01- Filhos Da Lua O Legado - Marcella Rossetti
01- Filhos Da Lua O Legado - Marcella Rossetti
01- Filhos Da Lua O Legado - Marcella Rossetti
O Legado
Marcella Rossetti
Para minha mãe,
que acreditou que eu poderia conquistar tudo em minha vida.
Direitos autorais do texto original © 2015 Marcella Rossetti
Todos os direitos reservados
– Olha, não adianta ficar com essa cara, Bia – disse Nicole
enquanto mordia um pedaço de pão molhado na sopa fumegante.
Bianca abriu o casaco, apesar de lá fora estar bastante frio, dentro
do Lemniscata o ambiente climatizado os aquecia. Ela acabara de voltar do
dormitório onde tinha ido se arrumar para o jantar. O treinamento com
armas de longo alcance tinha sido bastante exaustivo hoje, mas ela já se
sentia cada vez mais capaz de aguentar sem se cansar como antes.
– Cara de quê? – perguntou Ricardo ao ouvi-las, enquanto se
aproximava da mesa com seu prato.
– Cara de quem comeu e não gostou! – respondeu Nicole.
– Não sei do que está falando – disse Bianca, dando mais uma
olhada furtiva na direção de Lucas e Giovanna conversando perto do
espelho d’água.
Nicole acenou para onde ela estava olhando e Ricardo deu uma
olhada.
– Ahh... – exclamou ele em compreensão. – Mas não se preocupe,
os dois estão apenas conversando porque são da mesma linhagem, e não
porque ela é supergata, megaeficiente em combate e ultradisputada pelos
rapazes por aqui.
Bianca virou-se perplexa para ele e Nicole riu.
– Ric, obrigada pela ajuda! – disse Nicole ainda rindo.
Bianca continuava a encará-lo com as sobrancelhas levemente
levantadas.
– O quê? – disse ele, erguendo as mãos e fingindo espanto. – Mas
para a sua defesa, eu te acho muuuuito mais supergata do que ela, apesar de
não tão eficiente em combate... – sussurrou ele, inclinando-se na direção
dela. – São só detalhes... Você poderia namorar comigo, o que acha?
Também tenho o legado, teríamos narigudinhos superfofos...
Nicole riu ainda mais alto, quando Bianca, indignada, jogou um
pedaço de pão nele. Ele aproveitou o pedaço para comer com a sua sopa.
Bianca voltou seu olhar para Lucas. Ainda se lembrava de quando e
como o conhecera na escola. Ela o achara o garoto mais bonito que já tinha
visto e, quando a beijara na balada, havia sentido que era tudo o que
desejava. Entretanto, não tinha mais tanta certeza. Saber sobre Giovanna foi
como um balde de água fria na cabeça e ambos se sentiam compelidos a se
evitar.
Enquanto isso, Bianca notou Julian se aproximando de uma mesa
onde estavam Fábio e Cristina, a Uivadora amiga de Giovanna, que a
ajudou a cercar Bianca na arena. Ela deveria ter uns dezoito anos e tinha
cabelos escuros, cortados até os ombros.
O coração de Bianca bateu mais rápido quando viu Cristina sorrir
calorosamente para Julian e ele se abaixar para falar algo em seu ouvido. A
garota se virou para ele e tocou com uma das mãos em seu ombro enquanto
o ouvia. Ele sorria enquanto falava e ela respondeu algo com outro sorriso.
De repente, ele levou uma das mãos ao cabelo dela e o acariciou
delicadamente.
Eles pareciam próximos, e Bianca piscou algumas vezes só para ter
certeza de que estava vendo certo. Em todas essas semanas, Julian nunca
disse nada sobre estar saindo com alguém. Mas então ela mordeu levemente
os lábios. Por que ele lhe diria algo? Apesar de terem começado a conversar
mais durante os treinos, ele ainda era sempre reservado e irônico com ela.
Porém, de repente, o sorriso de Cristina desapareceu. Ele se ergueu
da mesa e a encarou de cima com um sorriso de canto. O semblante de
Cristina mudou para descrença e depois horror.
Julian se afastou dela e começou a caminhar entre as mesas.
– Não faça isso, Julian! – falou Cristina alto demais. Alguns
lançaram olhares curiosos. Ela tinha desespero no olhar e, por algum
motivo, Bianca sentiu-se satisfeita.
– Ei! João SanMartin – gritou Julian, já quase no meio do refeitório.
O tom dele fez com que alguns se virassem para ver o que estava
acontecendo.
Cristina levou as mãos à boca.
Um arrastar de cadeira sendo empurrada para trás a fez entender
com quem Julian estava falando. Um garoto loiro e bonito, mas de
aparência frágil, empurrou para trás a cadeira em que estava sentado e
levantou-se para encarar Julian. Era João Chorão, como Ricardo o apelidara
antes.
– O que você quer, Ross?
– Nada de mais, apenas te perguntar o que sua mãe pensa sobre
você ser um Iuka – Julian disse alto o suficiente. De repente, dava para
sentir a diferença no ar. Aos poucos, todo o Pátio Eterno silenciou.
No meio do pátio, Julian sacara seu melhor sorriso debochado e, de
outras mesas, surgiram Patrick, Duda e Con, seus companheiros de alcateia.
– Essa não... – disse Nicole ao seu lado.
Observando João, era interessante notar como os Karibakis da
linhagem dos Destemidos conseguiam transformar a impressão que tinham
deles. Em segundos, sua aparência frágil desaparecera. João parecia um
leão pronto para saltar sobre a gazela. Num instante, seu corpo magro
parecia muito mais forte e poderoso do que realmente era. Bianca
estremeceu. Vendo-o assim não conseguia mais imaginar o apelido
combinando com ele.
– O que pensa que está dizendo, Julian?
O Furtivo ainda sorria como se estivesse divertindo-se com a
situação.
– Exatamente o que ouviu. Estou te expondo na frente de todos. Te
acuso de ser um Iuka.
Ao redor, várias expressões de espanto. O corpo de João
estremeceu, enquanto seu rosto se transformava em pura raiva.
Uma garota de cabelos cacheados presos num rabo de cavalo se
levantou abruptamente. Era Melissa, a beta de João, segunda em comando
na alcateia. Sua ação foi seguida por mais dois garotos na mesa, que
imediatamente começaram a rosnar para Julian.
– Você enlouqueceu, Julian? – gritou Melissa, mas João fez um
sinal para que eles se acalmassem.
– O que está fazendo? – tentou Cristina.
– Nada de mais, Cris – disse Julian em tom irônico. – Você mesma
já desconfiava de algo assim, quando ele te pediu para o acobertar dizendo
que estava com ele, quando na verdade não estava.
– Como você...
– Eu sei disso porque estávamos juntos nestes últimos três dias
quando João mentiu para um membro de sua alcateia, falando que estava
com você. Daí eu juntei mais algumas informações por aí... e entendi o que
estava acontecendo de verdade.
Cristina o encarava como se estivesse em choque. Um brilho de
ódio passou pelo seu olhar.
– Você é um imbecil se pensa que pode acusar qualquer um assim –
falou João.
Julian olhou-o indignado.
– Por favor, não se desvalorize... pois você está longe de ser
qualquer um.
Em seguida, mudou o tom e encarou-o muito sério.
– Você é João, filho da líder do Refúgio, a Voz da Lua Ester
SanMartin.
João rosnou para Julian e seu corpo estremeceu.
– Todos sabem de quem ele é filho – interrompeu a voz imperativa
de Ester. Ela e alguns outros membros do Conselho se aproximavam.
Todos os jovens presentes baixaram levemente a cabeça em
respeito.
– Altan nos avisou que alguém aqui foi acusado – disse Sérgio
Mattos. – Walter, o que seu filho está fazendo?
– Eu não sei – respondeu. – Ele nada me disse sobre isso.
Ester encarava Julian intensamente.
– Do que você está acusando meu filho? – a voz dela era suave, mas
fez Bianca estremecer.
– De ser um Iuka, Voz da Lua – disse ele, baixando o tom de voz e
o olhar diante dela. – Eu o acuso de quebrar o Acordo.
O semblante de Ester permaneceu o mesmo.
– Você sabe que será duramente punido se não houver provas do
que está dizendo.
– Eu sei – disse sem hesitação. – E insisto na acusação. João
SanMartin é um Iuka. Seu crime foi quebrar o nono Acordo.
Expressões de espanto e sussurros se espalharam pelo lugar. Bianca
já conhecia o nono Acordo da Lua. Todos os tópicos estavam esculpidos em
uma estela na Praça Oliva. O nono e último tópico do Acordo proibia dois
trocadores de pele de se relacionar amorosamente e também exigia a morte
imediata do fruto dessa relação, os Vorazes.
Ester olhou para seu filho, esperando que ele dissesse algo.
– Ele está louco – disse João.
– Se eu estiver louco, é fácil descobrirmos – disse Julian. – Jure o
Acordo.
– João, meu filho, faça o juramento e acabamos logo com essa
situação.
João caminhou em sua direção devagar. Bianca sabia como isso
funcionava, aprendera nas aulas de História Karibaki. Qualquer juramento
do Acordo era conduzido por pelo menos um Destemido do Conselho e ele
usava o dom da Verdade para forçar a sinceridade daquele que estava
jurando.
– João – começou Ester –, exijo que você jure e fale a verd...
Mas João apertou os lábios e baixou o olhar.
– Eu não posso! – disse ele, e sua voz ecoou pelo Pátio Eterno. –
Me desculpe, mas não posso jurar sobre o Acordo. Eu… irei falhar. Julian
fala a verdade.
A expressão de Ester modificou-se. Ela fechou os olhos com pesar
e, quando os abriu, seus olhos estavam úmidos.
– Eu entendo... O que você fez? – perguntou ela.
João levou alguns segundos antes de responder. Encarava o chão,
sem coragem de erguer o olhar.
– Eu quebrei o nono Acordo. Sinto muito, realmente sinto, mãe.
Bianca notou que ela engoliu em seco, mas no instante seguinte
seus olhos se tornaram duros.
– Mas pelas leis do Refúgio – começou ela – eu preciso que você
confesse sob o poder do dom. Então, diga-me toda a verdade! Você quebrou
o nono Acordo?
