Ate Amelia - A. Rebel

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Até Amélia

Copyright 2024
Autora: A. Rebel.
Leitura Critica: Camila Rodrigues
Capa: Mariana Melo
Ilustração: @gatinhoartmiau
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens,
lugares e eventos e são produtos da imaginação da
autora ou usados de maneira fictícia. Qualquer
semelhança com pessoas reais, ou locais é mera
coincidência.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste
livro pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida
de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo
fotocópia, gravação ou outros métodos eletrônicos ou
mecânicos, sem a permissão prévia por escrito da
autora.
A violação dos direitos autorais é crime, conforme
previsto no artigo 184 do Código Penal Brasileiro e
na Lei nº 9.610/98.
Texto conforme as regras do Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa.
Edição digital. Criado no Brasil.
1º Edição.
SINOPSE
As coisas velhas já passaram.
Eis que tudo se repete.
Quando Amélia se muda para a pequena cidade de New Castle, a
última coisa que tem em mente é se envolver com alguém. A jovem está
focada em duas coisas: esquecer o passado e dar a sua bebê a chance de
uma vida boa. No entanto, sua determinação é testada quando ela conhece
Vince, o carismático proprietário do bar vizinho.
Vince não é apenas o cara da porta ao lado: ele é gentil, atencioso e
parece entender o peso que Amélia carrega nos ombros. Mesmo com a
atração irresistível, há a necessidade de manter uma distância segura: o
passado de Amélia a torna desconfiada e reservada, incapaz de confiar
plenamente em alguém. Os segredos de Vince o impedem de seguir em
frente.
… Mas o destino insiste em os unir.
TROPES
. SLOW BURN
. MÃE SOLO
. VIZINHO
. CIDADE PEQUENA
. INTROVERTIDA E EXTROVERTIDO
PLAY LIST
Para conhecer as músicas que Vince tanto
tocava no bar Caverna, ouça a playlist 01 de Até
Amélia no spotify: busque pelo código ou clique
aqui.
SUMÁRIO
SINOPSE
TROPES
PLAY LIST
SUMÁRIO
PRÓLOGO
01
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03
04
05
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EPÍLOGO
Para todos os corações que parti,
todas as ressacas literárias que causei com
Tempestade Perfeita, essa história é como irei me redimir.
PRÓLOGO
AMÉLIA
Seattle, Massachusetts, 2013.
Meu amigo, Levi, costuma dizer que sou uma pessoa cronicamente
solitária; que, se existisse alguém que conseguiria viver sem a presença de
outros seres humanos ao redor, seria eu. Ele não está errado.
Sendo exposta ao lado ruim da natureza humana desde sempre, a
solidão é algo que simplesmente acontece. É natural.
Enquanto aguardo no consultório médico, depois de algumas
decisões ruins seguidas de decisões péssimas, penso na possibilidade muito
real de esse status de pessoa solitária ser alterado para sempre.
— Amélia Reid? — A atendente chama, e me levanto, sentindo
uma pontada de pânico quando registro a dimensão do que está para
acontecer.
É agora.
Talvez haja outra vida crescendo dentro de mim. Um bebê.
Me pergunto se sobreviverei a isso.
Honestamente, acho que não.
01
VINCE
New Castle, Colorado. Um ano depois.
— Ei, cara — Johan bate nas minhas costas, cortando a conversa
que estou tendo com uma cliente.
— O que é?
— Venha aqui. Acredite, será interessante.
— Foi mal, docinho — digo para a ruiva ao meu lado, colocando a
cerveja em cima do balcão. — Tenho que ir.
O bar está lotado, precisei que Johan viesse ajudar – não que ele
seja de grande ajuda, mas pode muito bem levar algumas cervejas para as
mesas enquanto enche a cara de graça. Metade dos homens da nossa região
está aqui, um mais bêbado que o outro.
— Aquela ali — aponta para uma mulher de costas. — Quer falar
com o proprietário.
Me aproximo com as sobrancelhas levantadas. Merda, alguém a
incomodou? Já avisei aos caras que seriam chutados se colocassem as mãos
em uma mulher antes de serem convidados.
— Olá? — cumprimento. É uma morena com roupas... bem,
roupas que mulheres geralmente não usam para vir a um bar. Neste bar,
especificamente. É um pijama? — Você queria falar comigo?
Ela se vira, está com os braços cruzados. Porra. Fico surpreso e
sinto certa animação queimando no sangue. Não é só uma coisinha bonita,
essa mulher é um uau. Olhos esverdeados grandes, com as pálpebras
levemente caídas, deixando-a com uma expressão involuntariamente
sensual. São marcados por uma sobrancelha escura muito expressiva.
Lábios carnudos que eu morreria para ver pintados de vermelho.
Não a conheço, e eu conheço todo mundo. Uma turista?
— Você poderia abaixar o som?
Sorrio do jeito sério que ela fala, mas meu sorriso faz seu rosto
fechar.
Estranhamente, ela fica ainda mais atraente com essa expressão. É
uma nervosinha – do tipo que dá vontade de beijar até tirar a marra da cara.
— Você está falando sério?
É insano.
— Por que eu brincaria sobre isso? — questiona, na defensiva. Ela
está uma bagunça mal-humorada. Alguém precisa relaxar.
— Bem — levo a mão à cabeça. — Não é algo que possa ser feito.
É sexta-feira. No meu bar, Caverna, é tradição que toque rock até o
dia amanhecer, mesmo que seja o velório de um de nós.
— Mas talvez eu possa ajudar de outra forma — decepcionar
mulheres bonitas não é do meu feitio, então ofereço. — Que tal uma
bebida?
A garota parece precisar de uma. Acalmar um pouco.
— Não — responde, apertando os lábios.
— Batatas fritas? — tento, lhe dando um sorriso que muitas
pessoas descreveriam como irresistível.
— Não, eu preciso que você abaixe o som — frisa, agora irritada
de verdade.
— Por que eu faria isso?
A curiosidade é genuína, ela não está sendo razoável. Com essa
aparência, deve estar acostumada a ter homens fazendo suas vontades assim
que as ordens saem da boca. Eu provavelmente faria, se pudesse.
— Me mudei para o apartamento ao lado.
Ah, sim. Nova moradora, então. Meu vizinho, o maldito Kenny,
pegou gosto por alugar seu apartamento para desavisados. Ele não informa
que há um bar na vizinhança e oferece um preço abaixo do mercado. Faz
uma grana com idiotas que não pesquisam direito.
— Sinto muito — digo com sinceridade. — Mas não vai acontecer.
Olhe ao redor.
Cerca de cem pessoas, delas, pelo menos dois terços sendo homens
agitados que poderiam atirar em mim se eu acabasse com a diversão.
— Vou ter que chamar a polícia.
— Ei, já estamos partindo para ameaças?
Agora ela está conseguindo me irritar. Estou tentando ser legal
aqui, não precisa ser uma megera.
— Passa das onze, é proibido som alto nessa área — aponta, bem
arrogante. Bufo sem humor. Moro aqui desde que nasci. O quê, a garota se
deu ao trabalho de ler o estatuto da cidade, mas não de procurar saber quem
são seus vizinhos?
— Então vá em frente — encorajo, virando as costas. — Fique à
vontade.

Vinte minutos depois, quando penso que o assunto foi esquecido e


a morena –linda, sim, mas um tanto aborrecida – está remoendo o ódio em
seu apartamento, o oficial de cabelos brancos entra no bar.
Porra, ela chamou mesmo a polícia. Filha da puta. Vem atrás do
homem exalando hostilidade.
Que pena para ela.
É um dos meus clientes mais fiéis.
— Senhor policial — cumprimento de trás do balcão. — O que vai
querer hoje? O de sempre?
— Sem gelo, por favor.
A garota encara, incrédula, enquanto encho o copo de vodca para o
sujeito.
— É por conta da casa — digo e pisco para ela. — O que vai
querer, linda?
— Sério? — Seus olhos vão do meu rosto para o dele.
— Bem... — o oficial dá de ombros. — Eu já estou aqui.
Parece que ela considera seriamente o bater, e se a pancada
acarretaria uma prisão. Volta para mim, que ainda estou sorrindo.
— Você precisa abaixar.
— Você continua repetindo isso — digo lentamente, imitando seu
tom. — A resposta continua sendo não.
— Olhe, eu tenho uma...
— Você não é a primeira a cair na conversa do seu senhorio.
Apenas aceite a derrota — interrompo. E agora, por ter sido sacana a ponto
de chamar a polícia, não vai ganhar aquelas batatas.
— Conversa?
— Não se perguntou por que um apartamento de três quartos nessa
localização custa tão barato? Devia ter checado, docinho.
É uma dica básica da vida adulta, que estou sendo generoso em
fornecer a ela. Só que, é claro, o monstrinho prefere se ofender.
— Não me diga como fazer as coisas, você...
— Ei, Johan! — chamo o idiota antes de ganhar o próximo
xingamento. — O que acha de aumentar a música, hein?
Não sei ao certo por que faço isso, o que ganho a contrariando
mais, só que caramba, foi ela quem começou. Também é
surpreendentemente agradável antagonizá-la. Excitante, quase.
O olhar que recebo queimaria uma floresta inteira.
Uma floresta úmida.

AMÉLIA
Fiz tudo ficar pior. Pra variar. Subo as escadas do apartamento que,
até horas atrás, jurava ser minha salvação. Tremo de frustração, raiva e
mágoa. Não costumo ser emotiva, mas caramba, esse som parte meu
coração. Não o da música, mesmo que seja horrível. O outro som.
Rorie chorando.
Quando minha bebê chora, faz esse beicinho suspirando para me
mostrar o quanto está sentida. Deus, é difícil lidar com isso. Quero tirar
toda a aflição de sua cabecinha careca e pegar para mim. Eu sentiria todas
as dores do mundo por ela.
Mas não consegui sequer achar um lugar em que pudesse dormir
em paz. Rorie não tem um ano, Deus do céu, dormir é uma de suas coisas
favoritas. Tirando comer e puxar meu cabelo, é a única coisa que ela faz.
Tão pouco.
Ainda assim, não pude lhe dar.
Fico em frente ao berço, ela está sentada, com lágrimas enormes
saindo dos olhos claros. Levanta os bracinhos porque confia em mim,
confia que eu seja capaz de resolver seus problemas.
— Coitadinha — digo com manha, trazendo-a para meu colo e
adulando a pele quente. — É uma música horrível, não é? Eu te entendo.
Também tenho vontade de chorar quando alguém resolve tocar Guns N'
Roses.
Rorie concorda, lamentando contra meu peito. É uma garota legal.
Descolada. Nunca escolheria essa banda.
— Eu sei, uma música péssima para combinar com um homem
péssimo.
O corpinho treme em um grito chateado. Ela não merece isso.
Maldito bar, maldito dono do bar.
O homem é uma montanha, com quase dois metros de músculos
bem trabalhados. Cabelos curtos, quase raspados, e olhos azuis. Sempre
associei olhos claros a algo delicado no geral, mas não há nada delicado
naquele corpo, não mesmo. Pior de tudo, o rosto feliz. Fácil e charmoso.
Ele é um canalha, com suas tatuagens estranhas e amigos barulhentos, mas
não o tipo mal-encarado. Não pareceu uma pessoa ruim.
Mas ele é ruim para mim porque, graças a ele, eu e Rorie não
vamos dormir esta noite. Talvez choraremos um pouco também.
Outra cidade, mas tudo na mesma.
02
AMÉLIA
— Ei, deixe essa touca onde está — aviso minha filha, agitada no
banco de trás do carro. Falei diversas vezes que, enquanto for careca como
é, precisará usar gorros. São fofos. O de hoje é de tricô vermelho, que fica
lindo com suas bochechas rosadas, mas aposto que é por isso que Rorie
puxa meus cabelos. É muito vingativa.
Essa cidade será boa para ela.
New Castle, no sul do Colorado, é a antítese de Seattle. Cinquenta
mil habitantes, bons índices de segurança e um monte de atividades ao ar
livre. Ótimo lugar para se criar uma criança. Quando um antigo professor
me mandou mensagem falando a respeito dessa vaga de emprego, foi como
se uma luz acendesse na minha frente. Eu tinha de vir.
Ok, não é exatamente a vaga dos meus sonhos. Trabalhar em um
colégio que cobra mais do que o valor do meu carro em mensalidade não
era o que tinha em mente quando me formei em psicologia. Mas é um bom
emprego, com horário razoável e desconto na creche, que fica apenas a
alguns metros de onde estou.
— Chegamos — digo, manobrando o carro no estacionamento.
Ao abrir a porta, pegando nossas bolsas e desafivelando o cinto do
assento de bebê, a realidade me atinge.
Droga.
Eu não estou tão bem com isso quanto gostaria. Não quero deixá-
la. Encaro os olhos azuis, sempre arregalados. Rorie me olha como se eu
fosse o centro de seu mundo. E eu meio que sou.
Ela não vai entender que são apenas algumas horas e que irei
buscá-la de novo. Sua cabecinha de bebê vai pensar que foi abandonada.
Tenho que trabalhar, passar o dia com os filhos dos outros.
Deus, odeio o capitalismo.
— Não seja dramática, você vai passar o dia fazendo amizade com
outros bebês bonitinhos.
Em resposta, me olha com um rosto sério.
— Vamos lá.
A escola em que trabalho não é grande e só recebe alunos até o
fundamental. Pequenos herdeiros. A minha função, enquanto conselheira, é
basicamente resolver conflitos entre crianças ou passar um tempo com eles
quando arranjam confusão.
Tenho um escritório gelado e panfletos sobre educação infantil por
todos os lugares, caso precise conversar com algum pai.
— Justin — cumprimento o menino que até então estava andando
com os ombros baixos, mas abre um sorriso com covinhas quando me vê.
— Oi, Srta. Reid. Sou eu de novo.
Esse, em específico, aparece no meu escritório mais vezes do que
todas as outras crianças juntas. Estou quase me apegando ao garoto. Ele tem
um coração gentil e olhos castanhos de cachorrinho, mas tem também um
sério problema de comportamento.
— O que aconteceu hoje?
— Deveres — abre a mochila. — Estou com um monte atrasado.
— Não deveria fazer em casa?
Ele é um menino bem cuidado, só que as aparências às vezes
enganam.
Fico atenta para qualquer sinal de alerta em sua resposta. Ele só dá
de ombros, imperturbável.
— Não consigo fazer lá, então minto para minha mãe — deixa
escapar, depois cobre a boca, arregalando os olhos. — Você pode fingir que
não disse isso?
Sorrio. Eu poderia, facilmente. A quantidade de conteúdo que
essas crianças consomem é surreal e, francamente, quem pode culpá-los por
querer alguma folga? Estou mais curiosa com o motivo de não conseguir.
Por quê? As provas dele não são ruins.
Menos de uma hora vendo o pequeno lutar com a lição de inglês,
tenho uma resposta.
VINCE
— Sim? — Atendo o telefone. Por que Paul não pode mandar uma
mensagem? Meu irmão é um homem das cavernas.
— Você vai pegar o Justin na escola hoje? — Pergunta, apesar de
saber a resposta. Claro, quinta-feira é meu dia.
— Vou, precisa de alguma coisa?
— A diretoria ligou.
Merda.
— O que ele fez dessa vez? — Pergunto, para me preparar. Talvez
tenha de comprar uma cesta de biscoitos para alguma professora azarada.
— Não disseram. Só pediram para passar no escritório da
conselheira, ele estará esperando lá. Estou fora da cidade, e Cassie…
ocupada.
Cassie nunca está ocupada para o filho e provavelmente vai matar
Paul por ele não ter avisado, mas entendo, meu irmão sempre insiste para
que ela tire algum tempo para si mesma. Cuidar do moleque é exaustivo.
Deixo o carro no estacionamento. Se eu buscasse Justin na moto,
minha cunhada iria me matar.
Ando pelos corredores, que já estão vazios, procurando pela sala
doze. A escola é toda colorida, muito mais legal do que quando eu era
moleque. Paro em frente a um mural, distraído por todas as mãozinhas
pintadas na parede. Deve ter dado um trabalho da porra, mas aposto que foi
divertido.
Maneiro.
Entro, com as mãos nos bolsos e preparando um pedido de
desculpas, mas paro para ouvir a conversa, tentando me lembrar quem é a
professora.
— Eu não fiz por mal — meu sobrinho, usando sua voz mais doce,
diz.
Droga.
Sempre é assim, nunca é por mal.
— Eu sei que não — a mulher responde, calma. — Não se
preocupe, você não está em problemas.
Isso seria uma novidade.
É bem legal e inocente da parte dela, deve ser novata. Aproveito
enquanto ela está acreditando nas boas intenções de Justin para entrar,
impedindo que ele fale alguma bobagem e piore sua situação.
Meus olhos estão no chão, então primeiro eu noto os pés. Uma
bota com saltos curtos, que sobem e caralho. São roupas perfeitamente
apropriadas para uma professora, calças escuras e uma camisa branca, que
nem é justa. Mas porra, ficam bem nela. Muito bem. O problema é quando
chego no rosto.
As sobrancelhas grossas emoldurando aquele olhar de gato.
Ela.
Chamou a polícia duas semanas atrás e nunca mais a vi de novo.
Às vezes topo com o carro velho estacionado na frente do apartamento, só
que nada da dona. Até aumentei a música para ver se ela iria lá no bar, mas
não importa o quanto o som esteja alto, a morena nunca mais voltou. Fiquei
decepcionado.
Não digo nada, espero para ver como vai reagir.
— Olá — cumprimenta, sem deixar a expressão vacilar. — Senhor
Warren?
É uma reação nula. Ela não está se lembrando? Não é como se eu
fosse esquecível.
— Vince — corrijo. — Vim buscar o Justin. E aí, parceiro?
Meu sobrinho me acena com a energia baixa. Acanhado.
Que inferno é esse?
— O que houve? — Pergunto, preocupado. — O que aconteceu
com ele?
— Nada demais — a mulher responde, dando um sorriso para
Justin — você pode ir pegar suas coisas? Preciso conversar com seu pai.
— Tio — esclareço, dando um murrinho nos ombros do carinha.
— Meu irmão pediu para que eu viesse buscá-lo.
Ela concorda com a cabeça, indiferente.
— Tudo bem, então — levanta e fecha a porta, exatamente como o
início de um filme pornô.
Ou a cena de um homicídio. Não gosto da probabilidade.
— Desculpe, preciso perguntar. Eu tenho permissão para falar
sobre isso com o senhor, mas você se sente confortável em discutir questões
de aprendizado do Justin?
Senhor? Eu só tenho trinta e um.
— Me chame de Vince. Questões de aprendizado? Como assim?
— Bem, então sente-se — acena para uma carteira que fica
próxima à mesa dela. Eu claramente não caibo ali, é ridículo. Por que está
agindo como se não me conhecesse?
— De pé está perfeito. Pode falar, Sra…?
— Amélia Reid — completa, ao invés de corrigir para senhorita.
Hum.
Amélia. É bonito.
— Muito bem, eu sou a conselheira da escola. Justin tem vindo
aqui desde semana passada por comportamentos que está tendo na sala de
aula.
Quando eu estudava, a conselheira era uma senhora de setenta anos
e cabelos grisalhos. Todos corríamos dela. Amélia? Os moleques devem
correr para ela. Puta erro da diretoria.
— Senhor Warren?
— Vince. — Que mulher teimosa. — Você estava falando de
problemas de comportamento. O Justin é… bem, Justin. O que ele fez?
— Nada que uma criança na idade dele não faria, mas de toda
forma, eu venho o acompanhando e acredito que possa ter um transtorno
relacionado à atenção. Gostaria de fazer alguns testes para fechar um
diagnóstico.
— Transtorno? Tipo doença? — Pergunto muito alto e fecho a
cara. — Isso é ridículo, ele tem nove anos, é perfeito.
Transtornado é o caralho.
— Sim, ele é — concorda. — Os transtornos de desenvolvimento
não são um defeito.
Ela não está entendendo. Não há nada de errado com meu
sobrinho.
— Ele é bem inteligente — insisto. — Já consegue dirigir,
acredita? É só colocar uma chave nas mãos dele.
— Isso é… preocupante — fala com o nariz enrugado.
Merda.
— E concordo, é uma boa criança. Um diagnóstico não vai mudar
quem seu sobrinho é, só vai ajudá-lo com algumas dificuldades.
— Explique melhor.
— Desconfio que Justin possa ter algo que se chama TDAH — vou
interromper, mas ela levanta o dedo. — Veja, é uma condição que faz com
que ele seja bem ativo e tenha dificuldade em se concentrar. Não pense
como doença, mas sim como uma característica.
— Então por que você quer consertar ele?
— Não usaria a palavra consertar, apesar de que, eventualmente,
medicação pode ser utilizada. No momento, eu só estou preocupada em
como deve ser difícil para ele ficar o dia todo dentro de uma sala de aula.
Hum… sim, é difícil para ele.
Não tenho ideia do que fazer daqui.
— Você disse que iria testá-lo?
— Algumas atividades simples, principalmente perguntas.
Brincadeiras também. Gostaria de saber a respeito da gravidez, então
preciso que a mãe me encontre durante a semana. — Cassie vai surtar. —
Irei ministrar todos no ambiente escolar, no máximo iremos até o jardim.
Parece inofensivo.
Amélia não tenta ser convincente, só que ela é, porque fala essas
coisas com clareza e segurança. Assertiva. Não há nenhuma palavra
desperdiçada saindo da sua boca.
— Certo — concordo. — Pode… bem, vou falar com os pais.
Não ousaria tomar uma decisão dessas sozinho. Perderia minhas
bolas, e gosto muito delas.
— Tudo bem — ela assente e levanta, caminhando lentamente para
a porta. — Justin? Venha, seu tio vai te levar para casa.
Enquanto o pequeno procura algo que perdeu, correndo como um
furacão, olho disfarçadamente para Amélia. Eu nunca vi olhos verdes assim
na vida. Tem uma cor profunda e escura, com riscos em tons de musgo.
Impressionante, para combinar com o resto dela.
Conselheira em uma escola infantil, quem diria? Não é que tenha a
cara ruim, não é isso, mas também não é alegre. Seu rosto é muito
expressivo, e não é de muitos amigos.
Ou talvez, naquela noite, ela só estivesse tendo um dia ruim.
— Nos conhecemos antes — digo abrupto. — Naquele dia…
Engulo o que ia dizer. Por falar em expressões, a do momento é
assassina.
Ela lembra.
03
AMÉLIA
Os Warren de New Castle. Pelo que ouvi, são uma família loira e
imponente, que está aqui desde o início dos tempos. Odeio dois deles.
Finjo prestar atenção em Paul gritando comigo e com minha chefe.
Faço uma lista mental das bandas que vou ouvir mais tarde, quando estiver
em casa tentando ignorar as músicas bregas do bar. Ele não se parece nada
com o irmão. É uma versão séria, rude e, pelo visto, temperamental. Tão
bonito quanto, isso é inegável. Dividem os mesmos olhos azuis e cabelos
loiros escuros.
Seu tom de voz não me impressiona. Não me assusta. A verdade é
que, além de psicologia, também tenho diploma em como lidar com homens
idiotas que se acham os donos do mundo. Ele teria que se esforçar muito
para me amedrontar.
— Você — aponta para o meu peito com uma voz cheia de
reprovação. — Se for mãe um dia, saberá o quão péssima é sua atitude,
Srta. Reid.
Certo. É gritar com a pessoa que cuida do seu filho que é uma
ótima atitude. Imbecil. Eu nunca brigaria com alguém que pode acabar
passando tempo com Rorie.
— Tenho certeza de que Amélia teve bons motivos, Sr. Warren —
diz a diretora com cautela. Não é uma defesa, está me jogando aos lobos,
esperando que eu também me explique. Ela é bastante arrogante o tempo
inteiro, mas quando algum dos pais, cheios de grana, aparece, vira uma
puxa-saco medrosa. O dinheiro realmente compra a dignidade das pessoas.
— Bem, com o tempo que passei com Justin, vi características
comuns em crianças com déficit de atenção e hiperatividade — resisto a dar
de ombros, mas mantenho a voz indiferente. — Tendo um profissional
capacitado na escola, fazer um teste pareceu bastante lógico.
Seu idiota.
Os dois claramente esperam que eu continue me explicando, mas é
tudo o que tenho a dizer. Se eu fosse uma pessoa melhor, teria insistido.
Apostaria tudo o que tenho no banco – exatos cinquenta dólares – que
Justin possui déficit de atenção, e por não estar em um ambiente adaptado,
se comporta de forma muito energética, impulsiva e irritada. Ele não faz por
mal, sei disso. Deve estar sofrendo com os estímulos errados e, quanto mais
agitado fica, mais impacientes as professoras respondem. Só que, adorável
como é, não há a menor chance de eu gastar energia com alguém como
Paul.
— Certo — a diretora limpa a garganta. Paul me encara, irritado
por eu não tentar agradá-lo o suficiente. Que vá para o inferno. — Mais
alguma coisa, Sr. Warren?
— Não — nega com a voz gelada. — Isso é tudo.
Ela o acompanha até a porta, pedindo desculpas e se colocando à
disposição para qualquer dúvida. Nesse momento, respeito-a muito pouco.
A mulher volta com outra postura e preparo meus ouvidos para um sermão.
— Amélia.
Há tanta desaprovação quanto respeito em seus olhos, mas,
principalmente, muito cansaço.
Tudo bem, estar na posição dela não deve ser agradável.
— Veja, os pais aqui têm certa dificuldade em aceitar que os filhos
precisem de ajuda. — Não brinca. — Fui eu quem conversei com Shawn
antes de você se inscrever, sabe?
Ela está se referindo ao professor que falou comigo a respeito da
vaga.
— Ok — concordo, estreitando os olhos.
— Eu disse que precisava de alguém com pulso firme. Quase ri
quando ele recomendou uma recém-formada com vinte e quatro anos.
— Justo — murmuro, confusa.
— Aceite o elogio, Srta. Reid.
Oh.
Aperto minha gargantilha, nervosa. Sinto-me muito culpada pelos
pensamentos anteriores e bastante envergonhada com o elogio.
Amélia Reid, sempre na defensiva.
— Obrigada — agradeço, sem graça.

VINCE
O jantar de hoje tem quinze pratos. Acho que é um novo recorde
para minha mãe, considerando que é uma terça-feira. Trabalho nos fins de
semana, para sua consternação muito vocal, então ela decidiu que terças
seriam o dia oficial para a reunião em família.
Acho que todos odiamos, mas fazemos isso por ela.
— Como está sendo o progresso do Justin na terapia? — minha
mãe pergunta, por baixo da taça de vinho.
— Não é terapia, mãe — Paul corrige. — E ele está indo bem.
— A conselheira é adorável — Cassie acrescenta, evitando uma
discussão. — Eu gosto dela, e Justin está apaixonado.
Adorável?
Amélia pode ser muitas coisas, mas não essa.
— Mesmo depois de tudo, trata ele tão bem — fala, olhando
cerrado para meu irmão. Paul se encolhe sob a expressão da esposa.
O que?
— Como assim? — intrometo, curioso. — Estão falando sobre
Amélia?
— Você quis dizer Srta. Reid — minha mãe corrige, e reviro os
olhos.
— Não, tenho certeza de que quis dizer Amélia.
A morena que me odeia sem motivo aparente.
— Paul foi um idiota com ela — é Cassie quem responde,
desgostosa. — Achou que ela queria medicar Justin para mantê-lo quieto.
Caralho.
Eu deveria saber que isso aconteceria depois de o puxar para um
canto e dizer que a orientadora falou algo sobre um transtorno que faz
Justin ser esse pequeno demônio que tanto amamos. Meu irmão
provavelmente foi para cima da mulher soltando os cachorros.
— Porra, eu disse que ela queria ajudar!
— Cuidado com a linguagem na mesa, Vincent — minha mãe
repreende. Engulo uma má resposta. — E a Srta. Reid compreendeu a
situação, me parece uma mulher muito… racional.
— Você falou com ela também?
— É claro que sim, fui me apresentar apropriadamente.
Olho para Cassie, a única aqui que tem algum pingo de bom senso.
Ela dá de ombros, deve ter xingado Paul a beça no privado. Bom. Espero
que tenha feito ele dormir no sofá.
— Consegui contato com a faculdade em Seattle onde ela se
formou, e me disseram que era uma excelente estudante — continua a
mulher que me pôs no mundo. — Não tem nenhuma experiência, mas é
justo, com a idade que tem.
Caralho.
— Faculdade — repito. — Não sei porque estou surpreso, é claro
que você ligou. Verificou seus antecedentes também?
— Claro que não! A escola nunca contrataria…
— Eu verifiquei — Paul interrompe, bastante arrogante. — Preciso
conhecer a mulher que está tratando do meu filho. É curioso ela escolher
logo Justin, não acha?
— Sim, é curioso que uma mulher que se mudou há três semanas
pôde ajudar seu filho quando nenhum de nós conseguiu em nove anos.
Minha voz sai afiada, e o silêncio que se segue faz com que me
arrependa, porque acerto o alvo errado e Cassie se encolhe
milimetricamente.
— Eu não quis dizer…
— Três semanas? Isso é bastante específico. De onde a conhece?
Golpe baixo.
Filho da puta.
— Ela é minha vizinha, está morando ao lado do bar.
— A que chamou a polícia?
— Polícia? — Minha mãe exclama, mordendo a isca. — O que,
em nome de Deus, você fez, Vincent?
Desgraçado.
Paul sorri para si mesmo, muito satisfeito.
— Você sabia disso, Grayson?
Meu pai, o velho Warren, levanta os olhos do jornal pela primeira
vez na noite.
— Ninguém me chamou para pagar fiança, querida — murmura, e
volta para suas notícias. Gostaria de ter essa paz de espírito.
— Eu não fui preso — suspiro, cansado.
— É bom que não — emenda, deixando claro que seria inaceitável.
Bem, tudo para ela é, mas odeio o tom. Minha mãe não hesitaria em fazer
da vida de Amélia um inferno, caso ache que ela me causou algum
problema. É um comportamento horrível, e me sinto estranhamente protetor
em relação a ela.
— Foi por causa do som. Amélia alugou o apartamento sem saber
que havia um bar ao lado.
— Oh — compreende, e volta a reprovação contra mim, como
sabia que aconteceria. — Sempre achei de muito mau gosto um bar naquela
localização.
Ela odeia o bar. Mesmo que seja um bom investimento, acha que é
simples demais para um Warren.
— Por que ainda fazemos isso, mesmo? — Pergunto a ninguém em
particular. — Masoquismo?
— Porque somos família.
Cassie.
Ela é a melhor de nós, sem dúvidas. Paul deu sorte. Sempre
considerei Cassie como irmã, sendo ela gêmea daquele maluco do Johan.
Ela era agarrada no Johan, que era agarrado em mim e, de alguma forma,
isso a colocou no radar de Paul. Quis matar ele anos atrás, quando achei que
estava só a enrolando. É engraçado, olhando pela perspectiva de hoje:
Cassie o tem na palma da mão.
— Não sei, tenho certeza de que me acharam no lixo.
04
AMÉLIA
Estou lendo relatórios de desempenho quando Justin entra e se
senta na carteira à minha frente como se fosse seu lugar de costume. O que
não é completamente falso. Temos sessões duas vezes por semana desde
que fechei seu diagnóstico, mas é difícil passar um dia sem que ele arranje
um jeito de vir parar na minha sala.
Meu paciente, Justin.
A mãe dele, uma loira baixinha com o sorriso gentil, veio com Paul
e, após meia hora pedindo desculpas pelo marido, os dois se sentaram para
ouvir o que eu tinha a dizer. Expliquei as características e o tratamento.
Ofereci encontrar o contato de outro profissional, para cruzarmos
percepções. Cassie negou, garantindo que confiava em mim.
Não tenho a menor dúvida de que levaram Justin a um especialista
em Denver, até porque foi a primeira coisa que o menino contou quando me
encontrou, dois dias depois. Tudo bem, acho que faria o mesmo se fosse
com Rorie. De toda forma, testes foram feitos, e agora Justin é oficialmente
meu paciente.
É uma superdosagem de Warren, até mesmo a avó dele veio para
conversar comigo. Esquisitos. Ou talvez seja apenas como é ter uma
família. Eu não saberia dizer.
— Aconteceu alguma coisa?
Precisamos pelo menos fingir que há um pretexto para ele sair da
sala de aula fora do horário.
— A professora disse que eu estava incomodando a turma — dá de
ombros. — Então, eu vim pra cá.
Estreito os olhos.
— Você, por acaso, não fez isso de propósito, fez? — As
bochechas do garoto ficam em um tom forte de rosa. — Justin.
— Desculpe, é que eu queria ver você — lamenta, piscando os
adoráveis olhos grandes.
Droga. Tenho um fraco por ele. É ridículo, sei disso, mas mudar
para New Castle não foi exatamente o que estava esperando. Quer dizer,
sim, a cidade é linda e as ruas são tranquilas. Só não cheguei à fase da
comunidade acolhedora. Sempre tive muita dificuldade em fazer contato
com pessoas no geral e achei que seria diferente aqui. Todos são amigáveis
uns com os outros, mas não comigo. Me sinto uma estranha, olhando de
fora. Mas há Justin, com seu sorriso sem vergonha e voz doce.
— Tudo bem, eu te cubro hoje — concedo, sabendo que estou
sendo emocionalmente manipulada por uma criança. — Mas não faça isso
de novo, ok? Do contrário, você não vai conseguir acompanhar a turma.
Muito animado, abre os livros e começa a estudar. Volto para meus
relatórios. Dura dois minutos.
— Não faz sentido — aponta para o livro. — Por que preciso
aprender a fazer conta? Eu não uso isso!
— Talvez no futuro? — Sabe, para contar seus milhões e tudo
mais.
— Nah, vou ser jogador de futebol — fala com convicção. —
Como meu tio.
Ele está falando sobre Vince. Nas suas horas livres, meu vizinho dá
aulas de futebol americano para crianças.
— Por que você não gosta dele? — Pergunta, perspicaz. Devo ter
fechado o rosto.
— Eu não… desgosto dele — respondo rápido.
Não é mentira. Seu pai? Odeio absolutamente. Tio? Um
pouquinho, mas só porque sou injusta. Tive de comprar fones de ouvido
para Rorie e custaram trezentos dólares. Infelizmente, não pude comprar
um para mim também, então alguns dias por semana passo a noite em claro,
só para a bebê acordar às seis da manhã com toda a energia do mundo.
O que, honestamente, não é problema de Vince.
— Hum — murmura. — Ele é legal. Está passando por um
momento difícil porque Sarah foi embora, então não o odeie.
— Sarah? É a namorada dele?
Ninguém pode me culpar por ser um pouco curiosa.
— Acho que sim — rabisca o caderno. — Ouvi minha mãe
conversando com papai quando achou que eu não estava ouvindo.
Ex-namorada, já que foi embora.
— Você tem? Namorado?
— Não.
— Mas poderia ter.
Engasgo, ficando com o rosto quente.
Justin está me arrumando para o tio dele?
— Você poderia ser minha namorada.
Ah, não.

VINCE
Ontem à noite, após o agradável jantar em família, minha cunhada,
com olhos espertos, perguntou se eu não poderia buscar Justin novamente.
Ela viu o quanto fiquei perturbado ao saber que Paul descontou a frustração
em Amélia.
Dizendo a mim mesmo que foi culpa minha – já que foi – entro no
estacionamento da escola. Nem tenho trabalho para procurar, ela e Justin
estão conversando perto de uma árvore.
A visão me deixa com a garganta seca. Os jeans abraçam suas
curvas de forma majestosa. Não são muitas, ela é uma mulher magra, com
pernas longas e abdômen plano. Com a cintura fina, a curva suave no
quadril fica perfeita para encaixar as mãos. Os seios? Jesus Cristo, inchados
e…
— Tio!
Aceno com o queixo e me aproximo com as mãos no bolso. O
sorriso genuíno de Amélia se transforma em um olhar irritado antes de
voltar ao rosto sério. O que ela tem contra mim? Tirando a música, e está
além do razoável pedir silêncio, eu fui legal.
Deve ser por causa de Paul, aquele empata foda.
— Srta. Reid — cumprimento com um sorriso grande.
Ficaria satisfeito com um suspiro impaciente.
Nada.
— Cara, me espere no carro um minuto, sim?
Entrego as chaves ao meu sobrinho. Isso está ficando ridículo. Eu
não sei por que ligo, mas eu ligo.
Justin hesita, me olhando com a cara fechada. Não quer deixar
Amélia comigo? O que, a mulher falou mal de mim para ele?
— Ela é minha namorada, ouviu? — avisa, com uma marra
inusitada. Amélia arregala os olhos e amaldiçoa, algo que parece muito com
“pelo amor de Deus”.
Esse pequeno fura-olho.
— Não, Justin. Eu não sou, e você não pode dizer isso para as
pessoas, tudo bem?
O carinha murcha por inteiro.
— Você não gosta de mim? — lamenta, com sentimentos feridos.
— Claro que sim — suspira, como se já tivesse dito essas palavras
um milhão de vezes. — Mas você é muito novo, além de que sou sua
psicóloga, então… não é para nós.
Escondo o riso. Ela está extremamente desconfortável. Decido
terminar com seu inferno pessoal, que é um Justin obcecado.
— Justin — aponto para o carro. — Por favor. Preciso falar com a
Srta. Reid. Não demoro, ok?
Ele vai, mas não antes de lançar um olhar de aviso, alto e claro.
Trapaceiro.
Eu vi ela primeiro.
Assisto Justin cruzar o estacionamento e entrar no carro. Faço um
joinha e me viro para a conselheira, que está com uma expressão bastante
infeliz.
— Não é incomum — explica, fazendo careta. — Vai passar. É que
provavelmente sou a primeira adulta que não é da família que passa tanto
tempo com ele.
Duvido muito que seja por isso. Ela não tem espelho em casa?
Odeio que ache esteja se explicando. A paixonite de Justin é a
coisa mais natural do mundo. Paul deve ter sido um troglodita.
De repente, tenho uma ligeira vontade de matá-lo.
— Vim aqui pedir desculpas. Sinto muito, Amélia.
— Hum?
— Por causa do meu irmão. Ele foi um idiota porque eu fui idiota.
Acho que não expliquei direito, foi mal.
— Ah, sim — pisca os olhos, surpresa. — Tudo bem, não levei
para o lado pessoal.
Difícil de acreditar.
— De toda forma, sinto muito.
— Obrigada? — agradece, incerta.
Se vira de novo para ir embora.
Mas já?
— Sobre a música… — digo, e Amélia fecha tanto o rosto que me
assusta. — Deus, como você consegue enxergar assim?
— Que?
— Seus olhos quando fica nervosa — aponto para o rosto dela. —
Não deve fazer bem.
Olhos de gato.
— Eu tenho mesmo que ir — diz, balançando a cabeça.
Caralho, que mulher escorregadia.
— É só música, as pessoas são legais… se você passar por lá um
dia, vai ver quanto é inofensivo. Que tal?
A expressão que faz é cômica e me ofende, porque é como se eu
dissesse que quero roubar seu pâncreas. Qual é, não posso ser tão ruim.
— Estou ocupada — responde sem hesitar, nem pensando sobre o
assunto.
05
AMÉLIA
— São as metas para este ano, lembra? Ter dentes e cabelo —
insisto, pensando no que, pelos céus, posso fazer por ela. Acho que os
dentinhos nasceram antes do previsto.
Depois de passar os primeiros meses com Rorie sem surtar, achei
que aguentaria qualquer coisa. Não está sendo o caso. Não mesmo.
— Vamos lá, Rorie. Por favor — imploro. Ela ignora, os pulmões
funcionando plenamente com gritos desesperados. Rorie não é uma
chorona, mas esteve bastante manhosa durante a semana.
Deus, estou exausta. Acho que posso, literalmente, morrer de
cansaço. Não durmo há dias, e quando digo não dormir, quero dizer de
forma alguma. Nem um cochilo. Ontem estacionei o carro na estrada
porque estava com medo de dirigir e ficamos quarenta minutos paradas
enquanto recuperava a atenção.
O próximo grito me faz estremecer e lágrimas me enchem os
olhos.
Odeio isso. Não Rorie – eu a amo a ponto de doer, mas é horrível
me sentir tão impotente e confusa. Odeio fracassar, e estou fracassando.
Minha bebê só tem a mim, e conseguiu uma mãe inapta. Deixo-a no berço,
me afastando como se ela pegasse fogo. Sinto muita culpa para tocá-la
agora. Todo mundo diz que segurar crianças quando se está nervoso só
piora a situação, e se isso ficar um pouco pior, não vou aguentar.
Tento bloquear os gritos. Sei que é horrível, mas preciso de um
segundo. Estou sufocando. Vou para o banheiro e tiro as roupas, entrando
na água gelada. Suspiro longamente, o frio castigando minha pele.
Só estou com sono. É normal.
Respire…
Expire…
Pausa.
Respire…
Eu vou ficar bem, Rorie vai ficar bem. Ela está bem.
Passo dez minutos debaixo do chuveiro, me acalmando com
palavras de autoafirmação. Saio mais calma e visto a primeira coisa que
vejo pela frente. Rorie está fungando, exausta. Pego-a de volta no colo.
— Sinto muito — sussurro, balançando.
Sento na cadeira de balanço que fica perto do berço. Foi uma
indulgência que me permiti com o orçamento limitado, porque adoro ver
minha bebê dormindo.
Aos poucos, sinto o corpinho relaxar, como se um surto fosse tudo
o que precisasse. Ela dormiu? Checo as pálpebras batendo e a respiração
ritmada. Obrigada, Deus. Fecho os olhos, tão animada com a chance de
cochilar que quase choro. Apago imediatamente.
Só que é como piscar os olhos, porque nem registro o sono antes
de um som estrondoso me fazer acordar exaltada.
É sexta-feira, droga. O bar.
Levanto bruscamente, quero pegar os fones de Rorie antes que seus
resmungos virem um choro, mas piso em algo.
Não!
Ela começa a gritar de novo, com toda força. Eu preciso… eu
preciso dos fones. Pisei neles. Tinham ficado no chão depois de Rorie
brincar no tapete. Estão perfeitamente partidos no meio, com uma das
orelhas soltas.
Mas que inferno.
— Não — lamento. — Por favor, não.
Tento acalmar a bebê desesperada, mas nem mesmo consigo ouvi-
la chorando, com a pior música do mundo fazendo até o chão vibrar.

VINCE
Vejo Johan fazendo uma confusão com os pedidos e vou até ele.
Quando me aproximo, percebo que está bêbado como um gambá.
— Caramba, isso aqui hoje está meio morto.
— O bar não está tão ruim.
Me olha com descrença.
— Não está.
Eu amo o Caverna. Foi um recado divino quando, sem saber o que
fazer da vida, me deparei com a placa de venda. Eu, Johan e Cassie
praticamente morávamos aqui quando éramos jovens, já que o antigo dono
não se importava em vender bebidas para menores de idade. Paul era chato
demais para nos acompanhar.
Com a sua compra, não precisei me enfiar nos negócios da família.
Johan tem razão, é sexta-feira, e o ambiente está muito parado.
Preciso cuidar melhor dele. Nesse pensamento, decido esquentar as coisas.
Aumento o volume do som e vou para trás do balcão principal.
— Gente! Vamos lá, a próxima rodada é por conta da casa!

— A morena voltou — diz Johan, e meus olhos se levantam. —


Ela é gostosa.
— Cala a boca — xingo, concordando mentalmente. Ela é.
Bastante. Um fato simples. Não dá a mínima para como aparenta, com o
cabelo úmido e uma roupa que poderia muito bem ser algo de dormir.
Amélia estava dormindo? São nove horas da noite, não dá nem
para falar da lei do silêncio. Quando se aproxima, a energia fica evidente.
Ela está puta.
Não é que eu desgoste dela, mas desde a semana passada pensar
em Amélia me irrita. O que é péssimo, já que a mulher não sai da minha
cabeça. É o mais enervante de tudo: não posso ter ninguém alugando meus
pensamentos por tanto tempo.
Além do mais, não é como se ela tivesse me dirigido alguma
palavra que não estivesse carregada de desdém.
— Olá, boa noite — murmura, evitando fazer contato visual. — Eu
preciso…
— De uma bebida? — interrompo, provocando. — Um ou dois
shots, talvez?
Não acha graça. Que novidade.
— Oh, deixe-me adivinhar, é a música. Você quer que eu desligue
a música — meu tom sai irônico, é inevitável. Eu não sou um sujeito que
trata as pessoas mal, mas ela torna uma tarefa árdua.
Todas as vezes que tentei ser legal, ela me cortou sem hesitar.
— Abaixe — diz, engolindo seco. Seus olhos encontram os meus,
analisando minhas feições. — Só um pouco.
Considero, franzindo o cenho. Hoje é diferente. Amélia está…
pedindo. Não, porra, está quase implorando.
— Por favor, abaixe um pouco a música — reforça.
Encaro o rosto por alguns segundos, os olhos de gato estão
vermelhos. Que porra é essa?
— Qual é, docinho — Dave, tonto e degradável, surge ao lado de
Amélia. — Você é linda, mas não tanto.
Desgraçado.
Fúria estrondosa me invade, e esqueço qualquer pensamento
negativo que estava tendo. Com um braço entre os dois, o impeço de
esbarrar nela, empurrando-o para longe.
— Seu filho da puta — sibilo. — Você vai pedir desculpas. Agora.
— Pessoal! — Grita, chamando a atenção do bar inteiro com a voz
arrastada. Cabeças se viram em nossa direção. — A princesa aqui quer tirar
nossa música! Que vergonha!
Aponta para ela.
— Não seja uma vadia.
Cerro a mandíbula e dou dois passos em sua direção. Mas me
detenho, porque as pessoas começam a vaiar e a situação se espalha como
um incêndio. Gradativamente, três pessoas se tornam vinte, e então todo
mundo berra xingamentos, mandando Amélia embora.
Pela primeira vez na minha vida, odeio essas pessoas. Minha
vontade é mandá-los para o inferno. Com as mãos. Só que já lidei com
multidões antes e, se eu gritar para calarem a boca, vai ficar pior.
Se bem que, se não fizer nada, provavelmente Amélia pegará um
taco de sinuca e quebrará alguns joelhos. Eles merecem, mas não quero que
ela tenha problemas.
Olho para a mulher, esperando a expressão mortífera.
Mas não.
Ela está chorando. Olhos verdes cheios de lágrimas. Isso me
espanta mais do que qualquer coisa, sou pego totalmente de surpresa.
Antes que eu possa dizer algo, ela sai, limpando o rosto com as
mãos.
Assim que me recupero do susto, empurro Dave da minha frente e
a sigo. Eu conheço Amélia pouco, mas sei que não está bem. Ela não é uma
mulher que chora. Ando entre as pessoas e vou para o prédio, subindo as
escadas com passos largos.
O que raios acabou de acontecer? Depois de garantir que Amélia
está melhor, vou quebrar alguém. Dave e quem mais tiver gritado com ela.
Me aproximo do apartamento e percebo que, realmente, a música
está bem alta aqui. É como se estivesse dentro do bar. Merda.
Começo a bater, mas ela não atende. A porta está destrancada e me
vejo abrindo. Eu deveria virar as costas e deixá-la em paz, é a coisa certa a
fazer. A coisa sensata.
Mas e se estiver doente? Em problemas?
Entro.
— Amélia? — Chamo, tentando não parecer um esquisito.
Observo o ambiente ao meu redor. É um bom apartamento, com espaço
decente. Ela não conseguiria outro desses na mesma faixa de preço. Não é
muito decorado, com a maior parte dos móveis práticos e sóbrios. Velhos,
mas bem conservados.
Hum.
Brinquedos, que curioso.
Um bocado de brinquedos coloridos.
No nível de consciência básica, me convenço de que é por causa do
trabalho, mas estou me enganando. Sim, a culpa já rasga na minha cabeça,
peças se encaixando aos poucos quando ouço o lamento destoando do som.
Baixinho e inconfundível.
Outro passo.
Meus olhos detectam um bebê sentado em um cercadinho cor-de-
rosa. É um bebê gordinho e pequeno, que lamenta com suspiros pesados,
fazendo biquinho com os lábios. O rosto está manchado de lágrimas,
deixando a pele avermelhada.
Caralho.
Tenho o instinto de me aproximar e acalmar a garotinha chorosa,
mas me contenho, porque seria loucura.
Um bebê.
Jesus Cristo.
Percebo um movimento na visão periférica, é difícil tirar os olhos
da criança. Meu coração aperta. Quando olho para o lado, vejo Amélia
andando desesperada pelo apartamento, enchendo uma bolsa de coisas. Não
me nota, tenho certeza de que o som a atrapalha até mesmo a raciocinar.
— Amélia? — Falo mais alto. — Ei…
Ela vira na minha direção. As lágrimas cessam e vão para algo
feroz quando vê que estou próximo à bebê.
— Saia.
Levanto as mãos, um gesto automático de paz, e me aproximo para
que ela possa ouvir as desculpas.
Erro meu.
Amélia interpreta errado e, pensando bem, não posso culpá-la.
Naquele instante, seus olhos arregalam e ela vem em minha direção com a
postura ameaçadora. Não entendo até nossos corpos estarem quase se
encostando.
Constato o cintilar das chaves que estão entre seus dedos,
prontíssimas para me furar os olhos. Estive em brigas o suficiente para
antecipar um golpe.
— Se afaste da minha filha — diz entre dentes. — Agora.
Bem, merda.
Ela acha que eu quero machucá-las?
— Eu nunca… — tento garantir, mas dou um passo para trás
quando a vejo se preparar. Ela não irá hesitar em enfiar aquilo em mim.
Os pequenos me amam. Eu sou o melhor tio do mundo, nunca
machucaria uma criança. Mas Amélia não sabe disso. Para ela, eu sou só
um homem que invadiu a casa em que ela está sozinha com a bebê.
— Estou saindo — digo lentamente.
Amélia está confusa e assustada. O barulho ruge nos nossos
ouvidos e tenho de admitir, é irritante pra caralho quando se está fora do
bar.
— Vou desligar a música, me desculpe.
— Vá para o inferno.
06
VINCE
— Você está distraído — Johan aponta por cima do barulho de
crianças correndo. Eu e ele somos treinadores da liga infantil de New
Castle, e estamos fazendo a seleção de pequenos jogadores de futebol
americano.
É mais uma formalidade, todos os garotos que competiram hoje
irão entrar, exatamente como no ano passado. A cidade tem cinquenta mil
habitantes, e a maior parte das crianças vem até aqui para se divertir, não
para jogar sério. Se fosse, estaríamos ferrados.
Quem acha que futebol profissional funciona se você não dedicar a
vida a ele está redondamente enganado. Na minha época, tinha de ir até a
cidade vizinha todos os dias para poder treinar. No ensino médio, fiz parte
da liga menor em Denver. Johan também, já que me seguia por todo canto.
No entanto, o futebol não foi o que escolhemos dedicar a vida.
Johan voltou para New Castle antes de se formar, quando o pai morreu e ele
precisou assumir a oficina da família. No meu caso, não conseguia imaginar
viver na estrada.
New Castle é minha casa.
— Os meninos estão indo bem — respondo, e Johan começa a rir.
— Eles são péssimos.
— Porra, não diga isso — digo, sibilando.
É verdade, mas orelhinhas sensíveis podem ouvir.
— Sei — murmura Johan, desconfiado. — Tem a ver com a
vizinha morena?
Não respondo.
— Você sumiu ontem... deu sorte?
— O quê? Não!
O que aconteceu ontem à noite foi o mais distante de sorte
possível.
— Bem, isso explica o humor — Johan aponta. — O que está
acontecendo? É Sarah?
Falar sobre qualquer outra coisa é melhor do que falar sobre Sarah,
então digo a contragosto:
— Amélia tem uma filha pequena.
Suas sobrancelhas sobem, confuso.
— A morena — lembro. — A vizinha do bar, ela tem um bebê.
— Aí — Faz careta. — Por isso pedia para abaixar o som? Que
fodido, cara.
— É...
— Eu tenho vontade de te socar, e nem conheço ela — interrompe,
divagando. — As pessoas a chamando de vadia daquela forma? Se fosse
minha irmã, eu mataria alguém.
Porra.
Eu já estava mal e tinha até esquecido a parte do vadia.
Ontem, depois de sair do apartamento dela, notei que Amélia
desceu as escadas com a bebê na cintura. Uma noite fria, e as duas vestiam
toucas e casacos pesados.
Eu a segui.
Amélia dirigiu até um motel barato e passou a noite. O lugar é
horrível e perigoso, elas não deveriam estar ali. Então, fiquei vigiando para
garantir que não teriam nenhum problema, como um esquisito batendo na
porta.
Outro, porque eu já tinha feito isso.
Amélia é mãe. É sozinha, suponho, porque, do contrário, o pai teria
ido até o bar e me dado um soco no rosto semanas atrás.
Sozinha, nova na cidade e com uma filha.
Isso faz meu estômago retorcer. Ela engoliu o orgulho e foi pedir
ajuda para mim – eu, que passei o último mês tocando músicas altas. Teve
dias em que eu aumentava o som pensando especificamente nela, esperando
que fosse até lá me xingar.
Culpa provavelmente é o sentimento mais filho da puta que se
pode ter, e estou com muita. Tenho que consertar isso.
— Se eu fosse você...
— Tio! — Ouço a voz de Justin e me viro para procurá-lo. Johan e
eu viramos, na verdade, já que ele também é tio por parte de mãe. Foi por
nosso sobrinho que começamos o time, para início de conversa.
— Ei, carinha — bagunço o cabelo escuro. — Você foi bem lá.
— Eu sei — dá de ombros.
Eu estava sendo gentil, ele não foi tão bem assim. Johan pensa a
mesma coisa e bufa para esconder a risada. Olho com a cara fechada e o
idiota faz sinal de zíper na boca.
— Cadê seus pais? — Pergunto, e Justin aponta o dedo para Cassie
e Paul. Andamos em direção a eles.
Meu sobrinho tagarela sobre cada aspecto da sua semana e,
eventualmente, minha cabeça começa a filtrar as informações. É por isso
que demoro a perceber que ele começa a falar sobre bebês.
— Desculpe, o quê?
É muita coincidência.
— Minha Amélia — repete Justin, como se eu fosse exaustivo. —
A bebê dela não tem cabelo, só um pouco dos lados — faz careta. — É bem
feinha.
Minha Amélia?
Espera, ele sabe?
Sim, até viu a criança. É mesmo careca e desdentada.
— Não fale isso para ela, tudo bem?
— Eu já disse.
Johan e eu gememos ao mesmo tempo. Não deixo as duas
dormirem. Paul gritou com ela. Justin insultou a filha. O que falta? Meu pai
bater no seu carro? Minha mãe jogar pedras quando a vir na rua?
— Bem, não repita — murmuro. — Pelo amor de Deus.
— O que não devemos repetir? — Cassie pergunta, agora que
estamos próximos o suficiente.
— Amélia tem um bebê careca — Justin explica, e acrescenta,
achando a informação relevante — é sem dentes também.
Cassie arregala os olhos.
Vou levar um esporro tão grande.
— Vincent Warren, não acredito...
— Eu não sabia — digo, antes que os gritos comecem. — Jesus,
Cassie, é claro que eu teria abaixado a música se soubesse — olho para
Justin com a cara fechada. — E a bebê não é feinha, é só... um bebê.
Fofo, até.
— Bom, leve flores quando for pedir desculpas.
Concordo, mas depois de ontem à noite, não acho que flores sejam
o suficiente.

