Da invisibilidade de Salazar à presencialidade de Caetano

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Da invisibilidade de Salazar à presencialidade de Caetano: sobre os media, a televisão e a

ditadura em Portugal

Os media, especialmente desde a Revolução Industrial, têm operado como uma "economia do
desvio da atenção", moldando a maneira como as pessoas percebem o mundo e, em muitos
casos, limitando a participação democrática. Bernard Stiegler, citado no texto, argumenta que
a cultura de massa foi criada para capturar e "destruir" a atenção das pessoas, enquanto Paul
Valéry sugere que a política serve para desviar a população das questões que realmente
importam.

 Através da censura e do controlo de informações, o sistema mediático impôs um


“fluxo unívoco de dominação” ao longo dos séculos, onde as pessoas ouvem sem
serem ouvidas e a diversidade de opiniões é suprimida. Segundo os autores Herman e
Chomsky, isso traduz-se num "manufacturing consent", uma forma de controlar o
consenso social e político, sustentando estruturas de poder. Esse fenómeno é visto
como um desvio do projeto iluminista, enfraquecendo a democracia e abrindo
caminho para regimes autoritários e polarizações extremas.

Numa obra recente Yves Citton sugere que vivemos numa "mediarquia" — um sistema onde o
poder dos média supera o da própria democracia. Esse poder molda a perceção pública de
maneira performativa, ou seja, não apenas representa a realidade, como também a constrói,
influenciando diretamente a forma de como o social e o político se desenvolvem.

Assim, o texto alerta para a necessidade de repensar e redefinir o papel dos média,
questionando o modo como estruturam e controlam a experiência humana e a participação
democrática.

Economia política da atenção

 O conceito de "economia da atenção", introduzido por Georg Franck nos anos 90,
descreve como a captura e comercialização da atenção humana se tornaram centrais,
especialmente na era digital. Desde o final do século XIX, com a expansão do consumo
e da publicidade, a atenção foi transformada num "capital" a ser explorado pelos
media e pela política.
 No século XXI, grandes plataformas digitais intensificaram este processo, convertendo
a atenção num produto de valor económico. Tim Wu (académico norte-americano)
argumenta que a indústria da publicidade moderna surgiu num contexto de
propaganda de guerra. Refere também que os media facilitaram a tarefa à indústria
dos excedentes consumistas, transferindo a guerra da persuasão, “da morte para o
consumo” .
 Atualmente, a economia da atenção dita as estratégias políticas, como o
microtargeting e a network propaganda. Isso faz com que a política se torne um
"dispositivo de sedução" que produz mais frustração do que transformação social.

Fadiga democrática

Este excerto aborda a ideia de "fadiga democrática" e questiona se as democracias ocidentais


já foram plenamente eficazes ou verdadeiramente democráticas. A autora cita Hannah Arendt
e argumenta que o "renascer do monstro" ocorre em contextos de corrupção, desigualdade,
manipulação dos média e enfraquecimento das instituições que deveriam proteger a
democracia, o que faz com que políticas autoritárias ganhem força, especialmente com o
apoio dos média e das redes sociais.

Além disso, a "fadiga democrática" reflete o desgaste das democracias, que, segundo o autor,
nunca alcançaram uma participação cidadã robusta ou total transparência. A fragilidade dos
média, a polarização política e o declínio do jornalismo contribuíram para esta situação,
gerando desconfiança e um enfraquecimento das virtudes cívicas. Em Portugal, mesmo após o
25 de Abril, o sistema mediático e político permaneceu com falhas semelhantes.

Em resumo, a democracia ocidental é apresentada como um sistema que carrega, desde a sua
origem, as sementes da sua própria "fadiga" e autodegradação, continuamente corroída por
interesses ocultos, clientelismo (maneira de agir que consiste numa troca de favores,
benefícios ou serviços políticos ou relacionados com a vida política) e falta de mecanismos de
escrutínio e transparência.

A ascensão de Salazar

O excerto explora como a ditadura de Salazar se consolidou em Portugal, enfatizando o papel


dos meios de comunicação na ascensão do regime fascista. Desde o período da Primeira
República, a imprensa foi crucial na desestabilização política, com setores monárquicos e
extremistas de direita a corroer a República. Esta instabilidade, agravada pela luta entre facões
ideológicas, resultou no enfraquecimento do regime republicano e abriu caminho para a
ditadura salazarista.