Diante do comando, João ergueu os olhos para ela e imediatamente
repetiu.
– Sim, eu quebrei o nono Acordo e me arrependo.
– Como eu avisei, seu filho é um Iuka – disse Julian.
Os olhos de Ester se voltaram para ele. Eram como gelo puro, mas a
expressão em seu rosto era neutra. O Pátio Eterno continuava silencioso e
tenso.
– Talvez seja melhor o Conselho se reunir – disse Walter Ross,
amavelmente ao seu lado.
Ester se virou para ele com a mesma frieza que olhara para Julian.
– Não é necessário o Conselho se reunir. As punições referentes à
quebra do Acordo são muito claras.
– Como queira… – respondeu Walter, dando um passo para trás.
Bianca achou ter visto um brilho de deleite antes dele se afastar.
Ester pareceu respirar fundo antes de voltar a olhar para o filho.
– Mas é preciso dois para quebrar o nono Acordo – disse ela.
Ele não abriu a boca, manteve seu olhar baixo novamente e os
punhos serrados.
Ester voltou seu olhar duro para a alcateia de seu filho. Melissa, a
jovem beta, baixou a cabeça enquanto a balançava em uma negativa
veemente. Todos os membros da alcateia pareciam bastante surpresos com
o que estava acontecendo.
Ao redor, os jovens se entreolhavam apreensivos. De repente,
houve certa movimentação na mesa bem ao lado da de Bianca. Uma garota
de cabelos lisos e loiros, emoldurando um rosto delicado e pálido, levantou-
se. Ela era uma jovem Karibaki, da alcateia de Manuela.
– O que está fazendo, Maitê? – disse Manuela.
– Me desculpe – foi a resposta dela.
Bianca a viu caminhar em direção a João e Ester. Ela não tinha os
olhos baixos, mas notou que suas mãos tremiam levemente, antes que ela as
fechasse em punhos.
João sequer lançou um olhar para ela. Ele mantinha seus olhos no
chão. Nem mesmo se mexeu quando a garota se postou ao seu lado e olhou
diretamente para Ester.
– Fui eu – confessou o mais alto que conseguiu.
Ester não mudou de expressão. Da sua mesa, Manuela soltou um
palavrão e bateu com o punho sobre a mesa.
– Diga a verdade – falou Ester. Seu tom era suave. – Você quebrou
o nono Acordo junto com meu filho?
– Sim, quebrei – respondeu a garota.
– Eu mesma irei matá-la, Maitê! – rosnou Manuela indignada,
batendo em sua mesa como um sinal de protesto.
Jorge, o mais velho do Conselho, aproximou-se.
– Menina, vocês deveriam ter vindo conversar conosco antes...
– Não há desculpas para o que fizeram – disse Ana Gomes,
interrompendo-o, e Bianca se surpreendeu com a dureza nas palavras da
instrutora de Geo-Sobrevivência.
Jorge acenou concordando, mas sua expressão mostrava pena com
relação à situação do jovem casal. Ester se aproximou, apoiando uma das
mãos sobre o ombro de João e a outra sobre o de Maitê.
– Vocês dois compreendem o que fizeram? – perguntou a Voz da
Lua. Não havia dureza em sua voz.
– Sim – disse a garota, lançando um rápido olhar para João, mas ele
não olhou de volta.
Ester acenou com a cabeça, pensativa, e então se afastou, retirando
as mãos que os tocavam.
– Você está grávida?
– Não – respondeu Maitê rapidamente, horrorizada com a ideia.
– Tem certeza? Diga-me a verdade.
– Tenho – confirmou ela – e essa é a verdade.
– Muito bem – disse Ester, e, depois de uma breve pausa,
continuou. – João, você é um Alfa, portanto deveria defender nossas leis, e
não quebrá-las. Um líder não pode colocar seus desejos à frente de sua
alcateia e de seu povo. Você entendeu?
João finalmente ergueu os olhos para ela.
– Sim.
Bianca desviou o olhar para Julian. Ele se mantinha com os braços
cruzados, observando o desenrolar da situação que ele expusera na frente de
todos. Atrás dele, Cristina ainda encarava tudo assombrada.
O que ele fizera? Usara-a para conseguir saber o que queria?
Como ele poderia ser tão cruel?
– João, você fracassou como líder – continuou Ester –, portanto, sua
primeira punição será a perda de status de alfa da alcateia. A posição de
ômega será seu aprendizado.
– Isso é humilhante – sussurrou Ricardo ao seu lado. – Ele
provavelmente nunca mais conseguirá ser um alfa novamente.
Walter acenou com a cabeça, concordando com a punição.
– Maitê, você é uma jovem Uivadora, com a atual posição de
ômega, portanto, sua inexperiência e pouca responsabilidade impedem-me
de rebaixá-la ainda mais. Sendo assim, deixo a cargo de sua alcateia a
decisão de expulsá-la ou não de sua convivência.
Lágrimas rolaram de Maitê, apesar dela tentar manter-se forte
perante todos.
– Por fim – continuou Ester, sua voz tornara-se mais dura –, ambos
quebraram o nono Acordo e devem passar pela Assembleia de Purificação
antes de poderem caminhar livremente entre os Karibakis mais uma vez.
Os dois ergueram os olhos para Ester. Bianca pôde sentir o medo
deles no ar.
– O Conselho decidirá qual dos dois partirá amanhã para o Refúgio
Branco e nunca mais voltará aqui ou manterá contato com o outro, sob pena
maior. Fui clara?
Maitê mordeu os lábios e pareceu ainda mais pálida.
– Sim... – respondeu ela com voz trêmula.
– Sim... – disse ele.
– Quando quer fazer isso? – Perguntou Yann, muito sério.
– Agora – respondeu, sem tirar os olhos de seu filho. Bianca podia
notar que, apesar de não transparecer seus sentimentos, seus olhos estavam
úmidos.
O burburinho recomeçou junto com a movimentação para fora do
Lemniscata. Bianca viu quando Cristina se aproximou de Julian e tentou
estapeá-lo na face. O Furtivo segurou seu braço no ar e empurrou-a para
trás com tanta força que ela quase caiu sobre uma das mesas. A garota se
recuperou e se afastou cheia de ódio. Por um momento, os olhos dele foram
de Cristina até Bianca. Ele parou de sorrir, não havia mais qualquer
arrogância em sua expressão.
– Vamos – disse Nicole.
Bianca parou de encará-lo e virou-se para Nicole e Ricardo.
– Para onde? O que vai acontecer agora?
– Vamos para a Oca. Vai começar a Assembleia de Punição e
Purificação – explicou Ricardo, antes de Nicole ter a chance de responder.
– O que é isso?
Nicole torceu os lábios.
– É uma porcaria de Assembleia, isso é o que ela é! Nunca vi
acontecer antes, mas eu sei que vai ficar feio, Bia. Acho que você deveria
esperar no dormitório.
– Não, eu quero ver o que vai acontecer.
Nicole bufou.
– Talvez seja melhor mesmo, assim já conhece o funcionamento de
nossas leis. Vai ver que nem tudo é bonitinho por aqui. As punições do
Acordo não mudaram desde que foram criadas durante a antiguidade. Elas
são bem bárbaras.
Caminharam em direção à Oca e ela pôde vislumbrar a estrutura se
modificando lentamente. As paredes se abriam enquanto a estrutura lateral
ficava toda transparente. Só era possível perceber as paredes quando se
aproximavam bem, daí ela emitia um brilho azulado. A arquibancada
mudou para uma textura de pedra cinzenta.
Lucas e sua alcateia ficaram em pé, em um lugar próximo à entrada.
Bianca, Nicole e Ricardo foram para um degrau acima do deles. Rafaela
virou a cabeça e enviou um olhar significativo para o irmão e depois para
Nicole.
Depois de algum tempo, quando praticamente todos já haviam se
reunido na Oca, o Conselho posicionou-se num semicírculo, enquanto João
e Maitê foram guiados por Yann até o centro.
O Furioso retornou junto ao Conselho e abriu uma tela de
holograma à sua frente. Ele fez um pequeno gesto no ar. Bianca ofegou
quando viu surgir do chão diversos cabos de prata. João e Maitê
arregalaram os olhos enquanto os cabos dançavam no ar antes de agarrarem
com força seus braços e pernas.
– A troca de peles não foi autorizada – disse Yann. – Vocês devem
permanecer na pele humana.
Ester deu um passo à frente e todos silenciaram.
– Desde o surgimento do Acordo, esta é a punição para aqueles que
quebram a nona regra. Serão trinta golpes para cada um... – disse, fazendo
uma pausa. – Esperamos que ambos sobrevivam.
De repente, ela viu outros cabos prateados surgirem atrás deles. O
som de metal no ar foi ouvido por toda a arena e a arrepiou dos pés à
cabeça. Ela percebeu quando Maitê fechou os olhos e ofegou, tensionando
toda sua musculatura. E então, um dos cabos tomou impulso no ar e o som
de chicote estalando invadiu a arena, ao acertar em cheio as costas de João.
Bianca estremeceu horrorizada.
– Tudo bem, Bia... – disse Ricardo ao seu lado. Ele colocou a mão
em seu ombro e a puxou para mais perto dele. – Não precisa olhar se não
quiser.
Mas ela continuou a olhar.
Maitê voltou a respirar ao perceber que o primeiro golpe não a tinha
como alvo. Entretanto, outro cabo se ergueu e desta vez tomou impulso e
acertou as costas da garota. Ela gritou de dor e cambaleou para frente. Os
cabos que mantinham seus braços presos soltaram-se do chão e ligaram-se a
alguma parte do teto da arena. Agora a garota era mantida em pé, pelos
cabos, no ar.
João esforçava-se para não gritar a cada açoite que tomava. Seus
olhos estavam arregalados e o suor escorria. O apelido idiota, João Chorão,
não combinava realmente. Apesar de tudo, o garoto estava aguentando a dor
sem qualquer lágrima.
Yann parecia controlar os cabos de prata através dos hologramas.