AMÉLIA
Caminho alegremente de volta para casa, após passar parte do dia
no parque. Nada como uma crise de choro seguida de seis horas de sono
para regular as emoções. Ontem, eu e Rorie apagamos, exaustas. O mundo
não estava acabando, eu só precisava de um pouco de descanso.
O que tem suas desvantagens – ainda preciso lidar com tudo o que
aconteceu durante a noite, porque parece que meu corpo esqueceu
completamente que estamos em New Castle e não no parque de trailers
onde nasci. Lá, seria perfeitamente aceitável ameaçar alguém com chaves.
Tinha que ser logo Vince?
Tento minimizar a importância do episódio, dizendo a mim mesma
que não preciso pensar a respeito até ser absolutamente necessário… o que
acontece um minuto depois, quando chego na calçada do meu apartamento
e me deparo com a figura grande, olhando para a janela.
Ele.
Junto de um homenzinho animado que conheço muito bem.
— Amélia! Achamos que você tinha ido embora! — Justin
exclama, enquanto eu e seu tio nos encaramos. Vince está segurando um
galho com três rosas vermelhas na mão. São para mim?
Nunca ganhei rosas.
Ele me olha intensamente por bons cinco segundos, então passa a
atenção para a bebê na minha cintura, como se não acreditasse que Rorie é
real. Como imaginei, Vince não sabia.
— Hum, Amélia — o pequeno chama, e me recomponho para lhe
dar atenção.
— Ei, cara — sorrio. — Estou chegando do parque agora.
Eles vieram me visitar? É estranho. O que devo fazer? Não posso
ignorar… certo? Não, óbvio que não.
— Venham, vamos subir — me forço a dizer.
— Não queremos incomodar — são as primeiras palavras de
Vince. Profundas. A voz dele é linda. As palavras também. Agradeço
mentalmente por me dar a chance de recusar a visita. É exatamente por isso
que insisto.
— Imagina. Nós vamos adorar, certo, Rorie?
Além do mais, posso ser o bicho do mato que for, minha filha vai
ter o tipo de vida em que se chama pessoas para entrar na casa, ao invés de
ter vergonha do que se pode encontrar lá.
— Ótimo! — Justin esfrega as mãozinhas e corre escada acima.
Depois, eu e Vince nos encaramos novamente. Gesticulo para que
ele suba antes de mim, uma mania que tenho.
— Acho que você deveria... — aponta para Rorie, desajeitado. —
Porque eu sou mais forte e tal.
— Oi?
Não entendo. Devo ter fechado o rosto em confusão, porque sua
expressão fica muito desconfortável.
— Quer dizer, é claro que é você quem vai levá-la — concorda,
puxando a gola da camisa. — Desculpe.
Ah.
Vince está se oferecendo para carregar Rorie nas escadas. Então,
deve ter se lembrado de ontem, quando surtei.
— Está tudo bem — digo, me sentindo estranhamente tranquila
com a ideia e, mais estranhamente ainda, corando um pouco.
Vou na frente, no fim das contas. Justin já está lá em cima e é
bobagem discutir a respeito disso. Também não quero que ele perceba
minhas bochechas esquentando.
Destranco a porta e nós quatro entramos. O apartamento está um
pouco bagunçado, mas não sujo.
— Posso pegar algo para vocês? Tenho suco de laranja, café e leite.
— Não precisa — Vince diz no mesmo momento em que Justin
responde:
— Pode colocar chocolate no meu leite?
Abro a boca para negar, mas imediatamente ele estende as mãos,
com uma caixa. Chocolates.
Flores e chocolates.
Aliás, flores não entregues, que suponho serem minhas, e
chocolates que usarei para adoçar o leite de Justin. Mas tudo bem.
Vince amaldiçoa, parecendo muito arrependido de ter trazido
companhia. A expressão dolorida faz tudo ficar mais agradável.
— Claro — sorrio, pegando os doces. Esse menino é muito fofo.
Desço Rorie até o carpete, onde ela fica sua coberta cor-de-rosa.
Há um cachorrinho de pelúcia que tenho certeza de que está doida para
balançar. Ela geme, muito feliz, enquanto ajeito no chão. Reviro os olhos.
Que tipo de bebê fica tão feliz em sair do colo da mãe?
— Só um segundo — digo, indo para a cozinha. Meu apartamento
tem uma sala grande e a cozinha fica quase no mesmo espaço, apenas um
balcão separando. — Fiquem à vontade.
— Olha, tio! Ela parece aquele passarinho do desenho! — Justin
exclama, apontando o dedo.
— Justin.
Ele está falando do Piu-Piu?
Não pode... Céus, ele tem razão. Até os cílios grandes.
Olho de esguelha para Vince, ele está com a mão estendida para a
menina, que tenta morder para acalmar as gengivas.
Traidora.
Sente o olhar e vira para mim, deixando o sorriso morrer. É por
conta de ontem? Foi só uma chave, caramba, não é como se eu tivesse pego
uma faca ou algo do gênero.
O desgraçado é lindo, com barba áspera por fazer, o que lhe dá
uma aparência mais bruta. O nariz ligeiramente torto, provavelmente
quebrado em uma briga, não estraga em nada a aparência. Na verdade,
acentua.
Só que é mais do que isso, Vince é carismático, ou seja lá como
esse magnetismo chame.
E eu estou encarando.
Desvio os olhos, me concentrando no chocolate quente.
Quando volto para a sala, entrego a Justin seu leite e a Vince café,
ainda que ele não tenha pedido. Justin está na poltrona e Vince no sofá, o
único lugar sobrando é ao lado dele.
Ele se levanta, sendo ridiculamente cavalheiro, e me sinto mal pela
forma como estou agindo.
Criei uma rivalidade na minha cabeça, provavelmente por causa do
tédio.
— Tudo bem, por favor, fique — peço, e sento no chão, ao lado da
minha bebê.
Penso que o silêncio vai reinar, mas Justin não deixa.
Eu não costumava gostar de crianças, o que é irônico,
considerando que fiz uma tão rápido e que atualmente meu melhor amigo
tem nove anos.
Conversamos sobre futebol americano, que os dois jogam.
Respondo perguntas estranhas que só a cabeça de um garoto dessa idade
pode fazer e fofocamos sobre seus amiguinhos da escola.
Ele está se saindo tão bem com acompanhamento.
Vince interfere vez ou outra, está distraído, encarando um ponto
fixo. Sigo o olhar. São os fones de ouvido. Consegui consertar com uma fita
preta e muita destreza, não havia a menor chance de comprar outro.
Infelizmente, somos pobres. Não é o caso dos Warren. Eu não entendi
direito de onde a fortuna saiu, provavelmente algo chato como seguros ou
mercado de ações.
— Eu gostaria de me desculpar — Vince interrompe o sobrinho,
com uma voz alta e séria. Ver o fone atormenta e parece não conseguir
esperar mais um segundo sequer. — Sinto muito por ontem, aquilo foi
inaceitável. As semanas anteriores também. Por favor, Amélia, me perdoe
pelo comportamento.
Ouço com a respiração suspensa. Espero a desculpa, o “eu não
sabia” ou o fato de que, realisticamente falando, é difícil ter um bar sem
colocar música nos fins de semana. Que eu chamei a polícia e, como o
bêbado nojento bem apontou, entrei no bar sendo uma vadia com todos
eles.
Ele poderia dizer todas essas coisas. Mas não. Só se desculpa, com
os olhos lindos mostrando arrependimento genuíno.
Um metro e noventa, com tatuagens dos braços ao pescoço, barba
perfeitamente desajeitada. Parece um canalha, só que veio com o sobrinho,
para que eu não ficasse intimidada com sua presença.
Trouxe rosas e esqueceu de entregá-las. Tenho certeza de que
ficará envergonhado quando perceber que estão em suas mãos. É um cara
legal.
Sorrio antes de perceber o que estou fazendo.
— Obrigada, Vince.
07
VINCE
— Então, quais são os planos para hoje? — Derek, meu ajudante
do bar, pergunta. Agora, todos na equipe sabem que há um bebê ao lado e
estamos proibidos de extrapolar.
— Música ambiente, expulse os caras que começarem a ficar
agitados. Se alguém falar qualquer coisa sobre Amélia, me chame.
Eu não esqueci o que fizeram com ela, filhos da puta.
— Tenho de sair, em um minuto estou aqui — aviso, depois de
descermos as cadeiras. — Johan deve aparecer também.
Subo as escadas para o apartamento pela terceira vez nesta semana.
Amélia foi legal depois de toda aquela confusão, e levar Justin para pedir
desculpas acabou sendo uma ideia e tanto. Especialmente porque o
endemoniado é muito curioso e, na inocência, fez a Amélia uma bateria de
perguntas.
Ela só se sentou lá e conversou, como se o menino fosse um adulto
em miniatura. Ouvindo disfarçadamente, consegui reunir algumas
informações.
Nascida e criada em Seattle, formou na faculdade um ano atrás. É
completamente ignorante quanto ao futebol americano, prefere hóquei
porque acha patinação no gelo muito mais legal – ofensivo. Não tem uma
cor favorita, odeia o inverno, seus gêneros musicais preferidos são rap e
hip-hop, mas ama música no geral. Exceto as minhas, claro.
Tem apenas vinte e cinco anos, o que é assustadoramente jovem.
Ela não parece fisicamente mais velha, mas aqueles olhos? São
profundos. Têm história.
Não falou nada sobre sua família ou o pai da bebê. Acho que não
está envolvido com a filha. Um idiota.
Bato na porta segurando uma pequena caixa. Ontem, Justin roubou
seus chocolates e, quando lhe entreguei as rosas – estava me despedindo e
ela perguntou, rindo, se eram para ela – estavam murchas e feias.
— Oh, você — exclama, surpresa, mas sem dar muita importância.
Antes que eu lhe diga algo, sou surpreendido com Amélia dando
um passo ao lado e saindo da minha frente, um convite despretensioso para
que eu entre.
A sigo, estranhando.
Estranhando muito.
Ela parou de me odiar?
— Então… — diz, de costas, andando para a cozinha. — Está tudo
bem?
— Está, sim — respondo, sem saber muito como agir. — Onde
está Rorie?
Ela aponta com o queixo para a esquerda. Acompanho com os
olhos.
A bebê está, como da outra vez que a vi, em uma toalha no chão.
Deitada com as perninhas para cima, encarando os pés como se fossem a
coisa mais interessante do mundo.
— Ei, princesa — cumprimento, me aproximando. — Pés legais,
hein?
Ela me ignora, muito focada no que faz.
Hum.
Igualzinha à mãe.
A mãe que, aliás, lê um manual com o nariz franzido. Está de
frente a um banco de madeira. Aproveito para lhe dar uma checada. Veste
um daqueles shorts com suspensórios que chamam de macacão. As pernas
bronzeadas de fora.
Caralho.
De que inferno essa mulher saiu? Mulheres assim não deviam
existir na vida real, só em filmes, revistas e, não sei, meus sonhos.
— O que está fazendo? — pergunto, engolindo seco.
— Consertando o aquecedor — murmura. — Vai esfriar mais
daqui a uns dias.
— Você está consertando?
— Ei, isso é rude — repreende, sem olhar para cima. — O
senhorio está fugindo de mim.
Me pergunto o porquê. Desgraçado.
— Deixe eu dar uma olhada — ando até ela.
— Não precisa. Não pode ser tão difícil.
— Então deixe que eu veja — dou de ombros, fingindo
desinteresse. A verdade é que estou louco para que ela levante o rosto e me
dê atenção.
— Certo… — olha para cima.
Finalmente, porra.
Amélia fica subitamente autoconsciente, pálpebras piscando
confusas. Eu sei que é porque estou encarando como se minha vida
dependesse disso, mas não consigo evitar. É um crime ficar perto dela e não
ver os olhos verde-musgo.
Só que isso a deixa desconfortável.
— Vou conferir Rorie — murmura, doida para sair da minha vista.
Tiro minha jaqueta e tomo seu lugar. Não tenho a menor ideia de
como funcionam aquecedores. Um carro? Deixe comigo que darei um jeito.
Motos? Eu provavelmente poderia ganhar a vida com isso. Aquecedores?
Não.
— Quando parou de funcionar? — grito, depois de meia hora
encarando o aparelho. Pesquisei no celular a marca e os possíveis defeitos,
mas não consegui entender nada.
Não consegui focar em nada.
— Terça-feira — me sobressalto com a voz mais próxima do que
espero. Ela voltou. Amélia está na cozinha, me observando em silêncio.
Quanto tempo ficou aqui?
Tão silenciosa.
Toda linda com os olhos grandes.
— Mas estava fazendo um barulho estranho antes disso. Você
conseguiu?
— Hum… — penso. — Vamos precisar de uma peça.
Não é bem uma mentira. É provável que alguma peça seja
necessária.
— Um difusor — acrescento, agora sim mentindo.
— Oh — suas sobrancelhas sobem. — Onde arranjo um desses?
Droga.
— Não se preocupe, amanhã eu dou um jeito — digo, percebendo
que estou atrasado. Olho para o relógio. Sim, bem atrasado. — Hoje, vocês
deveriam…
Ir para minha casa?
— Vamos vestir roupas quentes — diz, antes que eu faça uma
loucura, como roubar as duas para mim.
— Tem certeza? Não quero vocês em um apartamento gelado.
A afirmação a confunde e aquece suas bochechas.
— Sim, eu tenho — fala com o rosto sério. — Ficaremos bem.
— Certo — concordo, me sentindo… vazio. — Amanhã eu venho
aqui. Às onze está bom?
Eu acabei de me convidar para um almoço. Jesus Cristo, qual é o
meu problema?
— Eu consigo fazer isso — diz, mordendo o canto dos lábios.
Tenho de fechar os olhos, é demais para lidar.
— Eu sei que consegue. Claro que sim, Amélia. Mas me deixe
ajudar.
Os olhos estreitam, desconfiados.
— Por que?
— Estou apenas sendo legal. Não preciso ter um motivo, sabe?
Ela ri, mas o som não está certo. É um riso cansado.
— Ninguém faz nada sem motivo, Vince.
Meu nome fica legal em sua voz. O encanto, no entanto, é
eclipsado pelo fato de Amélia ter essa percepção: a de não acreditar em
bondade genuína. A vida foi tão dura com ela? Não mostro pena, pois não
tenho direito de fazê-lo. É bem triste, mesmo assim.
— Está enganada, Amélia — discordo, mantendo a expressão
arrogante. — Você pensa assim porque não veio para a minha cidade antes.
Ela me olha de uma forma estranha. Profunda. Eu realmente não
consigo distinguir o que ela está pensando, me olhando desse jeito. É como
se tentasse descobrir minhas intenções.
Eu não vim aqui querendo algo dela.
Sentindo-me desconfortável, coço a nuca, lembrando da caixa que
coloquei em cima da mesa. Ao pegar, vejo as rosas.
Achei que ela as tivesse jogado fora. Foi uma vergonha ontem, já
estavam feias quando as entreguei. Agora, ligeiramente piores, em um copo
de água.
— Eu não tinha um vaso — explica, envergonhada.
Não sei distinguir o que tudo isso me provoca. Sinto uma revolta
desgraçada, Amélia merece rosas melhores.
E por Deus, sou eu quem quero dá-las.
Estou ferrado.
— Tenho de descer para o bar.
Ela acena com a cabeça.
Quase me vejo tentando beijá-la.
— Mas eu volto amanhã para arrumar o aquecedor — repito,
tentando voltar à razão. Amélia concorda, mas muda de ideia meio segundo
depois.
— Tem certeza? Você não tem de…
— Sim, tenho certeza — corto antes que ela dê um jeito de sair
disso. Estendo a caixa para ela.
Ela olha como se fosse um escorpião.
Muito arisca.
— Vá em frente — encorajo.
Amélia tira o embrulho das minhas mãos e abre com o toque
incerto. O rosto confuso faz com que nasça uma ruga entre as sobrancelhas.
Espero a reação, torcendo para que não se ofenda ou fique com
raiva. Seria possível? Um segundo se passa. Por que não está dizendo nada?
Odiou? Quase puxo de volta, mas ela olha para cima com um sorriso lindo.
Porra, o sorriso dela ilumina o rosto todo. Ilumina o apartamento.
Homens poderiam se meter em sérios problemas só para conseguir
um sorriso desses.
São dois fones de ouvido com o maior bloqueio sonoro que pude
encontrar. Um verde, que me pareceu uma cor apropriada, e outro amarelo
com patinhas de cachorro nas orelhas, que são a cara de Rorie. Pedi na
internet e quis matar alguém – a mim mesmo – quando vi o preço. Amélia
não parece ter muito dinheiro sobrando e precisou comprar os fones para a
filha.
— São para nós? — Sua animação é quase infantil e totalmente
destoante da seriedade que demonstra na maior parte do tempo.
Isso a faz parecer muito jovem.
Ela é forte e independente. Teimosa e cria uma menininha linda.
Não precisa de ninguém, obviamente não de mim. Mas caralho, o instinto é
ajudá-la de alguma forma. Facilitar sua vida.
— Não irei aumentar a música, prometo. Caso incomode vocês, me
avise, tudo bem?

AMÉLIA
Algumas coisas acontecem quando você é responsável por colocar
uma pessoa no mundo. É ao mesmo tempo incrível e assustador. O amor
mais insano nasce quando uma mulher segura os dedinhos do seu primeiro
filho.
Junto a isso, também vem a culpa. A culpa é avassaladora.
Pelo menos para pessoas como eu, que souberam desde uma idade
muito jovem que o mundo não é exatamente um paraíso. Coisas ruins
acontecem, a vida é dura e, no geral, a humanidade é maldosa. É justo
sujeitar alguém a isso? Provavelmente não. Então, quando tomei a difícil
decisão de ser mãe, prometi que faria o máximo para que a vida de Rorie
fosse boa. Quero dar a ela tudo o que puder, mas o negócio é que não tenho
muita coisa. Somente a mim.
Minha vida é tudo que tenho a lhe oferecer, e dói fisicamente
quando sinto que estou falhando.
Não quero ser como minha mãe, mas tenho que admitir que somos
dolorosamente parecidas. Sozinhas, com um bebê para criar e sem família
nenhuma.
O trailer em que vivíamos sempre tinha um homem casado,
prometendo que deixaria a esposa, ou então o gerente do local onde ela
trabalhava no momento. Às vezes, era um de meus professores. Ela dedicou
a vida aos homens e eu fiquei muito esquecida, a última na lista de
prioridades.
Jurei que não seria assim. Rorie é minha prioridade sempre.
Diferente de mim, ela cresceria segura e amada.
Mas hoje, eu falhei.
Estava preocupada em receber no nosso apartamento o sujeito de
olhos azuis com o sorriso fácil. Fomos ao mercado duas vezes, e pensei que
seria legal ter algo que não fosse fórmula infantil para quando Vince
aparecesse por lá para arrumar nosso aquecedor.
Rorie passou a manhã manhosa e achei que estava tudo bem,
crianças têm dias em que ficam mais chorosas. As horas passaram e ela não
tirou seu cochilo, então atribuí seus choros mais estridentes a isso. Quando
Rorie finalmente dormiu, decidi tomar um banho. Estava me arrumando
distraidamente quando ela acordou aos berros. Quando fui até o berço…
meu Deus, ela estava queimando. Não com uma febre comum, colocar as
mãos na minha filha foi como tocar uma fornalha. Desesperada, a puxei
para o colo, só para sentir que o corpinho pequeno estava todo molengo,
parecendo uma boneca de pano.
A trouxe para perto do peito em pânico. Tremendo
descontroladamente, liguei para a ambulância.
Agora, duas horas depois, observo minha bebê ser perfurada por
uma injeção nas costas frágeis. Punção lombar. O pediatra disse que tem um
grau razoável de certeza de que é meningite.
Paralisia cerebral, perda de audição e visão. Lembro-me de ter lido
superficialmente em um panfleto tempos atrás, essas são apenas algumas
das consequências da infecção por meningite em crianças.
Óbito.
As chances são remotas, mas existem.
Minha menina.
Pego o telefone e faço algo que nunca pensei que faria antes. Algo
que a Amélia de anos atrás levantaria as sobrancelhas em choque.
Peço ajuda.
08
VINCE
— É, cara, acho que você levou um bolo — diz Johan, depois de
batermos na porta de Amélia por dez minutos.
O trouxe porque tem muito mais chances de conseguir consertar o
aquecedor do que eu... e porque isso não é um encontro. Ele segura um
fardo de cervejas enquanto eu carrego a caixa de ferramentas. O carro de
Amélia está na garagem.
Bato outra vez.
Será que está me ignorando de novo? Essa mulher é de lua, ontem
estava sorridente e amigável, agora o quê? Está fingindo que não nos ouve?
— Sim, sem dúvidas, você levou um bolo.
— Ela não… — Johan levanta as sobrancelhas, me incentivando a
continuar, somente para rir às minhas custas depois.
— Cala a boca.
— Você está caidinho, Vince — ri — Talvez seja bom pensar
melhor. Ela é uma mãe solteira, sabe.
Cerro os dentes. Esse filho da mãe.
— E daí?
— Daí — me imita. — Que as regras são diferentes, irmão. Ou é
sério pra caramba, ou é apenas um caso de uma noite.
— Johan.
— Considerando que ela não aceitou suas cantadas, você sabe qual
é a outra opção, né?
Sim. O sério pra caramba, que não posso ter. Eu sei de todas essas
coisas porque pensei como louco, ora em como não consigo tirar Amélia da
cabeça, ora em como eu preciso parar de pensar nela.
— Estou apenas tentando compensar o barulho, ok? Ajudar a
mulher a se ajustar na cidade — minto, irritado. — Porra, ela ajudou com
Justin, e Paul ainda brigou! É o mínimo que podemos fazer.
Remorso é a última coisa que tenho na minha mente.
— Tem certeza?
— Vá se foder, Johan.
— Foi mal, eu não quis dizer assim — desculpa-se, levantando a
mão livre em defesa. — Só estava dizendo…
— Apareça no bar às seis.
Segue-se uma péssima noite. As pessoas chegam e estou sem um
pingo de paciência para ser legal. Risadas me irritam, a música me dá nos
nervos e os pensamentos não são bons. Ser ignorado é ruim e eu não gosto.
Já que as coisas sempre podem piorar, Dave, o desgraçado da
gritaria, aparece.
— Saia — digo com a cara fechada. — Leve esse saco velho para
fora.
— Como?
— Dê o fora.
— Você só pode estar brincando — bufa, rindo nervosamente. —
Eu não vou…
Pego a gola da blusa, fora de mim, lembrando como ele abriu essa
boca nojenta e chamou Amélia de vadia. Filho da puta. Vou quebrar os
dentes desse cara.
— Ei, camarada — Johan intervém. — Vamos nos acalmar, sim?
— Acalmar é o caralho — rebato, e por pouco me impeço de fazer
uma besteira. — Tire esse homem da minha frente.
Meu amigo empurra o velho até o portão, me lançando olhares
surpresos por todo o caminho. Eu sou uma pessoa calma, não faço mais
canalhices do que o normal. Todo mundo sabe disso e provavelmente é o
motivo de uma multidão se juntar ao nosso redor, observando minha
explosão.
— O quê?
Porra, um homem não pode se exaltar uma vez na vida?

Talvez eu esteja mesmo com problemas, ficando doido e obcecado.


Fecho o bar com um comichão incômodo que não dá paz. Chego em casa
quando está quase amanhecendo, e Amélia não sai da minha cabeça.
Assustando a mim mesmo, mas incapaz de me negar, vou até o
apartamento de novo. A essa altura, já apareci por aqui mais vezes do que
fui visitar minha mãe no mês passado. O carro continua exatamente na
mesma posição de ontem, o que, além de me fazer parecer um psicopata por
notar, também significa que ela não saiu. Pode ser que tenha levado Rorie
ao parque no momento em que estivemos aqui e então pensou que eu tinha
furado com ela.
Bato na porta com as mãos inquietas, ajeitando minha jaqueta.
Nada. Após algumas tentativas, saio do lugar frustrado.
Preciso de um café. Para minha sorte, tem uma padaria logo à
frente. Entro e o sininho toca, anunciando minha presença. Peço um café à
garçonete e escolho um bocado de rosquinhas gordurosas. Consigo ver a
janela principal do apartamento daqui; as cortinas estão abertas, então elas
estão acordadas.
— Ei, a Srta. Reid esteve aqui mais cedo? — Pergunto enquanto a
moça passa o cartão de crédito.
— Srta. Reid?
— A morena do apartamento — aponto para o prédio. — Ela tem
uma bebê fofa…
— Você está falando de Amélia e Rorie?
— Exatamente. — Agradeço, pela primeira vez na vida, que as
pessoas nesta cidade sejam naturalmente fofoqueiras. — Eu precisava
entregar algo, mas não estou encontrando ela.
— Ah! Não estão em casa. Ontem… — engole, pensando se deve
dizer algo.
— Ontem…? — Estimulo, impaciente.
Amélia saiu e não voltou? Será que foi ao motel barato outra vez?
Deixei a música bem baixa.
— Uma ambulância parou lá antes do almoço. Eu até queria ir ao
apartamento perguntar se estava tudo bem, mas acho que não chegaram.
Ambulância?
A expressão da garota é triste, muito incomodada. Ela não está
inventando.
— Acidente doméstico, talvez? — Sugere, desconfortável. — Não
sei, espero que não seja nada demais.
Uma ambulância. Amélia... Rorie. Caralho. Subo na moto,
traçando mentalmente quais os caminhos mais rápidos. Chego à avenida
principal, cortando as ruas. Violo uma dúzia de regras de trânsito.
Centro Médico de New Castle. Tento deixar a expressão aliviada,
mas é difícil.
— Olá, posso ajudar?
— Sim, eu preciso ver a… — Amélia ou Rorie? — … paciente
Reid. Ela veio para a emergência esse fim de semana.
— Certo — concorda, me olhando de um jeito estranho. — Seria
Rowan? Rowan Reid?
Rorie. Caralho, é Rorie. Não sei se é pior ou melhor, só torço para
que ambas estejam bem.
— Nós a chamamos de Rorie — explico, sei lá o porquê. — E sim.
Ela é... bem, ela é minha. Onde está?
— Sua? — Pergunta com olhos arregalados.
Qual é o problema dela?
— Sim, minha. Cadê elas?
A recepcionista balança a cabeça, suspirando.
— Você não está lembrando de mim, Vince?
Oh, porra. Presto mais atenção no rosto. Costumava ter o cabelo
mais escuro. Não me recordo o nome, mas... a vi algumas vezes.
Infelizmente, conheço o médico para quem trabalha.
Não é algo que vou me torturar pensando.
— Sim, eu me lembro — resmungo sem paciência. — É um prazer
ver você novamente, só que agora eu preciso entrar.
— Está dizendo que tem uma filha? — Confirma, espantada. — A
bebê, Rowan, você é pai dela?
— Que diferença faz? Meu Deus!
— Não posso te deixar entrar.
Essa infeliz.
— É sério? Caramba, é uma bebê! A mãe dela está sozinha na
cidade, você deve saber o quanto é difícil! Eu não vou…
— Vince, eu não posso te deixar entrar — reforça, com a voz até
mesmo compreensiva.
— Por quê?
— A bebê está em uma área restrita, nem mesmo Amélia poderia
ficar lá, mas… bem, acho que o Dr. Charles ficou com medo dela.
Ah, Jesus, a situação só piora. Aposto que Amélia está surtando,
ainda mais com alguém tentando mantê-la longe de Rorie doente. Quem
está ajudando? Tenho de entrar lá. Foda-se Charles.
— Eu posso te pagar — tento, sem um pingo de vergonha na cara.
— Posso te pagar muito.
— Vince! — Repreende, chocada. Bom, ela é uma mulher íntegra.
Horrível para mim.
— Por favor. Só um pouco.
— Ok — reclama. — Mas você vai ter de trocar essas roupas e
passar por uma higienização. Sério.

AMÉLIA
Eu sou uma pessoa solitária, Rorie não. Ela faz barulhos felizes
quando pessoas se aproximam, levantando os bracinhos para estranhos de
forma quase preocupante. Sociável como eu nunca fui.
E aqui está, isolada.
Céus, eu não posso desmoronar. Minha filha precisa de alguém
forte, e é minha natureza ser qualquer coisa que ela precise.
Mas seria tão mais fácil se eu pudesse lutar efetivamente. Gritar
com alguém, intimidar pessoas, encobrir um homicídio. Ficar quieta quando
sei que ela está com dor, sendo cutucada e perfurada por agulhas é tortura.
Minha bebê descansa no berço, chorando baixinho. O barulho ecoa
pelo quarto gelado, uma música muito triste. O pediatra que está cuidando
dela disse que estão dando remédios para combater a meningite e outros
para tentar acalmar os efeitos. Não há muito mais o que fazer.
Por que não notei antes? Nós somos tão grudadas. A forma como
fui criada, tão displicente, reflete na minha capacidade de cuidar de Rorie
direito?
Não deveria ter vindo para esta cidade, o azar grudou na gente.
New Castle, Colorado, lugar onde as estações são lindas e as pessoas são
felizes. Exceto por nós.
— Ei — ouço alguém chamando e levanto a cabeça, abalada.
Vince.
O que ele está fazendo aqui?
— Eu só vim ver vocês — diz, tendo visto a pergunta no meu
rosto.
Veste um conjunto de roupas médicas que claramente não foram
feitas para um homem do tamanho dele, e também o avental cor-de-rosa,
tão comuns na pediatria. Cabelos bagunçados e expressão dolorida, com as
sobrancelhas sérias. Sem a jaqueta, posso ver as tatuagens nos braços.
São… indescritíveis. Confusas.
Continuo calada, observando. Vince tira os olhos quentes de mim e
dá passos até chegar ao berço de Rorie.
— Eu acabei de tomar um banho de álcool e estou com todas as
vacinas em dia por causa de Justin — explica com os olhos fixos na bebê.
— Ei, princesa, como está? Assustando sua mãe, hum?
Os lamúrios cessam instantaneamente. Apesar de Vince estar
tampando minha visão dela, sei que a bebê está piscando os cílios grandes,
tentando reconhecê-lo.
E então aí está. Guinchos de felicidade.
— Eu também estou muito feliz em ver você, garota — diz com
bastante afeto. Vince lentamente abaixa e a pega no colo, segurando o
corpinho pequeno contra o peitoral. É a coisa mais adorável do mundo.
Rorie arregala os olhos e começa a brincar com a barba, interessada no
novo amigo.
A cena me deixa confusa. Meu coração… ele derrete um pouco,
sim.
— Oi — murmuro, desconfortável com meus sentimentos. Sendo
relembrado da minha presença, Vince amaldiçoa, com vermelho subindo
pelo pescoço.
— Eu deveria ter pedido antes. Sinto muito, não vou fazer de novo
— prepara-se para devolver a bebê ao berço.
— Está tudo bem, você pode segurá-la — sorrio, cansada. — Mas
precisará tomar cuidado depois, e não chegue perto do Justin. Por favor,
meningite não é brincadeira, ela pode ser… pode ser bem perigosa.
— Certo — concorda, me fitando, e volta Rorie para perto.
Não sei o que dizer, nem mesmo o que pensar. Observo em silêncio
e os minutos se passam, com Vince andando de um lado para o outro,
conversando com ela. O homem é bom em conversas com bebês,
tagarelando sem fazer sentido. Na verdade, é melhor que eu. Ele diz quantas
coisas legais poderá fazer quando sair daqui.
Minha garota luta contra o sono, muito encantada com a voz rouca,
mas eventualmente, a cabeça tomba, se encaixando na clavícula de Vince.
Ele ainda balança o corpinho por alguns minutos, depois a coloca de volta
no berço. Se volta para mim e sinto a necessidade de encolher diante da
forma como me olha. É atencioso demais.
Caminha até sentar na poltrona ao lado. Nós quase nos
encostamos.
Não tenho ideia de como reagir.
— E você? Como está?
A sua preocupação me aflige, é algo novo e estranho.
— Estou ok — minto baixinho. — Obrigada por vir até aqui, é
bem legal da sua parte.
Sejamos francos, é muito mais do que legal.
Os olhos claros dançam por cada detalhe do meu rosto, estudando
a expressão. Intimidante de um jeito desconhecido.
— Você não está bem, Amélia — afirma. Não é maldoso, mas
ouvir em voz alta dói. — Você não está bem porque é uma boa mãe, e essa
é uma situação assustadora.
É sim. Minha filha está no hospital e eu estou perdida.
— Não sei o que dizer — falo, cansada demais para discutir. Não
sou boa em compartilhar sentimentos.
— Qualquer coisa. Apenas me diga o que está passando na sua
cabeça.
Ninguém nunca me perguntou isso antes. O que estou pensando?
Que a vida é injusta e a preocupação me consome. Rorie é uma
sobrevivente, herdou isso de mim. Caso não seja o suficiente, também
carrega os genes daquele homem que, péssimo como é, continua sendo um
dos seres mais persistentes do planeta. Ela vai ficar bem, nem lembrará dos
dias que passou presa no hospital.
Só que…
— Não era para ser assim — as palavras saem em um sussurro e
verbalizo meus pensamentos. — Aqui, esta cidade não deveria ser assim.
Eu queria uma vida melhor para nós duas.
Pisco os olhos e balanço a cabeça, me perguntando por que, em
nome de Deus, a primeira vez que resolvi desabafar na vida é com Vince.
Quero pegar minha filha e fugir. Recomeçar de novo.
— Não devia ser assim — repito, com vontade de chorar.
Seguem alguns minutos de silêncio e me pergunto se falei demais.
É muito íntimo para compartilhar? Veio até aqui esperando dar um tapinha
de solidariedade nas costas e ganhou uma mulher bagunçada?
Meus olhos estão no chão. Subo quando sinto a mão pesada em
cima das minhas, que estão pousadas no joelho.
É um toque inesperado, firme e envia arrepios por todo meu corpo.
— As coisas vão melhorar, Amélia — diz com a voz séria. — Eu
prometo.
09
VINCE
O médico, um cara com quem tenho um passado, veio pedir para
que eu saísse. É uma sorte que eu saiba bem das coisas que ele fez durante a
vida e não tive escrúpulos em lembrá-lo.
Depois que disse as palavras proibidas, porque ninguém promete o
que não pode cumprir, a coisa mais estranha aconteceu. Amélia levou uma
mecha dos cabelos atrás da orelha e abaixou o olhar... tímida. Ela corou as
bochechas, tenho certeza. Muito linda, mesmo com as bolsas nos olhos e a
postura tensa.
Ofereci ficar com a Rorie enquanto Amélia ia para casa tomar
banho e descansar um pouco. Foi como oferecer para roubar um banco,
então chegamos a um consenso: eu pegaria roupas e levaria até o hospital.
Agora, percebo o erro.
Ela me entregou suas chaves, sendo a única pessoa que tranca a
porta em New Castle, e ainda estava com os pensamentos longe quando lhe
disse que pegaria roupas. O que, naturalmente, implica em ter de mexer nas
coisas dela.
Entro no quarto. É estranho, Amélia é uma pessoa muito reservada.
Não, reservada não é a palavra certa, é... sozinha. Uma loba solitária.
O que vou levar? Abro o guarda-roupa, e mesmo no quarto dela,
tem um monte de coisas de Rorie. Sorrio quando abro uma gaveta e vejo
que há uma montanha de toucas, de todas as cores e estilos. O sorriso morre
na gaveta seguinte, que está cheia de calcinhas. Calcinhas de Amélia.
Cristo.
Tento controlar meus pensamentos e não prestar muita atenção,
mas é impossível deixar de notar que é o tipo de mulher que usa rendas.
Claro que sim, ela está sempre vestida como se estivesse pronta para agir,
com botas de combate e jaquetas. O negócio é que ela também está sempre
sexy, com acessórios bonitos e uma peça de roupa que ressalta o quanto ela
é gostosa. Amélia sabe disso, sabe o quanto é bonita, dá para ver pela forma
confiante com que se move. A cara de "vá se foder" para todo mundo.
Ignoro a ereção e fecho os olhos, pegando um bocado. Dez? Deve
ser o suficiente. Parto para a próxima fase, muito mais simples, que são as
blusas e calças. Alguns cardigãs. Pijamas? Não sei, coloco os que encontro,
no caso de ela querer ficar confortável.
Enquanto escolho os sutiãs, agora sem reservas, admiro seu bom
gosto. Esbarro em uma caixa de madeira que definitivamente não é da
minha conta. Não é.
Mas sou só um homem, então abro. Prometo a mim mesmo que se
for muito pessoal, deixarei quieto. Só bisbilhotar.
Há uma meinha cor-de-rosa e fotos. Bem, isso é inofensivo.
Primeiro, meus olhos pousam em uma imagem borrada, antiga. Amélia
adolescente está vestindo uma fantasia de fada, com um vestido curto e
asas. Os olhos são travessos. Está tão linda quanto nos dias atuais, apenas o
rosto é mais cheio. Faz pose com os braços para cima ao lado de um sujeito.
Não vou com a cara dele.
A próxima é mais recente, Amélia sentada em uma cadeira de
balanço igualzinha à que tem no quarto de Rorie, com uma barriga
gigantesca. Linda, pelo visto, como em todas as fases da vida. Lê um livro
sem olhar para a câmera. Quem será que tirou essa foto? O pai de Rorie?
Há alguma foto dele aqui? Passo por imagens da bebê, uma de cada mês,
todas datadas do dia quinze. Pelas minhas contas, nasceu em dezembro,
então acabou de fazer seis meses.
A última é de apenas algumas semanas antes de eu conhecê-la.
Uma selfie onde Amélia, sorridente, carrega a filha e, ao lado, segurando a
câmera, está o mesmo cara que estava na foto do Halloween. O que eles
tiveram foi de longo prazo e terminou há pouco, esse imbecil realmente é o
pai da bebê.
Estúpido, que tipo de homem não acompanha a criança para outro
estado? Deixa a mãe se mudar sozinha para um lugar onde não conhece
ninguém? Só um filho da puta.
Ainda assim, aqui está ele, no lugar onde ela guarda as coisas mais
importantes.
Volto à caixa e a ajusto exatamente como a encontrei, na gaveta de
sutiãs, com o humor pior do que quando cheguei aqui.

AMÉLIA
— Então, ela está melhor?
— Não teve febre e está bem hidratada — Dr. Charles responde
pacientemente. — Estou confiante de que vai evoluir muito bem com a
medicação, então vocês poderão ir para casa.
— E as sequelas?
É assustador o número de doenças neurológicas que essa infecção
pode deixar. O pediatra de Rorie tem sido animado e prestativo, jovem e
bem informado.
— Vejo que pesquisou — diz, com um sorriso bonito. — Serei
honesto, é sempre um risco, ela é muito pequena. Faremos testes para
quaisquer complicações periodicamente, mas agora sua filha está tão bem
quanto poderia, Amélia.
Aceno com a cabeça, dividida entre sentir alívio e ser pessimista.
Mesmo quando sairmos daqui, procuraremos sintomas por, pelo menos, um
ano. Equilíbrio, audição e coordenação motora.
— Srta. Reid — a voz de Vince diz em advertência. Não para mim,
mas ao médico. — Ela é mãe da sua paciente, para você, é Srta. Reid.
Ele está falando sério? Meus olhos saltam de um homem para o
outro, analisando a interação. Os lábios do Dr. Charles apertam em uma
linha fina e juro que posso ver o médico arrepiar de raiva. Ambos parecem
aumentar de tamanho, como animais se preparando para enfrentar.
— Certo — diz, engolindo seco e volta para mim. — Srta. Reid,
estarei de volta à tarde.
Dá de costas e sai do quarto, por pouco não esbarrando em Vince
quando passa pela porta.
— O que foi isso? — Pergunto quando Charles está longe o
suficiente. Não estou ofendida, e sim curiosa. Confusa, também.
A postura de Vince relaxa um pouco, mas o rosto continua
fechado. Ele está segurando minha velha mochila e um monte de outras
sacolas. Deixa na mesinha ao lado do armário antes de responder.
— Ele não é um cara legal, Amélia.
— Tipo, um médico ruim? — A menos… fico alerta. — Preciso
me preocupar? Rorie está segura com ele?
— Ei, não. Não é assim, ele é um bom médico — apressa-se em
acalmar, tocando meu braço.
Afasto por puro instinto, não por ser incômodo, mas porque é
inesperado. O rosto dele cai e ele retira a mão.
— Desculpe.
— Tudo bem — concordo, sem graça. — Então...?
— Charlie estava dando em cima de você. É um mulherengo.
Mulherengo? E ele próprio não é? Me chamou para beber nas três
primeiras vezes que nos encontramos.
Levanto as sobrancelhas.
— Comigo é completamente diferente — defende, fazendo careta.
— É sério. Eu não... — pausa o restante da fala, se enrolando. Suspira
pesadamente. — Não quero me aproveitar de você.
— Eu sei.
Desde a primeira vez que o vi, Vince exala uma energia
confortável e boa, do tipo que é raro achar. Não trombei com muitas
pessoas assim ao longo da vida.
— Você sabe?
— Sim — reforço, porque a expressão é tão surpresa que me sinto
mal por ele. — Claro que sim, Vince. Olhe você.
— O que tem?
— Você está em um hospital e nem mesmo me conhece. Você
comprou fones de ouvido para Rorie, me comprou fones de ouvido. Se
desculpou por seu irmão que, sem ofensa, é adulto e foi um idiota.
— Isso não foi nada...
— Acha que eu deixaria ao redor da minha filha alguém que não
seja um "cara legal"? — Faço aspas, começando a achar um tanto inusitado
o rumo desta conversa. Definitivamente, ele não precisa de alguém para
reafirmar sua autoestima.
Além de tudo, por que se preocuparia com o que eu penso?
— É que aquele dia que fui no seu apartamento...
Ah.
O dia que o ameacei para se afastar de Rorie.
Agora, eu estou constrangida.
Sou uma pessoa reativa. Não importa o quanto tente, quando algo
atiça meus instintos, não sei como ficar quieta. É a criança que cresceu em
um parque de trailers dentro de mim.
Lixo branco, é como chamavam as pessoas que viviam lá. Ouvi
essas palavras o suficiente para não me irritar. Mas, às vezes, me
envergonho e odeio o sentimento. Vince não deve estar acostumado com
pessoas que ameaçam outros com chaves. Na minha vizinhança,
aprendemos isso ao invés de aprender a andar de bicicleta.
— Você achou fácil? — Mudo de assunto, apontando para as
sacolas que ele trouxe.
— Ei — ignora a pergunta. — O que foi?
— Hum?
Ele presta muita atenção nas respostas que meu corpo dá, sempre
observando as expressões. Não perde nada.
— Não sei ler você — diz, analisando. — Então me ajude, Amélia.
Diga o que está pensando. De novo.
Tudo bem.
— Não irei me desculpar por aquela noite, mas reconheço que
pode ter sido estranho para você.
— O que quer dizer com isso? Estranho para mim?
— Sim, para você. É uma cidade tranquila, tudo bem. Mas em
outros lugares, Vince, alguém entrando no apartamento assim pode ser
muito perigoso.
Ele concorda, sério. Quando o clima pesa, se força a abrir um
sorriso.
— Você sabe se defender. É bem incrível.
— É?
— Sim, e eu sou um idiota por ter te seguido daquela forma, mas
você estava chorando... — interrompe, puxando a própria orelha. — Eu
queria muito te ver, e não pensei direito.
Esse maldito é adorável.
— Agora, eu trouxe um lanche e não sei você, mas estou morto de
fome. Não se importaria de eu ficar aqui um pouco, certo?
— Não, eu não me importo.
Nem um pouco.
10
AMÉLIA
Vince está passando a noite no hospital.
Ele cochila na poltrona ao lado da minha, os braços grossos
cruzados, respirando audivelmente. Sua expressão é totalmente plácida, sem
uma ruga de incômodo no cenho. A luz fraca do amanhecer destaca os
contornos do seu rosto, seus traços marcantes. O maxilar firme, suavizado
pela tranquilidade do sono, e os cabelos, entre loiro escuro e castanho, são
curtos e grossos. Ele é tão bonito.
O que quer comigo? Tem de haver mais ali, e eu quero saber o que
é.
O choro manhoso interrompe meu devaneio. Rorie remexe os
bracinhos contra meu colo, e é inevitável apertá-la um pouco. Sinto Vince
se mover também, lentamente despertando.
— Você quer que eu a alimente? — Pergunta, ainda confuso de
sono, os olhos pousando nos meus seios. — Esquece — diz com a voz
rouca, e volta a dormir.
Minhas bochechas aquecem junto de um desconforto irritante na
boca do estômago. Estou vestida, eu nem mesmo amamento. Mas ele está
pensando nisso, estou certa.
Está tentando me conquistar? Ser meu amigo? Se sim, por quê?
Ninguém teria coragem de me chamar de amigável.
Certo, nós não temos quinze anos. Vince está sendo legal com a
mulher que foi idiota o suficiente para morar ao lado do seu bar.
Amélia, a jovem que arrasava corações por onde passava, se
aposentou quando o teste de gravidez voltou positivo. Não sou minha mãe
para me encantar pelo primeiro rapaz bonito que coloco os olhos.
Só que é difícil não me sentir um pouco deslumbrada pela forma
como ele age comigo. Paciente, prestativo e gentil. É adorável com minha
filha também, um terreno perigoso.
Olho para Rorie e esfrego o queixo em sua testa. Simples contato,
como os gatos fazem para demonstrar amor. A bebê rebelde toma como
uma invasão e começa a reclamar. Aperto mais, ela é tão fofa.
— Amy, vou pegar um café — a voz de Vince chama minha
atenção, o barulho a acordou de novo.
Amy?
Ele pisca os olhos, tentando se situar no tempo e espaço. Ainda
parcialmente adormecido, não percebe o que está falando.
— Você toma normal ou aqueles enfeitados?
— Normal — murmuro.
Concorda com a cabeça e vem na minha direção. Aproxima-se o
suficiente para eu achar que vai me cumprimentar com um beijo. Prendo a
respiração e fecho os olhos, mas o nariz pousa no meu cabelo e sinto,
petrificada, ele inspirando meu cheiro.
— Bom dia — sussurra, e passa o dedo pela bochecha de Rorie. —
Oi, bebê, seja boazinha com a sua mãe. Eu já volto.
Sai cambaleando no mais absoluto sossego, aqueles que você só
consegue enquanto ainda está no sono REM. Com as barreiras
completamente suspensas.
Então… qual é a dele?

