nunca mais subestimaria a sensação do seu
coração batendo.
— Certo… mas qual o sentido de nos torturar, então?
Suspirei.
— Tudo o que aconteceu lá não passou de um teste.
Primeiro, eles queriam ver se eu era uma espiã. Mas o que ela
realmente queria saber era se você me amava e se eu era forte
o su ciente para ser rainha. Você me libertou da cela, e isso
deu a ideia de que você se importava comigo. Quando nos
capturaram novamente, queriam saber se você me amava o
su ciente para me fazer rainha. Ela fez as ameaças mais
horríveis possíveis, mencionando castrar você se fosse me
ver. E mesmo assim, você foi. Tenho certeza de que ela
poderia ter impedido isso. Ela poderia ter nos colocado em
lados opostos do castelo sob forte vigilância. Mas isso não
fazia parte do teste. Ela queria saber se você arriscaria sua
própria vida. Porque se você fosse capaz de fazer isso por
mim, signi cava que existia a possibilidade de eu acabar no
trono de Feéria. Mesmo sendo uma Unseelie, com chifres e
tudo mais.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— O duelo foi para ver se eu sacri caria minha vida por
você. Ela se importava se você me amava?
Assenti lentamente.
— Acho que sim, porque eles diziam toda hora que a força
da magia Unseelie vinha da dor do amor. Talvez da ansiedade
desesperada de precisar manter os entes queridos seguros.
Ela queria que eu fosse forte. Sem magia, sem asas, eu não
seria uma rainha do Cromm Sombrio. Então, o próximo teste
foi ver se eu era forte o su ciente para ser herdeira dela, forte
o su ciente para vencer meus inimigos, que foi o que zemos
hoje.
— Amor — disse ele em um tom incerto. — A versão
deles de amor é distorcida.
— Não é o tipo de amor gentil e reconfortante. Eles
adoram a deusa das cinzas. O amor deles é uma forja que os
queima, assim como todos ao seu redor. É o tipo de amor
capaz de fazer uma mãe jogar a lha do castelo para ver se
consegue voar.
— E isso é amor? — Torin soava incrédulo. — É como o
pai de Moria prendendo a lha em uma gaiola ao relento para
torná-la forte.
— Talvez. — Eu me sentei e me espreguicei. — Mas ela
era uma criança, e o esperado era que eu fosse uma guerreira.
Ainda não sei se Mab queria que Morgant voasse atrás de
mim para me manter segura, ou se ele fez isso por conta
própria. Mas acho que nada por lá acontece sem o
consentimento dela, não é? Tudo aconteceu do jeito que ela
esperava, e ela retirou a maldição. Agora ela pode conseguir o
que quer, uma herdeira do Cromm Sombrio no trono de
Feéria.
— Você não vai conseguir me convencer de ser grato a ela.
— Isso nem passou pela minha cabeça. — Uma brisa
suave passou sobre nós, trazendo consigo o aroma de maçãs.
Lambi os lábios, pensando em comer mais uma. — Essas
maçãs são viciantes demais, Torin.
Seus olhos azuis-claros miraram a árvore que pairava
sobre o quarto.
— Sim. Elas se chamam maçãs Sangue do Avon. São de
um vermelho intenso, e seu nome foi dado por causa da
batalha brutal do rio Avon entre os Seelie e os Unseelie
séculos atrás. Nós quase exterminamos um ao outro. As
maçãs quase não cresciam em nosso reino por causa da
maldição. Elas precisam da temperatura e luz solar ideais, e o
solo deve ser umedecido com sangue. Senão, elas crescem
retorcidas e espinhosas.
— Calma aí. Como é?
Ele fez carinho na minha cabeça.
— Ava, acho que sei porque Finvarra baniu Modron.
Pisquei, tentando me livrar da imagem de Torin
carregando um balde de sangue para o seu quarto.
— Porque ela era um pesadelo ambulante?
— Diz a lenda que, outrora, os Seelie e os Unseelie viviam
juntos nessas terras. E entre eles viviam duas gêmeas, tão
antigas quanto a própria terra, Cala e Modron. Também ouvi
dizer que o rei Finvarra tinha uma preferência por mulheres
Unseelie, ele concedia cada vez mais favores a suas amantes.
Mais terras e títulos. Acho que Modron acabou espalhando
essas histórias. Ela contou até mesmo o que se passava por
trás das portas fechadas do rei. Então Finvarra a baniu, e uma
guerra eclodiu entre as duas facções.
— Você não é descendente direto dele? — perguntei. — A
preferência por mulheres Unseelie deve ser de família.
— Eu não tenho preferência por mulheres Unseelie. Só
por você.
Passei o braço em torno de sua cintura.
— Você acha que os Seelie algum dia aceitarão alguém
como eu?
— Vai levar tempo. Até eu ainda estou chocado com a
ideia de que Seelie e demônios pertencem uns aos outros.
— Você nunca vai parar de me chamar de demônio, não é?
— Desculpe, criança trocada. — Ele acariciou um dos
meus chifres com a ponta do dedo, e um arrepio quente
percorreu meu corpo.
— Não sei se os Seelie e os demônios pertencem uns aos
outros. Mas você e eu pertencemos. Só não tenho certeza se
seus súditos vão concordar.