Olhar para Maitê era ainda mais difícil. A garota deveria ter a mesma idade
que ela. – Como alguém tão jovem poderia ser punida tão cruelmente
assim?
Em pouco tempo, cada açoite erguia respingos de sangue no ar.
Sangue escorria de suas costas, manchando o chão de terra batida da arena.
– São de prata – comentou Nicole num fio de voz. Bianca podia
notar por sua palidez que a amiga também estava chocada. – Os cabos são
de prata para que não consigam se regenerar. Terão que se curar no tempo
normal de um humano, e isso poderá levá-los à morte.
– Alguém precisa parar isso... – disse Bianca, mas a amiga nada
disse.
Açoites impiedosos rasgavam as costas dos dois garotos, enquanto
todos apenas assistiam. Quando João cambaleou e caiu de joelhos, seus
cabos também o ergueram, mantendo-o em pé até que o último açoite fosse
desferido. Suas costas já estavam em carne viva e os dois pareciam apenas
levemente conscientes agora.
A voz de Ester foi ouvida:
– Todos aqui não foram apenas chamados para uma Assembleia de
Punição, mas também de Purificação. A partir de agora, o Iukan de João e o
de Maitê foi retirado. Portanto, nunca mais se maculem. Mantenham-se
puros, pois se forem condenados uma segunda vez, a lei do Acordo é
severa. A pena é a morte e seus restos serão enterrados.
E então Ester deu as costas aos adolescentes semimortos.
Imediatamente, houve movimentação ao redor e todos começaram a fazer o
mesmo. Viravam de costas para eles.
– Isso também é parte da purificação – sussurrou Nicole, torcendo
os lábios enquanto se virava. – Serve para lembrá-los de que precisam
seguir as regras para viverem em sociedade. Eu sei que parecem muito
machucados, mas, segundo as regras, eles serão levados para o hospital e
tratados por voluntários.
– Voluntários? – sussurrou Bianca de volta. – E se não houver
voluntários?
– Então terão que se salvar sozinhos ou morrerão.
Bianca não se virou. Ficou olhando para a garota na arena. Ela
estava ainda mais pálida e frágil. Seu cabelo estava úmido e grudado no
rosto. Ela viu Maitê erguer a cabeça com dificuldade e procurar algo com o
olhar até que pareceu encontrar. Bianca olhou na mesma direção e
encontrou Manuela no outro lado da arquibancada, olhando para a garota
com uma expressão terrível de desgosto, antes de virar-lhe as costas
também.
– Você também tem que se virar – sussurrou Ricardo ao seu lado.
Ele a tinha soltado e também virou as costas.
Mas Bianca sentia seus pés pesados e os olhos ainda vidrados na
cena daqueles dois adolescentes torturados como punição pelo crime de
terem se apaixonado.
Maitê observou as costas de sua alfa e depois correu os olhos ao
redor, encontrando-se com os de Bianca. Maitê parecia prestes a desfalecer
a qualquer momento, mas de alguma forma seus olhos inchados de lágrimas
prenderam-se aos de Bianca, e ela desejou que a garota conseguisse
sobreviver.
No degrau abaixo da arquibancada, Lucas, Rafaela e Vitor já tinham
virado suas costas para a arena, ficando praticamente de frente para ela.
Lucas tinha a expressão fechada e as sobrancelhas franzidas. Sem hesitar,
ele de repente a segurou pelos braços e a virou, forçando-a a ficar de costas
também.
Bianca virou a cabeça para ele, espantada.
– Por que fez isso?
– Você precisa dar-lhe as costas ou eles não serão perdoados –
respondeu. – Esse é o momento da Purificação. Você precisa seguir nossas
regras também.
Bianca não respondeu, pois não sabia exatamente o que dizer
naquele momento. Ela manteve-se de costas, mas virou um pouco o rosto
para conseguir encontrar a face cansada de Maitê. A garota torturada fechou
seus olhos e a cabeça loira pendeu para o lado.
Bianca virou para frente e com o canto dos olhos notou alguém a
observando. Dois lances acima e à sua esquerda, Julian também tinha a
cabeça levemente para o lado e observava Bianca de soslaio. Ela endureceu
o semblante e ele desviou o olhar.
27
Bianca estava bastante atrasada. Há dias ela já fazia o caminho
sozinha pela trilha na floresta e eles se encontravam diretamente na clareira.
Essa noite ela estava furiosa com Julian e já tinha decidido não ir, quando
mudou de ideia e se pôs a caminho.
Ela se arrependeu do atraso, pois ele provavelmente não estaria
mais na clareira, entretanto resolveu ir de qualquer jeito. Treinaria sozinha
se fosse preciso. Julian não tinha o direito de fazer o que fez. Que tipo de
pessoa era ele?
Ela dobrou uma curva da trilha e saiu na clareira, já iluminada pelas
lamparinas elétricas. Julian estava sentado sobre o tronco caído. Usava sua
calça preta larga de treinamento, regata cinza e sua mochila estava jogada
ao seu lado. Ele apoiava os braços nas pernas e ergueu o olhar assim que ela
surgiu.
– Eu não ia vir – já foi logo dizendo, enquanto jogava sua mochila
ao lado da dele. – Mas resolvi vir só para te perguntar por que motivo você
fez aquela coisa horrível hoje com aqueles dois?
Julian balançou a cabeça, como se estivesse afastando algum
pensamento.
– Era meu dever – disse por fim, dando de ombros.
– Dever? – repetiu inconformada. – Dever? Eram só dois garotos
apaixonados. Aquela punição foi absurda! Eles poderiam ter morrido e seria
sua culpa.
– Eles poderiam ter morrido sim, mas não seria minha culpa –
rebateu, levantando-se. – A culpa foi deles em quebrar o nono Acordo e
achar que ninguém descobriria.
– Dane-se o nono acordo – disse exasperada, aumentando o tom de
voz. – Aquilo foi brutal e bárbaro demais! Você não deveria ter contado!
– E quem é você para me dizer o que fazer? – disse, irritando-se. –
O Conselho do Refúgio descobriria mais cedo ou mais tarde. Ninguém
escapa de uma quebra do Acordo. No final do ano, teriam que fazer o
juramento compulsório e descobririam de qualquer jeito. Só adiantei a
droga do processo. Não cometi nenhum crime, não sei por que está tão
nervosa.
– Poderia ter encontrado outra forma de fazer isso! Você não
precisava humilhá-los na frente de todo mundo. Que tipo de pessoa faz
isso?
Ele não respondeu, apenas ajeitou sua postura e ficou encarando-a.
– São leis bárbaras – repetiu ela, percebendo que ele não diria nada.
– Não. Foi uma punição bárbara – corrigiu ele.
– Alguém deveria ter feito algo. Como vocês podem ser tão frios e
cruéis?
– Você tem razão – disse ele, concordando com a cabeça. – Alguém
deveria ter feito algo para impedir. Então, por que você não fez?
Bianca olhou para ele surpresa.
– O que eu poderia fazer? – disse, erguendo os ombros.
– Eu não sei... alguma coisa? – disse ele, aproximando-se até ficar
bem perto dela. – Veja, tudo o que eu fiz foi revelar um Iuka. Tudo o que
Ester fez foi dar punição segundo nossas leis, e tudo o que todos fizeram foi
seguir a tradição como fomos ensinados a fazer.
Ele então se inclinou sobre ela com um sorriso torto no rosto.
– Seguimos nossas tradições e essa é a nossa desculpa, mas qual é a
sua?
Ele estava tão perto que podia sentir seu perfume amadeirado e
almiscarado. Bianca lembrou-se de quando acordara em seus braços depois
de sua crise durante o treinamento. Foi quando viu pela primeira vez seus
olhos como águas negras tranquilas. O mesmo olhar que às vezes conseguia
ver durante os treinos. Porém, suas atitudes cruéis deixavam-na confusa e
triste.
Ela deu um passo para trás, afastando-se.
– Qual é a sua desculpa? – insistiu ele, sem largar o sorriso irritante.
Ela sentiu a resposta ecoando em sua mente. A única que conseguia
pensar, mesmo tentando encontrar outras, era que ela não fez nada porque
lhe faltava coragem. Ela poderia ter tentado pelo menos! Talvez a ouvissem,
era a última Farejadora, não iriam puni-la por não aceitar regras sobre as
quais não foi criada.
Ela baixou o olhar. De repente, percebeu que se sentia assim o
tempo todo, desde a morte de sua mãe, sempre se arrependendo de algo que
poderia ter feito, mas não fez.
Ele notou o silêncio dela.
– E agora que já esclarecemos os acontecimentos de hoje, será que
podemos finalmente continuar nosso treinamento, ou você vai desistir de
nossos encontros e ter mais uma coisa para se arrepender no futuro?
Os olhos dela se apertaram e faiscaram. Ele parecia se divertir com
a raiva dela.
Muito bem. Se ele quer começar o treinamento, então vamos
começar...
De repente, ela ergueu o braço e acertou-o com um gancho de
direita no rosto. Ele ofegou e deu um passo para trás. Bianca sentiu-se
muito bem quando ele se virou e viu o sorriso de satisfação que ela
estampara na face. Ela se colocou em posição de combate.
Julian deu outro de seus sorrisos como resposta.
– Você me irritou muito chegando atrasada hoje – disse ele –, por
isso não vou pegar leve com você.
– Você nunca pega... – disse ela ainda sorrindo.
Treinaram por duas horas antes de pararem para descansar e ele
assumir a forma Karibaki para testá-la.
– Bianca! – chamou uma voz distante. – Bianca! Acorde!
Ela abriu os olhos sentindo-se esgotada. Sua garganta queimava e a
respiração estava entrecortada. Aos poucos, sua visão focalizou o rosto de
Julian, bem próximo ao dela. Teve consciência dos braços dele segurando-a
firmemente contra si, ajoelhado no chão.
– Julian...
– Você demorou demais para voltar dessa vez – disse ele baixinho,
encarando-a com olhos amplos. – Não parava de gritar e se debater.
Devagar, ela se mexeu e apoiou melhor seu corpo no chão,
sentando-se. Ele não se afastou, apenas afrouxou um pouco o abraço.