Inicialmente, Salazar utilizou habilmente a imprensa e a propaganda para ganhar


popularidade, apresentando-se como o "ditador das Finanças" que traria estabilidade. Ele era
um comunicador hábil, recorrendo a discursos, entrevistas e notas oficiosas. Contudo, após
consolidar o seu poder, Salazar optou por um estilo de liderança mais reservado e restritivo,
criando o Secretariado Nacional da Propaganda (SPN) para censurar e controlar a informação,
cultivando uma imagem de "invisibilidade". Esse afastamento da exposição pública foi
estratégico para transformar a sua figura num símbolo quase místico de autoridade.

Salazar manipulava a comunicação para exercer uma espécie de omnipresença simbólica,


condenado a uma espécie de "morte simbólica", onde ele representava tanto o poder secular
quanto o místico, conforme o conceito dos "dois corpos do rei" de Kantorowicz. Esse modelo
reforçava a sua imagem de líder infalível, associado a uma intervenção quase sobrenatural,
garantindo assim a longevidade política da sua figura e do regime.

Ao longo das décadas, a ditadura utilizou progressivamente a censura, limitando a voz dos
cidadãos e controlando os media para manter a ordem.. Nos finais dos anos 50, a televisão
passou a ser instrumentalizada, passando da invisibilidade de Salazar para uma forte estratégia
“presencial” de Marcello Caetano.

Representações televisivas: de Salazar a Marcelo Caetano

 Salazar apresentava uma aversão à exposição pública da sua figura, mostrando


desinteresse pela “publicidade” mediática, especialmente com a chegada da televisão
em Portugal, no final dos anos 50. Mesmo tendo outros meios audiovisuais
disponíveis, incluindo a Emissora Nacional de rádio, Salazar não os usou para
propaganda e agitação. Isto porque o ditador preferia a imprensa em comparação aos
outros meios de comunicação, pois esta lhe permitia um maior controlo editorial,
considerando-a fundamental na influência da opinião pública.
 Salazar manteve-se “fora de campo” na televisão durante o seu consulado, mesmo
após o início das transmissões em 1957, evitando uma exposição constante e
limitando a sua presença a conteúdos protocolares e institucionais. Até o final dos
anos 50, os espectadores da RTP reconheciam Salazar principalmente através de fotos
e pequenas reportagens institucionais, o que limitava a agenda da televisão a uma
“instrumentalização” pelo regime. Essa presença protocolar, ao contrário das
estratégias de agitação e propaganda noutros regimes europeus, reduziu a sua
liderança a um modelo institucional, caracterizando-a como uma presença “sacrificial”.
Esta abordagem visava preservar e tornar eterno o “corpo político e jurídico” de
Salazar, protegendo-o da curiosidade do público e da possível degradação da imagem
do líder.
 No contexto da imagem televisiva de Salazar, observa-se um modelo oficioso e um
imobilismo informativo focados quase exclusivamente na sua agenda política diária. A
informação nos primeiros anos da RTP apresenta uma repetição de certas narrativas,
destacando a notável ausência de imagens do Império e das colónias, como se
Portugal e a ditadura estivessem limitados ao espaço do continente. Esse período é
marcado pela censura, particularmente em torno da candidatura de Humberto
Delgado às eleições presidenciais de 1958, bem como a censura das eleições
legislativas de outubro de 1961, quando o regime impediu que a RTP e outros meios
nacionais fossem utilizados para campanhas políticas.
 A partir de 1963, surgem os Comentários e Editoriais, que trazem a opinião do
Telejornal em tempos de crise sob a supervisão censória de Manuel Maria Múrias.
Humberto Delgado é posteriormente tratado de forma negativa, com a RTP a envolver
Mário Soares e o Partido Comunista em falsas acusações relacionadas ao seu
assassinato. A cobertura das eleições presidenciais e legislativas de 1965 também é
repleta de desinformação, rotulando Américo Tomás como “candidato natural” e
Mário Soares como “traidor”, tudo sob a narrativa de Múrias. Apesar dos editoriais
inflamados e das efemérides do regime, a figura de Salazar carecia de uma estratégia
de comunicação mais articulada que promovesse um culto à sua personalidade.
 O legado de Salazar na RTP resume-se a reportagens que mostram a sua imagem de
forma fiel, conhecidas como “naturezas mortas” de Salazar (Cádima, 2017, p. 338). As
principais peças que marcam a visibilidade mais pessoal de Salazar na RTP incluem: i)
reportagem do encontro do ditador com Franco em Ciudad Rodrigo, transmitida pela
RTP a 10/7/1957; ii) o documentário “Em casa de Salazar - no dia do seu aniversário”
(4/5/1958); iii) a peça “Aniversário do Presidente Salazar” (28/4/1969); e iv) as
imagens do corpo e do rosto de Salazar durante as cerimónias fúnebres em julho de
1970.
 Através desde modelo de informação da RTP, “os responsáveis da informação
televisiva procuraram dar uma imagem que se poderia considerar “institucional” do
salazarismo, nunca tendo optado por um modelo instrumental propagandístico de
disseminação do “culto” panfletário do “chefe”, como se verificou em diversas outras
latitudes europeias.”
Marcello Caetano apresenta-se como um contraste significativo em relação a Salazar.
Enquanto Salazar era reservado e mantinha uma postura "rural" e até misantrópica, Caetano
exibia uma personalidade cosmopolita, interagindo abertamente com o público e
demonstrando um entendimento profundo sobre comunicação e opinião pública. Marcelo
Caetano foi fundamental na fundação e estruturação da RTP.