VINCE
Levo meia xícara de café preto para voltar ao normal. Tenho uma
espécie de labirintite que faz com que eu fique letárgico e trocando as
pernas como um filhote de zebra logo que acordo. Esse bocado de cafeína
também me traz razão, a percepção de que eu só não beijei Amélia porque
estava com a mira ruim.
Jesus Cristo, e eu julgando o fodido do Charles por aproveitar a
situação vulnerável e sorrir daquela forma horrorosa. Fiquei indignado
quando cheguei e o vi, arreganhando os dentes como uma hiena.
O desgraçado tem uma mania horrível de mexer com o que não é
da conta dele.
Não que ela seja minha, relembro, amargo. Mas… Amélia não me
afastou. Ficou quietinha, esperando que eu a tocasse.
Amélia queria? Ela me queria?
Ou só está muito cansada, em uma posição completamente frágil e
solitária? Essa mulher não é como as que tenho costume de me envolver, e
não estou falando sobre ser uma jovem mãe. Eu me atrairia por ela de toda
forma, até se eu estivesse em coma, porque Amélia é bonita a esse ponto,
mas além disso… ela é algo diferente. Simplesmente não sei descrever. Seja
o que for, me deixa afetado.
Perigoso.
Checo as mensagens rapidamente. Explico para Johan que terei de
faltar no próximo treino do nosso time de futebol. Mando mensagem para
Justin também, ele é meu jogador de centro.
Enrolo para voltar ao quarto, sou homem o suficiente para admitir
que encará-la pode ser assustador.
Quase a beijei.
Quase.
Inconsciente e por reflexo. No momento parecia a coisa mais
natural do mundo, você acorda e deixa um beijo na mulher ao seu lado.
Agora… não tão aceitável. Vim aqui prestar algum apoio, mas caí no sono e
ela continuou acordada, sem nem mesmo piscar os olhos, tal como faria se
estivesse sozinha.
Grande ajuda.
Abro a porta e Amélia está sentada na poltrona com Rorie agarrada
no estômago, as bochechas grandes da bebê se encostando contra os peitos
da mãe, dormindo pacificamente. Apesar das circunstâncias tristes, daria
uma bela foto. Tiro meu celular e faço algumas antes que ela perceba. São
parecidas, mas é necessário prestar atenção para ver. Rorie é mais clara,
olhos azuis e carequinha, apenas umas penugens puxadas para o loiro
avermelhado, enquanto Amélia é bronzeada, os cabelos são cheios e
escuros. Olhos no verde mais profundo que já vi. Mas o nariz é igualzinho,
assim como o formato da boca.
Lindas.
Minha presença é notada, e o rosto dela levanta. Está cansada.
— Quer me dar ela?
Amélia sorri fracamente. Sinto minha nuca esquentar em reação.
Ajeita a cabeça da bebê para me passar. Tenho experiência em
segurar bebês. Quando Justin nasceu, era como segurar uma bomba, mas
como tio preferido aprendi muito bem. Troco Rorie pelo café e começo a
balançar o pequeno corpo.
— Estaria tudo bem para você se eu ligasse para a escola? —
Pergunto sob seu olhar interessado em me ver com a filha. Eu nino
direitinho.
— Hum?
— Avisar que Rorie está doente e que vai precisar de alguns dias?
Eu já fiz isso. Minha vontade é entrar na vida dela, como uma bola
de demolição, e resolver todos os seus problemas.
— Sim, eu tenho de falar com…
Suas palavras são interrompidas pela porta se abrindo, um homem
alto entra de supetão, com rosto em pânico e respiração pesada.
— Amélia! — Grita, esbaforido, e aumenta três vezes o próprio
tamanho quando detecta minha presença.
Eu conheço esse cara.
É o homem das fotos.
Tento ser racional, apesar da grande vontade de chutar seu saco por
ter abandonado elas. Ele está para vir para cima de mim, mas arregala os
olhos, surpreso por algum motivo.
— Levi — Amélia gagueja. — Você veio.
As palavras me enfurecem muito mais, pois são de pura surpresa.
O homem a ignora, ainda olhando para mim. Mas, estranhamente, o corpo
dele relaxa. Leva as mãos ao peito para estimular a respiração.
— Disseram que o pai da Rorie estava aqui — explica,
gesticulando em direção à recepção. — Quando me apresentei, disseram
que o pai estava aqui, então eu… — pega fôlego. O cara estava correndo?
— Não importa, ignore.
— O quê? — Amélia pergunta com a voz estridente a ponto de
acordar a bebê, que começa a chorar. Volto a sacudi-la, encarando o seu pai.
Agora, isso é constrangedor.
Não tenho ideia de como explicar sem parecer intrometido, louco e
um pouco patético. O homem me avalia com o bebê nos braços e
lentamente abre um sorriso debochado.
— Nada. Nem sei o que estou dizendo.
Amélia estreita os olhos, mas deixa para lá.
Ele me cobriu.
É legal, admito.
— Agora, deixe-me ver a neném — estende os braços — Onde
está meu amor?
Amor dele. Não tão legal.
— Ei, não! — Amélia o impede. — Você não pode ficar aqui, ela
está com meningite.
— Tudo bem, eu tomei as vacinas.
— Não tomou, não.
— Sim, eu tomei — insiste. Ela revira os olhos, impaciente.
— Com quem você acha que está seu cartão, Levi?
O homem, Levi, faz um som chocado.
— Você! Mês passado fui a um check-up e precisei tomar todas de
uma vez! — Acusa, apontando o dedo — Doeu!
— Por que não disse nada? Eu guardo seus documentos desde
sempre!
A interação, inexplicavelmente, me deixa angustiado. Esse não é
um casal que se odeia. Eles estão bem. Talvez não tenham um
relacionamento amoroso, porque pelo visto ele precisa é de uma mãe, mas
têm algum relacionamento.
Deveria me deixar feliz e eu estou tudo, menos feliz.
Meus sentimentos são confusos quando passo Rorie para Amélia
entregar a ele. É irritante assistir.
Por sorte, a enfermeira chega na porta, interrompendo a discussão
deles e minhas divagações mesquinhas.
— Certo, eu entendo que é uma situação difícil, Srta. Reid, mas os
dois não podem ficar. Apenas os pais.
— Não seja assim, linda — Levi decide resolver com charme e
pisca para ela, não respeitando a mãe da filha, bem ao seu lado.
Um idiota.
Aparentemente inofensivo, quase disfuncional, mas um idiota.
— Eu vou — falo, é a solução lógica. — Eles ficam e eu vou.
Quando ninguém diz nada, Levi se distraí com a bebê e Amélia
mexe as mãos de forma nervosa. A enfermeira permanece, esperando que
eu saia.
— Me dê um minuto, sim? — Tenho de ir, mas não sem falar com
Amélia antes.
— Um minuto — avisa, nos deixando a sós.
Bem, a sós com Levi e Rorie.
Dou alguns passos até o corredor, Amélia acompanha um pouco
atrás.
Não me faz bem deixá-las, é como se a gravidade me puxasse para
que ficasse. Um fio intrincado de preocupação, atração e coisas que não
compreendo.
Viro, não quero afastá-la de Rorie por tempo demais. Amélia está a
apenas alguns centímetros de distância, o mais próximo que estivemos
desde que quase a beijei hoje cedo. Cheira a café e shampoo, algo similar a
canela também, muito gostoso.
Os olhos enormes estão vulneráveis e brilhantes. Ela morde os
lábios. Minha vontade é acariciar com a língua aquele exato lugar.
Hipnotizado, é como essa mulher me deixa.
— Rorie vai ficar bem, você vai ficar bem — garanto, desejando
ter palavras mais apropriadas. — Eu vou… hum…
Amélia resolve minha falta de vocabulário. Fica na ponta dos pés
e, em um movimento tímido, deixa um beijo na minha mandíbula.
Leve como o pousar de uma borboleta, mas, caralho, o toque
queima.
11
AMÉLIA
— Não diga nada — advirto-o antecipadamente.
Levi segura Rorie enquanto espia minha conversa com Vince pelas
persianas do quarto. Ele nem mesmo disfarça. Atrevido.
— Isso aí, garota! — exclama, levantando a mão em um toca aqui.
Quando eu ignoro, Rorie bate por mim. O que esse bebê tem contra minha
pessoa? — Sim, amor, estamos orgulhosos da mamãe, não é? Ela precisa
tirar as teias de aranha da sua…
— Levi!
— Eu ia dizer amiguinha.
Não ia, não.
Oh, Deus.
— Então, quem é o bonitão? Por que não disse nada?
— Porque não há nada para dizer.
Meu velho amigo, muito fofoqueiro, levanta as sobrancelhas sem
se importar com minha privacidade. Ele raramente se importa.
— É meu vizinho — espero que a informação seja o suficiente,
mas, ao contrário, os olhos dele saltam de excitação. Até Rorie pula, feliz.
— O do bar? O filho da puta que não desliga o som? O horroroso
que você odeia?
— Ele mesmo.
— Certo, sua estraga-prazeres — resmunga. Ao ver que não direi
mais, e como se uma chave virasse, a expressão e a voz se tornam sérias. —
Me atualize, o que o médico disse?
Ambos olhamos para Rorie.
— Ela está tão bem quanto poderia — parafraseio, me jogando na
poltrona. — Mas muito melhor do que quando chegou. Sem febre desde
ontem.
— Tão bem quanto poderia? Ele usou essas palavras?
— Eu sei, certo? Quem diabos fala assim?
Nós dois apreciamos palavras diretas.
— Idiotas — responde, tentando sentar na poltrona ao lado. A
poltrona de Vince.
No segundo em que ele se curva, Rorie começa a reclamar,
nervosa. Ele sempre a mimou demais.
É um bom padrinho.
Quando o liguei alguns dias atrás, eu só queria falar com alguém.
Extravasar o pânico que senti, o medo de quebrar sob a pressão.
Nunca me incomodou estar sozinha antes, mas naquele momento,
doeu a percepção de que o mundo iria despedaçar e eu seria a única pessoa
a notar. Só que havia Levi, a única constante que tenho na vida.
Deus sabe o quanto não posso contar com mais ninguém.
12
VINCE
Demorou uma vida para que a semana passasse.
Nos dias posteriores à chegada de Levi, estudei aquecedores e, na
quarta-feira, fui ao apartamento de Amélia para arrumar o dela. Desde
então, nada. Justin notou a ausência dela e me ligou, perguntando se eu
tinha algo a ver com isso. O moleque agiu como se eu tivesse roubado a
namorada dele.
Eu entendo completamente. Me sinto assim em relação a Levi.
Não devia ser assim.
Essas palavras martelam na minha cabeça vez ou outra, foram o
que ela me disse quando cheguei ao hospital, muito magoada em relação à
cidade. Decepcionada. E se Levi a convencer a ir embora? Me parece que
Amélia não hesitaria em juntar as malas e sair sem olhar para trás.
Pensar nisso é… ruim.
Não tenho o número de Amélia, mas soube por meios escusos –
fofocas – que Rorie saiu do hospital há dois dias, então vou até lá. Tenho de
entregar as chaves também, o que é uma desculpa tão boa que nem acredito
que não tenha sido intencional.
Irei vê-las. É isso.
Quando a tarde chega, algum tempo antes da hora de abrir o bar,
subo as escadas. Bato, torcendo para que não seja Levi quem atenda. Ele
ainda está aqui? Vai ficar? Meu Deus, o cara pode até mesmo estar tentando
reconquistar ela. A mera ideia me faz odiá-lo.
Hesito um momento antes de bater de novo, não dei tempo
suficiente para ninguém vir e não quero soar ansioso. Quando levanto a
mão, a porta é aberta e um cheiro de comida caseira vem junto com o ar. É
delicioso, mas não tanto quanto a mulher à minha frente.
Está sorridente, feliz. Embora fique muito bonita com a usual
carranca, esse sorriso lindo a transforma em algo além.
— Vince — o sorriso aumenta. — Entre.
Me sinto um pouco fora de lugar, mas ando atrás dela, chegando à
sala. A televisão está ligada em um videoclipe de rap que, minha nossa, não
é apropriado para crianças.
— Vim ver como vocês estão.
— Oh — exclama, com as bochechas esquentando. — Rorie vai
adorar — diz e faz careta, acrescentando — e eu. Vou adorar também.
Ela está nervosa? Interessante.
Meu coração acelera e verifico o ambiente, procurando a bebê.
Encontro-a no sofá. Com Levi. Levanto o queixo para cumprimentá-lo,
voltando minha atenção para mexer com Rorie.
— Olá, garota — os olhos arregalados piscam, seguindo minha
voz. — Olhe, que menina linda você é. Como está, hum? Curtindo um
pouco de Tupac¹?
A criança estende as mãozinhas pequenas ao mesmo tempo que
joga o corpo para frente, claramente pedindo para eu pegá-la. Um sorriso
orgulhoso enche meus lábios, e não desaparece nem ante a possibilidade de
levar um soco do pai dela.
— Ei, eu estava com saudades de você — digo, tirando-a
despretensiosamente do colo de Levi. Ele vai ter que perdoar, mas é um
crime ignorar bebês e seus bracinhos levantados.
E eu realmente gosto dessa bebê. Ela é da Amélia.
— Sua pequena traiçoeira! — O homem reclama, com os
sentimentos machucados. — Não acredito nisso! Ams, sua filha! Ela é uma
traíra!
Merda.
— Vamos, cara, eu não… — paro quando ouço Amélia murmurar
que “Vince tem esse efeito em garotas”.
É? Até nela?
Ao perceber que ouvi, seu rosto fica pálido.
— Eu quis dizer que…
— Todos sabemos o que você quis dizer, Amélia — diz Levi,
saltando do sofá. — Vou olhar o forno.
Ele superou a crise de ciúmes rápido. Não é territorial.
Droga, o sujeito quase parece gente boa.
— Qual é, ela esteve olhando para seu rosto a semana inteira —
Amélia o consola, tremendamente constrangida.
— Hum — bufa. — Vou fazer espaguete, como faço quando estou
triste. Você vai ficar, Vince, o conquistador?
— Eu não acredito que você acabou de dizer isso — Amélia
resmunga, apertando os olhos de raiva. Eles começam a discutir em
sussurros, e posso ouvir parcialmente as palavras “idiota” e “quando você
vai embora?” de onde estou, na sala.
Filho da mãe como sou, isso me agrada.
Mas, segurando o corpinho dessa bebê inocente, sei que não
conseguiria conviver comigo mesmo se fizesse seus pais brigarem. Não sou
estúpido, sei que é importante para Amélia ter uma boa relação com o pai
de Rorie. É uma situação sensível que poderia se tornar muito complicada.
Caminho em direção aos dois, humilde e com o coração estranho.
— Foi mal, cara. Eu não queria… hum… roubar sua filha.
Um silêncio sepulcral recai no cômodo.
É quebrado com um barulho de nojo vindo de Amélia.
— Não, eca — faz careta. — Levi não é o pai de…
— Eca? Você não fez essa cara alguns anos atrás, quando me
beijou no estacionamento do colégio!
Que raios?
— Eu tinha quinze anos! — Amélia se defende. — Quinze.
— Sei — desdenha, picando os tomates com muita força.
— Levi!
— Espere — interrompo, tentando acompanhar. — Então vocês
não…?
Transaram? Fizeram uma bebê juntos?
— Não — os dois dizem em uníssono. Devo ter feito a cara mais
confusa do mundo, porque Amélia suspira e explica.
— Nós estudamos juntos na escola e nossos pais se envolveram
quando éramos adolescentes.
— A mãe dela destruiu o casamento dos meus pais — Levi
acrescenta, fazendo Amélia lhe dirigir um olhar fulminante.
— É, ela fazia muito isso — concorda com os dentes cerrados.
Meio-irmãos, então? E o beijo entra onde nessa história?
— Queríamos fazer todo o rolê incestuoso. Então, um dia…
— Não é verdade. Nós mal nos conhecíamos na época, fomos a um
baile e… meu Deus, eu só tinha quinze anos.
— Desculpas, desculpas — assovia.
Pensando bem, interagem mesmo como irmãos. Ela até guarda os
documentos dele.
Graças a Deus.
— Depois do drama familiar, acabamos — olha para ele de soslaio.
— Sabe-se Deus o porquê, amigos, e dividimos o apartamento por alguns
anos.
Por pouco não grito de alívio, estava muito mais perturbado com a
ideia dos dois serem um casal do que admitiria. Amélia morde os lábios,
pensando no que mais dizer para explicar sua vida. Receosa de que eu a
julgue? O que, as ações da mãe ou ter beijado um adolescente dez anos
atrás?
— Tudo bem — a acalmo e sorrio, já que as notícias me alegraram.
— Desculpe, eu pensei… foi só um palpite errado.
Mas se é assim, quem é o pai de Rorie?
— Ela não tem — diz baixinho, ao ver a dúvida que não digo em
voz alta. — Somos só nós duas.
— Ok — concordo. Não é realmente da minha conta.
— Então, Vince. Jantar? — Levi pergunta com um sorriso esperto.
É um jantar curioso, para dizer no mínimo.
Observo Amélia com seu irmão-amigo-primeiro beijo. Ele trabalha
em um estúdio de tatuagens em Seattle e, a cada cinco palavras que saem da
boca, seis são algo absurdo. Por um momento, é difícil odiá-lo.
O sentimento dura até eu saber que foi ele quem fez uma tatuagem
em Amélia, e eu não sabia que ela tinha uma.
Onde está?
Desgraçado.
Ele me fez um interrogatório também, e tenho certeza de que, antes
de deixar o local, ouvirei um aviso para ter cuidado com Amélia. É justo,
estou inclinado até mesmo a lhe dar essa oportunidade, especialmente
quando ele resolve ir preparar Rorie para um cochilo e nos deixa a sós.
Amélia fica dividida entre impedi-lo ou agradecer, porque ela quer
ficar sozinha comigo, só que tem dificuldade em se expressar. É um
desajeito que é diferente de timidez que me atrai.
Muitas coisas em Amélia me atraem.
A forma como ela poderia enfrentar um cara com o dobro do seu
peso se estiver irritada o suficiente; como faz Paul parecer idiota com uma
frase, o que Cassie me contou e rimos muito. O olhar nervoso tem poder de
murchar o saco de qualquer homem. Mas, sozinha comigo, ela mexe
ansiosamente na corrente do pescoço, rezando para aparecer algo para dizer.
— Ele é um bom amigo para você? — pergunto, me referindo a
Levi. Continuo sedento por informações. Quero saber como era sua vida lá
em Seattle, com quais pessoas convivia… tudo.
— Levi? Sim, ele é — pensa melhor e sorri. — Só Deus sabe como
conseguimos sobreviver um ao outro, mas sim.
— Ele é seu Johan — concluo, chegando à curiosa conclusão de
que me sinto feliz por Amélia ter um melhor amigo.
— Johan? É seu sócio, certo? O outro tio de Justin.
— Sim para ser o tio menos favorito do Justin, não para sócio.
Johan trabalha com carros.
— Oh, sim. É de família?
O bar?
— Não… é só meu mesmo.
Paguei o Caverna com o dinheiro que ganhei com o futebol na
faculdade, sempre me recusei a aceitar que o velho me sustentasse. Faço
careta. Será que é isso que ela pensa de mim? Que sou um mimado, que
vive às custas do pai? Ela nunca se interessaria por um homem assim.
Em um impulso para tentar explicar que eu tenho meios de cuidar
de mim – e de outras pessoas – sozinho, me vejo dizendo:
— Eu ganhei algum dinheiro…
— Por causa das fotos — esclarece, me impedindo de passar
vergonha. — O mural.
Ah, sim.
Uma das paredes do bar tem um painel de fotos. Elas contam a
história da cidade e, naturalmente, há um monte de Warrens. Eu, Johan e
Cassie quando adolescentes, Justin pequenininho. Clientes fiéis em
momentos especiais, pedidos de casamento, términos e reconciliações.
— Foi o velho Drew, antigo proprietário, quem começou com as
fotos. Nós íamos lá o tempo inteiro quando éramos moleques. Meu primeiro
porre foi presenciado por essas paredes. Johan? Deus, Johan deu tanto
trabalho que o sujeito o baniu umas sete vezes — sorrio, lembrando. — Ele
morreu alguns anos atrás e, como não tinha filhos, colocaram o bar à venda.
Temos que colocar uma foto sua lá. Você e Rorie.
Assim, nunca vai querer ir embora.
Amélia tenta esconder, mas o sorriso está lá e, por Deus, faz coisas
comigo. É como se eu tivesse escalado uma montanha, conquistando um
sorriso assim.

Como esperado, à noite, após as garotas dormirem, Levi senta de


frente ao balcão. Ele chama a atenção, é um rosto novo e as mulheres
provavelmente o acham atraente.
Parece o James Dean.
O bar está na mais completa zona, mas paro o que estou fazendo
para atendê-lo.
— Qual o seu veneno? — pergunto, me preparando para ouvir o
recado.
— Uma cerveja está bom — diz, e pego a minha marca favorita.
Ele olha antes de levar o gargalo à boca.
— Diga o que tem a dizer.
— Você parece um cara legal.
— Obrigado? — agradeço, apesar de que a forma como diz isso
está longe de ser um elogio.
Ele ri.
É um sorriso infeliz, nada parecido com o que ele deu a Amélia e
Rorie durante o jantar.
— O tipo de cara legal que parece inofensivo, dizendo por aí que é
pai da bebê, ajudando com os problemas, só para dar para trás quando as
coisas ficarem sérias demais, entende?
Maldito.
— Vá se foder! Você não me conhece, não sabe nada sobre mim.
Levi mostra os dentes, não em um riso, mas em uma expressão
predatória. É como se ele fosse outra pessoa.
— É verdade, não conheço. Mas se você, Vince, estiver pensando
em foder com Amélia, seu rosto bonito vai virar saudades, certo?
Tenho de me segurar, porque esse homem é importante para
Amélia e Rorie, então não posso fazê-lo virar saudades.
— Por que me disse isso?
O que ele sabe?
Não responde, apenas dá alguns tapinhas no meu ombro.
— Foi um prazer conhecer você, Vince, o conquistador.
13
AMÉLIA
Estou experimentando ser uma mãe coruja depois que Rorie
adoeceu. Passamos a semana juntinhas, acho que há até uma marca na
minha cintura de tanto tempo ela passou pendurada ali como um bicho-
preguiça.
Foi extremamente cansativo.
Eu vou sentir tanta falta.
É meu último dia de licença, então aproveito o final da manhã para
colocar Rorie no carrinho de bebês e passear. Simples, certo? Passar um
tempo com minha filha, criando as memórias que sonho tanto em dar a ela.
Não me lembro de fazer essas coisas com minha mãe.
Eu morria de inveja quando crianças do meu bairro levavam
aquelas fotos em família para algum trabalho na escola. Rorie nunca vai
passar por isso.
O lado ruim é que, andando por essas ruas, recordo que preciso
começar a olhar apartamentos em outro bairro. Só tenho mais cinco meses
de aluguel e não irei renovar. Vince tem limitado muito as músicas do bar, e
usar os fones ajuda, mas não é uma solução a longo prazo.
É uma pena, aqui foi o mais próximo de subúrbio que consegui.
Vivem pessoas de classe média e têm crianças andando por todos os lados
tranquilamente.
Não sinto falta de bairros periféricos, apesar de ter que admitir que
a confusão das ruas é parte de mim. Os moradores cansados, impacientes e
com o senso moral elástico. A necessidade de estar alerta o tempo inteiro
faz você ficar esperto.
Certo, estou mentindo para mim mesma. Não quero que Rorie
precise ser esperta. Por mim, poderia viver com sua cabecinha careca sem
nenhuma preocupação para sempre.
É uma caminhada de um quilômetro até o parque, e fico muito feliz
em fazê-la empurrando o carrinho.
Considero acordar Rorie, a garota está apagada. Vai perder todos
os cachorros correndo. Inclusive, um gigantesco, bonito e cheio de pelos
vem para cheirar meus sapatos.
— Olá, rapaz — digo, testando se posso tocá-lo.
Não sinto medo, o cachorro está sorrindo. Sim, o rosto bobão dele
definitivamente tem um sorriso.
— Onde está seu dono? Você se perdeu? — Caramba, esses pelos
são mais macios do que meu cabelo.
— Esse seria eu — um homem não totalmente desconhecido
aparece dizendo. — Desculpe, ele sempre foge da coleira, mas é inofensivo,
prometo… oh, gost… Amélia.
— Johan — cumprimento. — Olá.
É o amigo de Vince.
Vince, o desaparecido. Não o vejo há uma semana.
Tentei não pensar muito a respeito.
Sem qualquer pudor, Johan senta no banco ao meu lado. Ele não
veste camisa e está suando muito. Me encolho para o outro lado alguns
centímetros.
— Amélia… — vê o carrinho ao nosso lado com uma bebê
adormecida. — É a sua?
— Dizem que sim, mas não sei, falta um bronzeado — murmuro, e
o homem ri como se fosse a piada mais engraçada que ouviu esse ano.
— Na verdade, eu vi essa série uma vez, que… — o telefone
começa a tocar e Johan o tira do bolso, abrindo um sorriso imenso quando
olha a tela. Pede com os lábios para que espere um minuto.
Aproveito para brincar com o cachorro sorridente. Tenho de me
segurar para não fazer aquela voz de bebê em público, reservada para minha
filha e animais fofos.
— Adivinha? — Ouço Johan na linha. — Não, muito melhor do
que isso… não seja idiota. É? Bem, eu estou com a gost… Amélia.
Acabamos de topar no parque. Pois é.
Só pode ser Vince.
— Essa é uma palavra bastante feia, cara — paro de fingir que não
estou prestando atenção. — Quer saber? Acho que só vou desligar o
telefone e aproveitar o dia. Sim, é o que vou fazer. Até.
Desliga.
Então, é hora de conhecer melhor o amigo de Vince.
Ou não.
Não dá tempo nem de conversar direito. Só dez minutos, porque é
o tempo que leva até Vince nos achar. A última vez que o vi foi antes de
Levi ir embora.
Eu senti falta, acho. É estranho.
As coisas estão diferentes. Me sinto diferente em relação a ele. O
frio na barriga e emoções amplificadas – como acontece quando estamos
extremamente a fim de alguém – estão aqui, fortes como nunca. Mas há
algo além disso: a familiaridade. Conforto, quase.
E tenho de admitir, não é uma tarefa fácil me deixar confortável.
Vince usa sempre uma versão das mesmas roupas – camisetas
brancas, cinzas ou pretas. Calças escuras e uma botina estilo coturno que,
juro, tenho uma idêntica. Achei que eu tivesse superado minha fase de
homens musculosos, mas os braços grandes, quase mais grossos do que
minha perna, são magníficos. Não consigo deixar de pensar em senti-los.
Balanço a cabeça, impedindo os pensamentos de irem para o lado
obsceno. É a maldita blusa com mangas rasgadas, foram feitas
especificamente para fazerem mulheres bem resolvidas duvidarem de si
próprias.
Eu nem mesmo sou bem resolvida.
Sorrio, mas não ganho um sorriso de volta. Vince está com a cara
irritada. O que será que há com ele?
— E aí? — Johan cumprimenta. Não recebe mais do que um
grunhido em troca. Para mim, apenas um aceno. Com isso, permaneço
quieta, inclusive quando Vince se coloca ao meu lado.
Levanto a sobrancelha, ele não diz nada.
Eu não digo nada.
O que há?
Está com raiva?
— Então, como eu ia dizendo, Amélia…
— Por que você não veste a porra da blusa? — Vince interrompe, e
não de um jeito brincalhão. É bem rude.
Johan também percebe que Vince fala sério e engole um
xingamento, não respondendo de volta. Não veste a camisa também,
somente faz estender um silêncio desconfortável entre nós três.
É muito familiar e eu não gosto.
Sou completamente ignorada enquanto os dois discutem
silenciosamente. Sinto-me deslocada e, ao invés de entrar na minha própria
cabeça, como geralmente faço, por impulso, decido tentar.
— Como vão as coisas? Sua família está bem? — É uma tentativa
de participar da conversa patética, sim, mas também estou cedendo a uma
vontade terrível de que Vince se dirija a mim de alguma forma.
— Por que?
— Hã? — Pergunto, muito confusa.
— Por que está perguntando deles? — Rebate com cenho franzido.
Olhos céticos.
Desconfiados.
Ergo os ombros, bem mais sem graça do que Johan minutos atrás.
Não sou desacostumada a más respostas e, sendo honesta, até
mesmo olhares assim, pescando segundas intenções. Cresci bem pobre e
minha mãe tendia a sair com homens ricos e casados. Conheço essa
expressão porque a recebi bastante.
Ainda recebo. Como agora, de Vince.
Não o mando se foder, a surpresa amarga tira minha vontade de
falar qualquer coisa.
Homens.
Foi gentil e prestativo quando eu precisei de alguém, era para que
eu abaixasse a guarda? Agora, comigo cativa, age como se fosse eu quem o
procurasse, todo desconfiado?
É ofensivo.
— Hum… eu acho que vou pegar um sorvete — aponto para uma
barraca do outro lado do parque. — Foi ótimo ver vocês.
Não, não foi.
— Vou te levar embora — diz Vince. — Só temos de deixar Johan
primeiro, preciso trocar uma palavra com ele antes.
— Não? — Sugiro, pois não quero lhe dar a impressão de ter sido
magoada com a negativa seca que coça para sair da minha boca. — Não
estou indo embora.
— O quê? — Pergunta, confuso. — Eu vou… merda.
— Está tudo bem, vocês podem ir — faço um gesto para que saiam
e tenho certeza de que meu rosto não me trai. Está fechado, como sempre.
— Legal ver você também, Amélia — Johan diz com a voz
nervosa.
Eles que resolvam suas coisas, de preferência comigo longe.
Manobro o carrinho em sentido contrário, me apressando em ir
para a outra extremidade, decepcionada e deprimida a cada passo. Só paro
quando tenho certeza de que não serei vista.
Encontro outro banco vazio e me sento novamente, sozinha.
O rosto de Rorie é plácido, essa diabinha ficará a noite toda
acordada. Mas não posso julgá-la, o sol está fresco, gostoso para um
cochilo.
Sim, Amélia, seria uma filha da putagem sem tamanho a acordar
só para se sentir menos solitária, grito na minha própria cabeça. Não é
certo usá-la como apoio emocional. Sua mãe fazia isso e você odiava,
lembra? Grito mais alto ainda.
Além do mais, o que houve com a mulher cronicamente solitária?
Ela está cansada.
Lembro de ter carregado um iPod há muito não usado na bolsa.
Coloco os fones – não os gigantescos de Vince, os normais, pequenos e com
fios. Busco as playlists. Hoje irei de hip-hop, eu amo como o rapper diz
verdades cruéis no meio de um toquinho gostoso.
Levanto o rosto com olhos fechados, sentindo o sol nas bochechas.
Minha mente desconecta do corpo, imersa na letra.
Estou no fim de mais de doze músicas quando um dos fones é
retirado. Abrir os olhos quase dói, estava tão bom. Não sobressalto, registrei
a presença no momento em que o corpo fez sombra sobre mim. Senti o
cheiro dele.

VINCE
Amélia abre os olhos lentamente, me encarando em silêncio
através dos cílios grandes. O olhar encontra o meu e não para aí, ela estuda
todo o rosto por segundos que parecem durar uma eternidade. É
dolorosamente profundo.
Eu a observei antes de me aproximar. À distância, ela aparentava
que estava dormindo, exceto que murmurava seja lá o que passava nos
fones – agora sei que é um rap que mais parece uma aula de história. Estava
curioso sobre o que captou sua atenção.
— Ei.
— Ei — enquanto meu tom é caloroso, o dela é baixo e
desanimado. É impressionante o quanto é possível demonstrar com uma
palavra de duas letras.
— Você pegou seu sorvete? — Confusão passa pelo rosto. — Não?
Deixe-me comprar um para você.
— Estou bem — declina a oferta, olhando ao redor. — Eu tenho
que ir embora.
— Meu carro está ali no estacionamento.
Amélia faz uma careta como se a ideia lhe fosse absolutamente
desagradável.
— Não posso carregar Rorie sem cadeirinha.
— Andamos, então.
Ela não pode me impedir de andar ao seu lado, certo? Me
aproximo e começo a empurrar o carrinho, não dando chance de negar ou
pensar muito sobre o assunto.
Não mais do que já está pensando.
— Ela dormiu o tempo todo?
— Dormiu sim, mas posso trazê-la outro dia.
— Claro — concordo. — Você sempre pode trazê-la para ver os
cachorros.
Ela está com raiva. Mais do que isso, está magoada. Não à toa, agi
como um idiota.
As palavras de Levi não saíram da minha cabeça. Elas torturaram,
fazendo a culpa se infiltrar na minha pele como óleo. Amargas. Nojentas.
Muito certeiras. É verdade que, primeiro, me aproximei porque Amélia é
uma mulher bonita e foi divertido encher o saco até saber sobre Rorie. Só
que depois ficou confuso. Os flertes não soam mais tão inofensivos depois
de conhecer a bebê.
Dada minha situação delicada, se olharmos no dicionário, minhas
atitudes significam exatamente que estou brincando com ela. E, por Deus,
não é minha intenção.
Decidi que não deveria ficar atrás de Amélia, não é justo. Então, a
evitei. Só que a ideia de manter distância foi para o espaço no momento em
que Johan disse que encontrou Amélia quando estava usando o truque de
soltar a coleira e deixar o cachorro fugir para puxar conversa com mulheres
bonitas. Não pensei duas vezes antes de vir aqui. Desde que ela chegou em
New Castle, ouço homens falando a respeito dela. Sempre em tom de
brincadeira, mas eu sei que tem um fundo de verdade.
Mas Amélia não sabe o quanto ficar distante tem sido difícil, e que
estou mal-humorado o tempo todo. Ela só perguntou como estava minha
família, provavelmente quis dizer Justin ou Cassie, as pessoas que ela
conhece. Minha cabeça foi direto para Sarah. Era a culpa falando.
— Amélia — concentro energia em projetar minha voz calma, que
não é, de maneira alguma, a realidade. — Você quer falar sobre o que houve
mais cedo?
— Não.
Só isso. Nem olha na minha direção.
— Tem certeza? — Remexo, inquieto.
— Absoluta.
— Bom — uau, foi bem fácil. E eu preocupado com o fato de que
o caminho é muito curto. Pisquei e estamos em frente ao apartamento. —
Você já almoçou? Eu tenho alguma carne na cozinha do bar, posso passar
para a gente.
Olha para mim, incrédula. Sem responder, abre a porta do prédio e
sobe os degraus.
Droga.
— Amélia, eu sinto muito. Vamos conversar, venha…
— Tenho de ir para casa.
— Eu te magoei — constato, triste. Posso ver nos olhos dela, a
sombra de dor por trás do rosto irritado.
Ela ri.
— Olhe para mim, Vince. Ninguém como eu fica surpreso quando
pessoas agem assim.
— O quê? — Não entendo o que ela quer dizer. Alguém como ela?
A bebê acorda e nos encara, confusa.
— Você sabe exatamente o que quero dizer.
— Não sei, não — quero pedir que se acalme, mas seria algo
horrível de se fazer. — Me diga.
— Sério? A pobre vizinha, boa o suficiente para flertar, mas não
para conversar com um de seus amigos? Deus me livre ter a audácia de
perguntar sobre sua família. Acha que vou fazer o quê? Aparecer na sua
casa?
As palavras saem da sua boca carregadas de desgosto e me atacam
com um soco no estômago. Perco o fôlego, fervendo de raiva.
— Quem? — Exijo com a mandíbula tensa.
— O quê?
— Quem te falou essas coisas?
Amélia dá um passo para trás e aperta Rorie contra o corpo, que
começa a choramingar, sentindo a tensão da mãe.
Olhar machuca. Tem tanta decepção, tanto desalento na imagem
das duas.
— Eu tenho de ir.
— Amélia — minha voz está grossa. Quero tocá-la.
Ela paralisa com o meu tom, de costas.
Em um passo largo, fico a centímetros de encostar em seu corpo. O
cabelo até roça no meu queixo.
Inspiro, uma culpa pesada entra pelo meu sistema junto com o
cheiro.
— Venha comigo — sussurro contra o topo da cabeça. Ela pode
sentir mais do que ouvir. Não devo, mas não consigo evitar. — Eu sinto
muito.
Sei, antes que as palavras saiam, que ela não vai ceder.
— Eu vejo você depois.
14
AMÉLIA
— Então, conversei com o corpo docente, e decidimos que você
seria a melhor opção — diz a diretora com a voz séria.
Malditos.
Na semana passada, duas crianças de nove anos se beijaram.
Conversei com ambos, recebi os responsáveis. Parecia tudo resolvido… só
parecia mesmo. A situação pegou fogo no grupo online que os pais dos
alunos participam, e a briga se elevou para ameaças de processo.
Depois de um esforço gigantesco da direção, a parte jurídica foi
resolvida. Mas a escola se comprometeu a dar uma palestra a respeito de
como lidar com essas questões. Basicamente, ensinar a criar seus filhos.
Todos estão escolhendo lados, revoltados e cheios de opiniões. Eu
tive pena de quem iria conduzir a apresentação, agora descubro que essa
pessoa sou eu.
— Porque você é psicóloga — reforça, mas ela mesma não
acredita nisso. Não precisam de um psicólogo, só alguém com um pouco de
bom senso e muito jogo de cintura.
— Certo — concordo, suspirando.
Estou aprendendo a gostar da diretora. Ela não é alguém fraca,
como pensei a princípio, mas sim uma mulher esperta com um forte instinto
de sobrevivência. Eu respeito isso.
— Quando? Alguma orientação?
— É amanhã às sete, e quanto a orientações… faça como achar
melhor, só, por favor, não deixe que briguem.
Como se dependesse de mim.
— Eu vou estar sozinha?
Suas bochechas coram. Sabe que está sendo injusta, ela é quem
deveria fazer isso – ou a professora responsável. Alguém que lide com
grupos de crianças, só que é mais fácil jogar para mim.
Estou aqui há quase três meses agora, o que quer dizer que ainda
sou a funcionária nova, junte isso ao fato de que a maioria dos professores
se conhece desde o jardim da infância. Não sou odiada, longe disso, acho
que só me tomam como muito reservada. Às vezes são simpáticas.
Mas… bem, não existe simpatia quando se trata de lidar com um
grupo de pais raivosos.
— Cameron se ofereceu para dar suporte.
Ah, sim. O professor de literatura. Pelo menos um.
— Tudo bem, farei o possível.
— Ótimo — limpa as mãos na saia e me dá um papel com um
número escrito. — Ligue para Molly, ela é bem nova, mas é uma ótima
babá.

— Você está bonita — a babá sussurra de onde está, brincando


com Rorie no tapete. Percebo, estranhando, que estou me olhando no
espelho.
— Obrigada — sorrio, meio acanhada. Eu acho que amo essa
garota. A bebê a adorou de imediato. — Por favor, me ligue se acontecer
qualquer coisa. Rorie não gosta…
— De desenhos, usar meia e, estranhamente, do ursinho cor-de-
rosa — completa, porque já lhe falei quinze vezes.
Ando até as duas e abaixo no chão para dar um beijo nas
bochechas fofas da neném.
— Eu já volto, ok? — Prometo. — Amo você.
Adoro dizer isso. Nunca havia dito antes de Rorie nascer, eu
achava que nunca diria essas palavras na vida. Agora, não deixo um dia
passar sem lembrá-la do quanto é amada. Rorie sacode as mãozinhas gordas
e decido interpretar que é sua forma de dizer que me ama também.
Deixo o apartamento com o coração batendo forte. Vai dar errado.
Eu não sou uma pessoa gostável.
Existem dois tipos de mulheres – aquelas delicadas, de olhos
arregalados e sorriso fácil, que podem até parecer incompetentes, mas
ninguém tem coragem de gritar com elas, porque soaria mal.
O outro tipo, o grupo onde me encaixo, é muito fácil de odiar – as
pessoas acham que a introspecção significa que não temos sentimentos. Que
somos fortes e podemos aguentar qualquer coisa. Para piorar tudo, sou
empregada deles e sei que nem sequer me consideram como pessoa.
Estou muito calejada para fugir de uma briga dessas, mas não quer
dizer que eu goste.
Não é fácil.
Quando chego na escola, fico um minuto no carro, visualizando
cenários desagradáveis até ficar com o humor propício para vestir minha
armadura.
Boa sorte para mim.

VINCE
— Então, o que combinamos mesmo?
— Ir para a cadeia é errado e feio — Cassie diz, fazendo um bico
emburrado.
Só tenho uma missão hoje: impedir minha cunhada de agredir
alguém. Ela está crispando de raiva por causa da confusão do beijo que
Justin deu em uma garotinha chamada Christie. Os pais da menina o
acusaram de tudo quanto é absurdo e, bem, se mexem com Justin, mexem
com Cassie.
Paul está em Dallas fechando um negócio importante, logo, fui
eleito para substituí-lo nessa reunião absurda. Ridículo, na minha opinião.
Podem falar o que quiserem do meu trabalho no bar, mas eu nunca deixaria
minha mulher ter que lidar com isso sozinha. Ele estava aqui na semana
passada, quando as coisas ficaram realmente ruins, e só viajou porque
achou que o assunto estava encerrado.
Ainda assim, nada no mundo me impediria de voltar.
Mas isso sou eu.
Descemos, e o estacionamento está lotado de carros. Somos
conduzidos para o auditório onde as crianças geralmente se apresentam.
O clima está, no mínimo, hostil, com panelinhas de pais
sussurrando. Cassie aperta a bolsa forte contra o corpo, murmurando
xingamentos que eu duvidaria que minha doce cunhada conhecia. Fecho a
cara, naturalmente, porque posso estar tranquilo agora e achando a situação
meio cômica, mas não vou tolerar ninguém falando da minha família.
Não há uma tela montada nem nada, e o palanque está vazio. Hum.
Que palestra sem graça. Mordo o interior da bochecha, entediado, me
perguntando como é que deveríamos aprender alguma coisa só com alguém
falando.
Mas minha atenção se afia meio minuto depois.
Amélia.
Ela entra com o rosto sério, e as pessoas calam a boca. Seus olhos
varrem a plateia, e arrepio até os ossos quando passam por mim e não
mostram qualquer sinal de reconhecimento. Na verdade, ela não faz menção
de notar ninguém. Nem um sorriso.
Amélia não quis saber de mim depois daquele dia no parque. A vi
duas vezes: uma quando busquei Justin e outra próximo ao apartamento
dela. Em ambas, fui ignorado.
É irritante e merecido. É como precisa ser.
Pensando bem, não realmente. Poderíamos ser amigos – eu seria
um bom amigo para ela. Claro, depois que ela conseguisse ficar na minha
presença tempo o suficiente para ouvir que sinto muito.
Após o silêncio inicial, as pessoas começam a resmungar,
incomodadas. É estranho. Muito rapidamente, vira animosidade aberta: não
uns contra os outros, mas contra ela.
— O que está acontecendo?
Minha cunhada faz uma expressão enjoada antes de responder.
— Um grupo de mães não está muito feliz com a contratação de
Amélia. A maioria desses pais gosta de esquecer que tem uma aliança no
dedo, e ela parece uma versão vinte anos mais nova da Angelina Jolie.
Quem fica com seios desse jeito depois de ter um bebê?
— O que? — Minha voz sai alta, e pessoas viram para nós. Forço a
falar mais baixo. O fato de meu maxilar estar travado ajuda. — Isso é
ridículo!
— Eu sei, Vince — suspira, cansada. — Só estão sendo umas
vadias. Deus, vão comer ela viva.
Não vão, não.
Não comigo aqui.
Acontece que não preciso fazer nada. Assim que Amélia se ajeita
para começar, um desgraçado faz um comentário infeliz, dizendo que nunca
mais perderá reuniões escolares. Abro a boca para respondê-lo, mas Amélia
se adianta. Ela não ignora, fingindo que não ouviu o comentário – em vez
disso, levanta a cabeça, procurando o imbecil. Olha para ele com uma
expressão que o homem não esquecerá tão cedo.
É um olhar que mistura desafio e desdém. É estranhamente digno e
exige respeito. Assim, sem dizer uma palavra, ela o faz parecer patético.
Porra, eu quase fico com pena do sujeito, mas a verdade é que me encho de
orgulho.
Amélia opta por não utilizar microfone, a voz séria se projeta,
impondo atenção. Agradece pela presença e, de forma muito direta, trata do
assunto. Explica que crianças são crianças.
A conversa, que poderia ser delicada, fica... lógica. Simples.
É bom. Eu não sei como me sentiria se Amélia tomasse partido
contra o meu sobrinho.
Mentira, sei sim.
É estúpido, mas me sentiria traído.
— Enfim, são manifestações de afeto — explica. — Nós beijamos
nossos filhos, amigos e pais durante a vida toda. Embora, em um primeiro
momento, soe extremamente inapropriado, lembrem-se de que é porque
temos outra percepção do gesto, somos treinados a antecipar problemas. As
crianças, não. Elas são mais simples. Inclusive, aconselho firmemente que
conversem a respeito com seus filhos, não façam disso um tabu em suas
casas.
Enquanto Amélia fala, ninguém a interrompe. Ninguém ousa. Ela
chega ao final perguntando se alguém tem alguma dúvida relevante –
palavra usada com muita ênfase.
Uma pena que não adianta.
— Então, você está dizendo que é normal? Que estou errada em
me preocupar com alguém colocando as mãos na minha filha?
— Pelo amor de Deus! Colocando as mãos na sua filha? Qual é o
seu problema? — Isso é Cassie.
Elas quase saíram no tapa semana passada.
— Como você chama o que ele fez, então?
— Perguntas dirigidas somente a mim — Amélia intercede. — E
não, senhora, você nunca estará errada em se preocupar com a sua filha. É
um sentimento completamente válido.
— Diga isso a...
— Mas também não se esqueça de que estamos falando de crianças
que cresceram juntas e são amigas — continua, repreendendo com cuidado.
— E eu preferiria não direcionar a conversa para a situação específica, para
preservar as identidades.
— Preservar identidades! — Desdenha. — Todo mundo sabe que o
garoto Warren atacou Christie!
Cassie salta do banco, e corro para segurá-la. Viro para a megera.
— Cuidado, Noelle. Você não quer falar assim da minha família.
— Isso é uma ameaça?
— Pense como quiser.
— Oh! — Exclama. — Irei ligar para a...
— Justin não atacou sua filha — Amélia interrompe de novo. —
Eu conversei com os dois, ele não teve intenção e, principalmente, Christie
não se sentiu ameaçada. Ela nem mesmo compreendeu que havia algo
errado.
A-ha!
— E você — ela olha para mim. É a primeira vez que faz isso. —
Não irá ameaçar uma mulher na minha frente.
Amélia não está brincando. Ao contrário, a voz é cortante, e na
dela sim há uma ameaça.
Jesus.
— Eu não quis dizer...
— Muito bem — ela ignora, dando dois passos para trás para
voltar a falar com todos. — Agora, há mais alguém com uma dúvida
relevante?
15
AMÉLIA
Sobrevivi.
Mas foi a duras penas.
A palestra terminou há poucos minutos, e espero que os pais
deixem a escola enquanto tento aliviar a tensão. Não demonstrei, mas ficar
lá, sendo razoável e compreensiva, ouvindo as maiores bobagens que já
presenciei na vida, sugou toda a minha energia.
Ver Vince também. Achei que já o havia desculpado, mas não.
Estou tão emburrada quanto semanas atrás. A percepção de que ele não
queria que as pessoas soubessem sobre mim, envergonhado com o que
pensariam, me deixou um tanto ressentida.
Não sou idiota. Sei que sou tão boa quanto qualquer outra pessoa e,
para o inferno com os idiotas esnobes que pensam ser melhores que os
outros. Mas o fato é que essas pessoas existem – elas mexem com nossa
autoestima, são como ervas daninhas.
Achei que ele fosse diferente. Que patético.
Guardo minha agenda na bolsa. A única coisa que há lá é um
rabisco – fingi fazer anotações durante uma ou outra pergunta. Deus, como
essas pessoas são exageradas. Elas não têm, sei lá, problemas de verdade
para ocupar a cabeça? Eu mesma sou uma mãe superprotetora, mas elas não
estavam verdadeiramente preocupadas com os filhos, e sim agarrando com
todas as forças a chance de atacar alguém.
Eu preciso do meu apartamento, de dois analgésicos e de desenhos
da última década.
Acontece que minha sorte é inexistente.
O carro não liga. Giro a chave na ignição três vezes, e nem sinal de
vida. Suspiro audivelmente, afundando no banco do motorista. Era tudo o
que faltava. Bato a mão no volante, com uma expressão infantil de
insatisfação, mas isso me faz sentir um pouquinho melhor. Desço,
agradecendo mentalmente pelo estacionamento estar quase vazio. Pelo
menos não vão presenciar o quanto sou ferrada.
Tenho algumas ferramentas no porta-malas: lanterna, chave de
roda e uma faca afiada. São para situações como essa, ou para o caso de
alguém me irritar muito.
Abro o capô com um puxão forte. Não há fumaça, o que é bom.
Vamos lá, o que é mais provável? A bateria não está descarregada, sei disso.
O fusível foi trocado antes de eu vir para New Castle, então duvido que seja
ele. Coloco a lanterna entre os dentes e começo a soltar os cabos para
reajustar.
— Precisa de ajuda? — Congelo, reconhecendo a voz
inconfundível de Vince. O cheiro também. Meu coração traidor salta.
Tiro a lanterna da boca, mortificada. É óbvio que ele me achou
assim.
— Não, estou bem — respondo, sem me virar.
— Claro que está — diz ele, irônico. — Deixa eu dar uma olhada.
Cassie? Você pode ir, vou pegar carona com Amélia até o bar.
Cristo.
— Você não vai... — Ele se aproxima, levantando as mangas da
blusa. Solto a respiração, resignada, e cumprimento Cassie.
A mulher sorri para mim e peço com os olhos que não o deixe
aqui, mas, tal como o filho, ela não me ouve.