– Estou bem... – disse ela com voz rouca, voltando seu olhar para o
dele. Havia suavidade ali. Uma expressão tão diferente da que ela viu nele
esta tarde. Não era a primeira vez que notava isso, mas eram raros os
momentos que ele deixava de lado sua máscara de arrogância.
Mas então, seus olhos notaram o sangue. Havia um corte na
bochecha esquerda de Julian. Parecia um arranhão e, apesar de já estar se
curando, o sangue ainda estava lá. Bianca se afastou um pouco e percebeu
os braços dele cheios de marcas de arranhões, alguns abertos em pequenos
cortes. Bianca olhou para as próprias mãos, para suas unhas...
– Eu te machuquei? – perguntou ela, ainda sentindo a garganta
queimar.
Julian enrugou as sobrancelhas e olhou para seus braços, como se
tivesse acabado de notar.
– Está tudo bem – respondeu ele. – Você parecia um gato selvagem
quando tentei me aproximar, mas já devo estar me curando.
– Me desculpe – pediu, tocando em uma das marcas vermelhas em
seu braço. Mas então ele se levantou, puxando-a junto com ele.
– Está tudo bem – disse Julian, afastando-se dela. – Venha,
precisamos voltar.
Bianca observou enquanto ele se afastava em direção ao lugar onde
deixaram suas mochilas. Não sabia o que dizer. Ela foi até suas coisas,
tomou um gole de água e o seguiu em silêncio.
Quando chegaram ao meio da trilha, eles se separaram como
sempre faziam. Ela continuava o caminho, enquanto Julian se embrenhava
pela mata. Ainda ficou parada alguns instantes, observando o lugar por
onde ele desaparecera e desejou poder entendê-lo melhor.
Já no dormitório, Bianca foi direto para o banho.
Nicole estava na mesa trabalhando em seu computador e com toda
uma aparelhagem nova e estranha que a lembrou um seriado de polícia
forense.
– Nic – começou ela, aproximando-se da mesa de trabalho. – Caso
você e Rafaela fossem descobertas, seriam punidas como João e Maitê?
Nicole tirou os olhos do notebook e virou-se para ela.
– Não. Entretanto, Karibakis como os membros da família de Lucas
se preocupam demais em perpetuar as linhagens e provavelmente
encontrariam uma forma de nos separar e, portanto, não nos veríamos mais.
– Mas deve haver algum jeito para que vocês duas possam ficar
juntas e em paz.
Nicole sorriu.
– Talvez se partíssemos e abandonássemos o Refúgio, mas essa não
é uma opção ainda.
– Eu sinto muito – disse, sentindo-se triste pela amiga.
– Não sinta – disse Nicole. – Não há nada que você possa fazer.
Bianca olhou pensativa para a mesa, havia uma certa organização
naquela bagunça. Diversos potinhos transparentes pareciam conter
estranhos materiais.
– O que está fazendo? – perguntou Bianca.
– Testando uma ideia. Se der certo, será um presente.
– O Conselho sabe que você faz essas coisas por aqui?
Nicole torceu o nariz.
– É claro que não. Eu gosto de ter meus próprios segredos... Mesmo
onisciente por aqui, Altan não pode atrapalhar nosso livre-arbítrio. Nem
pode dizer tudo o que acontece no Refúgio para o Conselho, há regras.
Seria horrível se ele fizesse isso, pois Rafaela e eu nunca poderíamos nos
encontrar às escondidas.
– É para ela que está fazendo isso?
– Não – respondeu Nicole.
Bianca notou, pelo jeito da amiga, que ela não falaria para quem
era. E então se lembrou de algo. Bianca pegou algumas roupas e foi até o
banheiro novamente. Trocou seu pijama por jeans, blusa e casaco antes de ir
em direção à porta.
– Para onde está indo a essa hora? – perguntou Nicole.
– João e Maitê estão no hospital?
– Acredito que sim.
– Você disse que deveriam se voluntariar para ajudá-los?
– Sim, os membros da alcateia deles devem estar lá – respondeu
Nicole.
– Legal – disse Bianca, acionando a abertura da porta e passando
por ela.
Nicole franziu o cenho.
– Você vai se voluntariar também?
– Vou – respondeu antes da porta se fechar.
Lá fora, ela foi sob chuva fina até o hospital, abrigando-se entre as
árvores enquanto caminhava. Assim que entrou, viu Luiza sentada sozinha
em um dos bancos do jardim do térreo.
O hospital não precisava funcionar com muitos funcionários. A
única paciente que necessitava de cuidados constantes no momento era
Laura, por isso Bianca conhecia bem Luiza e Allan.
– Oi, Bianca – disse Luiza mais séria do que de costume. Ela
parecia um pouco desanimada ou cansada essa noite.
– Boa noite, Luiza.
– Veio ver Laura?
– Não. Na verdade, eu vim perguntar como estão João e Maitê e se
estão precisando de voluntários.
Bianca imediatamente pôde ver o brilho nos olhos dela.
– A alcateia de João se voluntariou – disse, levantando-se do banco
– e estão no quarto dele agora. Acho que ficará tudo bem com SanMartin.
– Que bom. E quanto a Maitê?
Luiza mordeu os lábios, mas o brilho nos olhos ainda continuou.
– Maitê ainda não recebeu nenhuma ajuda.
– Não? – admirou-se. – Mas por quê?
– Ester deixou a cargo da alcateia o castigo e Manuela decidiu que
esta seria a pena dela, passar a noite sem qualquer auxílio. Ela avisou um
parente de Maitê e ele está a caminho do Refúgio, porém só deve chegar
amanhã.
– E quanto a você e Allan? Por que não a ajudam?
– Não podemos... – disse Luiza baixando os olhos, envergonhada. –
Não podemos interferir nesse caso.
– O quê? – disse Bianca chocada, imaginando a pobre garota
sozinha até agora e sem qualquer tipo de assistência ou tratamento. – Eu me
ofereço então.
Os olhos de Luiza brilharam novamente e ela sorriu.
– Venha, vou te levar até ela. Eu estava preocupada com a garota –
explicou Luiza no caminho, enquanto subiam pelo elevador. – Talvez, se
você não tivesse vindo, eu a teria ajudado de qualquer jeito, mas ainda tinha
esperanças.
– O que aconteceria se você a ajudasse?
Luiza deu de ombros.
– Provavelmente, seria expulsa do trabalho no hospital e rebaixada.
Talvez também ganhasse uma punição, mas não poderia deixar a garota
morrer – disse, parando finalmente em frente à porta de um dos quartos. –
Precisa saber de algumas coisas antes de entrar. Iukas não possuem direito a
anestésicos enquanto estão se curando naturalmente e nem podem usar a
tecnologia disponível. Cabe aos voluntários ajudarem a manter as feridas
limpas e a febre baixa com remédios naturais. Bianca, você entendeu?
– Acho que entendi – respondeu insegura. Agora que estava na
porta do quarto, ela não sabia exatamente o que poderia fazer para ajudar a
garota.
– Não será fácil, pois Maitê está com dor e sofrerá por dias, até que
seu corpo se recupere o suficiente. Entendeu?
Bianca acenou com a cabeça mais uma vez para indicar que estava
entendendo.
– Tudo bem, eu ficarei até que alguém chegue amanhã.
Luiza colocou a mão sobre o ombro dela. Ela parecia querer dizer
algo mais, porém apenas se virou e abriu a porta para entrarem.
Imediatamente, seus olhos se fixaram na garota abandonada de
bruços sobre a cama. Sua blusa estava suja e em frangalhos. Sangue
escorria de suas costas, abertas pelos rasgos que o cabo de metal fizera, e
manchava os lençóis brancos.
Bianca levou uma das mãos à boca. A garota estava em um estado
terrível.
– Você está bem? – perguntou Luiza preocupada. – Ainda quer
continuar?
Bianca apenas acenou a cabeça.
– Use seus conhecimentos das aulas de primeiros socorros que
ministrei e das aulas de botânica. Boa sorte... – desejou, antes de sair e
deixá-la sozinha.
Ela olhou ao redor. Não sabia por onde começar.
Um gemido saiu dos lábios de Maitê, fazendo Bianca se aproximar
e tocar levemente em sua testa. Como imaginou pelo rosado de suas
bochechas e o suor em seu rosto, ela estava ardendo em febre. O estado de
suas costas era terrível.
Fechou os olhos e tentou afastar toda a raiva que sentia pelas regras
idiotas da sociedade Karibaki. Quando abriu novamente, ela sabia
exatamente por onde começar.
Aproximou-se do balcão na parede do lado oposto da cama e
encontrou uma bandeja de metal com diversos instrumentos limpos nela, ao
lado, tinha uma caixa de luvas médicas. Vestiu um par de luvas e em
seguida pegou a tesoura.
Primeiro começou a cortar o que sobrara das roupas. Em seguida,
recolheu os trapos do chão, jogou no cesto de lixo do lado da porta e foi
procurar algo para limpá-la. Encontrou água e antissépticos sobre o balcão.
Usando um pouco de gaze, começou a tirar toda a sujeira e suor grudados
em seu corpo.
Limpou seus ferimentos para que não infeccionassem. Em seguida,
pegou um lençol limpo numa gaveta e a cobriu até a cintura. Não sabia
muito bem o que fazer, então apenas começou a tocar levemente com a gaze
banhada em antissépticos nas feridas abertas. Maitê gemia de dor, mas
cuidaram para que não houvesse qualquer anestésico à disposição delas.
– Eu sei que isso dói, mas tenho que limpar seus cortes. Não sou
muito boa nisso, me desculpe.
Maitê gemia alto e torcia os lençóis com força devido à dor,
enquanto Bianca limpava suas feridas, rezando para que estivesse fazendo a
coisa certa.
Bianca pensava no que Julian havia dito sobre seu dom ser algo
instintivo e sobre ela ter nascido com aquilo, porém tê-lo bloqueado durante
toda a sua vida.
– Eu vi um monstro – disse Bianca para um dos psiquiatras que
cuidaram dela após a morte de sua mãe.
– Não viu não – explicou enfaticamente o médico. – Você apenas se
sente culpada por não ter podido proteger sua mãe. Então você
transformou seu assassino em um monstro. E nós somos todos impotentes
contra monstros.