— Eles vão. Quando todos entenderem que a maldição se
foi para sempre, e que você ajudou a salvar o reino, eles não se
importarão com suas asas ou chifres. Tudo o que as pessoas
querem é alimentar suas famílias e mantê-las seguras. Se
dermos alguns meses, eles vão te amar como eu te amo. — A
luz do sol iluminou seus olhos, e um sorriso malicioso se
formou em seus lábios. — Bem, não exatamente como eu te
amo.
Eu sorri.
Quando cheguei neste lugar, pensei que todos fossem
implacáveis e poderosos como deuses. E eram. Mas uma
pessoa — até mesmo um feérico — era como uma dessas
árvores Sangue do Avon; podiam ser deliciosas e belas,
mesmo se alimentadas com sangue, mas se você não fornecer
as condições necessárias para que prosperem, crescem
retorcidas e espinhosas.
Engoli em seco. Eu ouvi as histórias sobre como Moria
havia sido mantida em uma gaiola. Sobre como Milisandia
havia sido a única pessoa que havia lhe mostrado um pouco
de bondade. Quando sua irmã morreu, o apodrecimento teve
início.
Passei os dedos sobre a camisa de Torin e percorri suas
tatuagens. Esta manhã — exatamente neste amanhecer— eu
pensei que nunca mais o veria. Antes disso, na masmorra da
Corte das Lamentações, eu tinha certeza de que seu coração
nunca mais bateria.
E aqui estávamos nós, deitados e agarrados um ao outro.
O meu lugar era aqui. Feéria ainda vivia em meio aos
destroços de uma guerra milenar. Mas a paz reinava, mesmo
que pesadelos ainda nos assolassem por um tempo.
Os feéricos foram forjados nas chamas de uma deusa das
montanhas e destinados a viver vidas selvagens e
incandescentes. Mas não precisávamos de derramamento de
sangue. Os Unseelie viviam pelo dever, e os Seelie pelo prazer.
E, agora, eu tinha bastante certeza de que não queria nada
além de me entregar ao mundo Seelie.
Mas enquanto eu estava deitada em sua cama, uma magia
familiar percorreu minha pele, o poder morno e líquido que
senti quando meu irmão me curou.
Eu me levantei da cama de Torin e fui até uma das janelas.
A primavera já havia orescido lá fora — a neve havia
derretido em apenas algumas horas. As muralhas de gelo
ainda estavam de pé, mas se transformavam em lama
rapidamente. Uma grama verde se estendia a partir do
castelo, assim como um tapete de campânulas contra o sol
poente.
Eu me sobressaltei ao ver duas guras de asas escuras
pardas à beira da oresta, suas longas sombras inclinadas
sobre a grama. O crepúsculo, quando o véu entre os mundos
se torna mais tênue…
Morgant e Mab olhavam xamente para a minha janela,
banhados na luz rosada. Meu coração disparou e tive a
sensação de estar olhando para fantasmas. Olhei para eles e
ergui a mão.
À distância, meu irmão acenou de volta.
— Quais são seus planos como rainha? — perguntou
Torin.
Eu me virei para ele, o coração acelerado. Deitado de
costas, ele cruzou os braços atrás da cabeça.
Quando olhei para fora novamente, Mab e Morgant
tinham desaparecido. Senti um aperto no coração e soltei o ar
lentamente.
— Quem disse que planejo ser rainha daqui? — perguntei
com a voz trêmula.
Seus lábios se curvaram.
— Tecnicamente, temos um contrato.
Pressionei as mãos contra o peito.
— Que romântico. Aliás, você também me deve cinquenta
milhões.
Ele cou muito quieto.
— Você vai car, não é?
Como se houvesse alguma dúvida. Voltei para a cama ao
lado dele, sentindo como se tivesse acabado de acordar de
mais um sonho.
— Acho que eu poderia abrir meu bar por aqui. O Chloe’s?
Na verdade, essa era minha ideia desde o início.
Ele passou os nós dos dedos pelo meu braço.
— O rei Seelie e sua noiva demônio.
— Podemos nos casar, mas, no casamento, meu limite são
sacrifícios. Deveríamos foder ao redor de fogueiras e na
oresta. Me prometeram esse tipo de festa quando cheguei
aqui.
Um sorriso malicioso se formou em seus lábios.
— Em um casamento, criança trocada? Sinceramente.
— Um casamento Beltane. — Sorri. — Você não se
lembra de ter me prometido o Beltane? Nós fodemos com força
contra os carvalhos — falei, imitando sua voz —, cortando o ar
da oresta com os sons do nosso êxtase. Quando foi a última vez
que você se perdeu em um prazer tão intenso a ponto de esquecer
seu próprio nome? Que você esqueceu sua própria mortalidade?
Porque é isso que signi ca ser feérico. Eu poderia fazer você
agonizar de prazer até se esquecer do nome de qualquer humano
que já te fez pensar que havia algo de errado com você.
Ele me encarou, as pupilas escuras dilatadas. Seu olhar fez
com que um arrepio elétrico e quente percorresse meu corpo,
e o poder de sua magia acariciou minha pele.