VINCE
Sei que ela não precisa de mim, Amélia daria um jeito de resolver
a situação sozinha. É impressionante o quanto consegue se virar bem.
Limpo os terminais da bateria com a faca e assopro.
Durante todo o tempo, fiquei com ciúmes de cada pai que a olhou
por mais de cinco segundos. Foram muitos, de todas as idades, estilos e
status social. Olho para ela de esguelha, guardando a visão para mais tarde.
Minha cunhada está errada, Amélia não tem nada a ver com a Angelina
Jolie dos anos noventa. Sua boca é mais larga e angulosa do que carnuda e,
além do bronzeado lindo, seus olhos são infinitamente mais profundos.
Sérios. Mas entendo de onde Cassie tirou a comparação, é a energia
hipnotizante.
— Tente agora — digo, fechando o capô do carro e dando um
passo para o lado.
Amélia entra de volta no carro e gira a chave. O motor ronca para
instantaneamente.
— Viu? Nem foi tão difícil — falo, referindo-me não ao veículo,
mas ao fato de ela estar perto de mim sem se afastar. Caminho até a porta
do motorista.
Amélia levanta as sobrancelhas, confusa.
— Vou dirigir. — Afinal, ainda não fui castrado.
Espero sua discordância, mas ela simplesmente se arrasta para o
banco do passageiro, sem brigar nem nada. Isso me assusta um pouco.
Jesus Cristo, essas reações dela me matam. Amélia é independente
e insubordinada, mas se você empurrar um pouquinho... ela cede. E, o
melhor de tudo, parece feliz em fazer isso. É um tesão da porra.
— Você vem ou...? — ela interrompe meus pensamentos, sua voz
me trazendo de volta.
— Claro — respondo rapidamente, engatando a marcha. O carro é
manual, o que me faz sorrir. Vai ser bom exercitar um pouco os braços.
Percebo que Amélia os observa de relance, antes de desviar o olhar
rapidamente. Caralho.
Engulo seco e dirijo pelas estradas escuras. A noite está esfriando,
e me pego pensando em como deve ter sido o dia dela.
— Cadê a Rorie? — pergunto, quebrando o silêncio.
— Hum?
— A bebê. Com quem ela está?
— Ficou com a babá.
— Minha família só empilha motivos para se desculpar com você,
hein?
Amélia ri, relaxando um pouco. O som é lindo, como sempre.
— Justin — começa, com carinho na voz — eu o adoro, mas teria
tratado a situação diferente se precisasse, sabe? Ele só estava...
— Apaixonado — completo, brincando, embora Amélia já tenha
explicado a noite inteira que não é o caso. Deve ter sido exaustivo para ela.
— Me superou muito rápido — suspira, dramática. — Prometeu
amor eterno, agora não quer mais saber de mim.
Rio. Amélia continua sendo a pessoa preferida do meu sobrinho,
ela apenas o ajudou a colocar os sentimentos no lugar. Eles passam muito
tempo juntos e parecem se divertir. Nem sei de qual dos dois tenho mais
inveja.
— Você não precisa de Justin — consolo. — Tem sua quota de
homens apaixonados.
Inclusive outro Warren, vem-me como um pensamento intrusivo.
Um gosto amargo sobe na boca, e espero que Amélia diga algo. Não
acontece. Olho para o lado, encontrando uma careta.
— Não é verdade.
Dou uma bufada, desacreditado. Só esta noite, uns quinze homens
perderam o rumo de casa.
— Falo sério — insiste.
— Acho muito difícil acreditar — murmuro, com uma risada
incrédula.
— Você ficaria surpreso.
Arqueio as sobrancelhas, muito cético. Muito curioso.
— Sério? Você não é de namorar?
A pergunta parecia mais razoável na minha cabeça. Estamos
falando de quedinhas, caralho, não devo ficar fuxicando na vida dela.
— Não. Acho que não sou… dócil?
Tento fazer a informação ter algum sentido na minha cabeça.
Ela é nova, acabou de sair da universidade. Tenho certeza de que
intimida moleques até o último fio de cabelo. Amélia precisa de um homem
ao seu lado, não um garoto da sua idade. Alguém que incentive sua
personalidade e obedeça a suas ordens quase sempre, porque mulheres
como ela às vezes também precisam abrir mão do controle.
Mas Amélia sabe disso? Que não há nada de errado com ela?
Chegamos à calçada do prédio e o silêncio paira entre nós. Meu
coração aperta inexplicavelmente.
Ela sabe?
As palavras que me disse na outra noite voltam e me atormentam.
“Ninguém como eu fica surpreso ao ser tratado assim. Boa o suficiente
para flertar, mas não para conversar com um dos seus amigos.”
Porra!
Desligo o carro.
— Você não disse quem te disse aquelas coisas. Não me contou.
Amélia emite um som, surpresa por eu ter trazido aquela tarde
infeliz à tona. Seus olhos vão para todos os lados, parando em seu colo,
baixos.
— Foi ele? — Não digo a palavra pai, me nego. Mas nós dois
sabemos que me refiro ao cara que a deixou grávida.
— Importa? — murmura baixinho.
A mesma mulher que horas atrás estava enfrentando uma multidão
raivosa parece dolorosamente frágil agora.
Calma, coração.
Nem tento me impedir. Minhas mãos acham uma mecha solta de
cabelo e a coloco atrás da orelha. A pele de Amélia é tão gostosa. O gesto
faz seu rosto voltar para mim e seus olhos...
Meu Deus, ela é linda demais.
Seguro seu queixo para que não desvie o olhar. Há uma covinha lá.
É fofa pra caramba, mas é raro que consiga suavizar suas feições. Exceto
por agora, quando me olha intensamente, insegura. Calor enche seu rosto,
deixando suas bochechas avermelhadas.
— Você é perfeita, Amélia — falo com a voz rouca. — Não
entendo como alguém poderia não ver isso.
Assim que as palavras assentam, sinto a tensão crescer nos meus
ombros. Não tenho certeza se ela percebe, mas seu olhar está fixo nos meus
lábios. Minha respiração falha, antecipação formigando na pele.
Eu não vou parar isso.
Não tenho forças.
Amélia se inclina e encosta os lábios nos meus. Ela dá um selinho
casto e, muito cuidadosamente, suga meu lábio inferior.
Um rosnado sai do meu peito e a seguro pela nuca, trazendo seu
corpo para mais perto. Beijo-a direito.
Ela tem cheiro de canela e desejo.
Ela tem o mesmo gosto de estar apaixonado.
Meu coração bate desesperado quando assumo controle, sentindo o
pulsar aflito na jugular, onde minha mão agarra. Aperta.
Sempre que imaginei beijar Amélia, e foram muitas vezes, eu
acabava com o restante do corpo percorrido pelos dentes. Pescoço, braços.
Deus, os pés elegantes – quero chupar cada um dos dedos.
Ela corresponde como se precisasse de mim, dando-me seus
gemidos molhados, trêmula.
Amélia. Amélia. Amélia.
Enfio o nariz na garganta dela para lhe dar chance de respirar, e ela
emite um leve som, choramingando. O cheiro é ainda mais embriagante
nesse ponto.
Minhas mãos vão para debaixo da blusa, só percebo quando
alcanço o fecho do sutiã. Nesse ponto, tudo o que quero é trazê-la para o
colo, montando na minha virilha. Se acontecer, eu sei que vou enterrar
dentro dela, bem aqui, no estacionamento do prédio.
Ela deixaria.
— Você merece mais do que isso — suspiro contra sua pele. —
Muito mais, Amélia.
16
AMÉLIA
Prometo a mim mesma que terei uma dívida eterna com Deus se
este momento for apenas um daqueles pesadelos ruins, dos quais acordamos
confusos e envergonhados.
Não é o caso.
A respiração molhada de Vince ainda está nos meus lábios, depois
de, tão gentilmente, me lembrar que eu deveria ter algum respeito por mim
mesma. Mordo o canto da boca, usando a dor para colocar a cabeça no
lugar. Foi um longo dia. Depois de tanta gente tentar me rebaixar durante a
palestra, o sentimento de inferioridade começou a entrar na minha pele.
Vince foi a única pessoa legal comigo hoje. São todas ótimas desculpas.
Afasto minha cabeça até sair do raio de desejo que consumiu nós
dois. Minhas mãos trêmulas param de tocá-lo, e eu abro a palma aberta
entre nós para colocar distância.
— Certo — murmuro.
Tem razão. É verdade, eu mereço mesmo.
— Você tem como ir embora? — Pergunto, tateando a maçaneta.
Se ele não tiver a moto ou o carro aqui no bar, vou deixá-lo em casa. Nunca
mais olhar para a sua cara, provavelmente.
— Ei — impede que eu abra a porta, segurando meu braço. —
Amélia, olhe para mim.
Desvencilho-me, mas ele me para de novo. Dessa vez, eu o
empurro. Foda-se ele. Vince flexiona as mãos, mas não de nervoso. Como
se quisesse estender o braço. Ele me tocaria, se o fizesse. Em vez disso,
enfia os dedos nos próprios cabelos.
— Podemos conversar lá dentro? — Suspira, descontrolado.
— Não. — Ele não vai entrar no meu apartamento.
Amaldiçoa baixinho.
— Certo, vamos fazer isso aqui. Eu nunca pensei que isso pudesse
acontecer. Eu não… — respira, aflito para ser compreendido. — Não
esperava por você, ok? Não esperava por nós.
Ele só pode estar brincando.
— Esperava o quê? — Levanto o queixo. — O que você acha que
eu quero de você?
Vince não pode tornar essa situação um pouquinho mais fácil? Não
quero ouvir o que ele tem a dizer. Somos adultos e solteiros, por que um
simples beijo tem que terminar com um sermão? É vergonhoso. Faz com
que me sinta errada.
O clima está carregado, então sou pega de surpresa quando, em vez
de dar uma desculpa qualquer, ele acaricia meu cabelo com as costas da
mão. Arrependido. Melancólico.
— O problema é o que eu quero de você.
Seguro a respiração.
— E o que seria?
— Tudo.
Esse homem… ele diz todas as coisas certas. Seria bom demais
para ser verdade, então sei o que está por vir. Há um porém. Sempre há.
Sorrio para mim mesma, conformada. Eu já não conheço essa história?
— Mas você não pode.
Não responde diretamente, mas seus olhos dizem tudo.
— Nós sempre podemos ser amigos, certo? — Murmura com a voz
baixa.
— Claro — sussurro, sabendo que não vai acontecer. — Amigos.
17
AMÉLIA
Semanas viraram meses e nossa vida se acomoda em New Castle.
Rorie aprende a engatinhar e quatro dentinhos afiados nascem.
Descobri que, com apenas nove meses de idade, minha filha sabe se
defender. Ela é uma mordedora.
— Como está a vida nas montanhas? — Levi pergunta do outro
lado da linha, em uma das ligações religiosas de segunda-feira à noite.
Rorie começa a se mexer para pegar o celular, ele tem mania de
pedir para colocar a bebê no telefone e fica conversando sabe-se lá o quê.
Agora, não pode ouvir uma ligação que toma o aparelho da minha mão.
Acho que até contratou um cartão de crédito na semana passada.
— Calma — respondo, levantando para fugir da neném e seus
dedinhos atrevidos. — O verão aqui é lindo, Levi.
— Você sabe que não amei quando você juntou suas malas e
decidiu ir embora, mas acho que estava certa, Ams. Estou feliz por você.
Rio para o nada. Ele ficou possesso quando decidi que sairia de
Seattle com Rorie. Nos estranhamos e ele me ignorou uma semana inteira, o
que é muito para alguém como Levi.
— Alguma universidade deu notícias? — pergunta, ansioso.
Certo, posso ter ficado entediada e procurado algum problema.
Pessoas como eu sempre arranjam um problema para chamar de seu.
Tudo começou exatamente como agora: uma ligação de Levi,
perguntando se eu planejava trabalhar na escola para sempre. A pergunta
causou certo incômodo, porque estava tentando não pensar muito a respeito.
Estou satisfeita com meu trabalho? Bem... não. Eu não me sinto bem na
escola, passando o dia lidando com pessoas que não parecem saber o que é
um problema de real.
Veja, eu sei que todos os sofrimentos são válidos e me sinto feliz
quando consigo interferir de forma positiva na vida de uma pessoa,
especialmente crianças. Mas é difícil quando o sofrimento gira em torno,
principalmente, de ego. Pais com dinheiro demais e bom senso de menos.
Então, quando estava rodando pela cidade, em busca de
apartamentos para alugar quando meu contrato aqui acabar, conheci o lado
ruim de New Castle. Enquanto a parte da cidade onde vivo é linda e
imaculada, há dois bairros em uma área rural que concentram pessoas
absolutamente fodidas.
Agora, com essas sim, consigo me identificar.
Fui parar na escola pública que fica nas redondezas de onde estava
olhando casas para alugar. Fiz semanas de trabalho voluntário, atendendo
crianças e lendo relatórios. Tinha aos montes, parados e esquecidos. Eles
não têm psicólogo porque a cidade não tem verba para contratar – uma
mentira do caralho.
A assistente social que atua lá, por outro lado, está doida para se
aposentar e não tem coragem de fazê-lo sem alguém qualificado para
substituí-la.
É claro que eu não sou qualificada. Desde quando tive algo na vida
sem lutar por isso primeiro? Nunca. Mas posso ser.
Uma especialização de dois anos.
Não parou aí. Fiz Levi buscar todas as certificações dos meus
cursos quando estudava em Seattle, incomodei professores que jurei nunca
falar de novo para que fizessem cartas de recomendação. Reuni meu
histórico escolar desde o jardim da infância, extrato bancário, garantindo
que estou completamente quebrada, e me apliquei para dez bolsas de estudo
em diferentes universidades do Colorado.
Poderia dar motivo para minha filha sentir orgulho de mim.
Depois das aplicações, me obriguei a esquecer. Deixei os ânimos
acalmarem um pouco e evitei criar expectativas. Ocupei minha mente com
coisas mundanas, como passeios pela cidade e pensar em Vince, o
desconhecido.
Ele busca Justin na escola uma vez por semana, e às vezes nos
vemos. Ou, se der muito azar, passamos ao mesmo tempo na calçada. Nos
cumprimentamos, ambos sem graça.
Quando isso acontece, meu estômago revira o dia todo.
A decepção que segue é tão grande que mal me reconheço, mas
ficou mais fácil com o passar do tempo.
— Ams?
Volto para a ligação.
— Sim, na verdade, recebi um e-mail hoje de manhã.

VINCE
Estou exausto.
A temporada começou, e não são todos os jogos que acontecem
aqui em New Castle, o que significa que excursões com quinze carinhas
para cidades vizinhas são frequentes. Estamos apanhando tanto.
Para mim, está tudo bem; o time foi feito para diversão. O
problema é que crianças decepcionadas causam muita briga. Cinco, só hoje.
Justin estava em duas. Viu? Exaustivo.
Mas esse é o cansaço físico. O mental não vem do futebol, sei que
não. É ela. O esforço que tenho de fazer para manter a distância.
Acertamos em ser amigos, o que eu não havia previsto é que
Amélia simplesmente não é do tipo que tem amizades íntimas. É da sua
natureza ser reservada. Então, se eu estava pensando que iríamos passar
algum tempo juntos, trocar números de celular ou qualquer coisa nesse
sentido, me fodi feio.
Tive vislumbres do que é ser a pessoa que Amélia deixa entrar. Ela
me deu pedacinhos de confiança durante aqueles dias em que Rorie
adoeceu. Depois que perdi isso, nunca mais fui o mesmo. Não há um dia em
que não me pergunte como seria se tivéssemos seguido em frente. Como
estaríamos hoje?
Ainda há a parte que me tira o sono: Amélia é... Amélia. Ela não
vai ficar sozinha por muito tempo, e não sei se consigo lidar com um
homem a chamando para sair. Cada macho dessa cidade tem interesse nela,
e o único motivo de não fazerem uma fila na sua porta é que não têm
certeza se ela está disponível.
Quero gritar que não está. Quão fodido é isso? Não tenho direito
sobre Amélia. Eu sei. Mas... porra. A ideia de vê-la com alguém é
insuportável.
Me permito mergulhar nas lembranças. É o que faço quando estou
na academia, sozinho e concentrado. Lembro do cheiro gostoso da sua pele,
do gosto da boca dela e dos olhos profundos o suficiente para sugar minha
alma.
Com isso, ganhei uns oito quilos de massa corporal. Quase não
estou conseguindo comer o suficiente para suprir as calorias.
Meu telefone toca e, primeiro, ignoro. Quando torna a tocar, vejo
que é Johan e atendo, infeliz.
— Sim?
— Você tem de vir à oficina — diz, e sua voz é mais baixa do que
o normal. Está abafada.
— Estou na academia, cara — a última vez que precisou de mim
assim, só queria companhia para comer um sanduíche.
— É sério — sussurra — muito.
— Espere, você está escondido?
— Sim — responde — E venha de carro, não moto.
Preocupante.
— Me diga o que está acontecendo, estou...
“Johan, preciso ir agora”, escuto nos fundos da ligação.
É Amélia.
— Viu? — diz Johan do outro lado da linha. — Venha.
Ele não precisa falar duas vezes.

Chego o mais rápido possível, ansioso e enciumado. O que Amélia


está fazendo aqui? Eles não são amigos. Ou são?
Entro na oficina, congelando até os ossos, com a camiseta de
academia molhada de suor. Ouço os dois antes de vê-los. Sei, à distância,
que Amélia está nervosa. Vou matar Johan se ele tiver feito alguma coisa
com ela.
— Isso não é um carro, é uma máquina mortal — Johan diz, e
Amélia corta com um “tsc”.
— É urgente. Saia da minha frente.
— Não.
— Johan! Saia. Agora.
— Não.
— Pelo amor de Deus! — Grita, exasperada. — Não seja estúpido,
eu...
— Olá — digo, e os dois se viram para mim ao mesmo tempo.
Johan emite um suspiro aliviado, mas nem olho para ele. Minha
atenção está toda em Amélia. Ela está obviamente muito chateada, com o
rosto emburrado e um bico gigante. Então, com adrenalina em altos níveis,
meu primeiro instinto é virar contra a única outra pessoa que está no lugar.
— Que porra você está fazendo com ela? — Pergunto a Johan, que
arregala os olhos, indignado.
— Salvando a vida! — aponta para o carro. — Ela quer andar por
aí com o motor todo ferrado! Esse carro vai pegar fogo a qualquer
momento!
Amélia cruza os braços, bastante infeliz. Acho que ela faz isso para
parar de tremer. Que inferno é esse?
Espero sua versão dos fatos. Mas ela não parece inclinada a se
explicar, o que me lembra que não estou separando briga de um dos meus
alunos. Meus olhos percorrem a mulher dos pés à cabeça, ela está diferente.
Amélia é uma mulher despojada, vive de botas e jaquetas. Hoje
não. Veste uma saia reta, pouco acima dos joelhos, e uma blusa fechada. O
cabelo está solto e liso, sem as ondas usuais. Os sapatos são aqueles com
bico fino, altos o suficiente para parecer uma arma mortal. Muito elegante.
Muito gata.
— Ei — murmura, me encarando. Para minha infelicidade, estou
uma bagunça desgraçada.
— Ei — limpo a garganta. — O que é tão urgente?
Amélia suspira, e sua expressão fica um tanto triste. Ela não chora,
mas é como se quisesse. Eu faria qualquer coisa para tirar essa expressão
dos olhos dela.
— Preciso estar em um lugar. Vim aqui trocar o óleo e seu amigo
sequestrou meu carro — responde, dando a Johan um olhar que poderia
congelar o inferno.
— Trocar óleo? Aquela luz acendendo no painel? É a luz do fim do
túnel! O motor está praticamente morto. Você tem sorte de ter vindo aqui
antes dele resolver explodir com você no meio da estrada, isso sim.
— Opa — interrompo, irritado com Johan falando assim —
cuidado com a língua.
Amélia ri, irônica, e sussurra para si mesma algo como “sorte é o
caralho”.
— Eu te levo — digo, entendendo por que Johan pediu para eu vir
com o carro.
Eu amo esse filho da puta.
Mas ela balança a cabeça, negando.
— Por que não? — Pergunto, ofendido.
Honestamente, machuca. Ela não consegue nem ficar sozinha
comigo em um carro?
— É em Denver — explica, e olha para o relógio no pulso. — Eu
tenho que estar lá em três horas.
Por quê?
— Você ia dirigir duzentos quilômetros nesse carro? Isso é
loucura, você ia...
— Johan.
Amélia não precisa ouvir isso, está chateada o suficiente. Mas o
infeliz está certo, é uma boa viagem. O que ela vai fazer lá? Vestida assim?
— Eu te levo — repito, porque fodam-se algumas horas.
Amélia fica, ao mesmo tempo, derrotada e aliviada. Ela odeia
aceitar ajuda, especialmente a minha.
— Tem certeza?
— Claro — concordo. — Me dê quinze minutos, vamos passar na
minha casa rápido e saímos.
18
AMÉLIA
Amélia, sempre precisando ser salva.
Vince, o desconhecido, sendo o primeiro a vir ao meu socorro.
De novo.
Sequer consigo ficar irritada. Quando Johan começou a falar que
eu podia morrer, ele me assustou. Só levei o carro lá para trocar o óleo, nem
pensei muito sobre o assunto.
Eu poderia morrer.
Nunca fui uma pessoa medrosa, pelo contrário, não teria
sobrevivido sem muita coragem e uma pitada de loucura. Mas isso era antes
de ter alguém cuja vida depende exclusivamente de mim.
Assustada como estava, desisti. Por um momento, logo depois que
Vince chegou, aceitei que meus planos iam para o ralo. Não conseguiria a
bolsa. Não me tornaria assistente social. Sim, minha cabeça se rendeu a
momentos de drama e chegou a esse ponto.
Tudo porque meu carro é uma porcaria. Eu, estúpida, irresponsável
e pobre demais para fazer a revisão que deveria ter feito meses atrás.
Ninguém para pedir ajuda.
Aí… Vince.
Ele me deixa escolher as músicas; é esse tipo de cara. Caímos na
estrada com uma estação de rádio tocando uma mistura de hip-hop e rock
que preenche o silêncio. Posso me concentrar nas letras e ignorar o
desconforto e as lembranças do que aconteceu na última vez que estivemos
juntos.
— Qual área da cidade estamos indo?
— Central.
Vince murmura “hum” e continua dirigindo, com uma sombra de
tensão na postura.
Estranho.
— Você tem um encontro ou algo assim?
O quê?
Tenho vontade de rir – e de chorar. Um encontro? não penso em
um homem há meses, graças a ele. Além do mais, em que mundo eu o faria
dirigir duas horas para me levar a sair com alguém?
Ciúmes?
— Por que está perguntando isso? Somos só amigos.
Vince aperta os lábios.
— É? Você tem me ignorado.
Ele está certo.
Meu rosto fica vermelho, e decido lhe responder para mudar de
assunto.
— Não, Vince. É claro que não estou indo a um encontro.
Considero se devo compartilhar meus planos. Ele vai saber de toda
forma, pois vamos parar no campus.
Mais do que isso, eu quero contar. De alguma forma, sinto que
posso.
— É na Universidade de Denver. Apliquei a um programa de
especialização e tenho uma entrevista hoje.
Vince fica tão surpreso que quase freia.
— Sério?
— Uhum. Eles têm uma bolsa de estudos que cobre todos os
custos, então… — dou de ombros.
— Oh — exclama. — Você vai mudar?
Agora, sua voz não tem o menor sinal de irritação. Está baixa e
chateada.
— Não, terei de vir ao campus algumas vezes por mês, mas posso
entregar minhas atividades por e-mail. Meu estágio prático será com Janice,
do serviço social.
— A que trabalha no abrigo — diz, visivelmente aliviado e
pensativo.
Depois de um momento de silêncio, começa a sorrir.
O sorriso dele faz rugas em seus olhos porque Vince é um homem
que sorri com o rosto todo.
— O quê?
— Universidade de Denver? Você conseguiu entrar na
Universidade de Denver. É incrível.
— Bem, tecnicamente, não.
— Mas você vai — declara. — Deus, você é tipo uma jovem gênio
ou algo assim? Não me leve a mal, sempre soube que era inteligente, mas
estamos falando de qual nível de inteligência, hein?
— Inteligência perfeitamente mediana — confesso. — Mas eu era
meio nerd no colégio.
— Não, você não era. Eu estive no ensino médio, garotas como
você não eram nerds.
— Então estamos nos apegando a estereótipos? Hum… Deixe-me
adivinhar, você era o capitão do time de futebol americano, o garoto de ouro
que todos faziam vista grossa para os problemas que arranjava, certo?
Sei que acertei em cheio pelo sorriso torto.
— Muito preciso, Amélia — admite, olhando para o lado. — E
você? E não me diga nerd, não acreditarei.
— Eu era aquela que não caía na lábia do capitão do time de
futebol — rio. — Nada de equipes de debates ou agremiações para mim
também, mas sempre fui bem nas provas. Meu GPA foi 3,6.
— Mesmo? — pergunta alto, impressionado. — Uau.
É uma nota competitiva. Sempre me orgulhei muito.
Não tinha grana ou amigos para vadiar, só uma vontade grande de
sair daquela vida. Um desejo desesperador de não acabar como minha mãe.
Funcionou, consegui uma bolsa na Universidade de Washington e cursei
psicologia porque, francamente, era menos concorrido do que direito,
medicina e engenharia. Queria ter emendado com um mestrado, mas
engravidei antes que pudesse.
Essa será minha maior dificuldade nessa entrevista: convencer o
aplicador de que estou tão comprometida quanto uma jovem solteira e sem
filhos poderia estar.
— Você está nervosa?
Sim.
— Não — digo, mais para mim mesma do que para ele.
VINCE
Espero Amélia fazer a sua entrevista encostado no carro. Ela
desapareceu no prédio principal há quase uma hora, e minha cabeça está a
mil. Será que ela está nervosa? Ou respondendo a todas as perguntas com
segurança? Eu devia tê-la deixado com raiva antes que ela fosse. Amélia
sempre fica mais confiante quando está irritada.
O que é bem sexy.
Mas tudo nela é.
As músicas ajudaram também, notei que ela tem uma predileção
pelas letras revoltadas, então foi isso que ouvimos.
Universidade de Denver. Não é fácil entrar aqui, é uma das mais
concorridas do estado. Ainda mais com uma bolsa de estudos. Os Warren
têm uma longa história com essa instituição.
New Castle está fazendo bem a Amélia, assisti a isso à distância.
Depois da curiosidade inicial e da sua muito natural expressão de “vá se
foder”, ninguém encontrou nada para falar sobre ela. Diziam que era
arrogante, mas ela se dá bem com qualquer pessoa com quem converse. É
incrível com a bebê, todo mundo vê o quanto Rorie é bem cuidada. Uma
boa pessoa.
Enquanto divago, minha atenção constantemente se arrasta para a
porta do prédio. O coração bate forte sempre que há algum movimento por
lá e piora a cada vez que percebo que não é ela.
Está demorando... será que deu tudo certo?
Estou ficando preocupado.
Finalmente, após uma eternidade, lá está ela. Não consigo esperar,
ando para encontrá-la no meio do caminho. Só percebo o que estou fazendo
quando meus braços se envolvem ao seu redor e Amélia... Amélia me
abraça de volta.
Ela enfia o rosto no meu peitoral, perto do coração, e, se não
estivesse tão em choque, me preocuparia com o som do pobre coitado a mil
por hora. Sinto sua respiração se expandindo, a ponta do nariz roçando em
mim.
Está me cheirando.
Meu Deus.
Tão perfeita.
Acaricio suas costas, desejando aliviar um pouco o cansaço. É
instintivo, eu sei que ela está cansada e que isso ajuda. Parece que a toco
assim todos os dias. Uma das minhas mãos, atrevida até, vai até os cabelos
e desfaz o coque. Deve ter amarrado depois que entrou no prédio.
Com esse gesto, Amélia levanta a cabeça e balança, fazendo os fios
emoldurarem seu rosto. O verde nos olhos está pendendo para o dourado
hoje, combinando com o pôr do sol. Também estão mais receptivos do que
o normal, expondo-se para que eu possa me aproximar.
A sensação é aquela de quando um gato arisco não sai correndo
quando é tocado. Ao constatar isso, o ar deixa meus pulmões. Sinto como
se estivesse caindo de um penhasco.
Afasto uma mecha e coloco atrás da orelha. Minha mão está no seu
pescoço, pousou ali depois que soltei o cabelo e simplesmente deixei.
— Como foi? — Pergunto contra seu rosto.
Estamos quase nos beijando.
— Bem — diz, e não me dá nenhuma dica além disso.
Tenho vontade de rir. Amo como ela me faz lutar por cada
pedacinho de informação.
— Só bem? Vou precisar de mais detalhes do que isso, Amélia —
falo, e caminhamos assim, meio abraçados, até o carro.
Prendo o cinto para ela, cruzando-o na sua cintura. É,
estranhamente, algo que quero fazer desde sempre. Ela observa, curiosa,
mas não comenta.
É bom, eu não saberia o que dizer.
— O aplicador disse que sou uma boa candidata, e ter um plano
para trabalhar em New Castle é um ponto a favor.
— Excelente. — Só que ela estaria mais tranquila se não tivesse.
— O que mais?
— Ter uma filha não é exatamente animador — acrescenta,
mordendo os lábios.
— O quê?
— Bem, dificilmente consigo dizer que estudar é minha maior
prioridade na vida, né? Eu estava inscrita em uma especialização quando
tive Rorie.
Rorie é um bebê de universidade? Festas no campus fazem surgir
muitas crianças. Me revolta que Amélia não teve apoio para continuar
fazendo suas coisas. O que, o cara continuou com a vida, como se nada
tivesse acontecido?
Não expresso esses pensamentos em voz alta, é claro.
— Na minha opinião, ter uma filha faz com que você tenha ainda
mais motivos para querer conquistar seu diploma — digo, e o sorriso que
ganho com esse comentário, tão óbvio, é estonteante. Caramba, ela precisa
sorrir mais. — O que fazemos agora? Qual é o próximo passo?
Amélia hesita um pouco antes de responder. Talvez estranhe o uso
do plural, mas não dá indícios disso.
— Só esperar. Vou receber um e-mail ou uma ligação nas próximas
semanas. Nada muito emocionante.
Isso está errado.
— Nah, vamos sair para comemorar — mudo o caminho, fazendo
um contorno de volta para a área central, onde ficam os restaurantes legais.
— Comemorar? Eu não entrei, Vince.
— Você vai. — Simplesmente sei, quem diria não para ela? —
Então, Amélia Reid, você aceita jantar comigo?
19
AMÉLIA
Não sei o que deu na minha cabeça para aceitar o convite de Vince.
Mentira, sei sim. Depois que ele me levar para casa, voltaremos à
nossa relação de colegas distantes, e não estou pronta para deixá-lo ir
embora ainda.
Entramos em um restaurante no centro. É chique, misturando peças
antigas de madeira, luz amarelada e um grande balcão. Sentamos em uma
mesa para quatro e, por um momento, ao invés de sentar em frente a Vince,
considero sentar ao lado dele. Foi incrível quando me abraçou lá na
universidade, e acho que ele não vai fazer isso de novo. É o máximo de
calor humano que vou conseguir.
Patético, certo?
Engulo meus pensamentos e me ajeito na sua frente.
Percorro o cardápio três vezes, indecisa. Tudo parece tão bom, e
minha alimentação tem se alternado entre comida de bebê e macarrão
instantâneo.
— O que você vai pedir?
— Bife.
É claro, eu não esperaria outra coisa de todos esses músculos.
Parece bom, assim como o peixe assado.
— Você está em dúvida entre o quê? — pergunta, escorando-se na
mesa, fazendo seus bíceps saltarem. Fico perdida com o movimento —
Amélia?
— Tudo — respondo, sem pensar. — Peixe com molho de
manteiga e batatas? Risoto de lagosta… medalhões de filé mignon assados
à perfeição? Qual é, foi feito para deixar pessoas famintas em dúvida.
— Peça tudo.
— O quê? Não! — Ótimo, agora estou parecendo uma morta de
fome. — Seria um desperdício.
— Você falou só três opções, e olhe para mim — diz, sorrindo. —
Não haverá desperdício nenhum.
Bufo, um som pouquíssimo feminino.
Então eu faço. Olho.
Vince está maior do que quando nos conhecemos, quatro meses
atrás. A blusa está tendo dificuldades para não ser justa, e só Deus sabe
onde esse homem vai arranjar roupas para si mesmo se continuar crescendo.
— Você deve ter um gigante na linhagem — resmungo, e o sorriso
só aumenta. Ele aceita como uma concordância e chama o garçom. Pede
meus três pratos que não combinam e também seu bife.
— Uma taça de vinho?
— Água.
Vince está dirigindo, e não sou tola o suficiente para beber sozinha.
As horas passam rápido demais. Tenho a chance de experimentar
várias coisas antes de parar, ironicamente, no bife de Vince. Ele cumpre sua
promessa, ingerindo o que eu consideraria uma quantidade impossível de
alimento.
É uma sorte ele ter um cozinheiro no bar, nenhuma pessoa
despreparada conseguiria cozinhar para esse homem.
Eu me esforçaria.
Caramba, de onde é que saiu esse pensamento? Nem sei cozinhar.
— Amélia? — chama, e olho para cima, encontrando seu rosto.
— Hum?
— Você fez aquela coisa de me bloquear da sua cabeça — coloca o
polegar na minha testa e dá duas batidinhas. — E eu quero entrar de volta.
Oh, Deus.
Meu rosto queima, e fecho os olhos para não ver sua expressão
quando ele se der conta de que levei suas palavras para o lado erótico.
Qual é meu problema?
Tenho de parar, não sou assim.
— Você estava falando sobre futebol — relembro, ainda com os
olhos fechados e, honestamente, febril em partes que deveriam ficar
quietinhas.
— Estava — concorda.
Quando arrisco olhar, os olhos dele estão divertidos.
Quentes.
— Há um jogo no mês que vem, você deveria ir.
— Das crianças?
— Não, eu vou jogar. Juntamos atletas da região e fechamos um
estádio. É como arrecadamos dinheiro para os times das ligas infantis.
— É gratuito? Eu não sabia — faço careta.
— Sim, é comunitário. Por quê?
— Nada — mantenho a boca fechada.
— Diga-me — pede, e acrescenta em tom de brincadeira. — Não
somos bons assim, é?
Ouvi dizer que são horríveis, mas não é a isso que me refiro.
Eu passei perto de onde Vince trabalha, é um complexo infantil
que parece um daqueles campos de golfe. Grande parte das crianças da
escola frequenta lá.
— É que são crianças com pais bem ricos. Achei que fosse por
causa da mensalidade.
— Não todas.
São sim.
— Alguns garotos lá em Maple Grove jogam, sabe?
É a área da cidade onde o abrigo fica. Vi um grupo de crianças
algumas vezes.
— Há um campo lá? — pergunta, genuinamente perplexo.
— Quadra — penso melhor. — Na verdade, é só um espaço.
Extremamente decadente. Esquecido por Deus.
Ele aperta o nariz, incomodado. Parece se sentir culpado, de certa
forma. Cristo, não estou cobrando dele nem nada assim.
Agora, vamos entrar em um silêncio constrangedor, Vince acha que
estou criticando. Encaro nossos pratos vazios sobre a mesa.
Só estava puxando assunto.
Sou um bicho do mato.
Incomodada, sinto-o roçando o dedo nas costas da minha mão. Ele
nem percebe que faz, só… acontece. Olho para cima.
O rosto de Vince não está nada chateado. O encontro encantado.
Faz meu coração parar.
— Eu estou mesmo precisando de novos alunos.
VINCE
Amélia está me olhando com aquele rosto de “por que você está
me tratando assim?"
Por assim, entenda-se com afeição.
Ela realmente não está acostumada. Isso me faz querer brigar com
cada pessoa que já a tratou de forma rude. Também me sinto... sortudo.
Tenho a impressão de que Amélia não olha desse jeito para muitas
pessoas.
Eu adoraria mimar essa mulher. Todo dia. O tempo todo.
Ela quebra o contato visual, vendo algo atrás de mim que a
desagrada. Acompanho seus olhos, que vão até um cara estranho. Ele está a
algumas mesas de distância e acena para Amélia com animação. É um
homem mais velho, na casa dos cinquenta, com cabelos e barba brancos.
Usa óculos com aquelas armações de tartaruga.
— Você o conhece?
— É o orientador do curso, foi ele quem fez minha entrevista —
morde os lábios. Meu Deus, já são inchados naturalmente. — Devo ir lá?
— Acho que...
— Não, né? Nos vimos uma hora atrás, seria esquisito.
Pela cara de Amélia, ir naquela mesa parece o equivalente a fazer
um corte na mão. Na verdade, tenho certeza de que ela preferiria o corte.
Minha pequena introvertida.
Ela não tem ideia do quão irresistível é.
— Acho que você deveria, sim — coço a barba. — Você o
conquistou com sua inteligência, agora é hora de usarmos o charme.
— Vince.
— Eu estou aqui.
Se crescer na minha família teve desvantagens, essa não foi uma
delas. Tive que conhecer gente o tempo todo. Levanto-me e espero que ela
faça o mesmo. Quando se coloca de pé, infeliz, fico ao seu lado.
Tento evitar, mas por instinto e porque quero que Amélia me sinta,
coloco a palma aberta na base de sua coluna.
— Sorria — peço, e andamos em direção ao excêntrico.
— Srta. Reid! — Alguém está muito chapado. — Ora, que
coincidência!
— Olá, Sr. Matthews.
— Me chame de Louis — ele se vira para mim. — O que você tem
aí?
— Esse é Vince.
Meu nome vai sem nenhum título acompanhando, e me pergunto
se é intencional.
É irritante.
— Olá, Louis — abro um sorriso grande. — É um prazer conhecê-
lo.
Louis me olha de uma forma não totalmente hétero, mas é o
mesmo olhar que ele também dá a Amélia. Assim como a mulher ao lado.
Acho que seremos convidados para uma sessão de swing.
— Jesus Cristo, veja isso, Julie! Que casal! Não é à toa que
correram para terem filhos juntos!
Esquisito da porra.
— Pois é, quem pode me culpar? — Pergunto, retoricamente.
Talvez estar em um relacionamento estável ajude Amélia naquela parte de
conseguir a bolsa? Porque daí, ele veria que ela tem alguém para ajudá-la
com a filha.
Muito bem, é uma ideia horrível.
Ela não precisa de mim.
Pior, vai ficar ofendida. Viro-me para o lado, pensando na
expressão de desculpas. Mas Amélia ri, corroborando o que digo.
— Vamos tomar algumas bebidas no bar ao lado, por que não se
juntam a nós?
— São algumas horas até New Castle, precisamos pegar a estrada.
A bebê está com a babá — Amélia diz, passando a mão pelo meu ombro.
Porra, o gesto vai me fazer andar com uma ereção desgraçada por
esse restaurante legal.
É complicado.
Consigo ver o que está acontecendo aqui: se esse cara, Louis, não
estivesse seriamente considerando escolher Amélia, não haveria motivos
para querer passar tempo com a gente.
— Podemos mandar uma mensagem e conferir com a babá, né,
Amélia?
— Sim, Vince — diz ela com os dentes cerrados. — Podemos.

Um dia, Johan me convenceu a ir para um fim de semana de trilha,


que envolvia um monte de idiotas sendo jogados na natureza sem
instrumentos para sobreviver. Disseram que era um teste de resistência.
Foi mais fácil do que esta noite.
Eu e Amélia estamos sentados lado a lado, em uma mesa para
quatro com Louis e Julie – o orientador e sua esposa. Ela fica esbarrando
em mim porque suas pernas não param quietas. É o único sinal de que está
ansiosa, o que me deixa ansioso por outras razões.
Eventualmente, coloco a palma na coxa dela e seguro, fazendo
com que sossegue. Amélia arregala os olhos e fica vermelha até a ponta do
cabelo, mas continua conversando como se nada estivesse acontecendo.
Minha vontade é jogá-la em cima da mesa e fazê-la se acalmar.
Preferencialmente, com a língua na junção entre o pescoço e a mandíbula;
ou na pele macia do pulso, onde posso sentir o coração palpitando.
Amélia odeia ser o centro das atenções, mas é boa nisso. Tem a
mesa inteira – e alguns filhos da mãe da mesa ao lado – na palma da mão.
Mesmo estando presente na conversa, ainda guarda um pedaço dos seus
pensamentos para si, o que, involuntariamente, aumenta o interesse de
qualquer um.
Fascinante.
— Então, vamos lá. Conte-nos como se conheceram — Louis
pede, virando outro copo. Ele está pra lá de embriagado.
Não sei explicar, mas sinto que, além de amar festejar e amar sair
com casais jovens, como frisou várias vezes, ele também está nos testando.
Testando ela.
— Bem, como todas as histórias de amor modernas, nos
conhecemos em um bar — Amélia se adianta, mantendo parte da verdade.
— Oh, é mesmo?
— Sim — confirmo. — Eu estava tendo uma tarde tranquila, sabe,
até Amélia chegar com o rosto todo nervoso. A coisa mais linda que já vi na
vida.
Outra verdade.
— E você a chamou para sair? — ele pergunta, animado.
— Sim, mas, é claro, ela não aceitou — olho para Amélia enquanto
respondo as perguntas do homem, e há na sua expressão uma pitada de
inquietação. — Tive de persegui-la por meses.
— Eu também faria isso.
Amélia não presta atenção no homem, ela está toda em mim, com
os olhos verdes brilhantes.
Mas eu ouço, e, inferno, uma onda muito forte de ciúmes me
atinge.
Desgraçado. Flexiono as mãos, tenso. Ele não é uma ameaça,
racionalmente falando, sei que é apenas um esquisito sexualmente
espalhafatoso.
Caramba, sua esposa está ao lado.
Mas estou irritado mesmo assim, com a necessidade de traçar
limites claros. Louis poderia ser uma mulher, eu ainda ficaria com ciúmes.
— Vejo que acertei um nervo — ele pondera. — Vocês são…
exclusivos?
Filho da mãe.
Amélia engasga com a taça de vinho, rindo.
Eu, por outro lado, não acho graça. Pego sua mão, entrelaçando
nossos dedos, e a trago para perto de mim. Levo até os lábios e mordisco o
pulso – um gesto instintivo de posse.
Ela engole a risada e fica séria em um segundo.
20
AMÉLIA
Eu não sou uma pessoa matutina. Por Deus, acho que trocaria uns
cinco anos de vida para ficar deitada por mais tempo.
Levanto emburrada – naturalmente – e começo a rotina da manhã.
É chamado de rotina se eu só acordo e escovo os dentes?
Sei que Rorie está acordada. Ela desperta invariavelmente às seis.
Eu poderia usá-la para acertar um relógio. Mas não está naquela fase de
chorar para que eu vá até lá, o que me faz amá-la mais do que nunca.
Geralmente, até tenho tempo de fazer algo na cozinha e me arrumar antes
que ela se junte a mim.
Assim que saio do banheiro, a campainha toca. Atendo,
estranhando. Não é hora de bater no apartamento dos outros.
Vince.
Claro que sim, quem mais seria? Vasculho a mente, mas não me
lembro de ter combinado algo com ele quando me deixou aqui, tipo, cinco
horas atrás.
— Você não checou no olho mágico — me repreende, com as
sobrancelhas grossas franzidas.
— É New Castle, o que poderia acontecer? Uma escoteira oferecer
biscoitos?
Ele sorri.
Sorri.
— Não é fã de manhãs, hum? — pergunta, entrando. — Eu trouxe
café.
Sim, sinto o cheiro. Quase gemo.
Quando a cafeína entra no meu sistema sanguíneo, me esquentando
de dentro para fora, presto atenção no que está acontecendo ao meu redor.
Ele tira a jaqueta, deixando-a pendurada em uma cadeira. Por um
minuto, fico parada, só encarando as mãos dele. Grandes, com veias
saltadas. Ele todo é grande. Quais as chances de…? Jesus, a libido de
mulheres de manhã devia ser estudada. Eu faria um uso tão bom desses
membros fortes.
Um calafrio gostoso e carente percorre meu corpo. Já faz tempo
demais desde que tive contato físico com alguém. Mais de um ano.
Só que, mais do que tesão, é o homem.
— Temos rosquinhas de canela, chocolate, as comuns, e uma sem
açúcar, caso você… — acena para o meu corpo.
Acompanho o gesto, notando o quão lamentavelmente estou
vestida. Não é sexy, não é nem bonitinho. Uma calça de moletom velha e
um blusão mais velho ainda. Tem um rasgo gigante na manga.
Como uma mendiga.
— Eu vou me vestir — resmungo, querendo morrer. A expressão
de Vince fica toda divertida.
— Tome café primeiro — sugere. — Antes de esfriar.
Sim, ele está certo. Sento na mesinha de dois lugares, com o rosto
queimando.
— Vou querer a de canela. É a minha preferida — acrescento, sem
motivo aparente.
— É por isso que tem esse cheiro.
— Cheiro?
— Sim, canela. E outra coisa doce que ainda não descobri o que é.
Cristo.
Vince enfia as rosquinhas na boca, parecendo um filhote de dragão,
imperturbável, como se fosse completamente normal.
Não é. Não tem nada de normal nessa manhã.
Limpo a garganta.
— Você precisa de algo?
— Não.
Ok.
Por que está aqui, então?
— Certeza? — insisto, e ele compreende o que quero perguntar.
— As férias de verão terminam hoje, e eu sou sua carona.
Oh.
Veio me levar para o trabalho.
— Você não precisa, Vince. É sério.
O homem nem se digna a responder, só dá de ombros.
Não há Uber em New Castle.
Não tenho número de táxi e, francamente, não me lembro de ver
um andando na rua. São três quilômetros, o que não é impossível fazer a pé,
mas com Rorie…
— Obrigada — murmuro baixinho.