Nessa época, ela se lembra de que era ainda uma menina assustada
e traumatizada. Haviam se passado apenas alguns meses após a tragédia. Os
psiquiatras a tentavam convencer de que o que vira não era real e logo em
seguida a enchiam de remédios. Drogas que, segundo Allan, ajudaram a
desequilibrar seu dom, piorar seus pesadelos e as crises de sonambulismo.
Entretanto, já tinham se passado seis meses desde que seu corpo se
desintoxicara e ela fazia exercícios de meditação de Controle. Bianca
deveria estar pronta para usar seu dom, mas aparentemente ainda não
estava. Ela ainda se sentia impotente. Era como se o monstro em seus
sonhos ainda estivesse ali e ela não pudesse fazer nada. Gabrielle dependia
dela e era apenas uma menininha, como ela tinha sido um dia.
Não! – pensou. – Não sou mais uma criança amedrontada.
Monstros existem sim, mas o Refúgio me ensinou a lutar contra eles. Não
preciso ter mais medo. Não sou mais impotente.
E então Bianca esvaziou sua mente e deixou-se deitar no solo
poeirento. Como nas aulas de Controle, imaginou-se flutuar em um oceano,
permitindo que a correnteza a levasse livremente.
Minha força está aqui – pensou. – Em algum lugar dentro de mim.
De repente, sentiu uma leve pontada em sua cabeça. A sensação
fluiu pelo seu corpo como uma descarga elétrica. Sentia como se seu corpo
vibrasse ligeiramente. Bianca tentou segurar essa sensação, ao mesmo
tempo que se esforçava para se manter consciente.
A sensação agora era quase palpável. Algo lá fora atraía sua atenção
como imã. Foi como se uma porta se abrisse, o calor da luz e o toque do
vento a atingissem e, de repente, todos os poros de seu corpo sentiam a
presença dos predadores lá fora. E havia cinco deles. Cinco criaturas
Karibakis, como fios que a tocavam e vibravam, presenteando-a com
sensações além da percepção normal. Era o rastro. Ela estava farejando,
finalmente.
Com um esforço mental, deixou de prestar atenção naquela corrente
e tentou encontrar outras. Não demorou. Seu corpo se ergueu, ficando em
pé. Ela mal percebeu isso.
Então, era isso o que acontecia quando eu dormia? – pensou. –
Entro em contato com este rio de correntes fluídicas e simplesmente me
deixo guiar? Era essa a sensação do dom do Farejador?
Quando os abriu, foi como se tivesse feito isso pela primeira vez.
As lembranças retornaram com violência, trazendo consigo uma nova
consciência.
A lua brilhava intensamente no céu, entre as estrelas e constelações
impossíveis de serem vistas a olho nu por uma pessoa comum. A luz da lua
nunca havia deixado a noite tão clara. Os cheiros à sua volta nunca foram
tão presentes. E Bianca nunca mais veria o mundo como antes, pois ela não
era mais como antes. Sentia-se renascer.
Virou o rosto e viu o Voraz sobre Julian.
O corpo dela queimava e tremia tanto que parecia estar tendo
convulsões. Sua cabeça e membros foram cobertos por pelos curtos e lisos.
O restante do corpo era coberto por uma pelagem mais longa e ondulada,
em cores castanho-escuro e claro, manchadas com o sangue de sua primeira
troca de pele. A dor era impossível de descrever, mas não importava mais,
pois tudo o que ela desejava e precisava naquele momento era sentir o
sangue da maldita criatura que machucava Julian e quase matara Gabrielle.
Seus olhos se encheram de vermelho sangue e ela rugiu alto. O
Voraz parou e a encarou, largando Julian praticamente desfalecido no chão.
Seus olhos tinham ainda mais sede de sangue do que antes. Contudo, ela
não tinha mais medo porque, a partir daquele momento, saberia exatamente
o que fazer, quando seus pesadelos se tornassem reais e os monstros
surgissem.
Bianca não se sentia mais impotente.
E então, ela saltou sobre o Voraz.
40
– Alexia está esperando por você – disse a mulher para Con,
momentos antes. – Divirta-se sendo o novo brinquedinho do doutor Pontes.
Te vejo em Eana...
Doutor o quê? Eana? E quem diabos era Alexia? – pensou ele,
enquanto tentava mover alguma parte de seu corpo.
A rede de Con era puxada para cima quando a mulher desapareceu
de seu campo de vista para dentro do cassino.
Ele ainda não conseguia se mexer e já estava suspenso a pelo menos
dez metros de altura do terraço quando viu o pequeno batedor passando
rapidamente para dentro do helicóptero. O guarda, que apontava a
metralhadora para Con, pareceu sentir algo passar por ele, mas só teve
tempo de virar a cabeça e olhar em direção ao piloto, quando, de repente,
ouviu-se uma explosão forte o suficiente para quebrar os vidros frontais,
matar o piloto e desestabilizar o helicóptero.
Devido às drogas paralisantes que o atingiram, Con mal sentiu o
impacto, quando a rede desabou na grama ao lado do trilho do bonde
funicular e o helicóptero atingiu as árvores, explodindo com seus dois
ocupantes.
Aquela maldita explosão devia ter chamado a atenção da cidade
inteira abaixo deles. Polícia, bombeiros e caçadores estariam a caminho. Ele
precisava sair dali o mais rápido possível, mas apenas conseguia mexer a
ponta dos dedos. Por que seu corpo estava demorando tanto para repelir o
paralisante?
Tentou se concentrar em pelo menos conseguir trocar de pele.
Segundos depois, começou a retornar lentamente à aparência humana.
Pelo menos isso – pensou ele, um pouco mais aliviado. Ao seu lado,
as chamas consumiam o helicóptero.
Instantes depois, ele ouviu a voz de Patrick se aproximando da rede.
– Mas que porcaria é essa? O que você está fazendo nessa rede?
Caramba! Por que você está assim? – perguntou Patrick exasperado,
enquanto o retirava da rede. – Temos que sair daqui. – E então começou a
arrastá-lo para longe.
Enquanto se afastava, Gabrielle viu a fumaça no ar, além do edifício
do cassino. Elas tinham ouvido a explosão momentos atrás. Não sabia o que
tinha acontecido, mas esperava que ninguém que ela gostasse tivesse se
ferido.
Julian, entre as presas do Voraz, estava meramente consciente. A
menina achou que era o fim. Contudo, quando Bianca, à beira da morte,
começou a rasgar seu corpo com as próprias unhas e trazer à tona sua
verdadeira natureza, ela percebeu que eles iam ter uma pequena chance.
Entretanto, ela precisava ficar bem longe.
A primeira troca de pele era extremamente dolorosa para o Karibaki
e muito perigosa para aqueles ao seu redor.
Gabrielle correu para a parte de trás da capela. Ela daria a volta e
tentaria encontrar as gêmeas. Porém, um ganido chamou sua atenção. Ela
sabia o que era e, sem pensar muito, correu em sua direção. Ela não tinha
como ajudar Bianca ou Julian naquele momento, mas poderia tentar ajudar
o pequeno Voraz.
Ela correu pelo pátio e saltou o muro quebrado, aproximando-se do
lugar em que a criaturinha foi arremessada. O pequeno Voraz de pelos
marrons estava caído no meio do quintal da casa. Pedras arrebentadas
estavam à sua volta e ele se esforçava para ficar de pé.
Gabrielle sabia que seu corpo também se regenerava rápido e ele
provavelmente era imune ao veneno paralisante da própria espécie.
Quando a criatura a viu se aproximar, soltou um pequeno lamento.
Instintivamente, Gabrielle se agachou e pousou a mão em seu pelo.
Eram mais grossos que os de Paxá, mas eram macios. Ao pensar em seu
gato, a dor dentro do peito voltou com força. A criatura pareceu sentir, pois
a encarou com os olhos úmidos e, inesperadamente, a lambeu no rosto.
Ela lhe deu um sorriso fraco. A criatura estava muito magra,
provavelmente não se alimentava bem. O que, neste caso, talvez fosse um
alívio.
– Obrigada por me ajudar – disse ela para o Voraz. – Mas eles vão
te matar quando o virem aqui.
Mais uma vez ele choramingou e encostou sua cabeça no corpo
dela. Ela acariciou seu pelo e percebeu que ele tremia muito, estava com
medo.
– Eu sinto muito, mas são as nossas leis... Mas talvez, se você partir
e ser bonzinho lá fora, tenha uma chance. Deve ficar longe dos humanos e
não comê-los. Entendeu?
Mais gemido. Ela o abraçou gentilmente tentando fazê-lo parar de
tremer. Do fundo do coração, não desejava que ele fosse morto. A mera
ideia disso fazia seu estômago se revirar.
Ao passar os dedos através dos pelos de seu pescoço, sentiu algo
estranho. Faltavam pelos e havia o que parecia ser uma cicatriz recente de
queimadura, alguém o havia marcado.
Quem fez isso com você?
Mas não havia como saber. Com os olhos úmidos, puxou sua
cabeça com ambas as mãos e apoiou sua testa na dele, seu nariz encostando
na parte superior do focinho do Voraz.
– Eu não queria mais fazer isso – disse hesitante. – Doeu muito
quando Paxá se foi, mas você me ajudou e agora preciso te salvar ou nunca
mais conseguirei dormir em paz na minha vida. Vou te tirar da cidade e te
mostrar o caminho para a floresta. Ela está perto daqui e eu sei que você é
diferente do seu irmão feioso. Seja bonzinho, então.
O Voraz resfolegou e ela sentiu algo úmido nas mãos. Lágrimas
escorriam dos olhos escuros da criatura. Nunca ouvira falar que eram
capazes de chorar, mas também nunca tinha ouvido falar de um que não
quisesse comê-la.
A menina respirou fundo e fechou os olhos. Em segundos, pôde
sentir o contato mental se abrindo para ela.
Gabrielle não soube por quanto tempo ficou sentada ali, com o
olhar perdido, guiando o pequeno Voraz em sua fuga desenfreada. A saída
da cidade ficava muito perto do Monte Serrat e ela esperava que, caso
alguém o visse, achasse que ele era apenas um cachorro muito grande e
muito peludo correndo. Também torcia para que os caçadores não o
alcançassem a tempo, mas achava que não, pois agora a criatura entrava na
mata.