— Você lembrou letra por letra do que falei.
— Está gravado na minha memória, e eu planejo gravar
essas palavras na sua lápide.
— Você já está planejando a minha morte?
— Só estou te lembrando das suas promessas.
— Quem sou eu para dizer não à rainha demônio? — Ele
acariciou um dos meus chifres levemente com o dedo, e um
arrepio percorreu meu corpo.
Ele entrelaçou os dedos no meu cabelo e pressionou os
lábios contra os meus, reivindicando minha boca com a dele.
O beijo começou doce, até se transformar em algo mais feroz,
mais faminto. Desesperado. Como se pudéssemos apagar os
pesadelos da morte com a magia sensual de um beijo.
E se tinha alguém que possuía esse tipo de magia, eu
tinha certeza de que era o meu rei Seelie.
Shalini

S eis meses depois.


Recuperei o fôlego, meu corpo envolto no de Aeron. Deitei
a cabeça na curva de seu pescoço, inspirando o aroma dos sais
de banho. O vapor da água espiralava no ar, iluminado pela
luz da janela.
Tínhamos nos mudado para uma casa nova, não muito
longe do castelo, com janelas que davam para os novos jardins
de Feéria. Não tinha vista para o castelo. Eu odiava o castelo, e
nunca mais queria vê-lo.
Sob nossa janela, rosas cresciam ao longo do caminho de
seixos, e macieiras haviam sido plantadas em leiras até a
oresta. Daqui, conseguia ver as árvores iluminadas pelo sol
agitando-se na brisa.
Aeron saiu da banheira, com letes de água escorrendo
por seu corpo esculpido. Eu jamais me cansaria de olhar para
ele sem roupa.
— Você ainda não me levou ao seu barzinho, Shalini —
disse ele. — Se lembra? Você queria me levar para comer
cachorro-quente.
Saí da banheira e esvaziei a água.
— Bem, talvez a gente não precise ir ao Trevo Dourado.
Agora temos o Chloe’s.
Peguei uma toalha. Hoje seria a noite de inauguração do
novo bar de coquetéis da Ava — uma novidade para Feéria.
Aeron secou seu cabelo molhado.
— Não parece estranho que a futura rainha Unseelie abra
uma taverna? No castelo, ainda por cima?
Sequei meus braços e pernas, tentando não pensar nas
paredes geladas do castelo ou nos pingentes de gelo que
pendiam das barras de ferro da gaiola onde eu tinha certeza
de que morreria.
Quando dei por mim, eu estava encarando a janela.
Como se lesse meus pensamentos, Aeron perguntou:
— Shalini, está tudo bem por você voltar lá?
Assenti.
— Acho que sim. Não posso perder a noite de inauguração
dela. Sempre foi o sonho de Ava.
— Ser uma garçonete de taverna.
Revirei os olhos, entrando no nosso quarto. Hoje seria a
primeira de muitas noites que Ava estaria recebendo centenas
de convidados por vez, até que todos tivessem a chance de
estarem na presença da futura rainha.
— Não acho que será como um bar humano. Acho que a
ideia é ser uma forma de convidar Seelie comuns para o
castelo, oferecendo-lhes comida e bebida. É para fazer com
que se sintam parte da história. Ela está fazendo isso pelas
pessoas que vocês chamam de feéricos comuns. As pessoas
que Moria chamou de “camponeses”.
— Compreendo. — Ele entrou no nosso quarto e abriu o
guarda-roupa.
— Feéricos comuns sem magia são maioria em seu reino,
e são eles que ela quer impressionar. Eles nunca foram
convidados para o lar da realeza assim antes, não é? A menos
que fosse como soldado ou servo. Na verdade, é uma ideia
brilhante. E ela tem muito trabalho a fazer se quiser que
Feéria aceite uma rainha com asas e chifres.
— Faz sentido. Eu só nunca teria pensado nisso. Nossas
tradições estão mudando rapidamente por aqui, é difícil
acompanhar. — Ele sorriu para mim com gotículas de água
brilhando em sua pele, e me deu um beijo na testa. — E isso é
uma coisa boa, na verdade, ou eu ainda estaria preso ao meu
juramento idiota de castidade.

E      do castelo e senti um


aperto no peito. O rugido do dragão ecoou no fundo da minha
mente.
Já que eu não chegava perto do castelo há meses, não
fazia ideia do que encontraria lá dentro. É verdade que eu me
sentia incrível em meu vestido dourado-claro com uma fenda
na coxa, mas por dentro, era como se eu não conseguisse
respirar direito. Usando um terno de veludo escuro, Aeron
entrelaçou o braço no meu e acariciou meu antebraço.
— Estarei ao seu lado, amor.
Agradeço aos deuses por Aeron.
O caminho do lado de fora do castelo estava iluminado
por tochas, e segui uma la de convidados pela entrada, a
maioria deles em vestidos de baile ou ternos formais de
veludo como o de Aeron.
Entramos no castelo. Aqui dentro, o caminho também
estava iluminado por tochas que lançavam uma luz quente e
bruxuleante sobre as pedras e arcos. Engoli em seco enquanto
andávamos pelo corredor, tentando não lembrar de quando
fui arrastada acorrentada para cá. Eu ainda odiava este lugar.