O café da manhã é tranquilo. Consigo me vestir e tentar pentear os


cabelos, até desistir e deixar como estão – ainda precisando de uma boa
escova. Rorie decide que meu momento de folga chegou ao fim, e um grito
irritado me faz correr, calçando as botas, até o berço.
— Bom dia, querida. Dormiu bem? O que estava fazendo?
Brincando com o cachorrinho?
Rorie ainda não superou seu cachorro de brinquedo. Mal posso
esperar para ter um lugar onde ela possa ter um de verdade. Quando era
criança, tinha um na minha vizinhança que eu adorava. O bichinho vivia
faminto, e não tive coragem de trazê-lo para casa – eu também vivia
faminta. Lá fora, pelo menos, havia uma chance de alguém o adotar. Espero
que tenha acontecido.
Troco a fralda e a visto com a roupa que ela passará o dia. Uma
touca de crochê com uma flor extremamente brega. Eu a adoro. Saio do
quarto e encontro Vince sentado no sofá, mexendo no celular. Quando nos
aproximamos, ele faz uma expressão estranha ao olhar para Rorie.
Impressionado.
Melancólico, também.
— Ela cresceu.
Eles se viram há algum tempo.
Rorie tem nove meses. Ela ainda é bastante sociável, mas está
muito mais cautelosa com desconhecidos agora. Após uma longa análise do
gigante na nossa sala, a bebê olha para mim, como se perguntasse "quem
diabos é esse?"
— Acho que ela não se lembra de mim.
Sim, o que é... ruim. A tristeza está prestes a me dominar, mas não
permito. São só sete horas da manhã, preciso esperar, pelo menos, até a hora
do almoço para ficar deprimida.
— Eu tenho que alimentá-la. Você poderia...?
— Claro — ele me interrompe, prestativo. — Vou pegar... um
lenço?
Hum?
Ele está encarando meus seios.
— Parei de amamentar quando mudamos para cá — explico,
ficando vermelha. — Rorie estava indo para a creche, foi mais fácil assim.
Não sinto falta dos seios doloridos, mas parte de mim se apega às
falhas que cometo com ela. Todos aqueles livretos sobre a importância da
amamentação... E se foi por isso que minha bebê adoeceu? Não é a primeira
vez que essa ideia me passa pela cabeça.
— Tem uma mamadeira em cima do micro-ondas. Você pode
pegar, por favor?
Ele vai buscar enquanto eu preparo Rorie. Tento não fazer uma
cara estranha quando vejo Vince experimentando uma gota nas costas da
mão.
— Não é tipo leite normal — dá de ombros. — Queria saber por
que bebês gostam tanto.
Ok, nada esquisito.
— É fórmula infantil. Não é realmente leite... é tipo uma mistura
com os nutrientes que os bebês precisam.
Estou realmente falando sobre leite com Vince? Provavelmente sou
a mulher mais interessante que ele conhece. Fujam, garotas, Amélia está
chegando com divagações sobre amamentação, bebês e, pelo ritmo, crochê.
Começo a andar pela sala enquanto dou a mamadeira para Rorie, e
Vince senta em uma banqueta, observando nós duas com completa atenção.
Tento não cantar, mas não dura nem um minuto até eu começar a murmurar
My Girl.
Nunca vou admitir em voz alta, mas, como todas as mulheres deste
planeta, vivi a fase de ser fã da banda Bad Habits. Quando Carter Hunter
compôs My Girl para a esposa, achei brega e extremamente meloso. No
momento em que conheci Rorie, entendi o que ele quis dizer. Não pela parte
do amor romântico, mas pelo amor de alguém a ponto de sentir que perdeu
o próprio coração.
Canto essa música para minha filha todos os dias. Talvez eu não
possa lhe dar memórias incríveis de viagens e presentes grandiosos, então
tento fazer desses momentos simples algo que ela possa lembrar quando for
adulta e pensar em mim.
— Rorie tem muita sorte de ter você como mãe.
Sorrio, com a cabeça ainda baixa, olhando para a bebê. Ele nunca
vai saber o que essas palavras significam para mim. Eu nunca achei que
poderia ser mãe. Rorie não estava nos meus planos, nem mesmo quando
engravidei. Foi só depois, quase no final da gravidez, quando Jasper ficou
especialmente idiota e me vi tentando proteger não a mim, mas ela, que
soube o que minha filha significava.
Absolutamente tudo.
Quando a mamadeira chega ao fim, paro de andar e dou um cheiro
no pescoço gordinho, recebendo uma gargalhada gostosa em troca. Viro
para Vince, embriagada pela felicidade causada por bebês fofos.
— Estamos prontas.

VINCE
Descemos as escadas. Amélia está com Rorie pendurada no quadril
e eu carrego as bolsas.
Ela não se lembra de mim. Dói mais do que consigo compreender.
Caramba, eu não esperava que a garota que partiria meu coração ainda
usasse fraldas. Tento relaxar, raciocinar que estou sendo tolo por me sentir
tão machucado, mas tenho certeza de que meu sorriso está forçado.
Sou um esquecido.
— Droga, a cadeirinha ficou no meu carro.
Amélia não é a pessoa mais animada do planeta de manhã cedo.
Achei que fosse me estrangular quando abriu a porta com aquela carranca
fofa e roupas grandes demais. Isso me fez pensar em como ela ficaria linda
vestindo minhas blusas.
— Tenho uma — digo, abrindo a porta traseira.
— Por quê? — Olha para dentro, chocada, e depois para mim. Seus
olhos estreitam. — Você tem uma sobrinha?
Não posso fingir que é o antigo assento de Justin. A cadeirinha é
cor-de-rosa e toda enfeitada. Comprei no dia seguinte ao nosso beijo,
quando disse que poderíamos ser amigos. Estava guardada lá em casa.
— Não — respondo, dando de ombros. Ela já sabe disso. — É para
Rorie.
Amélia pisca, com pensamentos a mil. Desconfiar é sua primeira
natureza. Quero beijar o vinco em suas sobrancelhas e dizer para relaxar.
Afinal, somos nós.
Mas não posso, não é tão simples.
— Vamos, você vai se atrasar — resmungo, fingindo impaciência.
Com humor, claro, porque um chute nas bolas nunca está descartado.
Ela se ajeita para prender Rorie, deve ter umas vinte e cinco
fivelas, não me atrevo nem a tentar. É uma coisa de mães.
Não, me corrijo. Posso muito bem aprender. Vou fazer da próxima
vez.
Os bancos são altos, e antes que eu possa ajudar, Amélia ajoelha no
estofado. Ela está de botas longas e a saia quase chega nos joelhos, então,
quando estava de pé, mostrava só um pedacinho de pernas cobertas por
meia-calça.
Nessa posição, a saia se enrola nas coxas, mostrando a forma
perfeita da bunda. Porra. Feita para adorar. Feita para mim.
Ouço-a amaldiçoando baixinho, provavelmente percebendo que
estou tendo uma visão privilegiada. Pula para fora, toda apressada, e se
desequilibra. Instintivamente, estico as mãos e seguro seus braços,
firmando. Todos os pelos do meu corpo se arrepiam de imediato.
Ela ergue o olhar, parece em câmera lenta. Seus olhos são verde-
esmeralda e cheios de uma intensidade que me desarma completamente.
Como, em nome de Deus, olhos podem transmitir tanto calor?
Não a solto. Seguro por tempo demais para ser um acidente e sinto
seu coração bater, aflito. Ela fecha as pálpebras. Não são só os olhos de
Amélia que são quentes, toda ela é.
— Abra — exijo, minha voz grossa e baixa. Perco o fôlego, ser
encarado por ela é sempre um nocaute. — Você tem os olhos mais bonitos
que já vi.
Amélia abre a boca, sem saber o que dizer. Não consegue formular
palavras. Acaricio seu queixo com o polegar, e abro a porta para ela entrar.
A primeira parada é na creche. Caminho com as duas até a entrada
e não vou mentir: fervo de ciúmes quando a menina aceita, tão alegremente,
o colo de uma das monitoras. Não posso ser só um estranho para ela.
Depois, dirijo até a escola para deixar Amélia. Adorei nosso tempo
juntos. Ser adoravelmente maltratado de manhã, antes de enchê-la de
cafeína. Falar besteiras melosas até ficar toda desmontada.
— Te pego às três? — Pergunto.
— Tudo bem.
— Não diga…
Espera, ela concordou?

— Como está o conserto do carro da Amélia?


Johan bufa, limpando as mãos sujas de graxa no uniforme. A
oficina deles é bem grande e, em teoria, Johan deveria trabalhar no
escritório que têm nos fundos. Mas ele não suporta ficar lá, então contratou
uma jovem secretária e agora fica no piso de baixo, trabalhando com os
outros mecânicos.
— Tipo, o motor fodido que ela trouxe ontem?
— É. Exatamente esse. Você pode arrumar?
— O carro é uma merda — diz, folheando uma prancheta até achar
a ficha certa. — Amélia acha que um cara a enganou antes de vir para cá, o
que provavelmente é verdade. — Desgraçado. — Se eu der um jeito nesse
motor, deve durar mais uns meses, só para dirigir dentro da cidade. Agora,
trocar por um novo é uma opção, mas custa quase o mesmo que o carro
vale, então... — dá de ombros. — Tenho que ligar para ela.
Merda.
Sei, do fundo do meu ser, que a Amélia não aceitará qualquer
ajuda. Ela pode se virar sozinha e não deixa que ninguém pense o contrário.
Mas trabalha na escola.
É uma mãe solteira, vivendo de aluguel com uma bebê. Está para
voltar para a universidade, o que implica dirigir até Denver com frequência.
— Troque o motor, diga a ela que alguns ajustes foram o
suficiente.
— Devo te mandar a conta, suponho — balança as sobrancelhas,
como se ele já não tivesse feito exatamente a mesma coisa um monte de
vezes. O cara tem o coração mais mole do mundo.
— Sim, mas não agora. — É hora de mostrar a Johan o que tenho
planejado. — Vamos, temos que estar em um lugar.
— Onde? É surpresa? Você sabe como me sinto com surpresas.
Sim, ansioso como uma criança na noite de Natal.
— Você vai gostar, prometo. — Afinal, estou basicamente o
levando para brincar. — Tire esse macacão e se apresse.
Johan obedece, curioso. Quando entramos no carro, ele solta um
urro, rindo. A cadeirinha cor-de-rosa.
— Nem uma palavra.
— Carona, é? Você precisa que eu segure o conserto um pouco?
Bem… sim?
Decido ignorá-lo pelo resto do caminho. Atravessamos a cidade
inteira.
— Escola? O que estamos fazendo aqui?
Não é a escola do centro, onde Amélia trabalha, é a outra. Maple
Grove.
— Jogar — sorrio. — Vamos conhecer alguns moleques.
21
AMÉLIA
É uma sexta-feira, e atendo cinco crianças. Inclusive Justin.
É impossível ver o menino e não lembrar do seu tio.
Ah, quem estou querendo enganar? Penso em Vince com uma
frequência assustadora. Ele esteve no apartamento às seis da manhã e na
porta da escola às quatro da tarde durante a semana inteira. Todos os dias.
Esse cuidado me emocionou e me deixou cada vez mais ansiosa pelos
momentos que passaríamos juntos. Estranhamente, não trocamos números
de telefone, então é sempre uma surpresa.
Especialmente agora, que não preciso mais de carona.
Johan demorou apenas uma semana com o serviço e ainda deixou
que eu usasse um cheque para pagamento em trinta dias. Achei
pouquíssimo esperto da parte dele, mas muito gentil. O conserto do meu
carro custou duzentos dólares, um dinheiro de que vou sentir falta, mas pelo
menos sou capaz de pagar.
O que não sei se darei conta são as despesas médicas. O seguro de
saúde que a escola oferece aos funcionários é bom para casos de acidentes
ou internações, mas para exames "especulativos", estou por conta própria.
Rorie teve surtos de febre estranhos, que aparecem e somem do nada.
Levei-a ao Dr. Charles, e só a consulta me custou um mês inteiro de salário.
Ele recomendou exames que, se o seguro não cobrir, vão custar muitos
meses de salário.
O lado ruim de ser a moradora nova nesta cidade minúscula:
aposto que, se um banco fosse roubado, apareceriam na minha porta em
cinco minutos.
E não estariam errados, porque realmente seria eu.
— Perdida em pensamentos, Reid? — Levanto os olhos. Emily. É
uma das professoras legais. Daquelas mulheres que você jura que vai odiar
porque são todas falantes e alegres demais, mas que acabam sendo ótimas
de se conviver. Gosto dela.
— Minha cabeça está nas nuvens — confesso, suspirando. — E
você? Como está?
Ela sorri como se a pergunta fosse tudo o que precisava.
Meu Deus. Eu conheço essa expressão; os extrovertidos sempre
dão essa espécie de saltinho quando estão prestes a empurrar nós, do lado
depressivo da força, para algum lugar que não queremos ir.
— Estou ótima! Você sabe que vamos sair hoje para comemorar o
aniversário da Mikaela, certo?
— Hum… sim?
Na verdade, não. Tenho que parabenizar a secretária quando a vir.
— Então, você vai se juntar a nós.
Não é bem uma pergunta.
Por sorte, tenho a carta de mãe solteira.
— Não posso, tenho um monstrinho que preciso alimentar e pôr
para dormir.
— Sim, a pequena Rorie — estreito os olhos, e ela revira os dela.
Nunca disse o nome da minha filha, acho. — Existe uma coisa chamada
babá. Elas são ótimas e cobram vinte dólares por hora.
— Eu não acho…
— As professoras acham que você pensa que é boa demais para
sair com a gente — me interrompe.
Sério?
— Você não vai negar? — pergunta, cutucando. — Dizer que estão
enganadas e que você é só tímida?
— Eu não sou tímida.
— Eu sei, eu sei — desdenha. — Você só é meio emo.
O quê?
— De toda forma — ignora meus olhos arregalados — você já está
aqui há quatro meses, não é ruim se deixar conhecer pessoas, sabe? Veio
morar em New Castle, afinal, a vida em comunidade faz parte.
Esse comentário me pega desprevenida. É o que sempre sonhei,
certo? Criar Rorie em um lugar onde as pessoas se importam?
— Além do mais, Cameron vai estar lá.
— Certo.
Essa informação deveria significar algo?
— Não seria um encontro nem nada, claro. Todas vamos estar lá.
Mas talvez vocês pudessem se conhecer melhor…
Caramba.
— Não — nego, e seu beicinho treme. Merda. Impelida, corrijo. —
Ok, se eu conseguir que minha babá fique com Rorie, apareço por lá, tudo
bem?
Quarenta dólares a menos.
— Molly? Ela está livre.
— Você a conhece?
— É minha sobrinha. — Como diabos eu não sabia disso? — Você
vai poder ir. Ótimo! Nos encontramos às sete.

É claro que a reunião é no bar do Vince.


Sabe-se lá quantas guerras iniciei em vidas passadas, mas aqui
estou, sofrendo as consequências.
O destino original era outro, uma pequena pizzaria na saída da
cidade. Só que somos mais de quinze pessoas e, como ninguém pensou em
fazer reserva, não conseguiram acomodar todo mundo. Alguém sugeriu vir
para o Caverna, e aqui estamos.
— Acaba que você basicamente voltou para casa — Emily ri, me
empurrando entre as mesas. Ela me adotou, pelo que parece. — Vince
Warren. Você é sortuda por ter um vizinho desses.
É, nem me fale.
Quando chegamos, ele não está à vista. Achei que ficaria aliviada,
mas a verdade é que estou bastante decepcionada.
Mais ainda quando Cameron se senta na minha frente.
Comparo-o com Vince, e as duas cervejas que bebi rapidamente
sobem à minha cabeça. Cameron tem um sorriso gentil e olhos cor de
chocolate. Ele é muito bonito. Dá aulas de literatura, o que é um emprego
decente. Gosta de crianças.
Como dizem as pessoas dos anos cinquenta, um bom partido.
— Saia comigo amanhã.
Isso foi direto. Olho em volta, mas ninguém está prestando atenção
à nossa conversa.
— Hum... eu vou estar ocupada — consigo dizer.
— É? Com o quê?
— Vou passar o dia com minha filha.
Espero que essas palavras o façam mudar de ideia. Dizer que sou
mãe é uma ótima forma de afastar pretendentes. É improvável que Cameron
não saiba disso, mas é sempre bom deixar claro.
Não acontece. Na verdade, ele pede, com interesse:
— Você tem uma foto?
Ninguém deveria pedir à mãe de um bebê fotos se não estiver
preparado para ter o celular enfiado na cara com dezenas de fotografias. É
exatamente o que faço, tirando o aparelho do bolso.
— Ela é tão linda quanto você — elogia. — Um ano?
— Quase lá, Rorie tem nove meses.
— Eu tenho esse primo de dois anos, Sean. Gosto de levá-lo ao
restaurante de frutos do mar que fica no centro, porque tem um aquário
enorme na parede, e as crianças adoram ficar vendo os peixes nadarem.
— Parece adorável.
De verdade.
— Um ótimo lugar para um encontro, não acha?
Fico sem palavras.
É um pouco patético da minha parte, sei disso. Mas é difícil não
me sentir bem. Lisonjeada. É um homem bonito, carismático, e não pensou
duas vezes antes de incluir Rorie nos planos.
— Levarei Sean também para, sabe, fazer companhia para a sua
bebê.
— Está usando seu priminho para conseguir um encontro?
— Depende, está funcionando? — pergunta com esperança.
— Sim — concordo, rindo. — Um pouco, sim.
Mordo os lábios. Será? Ele não é Vince, mas, bem, Vince me jogou
na friendzone. Estou sendo completamente egoísta, mas talvez sair com
alguém possa me ajudar a tirá-lo da cabeça.
— Tudo bem.

VINCE
Não a vejo de imediato.
Entro no bar e sirvo algumas bebidas no balcão. Estou pensando
em como fazer para passar mais tempo com Amélia agora que ela tem seu
carro, e em como não estragar tudo no processo. Preciso protegê-la da
confusão que está a minha vida. Quando meu olhar vai para as mesas no
canto do bar, é como se meus pensamentos se materializassem.
Engasgo com minha própria saliva.
Ela está aqui. No meu bar. Meu espaço.
Mas não é só isso.
A beleza de Amélia é algo tão óbvio que nem precisaria ser dito.
Ela é aquele tipo de pessoa em que Deus deve ter perdido muito tempo
desenhando os detalhes. Não é convencionalmente bonita, não é o tipo de
mulher que você olha e pensa que parece uma boneca. É muito mais
desconcertante. Os olhos amendoados, a curva imaculada da boca larga, o
bronzeado combinando perfeitamente com os cabelos escuros.
Amélia foi feita para tirar o fôlego de qualquer um.
E eu sabia disso antes mesmo de vê-la se arrumar como hoje.
O cabelo está cuidadosamente penteado, preso na parte de cima e
solto atrás, com cada onda brilhante caindo nos ombros. O rosto sem um fio
fora do lugar – e que rosto. Hoje, não satisfeita em me enlouquecer com o
básico, está com uma maquiagem amarronzada que realça os olhos
assassinos e a boca carnuda pintada de vermelho.
Vermelho, como sempre está nos meus sonhos obscenos.
Caminho, hipnotizado. Ela veio com as mulheres da escola, o que é
bom, está fazendo amizades. Sorrio, feliz. A sensação dura dois segundos,
porque logo percebo o cara à sua frente. Cameron. O sujeito a olha como se
Amélia fosse a próxima refeição.
Ele está perto demais, inclinado em sua direção, sorrindo de um
jeito que me faz querer socar alguma coisa. Sem pensar, me aproximo.
— Ei, pessoal — digo com um sorriso, cumprimentando a todos.
Faço um esforço para manter a voz casual, embora a tensão esteja me
corroendo por dentro. — Amélia.
Ela olha para mim, as bochechas ficando absolutamente vermelhas,
como se tivesse sido pega fazendo algo errado. Tipo, flertando com um
homem bem no Caverna. Estou chateado, mas é fácil perdoá-la. Foco minha
revolta nele.
— Bebidas por conta da casa — digo. Sem permissão, me coloco
atrás de Amélia e seguro a cabeceira da cadeira com os braços flexionados,
de forma que fiquem ao seu redor, mesmo sem tocá-la.
Sinto sua confusão – o calor. Deus, nem preciso falar do cheiro. É
enlouquecedor. Fica mais forte quando Amélia está inquieta.
— Você não tem de trabalhar? — murmura.
Sorrio. Não vou sair daqui.
— Derek vai servir — faço um gesto para chamar o garçom. O bar
não está tão cheio, ele dá conta. Por mim, as pessoas podem entrar no
balcão e ficar à vontade.
A mesa fica em silêncio, algumas mulheres olham, surpresas, para
nós dois. Conheço de vista a maioria.
— Oh, não queria atrapalhar — minto descaradamente. — Por
favor, continuem.
Uma mulher que me lembro chamar Emily começa a tagarelar.
Porra, ela está tão feliz falando. Conta uma situação que passou na escola
sem pé nem cabeça. Crianças são estranhas.
No início, sinto o corpo de Amélia nervoso. Só que ela não resiste.
Em meia hora, está quase se aninhando no meu peitoral. Tem de se esforçar
para não encostar em mim.
Cameron está indignado, mas tenta fingir que não. Aproveito
quando o restante da mesa se distrai para levar meus lábios à orelha dela.
— Ele é seu amigo?
Amélia vira o rosto para mim e sussurra “é sério?”
Dou de ombros, porque sim, é sério. Ela não responde, franzindo o
nariz, irritada. Mas não se afasta. Emburrada e colada em mim? Considero
uma vitória.
Não estou prestando atenção na conversa. A proximidade com
Amélia toma todas as minhas forças. Ela diz algo de vez em quando. Sorri
muito, e são sorrisos honestos. Devo levá-la para sair, para encontros…
Deus, é tão madura que às vezes esqueço o quão jovem ela é. Apenas vinte
e quatro.
O que eu estava fazendo aos vinte e quatro?
Ah, sim. Porra. Estremeço, empurrando a resposta para longe.
— Me digam, como a Amy é na escola? — Uso, intencionalmente,
o apelido que só eu tenho para ela.
Fofo.
Certo, uma forma de marcar território também. Eu sei disso, ela
sabe. Cada pessoa dessa mesa sabe.
— Está sempre com o nariz enfiado em um relatório e se esquece
de conversar com o resto de nós — Emily responde. — Uma emo completa.
Sim!
Meu Deus, emo pra caralho.
Todos riem.
— Vocês estão loucos — se defende, bufando. — Eu não sou emo,
isso nem existe mais! Nunca colocaria tinta preta no meu cabelo e odeio
poesias.
— A expressão entediada o tempo inteiro... Todo aquele silêncio!
Às vezes fico preocupada, pensando que ela vai passar o dia sem interagir
com ninguém, exceto com a bebê.
Concordo com tudo. Dessa vez, até Amélia ri. Tenho uma vontade
gigante de passar os braços ao redor da cintura e dar um aperto firme, só
para sentir a risada.
— Acho que Amélia consegue ser muito sociável quando quer —
Cameron entra na conversa, muito atrevido. O riso some, e meu maxilar
aperta.
Eu costumava gostar dele, agora não mais.
— É claro que consegue — respondo rapidamente, antes que
alguém possa dizer qualquer coisa. — Ela é incrível em tudo o que faz.
O rosto dele fica vermelho de raiva.
— Sim — Cameron confirma com um sorriso forçado. — Vejo
isso todos os dias de primeira mão.
Está tentando me irritar, e está funcionando. Estou a um passo de
fazer algo idiota, que vai deixar Amélia furiosa e ele saindo como o bacana.
Engulo o comentário ácido e fecho a cara.
— Isso é muito gentil — ela murmura, envergonhada. — Da parte
dos dois.
22
AMÉLIA
Não estou com raiva.
Eu estava com raiva horas atrás, agora estou a um passo de
estrangular Vince. Preciso sair daqui. Não bato em ninguém há anos e não
vou começar na frente dos meus colegas de serviço.
Graças a Deus, o garçom o chamou para resolver alguma coisa e
ele teve de se afastar. É minha deixa. Porque, por mais que esteja nervosa,
quando Vince está perto, possessivo e carinhoso, não penso direito. Faz
tudo ser ainda mais enervante.
— É, gente, acho que vou embora — falo casualmente, tentando
esconder o constrangimento. Todos estão chocados, absorvendo as coisas,
saboreando a fofoca.
Acham que dormimos juntos.
Agora sou Amélia, uma emo meio vadia. Isso me deixa lívida. Sou
fã de liberdade sexual e foda-se os conservadores, mas não sou burra. A
cidade é minúscula e, depois que as pessoas têm uma visão de você, é quase
impossível se livrar dela. Não quero que Rorie cresça ouvindo coisas ruins
da mãe, como aconteceu comigo.
— Tem certeza, querida? — Emily pergunta. Ela não é má, mas vai
me fazer tantas perguntas que até a ONU vai considerar tortura.
Olho para Vince, do outro lado do cômodo. É tudo culpa dele,
agindo na frente de todo mundo como se tivéssemos algo.
Idiota.
Sim, definitivamente tenho de ir.
— Boa noite.
— Relaxe, Amy — diz com um sorriso brincalhão, antes que eu
me vire. — Pegue leve com ele. Parece que está muito a fim de você.
É, assim como parecia quando me conheceu. Ou naqueles dias em
que Levi estava aqui. Parecia muito a fim também quando nos beijamos no
carro, e na vez em que o esquisitão do curso queria me chamar para um
ménage. Todas essas vezes terminaram no mesmo: nada.
Exceto que ele sempre me dá um fora depois disso.
Meu Deus, sou ridícula.
Saio apressada e chego ao apartamento em tempo recorde. Pago
Molly. A noite está tão infeliz que nem mesmo Rorie me esperou acordada,
então não tenho nada para me distrair.
Entro para o banheiro. A água quente, batendo no meu corpo à flor
da pele, só me deixa mais irritada.
Como ele ousa?
A fofoca vai se espalhar como fogo. Ainda tem Cameron! Minha
nossa, o homem ficou tão deslocado. Ele foi legal demais com a coisa toda,
e eu não soube como me desculpar sem piorar a situação. Para Vince, sou
um brinquedo que ninguém mais pode brincar? Certo, a analogia é ridícula,
mas é ótima para ilustrar.
Saio do banho. A vontade de voltar para o bar e gritar com Vince
nem se mexeu. Não vou fazer uma cena, só tornaria a situação mais
escandalosa.
Eu o odeio.
Quero odiar.
Mas não consigo, não ele.
A pior parte de tudo, a que me faz querer chorar – não de tristeza,
mas de desprezo por mim mesma – é que não foi ruim. Foi excitante. Por
alguns momentos, parecia que era real e, se fosse… Jesus, eu adoraria ter
Vince agindo daquele jeito, me exibindo como sua.
Fez com que me sentisse valiosa.
E eu não me sinto assim há muito, muito tempo.
Tentando decidir se devo nunca mais falar com ele ou sacudi-lo até
que pare de brincar comigo, ouço batidas na porta. Meus olhos arregalam
de indignação. Convenhamos, é muita audácia.
Abro a porta com o queixo levantado, desafiando-o a dizer algo.
Estou pronta para um confronto, e posso ver que Vince também. O homem
é alto, eu sei disso, mas neste momento, com a expressão que está, a
impressão é que cresceu duas vezes o próprio tamanho.
— Você saiu sem se despedir — repreende.
Ao invés de chamá-lo para entrar, fecho a porta atrás de mim e me
afasto para o pequeno corredor. Vince é um grande cretino.
Infelizmente, o gesto também faz meu estúpido coração disparar.
— Não podemos mais fazer isso. Foi legal nas primeiras vezes,
agora é só ridículo.
— Do que você está falando?
Meu Deus.
Controle o gênio, Amélia.
— Eu sou cansada, Vince. Não estou, sou. Não tinha saco para
ficar brincando nem quando era adolescente, imagine agora — cuspo,
levantando a voz.
— Amélia…
— Você viu Cameron me chamar para um encontro, não foi? —
Cada palavra sai com uma nota de angústia diferente. — É por isso que fez
aquilo. Nem pensou no que significava para mim.
— Você não vai sair com Cameron — descarta, como se a ideia lhe
fosse ridícula.
De tudo o que eu disse, é nisso que ele se agarrou?
— Espere, você aceitou? — grunhe, rangendo os dentes. Os olhos
azuis, geralmente gentis, estão rugindo energia contida.
Quem ele pensa que é?
— Aceitou?
— Não é da sua conta.
— Amélia — fala meu nome como se a palavra o machucasse
fisicamente. — Me responda.
— Sim, aceitei. Cameron vai levar eu e Rorie para um restaurante
legal no centro. Feliz?
Vermelho sobe pela sua garganta.
— Rorie? Você falou da Rorie para ele?
— Ela não é um segredo! Nunca escondi que tenho uma bebê!
— Não foi o que…
— O que? Eu não posso ir a um encontro porque sou mãe?
— Claro que pode — responde sem pestanejar. — Pode ir em
quantos encontros quiser.
Ótimo.
— Comigo.
VINCE
Amélia está puta.
O negócio é que ela é a coisa mais linda do mundo quando está
nervosa. Olhos faiscando, sobrancelhas fechadas e uma veia saltando na
têmpora. Se eu já não estivesse tão apaixonado, ficaria nesse momento.
Os lábios parecem pétalas de rosas, e aposto que são tão macios
quanto. Quero beijá-la. Essa boca é minha, não de Cameron.
Dou dois passos em direção a ela que recua até ficar encostada na
parede. Olha, alarmada, para os lados, certificando que não há ninguém por
perto – ou procurando uma rota de fuga. Ao constatar que não, volta para
mim, com as pupilas dilatadas como as de um gato selvagem.
Todo mundo tem um ponto fraco, e o meu é ela. Não estou calmo.
Essa noite, ver minha criptonita falando com outro cara, me fez
enlouquecer. Então, é o que faço.
Enlouqueço.
Enciumado e com raiva, enfio a mão nos seus cabelos e seguro,
obrigando-a se render. São macios e firmes, consigo segurá-los como se
fossem rédeas.
É lindo. Ela é linda.
Um barulho indignado sai de sua garganta, e penso que ela poderia
me bater. Sim, nervosa como está, poderia muito bem me dar uma surra.
Deus, gostosa pra caralho.
Ataco os lábios inchados, abrindo a boca com a minha língua.
Devoro a respiração molhada. Embriagado de Amélia, sinto um fincar de
dor, mas não paro. Só compreendo quando o gosto de cobre permeia a
minha língua.
Uma mordida.
Não uma levinha, de brincadeira – uma mordida de verdade. Tento
quebrar o beijo, afastando a cabeça, mas ela impede, segurando minha nuca.
Porra!
— O que você veio fazer aqui, Vince? — Pergunta baixinho.
Agarro a cintura, colando nossos corpos. A boceta fica bem no nível do
meu colo. — Diga porque está aqui — insiste, a voz não passa de um
sussurro.
Afasto o suficiente para olhar nos olhos.
Perco o fôlego.
Como pode algo tão bonito existir? Há fogo nos olhos verdes,
dúvidas e muita paixão.
Ah, Amélia.
— Eu não consigo parar de pensar em você — minha voz está
grossa, brusca. Afundo o rosto no seu pescoço e falo entre mordidas. —
Não consigo parar de querer você.
Ela não acredita.
— Você só está com ciúmes — lamenta, manhosa.
Eu amo isso. Adoro como consigo desmontar sua impetuosidade.
— Ciúmes? Eu fiquei doido, Amélia. Tenho vontade de matar todo
homem que respira perto de você.
As palavras fazem seus olhos faiscaram, sim. Mas também a
deixam excitada. Os mamilos enrugam, visíveis através da blusa fina.
Aposto que está molhada.
— Nós não temos nada.
— Sabemos que não é verdade — aponto, odiando suas palavras.
Com o desafio no seu rosto, decido mostrar.
A encarando, uso as mãos bruscas para acariciar as coxas macias.
Úmidas, como imaginei. Ela fecha os olhos e suspira. Uso meu tamanho
para prensá-la na parede.
Preciso disso.
Preciso dela.
É tarde demais para nós agora.
— Vince — murmura, com os olhos arregalados nas minhas mãos,
desfazendo o cinto. — Estamos no corredor.
Eu não importaria se estivéssemos no meio de uma multidão.
Excitado, com ciúmes e tenso, a única coisa que consigo pensar é que quero
me dissolver junto dela. Sendo realista, a ideia de mostrar minha
reivindicação para todo mundo me faz querer rugir como um animal.
Estou sendo um ogro, eu sei, mas não consigo controlar.
— Não há câmeras aqui. — O short da Amélia é largo e fino.
Esfrego meu pau nas suas coxas, empurrando o tecido para o lado até
chegar na sua abertura. — Mas quem sabe alguém esteja espiando? Saindo
do bar, passando pela rua?
Sua resposta é um choramingar. A ergo pelo quadril e tenho suas
pernas enroladas na minha cintura.
Suspiro, absorvendo a cena.
Puta que pariu.
Amélia fica bem contra a parede.
Encaixo a cabeça do pau nos lábios macios. Molhados.
— Vince — soluça quando começo a entrar. É difícil, ela é
apertada.
— Sim — rosno, quebrando a resistência. — Só fique boazinha.
Amélia remexe, aflita e a preencho até o fim. Meus testículos
batem contra sua entrada. Amaldiçoo, cerrando a mandíbula. Ela vai ficar
do meu tamanho. Minha. Por um minuto inteiro não mexo, só pressiono
mais e mais, forçando seu canal a me acomodar.
Memorizo os detalhes do rosto que tem me perturbado tanto. A
boca me deixa louco; os olhos intensos o bastante para me deixar de
joelhos.
Pressiono com mais força.
Agora, estamos nos fundindo em um só.
Acho que fui longe demais quando um suspiro lamurioso sai de
seus lábios. Porra, sou um desgraçado. Ela é minúscula contra mim, eu nem
pensei em controlar a força.
— Amé…
Ela não dá tempo que eu diga nada, bate os lábios nos meus.
— Você gosta disso, não gosta? — Pergunto, e finalmente começo
a me mover. Meu jeans está pendurado no quadril, nem mesmo o abaixei
antes de a foder contra a parede de um corredor.
Meu Deus.
Engulo seus gemidos, recebo os arranhões que deixa na minha
nuca. Barulhos de carne batendo ressoam pelo corredor. Não entendo o que
estou sentindo, é indescritível. Sexo nunca foi assim. Nada deveria ser tão
bom.
Essa mulher… Jesus Cristo.
Perco o controle de mim mesmo, acelerando.
— Vai me fazer gozar em segundos, porra — xingo, frustrado.
Levo a mão entre nós e começo a esfregar o clitóris inchado, pois me recuso
a gozar sozinho.
As palavras fazem sua carne contrair, é tão apertada que meu pau
mal tem espaço.
— Sua boceta está me agarrando tão forte — gemo. Ela está me
sugando, algumas gotas por vez. Não vou aguentar.
— Vince… — Seu corpo fica tenso, trêmulo. As paredes me fazem
uma massagem louca, apertando forte. Deixo que ela ouça todos meus
gemidos, para que saiba o quanto é gostosa. O quanto me deixa
desequilibrado.
Amélia grita o som mais delicioso quando goza. É meu barulho
preferido.
Faço meu trabalho, metendo com força até que eu esteja coberto
com o seu orgasmo. É gostoso de forma insuportável.
Uma voz longe, na minha cabeça, avisa que eu devo sair.
Mas…
Não vai acontecer.
Empurro uma última vez, segurando dentro da sua boceta, e encho
seu corpo de porra até transbordar.
23
AMÉLIA
Meu coração bate, agitado, no peito.
Não sinto aquela paz que geralmente me vem depois de um
orgasmo. Longe disso.
O cenário está me afligindo.
Corredor. Esperma escorrendo pelas minhas pernas. Vince, como
um animal enjaulado, ainda dentro de mim.
Nos encaramos em silêncio, respirando pesado. Seu suor me cobre
toda, e não sei explicar o quanto gosto. Vince é tão forte e viril, tem cheiro
de homem.
Ele me coloca no chão, saindo com cuidado. Seu rosto se modifica
por inteiro encarando o pau manchado de rosa. Não posso dizer que estou
surpresa, doeu pra caramba.
— Porra, eu machuquei você?
— Sim — confirmo com a voz baixa.
Seu rosto transita da preocupação à raiva. Pânico.
— Amélia, me…
— Eu adorei.
Cronicamente sozinha.
Por que é que esse conceito me parece tão doloroso agora? Não
quero que Vince vá embora. Nossa situação é fodida e confusa, mas posso
muito bem lidar com a solidão a partir de amanhã. A raiva pela forma como
tem agido – a indignação. Ainda quero gritar e odiá-lo.
Só que essa noite, não.
Analiso ele com atenção. Está pensando no que fazer com essa
informação. Pupilas dilatadas me encarando, boca úmida. Mãos inquietas e
postura dominante.
Ele nem perdeu a ereção, o pau inchado, com veias saltadas. É
mais escuro do que eu imaginei, a cor de ameixa. Tem um tamanho maior
do que o normal, sim, só que mais do que isso, é muito grosso. Termina em
um grupo de pelos escuros, que estão pingando de mim.
Nós.
— Vince?
— Sim? — Pergunta, tenso.
— De novo — peço, me aproximando. — Forte.

Vince toma meu corpo por toda a madrugada. Sob o balcão da


cozinha, no sofá e por fim, na minha cama.
Ele insiste em estar encarando meu rosto enquanto entra e sai de
mim.
Fico dolorida, quente e inchada.
Determinado momento, preocupado com meu bem estar, decide
descer pelo meu abdômen, beijando.
Ele estava tão nervoso quando chegou aqui. Agora, parece um leão
satisfeito, ronronando sem nenhuma preocupação no mundo.
— Eu amo isso — murmura, alisando os pelos da minha virilha.
Estão aparados, minha pele é muito sensível para usar gilete. — Você
sempre deixa assim?
Concordo, inquieta.
— Está uma bagunça — murmura com aprovação. Como deveria,
considerando que ele é o responsável pela sujeira. — É tão gostoso.
Deixa um beijo no clitóris, e introduz um dedo, rodeando os lábios.
É gostoso, concordo, mas…
— O que? Não gosta? — Pergunta, olhando para cima. Seus cílios,
molhados de suor, juntaram e estão como se ele tivesse acabado de sair do
banho.
Eu amo, mas é muito íntimo. Muito carinhoso.
A personalidade de Vince vacilou pelas últimas horas, variando
entre querer me foder até virar do avesso, grunhir de prazer ao ver que me
fez sangrar, a também querer cuidar, ser atencioso e doce.
Eu só tenho uma noite. Posso lidar com o sexo, mas não com o
carinho. Não quando acordaremos amanhã como se nada tivesse
acontecido.
— Quero outra coisa — resmungo. — Suba.
— Certeza? Parece que ela vai me expulsar daqui — brinca,
sentindo o calor febril que irradia da minha virilha. — Está em carne viva.
Por favor, não seja adorável agora.
— Sim, venha cá.
Obediente, escala, ficando sobre mim.

VINCE
De madrugada, após horas e muitos orgasmos, Amélia cai no sono
enquanto eu a fodo pela última vez. Não levo para o lado pessoal, a mulher
está exausta. Dolorida, eu sei, porque também estou.
Observo o rosto dela, sentindo-me muito feliz ao constatar que, de
fato, toda a marra se foi. Eu sabia que iria.
Acaricio suas costelas enquanto me pergunto o que vamos fazer a
partir de agora. Isso não foi só sexo. Já transei muitas vezes na minha vida,
de todas as formas que consigo imaginar, então sei que o que tivemos foi
algo além.
Foi amor.
Respiro fundo.
Não é o momento perfeito. Quero dar a Amélia estabilidade e não
arrastá-la para as minhas merdas não resolvidas, mas... no último mês,
aprendi que não há meio-termo. Ou tenho Amélia por inteiro, ou não tenho
nada.
Ela não será minha amiga, e sim apagará minha existência da
mente, como se eu fosse apenas o gato que fica vagabundeando pela rua –
você sabe que ele está lá, mas não faz diferença.
Permito que as imagens invadam minha mente.
Não consigo conviver com elas.
Minha respiração se torna pesada. Não consigo me obrigar a mover
um músculo sequer. Não se for para ficar longe dela.
Eu não vou conseguir.
É impossível, antinatural.
Amélia é minha, e eu não vou embora. Nunca.
Aceito essa constatação com tudo que ela traz, deixando que entre
na minha pele e distorça o que eu pensava ser na vida. Será difícil, mas é
possível.
Afasto os cabelos e beijo a têmpora, inspirando o cheiro de canela
e de mim.
Hum.
Seria bom ir para casa e tomar um banho, e não só deitar aqui
como um folgado. Está quase amanhecendo. Com um suspiro relutante,
levanto da cama. Será que conseguirei sair e voltar antes que ela acorde?
Acho que Rorie não deixaria.
Se bem que... o bar.
Tenho uma mochila com roupas limpas lá, não faria mal tomar
banho aqui.
Perfeito.

Faço minhas coisas.


Até uso um shampoo que tem umas galinhas amarelas na
embalagem, aparentemente infantil. Não entendo, não é como se Rorie
precisasse lavar os cabelos nem nada assim.
Saio do banheiro, deixando o lugar seco – afinal, não sou um
monstro – e coloco as roupas em uma sacola para levar de volta... Poderia
lavá-las e deixá-las aqui, para quando precisar? É prático.
Vou para a sala pegar a carteira e as chaves para passar na
mercearia. Depois de uma noite dessas, Amélia precisa de um café da
manhã reforçado. Deus, acho que vou levar café na cama. Ela merece.
O som de certos resmungos chama minha atenção. Então, vou
parar no quarto cor-de-rosa. Um sorriso involuntário surge em meus lábios.
Parece que terei companhia.
A bebê está encostada em um travesseiro, observando os
brinquedos girando em cima do berço. Meu coração se enche ao vê-la.
Com um suspiro suave, aproximo-me do berço, testando a reação
de Rorie à minha presença. Não quero que se assuste.
A garota me dá um olhar bem sério. Solene, quase.
— Olá, meu bem — sorrio. — Olhe para você, toda crescida.
Não responde.
Acho que não fala ainda.
— Não lembra de mim, né? — pergunto, com o sorriso morrendo
um pouco. — Costumávamos ser amigos. Sim, costumávamos. Devemos
voltar, não acha? Eu e sua mãe vamos passar muito tempo juntos agora,
então nós dois também vamos.
Ops, seria Amélia quem deveria lhe dar as notícias?
Provavelmente. Bom, pelo menos a bebê não pode me dedurar.
Rorie está pouco reativa às minhas palavras, o que machuca.
Lembro-me de quando ela levantava os bracinhos para que eu a pegasse.
Não está acontecendo no momento.
— Sinto muito, eu não queria ter sumido assim — lamento,
perguntando-me o que se passou na cabeça dela. — Me desculpe, bebê. Não
vai acontecer de novo. Acho que deveríamos deixar sua mãe dormir um
pouco, sabe? Podemos nos virar agora cedo e passear quando o sol
aparecer, que tal?
Mostro os braços e ela se senta, me observando com mais atenção.
Não irei levantá-la contra a vontade, então espero muito que ainda tenha, lá
no fundo, um pouquinho de reconhecimento.
São segundos tensos. Os olhos azuis piscam lentamente,
considerando, até que ela se inclina na minha direção. Abro um sorriso
gigantesco, a erguendo. É hora da mamadeira, provavelmente de trocar sua
fralda também. Vestir roupas coloridas e uma touca, além de...
Aí.
Olho para baixo, em choque.
Rorie falta dar de ombros ante minha perplexidade. Quatro
furinhos perfeitos se formam no meu bíceps esquerdo, onde tão astutamente
a bebê me deixou uma mordida.
Oh.
Ainda sem cabelos, mas tem dentes agora. Anoto mentalmente
para contar a novidade a Justin.
24
AMÉLIA
Acordo com a sensação de que algo está fora do lugar. Minha
cabeça está envolta em uma nuvem de ideias desconexas. Todas são flashes
de sexo. Ontem, eu e Vince...? Deus, sim. Muito.
Agora, ele foi embora. Sempre vai.
Sentindo-me opressivamente desanimada, levanto. Cruzo o
corredor em direção ao quarto de Rorie, mas a presença na cozinha me
impede de continuar.
Vince.
Eles estão conversando. Quer dizer, tanto quanto possível. Rorie
está na cadeirinha de bebê, prestando atenção em cada palavra que Vince
diz. Há uma mamadeira vazia à sua frente, e ela segura uma banana babada,
que parece ser o assunto da discussão.
— É por isso que sou tão grande, eu comia muitas frutas quando
tinha sua idade. Você não quer experimentar?
Rorie não é a maior fã de bananas e, esperta como é, estende-a para
Vince, exatamente como faz comigo. Ele nem hesita antes de dar uma
mordida.
Encosto no batente, assistindo aos dois. Confusa pra caramba.
Depois de alguns minutos, sou notada. Rorie me vê primeiro e sacode as
perninhas, animada.
— Bom dia, bebê — cumprimento, caminhando até ela. Deixo
beijos nas suas bochechas redondas, e ela levanta os braços. Não resisto a
pegá-la por um momento. É automático.
É também uma boa defesa para encarar Vince.
— Oi — digo ao intruso.
Ok, estou exagerando.
— E eu?
— Hum?
— Meu beijo — ele abaixa, mostrando o maxilar barbado. —
Vamos, eu mereço um.
Não entendo como concordo. Assim que minha boca roça a barba,
ele vira o rosto, e nossos lábios se encontram. A palma grande vai à minha
nuca, mas é bem gentil, uma carícia. Vince usa a língua para abrir minha
boca devagar.
É um bom beijo, gostoso. Dura até que Rorie, revoltada pela falta
de atenção, comece a resmungar. Acho que ela até mesmo o empurra.
Ele quebra o beijo, rindo.
— Bom dia — murmura.
Está relaxado, ao contrário de mim. Meu desânimo é substituído
por excitação e... estranheza. Estreito os olhos, tentando entender o que
raios estamos fazendo.
Volto Rorie para a cadeirinha. Quando a bebê ameaça reclamar,
faço cosquinhas nas solas dos pés, e o choramingo se transforma em uma
gargalhada.
Sorrio.
Vince sorri.
Um calor enche meu peito, empurrando o desconforto para longe.
Resta algo como curiosidade e aflição romântica. Alguns chamariam de
paixão, mas prefiro não. É algo que só admitirei quando tiver certeza.
Uma bebida cor-de-rosa é colocada na minha frente. Vitamina? A
menos que seja fórmula infantil, não tinha ingredientes para nada disso aqui
em casa. Não tinha bananas, também.
Presto atenção ao nosso redor. Suco de laranja, a fruteira cheia.
Minhas bochechas coram de vergonha. O dinheiro está apertado, ainda não
paguei o cartão de crédito que usei na consulta de Rorie, e preciso quitá-lo
se quiser usar para os exames restantes. Sempre há comida boa para minha
filha, claro, mas eu tenho me virado com macarrão instantâneo.
Lembranças humilhantes da minha infância, quando dependia da
boa vontade de vizinhos para comer, me incomodam. É um assunto que me
deixa abalada, porque passar fome é um trauma. Acho que posso chegar aos
setenta anos e ainda vai doer pensar nisso. Não ajuda a situação precária em
que me encontro.
— Não vou mentir, não é gostoso — Vince explica. — Coloquei
açúcar, mas ainda está amargo. Se eu beber com você, ficamos quites,
certo?
Minha falta de resposta – afinal, Deus, o que vou dizer? – faz com
que seus olhos percam toda a atitude descontraída. Além de compreensão, e
há muita ali, também fica determinado. A fazer o quê? Me alimentar?
— Não pense muito, Amélia — diz com a voz séria. — Não sei o
que você está sentindo agora, mas, caramba, sei que se eu disser o que estou
sentindo, vou te assustar.
Estremeço por dentro.
— Vince — falo seu nome em voz baixa. Os olhos encontram os
meus, intensos. — Obrigada.
Ele assente, não se estendendo no assunto. Respeitando meus
sentimentos. Só por isso, eu poderia beijá-lo novamente. Mas também há
outros motivos: um homem de um metro e noventa fazendo café da manhã.
— Você passou a noite?
— Sim, mas não do jeito que eu gostaria.
Confuso. Estou confusa.
— O que quer dizer...?
— Vou ficar com a Rorie hoje, acho que seria bom você tirar um
cochilo — ignora minha pergunta.
— Não entendo — confesso, sem forças para ficar adivinhando. —
Por que faria isso?
— Primeiro, eu cansei você — aponta, parecendo muito arrogante.
— Além do mais, há meses você cuida de um bebê sozinha. Uma manhã de
folga não é bem-vinda?
Ele tem um ponto.
— Vamos ao shopping.
Odeio shoppings – não que eu não goste de fazer compras, mas é
muito melhor pela internet, onde posso fazer tudo sozinha, sem uma
atendente.
— Não você — lembra, ante minha careta. Inclina-se na minha
direção, brincando com meu cabelo. — Você fica aqui, toma um longo
banho e encontra um livro para ler. Eu e Rorie vamos nos divertir, depois
voltamos com o almoço.
— Você vai levar Rorie ao shopping — repito, para ter certeza.
— É — ele faz carinho com o dedo na minha bochecha. — Parece
bom?
— Sim — murmuro.
Com a mão que tocou minha bochecha, desce pela minha nuca,
roçando levemente. Eu me derreto.
— Precisa de algo de lá?
— Não.
Estou monossilábica? Sim, se tentar falar mais, vou acabar miando.
A cena é muito caseira, com planos para o dia. Soa como um parceiro.
Então, ele se afasta sorrindo, aparentemente sabendo no que estou
pensando.
— Rorie? Venha aqui, princesa.
Minha filha aceita o colo de Vince com facilidade.
— Pronta para um passeio? — ele cutuca a barriga dela, ganhando
uma risadinha. Vira-se para mim. — Onde fica a bolsa dela?
Percebo muitas camadas por trás da pergunta: quer saber onde fica
ao invés de me pedir para pegar. É bem sexy.
— Está em cima do aparador — digo, e ando atrás dele. — Tem
uma chupeta extra, algumas fraldas, duas mudas de roupa e lenços. Precisa
levar a mamadeira com água e a fórmula, também.
Espero que hesite, decidindo que é uma má ideia, mas só assente,
prestando atenção.
Muito sexy.
— Você tem certeza?
Ele está tão bonito com os braços enormes segurando minha filha.
Toda a naturalidade do mundo com a mochila de bolinhas pendurada no
ombro.
— Descanse — beija minha boca. — Não vamos demorar.