Ela podia sentir o que ele sentia naquele momento, era assim que
funcionava. Ele estava com medo, mas também ansioso para conhecer a
floresta que seria sua nova casa. De repente, ela perdeu a conexão. Alguém
a chacoalhava com força.
– Gabrielle? O que está fazendo? – era Rafaela. – Estávamos te
procurando. As gêmeas já estão seguras, eu as coloquei dentro da capela.
Temos que sair daqui imediatamente.
Gabrielle piscou.
– Julian e Bianca estão bem?
– Sim, estão – respondeu Rafaela, mas havia algo estranho no tom
de sua voz. – Julian está se curando devagar, o efeito da mordida do Voraz
ainda é forte.
– E Bianca?
Rafaela hesitou e fez uma estranha expressão.
– Eu não sei... mas acho que ela ficará bem.
– O que aconteceu? – perguntou preocupada, enquanto se levantava.
– Temos que ir, mas não olhe quando chegarmos lá.
– Por quê? – perguntou a menina.
– Apenas não olhe, é o meu conselho.
Quando voltaram, Gabrielle não lhe obedeceu, é claro, e se
arrependeu no instante seguinte.
Primeiro viu Julian esforçando-se para ficar em pé em sua forma
humana. Estava horrivelmente ferido e suas roupas comuns não existiam
mais. Usava somente o leve traje metamold. Con estava deitado no chão,
imóvel, e Patrick estava agachado ao lado de Duda, tratando seus muitos
ferimentos.
Eles pareciam ter acabado de chegar ali também, pois Ricardo tinha
uma expressão de choque, com as mãos na boca e os olhos esbugalhados
fixos na massa destroçada de carne, sangue, vísceras e ossos onde existiu
uma vez o Voraz.
– Alguém a tire dali – ordenou Julian muito pálido.
E foi então que Gabrielle sentiu seu estômago comprimir ao
perceber que, bem no meio daquilo tudo, coberta de sangue escuro e partes
da criatura, estava o corpo humano, nu e ferido de Bianca, deitada em
posição fetal.
41
Quando piscou os olhos, a claridade a feriu. Um cheiro intenso de
plantas e flores invadiu suas narinas quase a sufocando. Bianca virou o
rosto para o outro lado, tentando proteger os olhos, mas eles já lacrimavam
devido à força da luz.
Ela se sentou calmamente enquanto esfregava os olhos. Observou
ao redor e viu que estava novamente no mesmo quarto de hospital em que
tinha ficado após desmaiar em seu primeiro dia no Refúgio. A varanda
estava aberta e, por isso, o cheiro das plantas no jardim chegava até ela.
Mas nunca as sentiu assim tão fortes.
As lembranças da noite no Monte Serrat retornaram à sua mente.
Levantou a camisola branca que estava usando e viu que não estava
machucada. Imaginou que estaria morta numa hora dessas, mas não havia
sequer um rastro de cicatriz em seu corpo.
Na verdade, sentia-se muito bem. Uma onda de energia percorreu
seu corpo e ela levantou-se de pronto, indo em direção à porta. Seu coração
estava apertado, ela precisava saber o que tinha acontecido com...
– Julian! – disse, assim que a porta do quarto se abriu e ele surgiu
na entrada.
Ele vestia calça jeans e camiseta branca. Seus olhos brilharam
quando a viu. Um sentimento de euforia fluiu por Bianca e, sem pensar em
mais nada, se jogou em seus braços. Ele arfou surpreso, mas em seguida a
abraçou de volta, puxando-a para dentro do quarto enquanto a porta se
fechava atrás dele.
– Você está vivo... – disse, apoiando a cabeça em seu peito. Ela
podia sentir e ouvir o coração dele batendo forte. Seu cheiro a envolvia de
forma reconfortante.
– Sim, e graças a você – respondeu ele, abraçando-a suavemente.
Ela o encarou com os olhos bem abertos.
– E quanto a Gabi e os outros? Nicole?
– Estão todos bem – respondeu, tranquilizando-a. – Apenas Duda
nos assustou um pouco, mas ela já está completamente recuperada.
Seus rostos estavam próximos e ela sentia-se muito consciente dos
braços dele rodeando-a. Tinha tanta coisa para dizer, tanta coisa que se
lembrava agora, mas tudo desapareceu de sua mente. Ela aproximou seu
rosto um pouco mais, o olhar dele era tão escuro e profundo.
– Precisamos conversar... – disse ele quase em um sussurro,
percebendo as intenções dela. Estavam tão próximos que bastava ela se
inclinar um pouco mais para seus lábios se tocarem. – Não temos muito
tempo – insistiu ele.
– Eu sei... – disse ela e, mesmo contra a vontade, eles se afastaram.
Ela voltou para a cama e sentou-se, encostando suas costas na cabeceira.
Depois de tudo o que aconteceu, eles precisavam conversar.
Julian sentou-se de frente para ela e pegou em sua mão.
– Consegui convencer Allan a me deixar vê-la primeiro e sem que o
Conselho saiba. – Ele então mostrou o bloqueador de Nicole. – Altan está
tentando encontrar uma forma de quebrar a influência dessa tecnologia, mas
ainda não conseguiu. Estamos sozinhos, ninguém nos ouve.
– Que bom, porque eu tenho tanta coisa para te dizer – disse ela,
tentando não cair nos braços dele de novo, pois o calor que ele emanava, a
sensação de seu toque sobre a mão dela eram coisas que ela nunca sentira
antes. – Eu me sinto... – ela parou no meio da frase, pois não sabia como
explicar o que ela realmente estava sentindo.
Ele sorriu.
– São seus sentidos – disse ele. – Eles vão ficar um pouco
desregulados até que consiga controlá-los. Tudo parecerá bastante intenso
para você no começo, mas isso vai passar.
Ela não achava que queria que passasse.
– Você dormiu por três dias – ele foi logo dizendo.
– O quê?
– Não se preocupe – acalmou-a. – Geralmente, esse é o tempo
normal de recuperação após a primeira troca de pele.
Ela abriu a boca, mas depois voltou a fechá-la. As lembranças eram
confusas, mas inegáveis. Lembrava-se da dor em seu corpo, de senti-lo
queimar e ser feito aos pedaços. Ela lembrava-se de ter saltado sobre o
Voraz com uma ferocidade que nunca sentira antes. Ele tinha razão, pois,
caso contrário, ela não estaria viva.
– Então realmente aconteceu, não foi um sonho – disse ela, e ele
acenou confirmando. – Mas eu não tenho treze anos, tenho dezesseis.
– Eu sei – disse Julian. – Nós também não sabemos como isso pôde
acontecer, pois nunca ouvimos falar de um Karibaki trocando de pele
tardiamente, mas desconfiamos que, de alguma forma, você bloqueou sua
primeira troca quando a idade chegou.
Ela refletiu por um instante, antes de continuar. Depois de quase vê-
lo morrer, depois de quase ela mesma morrer, depois de ter sido inundada
pelas lembranças que lhe foram tiradas, não tinha como conter a emoção
que brilhava em seus olhos.
– Eu me lembro... – começou ela. – Me lembro de tudo o que
aconteceu antes, naquela noite em que você me salvou...
Depois de um instante, os olhos dele refletiram compreensão.
– Eu... – começou ele, baixando os olhos para as mãos deles que se
tocavam ainda.
– Eu sei o que você fez… – interrompeu-o, buscando seu olhar
novamente, mas ele continuava sem encará-la. – Você matou seu próprio
irmão naquela noite e me salvou.
A expressão de Julian endureceu e ela o sentiu estremecer.
– Nos perdoe por tirar suas lembranças – disse ele, depois de alguns
instantes ainda sem olhá-la. Sua voz parecia contida, ele tentava se
controlar. – Não sabíamos mais o que fazer para que pudéssemos te manter
a salvo. Laura estava sozinha.
– Eu entendo tudo o que fizeram por mim. Entendi tudo no
momento em que as lembranças voltaram. Desculpas não são necessárias –
disse ela, apertando sua mão com firmeza.
Ele a encarou novamente e seus olhos agora eram como portas
abertas. Ela conseguia ver, através deles, a vergonha e o horror que o
motivavam.
– Agora eu consigo entender – continuou ela. – Compreendo o
motivo de não confiar em seu pai. Lembro-me de minha mãe dizer para
Carlos que eles foram traídos por alguém que ela achava poder confiar.
Ele balançou a cabeça confirmando.
– Ela estava falando de seu pai, não estava?
– Eu não sei. É nisso que acredito – disse ele soturnamente. – Ouvi
uma conversa entre meu irmão e sua alcateia. Ele dizia que, se tivessem
sucesso naquela missão, matariam aquelas que ninguém mais tinha
conseguido. Meu irmão mostrou um papel com o endereço e partiu com sua
alcateia. – Ele fez uma pausa. Parecia ser difícil retornar àquelas
lembranças. – Eu fugi da minha festa de aniversário e segui o rastro deles,
pois ainda era um filhote sem alcateia definida e queria vê-los em ação.
Cheguei alguns minutos depois e ouvi seus gritos, Bianca, senti seu
cheiro… Corri para dentro da casa imediatamente, ainda sem acreditar que
Daniel pudesse… – ele parou, sua voz ficou embargada. – Infelizmente, já
era tarde para salvar sua mãe. Ágata era bem treinada, mas meu irmão foi o
único que não conseguiram matar com as balas de prata.
Bianca engoliu em seco e foi sua vez de desviar o olhar.
– Você foi sozinho e me salvou, além do mais, era só um garoto de
doze anos.
– Eu podia ter tentado fazer mais! – havia raiva em sua voz. – Eu
deveria ter imaginado o que ele ia fazer, e então ter avisado alguém… No
final, apagaram as provas e incendiaram sua casa. Meu pai noticiou que
Daniel havia morrido em missão – disse ele por fim, fazendo uma expressão
de enojado.
Bianca apertou os lábios encarando-o novamente.