Mas, esta noite, o lugar inteiro parecia transformado, e
isso me ajudou a relaxar um pouco. Arranjos de ores se
entrelaçavam pelas paredes, e o ar tinha o cheiro vivo das
plantas.
Os mordomos nos guiaram até uma porta enorme e
abobadada com o nome CHLOE esculpido na pedra, cercado
por entalhes de vinhas.
De braços dados com Aeron, atravessei a porta e entrei em
um salão que era metade pedra, metade aberto para o céu
noturno. A cena me deixou sem fôlego.
Vinhas de um azul-escuro intenso e pontas vermelhas
serpenteavam por colunas e paredes de pedra, piscando com
minúsculas luzinhas brancas. No topo das colunas escuras,
tochas ardiam como chamas vulcânicas brilhantes contra o
céu noturno. A música utuava no ar e os criados percorriam
o salão com bandejas de comida e taças de bebidas coloridas.
Algum dia, eles também poderiam estar aqui como
convidados.
Vi Ava do outro lado do salão e nossos olhares se
cruzaram. Ela correu até mim com um sorriso estampado no
rosto. Sua pele estava brilhante.
— Vocês dois estão incríveis. Estou tão feliz esta noite,
Shalini.
— Ava. — Coloquei a mão sobre o peito. — Isso está
muito, muito melhor do que o Trevo Dourado.
Ela sorriu para mim de um jeito travesso.
— Eles provaram cachorro-quente e nachos e adoraram.
Acham que é uma culinária muito so sticada. — Ela se
inclinou, sussurrando. — Não conte a eles que os pratos são
vegetarianos.
Arqueei uma sobrancelha, sussurrando:
— E desde quando você é vegetariana?
Ela deu de ombros.
— É uma coisa Unseelie.
Aeron pegou dois coquetéis cor de âmbar de uma bandeja
e me deu um.
— Bem, isso não é realmente uma taverna. Você não está
cobrando nada.
Ela arregalou os olhos.
— Não. Não precisamos do dinheiro. Eu só quero que as
pessoas se divirtam aqui pelo menos uma vez. Além disso, eu
honestamente só quero ser aceita. E tem jeito melhor de fazer
as pessoas gostarem de você?
Assenti, erguendo meu coquetel.
— Bebidas grátis.
Torin veio até nós com as mãos nos bolsos. Ele estava
radiante de orgulho pelos esforços de Ava.
Ela sorriu.
— Foi assim que acabei beijando Steve Sexo a Três na
noite em que conhecemos Torin. Ele comprou uma jarra de
margarita para mim.
Semicerrei os olhos.
— Não acho que suas intenções aqui sejam algo desse
tipo, não é? Porque aquilo foi muito assustador.
— Realmente.
Torin pressionou um dedo sobre os lábios, franzindo a
testa.
— O que foi que você acabou de falar, Ava?
Ava gesticulou com a mão.
— Passado é passado, e estamos aqui para nos divertir. É
isso o que os Unseelie fazem, não é? Vamos dançar, beber e
amar uns aos outros até o dia de nossa morte.
A palavra morte ressoou em meus pensamentos por tempo
demais, mas respirei fundo e olhei para o rosto dos meus
lindos amigos. Uma brisa perfumada nos percorreu.
Eu ainda era atormentada por pesadelos — a sensação do
frio corroendo minha pele e a certeza da morte. O rugido do
dragão e o calor escaldante de suas chamas.
Às vezes, eu ainda me sentia assombrada pela memória de
fantasmas congelados vagando do lado de fora das minhas
janelas.
Mas, agora, aqui estava eu, ao lado de pessoas que eu
amava. Com eles ao meu redor, o inverno começou a
retroceder mais uma vez, e o terror derreteu — assim como
tinha acontecido em Feéria.
Ava

U m ano depois.
É claro que eu dormiria até tarde no dia do meu
casamento. Por que eu ia querer acordar quando dormia ao
lado de Torin todas as noites, entrelaçada em seus braços?
Mas ele não estava ali. O seu lado da cama estava vazio, e
tudo o que eu tinha era a lembrança dele me beijando por
toda parte, sua mão repousando levemente em volta do meu
pescoço, acariciando meu rosto enquanto ele me penetrava. O
seu cheiro ainda estava impregnado em mim, e eu sentia o
poder de sua magia pairando no ar, mas ele não estava ali ao
meu lado como de costume.
Esfreguei os olhos, e então congelei de surpresa ao ver
uma segunda árvore em seu quarto, ao lado da macieira
Sangue do Avon. Banhada na luz matinal cor de âmbar, essa
árvore tinha uma casca azulada e folhas com pontas
vermelhas, assim como as árvores da Corte das Lamentações.
Eu a encarei. Será que eu estava sonhando?
Esfreguei os olhos novamente, tentando me forçar a
acordar.
Já se passara um ano desde que Torin e eu havíamos
livrado este lugar da maldição, e a nova luz de Feéria ainda
parecia mágica para mim — raios dourados e cor de mel que
atravessavam o teto de vidro. Quando cheguei em Feéria, eu
sentia como se até mesmo as pedras deste lugar estivessem
me rejeitando. Como se o próprio castelo soubesse que eu era
Unseelie. Mas agora eu me sentia em casa.