VINCE
Rorie é a melhor bebê do mundo. Eu sei que todos devem pensar
isso sobre o próprio bebê, mas ela é.
Claro, por que não seria? Tem uma mãe que queimaria o mundo
para fazê-la feliz e um cachorro de pelúcia que é ótimo para morder. Está
satisfeita.
No banco de trás, presa na cadeirinha, ela me encara com enormes
olhos azuis. O pai biológico dela deve ser meio loiro, como eu.
Será que Amélia vai falar sobre ele algum dia? Não consigo vê-la
como alguém que omite coisas da filha, e Rorie ainda vai crescer e se
perguntar por que o cara não está por perto. Como será que vai se sentir?
Rejeitada? Eu o mataria, provavelmente.
Nem precisaria, Amélia também tentaria degolá-lo.
Mas eu chegaria primeiro.
Estacionamos no shopping, o único que tem aqui em New Castle,
bem na saída da cidade.
— Você gosta de fazer compras, querida? — pergunto, ajeitando o
retrovisor. — Sua mãe não parece gostar muito, não. Aposto que ela
preferiria arrancar um dente.
Rorie pisca os olhos, concordando.
Abro a porta. Eu até trouxe o carrinho, mas vi uma pessoa passar
segurando a cadeirinha do carro e me pareceu muito mais prático. Depois
de perceber que não sei onde colocar Rorie enquanto solto a cadeira do
banco, decido que podemos comprar outra.
Após uma parada no Walmart, onde compramos o de passear,
vamos direto para a loja de brinquedos. É gigante, a maior da região.
— Olá — diz a atendente. Seu olhar vai de mim para Rorie, e ela
abre um sorriso enorme. — Posso te ajudar?
— Sim, sabe aquele videogame novo?
É lançamento, Justin me jogou todas as indiretas do mundo depois
que Cassie disse que não lhe compraria mais um jogo. Entendo, é uma coisa
de mãe.
Como eu sou tio, minha coisa é mimar.
— Claro. Deixe-me pegar para você.
Ela some por alguns segundos, retornando com uma caixinha
minúscula. É muito doido como uma coisinha dessas tem o poder de
enlouquecer os moleques. Corro os olhos para a área infantil, pensando no
quanto o tempo está passando rápido. Eu amei ver o carinha crescer.
Uma garota teria sido legal também, como Rorie. Olho para a
bebê, que está na sua cadeira nova com um rostinho um tanto entediado.
Meu Deus, é exatamente a expressão da Amélia.
— Rorie, querida? — chamo. — Vamos, anime-se.
Ela balança a cabeça, negando, e eu sorrio. É adorável.
— Não? Deve ter algo que te agrade. — Coloco a cadeirinha no
chão e a pego, atrapalhando seu sossego. Se andasse, a soltaria para ver
onde vai, no colo, eu só posso tentar descobrir onde sua atenção está.
Desse lado da loja, é uma explosão de rosa e glitter.
— Olhe esses tutus — aponto — veja como são bonitos.
— Procurando algo para sua filha? — a mesma atendente pergunta.
— Ela não… — interrompo o que ia dizer. Não é da conta dela. —
Quer dizer, sim. Estou, sim.
— Olá — sorri para Rorie, que, achando que a mulher vai pegá-la,
esconde o rosto em mim.
Meu peito explode de orgulho.
— Então você fica aí e eu te mostro brinquedos, que tal? — Ela
olha para mim. — Qual é o nome dela?
— Rorie.
— E o nome do papai?
Papai.
A voz sugestiva da porra.
— Vince — respondo, desconfiado.
— É um nome muito bonito, como vo…
— Sim, minha mulher adora — corto, me sentindo meio
desrespeitado.
Amélia nunca expressou especial predileção por Vince.
— Ah, desculpe — fala, sem graça. — É por aqui.

Passo horas paparicando a princesa. Visitamos o parque infantil, e


ela conhece a piscina de bolinhas. Exploramos a livraria. Quem diria que
havia livros para bebês? O livro lê sozinho! Também fomos ao pet shop,
onde ela se encantou com os filhotes de cachorro. Certo, talvez tenhamos
passado tempo demais.
Eventualmente, começa a ficar irritada, resmungando e impaciente.
Acho que está com sono. Ou fome. Não, definitivamente sono – ofereci a
mamadeira, e ela recusou. Pelas mãozinhas agitadas, ficou claro que a
vontade mesmo era jogar na minha cara.
Ainda nem peguei o almoço, mas tirei Rorie de casa toda tranquila.
Não vou devolver para Amélia uma bebê chorando.
Estaciono o carro no restaurante e peço dois bifes, algumas batatas
e frango. Vi no cardápio um purê de maçã, o que parece horrível para mim,
mas provavelmente algo que Rorie comeria.
Falando nela, o choro começa – gritos irados.
Peço à garçonete para embalar a comida e saio para fora. Deito-a
nos meus braços e começo a ninar, andando de um lado para o outro na
calçada.
— Shhh, estou aqui. Durma um pouco. Você vai ver sua mãe assim
que acordar.
Os gritos diminuem, mas as lágrimas grandes continuam
escorrendo pelas bochechas. Rorie não é como aqueles bebês que gritam
sem chorar de verdade, lágrimas sofridas saem de seus olhos azuis.
É um bebê dramático.
— Quer que eu cante uma música? — Pergunto. — Aquela que sua
mãe sempre canta?
Funciona como mágica. Assim que começo a murmurar a letra,
Rorie se acalma. Seus olhos até fecham um pouco. Canto mais alto,
balançando no ritmo da melodia.
— Vince? — Uma voz muito familiar me chama, fazendo as
pálpebras de Rorie tremerem.
Porra.
— Irmão, você…?
Por que, Deus? Por quê?
— O que foi, Paul? — Pergunto, sem esconder o incômodo.
Ele não se importa com meu tom e observa a bebê no meu colo
com o rosto frio. Rorie, agora bem desperta, responde com uma carranca.
— É a criança de Amélia, suponho — diz, calmo.
— O nome dela é Rorie — corrijo.
Paul se inclina para ficar no nível da bebê e abre o mais próximo
de sorriso que consegue. Não é como se ele odiasse crianças, apesar de ter
certeza de que nunca lhe ocorreu ter alguma antes de namorar Cassie. Mas
crianças, sem dúvidas, o odeiam.
— Meu nome é Paul — apresenta-se, como se estivesse em uma
reunião de negócios. Idiota. — Por que ela está chorando?
— Ver sua cara feia deve doer — respondo, com os dentes
cerrados. Paul só ergue as sobrancelhas. — Quer dormir.
— Hum — murmura, obviamente cheio de opiniões. Ele me
lembra minha mãe. E meu pai. Uma combinação perfeita dos dois.
Sempre fui o deslocado da família.
— Então, você e Amélia…?
— Sim.
Paul franze os lábios e balança a cabeça.
— Tem certeza? As pessoas vão começar a falar.
Cristo.
— Sério? Você está se ouvindo?
— Você está se vendo? — devolve, mordaz.
— Tudo bem, obrigado pela preocupação — ele pode enfiá-la no
rabo.
Pelo olhar que recebo, provavelmente resmunguei essa última
parte.
Suspiro, frustrado. Não tenho raiva de Paul, mas sempre foi difícil
ser o irmão mais novo. Ele era excelente na escola, nunca se meteu em
problemas, estudou em uma universidade de ponta, assumiu os negócios da
família, voltou para casa, casou-se com uma boa mulher e teve Justin.
O engraçado é que ele nunca quis nada disso.
Eu quis.
— Não há de quê — responde, seco.
Uma garçonete acena da porta, indicando que meu pedido está
pronto. Graças a Deus.
— Vai lá — Paul bate no meu ombro e se despede de Rorie. —
Tchau, menina.
Nos afastamos, e Rorie me olha com olhos curiosos.
— Não ligue para ele. É um idiota.
25
AMÉLIA
Olho para cima quando ouço a porta abrir.
Vince tem uma chave? Sim, obviamente.
Meu Deus, provavelmente está com ela desde quando entrou aqui
para pegar minhas roupas, meses atrás. Isso me incomoda? Acho que não.
Agora temos um tipo de relacionamento que envolve até mesmo o homem
sair para passear com minha filha e criar laços com ela, o fato de ele
conseguir abrir nosso apartamento é o de menos.
Ele entra todo silencioso, segurando sacolas em uma mão e
equilibrando um bebê conforto na outra. Outro? Não é o que estava no seu
carro. Coloca os pacotes no balcão e olha ao redor, se sobressaltando
quando me vê.
Mas, depois do susto, abre um sorriso.
Dessa vez, é meu coração que se sobressalta. Principalmente
porque, da mesma forma que fez antes de sair, se aproxima e coloca a
palma na minha nuca, deixando um selinho casto nos meus lábios.
Deus, o que esse homem tem? Quando me toca, eu queimo.
— Fiz a garota errada dormir? — pergunta quando se afasta, e eu
quero estender meus braços para que ele fique.
Não faço isso, claro que não.
— Ela dormiu? — Desvio os olhos para baixo. Por isso não ganhei
gritinhos de felicidade.
— Sim, tivemos uma manhã… hum — coça a cabeça. — Agitada.
— Deu trabalho?
— Nenhum, nos divertimos muito.
Imagino com o quê. Abaixo para pegar Rorie e a encontro muito
sossegada, então desisto de incomodá-la. Ela veste uma touca com orelhas
de cachorro e meias que imitam patinhas caninas, que nunca vi antes.
O que eles aprontaram?
— E você, descansou?
Ele se preocupa comigo, com o que eu como, o quanto durmo. É…
diferente.
— Sim, um pouco — minto.
Faltei subir pelas paredes. Vince levanta as sobrancelhas, ele está
aprendendo a me ler, não aceita besteiras.
— Basicamente nada?
Dou de ombros. Tentei ler um livro e não consegui. Pensei em
fazer uma corrida, mas temi que Vince voltasse com Rorie e eu não
estivesse aqui.
O que quer dizer que fiquei ansiosa e nem mesmo soube
reconhecer por que não conseguia tomar uma decisão tão simples. A melhor
psicóloga do mundo, evidentemente.
— O cheiro está muito bom — mudo de assunto.
Não tão bom quanto o dele, mas bem legal também.
— Uhum, senta que eu vou servir você.
— Você vai?
— Sim, eu vou — confirma, achando graça. — Fique quietinha e
me dê um minuto.
Nós almoçamos, e a cada interação meu coração, o pobre por trás
dos espinhos, bate acelerado. Uma hora, Vince pega o telefone e começa a
mostrar fotos que tirou com Rorie. São muitas, eles realmente se divertiram.
Não dá para fingir o brilho que ele tem no rosto.
E me deixa muito feliz. Encantada.
Acabamos, e vou colocar uma bebê adormecida no berço. Está
exausta. Vince diz que vai pegar algo no carro e desce. Quando saio do
quarto de Rorie, encontro minha sala como uma filial da Blueberry.
Brinquedos, acessórios, roupinhas… há mais coisas do que no enxoval que
fiz quando estava grávida.
A porta abre, e arregalo os olhos. Mais coisas.
— Vince? Que raios é isso?
Ele é um homem muito alto, então, quando murcha, é perceptível.
— Você não gostou?
Estou encarando centenas de dólares em produtos infantis. Desde
brinquedos, equipamentos e roupas. Isso não está certo. Não posso pagar
por essas coisas, então não as terei. Simples como a luz do dia.
— Podemos trocar — murmura. — Eu achei que amarelo fosse a
cor dela.
Suspiro alto, massageando as têmporas. Sim, amarelo é
definitivamente a cor de Rorie. Mas nós não somos um caso de caridade.
Exceto que sim. Caramba, é exatamente o que somos, certo? Estou
sempre aceitando sua ajuda. Pisco os olhos, tentando afastar a raiva. Achei
que nunca mais ia passar por isso.
— Eu vou te comprar coisas — avisa, se aproximando. — A vocês
duas. Posso cuidar de vocês.
Meu Deus. Ele entendeu tudo errado.
— Por favor, não me coloque nessa posição.
Não é fácil recusar coisas que minha filha merece e que não posso
dar a ela. Não sou uma pessoa honrada, mas, quando se cresce como eu, é
difícil não ser um pouco orgulhosa. Vince não tem ideia de quantas vezes
estive na posição de ter que pedir algo. Quando era criança e não podia
trabalhar, dependia da boa vontade dos outros para comer.
Era horrível. Eu odiava.
— Não preciso que ninguém cuide de mim — digo, porque não
consigo deixar de dizer, mesmo que tudo ao meu redor indique o contrário.
Além do mais, ninguém nunca cuidou, e aqui estou.
— Eu vou — diz com uma seriedade que me deixa ainda mais
nervosa. Seus olhos vasculham os meus.
Por que ele não está cedendo?
Está percebendo a confusão que sinto?
— Qual é, eu sei que você é rico — digo. — Mas tem que saber o
quão errado isso soa, certo?
Pela expressão, não. Vince não pensou nisso. Deve ser bom pra
caramba ter a cabeça simples assim.
— Nós dormimos juntos, então você vai lá e me compra coisas? —
Falo com escárnio. — Não uma coisinha que eu possa te pagar uma bebida
para compensar, mas coisas que eu nunca conseguiria comprar se não
estivéssemos transando?
— Não diga isso — adverte, com as sobrancelhas loiras
carrancudas. A postura dele é absolutamente tensa, e, se não fosse Vince, eu
provavelmente ficaria assustada. — Nunca mais diga isso. E nós não
dormimos juntos, Amélia, nós estamos juntos. É diferente.
Espera, nós o quê?
— Estamos juntos? O que isso significa?
Acho que o fato de minha pergunta sair em um tom mais baixo do
que estava o faz rever a forma como se expressa. Vince suspira, se
obrigando a ficar calmo.
— Você é como uma gata arisca — afirma, e um sorriso surge em
seus lábios — Além de que, fui um idiota. Não vai acontecer de novo.
Quero protestar, mas não sei o que dizer. Estamos falando em
código?
— Vai perceber pelas minhas ações, não vou te convencer com
palavras.
Meu coração bate mais rápido. Há algo no jeito que ele fala, a
certeza em sua voz, que me faz querer acreditar nele. Cristo, vou entrar em
pânico. Mordo os lábios.
— Tipo meu namorado? — Sinto-me estúpida assim que as
palavras saem, porque ele ri.
Ri.
Maldito.
— Sim, tipo seu namorado.
Estreito os olhos.
— Tem certeza?
É uma pergunta difícil. Muito carente. Muito vulnerável.
— Eu nunca tive tanta certeza na vida. Acho que estou apaixonado,
e estou cansado de fingir que não.
Oh.
Deus.
Minhas pernas bambeiam.
— Certo. Tudo bem.
Um ligeiro tremor toma minhas mãos, e flexiono para que ele não
perceba, dando um passo para trás. Estou sendo ridícula. Tento falar, mas as
palavras se negam a sair.
Droga.
— Eu… eu não sei o que dizer. — É uma baita mentira, porque, no
fundo, eu sei. Estou apaixonada por esse homem há meses, mas tive tanto
trabalho em dizer para mim mesma que não, que agora é difícil. Faço uma
careta. — Desculpe.
Me chuto mentalmente. Não soou muito romântico.
Não que ele se importe, já que ainda está rindo.
— Sou uma pessoa paciente. Tome o tempo que precisar, vou
esperar.
Vince corta a distância e fica me encarando por tempo demais. Ele
vai me beijar, agora que é meu namorado. Fecho os olhos, esperando.
Antecipando.
Seus lábios varrem os meus, prometendo que não terminaremos
aqui. Meu corpo fica quente e é impossível segurar o gemido quando ele
enfia as mãos no meu cabelo. Acho que, ao contrário do que disse, estamos
muito apressados.
— Posso te fazer uma massagem?
— Hum?
— Quero tocar você. Tirar um pouco da tensão.
Concordo, mas o barulho da porta batendo nos interrompe.

VINCE
Que tipo de idiota bate assim em um apartamento onde vive um
bebê pequeno? É claro que Rorie começa a chorar, até eu quero chorar.
— Vá pegar ela, eu atendo a porta — digo a Amélia, que se afasta
antes que eu possa lhe dar um beijo.
Ela tem que aprender a me beijar quando estivermos nos
separando. Beijos, no geral, Amélia é péssima em demonstrar carinho.
Coço a barba, pensando em como será gostoso ensiná-la.
Meu sorriso morre no momento em que abro a porta.
Cameron.
O cara veste uma blusa de botões e está com a barba feita. O cheiro
do seu perfume me atropela. É um homem vaidoso, mas hoje dá para ver, a
quilômetros de distância, que se esforçou.
Filho da puta.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, já sabendo a
resposta: o maldito encontro.
— Amélia. Ela está?
O fato dele não ficar irritado com o meu tom me faz ferver. Por que
não está se perguntando o motivo de eu estar aqui? Porra, ele precisa se
tocar.
— Ela está ocupada — digo, pronto para fechar a porta, mas
Cameron olha por cima dos meus ombros e abre um sorriso, me ignorando.
— Oh — Amélia exclama, colocando a mão na boca. Está
balançando Rorie. — Eu sinto muito. Não lembrei...
— Está tudo bem, eu entendo — o desgraçado tranquiliza e olha
para Rorie com curiosidade. — Essa é a sua garota?
Não, Amélia pegou uma bebê aleatória para passar o dia.
Idiota.
— Sim — confirma, com a voz desconfortável. — É, sim.
Cameron dá um passo em direção a elas, e eu entro em sua frente,
bloqueando a passagem.
— Não vai rolar — aviso. — Esqueça.
Os olhos saem de Amélia e vêm para mim. O sorriso desmancha,
convertendo-se em uma expressão aborrecida.
Bom.
— Vocês estão juntos agora? Diferente de ontem?
— O que você acha? — pergunto, no mesmo momento em que
Amélia tenta dar uma desculpa. Olho para ela com o rosto fechado, mas ela
me devolve uma expressão ainda mais irritada.
Precisamos melhorar a nossa comunicação.
— Entendi — Cameron diz, obviamente não entendendo nada.
— Desculpe — Amélia insiste, envergonhada. — Eu sinto muito.
— Não se preocupe, Amélia — ele força um sorriso, não querendo
antagonizá-la. — Eu estou indo, mas você tem meu número, certo?
Pisco os olhos. O instinto selvagem, possessivo e ciumento assume
o controle.
Existem limites que não se cruzam.
Dou dois passos em sua direção, até estarmos cara a cara.
— Você está dizendo para minha namorada te ligar bem na minha
frente?
Sou um cara pacífico e levo as coisas, até determinado ponto, na
esportiva. Mas não isso. Não Amélia.
Cameron, pelo visto, não foge de uma boa briga e, mesmo que
tente esconder, está mais chateado do que seria esperado se ele tivesse só
“uma queda” por ela. Há um momento de tensão, no qual nós nos
encaramos.
— Vince — Amélia se coloca entre nós, com bebê e tudo, o que
me faz mudar de postura imediatamente.
Esperta.
— Obrigada por entender, Cameron — diz, fechando a porta.
Quando ouvimos os passos descendo a escada, ela vira para mim.
Deus, esse rosto nervoso me enlouquece. Até o olhar de repreensão
eu quero exclusivamente para mim.
Amélia não precisa falar nada.
— Vou esperar ele sair — falo, conformado.
Não preciso que Cameron saiba que Amélia me expulsou de casa.
— E leve suas coisas — acrescenta, apontando para os brinquedos
na sala. Concordo, assentindo.
Junto tudo em um cesto de roupas, sob seu olhar nervoso. Não
tenho problema algum em obedecer. Ela balança Rorie muito mais rápido
do que a menina gosta, mas mordo a língua para não falar nada.
Minutos mais tarde, abro a porta para ir embora.
— Amélia? — chamo, e ela vem para mim, o rosto lindo
emburrado. Com Rorie entre nós, beijo seus lábios macios. Amélia usa a
mão que não está segurando a bebê para acariciar meus cabelos, retribuindo
o beijo.
— Até amanhã.
26
AMÉLIA
Eu fui aceita. Vou voltar a estudar.
Deus, por que estou tão animada? Não é um sentimento comum,
mas estou a ponto de dar pulos de alegria. Estranho.
Minha vida mudou tanto desde a universidade. Embora tenha me
formado há dois anos, parece que foi há uma eternidade. Eu reclamava
muito, é verdade, mas gostava.
E quero contar para Vince.
Não para Levi, não para… bem, eu só tinha Levi.
Aliás, preciso ligar para meu amigo. O coitado precisará fazer
outra via-sacra por Seattle, pois a universidade pediu mais certificados. Só
que quero contar ao Vince primeiro.
Meu namorado.
Não vou mentir, ele estava tão lindo ontem quando foi embora,
todo conformado e obediente, que quase o chamei de volta para
continuarmos de onde paramos. A forma como ele estava a ponto de
esmurrar Cameron, mas quando cheguei perto, se acalmou.
Eu só o impedi de brigar porque não quero que Rorie presencie
confrontos físicos em casa. Se eu estivesse sozinha, assistiria acontecer e
agarraria ele depois.
Bem, teremos outras oportunidades… não hoje. Domingo, Vince
trabalha o dia todo e não tem tempo de vir aqui me ver. Tenho que ir lá no
bar se quiser dar as notícias.
Será que estaria tudo bem? Faço uma careta. Insegurança. Eu
odeio. Isso é uma cortesia de Jasper, o filho da puta que não podia ser visto
em público comigo. Dizia que era por eu ser muito nova, então pegaria mal.
Eu era, de fato, muito mais jovem que ele, mas nada impressionante. Não
era como se fosse adolescente. Deus, como fui estúpida.
Vince não é Jasper.
Decido que irei até lá. Olho no espelho. Meu cabelo está rebelde.
Um observador generoso, como espero que um namorado seja, poderia
considerar sexy.
Mas um pouco de esforço não vai me matar. Passo batom para
avermelhar a boca e faço aquele tipo de maquiagem que as mulheres fazem
quando querem fingir que não estão usando nada – máscara de cílios e
escurecer sobrancelhas. Coloco um par de jeans justos e minha jaqueta mais
bonita. Muito melhor.
Pego meu acessório preferido – Rorie – e desço, gritando na minha
cabeça para eu relaxar. Vince não vai me destratar por eu aparecer sem
avisar, Jesus, se ele fizer isso, sempre posso dar um chute no meio das suas
pernas.
O bar está cheio.
É engraçado como o Caverna junta pessoas aleatórias: velhos
policiais, motoqueiros, advogados, um pastor e o que suponho serem uma
ou duas prostitutas. Todos bebem e interagem, é como o jardim do Éden.
Vince está no balcão, trabalhando, com Johan ao lado, atrapalhando. Esses
dois são unha e carne.
Vou em direção a eles e algumas pessoas começam a me encarar,
nem disfarçam. Fecho o rosto para os que olham com desaprovação, só que
é difícil parecer má com Rorie batendo palminhas. Ela atrapalha totalmente
minha pose.
Johan me vê primeiro e abre um sorriso.
— Amélia Reid, a própria — levanta uma caneca de cerveja na
minha direção. Ouvindo o amigo, Vince olha para cima.
Estou suando? Sim, minha nossa, meu peito bate acelerado. Nossos
olhares se encontram e, por um momento minúsculo, penso vê-lo hesitar. É
o suficiente para meu sorriso vacilar.
É cedo demais? Será que devo voltar?
Mas logo Vince dá a volta no balcão, com um sorriso alegre,
derretendo boa parte da minha insegurança. Primeiro, deixa um beijo na
testa de Rorie e depois em mim também. É muito carinhoso e me aquece
por dentro.
Bem, fofo como é, não é um beijo na boca.
Quando pega minha mão, acariciando a pele do pulso, o alívio
toma meu corpo. Decido que estou sendo paranoica. Ele não tem culpa do
meu passado.
— Ei, o que te traz aqui?
— Queria te contar algo — digo. — Não é nada ruim — completo,
porque seu rosto fica preocupado.
O que levanta a questão do motivo de eu aparecer, como se fosse
uma emergência. A pós-graduação só é importante para você, Amélia, uma
voz intrusiva sussurra. Não é verdade, Vince vai ficar feliz também,
respondo para mim mesma.
Até porque não tenho como voltar atrás.
Deus, minha cabeça está hiperestimulada.
Ele me conduz para um canto mais calmo, onde não há clientes.
— Eu passei. Na universidade, recebi uma ligação há pouco,
então… passei.
Olho com expectativa. A expressão de Vince se ilumina, olhos
arregalados. Por um momento, ele fica sem palavras, e então me abraça
forte, esmagando Rorie.
— Você… — ele engasga. — É claro que passou, eu nunca duvidei
disso. Porra, estou tão feliz! Parabéns! — exclama. O orgulho é bastante
genuíno.
Rio, mais calma.
— Obrigada — mordo o canto da boca. — Eu queria contar para
você primeiro.
Não disse que estava apaixonada ontem, mas essa afirmação é
importante. Só com ela já me senti vulnerável. Acho que ele pode ver,
porque o olhar que me dá parece um agradecimento.
Eu gosto muito desse cara.
Johan grita atrás de nós, perguntando algo sobre as bebidas. Vince
grita de volta e vira para mim, sem graça. Precisa voltar.
— Fica um pouco mais? — pede. — Quero celebrar com você.
Abro um sorriso para tranquilizá-lo.
— Seria ótimo, mas só passei para te contar. Tenho que levar Rorie
de volta e começar a preparar tudo.
Recalcular minha vida.
— Ok — ele assente, passando a mão nos cabelos curtos. — Acho
que vou sair daqui de madrugada. Te pego no trabalho amanhã?
— Tenho uma reunião depois do expediente — faço careta. —
Terça você vai jantar com seus pais, certo?
Johan grita de novo e Vince amaldiçoa, pedindo que espere mais.
— Quarta-feira — ele decide. — Teremos um encontro na quarta-
feira.
Um encontro. Sinto-me uma garotinha com a forma que a palavra
me encanta.
— Tudo bem — suspiro, feliz. — Até lá.
— Espere — ele pega o telefone no bolso. — Qual o seu número?
Não tenho, o quão ridículo é isso?
Muito.
Recito, e ele me liga para que eu salve o seu contato.
Adoravelmente, pergunta antes de eu me virar:
— Você vai me mandar mensagem?

VINCE
Observo Amélia se afastar, sussurrando algo para Rorie. Deus, eu
posso me acostumar com isso. Minhas garotas vindo me ver… Não consigo
nem imaginar quando estiverem me esperando em casa depois de um longo
dia. Provavelmente vou entrar em colapso.
— Que linda — Johan diz com um sorriso. — É sua irmã?
Filho da puta.
— Um beijo na testa. Sério?
Ignoro o idiota e vou para a despensa procurar absinto. Pelo visto,
alguém quer se matar esta noite.
Estou feliz que Amélia tenha vindo, porra, ela veio me contar. Só
foi inesperado.
— Você está namorando escondido, como um adolescente? Porque
Amélia não é burra e, pelo que eu soube, você não teve problemas em mijar
em volta dela quando outro homem estava a chamando para sair.
É Johan: ele é quem quer se matar esta noite. Pelas minhas mãos.
— Se você não calar a boca agora, juro que vou te dar uma surra
— ameaço, com o sangue fervendo. Foda-se, acho que ele merece um olho
roxo, mesmo que se cale.
— Relaxa, cara — ele sorri. — Só estou te avisando. Você parece
ter perdido o tino com as mulheres.
Pelo amor de Deus.
— Não quero desrespeitá-la, ok? O que temos é sério. Tipo, para
durar.
Meu relacionamento com Amélia importa. Seus sentimentos são
valiosos para mim.
— Eu liguei para um advogado — confesso de repente. Minha voz
é firme, e é estranhamente bom dizer isso em voz alta.
Johan engasga, parando o copo de cerveja no meio do caminho.
— Você está falando sério?
— Sim, estou falando sério.
Ele urra de felicidade. Depois, arregala os olhos.
— Caralho, cara, Amélia tem você comendo na palma da mão,
hein?
Ele não tem ideia.
27
VINCE
Os últimos dias foram longos e entediantes.
Certo, não foram tão ruins, mas eu queria ter encontrado Amélia
em algum momento. Preciso estar mais presente, ainda mais agora que ela
passou na universidade. Ver as duas uma vez por semana não vai funcionar
para mim.
Ela me mandou mensagens, como prometido. Amélia adora
emojis, e achei esquisito e fofo na mesma medida. Mandou também
algumas selfies, e nem tenho vergonha de dizer que uma delas virou meu
papel de parede.
Hoje, finalmente, é nosso primeiro encontro. Fiz uma reserva em
um restaurante de comida italiana na cidade vizinha. Podemos experimentar
massas com vinho, dançar músicas lentas agarradinhos e voltar antes da
meia-noite. Com sorte, vou terminar a noite comendo aquela boceta
gostosa. Ela não deixou da última vez e, convenhamos, é uma covardia.
Bato na porta, animado. Estou com um buquê de rosas vermelhas
na mão.
Quando a porta abre, a Amélia que me recebe não é exatamente o
que eu espero. Está de pijamas, segurando uma Rorie aos prantos. O rosto
da neném está todo vermelho.
— Vince? — pergunta, surpresa, afastando-se da porta e me
deixando entrar. — O que você está fazendo aqui? Eu te mandei mensagem
avisando que não poderia ir.
Não é verdade, eu esperei mensagens dela o dia todo. Mas não
digo isso, Amélia deve ter esquecido.
— Está tudo bem, eu só vim aqui ver vocês — falo com cuidado,
porque ela está com a expressão de um animal assustado. — O que a Rorie
tem?
Amélia balança a bebê, tentando acalmá-la, mas não está em
condições de fazer isso – ela mesma está muito agitada.
Desesperada.
Podia ter me ligado, eu teria largado o que estivesse fazendo para
vir aqui. Amélia está nessa há quanto tempo? Horas?
— É febre — as palavras saem muito rápido. — Ela tem crises de
febre às vezes.
— Quer ir ao hospital?
— Não, está cheio de pessoas doentes lá.
Hum. Não é o esperado?
— Estão com um surto de gripe — explica, ajeitando Rorie no
quadril. — É melhor que eu a leve para uma consulta amanhã do que ficar
com ela na emergência.
Faz sentido.
Tiro minha jaqueta e deixo em cima do balcão, junto das flores. O
apartamento parece uma zona de guerra. Caramba, eu deveria ter vindo
antes.
Estendo os braços para a bebê.
— O que você está fazendo?
— Segurando a Rorie — respondo.
— Mas… ela está chorando. Não vai parar; o remédio que dei a ela
causa uma ressaca estranha.
— Ressaca?
— Confusão mental — faz careta. — Com muito sono e agitada.
Você já ouviu falar de pessoas delirando quando não conseguem dormir?
Jesus. Balanço a cabeça, preocupado, e não só com a criança.
— Está tudo bem, eu posso lidar com isso.
Amélia hesita, mas dá a Rorie a escolha de vir comigo ou não.
Acho que se sente culpada, o que é muito fodido. Ela é uma mãe incrível,
mas é apenas uma pessoa.
— Olá, princesa. Você está doentinha, né? Eu sinto muito, sinto
sim. Mas vai ficar tudo bem.
Rorie aceita meu colo e encosta o rostinho, encharcando minha
blusa com lágrimas. Sinto um aperto na garganta.
Volto para a mãe dela.
— Vou pedir uma pizza. Que tal você tomar um banho?
— Rorie não come pizza.
Cristo, preciso colocar essa mulher para descansar.
— Você come, e não vai ficar sem jantar.
— Oh — exclama com a voz grossa. A ideia nem lhe ocorreu. —
Certo, é verdade.
Amélia não quer tirar os olhos de Rorie, o que é absolutamente
compreensível. Encarando nós dois, ela pensa se deve agarrar a filha de
volta. O instinto de Amélia é cuidar de Rorie, o meu é cuidar das duas.
Faria um chá, mas ela está na casa dos vinte anos e não é inglesa.
Ofereceria uma bebida, mas aí pareceríamos péssimos pais. Então, banho.
— Tome uma ducha, você vai se sentir melhor.
— Eu vou — murmura. — Me chame se ela…
— Vamos ficar bem, amor. Vá lá.
— Certo — funga, querendo chorar. — Não demoro.
Balanço Rorie devagarinho. Pelo que Amélia disse, é como se ela
estivesse tendo uma onda ruim. É difícil imaginar. Sua cabecinha está
delirando? Tipo, com joaninhas a perseguindo ou algo assim?
— Você está segura, viu? — sussurro. — Ninguém vai te pegar; eu
não vou deixar nenhum f-i-l-h-o-d-a-p-u-t-a chegar perto.

Quando Amélia volta, os gritos se transformaram em um


choramingar de partir o coração. Achei que seria melhor, mas não, isso me
deixa bem emotivo. Tadinha, eu trocaria de lugar com ela em um piscar de
olhos.
— A pizza está na mesa — aviso.
— Chegou rápido — diz, cabisbaixa. Ela está encarando Rorie
com dor no olhar, parece receosa de chegar muito perto e irritar a bebê.
— Acontece com frequência? — pergunto.
Vou em direção à cozinha, usando Rorie como uma isca para
Amélia me seguir. Funciona. Distraidamente, sem tirar os olhos da neném,
começa a beliscar a borda da pizza.
— Uma ou duas vezes por mês. O pediatra disse que não é
incomum, mas… não sei.
— Como assim?
— Eu não acho que seja só o tempo ruim ou um resfriado, sabe? —
as palavras saem vacilantes. — Talvez esteja sendo paranoica por causa da
meningite, mas não sou uma pessoa obcecada, Vince. Nunca fui de me
preocupar demais.
Amélia não precisa me convencer, eu sei disso. Existem mães
sensíveis que surtam por qualquer coisa, e ela não é uma dessas. Se acha
que há algo errado, provavelmente é verdade. O que me perturba, muito
mais do que imaginei ser possível. Aperto Rorie com mais força, usando a
cadência da respiração para me acalmar.
É só por elas que não entro em pânico.
— Vocês fizeram exames? — a pergunta faz as lágrimas
ameaçarem cair. Nunca a vi tão abalada.
— Fizemos só alguns mais superficiais — morde os lábios. — É
muito pouco.
— Amanhã vamos ao Charles e pediremos todos eles, ok?
Um plano – é sempre melhor ter um plano.
— Coma só mais um pedaço. Rorie está adormecendo, vou levá-la
para o sofá. — Amélia obedece. Muito pensativa e em silêncio, termina
uma fatia de pizza.
Ficamos vendo desenhos com o volume desligado. Rorie acorda
mais duas vezes até que o sono a pegue para valer. Não me importaria se ela
ficasse dormindo nos meus braços, mas preciso cuidar da mãe dela também.
Não falamos muito, e em silêncio, é possível ver as emoções
passarem por Amélia. São muitas, e o cansaço piora tudo.
— Vamos colocar a Rorie para dormir na cama com a gente —
falo, porque nenhum de nós vai conseguir ficar longe da bebê. Entro no
quarto de Amélia e ajeito a pequena na com cuidado. Sem travesseiro,
como descobri que é o certo.
Confesso que é uma novidade para mim.
Merda, será que tem perigo de eu esmagar ela?
Bem, não. É natural, pais dividem a cama com os filhos o tempo
inteiro.
Pais.
Amélia não demonstra ter problemas com o papel que pretendo
assumir na vida de Rorie. Eu tinha planos de, aos poucos, ir testando as
águas e descobrindo qual era o limite. Obviamente, não deu certo.
Espero sua reação com orelhas baixas, aceitarei se ela me der um
chega pra lá, dizendo que estou louco se acho que vou passar a noite aqui.
Mas quando a olho, Amélia não está atrás de mim. Ela ficou na
sala, encarando fixamente as rosas jogadas sobre o balcão.
— Amélia?
— Desculpe por não ter conseguido ir. Eu queria. Muito —
murmura, chorosa. — Entendo se for demais para você, ok?
Oh, Deus. Ela vai me matar.
— Ei, não — vou em sua direção. Seguro o rosto dela entre minhas
mãos — Estou exatamente onde quero estar.
Seus lábios tremem e ela funga o nariz para se impedir de chorar.
Puxo-a para um abraço, e só respiro direito quando a sinto contra mim.
— Por favor, não me mande embora — peço. — Não me afaste.
Amélia afunda o rosto no meu peito, deixando o choro vir.
— Minha bebê está doente, Vince — engasga. — Estou tão
assustada.
Acaricio as costelas quentes, esperando que ela coloque tudo para
fora.
— Descobriremos o que está havendo com Rorie. Rezo para que
não seja nada, mas de toda forma, faremos o que for necessário. Juntos.
Nada vai acontecer com sua garotinha, Amélia.
Nossa.
Ficamos assim, abraçados, sentindo um ao outro, até que o sono
comece a vir para ela também. Entramos no quarto silenciosos e trocamos
um beijo.
Eu fico com o lado esquerdo, Amélia com o direito. Adormecemos
com Rorie no meio de nós.
28
AMÉLIA
Vince dirige sua caminhonete em direção ao hospital. Ele tinha
algumas roupas no bar, então nem precisou passar em casa.
Não saiu do meu lado.
Quando Rorie acordou de madrugada, levantou comigo e preparou
a mamadeira enquanto eu a balançava. Acariciou minhas costas tensas e me
beijou a testa, prometendo que tudo ficaria bem.
É difícil admitir, mas não sei o que teria sido de mim sem seu
otimismo cego e suas palavras gentis. A interminável fonte de ternura que
me puxou para a razão todas as vezes que fiquei a ponto de enlouquecer.
Não sei o que teria sido de mim sem ele.
Estou mais ansiosa do que já estive em toda a minha vida, é
opressor. Me lembra muito a noite em que Rorie nasceu. Faltavam algumas
semanas para o parto e Levi estava fora da cidade. Comecei a sangrar e os
médicos tiveram de fazer uma cesárea de emergência, então, sozinha, entrei
em pânico. Precisei ser contida, porque não estava deixando ninguém
colocar as mãos em mim.
Eu nem havia conhecido minha filha ainda e proteger ela já havia
se tornado a razão pela qual respiro.
Ela tem de ficar bem.
— Bebê ou bolsa? — Vince pergunta ao estacionar, me tirando das
lembranças.
— Bebê — respondo, indo para a porta traseira para retirar Rorie
da cadeirinha. É bom que eu esteja com ela quando começar a chorar e,
além disso, abraçá-la ajuda com a preocupação.
Vince coloca a palma da mão na minha coluna e nos guia para
dentro do prédio. É muito natural e protetor.
A sala de espera é tão ruim quanto sempre foi, mesmo que seja
decorada com brinquedos e pinturas infantis. Não tira a morbidade.
Honestamente, piora um pouco, porque me lembra a fragilidade e a
inocência dos pacientes.
Meu Deus.
— Vai ficar tudo bem — diz, lendo meus pensamentos. Agradeço
com os olhos, sem vontade de usar a voz.
— Rowan Reid? — A enfermeira chama, e levantamos. Me lembro
dela, é a mesma que nos acompanhou no episódio da meningite.
— Olá — fala, gentil. — Sinto muito pelas circunstâncias, mas
fico feliz em ver vocês de novo.
— É bom ver você também — respondo com um sorriso fraco.
Vince acena com o queixo.
A seguimos para a salinha onde tiram sangue, um quarto branco
com uma maca. Ela volta toda a atenção para minha filha.
— Rowan, querida. Vai ser só uma picadinha, ok?
Estremeço com a visão da agulha. Rorie começa a chorar e tenho
de usar força para que ela fique quieta. Dói. Olho para Vince, buscando
ajuda.
Encontro o homem à beira das lágrimas.
Oh, droga.
— Estou quase terminando — fala a enfermeira, trocando o refil.
São três agora, é muito sangue. Muitos exames. — Pronto.
Rorie agarra meu pescoço com os dois bracinhos, escondendo o
rosto no meu peito.
— Shhhh — mimo, segurando meu próprio choro. — Veja como
você é forte, amor. Mamãe está tão orgulhosa.
— Iremos encaminhar as amostras para o laboratório e os exames
estarão prontos dentro de algumas semanas.
— Semanas? — Vince pergunta com uma carranca. — Tanto
assim?
— Não fazemos esse tipo de triagem aqui na cidade — ela
responde, sem graça — Vou pedir urgência, mas ainda levará pelo menos
vinte dias.
— Tudo bem — agradeço. — Obrigada.
— Sem problemas. Vocês podem esperar na recepção, o Dr.
Charles vai atendê-los a qualquer momento.
Por alguns minutos, ando pelos corredores com uma Rorie chorosa
nos braços.
Um Vince choroso ao lado.
Me sinto horrível que ela esteja com dor. Ele? O homem está
miserável. Não sei exatamente o que penso a respeito. Há uma espécie de
conforto sádico nisso.
— Me dê ela um pouco — pede, com braços estendidos. Rorie
nem hesita antes de trocar de colo, muito apegada.
É lindo.
Mas é certo? Uma boa ideia? Eu não sou minha mãe, não estou
procurando homens para bancar o pai da minha bebê. Só que é… Vince. Ele
é diferente. Está chorando, pelo amor de Deus.
Vince é seguro.

O médico finalmente chama. Não sei o que Vince e ele têm um


contra o outro. Minha aposta é briga por mulheres, então decidi não
perguntar. Só há três pediatras na cidade, e Charles é de longe a melhor
opção.
Entramos no consultório, e Vince, relutantemente, entrega Rorie
para o exame físico. Charles a coloca para engatinhar, checa os reflexos e
verifica o peso. É tudo bem tranquilo, até nos devolver a bebê e abrir o
histórico no laptop. O rosto dele fica muito sério.
— O que é? — Eu e Vince perguntamos ao mesmo tempo, com o
mesmo tom de voz aflito.
— Rorie está com um peso ideal, bem hidratada, e os reflexos dela
estão ótimos. Notei que há uma infecção no ouvido e que as plaquetas estão
mais baixas do que eu gostaria. Isso pode estar relacionado aos episódios de
febre que ela tem tido.
— Infecção? Todos esses meses?
— Provavelmente uma inflamação crônica. Uma sequela da
meningite, talvez, mas não descarto uma condição independente. Genética,
por exemplo. Você foi testada?
— Eu fui a um obstetra quando estava grávida, mas não acho que
fiz exames genéticos.
Ele anota algo no computador com o rosto pensativo.
— Você se importaria que eu examinasse você? Uma consulta
rápida e colhemos amostras de sangue hoje, assim podemos receber seus
resultados junto com os de Rorie.
— Não — murmuro. Condição hereditária. Doenças que eu ou
Jasper podemos ter passado. — Você precisa que eu chame o pai biológico
dela também?
O Dr. Charles não olha para mim, ele olha para Vince. Os dois
trocam um silêncio hostil que grita, mas não tenho cabeça para ligar.
— Hum… seria bom, mas o exame materno pode descartar muita
coisa — responde, cauteloso. — Se não puder trazê-lo, conseguimos
trabalhar muito bem também.
Graças a Deus.
— Faça em mim, então.
— Ótimo — concorda, e digita, abrindo outra ficha. — Marie virá
tirar seu sangue, mas vamos começar com as perguntas. Minha segunda
especialidade é como clínico também, não se preocupe.
— Eu sei — murmuro.
Procurei o currículo dele antes mesmo de alugar um apartamento.
— Vamos lá.

VINCE
Observo Charles terminar o exame em Amélia. Cristo, são muitas
informações. Antes de começar, ele a perguntou se queria que eu saísse da
sala. Ela me olhou nervosa, e achei que fosse dizer eu sair, mas acabou me
pedindo para ficar e relaxou visivelmente quando assenti.
Minha presença a acalma.
Gostaria de dizer que o gesto me deixou feliz, mas a bebê nos
meus braços, possivelmente doente, perturba demais. Não consigo sentir
nada que não seja preocupação.
Impotência.
— Eu entro em contato o mais rápido possível — diz Charles ao
terminar, nos levando até a porta. Amélia só concorda com a cabeça, sem
falar nada.
— Obrigado — levanto a mão, surpreendendo o desgraçado. Eu o
odeio, sim, mas é ele quem está cuidando das minhas meninas.
Está sendo estranhamente decente sobre a coisa toda, também.
Ao invés de ir para o estacionamento, Amélia caminha para a
recepção, imersa na própria cabeça. Acompanho, ninando Rorie. Ela fala
com a secretária e assina uma dúzia de papéis, fazendo uma expressão
derrotada ao pegar um envelope. O que será que é? Mais exames?
Recomendações médicas? O que poderia deixá-la ainda mais chateada?
Espero que diga algo quando volta, mas só enfia os papéis na
bolsa.
Chegamos à caminhonete e Amélia deixa suas coisas no banco do
passageiro. Com as mãos livres, pega Rorie de mim para colocar na
cadeirinha.
É claro que vou atrás do envelope.
Já passamos do ponto de ser delicados, preciso estar por dentro de
tudo que envolva elas.
É a conta do hospital.
Porra, vinte mil.
— Que tipo de seguro de saúde vocês têm?
Amélia senta no banco do passageiro, revirando os olhos quando
vê o que tenho em mãos. Nem xinga.
— Um ruim.
— Vou ligar para eles.
Fodidos. Ela trabalha pra caramba, Deus do céu. O que? Não pode
cuidar da filha doente?
— Eu já olhei.
— E?
— Bem, e nada. Cobrem internações emergências, esses exames de
Rorie não são nenhum dos dois.
Filhos da puta.
— O que você estava planejando fazer?
— Eu não sei, Vince — responde, cansada. — Passar no cartão de
crédito, um cheque sem fundo… a única coisa no meu nome é Rorie — as
palavras estão na ponta da língua, o que quer dizer que pensou nisso.
— Amélia.
— Não é como se eu fosse ser presa — desdenha. — Eu acho.
Eu estou aqui, quero gritar. O que precisa? Uma placa brilhando?
— Falar comigo nem mesmo passou pela sua cabeça?
— O que? Não. Como disse, liguei para a seguradora.
Mas que porra.
Ela não ia falar nada, mesmo estando juntos, insiste em agir como
se não tivesse ninguém com quem contar. Será que falou com o Levi?
Preferiu procurar ele do que a mim?
— Não quero brigar — murmura baixinho.
Quase freio o carro. Amélia sempre quer brigar. Olho para o lado e
não vejo nenhuma luta lá. Ao invés disso, encontro um rosto profundamente
triste. Os olhos verdes de Amélia gritam de ansiedade.
Vinte e quatro anos, o peso do mundo nos ombros.
— Eu vou cuidar disso — prometo.
Vou cuidar de tudo.
— Como?
Amélia não vai aceitar dinheiro, sei que não.
— Vou ameaçar processar a seguradora, caso não revisem.
Parcialmente verdade. Talvez eu os processe, mas primeiro vou
pagar para que ela não tenha de se preocupar. Irei colocá-las no meu nome
também. Ainda mais para caso Rorie precise de algum tratamento.
— Ok — concorda, a voz não passa de um sussurro. Franze os
olhos para a estrada. — Você errou o caminho.
— Nós vamos para minha casa.
29
VINCE
— Você manteve tudo? — Amélia pergunta, surpresa, quando
surjo no banheiro com uma banheira infantil.
Na verdade, comprei mais. Apetrechos, roupinhas, brinquedos…
sempre que via algo interessante nos bebês que frequentam o parque onde
treino, acabava indo ao shopping procurar algo para Rorie. Meus armários
estão cheios de latas de fórmula infantil. Temos, provavelmente, itens
suficientes até o segundo aniversário dela. Virou uma compulsão meio
esquisita, mas me incomoda que Amélia não deixe que eu dê presentes,
pague a babá ou até mesmo faça compras. Depois que começamos a
namorar, ela traçou limites claros: não vai dividir a conta quando vamos
jantar, os encontros são minha responsabilidade, e permite que eu pague a
comida que pedimos quando estou no apartamento. Termina aí.
Eu não gosto. Não é o suficiente.
— Sim, mantive — confirmo, honesto. Não vou fingir que as
linhas que Amélia desenhou à sua volta são algo que não irei ultrapassar.
— Tudo bem — concorda, piscando os olhos. — Obrigada.
O nome disso é vulnerabilidade.
— Claro. Vamos, deixa eu te ajudar.
É uma banheira de silicone que possui um banquinho e medidor de
temperatura. Assim que a bebê encosta na água e vê os patinhos flutuando,
começa a bater os braços, fazendo uma bagunça. Ela é tão preciosa.
Agacho ao lado de Amélia, que esfrega sabonete na careca da
bebê. Vai ficar reluzente.
— Como vamos chamar esse aqui, hum? — pergunto, apertando o
maior dos patos. — Ele é forte e bonito, que tal Vincent?
Rorie joga água no meu rosto, o suficiente para escorrer pela barba
e blusa. Obviamente, ela adorou o nome.
Distraído com a bebê, recebo um beijo roubado. Amélia sorri, é a
primeira vez que ela sorri hoje.
— É sim, Vincent. Um lindo nome.
Eu sabia!
— Gosto de Amélia também — concedo, já que estamos trocando
elogios. — Te chamavam de Amy quando você estava crescendo?
— Você quem inventou isso, ninguém nunca me chamou de Amy
na vida — bufa.
Levanto as sobrancelhas.
— Você sempre foi tão…? — enrolo nas palavras, pensando no
que posso dizer sem parecer uma ofensa. Nunca é.
— Espinhosa? — sugere.
— Eu ia dizer séria — minto. Seus lábios se curvam para cima.
— Sim, minha mãe costumava dizer que eu nasci com a cara tão
fechada que ela pensou em me trocar na maternidade — fala em tom de
brincadeira, ainda assim, não gosto das palavras. O rosto dela fica sem
graça de repente. — Ela me chamava de Lia.
Lia.
Soa bem na língua. Mas prefiro Amy.
Na verdade, prefiro Amélia.
Sério, forte e, de alguma forma, delicado. Como ela. Então, o uso
do passado me ocorre. Merda.
— Eu sinto muito.
— Hum?
— Por sua mãe. Sinto muito.
— Oh, ela não morreu — faz uma careta. — Eu acho que não, Levi
teria me dito. Ele ainda conversa com o pai dele.
Jesus.
Limpo a garganta, perdido. Um pouco assustado. Não é como se eu
fosse mega próximo dos meus pais, mas nem saber se estão vivos? É…
drástico.
— Vince? Pode pegar a toalha, por favor?
— Claro — deixo meu rosto livre de qualquer expressão. — Eu
visto ela e você toma banho. Está toda molhada.
Não do jeito bom.
Olho para as roupas úmidas, o tecido da blusa colado ao corpo.
Bem, talvez um pouco bom, sim.
— Vou ficar sem nada para vestir — franze o cenho.
— Você tem um guarda-roupa cheio de blusas minhas para
escolher — abro a toalha, pegando a bebê dela. Confesso que estou
animado para decidir sozinho o que Rorie vai usar.
Tem um macacão de panda.
— Muito bem, fechado — ela morde os lábios. — Obrigada de
novo.
— Pare com isso — descarto. — Quando você quiser me
agradecer, você me beija.
Avanço com os lábios contra os seus, ainda me surpreendendo com
o quanto sou sortudo de poder fazê-lo. A bebê arrulha no meio de nós.
Continuo beijando a mãe dela, decidido que vai se acostumar a dividir.
Ou não.
— Ela acabou de me dar um tapa?