– Mas não entendo por que você nunca o entregou para o Conselho
– o desagrado de Bianca era claro em sua voz –, por que se esforça tanto em
agradá-lo e em ser uma pessoa diferente da que é?
– Porque eu preciso saber o motivo – respondeu ele, e havia um
misto de dor e ódio em suas palavras. – Eu preciso saber por que alguém
ajudaria a extinguir uma linhagem inteira e destruiria a honra de sua
família. Eu preciso saber… – repetiu ele. – Tenho certeza de que há outros
traidores, mas, antes que os capturassem, eles se matariam ou sumiriam.
Como os traidores da Noite da Aniquilação fizeram.
Ela mordeu os lábios, a angústia dele era perceptível em suas
palavras. Bianca ergueu a mão e tocou em seu rosto, acariciando-o
levemente. A expressão dele suavizou um pouco, mas, antes que pudesse
dizer algo, ele continuou.
– Eu apenas queria que você ficasse longe disso tudo e sobrevivesse
– disse ele.
Os dedos de Bianca desceram até a base de seu pescoço e tocaram
cicatrizes grossas e escuras que saíam sob sua camisa junto ao ombro.
– Você ainda está ferido? – perguntou ela, franzindo o cenho,
preocupada.
– Isso não é nada – disse ele, pegando sua mão para juntá-la com a
outra sobre a cama. Ele manteve a mão dele sobre as dela. – São apenas as
marcas das mordidas do Voraz. Eu estou curado.
– Mas um Karibaki se cura completamente, não ficam cicatrizes.
– Não as comuns. Mordida de Vorazes deixam cicatrizes profundas.
Veja pelo lado bom... Agora, eu tenho algo a mais para me exibir – brincou
ele, tentando parecer mais descontraído, mas Bianca notou que seus olhos
não demonstravam isso.
Ela sorriu debilmente.
– Você me reconheceu na Barba Azul, não foi? – perguntou ela, já
sabendo da resposta, pois não tinha dúvidas de tê-lo visto na boate antes de
Julian aparecer para salvá-la dos Pérfidos. Olhos negros e tristes
observando-a, enquanto beijava Lucas.
– Sim, por coincidência, Nicole encontrou seu caderno e me enviou
seus desenhos. Fui imediatamente para a boate quando os vi. Eu queria tirá-
la de lá e afastá-la de Lucas o mais rápido possível, antes que percebessem
quem você era. Na clareira, tentei desviar as atenções, mas ele viu seu
legado e não havia mais nada que eu pudesse fazer, a não ser tentar mantê-
la segura no Refúgio.
– E me treinar – completou ela.
– E treiná-la o melhor que pudesse antes que a enviassem em uma
missão que poderia se tornar algum tipo de armadilha, caso eu esteja certo
sobre meu pai.
– Mas achei que o Refúgio fizesse interrogatórios periódicos para se
protegerem de traidores. Como nunca o descobriram? Talvez seu pai não
soubesse que seu irmão era um traidor.
Ele ergueu os olhos para ela.
– Tem outras formas.
– Outras formas de quê?
Ele não respondeu, apenas a olhava significativamente.
Haveria uma forma de anular o dom dos Destemidos? Era isso o
que ele queria dizer? – pensou ela.
– … encontramos uma forma de bloquear seu dom por tempo
indefinido – disse Laura para Paula em sua lembrança. Pela cara de Paula,
ela duvidava de que aquilo fosse verdade, mas e se realmente houvesse uma
forma de bloquear os dons? Mas então, por que ela passou mal ao farejar o
sangue Karibaki em Lucas e seus amigos?
– Misture pequenas quantidades na bebida dela, durante todos os
dias de sua vida. Pode haver efeitos colaterais, nunca ouvi falar de alguém
fazendo isso por muito tempo – disse a garota de cabelos brancos e
tatuagem nos braços.
Talvez aquela garota tatuada tenha dado algo que anulasse seu dom
e os efeitos estivessem diminuindo sobre ela. Ela se lembrou de como Laura
fazia questão de preparar seu café da manhã. Também havia o estranho pó
que ela dizia ser vitaminas e que Bianca sempre tomava misturado no leite,
a cada ano em maior quantidade. Então era isso. Ela deve ter desenvolvido
alguma resistência à substância durante os anos.
– E quem era aquela garota de cabelos brancos e tatuagem?
Julian franziu levemente as sobrancelhas, mas em seguida
respondeu.
– Milena, uma amiga a qual ajudei um dia e ela me retornou o
favor.
– Que favor ela fez para você aquela noite?
Ele olhou para o lado pensativo, parecia hesitante em responder.
– Não falarei sobre isso aqui.
– Por quê? – perguntou ela. – Tem a ver com o bloqueio de meus
dons?
– Porque não há punição para o que eu fiz, mas criariam alguma e
seria muito pior do que a recebida por João.
Bianca arregalou os olhos e parou de insistir. Por que ele seria
punido por tê-la ajudado? Quem era aquela moça? Julian apertou a mão
dela, tranquilizando-a.
– Só o que posso dizer agora é que ela me ajudou a dificultar que
você fosse encontrada.
Ela balançou a cabeça em compreensão. Aquela conversa ainda não
tinha acabado. Num momento melhor, fora do Refúgio, insistiria naquele
assunto, pois naquele momento tinha outra coisa em mente.
Lembrar-se de Maitê e João fez seu coração apertar e a garganta
secar.
– E agora? O que será… – ela queria dizer “o que será de nós
dois?”, mas a verdade é que ela nem sabia se existia algo entre eles. Tinham
se beijado uma única vez e então tudo havia acontecido muito rápido, e
agora estavam ali sentados juntos, de mãos dadas no hospital.
Ele pareceu compreendê-la porque tomou seu rosto com uma das
mãos e a acariciou levemente.
– Logo você encontrará uma alcateia. Irão disputar você com
sangue e então terá que fazer seu juramento do Acordo. Você não deve
quebrar nenhum dos nove Acordos ou ninguém a aceitará. A partir daí,
estará presa aos seus votos, assim como eu estou.
– Eu não quero – disse ela, surpreendendo a si mesma com suas
palavras. – Eu nem mesmo queria ser uma trocadora de peles.
– Não diga isso. Você salvou a minha vida e a sua. Se não tivesse
sido capaz de trocar de pele, ambos estaríamos mortos agora e Gabrielle
também.
– Eu sei, mas… – ela engoliu em seco.
– Bia, você estava morrendo – interrompeu ele. Seu tom de voz era
doloroso. – Eu vi... Nenhum parente suportaria aquele tipo de ferimento,
mas quando começou a trocar de pele, seu corpo pôde se regenerar e você
conseguiu sobreviver.
Bianca lembrou-se do horror em vê-lo sendo machucado
brutalmente e da sensação de impotência em saber que ela mesma estava
morrendo. Ele tinha razão, é claro, mas ela não queria abrir mão do que
haviam começado.
Sentiu seus olhos ficarem nublados e úmidos. Ele limpou as
lágrimas dela enquanto escorriam. Os olhos dele também estavam úmidos.
– Que sejam lágrimas de felicidade, Bia – disse Julian, esforçando-
se em sorrir –, pois tenho uma surpresa para você.... Laura acordou!
EPÍLOGO
Bianca teve alta no mesmo dia em que acordou, porém passou todo
o tempo junto de Laura, deixando-a a par de tudo o que havia acontecido
nos últimos seis meses.
Sua irmã de coração estava restrita ao hospital. Allan tinha medo de
que ela pudesse ver outra troca de pele sem querer e de repente retornar ao
coma, pois sua mente estava se recuperando ainda. Porém, Laura parecia
completamente bem e, logo mais, Bianca teria uma reunião com o
Conselho. Exigiria que sua irmã saísse do Refúgio com sua memória
intocada.
Enquanto ficava com Laura, ela aproveitou para se isolar do resto
do Refúgio. Ali manteve contato com poucas pessoas, somente as mais
próximas. O Conselho apoiou seu recolhimento, pois entendeu que
precisava se recuperar mentalmente, e emocionalmente também. Nunca
alguém depois dos treze anos tinha trocado de pele. Talvez, por isso, seus
amigos estivessem um pouco estranhos com ela.
Nicole, Rafaela e o resto da alcateia de Julian evitavam falar sobre
o Voraz e a sua inesperada troca de pele no alto do Monte Serrat. Eles
geralmente baixavam o olhar e desconversavam. Ela mesma não se
lembrava de muita coisa após atacar a criatura, mas Allan explicou que a
falta de lembranças era normal na primeira vez. Entretanto, não conseguia
deixar de ignorar a estranha sensação de que seus amigos estavam
escondendo algo dela.
Dois dias depois, Bianca saía discretamente do hospital.
Ela vestia shorts jeans desfiado e blusa rosa sem mangas. Seus
cabelos ondulados estavam soltos, pois apesar do calor que fazia, gostava
de senti-los batendo nas costas. Em pouco tempo, chegou a uma trilha na
mata.
Ainda estava tentando se acostumar a controlar os sentidos
aguçados. Todas aquelas cores e cheiros passaram a ser diferentes para ela.
Bianca podia ver um inseto caminhando entre as cicatrizes da madeira, no
alto da árvore, sentir a presença dos animais ao redor e ouvir o barulho do
córrego a muitos metros de distância ainda. O cheiro de água corrente ia
ficando mais forte a cada passo.
Bianca saiu sem ser notada do hospital, pois tinha um encontro
longe dos ouvidos aguçados de Karibakis curiosos. Ele pedira, em um
bilhete, para que se encontrassem próximo ao riacho, depois da trilha. E lá
estava ela no caminho indicado.
Bianca o viu antes mesmo de sair da trilha, parecia nervoso
andando de um lado para o outro, passando a mão no rosto diversas vezes.
Ele exalava uma sensação estranha, que achou ser ansiedade, pelo jeito que
estava se comportando.
– Oi, Ric. Você queria falar comigo? – disse ela, surgindo da mata.
Ricardo se voltou para ela e sorriu tentando disfarçar seu
nervosismo.
– Oi… eu queria sim – disse hesitante, e então deu uma boa olhada
nela. – Uau! Você está linda!
Ela ergueu uma sobrancelha e sorriu, achando engraçado o espanto
dele.