Eu me deitei de volta no travesseiro, colocando o braço
sobre os olhos. Às vezes, ainda tinha pesadelos com o dia em
que matamos Moria e Modron. Nos meus dias mais
silenciosos e sombrios, eu ainda era assombrada por seus
espíritos tristes e inquietos. Mas a luz brilhante da primavera
era um lembrete de que zemos o que era preciso para Feéria.
Nós a livramos da maldição que a estava matando.
Quando abri os olhos novamente, a árvore ainda estava
ali, as folhas roçando na macieira. E se me concentrasse nela,
poderia me fundir com o seu corpo e sentir a luz alimentando
as folhas…
Enquanto eu a encarava, a porta se abriu com um rangido.
Torin entrou. Ele vestia um terno preto de couro e veludo, e
trazia duas xícaras de café, mas sua expressão sombria fez
meu coração acelerar.
— O que houve? — perguntei.
A tristeza reluzia em seus olhos claros enquanto ele me
entregava uma das xícaras.
— Sua mãe e seu irmão chegaram para o casamento. —
Ele se sentou na cama ao meu lado, olhando xamente para a
frente, como se tivesse acabado de sobreviver a uma guerra.
— Só isso? — Eu não sabia ao certo se estava ansiosa ou
aliviada com sua a rmação. Além do convite de casamento, eu
não havia conversado adequadamente com eles desde que
deixamos a Corte das Lamentações. — Achei que alguém
tinha morrido — falei casualmente, tentando disfarçar meu
próprio nervosismo.
Mesmo que tivessem bons motivos, eu não achava que
Torin os perdoaria totalmente por me torturarem em uma
masmorra e amaldiçoarem Orla. Ele não se importava muito
com o tratamento que ele mesmo recebeu em suas mãos, mas
era um protetor incansável de sua irmã e de mim.
— Torin, você percebe que, de certa forma, Mab e
Morgant são um pouco como você? Eles fariam uma viagem
só de ida até o inferno pelas pessoas que amam. Mab me disse
que conseguia sentir o peso e o fardo da árvore que
sustentava seu castelo. Disse que ela era a própria árvore. Ela
carrega o fardo do amor e a dor de seus lhos, mas não
mudaria nada nisso. Ela não queria se livrar do peso que
carregava. — Dei um gole no café, um pouco de creme e sem
açúcar, exatamente como eu gostava.
— Eu sei. E entendo por que ela me odeia. É claro que me
sinto terrível pelo que aconteceu ao lho dela depois que
enviei os assassinos. — Ele passou a mão pelo cabelo. — Mas
Orla nunca fez nada contra ela, e Mab ainda poderia remover
a maldição.
— É o dia do nosso casamento. Talvez hoje seja o dia
perfeito para perguntar. — Olhei para a árvore de folhas
vermelhas. — Torin, por que tem uma árvore nova no nosso
quarto?
— Achei que seria um bom presente de casamento. Algo
da sua terra natal. — Ele franziu a testa enquanto dava um
gole no café. — Acho que eu deveria ter perguntado. Não
estou acostumado a perguntar antes de fazer as coisas.
Sorri para ele.
— Eu amei. Talvez os galhos das duas cresçam juntos.
Torin se inclinou sobre o meu braço recém-tatuado,
deixando uma sensação quente nos rastros de seu toque.
Na tradição Seelie, um casamento real sempre envolvia
uma cerimônia de tatuagem. Eu escolhi vinhas sinuosas e
espinhosas enrolando-se em meus braços — um símbolo do
lugar onde nasci.
Torin beijou meu pulso.
— É linda. Por você, eu faria meu reino arder em chamas e
levaria uma lâmina no coração novamente, criança trocada.
Eu viajaria para o mundo dos mortos e ouviria o lamento das
almas atormentadas se isso te zesse feliz. — Ele ergueu os
olhos e encontrou os meus com um sorriso torto. — E, da
mesma forma, eu suportarei um casamento público com
ambas as nossas famílias presentes, mesmo depois de
passarmos uma vida inteira aterrorizando uns aos outros.
Ergui a xícara de café, sorrindo ironicamente para ele.
— Agradeço o seu sacrifício.
Ele se levantou da cama.
— Madame Sioba está vindo. Eu não deveria estar aqui
enquanto ela estiver te arrumando. Ela caria muito irritada.
— Ele se virou para olhar para mim, os olhos brilhando. — Eu
te amo, criança trocada.
Antes que eu pudesse responder, Madame Sioba abriu a
porta, carregando longos tecidos que cintilavam à luz do sol.
Ela semicerrou os olhos para Torin.
— Pedi para que não estivesse aqui. Vossa Alteza —
acrescentou ela em um tom quase sarcástico.
Com um sorriso divertido, Torin saiu do quarto.
As orelhas pontudas de Madame Sioba se projetavam por
entre seus cabelos grisalhos e ásperos. Havia manchas escuras
sob seus olhos, mas seu vestido era, como sempre,
deslumbrante — longo, prateado e perfeitamente ajustado às
suas curvas.