AMÉLIA
Um banho não é o suficiente para me livrar de toda a tensão do dia.
Mas ajuda.
Fico quase meia hora debaixo do chuveiro e, ao sair, encontro o
quarto de Vince. Deve haver três ou quatro quartos, todos no andar de cima.
A casa dele é diferente do que imaginei, muito caseira, com molduras de
fotos nas paredes e muitos objetos relacionados ao futebol americano.
Parece uma casa de família.
O quarto está mais bagunçado do que os outros cômodos, há uma
pilha de roupas no canto e tenho certeza de que o homem lavou e deixou
para dobrar depois – o momento, naturalmente, nunca chegou. Escolho a
camisa branca que vai até o meio das minhas coxas.
Caminho silenciosamente em direção ao quarto infantil, que não é,
de forma alguma, de Rorie. Nós estamos namorando há poucas semanas,
seria loucura.
Certo?
Encostada na porta, observo os dois.
Eu nunca tive um pai. Não acredito que minha mãe não sabia quem
ele era, porque sempre que eu perguntava a respeito, tinha certo prazer nos
olhos quando respondia isso. Parei de perguntar só para não ver mais aquela
expressão.
É uma ironia do destino que, vinte anos depois, provavelmente o
melhor para Rorie seja fazer o mesmo.
Seria tão diferente se fosse Vince.
Como se ouvisse os pensamentos, o homem levanta os olhos,
encontrando os meus. Sou pega no flagra, espiando.
Ele vem me encontrar na sala do primeiro andar depois de deixar
Rorie adormecida no berço.
— Pensando em quê?
Eu não ousaria dizer.
— Nada específico, só sobre… a vida — com você. Minha mente,
pessimista, tenta me repreender sempre que começo a deixar a ideia
assentar.
Diferente de mim, intimidade para Vince é natural como o ar que
respira. Se aproxima até que estou caída no sofá, com ele em cima, me
prendendo com as pernas.
Fico toda quente.
O rosto afunda no meu pescoço, esfregando a barba lá. Vince nem
está caçando sexo, está só sendo ele.
— Fica aqui comigo?
— No sofá?
— Em casa — encosta a testa na minha, o que é uma ótima forma
de convencimento. — Não vou conseguir ficar longe de vocês. Já estava
difícil antes, agora é impossível. Se não, vou te enlouquecer indo ao seu
apartamento toda hora.
Aí, Deus. Meu coração não tem a menor chance.
— Pegamos uma mochila de roupas, apesar de que você está linda
pra caramba com minha blusa. Só não acho que vou deixar ninguém mais te
ver assim, e parece injusto te manter prisioneira.
— Deixar? — Finjo aborrecimento.
— É. — Seus lábios me encontram, tirando meu fôlego com um
beijo possessivo. As mãos entram por debaixo da blusa, apalpando a pele
quente. — Eu nunca fui assim antes, Amélia. Não sou um bruto ignorante,
mas você…
— Te enlouquece.
— Sim — concorda, e sente meus pelos arrepiando. Quebra o beijo
outra vez, com a expressão curiosa. — Você gosta.
Eu adoro.
Sou uma provocadora? Meio que sim.
Tento me afastar, envergonhada, mas Vince segura minha cabeça
no lugar, obrigando-me a aceitar seu beijo.
— Não — rosna, pressionando o corpo contra o meu. — Não se
esconda de mim. Quero tudo, ouviu?
Tento assentir, mas ele me impede de responder colocando a boca
sobre a minha novamente. É um beijo muito molhado, fico cheia de saliva.
Sinto o coração acelerar, minhas mãos sobem pelos braços até que se
entrelaçam no seu pescoço. Puxo para mais perto.
Ele geme com o gesto, um barulho masculino que me faz tremer.
Tem gosto de hortelã, café e homem. Segura meu corpo como se tivesse
medo que eu desapareça.
Quem diria que carinho poderia ser tão excitante?
A última – e única – vez que ficamos juntos, estávamos movidos
por desejo e tesão reprimido. Tenho todos os planos do mundo de esperá-lo
um dia com uma lingerie bonita, mas hoje será igualmente apressado.
Preciso dele.
As mãos calejadas vão na minha coxa, tentando encontrar a
calcinha. Ruge quando percebe que não estou vestindo nenhuma.
— Vamos tirar isso. — Pega a barra da blusa e ergo os braços para
ajudá-lo a passar pela minha cabeça. Fico totalmente nua debaixo dele, que
ainda está vestido.
Observa meu corpo com fascínio, capturando cada detalhe. Seus
olhos demoram na minha tatuagem, é um desenho intrincado por cima da
cicatriz da cesárea. Não era mais do que um risco, mas como trazia
lembranças ruins, cobri.
É o primeiro lugar que ele beija.
Ofego, surpresa. É muito perto da minha virilha e me deixa
molhada, só que também me constrange, afinal, é uma cicatriz. Nunca me
preocupei com ela, ou as imperfeições que nunca serei capaz de me livrar,
mas agora me sinto insegura.
— Ei — murmuro, colocando a palma na sua testa. — Não, não
faça isso.
Olha para meu rosto, confuso.
— São marcas — explico, subitamente tímida. — Você não
deveria… olhar.
Opa.
Definitivamente para de encarar minha tatuagem, porque em um
movimento rude, avança para cima de mim. Sua expressão é predatória.
— Quero gozar em cima delas — diz, e engasgo, surpresa — Vai
ficar ainda mais bonita.
— Vince.
Suspiro, e seu rosto desce, beijando minha clavícula até chegar aos
seios. Morde cruelmente a pele sensível, empenhado em deixar suas
próprias marcas.
Dissipando a insegurança.
Encontra os mamilos e alterna para sugar os dois com avidez,
como se tentasse tirar algo de lá. Sangue, provavelmente. Gemo de dor e
excitação, erguendo meu quadril para criar uma fricção.
Toda aberta e nua, me esfrego em suas roupas.
— Você é gostosa demais — geme, aprovando. — Perfeita.
Sua língua desce pelo meu abdômen e ele inspira os pelos
molhados da minha virilha.
Jesus.
— Posso?
O encaro, perdida.
— O que?
Em resposta, dá um beijo molhado na minha vulva.
Ah, eu não o deixei naquela noite.
Aceno e Vince suspira, aliviado. Abre as coxas e acomoda o rosto
no meio das minhas pernas. Passa a língua desde o clitóris até lá atrás.
Fecho o rosto, deixando claro que isso está fora de questão.
— Outro dia — murmura, rindo.
Não.
Ele já viu seu tamanho?
Antes que eu possa xingá-lo, a língua está circulando meus lábios.
Desisto de reclamar.
Sinto-me fora de órbita, minhas costas arqueiam e pernas tremem.
Quase o sufoco. É demais, meu corpo está estático, flutuando em sensações.
Mas toda vez que me aproximo do orgasmo, ele desacelera.
É irritante.
— Vinc… — o protesto vira um chiado quando coloca um dedo
em mim e massageia, alargando minhas paredes. — Oh, porra.
— Você tem o gosto tão bom, Amélia. — Elogia.
É, que lindo. Ele pode fazer uma poesia depois. Agora, estou
sofrendo.
Remexo, frustrada. Eu vou…
Nada.
O calor me deixa.
Ele me deixa.
Abro os olhos, carente. Estou pronta para gritar algo estupido e
manhoso, mas Vince está desfilando o cinto.
— Sinto muito — fala com a voz rouca, se livrando da calça e
cueca. A ereção se impõe, pulsando. Grossa como me lembrava — Eu
tenho de sentir você.
Sim.
Prendo a respiração quando ele volta, se ajoelhando para encaixar
o pau na minha entrada.
— Só um pouco — murmura e pincela a cabeça pau entre os lábios
da minha boceta. Assiste, ofegante, fazendo parecer a coisa mais excitante
do mundo usar sua ereção para me masturbar.
Deus.
Tento mover, capturar para que entre mais, e ele impede, segurando
meu quadril no lugar. Mete apenas superficialmente. Centímetros. É
curiosamente excitante, e suspiro, em transe.
Cada pulsar meu aperta sua circunferência. Gemidos sôfregos saem
do seu peito.
Ele não entra, vai me levar ao orgasmo só com a ponta dentro de
mim. Deepois de provocações, vai um pouco mais fundo, só que logo
remedia, fazendo parecer um acidente.
Por que é tão sexy?
Ondas de calor são insuportáveis no meu ventre, e sinto espasmos
nas paredes internas, apertando Vince.
Ele grunhe.
É um orgasmo profundo, errático. Intenso. Acho que não estou
bem.
— Você está … porra, Amélia — ofega, e começa a se mover.
Seguro o tecido do sofá, aflita. O segundo orgasmo me derrete.
Com um rosnado, ele sai. Como prometeu, atira seu esperma
quente e pegajoso na minha barriga, cobrindo a tatuagem. Não conseguindo
evitar, pega um pouco com os dedos e enfia dentro de mim. É
desconcertante.
É uma reivindicação.
30
AMÉLIA
Voltei para o apartamento depois de uma semana na casa do Vince.
Estava fácil demais ficar lá, e isso começou a me assustar.
Agora, estou com saudades. Não que eu não o veja todos os dias,
ele tem feito um esforço real para estar presente. Dormiu aqui na maioria
das noites desde então e, além disso, volta e meia me busca na escola. Mas
não é a mesma coisa que dividir a casa.
— Rorie, venha cá — chamo, e recebo um não em forma de aceno.
Ela ainda não fala, mal balbucia sílabas, mas, depois que aprendeu
a negar com a cabeça, isso se tornou sua coisa favorita. É não o tempo
inteiro.
Nem um ano e já tão rebelde.
— Não? Nós vamos ver o Vince — digo, e o reconhecimento
brilha em seus olhos. Rorie sente falta dele também. Algumas noites atrás,
começou a chorar e não queria que eu a consolasse. Quase liguei para ele e
me senti uma tola orgulhosa por não fazê-lo.
A bebê não obedece – nenhuma novidade aí – então vou pegá-la no
pé da estante. Hoje é o evento para arrecadar dinheiro para a liga de futebol,
e Vince vai jogar. Ele apareceu aqui ontem com uma camisa vermelha do
time, com o número dez e seu nome, dizendo que era para eu vestir. Trouxe
outra em miniatura para Rorie. Nada possessivo.
A cidade toda estará lá, e é a primeira vez que seremos realmente
vistos em público como um casal.
Visto a bebê, que fica uma graça como pequena torcedora. Passo os
dedos em tinta preta e faço riscos em suas bochechas. Ela arregala os olhos
com o gesto e sorri, achando que vamos entrar em uma bagunça, mas afasto
suas mãozinhas travessas.
Hesito antes de repetir o gesto em mim.
É bobo?
Estou com um par de jeans que deixa minha bunda incrível, a blusa
dele, e fiz uma trança no cabelo – em minha defesa, é uma trança elaborada,
bagunçada o suficiente para ser descolada.
Pinto o rosto?
Ah, foda-se, caras amam isso. Simplesmente faço e sou
oficialmente uma namorada de jogador.

Chego ao estádio com Rorie e, Deus, é difícil acreditar que isso


aqui não é um espaço profissional. É gigante e está absolutamente lotado.
Primeiro, um sentimento semelhante à ansiedade tenta me alcançar, mas
algumas pessoas me cumprimentam pelo nome e apertam a bochecha da
minha bebê, que esperneia alegremente em resposta, encantada com tudo.
Isso me faz sentir melhor.
Falta meia hora para o jogo começar, mas os homens já estão no
campo, amontoados em dois grupos diferentes. São todos altos, com
estatura forte, mas localizo Vince imediatamente. Ele está conversando com
um cara que não é o Johan – milagre – e sorri.
Vince é tão confiante, exala masculinidade por cada centímetro do
corpo. Olhá-lo sempre me deixa com água na boca. Com essa camisa
moldando seus músculos? Suas pernas fortes? Só consigo lembrar do
quanto é incrível tê-lo em cima de mim. Cristo. De repente, uma pontada
aborrecida de ciúme me cutuca. Solto uma risada, parecendo louca.
Amélia Reid. Com ciúmes.
O inferno está pronto para congelar.
— Amélia! — Ouço Emilly. — Você!
Noto o exato momento em que ela registra minha roupa, porque
abre um sorriso bobo. Minhas bochechas ficam vermelhas.
— E você deve ser a pequena Rorie — suspira. — Não acredito no
quanto ela é fofa!
A criança em questão mostra a linguinha, animada, fazendo Emilly
choramingar.
— Isso não é bom para o meu útero — reclama. — Venha, estou
com algumas professoras ali à esquerda, estávamos todas nos perguntando
se você viria.
Sorrio e a sigo.
São as mesmas pessoas que foram ao bar do Vince. O que quer
dizer que Cameron também está aqui. Nosso cumprimento é constrangedor,
mas não mais do que o dia em que ele foi ao meu apartamento me levar
para sair e encontrou Vince lá.
— Oi, gente. Essa é Rorie.
Todas acenam e brincam com a bebê. Duas mulheres também
trouxeram seus filhos, garotinhos com cerca de quatro anos, que correm
como loucos. São fofos.
— Você está planejando dar um irmãozinho a ela? — Pergunta a
secretária, com quem troquei cerca de sete palavras em todos esses meses.
Engasgo, surpresa.
— Não, de jeito nenhum — apresso-me em negar. — Você já ficou
grávida? É realmente algo que só se faz uma vez na vida.
Para mim, pelo menos. Há um ano me pergunto como algumas
mulheres escolhem repetir a dose. Talvez não tenham quase morrido.
— Pensei que estivesse — brinca, olhando para Vince.
Então, entendo que ela está sendo uma vadia.
Claro.
— Estamos satisfeitos com o que temos — uso o plural
intencionalmente, fazendo soar que eu e Vince somos uma unidade, e ela,
uma mal-amada do caralho. — Você e seu namorado estão tentando?
Já que perguntar sobre escolhas reprodutivas é razoável.
Eu sei que o homem terminou com ela no mês passado, a ouvi
chorar pelos cantos na escola. A expressão no seu rosto quando nega é
impagável.
Nem escondo meu sorriso.
— O jogo está começando! — Alguém grita, e todos viramos em
direção ao campo.
Sei pouco sobre futebol americano.
Na verdade, em toda minha vida, não tive a menor inclinação.
Achava que era só um esporte chato, que pessoas igualmente chatas usavam
para se distrair. Como ver vinte homens brigando por uma bola poderia ser
interessante?
Mas, Deus, como estava enganada. É excitante.
Emilly me explica rapidamente as regras do jogo. Não precisava,
não é tão complexo. Queremos que um cara leve a bola até o campo
adversário sem morrer no processo.
Ou matar.
E o alvo principal é Vince.
No campo, sua expressão é uma carranca séria, muito determinada.
Com razão, porque não o deixam em paz. Tentam derrubá-lo três vezes
antes do final do primeiro tempo.
— Quem são esses caras? — Guincho. Eu só reconheci Vince e
Johan.
— Bem, é uma história engraçada — ri. — A maioria eram uns
arruaceiros da região que jogavam futebol no colégio ou na universidade.
Uns dez anos atrás, se dividiram em dois times para jogar de forma
amadora.
— Amadora? — Os times têm nomes, uniformes e mascotes.
— É, sabe, homens e testosterona — ela me olha, curiosa. — Não
seguiram carreira no futebol, mas isso não quer dizer que conseguem viver
sem jogar. — Sua mão abrange o estádio. — Ajuda o fato de serem todos
incrivelmente ricos também. É um hobby caro.
Faço careta, olhando para o campo. Dois mamutes estão indo atrás
de Vince. Dois de uma vez.
— Filhos da puta — resmungo, nem me preocupando em tapar as
orelhas de Rorie.
— Sempre tentam pegar o Vince, ele é realmente bom. Quando
morava em Denver, alguns olheiros tentaram entrar em contato.
— Denver? Não sabia que ele morou em Den… ah, pelo amor de
Deus! — Eles o acertaram de novo. — Isso tem de ser proibido!
— Não sabia o quê? — pergunta, séria. Preciso fazer um esforço
para me lembrar do que estava falando, já que minha atenção está toda em
Vince.
— Que ele morou em Denver — murmuro, distraída.
— Ele ficou lá na época da faculdade. Vocês não… hum…
conversam sobre o passado?
Agora, a bola está com o nosso time.
— Ele tem que passar para o da esquerda, certo? Aí o carinha
moreno tem de proteger… caramba!
Foi uma cotovelada. Vou matar esse desgraçado ruivo.
— Amélia!
— Não falamos muito sobre o passado, não — digo, porque Emilly
é minha amiga, eu acho. Ela morde os lábios, insegura, e decido dar
importância ao que está tentando dizer.
— Então nunca falaram de Sarah?
Sarah, a ex. Nunca perguntei a Vince sobre ela.
— Não é da minha conta — diz ela, antes de mim. — Desculpe ter
perguntado.
Não é mesmo.
Eu odeio falar das minhas coisas para os outros.
Mas talvez, por causa da adrenalina nas alturas ou pela felicidade
de perceber que finalmente tenho uma amiga, me vejo explicando a ela.
— Estamos indo devagar e está tudo bem. Quero que seja ele a me
contar qualquer coisa relacionada ao seu passado. Obrigada pela
preocupação, mas não é necessário.
É tudo verdade. Confio em Vince. Ele não me pressiona, o mínimo
que posso fazer é retribuir a cortesia.
— Você tem razão — concorda com um sorriso tímido. —
Desculpe.
— Está tudo bem — digo, voltando minha atenção para o campo.
— Por que estão se dispersando?
— Intervalo. Quinze minutos. Podemos pegar alguma coisa. Doce
ou salgado?
— Os dois.
Encho a cara de pipoca e algodão-doce, o que talvez não tenha sido
a melhor ideia do mundo, porque o açúcar no meu sangue me deixa em um
estado de agitação intensa.
Os times voltam do intervalo como selvagens.
— Vai, Reeves! — Emily grita ao meu lado, depois murmura
baixinho. — Faltam três minutos, nós vamos perder.
— Não vamos, não.
Sou uma péssima perdedora. Mas ela tem razão. O time rival jogou
o suficiente para marcar alguns pontos e depois se concentrou em fechar a
defesa e perseguir Vince. Se eu pudesse dar um palpite, diria para ele
desistir da bola e servir de distração.
Além disso, se o idiota de cabelo vermelho encostar em ele de
novo, vai voltar para casa com o nariz quebrado.
O aviso de um minuto soa e o pandemônio começa. Até o ar fica
tenso. O placar está 34 a 38, só falta um touchdown para virarmos o jogo.
Trinta segundos.
Vince pega a bola.
Ele corre, mas não vai dar tempo. Os adversários param o que
estão fazendo para cercá-lo. Vince olha fixamente para o boneco Chuck,
calcula o que fazer e decide… ir ao encontro dele? É estranho. Vai tentar
derrubá-lo para deixar o caminho livre? Faria sentido, já que o cara é o
valentão. Mas não em quinze segundos.
Quando estão a centímetros de distância, em um movimento fluido,
Vince joga a bola para a esquerda e nem espera para ver Johan agarrá-la.
Então, ele escolhe a violência.
Jesus Cristo, ainda bem que estão de capacete, ou isso poderia
causar um dano real. Eles começam a se debater, cada um segurando os
ombros do outro. Vince o derruba com um mata-leão e acaba caindo
também.
— Oh, meu Deus! — Emily geme. — Vai, Johan!
Eu não vejo o final do jogo, nem raciocino que ganhamos.
Meus olhos estão em Vince.
— Emily? — Gaguejo, apontando para eles. — Isso está certo?
— Hum?
— Não deveríamos… sei lá, interferir?
Ela me olha como se eu fosse louca.
— O quê? Não!
A regra de que Rorie não deveria presenciar confrontos físicos foi
para o ralo, a garota pula, toda animada.
Muitos dos jogadores param de comemorar e se juntam ao redor de
Vince e o outro, mas não para separar a briga – eles também começam a
brigar. É uma rixa.
Estou hipnotizada, engolindo seco.
Não totalmente por repulsa. Nem por preocupação, embora haja
um pouco disso também.
Os sons mal chegam aos meus ouvidos. O homem acerta Vince no
estômago repetidamente, mas ele não parece nem sentir. Seus próprios
golpes causam muito mais estrago. Ele é tão forte. Primitivo.
Acaba em um instante. O árbitro apita, os jogadores param de se
bater e começam a se levantar. A animosidade vai embora. Vince até
estende a mão para o homem que ele derrubou segundos antes.
— É sério? — pergunto.
— São todos amigos, Amélia — Emily lembra, sorrindo. — E
você pode querer limpar essa baba.
Reviro os olhos.
— Vamos lá! Ele vai querer te ver — ela canta, e eu caminho em
direção à entrada do campo. Sinto a atenção das pessoas em mim, a
forasteira com a camisa dez e uma bebê a tiracolo. A imprensa local cerca
os jogadores para tirar fotos e fazer perguntas.
Ah, cidades pequenas.
Ridículo ou não, meu coração ainda quer sair do corpo.
— Amélia! — A vozinha de Justin me chama.
— Ei, garoto. E aí? Gostou do jogo?
— Muito! Mas meu tio Vince foi péssimo, né? — Ele faz uma
careta. — Ah, oi, Rorie.
Ele tem um pouco de ciúmes dela. É natural. Pego a mãozinha da
neném e simulo um tchauzinho. Os pais dele estão logo atrás. Cassie, com
um sorriso brilhante, e Paul com… desdém. Eu realmente não gosto dele.
Os pais de Vince não vieram, graças a Deus.
— Olá — cumprimento, e fico muito constrangida com minha
escolha de roupas. Apesar de Cassie também vestir vermelho, seus cabelos
estão soltos em cachos perfeitos, e ela usa uma calça preta, parecendo bem
elegante. O marido dela, surpreendentemente, não está de terno, mas
continua com seu visual de empresário arrogante.
— Amélia — Paul fala, sério, enquanto Cassie me dá um beijo na
bochecha e começa a brincar com Rorie. A gente se acostuma com isso
depois de ter um bebê tão fofo quanto ela. Emily, que por um segundo eu
tinha esquecido que estava presente, começa a tagarelar.
É bom ter uma amiga.
Levi, Justin e Emily? Já me sinto popular.
Uma mão desliza pela minha cintura e me puxa para um peito
suado e todo sujo de terra. Inspiro, franzindo o nariz. Vince passa a mão no
meu cabelo e me beija.
Um beijo na frente de todo mundo.
— Gritou por mim?
Afasto o rosto para observá-lo. Algumas feridas no rosto, nada
realmente alarmante. Ele abre um sorriso e eu esqueço tudo ao nosso redor.
— E você, pequena? — Brinca com a bochecha de Rorie. — Me
diga que sua mãe tapou seus olhos no último tempo.
— A mãe dela estava ocupada demais tentando não entrar no
campo para te cobrir.
Seus olhos brilham de diversão, ele sabe que estou falando a
verdade. Com o braço em volta de mim, começa a brincar com minha
trança, sem fazer menção de ir a qualquer outro lugar.
Assim, aninhada em seu peito suado com uma bebê curiosa no
colo, fotos são tiradas. Alguém com um microfone aparece e seguro uma
risada. É o radialista, mora perto do bar e vê Vince todos os dias.
— Então, Warren, ouvi que vocês pretendem ampliar o alcance da
liga infantil?
— Vamos, sim. Todas as doações são bem-vindas.
Ele e Johan foram várias vezes até as crianças de Maple Grove
para convencê-las a irem até o complexo de esportes. Não funcionou. Os
meninos não deram bola até que os dois fossem jogar no espaço deles por
algumas partidas. Pequenos orgulhosos.
Vince esclarece quais são os planos, animando-se no processo.
— Aliás, o lucro do meu bar esta semana vai para doação, então
não deixem de passar por lá.
— Certo — o homem anota, e eu me seguro para não rir. — E a
sua namorada? Alguma declaração sobre ela?
Tenho que dar algum crédito ao sujeito, o tom dele faz parecer que
essa pergunta é absolutamente normal. É engraçado. Celebridade de New
Castle.
Só que, dependendo da resposta de Vince, meu coração pode sofrer
uma fratura. Olho para cima.
— Eu não sei — ele me cutuca. — Você tem alguma declaração,
Amy?
Abro um sorriso amplo. Minhas bochechas chegam a doer.
Acho que amo você.
— Não, eu não tenho.

VINCE
Sempre fico com a adrenalina pulsando forte depois de um jogo.
Sinto como se pudesse conseguir qualquer coisa. Caramba, é muito bom.
As pessoas estão aplaudindo, gritando.
Nada disso se compara à sensação de ter Amélia, vestindo minha
camisa, aninhada contra o meu peito. Porra, sou um filho da mãe sortudo.
Cada vez que olho para ela, meu coração bate alucinado.
Enquanto nos afastamos do repórter atrevido, com a certeza de que
uma foto de nós três vai estampar a capa do jornal da cidade, Joe se
aproxima. O desgraçado foi insistente – por causa dele, o time adversário
quase ganhou. Minhas costelas ainda estão doloridas, mas foi ótimo quando
finalmente consegui pegá-lo de jeito.
Amélia se enrijece ao vê-lo se aproximar. Lábios franzidos,
sobrancelhas juntas e um olhar mortal.
— Relaxe — digo, rindo e apertando-a de leve. — Somos amigos.
Ela é tão protetora, e agora estou entre as pessoas por quem ela
voaria na garganta de alguém para defender. É bom. Muito bom.
Joe tem um sorriso irônico ao cumprimentá-la, sabendo da raiva
que causou em campo. Estende a mão para Amélia, que a encara por alguns
segundos antes de aceitar. Seu rosto não relaxa nem um pouco. Quero rir
tanto. Me seguro só para que o ódio dela não seja redirecionado a mim.
— Boa jogada, cara — Joe reconhece. — Achei que você ia
segurar a bola até o último segundo.
Dou de ombros, isso é o que idiotas arrogantes fariam.
— Prefiro ficar com o time vencedor.
Seus lábios se movem, um riso de escárnio surgindo. Então, ele
encara Amélia por tempo demais. Minha vontade de rir desaparece.
— Entendo por que você nunca quis sair da cidade.
Puxo Amélia para mais perto.
— Esta é Amélia — apresento, contrariado. — Ela é minha
namorada.
Recebo um tapinha nas costas, tipo um "parabéns", porque sim, ela
é incrível nesse nível.
— Então, vamos para o bar?
Antes que eu possa dizer que ele é bem-vindo para passar por lá,
mas sem a minha presença, Amélia se adianta e fala baixinho:
— Molly vai ficar com a Rorie essa noite.
Ok…
— Por quê?
Ela não responde de imediato. Suas bochechas esquentam até
ficarem com um tom lindo de pêssego.
— Achei que a gente poderia aproveitar a noite.
Ah, porra.
— Definitivamente, não vamos para o bar.
Joe, esquecido, ri alto.
— Divirtam-se.
Nós vamos. Muito.
— Certo, vou deixar a Rorie no apartamento. Tome um banho e me
espere.
Despeço-me da bebê com carinho, me sentindo um pouco culpado
por roubar a mãe dela essa noite. Depois de um beijo apressado, cada um
vai em direção ao seu carro.
Espera.
— Amélia? — Ela se vira. — Não troque de roupa.
31
AMÉLIA
Duas horas depois, chego à casa de Vince. Cuidei para que Rorie
estivesse calma e sonolenta, a todo momento com o estômago em chamas.
Bato na porta, ansiosa. Ainda estou com sua camisa. O dia de hoje foi
importante para nós, como um marco no relacionamento. É o que temos:
um relacionamento sério. Não somos amigos com benefícios ou um caso de
uma noite. Estamos comprometidos.
— Você bateu — fala assim que me atende. Está com um sorriso
largo que o faz parecer muito jovem. Calça de moletom. Desde quando
homens vestindo moletom são bonitos? — Tenho que te dar uma chave —
murmura, me puxando para seus braços.
Relaxo um pouco, é o efeito que seu abraço causa no meu corpo.
— Está com fome? Eu fiz jantar para você.
Ele é real?
— Fez?
— Não fique tão surpresa — puxa minha trança, rindo. — Sei me
virar na cozinha.
Bem, é verdade. Seja aqui ou no meu apartamento, é ele quem faz
nosso café da manhã.
— Tudo bem — ronrono, me deixando ser levada até a sala. Vince
tem uma sala de jantar, o que achei estranhamente atraente quando vi pela
primeira vez.
— Vinho?
Aceito. Não quero ficar embriagada, uma taça será o suficiente
para me acalmar, mas não o suficiente para eu começar a debater
mentalmente o motivo desses sentimentos em mim.
Ele me serve uma taça e coloca um prato na minha frente.
Macarrão à carbonara, feito pelas suas próprias mãos.
— Não vai me acompanhar?
Vince parece satisfeito em ficar parado, me encarando.
— Você está bonita hoje — elogia, ignorando a pergunta. — As
pessoas devem te dizer o tempo inteiro.
— É diferente ouvir de você.
Tudo é diferente com você.
E, de repente, essa percepção me aquece. Ficar sentada é
impossível, minha pele parece justa demais para que eu não me mova.
Levanto, inquieta. Resisto à vontade de andar de um lado para o outro ou,
pior – fugir.
Estou com medo.
O que temos é tão bom que soa como se fosse efêmero demais, e a
ideia de ficar sem ele é irritante. Temo perdê-lo.
Deus, estou enlouquecendo.
— Você me estragou, Vince.
Ele vem para cima de mim, jantar e vinho esquecidos. Me levanta
sem esforço algum, sentando minha bunda na mesa dura. Apalpa toda a
pele – forte – deixando um rastro insuportavelmente quente.
Não.
Eu preciso… preciso de um pouco de controle.
— Se afaste — falo, empurrando seu peitoral com a palma da mão
aberta. As mãos de Vince tremem ao soltar minhas coxas. Tenso, busca
meus olhos.
Meu coração acelera e sinto o suor escorrendo entre meus seios.
Suspiro, piscando os olhos devagar.
Desço da mesa e seguro a gola da sua blusa.
Um beijo comandado por mim.
É um bom começo, meu temperamento se assenta assim que
nossos lábios se encontram. Toda a confusão desaparece. O empurro com
passos lentos. Não é forte, mas é firme.
Quando chegamos à sala de estar, derrubo Vince na poltrona,
puxando sua blusa para cima antes de soltá-la no chão.
Estão se formando roxos no abdômen.
— Está doendo?
— Sim — responde, engolindo seco.
Ele não está falando dos hematomas, seus olhos estão em mim.
— Eu vou cuidar de você.
Também não estou falando de curativos. As pupilas de Vince
dilatam em uma expressão predatória, com um sorriso surgindo nos lábios.
Espera meu próximo movimento.
Paciente, exceto pela respiração pesada que faz o peito largo
contrair.
Pego o controle remoto e entrego a ele.
— Coloque na rádio sete.
É uma estação de música que mistura R&B e dance. Assim que
obedece, um som sensual enche o cômodo. A luz diminui também, e fecho
os olhos, sentindo a melodia.
Começo pelos sapatos – não os meus, os dele. Ajoelho no chão e
tiro seus tênis, puxando as meias logo depois. Vince vira a cabeça para cima
e suspira.
É empolgante o quanto ele é sensível. A mínima coisa que faço o
deixa subindo pelas paredes. Me sinto confiante e sexy. Colocando as mãos
em sua braguilha, o ajudo a sair das calças. Desço até ficarem em seu
tornozelo.
Assisto sua ereção projetando em sua virilha. É de dar água na
boca, mas decido não fazer nada a respeito disso no momento. Essa noite é
o momento de ser infernal.
— Quero dançar para você.
Ele geme.
É um sim, acho.
O que faço não é bem um strip, eu gosto de dançar e estou
excitada. É mais como uma manifestação de desejo, e no ritmo da música,
me movo. Tiro minhas calças de costas, para que tenha uma boa visão da
minha bunda, mas viro de frente para tirar da blusa.
Quero estar com os olhos nele quando vir… isso.
É uma lingerie ousada. Vermelha, com um fio dental e cinta liga. O
sutiã, em forma de taça, faz maravilhas com meus seios.
— Caralho, Amélia.
Sorrio internamente, montando em suas coxas.
— Você gosta?
— Eu amo — grunhe. Pego suas mãos e as encaixo na minha
cintura.
— Mantenha aí.
Me acomodo na sua virilha e começo a movimentar os quadris.
Um rebolado lento, que faz seu pau ser esmagado vez e outra. Por duas
músicas, uso seus gemidos para me guiar.
Nunca me senti tão poderosa.
Desejo simplesmente montá-lo, feroz, mas essa é a história do
nosso relacionamento. Excitante e devagar. Cheio de expectativa. Beijo,
com lábios molhados, suas feridas.
Ver ele no campo foi enlouquecedor.
Seus braços são fortes o suficiente para abrigar um mundo inteiro.
Chupo seu mamilo.
— Amélia.
Sim, implore.
Brinco com seus lábios, chegando perto só o suficiente para sentir
minha respiração, mas não consumando um beijo. Mordisco a orelha, e suas
mãos apertam minha carne, mostrando sua frustração. Continuo me
movendo para frente e para trás.
Geme ainda mais alto.
— Jesus, eu faria qualquer coisa por você, sabia? Você… ah, porra.
Ele nem faz sentido. Suspiro, satisfeita.
Escorrego para o chão e fico de joelhos.
Uma tensão passa por nós, com Vince me encarando, faminto. Ele
saliva. Está inquieto, porque é um hiperativo que não sabe como ficar
parado. Na verdade, sua expressão faria alguém pensar que está sob tortura.
Eu amo.
Aperto sua ereção com as mãos, e tomo a cabeça na minha boca,
fazendo um barulho alto quando sugo. É larga, estica meus lábios.
— Puta que pariu — exclama — Amél…
Minha resposta é escovar as bochechas e tomar todo o
cumprimento. Suas mãos apertam meus cabelos e dessa vez, não o impeço.
Estou concentrada, alternando entre circular a glande com a língua,
capturando cada gota de pré-sêmen na fenda, e relaxar a garganta, para o
levar mais fundo.
Vince começa a arfar, ouço seus xingamentos. Os músculos
abdominais estão tensos.
Solta um grunhido animal quando lambo a costura dos testículos
cheios. Caramba, estão pesados. Parecem doloridos.
Merecem um alívio.
Acelero os movimentos e fica insuportável para ele. Não consegue
se conter mais, toda a paciência evapora. Segura minha cabeça e começa a
foder minha garganta. Aperta meu rosto contra seu pau até que o saco bata
no meu queixo em um baque molhado.
Começo a engasgar, lágrimas saindo dos olhos.
O reflexo aperta e ele geme alto.
Deus, os gemidos desse homem.

VINCE
Amélia.
Tudo na minha mente e corpo se resume em Amélia.
Está fazendo uma bagunça. Lágrimas misturadas com saliva
escorrem pelo queixo e molham minhas coxas.
Agarro os cabelos, envolvendo no meu punho. Fodo seu rosto sem
um pingo de consideração.
Sinto o formigamento na base da coluna e sei que não dá para
segurar. Meto mais duas vezes, a sufocando quando acerto o fundo da
garganta.
— Eu vou gozar — murmuro, já fazendo isso. Meu pau incha e se
contraí, despejando porra no interior de sua boca. Amélia arregala os olhos.
O barulho da sucção, engasgando, é alucinante.
Saio, parcialmente amolecido, observando com atenção.
Amélia coloca as mãos na garganta e fecha a boca, segurando meu
esperma lá dentro.
Caralho, eu nem a perguntei se estava bem com isso.
— Não…
Ela não me deixa terminar. Olhando para mim com aqueles olhos
matadores, inclina o pescoço. Levanta o queixo e abre a boca, mostrando
como segura bem. Sem perder uma gota.
Depois, engole audivelmente. É sinistro o prazer que dá ver o
movimento da garganta, colocando meu leite dentro dela.
Porra.
É uma visão feita para destruir vidas.
— Amélia — suspiro, em agonia. O nome dela significa tudo.
Ela responde com o olhar, uma expressão de desafio. Suada, com
mechas do cabelo grudando no rosto e boca suja de esperma, pergunta em
silêncio “o que você vai fazer a respeito disso?”
Passo as mãos pelo cabelo e balanço a cabeça.
Ela não foi nada além de perfeita hoje, vestindo minha camisa e
torcendo por mim. Planejei alimentá-la com comida caseira, retribuir a
atenção com cuidado.
Mas Amélia não deixou.
Levanto da poltrona, ela ainda está ajoelhada no chão. Meus lábios
curvam para cima. A música troca para um som mais agitado, e fecho os
olhos por um segundo para visualizar seu strip improvisado.
— Você foi tão boa — falo com a voz rouca, me aproximando do
chão. — Depois, ainda vem para minha casa com uma lingerie bonita e
deixa eu foder sua boca. O que fiz para merecer isso?
Recua milimetricamente, o que me dá um prazer sinistro. Morde os
lábios, quase tímida, antes de responder.
— Morri de ciúmes — confessa baixo, e minhas sobrancelhas se
unem, esperando que continue. — As mulheres não paravam de olhar.
Ela vai me matar.
Meu pau já está duro novamente, como se eu não tivesse gozado
dois minutos atrás. Não me surpreende, considerando a visão à minha
frente.
Darei o que ela precisa.
Com um movimento ríspido, que tira dela uma reclamação aguda,
a puxo para o chão e subo em cima. Seguro ambos pulsos sobre sua cabeça
com uma única mão, usando a outra para empurrar a calcinha para o lado e
encaixar meu pau na sua entrada.
Respiro contra seu pescoço, lambendo da clavícula até a orelha.
— Vai ser fodida no carpete — sussurro. — Está me fazendo te
foder como um animal. É isso que queria?
— Vince.
Seu choramingar morre com a primeira investida. Tenho de fazer
esforço, só no terceiro golpe consigo enterrar completamente. Sinto a pele
esticando para me acomodar, quente e molhada.
Grunho, gemo a cada batida. Tudo no seu ouvido.
— Veja como você está molhada, amor. Estava ansiosa para isso,
certo? Ficou com ciúmes no campo e veio aqui, garantir que meu esperma
estivesse em você.
— Meu Deus — soluça.
Ela está explodindo.
Se eu estivesse generoso, tocaria seu clitóris. Mas não estou muito,
não.
Bato como um animal, e com seus gemidos entrando na minha
pele, a coloco de bruços. Ajoelho, trazendo seu quadril empalado comigo.
Consigo fodê-la mais forte assim. Com Amélia de quatro, acerto o fundo do
útero.
— Oh, por favor — murmura. — Você tem…
— O que? — Interrompo a pergunta enquanto circulo o polegar em
volta do seu cú. Rosado e apertado.
Ela engasga, surpresa. Fica tensa, mas também geme de prazer.
— Você vai me dar cada centímetro de você — massageio um
pouco, lentamente, para que se acostume com a ideia. — Não sempre. No
dia a dia, vou usar sua boca e boceta. Mas quando você estiver chateada,
achando que tenho cabeça para qualquer outra mulher, vou te acalmar
fodendo sua bunda.
Talvez sejam as palavras, que claramente a excitam, ou o ângulo
alcança um lugar sensível, porque começa a tremer, encharcando meu pau a
ponto de escorrer.
Caralho!
Puxo seu corpo para mim, costas no meu abdômen. Preciso ter
minha pele colada na dela. Com uma mão na sua virilha melada, dedilho o
clitóris desordenadamente. Nem sei mais o que estou fazendo.
— Vince.
— Eu sei — capturo a boca. Amélia goza em um lamento dolorido.
Molha nós dois, é um… ela esguichou.
Porra.
Porra. Porra.
Finco os dentes na carne do seu ombro, despejando dentro dela.

Tenho de carregar Amélia para o quarto. Ela está acordada, mas


não tem forças. Eu a esgotei.
— Obrigado — agradeço, beijando sua têmpora suada quando a
ajeito na cama. Ganho um sorriso divertido.
— Pelo quê? Sexo?
Engraçadinha.
— Por ser você. Por vir para cá e me encontrar.
Sou grato por tudo isso. Caramba, estou simplesmente me sentindo
o homem mais sortudo do mundo.
— Você é esquisito — conclui com um bocejo. Estou morto
também, mas feliz demais para adormecer. Deito nos travesseiros ao seu
lado e a trago para abraçar meu peito.
— Durma — beijo sua testa. Todo o rosto dela é beijável.
Passam alguns minutos e, cada vez que as pálpebras fecham,
abrem-se segundos depois, agitadas.
Depois de vinte minutos disso, decido levantar.
— O que foi?
— Vou buscar Rorie.
Amélia suga a respiração, olhos confusos. Ela ainda não raciocinou
que não vai conseguir dormir sem a filha aqui.
— Eu amei a noite de hoje, foi incrível. Muito mais do que incrível
— enfatizo. — Mas preciso que entenda, eu nunca vou pedir… nunca
espero que você precise deixá-la com alguém. Nós sempre podemos dar
escapulidas e é o suficiente para mim, ok?
Não quero que Amélia pense que precisa escolher, que vou ficar
chateado ou algo do tipo. Não vai acontecer.
Os olhos dela brilham, e ela concorda com a cabeça.
— Eu sei que você a adora.
— Eu mais que adoro, Amélia.
— Certo, adora muito — diz, e reviro os olhos. Ela sabe
exatamente o que quero dizer. — Pais felizes criam crianças felizes. Não
vai acontecer muito, eu sou uma mãe apegada. Mas às vezes… vamos ter
um tempo sozinhos — sorri. — Obrigada por isso, no entanto.
Ela percebe que falou pais?
Engulo um caroço gigante na garganta. Passo a mão por sua
bochecha.
— Volto em quinze minutos.
32
AMÉLIA
— É isso, eu vou ficar.
Embalo Rorie, que está com o corpo tenso de irritação.
Seus exames voltaram, e o pediatra pediu para ter uma conversa
comigo. Não consegui esperar e enchi o telefone dele com mensagens até
que concordasse em me encontrar sem horário marcado.
Vomitei no caminho.
Vince foi comigo, e nunca estive tão grata na vida por ter alguém
ao meu lado.
A boa notícia é que Rorie está fora de perigo, é geneticamente
perfeita, exceto, talvez, pelo gênio ruim. Ela está tendo o que ele chamou de
resposta imunológica hiperativa, o que quer dizer que, mesmo meses após a
meningite, seu corpinho frágil está em alerta constante. Está atacando o
ouvido.
Ela será monitorada e, após a consulta da próxima semana com o
imunologista, decidiremos se vai precisar ser tratada com medicação ou se
será capaz de se regular naturalmente com o tempo.
O pediatra, por fim, me perguntou se notei algo irregular no
desenvolvimento dela e, bem... sim. Eu conheço muito a respeito dos
marcos infantis, e ela não está falando. Mal balbucia sílabas e, agora, com
onze meses, já era para ter acontecido. Quando disse isso, o Dr. Charles
reforçou que devo ficar atenta aos sinais de perda de audição.
Senti-me verdadeiramente aliviada a princípio, porque, lá no
fundo, estava morrendo de medo de que minha filha estivesse realmente
adoentada, com algo que a colocasse em risco de vida. O pior passou pela
minha mente, e me tranquilizou saber que não era o caso.
O alívio não tardou a ir embora.
Quero proteger Rorie de tudo.
Inspiro o cheiro de talco com suor da sua cabeça. Estão nascendo
fios dourados, ainda ralos. Comprei um monte de laços para enfeitar, e
Vince riu até engasgar quando viu.
— Você tem de ir.
Encaro ele, implorando para que não insista. Não consigo me
separar da bebê agora... passar mais tempo fora de casa? É loucura. Eu
trabalho sete horas por dia, sou mãe solteira. Seria irresponsável da minha
parte arranjar mais coisas para fazer.
— Amélia.
— Por favor.
Vince suspira, e seu rosto não está muito mais feliz do que o meu.
— Eu entendo que é difícil, você está protetora, é natural depois da
semana que teve. Mas a universidade... é uma oportunidade incrível, meu
bem. Trabalhar com o que você gosta, lembra?
Minha resposta é apertar Rorie mais forte, e ganho uma mordida
por causa disso. Afasto o rosto e encaro os olhos azuis redondos.
Deus, ela é tão linda.
Sei que Vince tem razão. O semestre começou e tenho de ir ao
campus. Consegui ajustar meu horário na escola para poder trabalhar
apenas meio período uma vez por semana. Nesses dias, saio de New Castle
ao meio-dia e só chego às nove da noite.
O combinado era que Molly pegasse Rorie na creche e ficasse com
ela até eu voltar, só que hoje não pude resistir e fui buscá-la antes de ir.
Outra coisa me ocorreu também, e o fato de Vince, sem ter
nenhuma ideia da minha agenda, aparecer aqui só reforçou a ideia.
Eu sou uma pessoa orgulhosa, sim.
Porém...
— Você está aqui para me levar, não está?
Ele coloca as mãos nos bolsos, inocente.
— Talvez.
Sorrio contra minha filha. Eu não esperava nada diferente disso. O
que é estranho, pois não costumo esperar algo das pessoas.
Ele vai fazer ser fácil.
Encaro seus olhos, também azuis. Enquanto os de Rorie são do
mesmo tom do céu em um dia bonito, os de Vince puxam mais para o cinza,
como o mar em um dia nublado. Faço isso com atenção, para captar cada
um dos pensamentos que passarem. Geralmente, ele é um livro aberto.
— Você tem certeza de que está livre? Sei que janta com seus pais
às terças-feiras, não quero ficar entre...
— Sim, tenho certeza. E, honestamente, pegar a estrada no seu
carro? Sem chance. Não seja teimosa.
— Na verdade, eu queria saber se você não poderia ficar com
Rorie para mim.
Suas sobrancelhas grossas sobem, surpreso. Quase em choque. Há
uma hesitação ali também.
— Você tem certeza?
Aceno.
— Molly é ótima, Rorie a ama, só que...
— Me ama mais — complementa, abrindo um sorriso. Ele está
emocionado? Parece que sim.
Concordo, apreensiva, e não de um jeito ruim.
— Você é a pessoa em quem mais confio também — dou de
ombros, uma tentativa inútil de fingir que não é importante.
Mais surpresa.
Eu escondo meus sentimentos tanto assim?
— Sou?
— Nós dividimos a cama — aponto, brincando. — Deixo você
fazer meu café da manhã, os dois jeitos mais fáceis de me matar. Não é a
maior das demonstrações de confiança?
Ele sabe o que estou fazendo, tentando aliviar o clima. É
provavelmente a conversa mais delicada que tivemos até agora, e escolhi
justamente o momento em que tenho que sair da cidade. Pode-se dizer que
não sou boa em dividir o que penso.
— Tem razão. Porra, o Levi vai ficar possesso. Posso ligar para
ele?
Vince está entrando na onda e, por isso, serei eternamente grata.
— Não acredito que você ainda tem ciúmes. É sério?
— Claro — estende os braços, e, nada surpreendentemente, Rorie
troca de colo e se aconchega em seu peito como se fosse um encosto. — O
desgraçado te beijou.
— Tínhamos quinze anos. Quinze.
— Detalhes.
Ele fecha a mão na minha nuca e me puxa para um beijo. Os beijos
de Vince nunca são simples, ele gosta de dominar de alguma forma, de me
bagunçar. Sempre consegue. É bem-sucedido em me fazer esquecer cada
boca que já conheci. Dessa vez, ainda deixa um aperto rude na minha
bunda.
Tento ficar indignada, mas não consigo.
— Vá com meu carro.
Uou.
— Sério? Eu nunca dirigi um Audi. — Nunca nem dirigi um carro
automático. — Quantos quilômetros faz? Aposto que posso chegar à
universidade em uma hora.
Vince parece imediatamente arrependido.
— Ele vai parar se você correr — pensa melhor. — E se fizer
curvas acentuadas, simplesmente desliga.
— Mentiroso — canto.
É bobo, mas me sinto menos horrível com toda a situação.
— Amélia, o carro é meu... — ele corta as palavras. — Hum...
— Você ia dizer filho — aponto, alegre. — Estamos quites, então,
porque você está com Rorie.
Vince pragueja.
Envolvo as bochechas de Rorie com as mãos.
— Eu te amo, querida.