– Quero dizer, você sempre foi gata, mas agora sei lá… está
diferente. Seu jeito, seus olhos estão… mais confiantes.
– Obrigada – disse ela. – Você também não está nada mal, mas por
que eu tinha que vir até aqui para você dizer isso? Não poderia ter ido me
visitar no hospital, como todos os outros fizeram?
Ele mordeu os lábios e olhou para o chão. Parecia desconfortável
– Me desculpe por eu não a ter visitado. Eu precisava de um tempo
para meditar.
– Meditar? – perguntou ela, erguendo as sobrancelhas. Ele nunca
tinha levado a sério as aulas de Controle.
Ricardo passou a mão no rosto mais uma vez e depois se sentou
numa pedra ao lado do riacho, protegida pela sombra de uma grande árvore.
Ele apontou a outra pedra na frente dele.
Ela não queria se sentar. Nos últimos dois dias, sentia-se engaiolada
no hospital, mesmo desejando estar com Laura e se isolar dos outros. Ondas
de energia passavam por ela e tudo o que queria fazer era correr e gritar,
mas como isso pareceria louco demais, ela se continha o tempo todo.
Portanto, não queria se sentar, mas sentou-se. Ricardo raramente ficava
sério e, se isso o fizesse sentir-se melhor para falar o que tinha para falar,
ela sentaria.
– Eu preciso conversar com o Conselho essa noite – disse ele. –
Tenho que passar uma mensagem.
– Que mensagem?
Ele fez uma pausa, considerando a melhor forma de explicar aquilo
que viu e ouviu na escola abandonada, na noite em que salvaram Gabrielle
e criaram uma bela confusão na cidade dos caçadores.
– Além da menina Camila – começou ele. – Eu vi três espíritos na
escola abandonada. Na verdade, havia outros, mas eu só consegui distinguir
três.
– Três espíritos na escola, além do da menininha?
– Sim – respondeu ele cuidadosamente –, mas esses espíritos
estavam lá porque você estava lá.
Ela arqueou as sobrancelhas.
– Como assim?
Ricardo suspirou.
– Um dos três era o espírito de sua mãe – foi ele logo dizendo. Nos
últimos dias, enquanto pensava sobre como falaria para ela, decidiu que ser
direto era o ideal.
Bianca se levantou surpresa.
– Isso não é engraçado.
– Não estou brincando – disse ele, levantando-se também –, eu juro.
– Vocês me contaram que ninguém nunca falou com qualquer
espírito dos Farejadores desde a Noite da Aniquilação. Vocês disseram que
muitos tentaram, mas que era impossível!
– Eu sei disso. – Seus olhos eram amplos e sinceros. – Eu não
mentiria para você sobre uma coisa dessas. E também não mentirei para o
Conselho, eles vão usar o dom em mim, com certeza vão. Ninguém vai
acreditar quando eu disser, é claro que não.
Ela sabia que ele não tinha razão para mentir, mas imaginar que ele
a viu ao lado dela e que não teve a chance de falar com sua mãe era
angustiante.
Bianca voltou a se sentar, forçando-se a ficar mais calma.
– E o que minha mãe te disse?
– Ela não disse nada. – E percebendo a expressão de
desapontamento dela, ele explicou melhor. – Ela não falou, mas me olhou e
eu senti que ela queria que eu te dissesse que ela a ama, pois não teria outra
chance de dizer, mesmo se invocada, eu sinto que ela não virá.
Bianca deixou seu olhar se perder nas águas límpidas do riacho.
– Eu sabia que era sua mãe porque vocês são muito parecidas, ainda
mais agora. Quando você chegou, eu quase achei que fosse ela novamente.
Ágata parecia muito bem e feliz em estar ao seu lado naquele momento. Na
verdade, ela parecia bastante orgulhosa até.
Os olhos de Bianca encheram-se de lágrimas.
– Mas você disse que tinha uma mensagem para o Conselho.
– Eu tenho, mas não é dela. Ela não falou, mas os outros dois
falaram.
– Havia mais dois Farejadores?
– A outra mulher não era uma Farejadora e não sei o que ela era –
disse ele, fazendo uma careta –, mas o outro eu sei bem – e então ele ergueu
as sobrancelhas para dar ênfase –, porque ele era “O” Farejador.
– “O” Farejador? – repetiu ela, tentando entender sobre quem ele
estava falando.
– Isso mesmo...
E então a expressão dela se ampliou em compreensão.
– Você tem certeza de que não andou batendo a cabeça muito forte,
Ric? Como você pode ter certeza de que era ele?
Ricardo engoliu em seco.
– Bia, eu já olhei para a cara dele centenas de vezes durante as aulas
de história Karibaki ou quando passeio na Praça Oliva e vou parar no
Círculo do Acordo, onde estão as estátuas originais da primeira alcateia. Era
ele com certeza.
Bianca ainda estava incrédula.
– E você se lembra do que ele disse?
– Se eu me lembro? – perguntou, como se aquela pergunta fosse
absurda. – Cada palavra ficou gravada na minha cabeça. Tenho sonhado
com elas todas as noites desde aquele dia. Eu só estava esperando você
acordar para te falar primeiro.
– Sério? Então diga logo!
– Ele disse “a Sombra de Hoark se aproxima”.
O coração de Bianca saltou.
Ela já tinha ouvido essa expressão “a Sombra de Hoark”, os
Karibakis se referem ao dia do armagedon, quando todos os Taus de repente
se ativariam automaticamente, trazendo um verdadeiro apocalipse sobre a
Terra.
Ela não sabia o que dizer. Ele devia estar ficando louco.
– Na verdade, ele também disse outra coisa – continuou Ricardo, e
ela ergueu as sobrancelhas, esperando mais más notícias. – Ele disse:
“Bianca não é a única”.
Ela abriu os lábios pensando na mensagem.
– Ótimo, não é? – disse ele. – Acho que estava se referindo a
outros…
– Farejadores – completou ela num fio de voz. – Sim, essa é uma
boa notícia.
E então ele fechou a expressão novamente. O rosto dele ficou tenso.
– O que foi? – disse ela.
– Eu não gostei do que a outra mulher me disse e ela me falou que
essa mensagem era só para você.
Bianca ergueu uma das sobrancelhas.
– O que poderia ser pior do que o primeiro Farejador aparecer para
você e dizer “Oi, eu sou Galen! A propósito, o fim do mundo está
chegando”?
– Talvez algo como “Todas as linhagens odiarão Bianca Bley e
desejarão sua morte, pois ninguém entenderá, e eles terão medo”.
– O quê? – disse ela verdadeiramente surpresa. – Do que está
falando? E quem era essa mulher?
– Eu perguntei tudo isso também e o que ela me respondeu foi: “eu
sou o motivo de a odiarem”, e daí foram todos embora – disse ele, erguendo
os braços, exasperado. – Será que o nome dela é “motivo” e o sobrenome
“odiarem”? Por que eu não entendi nada.
Bianca baixou os olhos e ficou pensativa. Se a mensagem fosse
realmente verdadeira e não fruto da cabeça de Ricardo, por que a odiariam?
– Bia – começou ele –, eu não sei por que ela disse algo assim, mas
o que eu sei é que eu jamais a odiarei.
Ela sorriu de forma relutante e ele aproveitou para segurar uma de
suas mãos antes de continuar.
– Afinal, eu jamais poderia odiar a minha futura namorada, esposa e
mãe dos meus cinco filhos – e dizendo isso, ele deu seu sorriso mais
charmoso, tentando esconder seu nervosismo.
Bianca o estapeou no ombro e ambos riram.
– Você não tem jeito – brincou ela.
Ele riu novamente e ela tentou não dar muita importância para
aquela mensagem. Talvez ele tivesse entendido errado, talvez alucinado ou
talvez todos realmente fossem odiá-la um dia. De qualquer forma, teria que
esperar para saber. Entretanto, em seu íntimo, algo lhe dizia que ela não
demoraria muito para descobrir.
E a partir daí tudo mudaria.
Agradecimentos
São tantos para agradecer!
A minha mãe, Célia Rossetti, e a meu noivo, Luiz Danilo Garcia,
obrigada pela paciência em ouvir minhas ideias, minhas histórias, minhas
hesitações, meus medos e sempre estarem comigo me apoiando
incondicionalmente na conquista de mais um sonho. Amo vocês!
Agradeço em particular às minhas leitoras betas: Patrícia e Priscilla
Rossetti, Carolina Porto, Maitê Birkett e Maria Eduarda Barbour. A leitura
crítica de vocês ajudaram a tornar o livro o que ele é hoje.
A Camila Machado e Thais Lopes, por toda a ajuda prestada. A
Talita Persi, a incrível artista que deu vida às minhas personagens para as
redes sociais.
E, principalmente, aos meus alunos que me acompanharam nessa
jornada, passo a passo, apoiando, opinando e ajudando na divulgação.
Obrigada pelo carinho, pelo incentivo, e até pelas broncas devido à demora
da publicação... E obrigada por fazerem parte de mais uma história criada
por mim, desta vez não dentro da sala de aula, mas dentro do mundo dos
trocadores de pele. Sem vocês, nada disso teria acontecido, pois foram
minhas fontes de inspiração e meu apoio.
Obrigada por acreditarem!
Glossário de Termos
Os Filhos da Lua são também conhecidos como Sangues da Lua
ou Karibakis. Eles são divididos em dois tipos: trocadores de pele e
parentes.
Trocadores de pele: Capazes de trocar a pele humana por uma lupina. Não
se transformam em lobos, mas sim em algo muito maior e feroz. Além de
ganharem garras e presas afiadas, sua altura aumenta em pelo menos 25% e
seu peso e massa corporal em 300%. São poderosos guerreiros e quase
sempre se reúnem em alcateias.
Desviado: Karibaki de uma das cinco linhagens do Acordo que passou para
o lado dos Pérfidos.
Griat: Existem muitos tipos diferentes de griats presos aos Taus, porém
todos possuem uma fome selvagem por sangue e carne humana.
Pânico: Insanidade que atinge a mente humana algum tempo depois de ter
visto a forma bestial dos trocadores de pele.