— Suba na cama — disse ela rispidamente.
Em outra vida, Madame Sioba poderia ter sido uma
dominatrix muito requisitada. Olhei para baixo. Eu estava
usando somente uma camisola na e roupa íntima. Mas eu
sabia que era melhor não me preocupar com modéstia na
frente de Madame Sioba.
— Inacreditável — resmungou ela. — Já era ruim o
su ciente quando eu achava que você era uma feérica comum.
Agora é um demônio. — Ela fez um som de reprovação. —
Nunca pensei que teríamos uma coisa dessas aqui. Demônios
no trono. Depois de tudo o que zeram.
Cruzei os braços.
— Não foram os Unseelie que amaldiçoaram este lugar.
Todo mundo já sabe disso.
Ela abriu a boca e fechou, então endireitou a postura,
alongando os ombros.
— Leva tempo para se acostumar. Só isso. Estamos sendo
receptivos a todo tipo de gente aqui. — Ela suspirou. — Até
aos monstros mais desleixados.
— Você sabe que eu vou ser rainha, não é?
Ela olhou para os tecidos em seus braços.
— Bem, já que você vem do reino dos demônios, esta seda
é de lá. Pensei que seria uma gentileza. — Sua expressão se
tornou mais alegre. — Eles têm aranhas gigantes, sabia? Eu
nunca conseguiria tanta seda antes de abrirmos o comércio
entre os reinos. Nem tenho certeza se aqueles simplórios
conhecem o seu verdadeiro valor. — Ela pegou um tecido
verde-claro. — O que acha deste?
O verde-água era deslumbrante, mas me lembrava muito
do verde que eu usava quando Torin me congelou por
acidente. Eu queria algo novo. Meu olhar foi atraído por uma
seda anil, da cor das árvores e vinhas da Corte das
Lamentações.
Apontei para ela.
— Essa. A azul.
Ela me olhou de cima a baixo.
— Ótimos quadris. Bons para gerar lhos. Esse é o
trabalho de uma rainha.
— Podemos seguir? — retruquei, desesperada para sair de
perto dela.
Com um grunhido, Sioba fez um movimento no pulso, e
então eu estava envolta em chamas. Cerrei os dentes,
reprimindo um gritinho de surpresa. Eu já havia passado por
tudo isso antes, e desta vez, na verdade, aproveitei as
esponjas mágicas mornas que passeavam sobre minha pele,
esfregando meu cabelo. A água quente percorreu meu corpo, e
tentei não pensar nas consequências disso para nossa cama.
A água parou e um ar quente começou a soprar sobre
mim, secando a mim mesma e a cama sob meus pés. Eu me
perguntei se algum dos convidados do casamento conseguia
ver meu traseiro despido pela janela.
Quando ela terminou, meu cabelo verde pendia sobre
meus ombros em ondas sedosas como o tecido Unseelie. Ela
estendeu a mão e soprou no ar, e roupas íntimas, brancas e de
seda, utuaram em uma brisa fantasmagórica para envolver
meus quadris.
Olhei para a minha xícara de café e me perguntei se eu
conseguiria pegar outra antes da cerimônia. Mas enquanto eu
olhava, o tecido anil envolvia meu corpo, transformando-se
em um vestido com um decote profundo nas costas. Contas
delicadas e escuras corriam pelo material, formando desenhos
de vinhas e folhas retorcidas, e sapatilhas prateadas surgiram
em meus pés. A empolgação tomou conta de mim. Precisei de
um minuto ou dois para acordar, mas agora eu me sentia
incrível. A sensação da seda Unseelie era divina contra minha
pele, como se meu corpo tivesse esperado a vida inteira para
usá-la.
No momento em que a costureira estava nalizando o
trabalho, escutou-se uma batida na porta.
— Não! — rugiu Sioba.
— Quem é? — perguntei.
Sem responder, Shalini empurrou a porta, os olhos
brilhando de alegria.
— Pelos deuses, Ava! Você está incrível.
Tecnicamente, os casamentos Seelie não tinham damas de
honra. Nem uma gura paterna para conduzir a noiva até o
altar… mas eu havia crescido entre os humanos, então
mudaria algumas coisinhas nas tradições feéricas.
Shalini havia escolhido o próprio vestido — de seda em
um tom de ouro rosê que estava deslumbrante contra sua pele
acobreada — e uma coroa oral repousava sobre os cabelos
escuros.
— E o buquê? — perguntou ela.
Desci da cama.
— Posso fazer um.
Ela assentiu.
— Ah. Sim. Tipo, literalmente.
— Acho que não sou mais necessária, não é mesmo? —
murmurou Sioba. — Por nada.
Enquanto Sioba saía do quarto às pressas, Shalini sorriu
para mim.
Não pude deixar de sorrir de volta.
— Você parece feliz de novo.
— Claro que estou. É o casamento da minha melhor
amiga. E Aeron e eu acabamos de fazer ponche com ambrosia,
e é incrível. Vai resolver todo aquele problemão de família
sobre quem matou quem.
— Realmente, só magia vai resolver.
Ela arregalou os olhos.