Caetano torna-se o ideólogo da utilização da televisão como instrumento político e


propagandístico do regime. Sob a sua liderança, a televisão transforma-se numa ferramenta
mais eficaz para a propaganda do regime, com um monopólio informativo que serve aos
interesses do Estado.

Enquanto Salazar mantinha uma subexposição da sua imagem, Caetano enfrentava a


subexposição dos cidadãos, ameaçando a sua representação e visibilidade. Apesar das
promessas de abertura durante a “primavera marcelista”, o regime rapidamente se fechou
novamente sobre si mesmo, negando a real mudança desejada pela população.

Ramiro Valadão, presidente da RTP durante o governo de Marcelo Caetano, desempenhou um


papel crucial na implementação do novo sistema de propaganda. Caetano enviava-lhe várias
cartas ou bilhetes, sendo a mais importante uma carta de 28 de dezembro de 1970, onde
enfatizava a necessidade de usar a televisão para ação política e não permitir que os
adversários a utilizassem como ferramenta de propaganda.

Sob a liderança de Caetano, a informação tornou-se mais personalizada, reforçando o culto à


sua personalidade através de imagens e reportagens centradas nele. Essa estratégia incluiu um
redireccionamento da narrativa para incluir a sua figura em eventos políticos, atividades da
agenda protocolar, entrevistas e na promoção dos seus livros e viagens. Um exemplo
significativo dessa abordagem foi o programa “Conversas em Família” (1969-1974), que
reformulou o modelo de instrumentalização da televisão, consolidando ainda mais a sua
imagem pública e a presença do regime.

A estratégia de culto à personalidade de Marcello Caetano na RTP refletiu um recentramento


por meio de narrativas e temáticas específicas que moldaram a instrumentalização da
televisão durante o período caetanista. i) o Telejornal surge como uma ‘arma de propaganda;
ii) emerge uma espécie de salazarismo televisivo sem Salazar, agora com o foco num homem e
numa imagem, com as visitas às colónias a partir de 1969 – Guiné, Angola, Moçambique; iii) As
primeiras “conversas em família”; iv) a “dessalarização” ou o ‘espetáculo abominável’ com o
declínio, queda e morte de Salazar; v) a estratégia política editorialista do ‘consulado Valadão’
mais focada nas eleições de 1969 com a “eliminação” da campanha; vi) o Congresso da União
Nacional, com alguma desinformação apontada a Mário Soares, o “falso advogado”.

Outras características notáveis da política televisiva de Caetano incluíram a renovação do


mandato indeclinável, a Revisão Constitucional e a Lei de Imprensa, atos protocolares do
“organismo ético”, a ascensão de César Moreira Baptista como comentador do Telejornal, e
uma homenagem da RTP a Marcello Caetano logo após o fim do marcelismo.
Resta-nos uma questão central: terá, com efeito, a televisão contribuído para o reforço do
regime perante a opinião pública, e nessa medida, contribuído também, com a sua parte, para
a longevidade do regime? Embora Marcello Caetano tenha estado apenas seis anos no poder,
a discussão sobre essa questão é complexa e ambivalente.

Por um lado, a RTP e a informação televisiva serviram claramente como um aparelho


ideológico do Estado, funcionando como um instrumento do regime que tentava criar e impor
“consensos” sociais. Contudo, em momentos críticos, como durante a Guerra Colonial e em
períodos eleitorais, a RTP revelou-se incapaz de proteger o regime e, muitas vezes, não
conseguiu esconder situações que eram prejudiciais à sua imagem pública.

As tentativas de promover efemérides salazaristas, telecerimónias de Marcello Caetano e


outras iniciativas de auto-celebração do regime não foram suficientes para impedir o seu
declínio. Embora Caetano acreditasse que a televisão poderia torná-lo popular, a realidade era
que as estruturas do regime estavam deterioradas, e as estratégias de propaganda não
conseguiram reverter essa queda. A censura e a subexposição da opinião pública tornaram-se
características fundamentais do modelo comunicacional do regime Salazar-Caetanista, mas
isso não impediu a sua eventual queda.

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