— Eu os vi lá fora. Sua mãe e seu irmão, e mais alguns
Unseelie com asas. Todo mundo estava olhando pra eles. Acho
que estavam intrigados.
— As pessoas já estão lá fora?
— É o casamento real. Entre um Seelie e uma Unseelie.
Todo mundo apareceu antes do amanhecer pra conseguir o
melhor lugar na oresta.
Senti um nó no estômago. Havia duas pessoas que eu
queria ver antes do início da cerimônia.
Ava

C onseguir um tempo a sós com Mab e Morgant exigiu o


apoio de uma pequena legião de soldados para afastar os
olhares curiosos dos convidados. A empolgação tomou conta
de mim quando os vi novamente — assim como aconteceu
quando eu os vi antes, à beira da oresta. Acho que eu sempre
os imaginei neste espaço liminar: entre o dia e a noite, entre a
civilização e a natureza selvagem, entre família e aliados
inquietos.
Conforme eu me aproximava, Mab ergueu o queixo. Ela
usava uma coroa de ouro pálido sobre os cabelos brancos, e
seu vestido cintilava como pérolas. Morgant também usava
coroa, mas parecia cada vez mais inquieto à medida que eu me
aproximava, como se estivesse nervoso sobre o que eu diria.
Ele segurava uma segunda coroa nas mãos e a girava entre os
dedos. Suas asas escuras pendiam para baixo nas costas.
Engoli em seco.
— Que bom que vocês puderam vir.
Mab franziu a testa.
— É claro que eu vim. Ava, isso é tudo o que o meu reino
tem desejado por séculos. Você está unindo os nossos reinos.
Respirei fundo.
— Na tradição humana, um parente acompanha a noiva
até o noivo. — Encontrei o olhar de Morgant. — Será que
você caminharia comigo pela oresta?
Ele assentiu.
— Claro.
Mab ergueu uma sobrancelha.
— E eu?
— Como rainha, achei que já estivesse cansada de
cerimônias.
Ela me encarou.
— Vou participar de sua coroação em Feéria, quando ela
ocorrer.
Não era uma pergunta.
Eu ainda não sabia como chamá-la. Mãe não parecia certo,
nem Vossa Majestade, então simplesmente evitei precisar
chamá-la de alguma coisa.
— O que você acha de remover a maldição de Orla?
Sua pele irradiava luz.
— Ela não precisa da visão, se sai perfeitamente bem sem
ela, e isso provavelmente só a deixaria confusa.
Suspirei.
— Sim, mas você a amaldiçoou com doença e fraqueza.
Ela não precisa da visão, mas precisa ser saudável.
Os olhos de Mab brilharam na luz matinal.
— Os pais dela me privaram da sua infância. O irmão dela
enviou assassinos para o meu reino para me matar. Eles
mataram o meu lho Owen.
Senti um aperto no coração. Eu nunca tinha ouvido o
nome do meu irmão. Quantas pessoas derramaram sangue
por estes reinos — por essa antiga disputa que havia durado
milhares de anos?
— Mas quem fez tudo isso não foi Orla, não é? — falei. —
Ela não tem culpa de nada.
Mab inclinou a cabeça, examinando-me. O sol nascente
tornava dourados seus cabelos brancos.
— Eu consegui o que queria. Fiz o que era melhor para
minha família. Para meu reino. Mesmo que tenha doído. —
Ela tocou o ombro de Morgant. — Morgant pode ajudá-la
com a maldição.
Sorri para ele.
— Ótimo. Perfeito.
Ela se aproximou de mim, olhando-me intensamente.
— Considere isso nosso presente de casamento e um
gesto de boa vontade entre nossos reinos. Um dia, após
minha morte, eles serão unidos… quando você governar tanto
os Seelie quanto os Unseelie.
Suas palavras me causaram um aperto no peito.
— Uma coisa de cada vez.
Ela ergueu meu queixo.
— Claro que você está nervosa. Aqui está você, jogada na
provação do casamento. — Ela baixou a mão. — Eu mesma
nunca tive coragem o su ciente. Mas você tem Torin. Não sei
se algum dia serei capaz de realmente perdoá-lo, mas ele
queima por você, minha herdeira. — Seus olhos caram
marejados. — Filhos também são sofrimento, mas pelo
menos podemos nos orgulhar do que ajudamos a criar.
Senti os olhos arderem e olhei para Morgant.
— Talvez vocês possam vir aqui mais vezes. Já que os
reinos serão unidos um dia.
— Nós vamos. — Mab se virou e começou a caminhar
pela oresta, com o vestido arrastando pelo caminho verde e
musgoso atrás dela.
Sorri para Morgant.
— Apenas entrelaçamos os braços e caminhamos juntos.
Ele estendeu a coroa em suas mãos. Parecia exatamente
igual a dele.
— É tradição dos herdeiros do Cromm Sombrio. Feita do
corpo de um escorpião morto da oresta, depois dourada no
templo da deusa das cinzas. — Ele me entregou com um leve
sorriso. — Porque você se tornou uma de nós.
Eu jamais esperaria caminhar até o altar usando um
inseto morto dourado de acessório, mas, na verdade, era
estranhamente bonita. Eu a coloquei na cabeça.
Entrelacei o braço no de Morgant e, juntos, cruzamos as
sombras dos galhos arqueados. A luz da manhã penetrava por
entre as árvores e folhas, salpicando o chão de dourado.
— Por que você escolheu este lugar para um casamento
real? — perguntou ele. — Você queria que fosse nas
profundezas da oresta?
— Foi onde ocorreu a batalha que dividiu nossos reinos,
há milhares de anos. Dizem que Feéria é alimentada com o
sangue da batalha do Avon.
— Haverá muitos espíritos presentes — disse ele.
A curiosidade me atiçou.
— Você já viu um fantasma?
— Sou assombrado pelos espíritos de todos que matei.
— É porque você nasceu para curar, não matar. —
Seguimos o caminho sinuoso do rio, e senti um arrepio
percorrer a espinha. — Você vai ajudar Orla?
— É claro.
Estendi a mão e convoquei um buquê de rosas vermelhas,
da cor das folhas da Corte das Lamentações.
— Morgant, você já quis o trono para si mesmo?
Ele franziu a testa e olhou para mim com uma expressão
de dúvida.
— Um homem não pode assumir o trono. A linhagem real
Unseelie é matrilinear, e qualquer outra coisa além disso é
uma insensatez. Como se poderia saber o verdadeiro pai de
uma criança? Somente a maternidade é certa.
Pontos interessantes.
— Morgant, eu sei que todo mundo me disse que na Corte
das Lamentações nada acontece sem o consentimento de
Mab. Mas o que foi ideia sua e o que foi ideia dela? Ela queria
que você me ajudasse?
Ele me olhou enquanto andávamos.
— Nada acontece lá sem o consentimento dela, mas eu
nem sempre espero por ordens. Ela não me disse para voar
atrás de você, mas não me impediu. Não me disse para levar a
banheira para você, mas tenho certeza de que sabia sobre isso.
Ela con a no meu julgamento. Sabe que farei o que é certo.
Enquanto seguíamos o rio, o caminho se abriu em uma
clareira, e um bosque de macieiras Sangue do Avon se
espalhava ao nosso redor, crescido a partir do solo encharcado
com o sangue de nossos ancestrais.
Meu nervosismo aumentou ao perceber a enorme
multidão pressionada entre os troncos de ambos os lados.
Senti um nó no estômago ao pensar em todas essas pessoas
olhando para mim, avaliando sua nova rainha.
Respirei devagar, meu olhar percorrendo as pessoas que
estavam do outro lado do caminho da oresta. Orla e Shalini,
lado a lado, vestidas de ouro rosê combinando. A rainha Mab,
com suas asas escuras abertas como se estivesse prestes a
voar. Senti que isso era algum tipo de demonstração de poder
Unseelie. Aeron sorriu para mim, vestindo um uniforme de
soldado.
Então meu olhar se xou em Torin, os olhos brilhando
enquanto me tava. Um raio de luz dourada iluminava os
contornos perfeitos de seu rosto. Quando vi a expressão feroz
e ardente em seus olhos, eu me lembrei das palavras de Mab.
Ele queima por você.
Somente então meus músculos tensos começaram a
relaxar. Eu sempre me sentiria segura com ele. Outrora, eu já
havia sido uma criança trocada perdida, mas agora ele era
meu lar.
À medida que eu caminhava de braços dados com
Morgant, uma música rítmica tomou conta da oresta, um
som de tambor batendo no ritmo do meu coração.
Morgant me conduziu até Torin e então se afastou,
contente em retornar para as sombras.
Torin segurou minhas mãos, e eu senti sua magia pulsar
sobre minha pele, um poder parecia emergir da própria terra
e me envolver.
— Minha amada, eu sou seu e você é minha. — Sua voz
grave e aveludada ecoou pela oresta. — Você me despertou
para a vida. Prometo amá-la e protegê-la através de todas as
estações da vida. Eu a manterei fresca no calor do verão e a
aquecerei no frio do inverno. Juro pelo sangue dos meus
ancestrais aqui enterrados, entrego-lhe meu amor e lealdade
até que a morte me chame.
Agora era a minha vez.
— Meu amado, eu sou sua e você é meu. Sob a luz do sol
que sustenta a vida, prometo protegê-lo com toda a minha
alma. Você derreteu o gelo em meu coração e me ofereceu
raízes. Prometo amá-lo através de todas as estações da vida.
Juro por todas as plantas no solo, entrego-lhe meu amor até
que o ar deixe meus pulmões.
Quando Torin pressionou os lábios contra os meus,
quando seus braços me envolveram, senti um poder
indomado percorrer nossos corpos a partir do solo — a magia
dos mortos e dos vivos, dos Seelie e dos Unseelie.
Assim como seu trono quebrado, os reinos fragmentados
começaram a se curar mais uma vez.
Agradecimentos
Agradecemos aos nossos queridos amigos escritores que
leram trechos do livro e nos deram suas opiniões: Mike Omer,
Linsey Hall, Elizabeth Briggs e Sarah Piper.
Agradecemos aos nossos gurus do marketing que nos
ajudaram a encontrar tantos novos leitores para esta série,
incluindo Rachel, do Nerdfarm, ais e Candice.
Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53

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