VINCE
— E aí, qual é o plano para hoje? Quer assistir ao desenho daquela
mochila falante? Ir ao parque... fazer sua primeira tatuagem?
Rorie olha para a porta, de onde Amélia saiu, e depois me encara
com seus olhinhos grandes e brilhantes. Começa a formar um biquinho
fofo.
Ah, merda.
— Não chore — faço um afago com a barba no topo da sua cabeça,
e o choro vira uma reclamação. — Vamos nos divertir, prometo.
Assim como Amélia, estou especialmente apegado à Rorie. Não
suportaria se algo acontecesse com ela, e agora, sabendo que está bem, sinto
que devemos aproveitar ao máximo.
Considerando que ela não tem nem um ano, isso complica um
pouco.
Rorie gosta de animais.
Hum.
Pego meu telefone e ligo para Johan.
— Ei, cara, você poderia me emprestar seu cachorro?
Pouco tempo depois, estou empurrando o carrinho de bebê com
Daisy, o labrador de Johan, trotando alegremente ao lado.
Johan, tão alegre quanto, também. Ele se convidou para vir.
— Você não tem trabalho?
Ele dá de ombros.
— Sou o chefe, lembra? Além do mais, alguém está me deixando
de lado.
Faço uma careta. Nós treinamos os meninos juntos duas vezes por
semana, o cara vai ao bar todos os dias.
Certo, tenho tentado trabalhar menos, contratei um segundo
garçom para que eu possa sair antes da meia-noite. Também diminui a
frequência dos nossos porres para... zero.
Suspiro, a culpa ameaçando me dar uma surra.
— Foi mal — me desculpo, porque não sei o que mais dizer.
Soltamos Daisy, que começa a dar voltas ao nosso redor, latindo de
alegria. Desço Rorie do carrinho. Ela dá risadinhas de excitação e vai em
direção à cachorra com seu engatinhar engraçado. Está quase andando.
Eu vou ver essa menina começar a andar.
— Você realmente se encaixa bem nessa vida, sabia? — Johan diz,
enquanto nós dois observamos Rorie alcançar a labradora e fazer carinho no
pelo. — Antes, parecia meio triste você ser tão fã de relacionamentos
sérios, agora... não posso mais dizer isso.
É, bem, isso me colocou em problemas. Mas não quero entrar
nesse tópico.
— Vou arranjar tempo para sairmos um pouco — é minha resposta
envergonhada, já que Johan está sendo tão legal sobre a coisa toda.
— Nah, eu sei que você está ocupado — abana uma mão. — Com
mulher e filho... acontece. As coisas mudam mesmo.
Sim, o que não quer dizer que está tudo bem para mim negligenciar
nossa amizade. Quem é a pessoa que sempre esteve ao meu lado, não
importa o quão fodido eu estava? Johan.
— Sério — insisto. — Nós vamos...
Johan abre um sorriso, e assim entendo que acabei de cair em uma
armadilha. Ele tira a carteira e levanta dois ingressos.
— Olha o que consegui — canta. — Broncos contra Chiefs. Vai ser
épico.
São ingressos VIP para a final do campeonato estadual de futebol
americano em Denver.
Porra, isso é legal.
Mas eu teria que deixar as garotas por um dia inteiro.
Johan ri, entendendo exatamente o que se passa comigo. Idiota.
— Vamos, você tem um mês inteiro para pedir permissão à
Amélia.
— Eu não tenho que pedir... — ele balança as sobrancelhas. — Ah,
cala a boca.

Tivemos o lanche das três e das cinco. Rorie ficou exausta e tirou
uma soneca gigantesca, só chorou quando precisei que ela tomasse banho –
a menina não queria, até entrar na água e fazer uma bagunça.
Agora está assistindo a um desenho engraçado, confesso, de um
macaco curioso. Estou quase indo fazer o jantar quando meu telefone toca.
Paul.
— Sim?
— Cadê você?
— Estou ocupado, vou faltar hoje. Já avisei nossa mãe.
Mandei uma mensagem quando recebemos o calendário de
Amélia. Eu estava planejando dirigir até Denver, agora estou com Rorie e
dá no mesmo.
— O inferno que vai! Tem vinte minutos para aparecer aqui.
Levanto do sofá para não xingar perto da bebê.
— Vá se foder, Paul, não sou criança.
— Certo — ele ri do outro lado da linha. — Nossa avó está aqui.
O quê?
— Você é adulto, certo? Então venha cá e lide com isso.
Porra.
— Estou indo — resmungo e desligo o telefone.
Minha avó. Se ela está aqui, é porque as novidades chegaram aos
seus ouvidos. Puta que o pariu.
— Então, amor — falo com Rorie. — Vamos colocar uma touca
bonita. É hora de conhecer os Warren.

Tiro uma selfie dentro do carro de Amélia, dando um joinha para


cima. Rorie aparece na cadeirinha atrás de mim, e envio para Amélia com a
mensagem de que estamos saindo.
O motor engasga quando viro a chave, mas consigo ligar.
Infelizmente. Eu poderia viver sem ter de enfrentar minha mãe e minha avó
ao mesmo tempo. Elas se odeiam. Minha avó é extremamente implicante, e
meu pai parece não ver isso. Para ele, ela é tão boa quanto Deus.
Não a vejo há uns cinco anos, e poderia passar outros cinco. Nunca
me tratou mal, pelo contrário, mas sei que não é uma pessoa legal. Vem de
uma riqueza descolada da realidade. Casou-se com um homem rico, pai do
meu velho, mas ele ainda era um pobretão perto da fortuna com a qual ela
nasceu.
Chegamos. Estaciono próximo à entrada e pego Rorie nos braços.
A bebê olha ao redor com curiosidade.
— Um dia você vai vir brincar aqui — digo, batendo na porta.
A empregada, com uniforme, atende, olhando surpresa para a
Rorie pendurada no meu peito.
— Devo pegá-la, Sr. Warren?
— Está tudo bem, Miren. Obrigado.
Minha família é do tipo que nunca tem uma criança em casa sem
uma ou duas babás disponíveis. Com Justin foi diferente, mas só por causa
de Cassie. Minha mãe o adora, mas não entende a necessidade de Cassie
cuidar pessoalmente do filho.
Deus, somos um desastre.
Chego na sala. Meu pai está na poltrona de sempre, pela primeira
vez na vida, sem um jornal no nariz. Ele fica nas nuvens quando sua mãe
visita. Paul e Cassie estão em pé, próximos à adega de vinhos, e minha mãe
está sentada no sofá. Todos viram-se para mim e, para minha sorte, a pessoa
mais próxima é minha avó.
Katherine Warren.
Abro meu melhor sorriso. Por bem ou por mal, sou seu favorito.
— Vovó, é tão bom ver você — beijo suas bochechas dos dois
lados e, por um segundo, sua expressão suaviza.
Só por um segundo mesmo.
— Esta é Rorie, ela é filha da minha namorada.
Mantenho o sorriso, mas meus olhos estão transmitindo o que
quero dizer por baixo da fachada de civilidade.
Ninguém tem escolha a não ser aceitar.
— Namorada? — repete lentamente.
Minha mãe me olha com a promessa de que pagarei por isso.
— Você deveria ter me dito que traria ela, Vince. Eu teria chamado
uma babá.
— Obrigado, mas não é necessário — beijo uma de suas bochechas
também. — Desculpe o atraso.
— Tudo bem — finge um sorriso. — Vou pedir à cozinheira para
fazer algo para a criança. Ela é alérgica a alguma coisa?
— Não, uma sopa está bom.
Seus saltos ressoam no chão de madeira ao se afastar. Ergo o
queixo para Paul, que me acusa com os olhos de ser o tipo de estúpido mais
perfeito que já existiu. Cassie, não. Ela sorri.
— Não canso de tanta fofura — suspira, acariciando as bochechas
de Rorie. — Onde está Amélia?
— Hoje ela tem aula, precisou ir à universidade.
— Universidade? — A voz da minha avó, atrás de mim, pergunta.
— Você está namorando uma universitária?
— Ela está fazendo especialização, vó. Não é uma universitária.
Tecnicamente, sim, mas a forma como falou fez parecer que estou
com uma adolescente.
— Formou-se no topo da classe na Universidade de Washington —
minha mãe ressalta, tendo voltado. — É uma jovem impressionante.
Levanto as sobrancelhas. Ela está defendendo Amélia. É por causa
da relação estranha que tem com minha avó, essa necessidade de provar que
somos uma família perfeita, eu sei. Ainda assim, é legal.
— Certo — minha avó concorda, apertando os lábios em uma linha
fina. — Precisaremos falar disso…
— Mais tarde — interrompo. — Falaremos disso mais tarde.
33
VINCE
O mais tarde chega.
Sentamos à mesa e esperamos o jantar ser servido. Cassie é a única
falando, tentando desviar a atenção da evidente tensão entre eu, minha avó
e minha mãe. Todos me encaram como um alienígena. Rorie está aninhada
nos meus braços, o pequeno corpo colado ao meu. Ela está intimidada com
tantos estranhos.
— Deixe-me pegar ela — Cassie oferece quando Miren serve os
pratos. Ela não trouxe só sopa, mas pedaços de frango cozido e vários
vegetais picados.
Ao ver os braços estendidos, Rorie agarra meu pescoço e vira o
rosto contra meu ombro.
— Awn — choraminga, sem se ofender por ser rejeitada. — Vocês
são a coisa mais doce do mundo!
Não sei se o restante da família concorda.
— Obrigado, Cass, mas estamos bem.
Ignoro meu próprio prato e começo o ritual de convencer a bebê a
comer: o bom e velho aviãozinho.
— Vamos, princesa. Só um pouco.
Eu sei que ela pode sentir o estresse ao nosso redor, crianças nessa
idade são como esponjas.
— E qual é o nome da sua nova namorada, Vincent? — Katherine
pergunta.
— Amélia.
Não lhe entrego o sobrenome por mesquinharia, se minha mãe
pesquisou Amélia quando mudou para cá, não tenho ideia do que a avó
faria.
— Bonito — faz um ruído de aprovação. — Um clássico.
Não comento. Não há nada realmente a se dizer a respeito.
— Vocês estão juntos há quanto tempo? — Olha para Rorie —
Suponho que não muito, certo?
— É o suficiente, vó — minha voz se eleva, e todos param o que
estão fazendo. — Não irei discutir minha vida pessoal com vocês.
— Vincent, não levante a voz para sua avó. — Meu pai, do outro
lado da mesa, repreende.
Engulo um xingamento. É a casa dele. Mas Katherine continua.
— Eu preciso falar com você a respeito da sua… situação delicada
— encara a bebê. — Foi o motivo de eu ter vindo, afinal.
Porra.
Porra.
— Agradeço pela preocupação, mas é desnecessária.
— Você é meu herdeiro, Vincent. Tudo o que acontece na sua vida
reflete na minha. — E essa vida não está na hora de acabar? — Quando
vocês nasceram, fiz um fundo de investimento.
Claro que fez.
— Pra que?
— Oras, para que tenham meios de começar uma família.
— Eu tenho meios de cuidar da minha família — respondo, sério.
— Rorie e de qualquer outro filho que eu venha a ter. Sozinho.
Olha com desaprovação, insatisfeita por eu ter incluído Rorie na
declaração.
Megera.
Respiro fundo, é necessário.
Acaricio as costas da bebê, o que também ajuda.
Tanta coisa para preocupar na vida... Eu ligo o suficiente para ficar
aqui? Acho que não.
— É de três milhões — diz.
Minha reação é uma expressão incrédula.
Caralho. É ainda mais do que investi quando comprei o bar. Ou a
casa, os dois juntos não chegam a isso. Três milhões. Qual o problema
dessas pessoas?
Pior, ela acha que pode me comprar?
— Esse dinheiro não é meu — aponto.
— É, sim — abre um sorriso, entendendo errado minha cara
fechada. — Então… você não quer pensar nas suas... escolhas de vida por
alguns meses?
Escolhas. Como se eu fosse preferir dinheiro a minhas garotas. É
ultrajante.
— Vó — digo lentamente. — Não quero brigar, mas você está
passando dos limites aqui.
Ela não aceita, continua insistindo.
— Imagine minha surpresa em chegar à cidade, tantos anos depois,
e me deparar com meu neto carregando um bebê nascido fora do
casamento. Um bebê que nem é dele.
— Vó — Paul levanta. — Não fale isso.
Cerro a mandíbula. Raiva. Desgosto, também. Vasculho meus
sentimentos, procurando algum afeto por minha avó e não encontro muita
coisa. Acho que ela nem vale a pena o esforço.
Eu a vi cinco vezes nos últimos quinze anos.
E eu vou ser o cara que vai ver Rorie aprender a andar.
— Ela é mais minha família do que você algum dia já foi — olho
no fundo dos olhos para que ela entenda o quão sincero estou sendo. — Não
consigo… me recuso a ficar na sua presença. Eu não vou submeter Rorie a
isso, e devo dizer, é nojento que a senhora tenha estômago de falar essas
bobagens na frente dela. Não tem nenhuma decência?
— Vince! — Meu pai esbraveja com o rosto vermelho. — Peça
desculpas à sua avó. Eu não vou permitir que você fale com ela assim,
garoto!
Ele tinha de acrescentar garoto, não tinha?
— Não se preocupe, estou saindo.
E não espere me ver de novo.
— Isso é ridículo — minha mãe levanta, vindo na minha direção e
acenando para que eu sente. — Vince, termine o jantar. Está irritando a
garota.
Sim, Rorie está me segurando com as mãozinhas firmes, assustada.
Velha maldita.
— Ele não vai…
— Ora, Garrett, não seja hipócrita. Vince só está se defendendo…
e sejamos realistas, o que se há de fazer? Amélia é uma garota
perfeitamente aceitável. Ele poderia ter se saído muito pior.
Começo a dizer algo, mas fecho a boca.
Amélia não é apenas aceitável, apesar de que isso, para minha mãe,
é um elogio. Meu pai fica sem falas, dividido. Sabe que teria feito
exatamente a mesma coisa do que eu se alguém estivesse falando assim do
casamento dele.
— Certo — finalmente diz. — Ela tem razão, mãe. Vincent é um
homem adulto.
Oh, o que não é um chute no saco da esposa? Em dois segundos,
até virei um homem adulto. Quero fazer piada com isso, dizer que não
preciso da aprovação de qualquer um deles, tenho o que preciso.
Mas…
Eu também quero que Amélia e Rorie tenham família. Fodida, é
claro. Todas não são?
Um silêncio se estende por alguns minutos, e é curioso notar como,
de alguma forma, meu pai, minha mãe, Cassie e até Paul estão do meu lado.
Eles aceitam. Eu nem precisei forçar, o que eu faria.
— Não falarei mais nada a respeito disso — minha avó diz a
contragosto. — Sinto muito.
A mulher está o mais longe possível de sentir muito. É o melhor
que vou conseguir.
— Eu não estava blefando quanto ao dinheiro, não irei aceitá-lo.
— Agora você está só sendo estúpido — minha mãe suspira.

O restante da noite é um típico jantar Warren. Meu pai e Paul falam


sobre negócios, minha mãe e avó se alfinetam. Cassie e eu apenas
existimos. Justin está com a avó materna, pois costuma ficar muito
entediado nesses jantares.
— Ela é uma bebê tão boa — Cassie sorri. Agora, Rorie já está
interagindo, mas ainda não quer saber de ser carregada por alguém que não
seja eu. — Já falou as primeiras palavras?
— Ainda não, ela está fazendo as coisas no próprio ritmo. — Faço
cócegas no queixo, ganhando um sorriso com dentes curtos. — Não é,
princesa?
Cassie sorri, depois seus olhos ficam preocupados.
— Os exames dela voltaram, certo?
Eu contei a Cassie. Quando precisei conversar com alguém, foi
com minha cunhada que desabafei.
— Voltaram… é algo que sobrou da meningite. Nada sério, ainda
bem.
— Ótimo — suspira, aliviada. — Amélia deve ter ficado muito
preocupada.
— Ficou, sim. Ainda está. Mas é o lance de ter uma criança, certo?
Medo o tempo todo. Deus, Cassie, quando a enfermeira tirou sangue da
Rorie, eu quis chorar como um bebê. Eu sabia que a mulher só estava
fazendo o que era necessário, mas, mesmo assim, queria empurrá-la para
longe.
Cassie tem um sorriso largo nos lábios, que não entendo. Paul
chega por trás e a abraça.
— Por que está tão contente?
Cara, eles são melosos.
— Vince — ela responde, quase emocionada. — Ele está se
tornando pai.
É.
Engulo seco.
Meu pulso bate forte, assimilando o que isso significa.
O celular vibra e desbloqueio a tela. Amélia. A mensagem é um
emoji com a mão no queixo, pensativa. Deve ter chegado.
— Estou indo — aviso, chamando a atenção de todos com um
tchau coletivo.
— Estarei aqui pelos próximos dias, Vincent. Se puder vir visitar
antes de eu ir embora, ficarei agradecida.
Eu não vou vir, e ela sabe. Nós nunca mais teremos contato.
— Claro — minto. — Boa noite.
Ao invés de se despedir, minha mãe decide me acompanhar até a
porta. Não tivemos tempo de conversar sozinhos. Seus olhos não são nada
gentis, mas é impossível não me sentir grato por como reagiu. Eu não
esperava isso dela.
— Obrigado, mãe. Sério, foi muito… legal da sua parte.
Ela não responde até eu estar com dois passos para fora da casa.
— Vince?
— Sim?
— Vejo você terça-feira à noite. Traga Amélia.

AMÉLIA
Encontrar meu apartamento vazio é uma quebra de expectativa.
Vince mandou mensagem horas atrás dizendo que levaria Rorie para
passear. Acho que ele deve ter ficado entediado e ido ver Johan ou,
precisando de ajuda com a bebê, procurou Cassie. Não achei que os dois
fossem demorar tanto, mas decido só mandar um emoji, para não parecer
que não confio nele. Sei que isso o ofenderia.
Tomo banho, visto shorts e um moletom de Vince, que virou meu
pijama oficial. Estou na cozinha comendo uma tigela de cereal quando a
porta se abre, e meu coração salta. Amo os dois. Amo isso.
Saio da cadeira para recebê-los.
— Cadê meu bebê? — pergunto com a voz manhosa, já estendendo
os braços para pegar a garota, que pula como uma pipoca.
— Estou aqui, mas eu trouxe Rorie também.
Reviro os olhos e pego a neném no colo. Ela coloca as duas
mãozinhas nas minhas bochechas, exigindo atenção.
— Vocês ficaram bem? — pergunto, soprando meu cabelo. Rorie
acha mechas voando a coisa mais legal do mundo.
— Ficamos, sim — coça a barba. — Ela é minha parceirinha.
Fomos ao parque, jantou às sete e não teve febre.
— E o...
— Banho tomado — abre um sorriso.
Ele está tão orgulhoso de si mesmo. Com razão, afinal, eu nem
ousaria sonhar com alguém tão prestativo quanto Vince. Nunca tive a
menor chance de não me apaixonar.
Faz uma careta, olhando para a mesa.
— Eu devia ter trazido alguma coisa, cereal não é jantar.
Viu? Incrível.
— Pra mim é, sim.
— Bobagem — bufa. — Eu posso fazer...
— Vince, não — impeço, com uma vontade incontrolável de beijá-
lo por toda essa preocupação adorável. — São nove da noite, é quase hora
de dormir. Sério, estou bem.
— Certeza?
— Absoluta.
— Ok, então — concorda. — Como foi o primeiro dia?
— Bem, fui convidada para três irmandades, uma festa de calouros
e soube que há uma rave em alguma cidade das redondezas — brinco.
A verdade é que foi exaustivo. Há, no carro de Vince, nada menos
que sete livros que fiquei com preguiça de trazer para dentro. Preciso
entregar um texto de duas mil palavras na próxima vez que vir meu
orientador.
— E vocês? Onde foram, afinal?
Estou balançando Rorie na minha cintura, mas vejo pelo canto do
olho o pescoço dele ficando vermelho.
— O bar? Porque está tudo bem para mim, não é como se fosse um
cabaré. Eu mesma já a levei lá.
Ele engole seco. Estreito os olhos.
— Levei Rorie na casa dos meus pais.
O quê?
— Você... — engasgo, surpresa. — Deus, por quê?
O maldito faz cara de cachorro arrependido.
— Desculpe, amor — coça o pescoço, ansioso. Amor. Não é a
primeira vez que me chama assim. — Eu sei que deveria ter esperado você,
mas... hum, apareceu uma coisa e precisei ir.
— Que coisa? — é o que consigo perguntar.
— Minha avó — murmura.
Vou infartar.
— Você levou minha filha para conhecer a família inteira — falo
com a voz estridente e decido resmungar quando a bebê se agita. — Antes
de mim?
— Não? — tenta.
Droga.
Preciso contar a ele a novidade de que o mundo não é um mar de
rosas e que é necessário ter cuidado, porque não sou capaz de suportar
alguém torcendo o nariz para minha filha. Nunca.
Mesmo que sejam seus pais – especialmente eles. É o fim da linha
para mim.
— Me fale do jantar — peço, cautelosa.
Vince suspira aliviado.
Estava com medo de me contar? Gosto dele um pouquinho mais.
— Foi bom, tivemos carne assada e torta de… — Meus olhos
fazem com que ele pare de brincar. — Minha avó veio para falar de
dinheiro, o que é normal, já que é tudo com o que ela se importa. Ela e
minha mãe se odeiam, geralmente é engraçado de ver. Rorie estava tímida
no início, mas ficou bem. Nem chorou.
Não é ruim.
— Alguém falou alguma coisa?
A resposta é sim, seu rosto entrega.
Minha expressão provavelmente se fecha, porque Vince vê
necessidade de se aproximar.
— Você sabe que eu nunca deixaria alguém maltratar ela, certo?
Nenhuma de vocês.
A voz é firme e determinada.
Segura.
— Claro — murmuro.
Ele suspira, triste pela afirmativa fraca.
— Meus pais sabem que estamos juntos, ver Rorie não foi
nenhuma surpresa. Não são exatamente calorosos. Lidam melhor com
pessoas um pouco maiores, sabe, para que possam fazer uma bateria de
perguntas… Paul e Cassie devem ter ido direto para casa fazer um bebê
para ela mimar.
Ele consegue me arrancar um sorriso.
— Sua avó? — Mordo os lábios. Quase lá.
Seus olhos escurecem.
— Ela disse algo que não gostei. Conversamos... não acho que
vamos ter contato novamente.
Oh, Deus.
Vince espera o que tenho a dizer a respeito. Perguntas se formam
na minha cabeça, querendo interrogar o que exatamente foi dito, qual o tom
e cada mero detalhe. Mas, honestamente… não.
Agora não.
— Obrigada por me contar.
Ele poderia ter inventado qualquer coisa, e eu nunca saberia.
Assente com a cabeça e nos perdemos no olhar um do outro. O que
esse cara viu em mim? Rorie começa a resmungar, o sinal de que quer sua
mamadeira noturna.
— Você quer que eu a alimente?
— Não, tudo bem. Vou aproveitar para passar um tempo com ela.
— Nesse caso, vou tomar um banho — decide, e vem me beijar
antes de se afastar em direção ao meu banheiro.
34
AMÉLIA
Eu amo sábados.
A primeira vez que acordo, grogue de sono, sinto algo esfregando
meu clitóris e ofego, percebendo que é a boca de Vince entre minhas
pernas.
Ele se afasta um segundo e olha para cima. A barba está para fazer
e os olhos estão sonolentos. Acho que acabou de chegar, não consegui
esperar acordada que ele terminasse as coisas lá do bar e viesse para casa.
— Tudo bem?
Um sorriso embriagado me surge nos lábios. Em resposta, acaricio
seus cabelos curtos e indico que continue. Logo estou choramingando. A
ponta da língua pressiona, lambe e estimula. Calor cresce em mim, a única
coisa que consigo fazer é jogar a cabeça para trás e sentir.
Da segunda vez, acordo com Vince enterrado em mim. É delicioso.
Ele está com o corpo completamente colado no meu e a cabeça enfiada no
meu pescoço. Sei que tomou banho, porque está cheirando a sabonete e
umidade.
Envolvo minhas pernas na sua cintura, sentindo que está com sua
calça de moletom. É absurdamente sexy a forma como eu tenho dormido de
camisola e ele com a calça, permitindo que simplesmente coloque o pau
para fora e entre.
Suas estocadas são curtas e fortes, nem sai direito antes de invadir
novamente.
— Quietinha — sussurra, sonolento.
Estremeço, o apertando, e ele responde com um grunhido rouco,
me enchendo de esperma.
Da terceira vez, acordo porque o meu relógio biológico exige,
mesmo que eu seja perfeitamente capaz de dormir por mais três horas.
É hora de levantar. Bocejo. Vince está apagado ao meu lado.
O homem é uma explosão de energia, mas entre trabalhar no bar,
treinar o time infantil e cuidar de mim e Rorie, merece um descanso...
Que ele pode ter depois.
Engatinho até sua virilha, encontrando uma semi-ereção. Começo
com beijos nas coxas peludas, que o fazem resmungar no sono. Então,
passo a língua na costura entre seus testículos e o tomo na boca no exato
momento em que abre os olhos.
— Porra.
Escovo as bochechas e trabalho, sugando, até que esteja inchado e
pulsante. Suas mãos vão para minha cabeça e sei que quer empurrar, mas se
impede.
Faço por ele, abro a garganta o levo tão fundo quanto possível.
Olho para cima assim, com seu testículo no meu queixo.
— Eu vou… — concentro na glande, chupando igual um pirulito.
Calor me enche a boca e engulo o líquido salgado. Não satisfeita, limpo até
não sobrar nada. Por fim, enfio a ponta da língua na fenda onde surgem
pequenas gotas.
— Meu Deus, Amélia.
Salto da cama, desperta e satisfeita.
— Durma — peço quando começa a me acompanhar. — Você
chegou tarde.
— Tem certeza? — pergunta, querendo muito continuar na cama.
É fofo.
— Sim, te chamo daqui a algumas horas. Vou fazer seu café.
É sempre ele quem faz. Geralmente, sou inútil de manhã. Vince
sorri com as pálpebras já caídas.
— Vai me fazer panquecas?
Faço careta, ele não me pediria isso em sã consciência.
— Posso tentar — prometo, e deixo um beijo no canto de seus
lábios antes de sair.

Primeiro, vou ver minha filhote de Reid. Ela está radiante hoje.
Tudo está. Depois de uma mamadeira para abrir o apetite, levo Rorie para o
quintal.
Estamos na casa do Vince. Nós temos vindo para cá toda sexta e
ficado até domingo à noite. O quintal é tão perfeito que até tem um grande
carvalho com um balanço, que suponho ter sido do Justin.
Rorie se apossou, ama pegar sol lá.
Sorrio. O verde ao redor dela cai muito bem.
— Vamos tentar andar? — pergunto, animada. Rorie já consegue
ficar em pé há meses e, se eu segurar suas duas mãozinhas, dá uns passos
tímidos.
Fazemos isso por uma hora, até minhas costas gritarem por
socorro.
Depois, entramos. Prendo-a na cadeirinha com um pote de frutas
na frente e ligo a cafeteira. Agora, quanto às panquecas… não. A primeira
gruda na frigideira, a segunda se parte ao meio, a terceira consegue ficar
queimada e crua.
Inferno.
Continuo tentando, afinal, ele me pediu uma coisinha. Procuro um
novo pacote de massa, xingando baixo. Olho para Rorie, que, sentadinha na
cadeira alta, me observa com um olhar que só posso descrever como um
julgamento silencioso.
— Ah, não faça essa cara — reclamo. — Você nem alcança o
fogão, não pode dar palpite.
Depois da quinta tentativa, consigo algumas panquecas decentes. E
é uma sorte, porque ouço os passos de Vince.
Ele aparece na cozinha sem camisa, com o rosto amassado e um
sorriso despreocupado. O abdômen trincado sempre é uma visão. Passa o
braço em volta da minha cintura e deixa um beijo suave no meu pescoço.
E, é claro, meu coração dispara.
— Bom dia — murmura, com a voz rouca.
Se afasta um pouco para pegar Rorie, que começa a rir assim que
ele a levanta nos braços. Ele a joga para cima, arrancando gargalhadas.
Eu amo esse som.
Sinto cheiro de queimado e volto para a frigideira.
— Merd… — Vince vira, curioso — … ei, bom dia. É hora do café
da manhã! — minha voz sai alta e estranha. Nervosa.
Cristo, que bobagem.
Espero que ele goste.
Consigo separar somente três panquecas com uma aparência
decente, então coloco uma feia por baixo para aumentar o volume.
Sorrio, levando o prato para ele.
— Mel ou calda de chocolate?
— Mel. — Abre um sorriso estilo tubarão, muito satisfeito. Senta-
se com a bebê no colo. — Você fez panquecas.
— Você pediu.
— Hum, não pedi, não. Foi você que acordou querendo cuidar de
mim.
Bufo, ansiosa.
Eu acordei, mas ele pediu. Passo uma xícara de café, e só não
derrubo acidentalmente para não acertar minha filha.
— Estou brincando com você, boba.
Ele pega um garfo e enche a boca.

VINCE
É a pior coisa que já comi na vida. Ela… Deus, trocou açúcar por
algum tipo de pimenta? Como isso é possível? A massa já vem temperada!
Assassinou meu paladar.
Olho para Rorie, em pânico, e faço uma promessa silenciosa de
que, de agora em diante, sempre vou deixar suas mamadeiras prontas. Vai
que a mãe dela, sei lá, coloque óleo de bacalhau por engano.
— E aí, como estão? — Amélia pergunta.
Coloco mais da massa horrível na boca.
— Inacreditável — murmuro, engolindo e tentando sorrir.
Ela pega o garfo para experimentar, mas eu rapidamente devoro o
resto. Meu movimento a assusta, e peço desculpas com as mãos.

— Você está livre hoje? — Pergunto, tentando mudar de assunto.


— Eu preciso estudar um pouco, mas posso deixar para fazer à
noite.
Um sábado à noite estudando porque seu namorado está no
trabalho. Estou começando a detestar trabalhar à noite. Nunca foi um
problema antes, mas agora? É frustrante não poder levá-la para um encontro
no fim de semana.
— Então temos o dia todo para nós.
Preparei algo especial, ela vai gostar… ou talvez me xingue muito.
Nunca se sabe.

Depois do café da manhã, levo as duas para passear no parque.


Fazemos uma parada na lanchonete com a desculpa de que ela não
conseguiu comer nada. Aproveito para pedir uma omelete de quatro ovos e
gemo de felicidade quando engulo a comida quente.
Voltamos para casa por volta da hora do almoço, e ao chegar, vejo
Johan saindo do quintal de trás, limpando as mãos nas calças. Mandei
mensagem antes de sair, ele ficou encarregado de me ajudar com a surpresa.
— Garotas! Estão animadas? Vocês vão conhecer… — Dou uma
tossida para que ele lembre de calar a boca, o que Johan faz de forma
horrível. — Hum… está frio, né?
O tempo está perfeito. Idiota.
Amélia troca olhares comigo, mas meu rosto é a visão da
inocência.
— Johan, obrigado por passar aqui.
— Estou sendo expulso? — bufa, incrédulo.
— Sim. É um momento íntimo.
— Bobagem!
— Johan.
— Do que vocês estão falando? — Amélia pergunta, estreitando os
olhos. Rorie imita sua expressão, e juro que posso viver mais cem anos,
nunca verei uma cena mais fofa que essa.
— Nada — Johan dá de ombros, exagerando na tristeza. — Eu já
estou indo.
Ele é a rainha do drama.
35
AMÉLIA
A situação é toda estranha. Notei Vince ansioso, estalando os
dedos o caminho todo até aqui. Johan está saindo, mas antes de passar pela
grade do jardim, para subitamente, como se lembrasse de algo.
— Amélia?
— Sim?
— Você decidiu se vai deixar o Vince ir para o jogo comigo?
— Hum… — Olho para Vince, que amaldiçoa baixinho. É para eu
negar? Não sei nada sobre esse jogo, não tenho ideia se ele está me usando
como desculpa ou, por Deus, realmente pensa que precisa me pedir
permissão.
Eu não sou esse tipo de mulher.
Não encontro nenhuma pista no meu namorado, e Johan tem uma
expectativa quase infantil nos olhos.
Meu Deus.
— Você gostaria de ir com o Johan, Vince?
— Sim — murmura, chutando a grama, sem graça. — Vai ser um
jogo legal.
— E vocês têm carona para voltar para casa? — Levanto as
sobrancelhas. — A mãe dele vai buscar vocês ou eu preciso dirigir?
Demoram um segundo para perceber que estou zombando.
— Engraçadinha — diz Vince, se aproximando para apertar minha
bochecha. — Vem, eu tenho que te mostrar uma coisa.
— Eu vou ficar…
— Não, você pode ir — Vince corta Johan.
— Ele vai te mandar uma mensagem depois — consolo, e paro
quando percebo o quão maternal soei.
Droga.
— Vamos — ri, notando a mesma coisa. — Está lá nos fundos.
Ajeito Rorie na cintura e o sigo, me perguntando que tipo de coisa
alguém pode guardar nos fundos do quintal. É o mesmo lugar onde eu e
Rorie ficamos de manhã cedo, e não havia nada.
— Não fique com raiva — antecipa, cauteloso. — Foi uma ideia
que tive alguns dias atrás e, não se preocupe, eu pesquisei e…
Oh.
Não.
Isso …?
Não acredito.
O cachorro, que deve pesar não menos que setenta quilos, olha
para a gente com uma expressão séria. Ele é um senhor mal-humorado,
sentado com a postura ereta, como se estivesse de vigia. Não há nada nele
que indique felicidade, exceto uma bandana azul em seu pescoço com a
inscrição “amigo legal”, que o faz parecer muito ridículo.
— Eu pensei em arranjar um filhote fofo para que você e Rorie
pudessem mimar, mas quando vi esse rapaz…
— Ele é nosso?
— Bem, espero que sim — engole em seco. — Se estiver tudo bem
para você?
Me aproximo. Rorie estende a mãozinha, curiosa, e eu a volto para
o lugar. Ele poderia engoli-la sem esforço – não acho que vá, com essa vibe
de “sou sério demais para me dar ao trabalho”.
— Oi, garoto.
Juro que o cachorro assente.
Ai, Deus.
— Ele foi treinado para ser um cão policial, mas saiu do batalhão
quando o primeiro dono morreu. Ninguém queria adotá-lo porquê…
Porque ele é feio pra caramba. Um mastim sem cor definida, com
dobras de pele sobrando em todos os lugares.
— Qual é o nome?
— Bruce.
Claro que sim, ele precisava ter o nome desses.
— Amélia? Você pode dizer alguma coisa? Não sei se você adorou
ou se vai expulsar a mim e ao Bruce de casa, e o suspense está me matando.
Toco os pelos curtos. Sou ignorada, mas não resisto a acariciar a
testa e as orelhas. Meu gesto parece fazê-lo empertigar e ficar mais sério
ainda.
— Acho que amo ele.

VINCE
Em cinco minutos, Bruce ganhou um eu te amo.
Mal chegou e já sentou na janela.
— Essa é a Rorie — Amélia apresenta a filha. — Você precisa ser
delicada com ele, bebê.
Rorie insiste em estender a mãozinha, desta vez, Amélia deixa. A
garota fica em silêncio, concentrada ao tocar o focinho de Bruce. Ele perde
a pose por um segundo para retribuir o carinho com uma lambida.
Ela gargalha alto e olha para mim e Amélia, como se perguntasse:
"Vocês viram isso?"
— Sim, neném, você fez um amigo — agacho-me no chão, e
Amélia me entrega a criança. Estamos tão conectados que não precisamos
falar.
De repente, me sinto tão realizado que é como se o tempo parasse.
Foi uma aposta alta trazer o cachorro. Apesar de minha ideia principal ser
que Rorie tenha um companheiro para crescer, ele também é uma prévia
para o próximo passo.
O contrato do apartamento de Amélia está chegando ao fim, e eu a
vi pesquisando lugares para alugar. Não gosto disso. Quero as duas aqui.
Agora, é só ir trazendo suas coisas aos poucos. Sutilmente.
— Onde você arrumou essa bandana, afinal?
Sorrio, a coisa é uma atrocidade. Comprar foi uma obrigação.
— Eu nunca tive um cachorro — Amélia confessa, olhando para
Bruce com um sorriso melancólico. — Não sei cuidar de um.
Dou uma risada suave.
— Você tem uma bebê. Se consegue cuidar da Rorie, um cachorro
será tranquilo.
— Sim, mas…
— Além do mais, eu estou aqui.
Não é o suficiente. Mesmo que confie em mim, e ela confia, quer
mais garantias.
— Ele precisa passear duas vezes por dia. Posso fazer isso de
manhã sozinho, e todos nós podemos ir juntos mais tarde… tem um
recipiente com a medida certa de comida e petiscos na geladeira. A casinha
está na varanda, mas algo me diz que não vai demorar a começar a dormir
no sofá.
Amélia se inclina, satisfeita, e me beija de surpresa.
— Você pensou em tudo, não é?
36
AMÉLIA
— Ela está fazendo hora com a sua cara — aviso, colocando um
brinco na minha orelha. Estou quase pronta para nossa noite, sairemos
assim que Molly chegar para ficar com a bebê.
— Não é verdade — Vince diz, olhando de cima de Rorie. Ele está
tentando dar a ela um pedaço de mamão, mas a menina responde cerrando a
boquinha.
Me aproximo deles e tomo a tarefa para mim.
— Rorie, vamos, você tem que comer — minha voz é muito mais
firme. Como eu sabia que aconteceria, ela abre a boca e aceita a colher
como se nada tivesse acontecido.
Vince faz um ruído indignado.
— É que eu sou a mãe dela. — Não me dou o luxo de ser tão
molenga quanto o meu coração quer. — Você pode dizer? Ma-mãe?
— E eu sou o Vince. Vamos, Rorie, diga. Vin-ce.
— Ei, se ela falar seu nome antes do meu, eu vou deixá-la na porta
da sua casa com a mochila nas costas.
E chorarei por três semanas seguidas.
— Eu aceitaria — dá de ombros. — Somos bons juntos, e Bruce
também ficaria muito feliz.
Olho para o cachorro em questão, sentado com sua postura policial
próximo ao pé da cadeirinha. O plano inicial era que ficasse na casa de
Vince, mas separar ele e Rorie foi impossível.
Quando viemos embora no domingo, ela chorou tanto que liguei
para Vince vir para cá, e os dois estão aqui desde então. Não é o ideal. Em
vez de dois passeios, Vince sai com Bruce três vezes, já que não tenho
quintal para ele fazer suas necessidades.
É um trabalho a mais, mas como evitar? O cachorro dorme
vigiando o berço. Não é um sujeito brincalhão e parece querer morrer
quando fica parado, deixando Rorie brincar com seus pelos. Mas não tira os
olhos dela e está atento a cada mudança de humor.
— Acha que ele vai estranhar Molly?
— Aquela coisa fofa? — Pergunto, e as pontas das orelhas de
Vince ficam vermelhas. Para ele, é um grande desrespeito elogiar outra
mulher na minha frente. — Nah, Rorie gosta muito dela. Bruce vai sentir.
— Bem, ela me ama, e ele rosnou para mim.
Rio. O episódio foi hilário.
— Você tinha roubado o nariz dela — aponto estupidamente. Vince
estava irritando Rorie, fingindo que não devolveria o nariz. Depois de um
grito indignado da bebê, Bruce levantou as orelhas e rosnou em aviso para
que Vince se afastasse.
Eu amei.
Calço meus sapatos – o scarpin elegante, não minhas botas
coturno.
A porta se abre e a babá loira entra.
— Molly, não se assuste — Vince antecipa. — Eu preciso te
apresentar…
— Meu Deus, esse é o Bruce da delegacia? — A garota joga sua
mochila no chão e se atira no cachorro. — Ei, garoto, você encontrou uma
família?
Cristo, só em New Castle para uma adolescente e um cachorro se
conhecerem.
— Ah, é mesmo. Seu pai é policial — Vince pondera, coçando o
queixo.
— Sim, eu queria muito adotar esse rapaz quando Adam faleceu —
fala, fazendo carinho entre as orelhas. — Mas já tinha três cachorros.
Enquanto ela fala, olho para minha filha, que observa sua babá e
Bruce interagindo com uma ruga entre as sobrancelhas. Nada feliz.
É um serzinho ciumento.
O relógio bate sete horas, estamos atrasados.
— Vince, temos de ir.
Suspiro, deixando o nervosismo que empurrei para longe entrar na
minha pele. É bom para eu ficar alerta.
— Pronta?
Não.
— Claro, vamos lá.
No carro, as luzes da cidade passam por nós como um borrão.
Vince dirige, uma mão no volante e a outra segurando a minha.
— Lembre que você me ama — diz, com um sorriso brincalhão no
canto dos lábios.
Congelo.
Ele jogou isso no meu colo por querer, para me distrair? Eu amo
Vince. Profundamente. Mas nunca disse.
Tenho medo demais para fazê-lo.
Olho para o lado, assustada, e vejo muitas coisas nos seus olhos.
Há humor, mas também, lá no fundo, uma incerteza.
Ele quer que eu confirme.
— Certo, me lembrarei.
As palavras o acalmam um pouco.
Passamos pelos muros de tijolos e entramos na propriedade.
Prendo a respiração, o lugar é como um castelo de conto de fadas.
— Você cresceu aqui?
— Fui expulso para ali quando tinha dezessete anos — aponta para
uma segunda casa, no canto dos jardins. Seria uma casa de piscina, caso
houvesse uma. Nunca entendi a necessidade de mansões terem uma mini
casa ao lado.
Bufo, mesmo a mini casa é maior e melhor do que qualquer lugar
que já morei. Deus, eu cresci em um trailer – e nem era nosso. O dono
brigava todo mês até que pagássemos o aluguel atrasado.
Somos de dois mundos completamente diferentes.
— Exagerado, né? — Ele está com o rosto envergonhado.
— É linda — murmuro.
Nunca conheci alguém com tanto dinheiro, exceto, talvez, Jasper.
Esse pensamento apenas aumenta meu nervosismo, considerando
como tudo se desenrolou.
Paramos próximo a uma fonte de mármore. Vince desce primeiro e
abre a porta para mim. Caminhamos até a porta de mãos dadas.
— Você é linda. É a coisa mais bonita aqui — diz, me olhando
pelos cílios grandes. — E eu também te amo.
VINCE
Qual é o meu problema?
Acabei de dizer a Amélia que a amo.
Meio que a forcei a dizer o mesmo mais cedo, no carro.
Merda.
Seus olhos verdes brilham enquanto ela me encara. Antes que
possa dizer qualquer coisa, a porta da casa se abre.
Não é a empregada. É minha mãe, com o rosto sério.
Muito crítico.
Sei que Amélia está intimidada. Ela ficou em silêncio a viagem
inteira. Gostaria de ter lhe dito que estava tudo bem, mas isso só a deixaria
irritada.
— Olá, boa noite para vocês.
Algo estranho acontece. As duas se encaram com interesse e
cautela. Minha mãe olha Amélia dos pés à cabeça, sem nem disfarçar o
escrutínio rude. Amélia não recua um centímetro, simplesmente se deixa ser
observada. São como duas alfas se testando.
Fico mais preocupado com o que Amélia está vendo do que com
minha mãe. Os Warren, eternamente prepotentes, orgulhosos e arrogantes.
Sempre me irritou a forma como meus pais – e Paul – se esforçam para
fazer as pessoas se sentirem inferiores. Depois que conheci Amélia, essa
atitude me parece ainda mais ridícula.
— Entrem.
Tiro minha jaqueta e ajudo Amélia com o casaco.
Caralho, ela está além de linda. Eu não havia notado o que estava
vestindo quando saímos do apartamento, mas agora posso ver o quanto está
sofisticada, com um vestido cor de telha na altura dos joelhos. Até as joias,
que geralmente são descoladas e chamativas, estão mais sutis.
Ela se esforçou. Mas não precisa fazer isso, eles vão aceitá-la do
jeito que ela é.
— Você é bonita, essa cor fica bem em você. — Minha mãe diz,
percebendo o mesmo que eu.
— Obrigada, Sra. Warren.
Certo... um elogio. Bom.
E atípico.
Na copa, está apenas meu pai, que nos cumprimenta com um
aceno.
— Cadê Paul e Cassie?
— Não virão — responde, sem maiores explicações.
Droga, agora a atenção está toda em nós. Exatamente como ela
planejou.
— Você os desconvidou? Isso é rude, mãe.
— Não seja dramático, Vincent. Eles estarão aqui na semana que
vem. Você também, Amélia, é bem-vinda a se juntar a nós às sete horas das
terças-feiras. Quando não estiver estudando, é claro. Aliás, como vai a
universidade?
— Vai bem, e obrigada novamente. Virei sempre que puder.
Levanto as sobrancelhas, surpreso por ela se submeter de boa
vontade.
— Onde você está estudando, mesmo? — Meu pai levanta os olhos
do jornal. — Vince não disse.
— É na D.U.
Sua atenção é completamente fisgada, porque os Warren são cria
direta daquele lugar. Meu avô estudou lá, meus pais e Paul também. Eu não,
em um ato de rebeldia adolescente, fui para outra... acompanhar Sarah.
Cristo, como eu era jovem e estúpido.
— Mesmo? — É um sorriso no velho? — Lisa, Amélia estuda na
D.U.
— Eu ouvi, querido — diz, com um sorriso genuíno. — E antes
disso, na Universidade de Washington, certo?
— É, sim. Também foi um bom lugar.
Bom? São duas universidades de elite. Diferente de todos nós,
Amélia não teve o luxo de frequentar escolas preparatórias. Dou um leve
apertão em sua coxa, um aviso para deixar de ser tão modesta.
— Meus pais se conheceram na Universidade de Denver —
explico. — É meio que uma tradição da família... que eu quebrei,
obviamente.
Ela dá uma risada, e minha mãe franze a boca.
— Sempre diferente, certo, Vincent? — A voz é carregada de
aversão.
— Tento meu melhor — dou de ombros.
Sinto a mão de Amélia roçar a minha e encontro seus olhos
preocupados. Mais do que isso, raivosos. Não gosta que falem assim
comigo.
Me pergunto se ela sabe o quanto sua personalidade se parece com
a do nosso cachorro e que provavelmente me apaixonei quando o vi por
causa disso.
Sorrio até que ela faça o mesmo.
— Posso te preparar uma bebida?
— Minha mãe faz o melhor martini — reforço, porque Amélia faz
uma careta, pensando que seria errado aceitar. Não precisa ficar insegura
com família.
— Por favor.
— Você tem idade para beber, certo?
— Mãe — repreendo, e Amélia sussurra “por pouco” baixinho.
Ela já está pegando a vibe.
Difícil como é, minha mãe continua sendo a melhor pessoa do
mundo para zoar, sendo tão absurda o tempo inteiro.
— Uísque para mim, querida — meu pai pede.
Mirem avisa que o jantar está servido, e vamos todos para a sala de
jantar. O lugar de meu pai é na ponta, estou à esquerda, com Amélia à
minha frente, o que é ótimo para que eu esfregue meus pés em suas coxas.
Mas minha mãe está ao lado dela, o que é péssimo, já que prefiro
ficar sem um dos pés do que acertar a perna errada.
Muito estranhamente, Amélia e minha mãe se dão bem, as duas
aprovam uma à outra. Meu pai, então? Voltamos ao assunto de
universidades e, quando ele pergunta a Amélia o motivo de ter escolhido
psicologia, e ela, indiferente, diz que o mercado estava bom, o velho sorri.
Sua vida toda é guiada por dinheiro, então, mesmo que os dois estivessem
em posições mais distantes possíveis, é exatamente o que ele próprio faria.
Minha mãe, mudando de assunto, começa a falar sobre Rorie.
— Vince a trouxe semana passada. Ela é adorável, com aqueles
olhos lindos.
Amélia vacila por um segundo, e posso imaginar o motivo. Os
olhos de Rorie são uma coisa rara, claros como os de um husky siberiano…
Que não puxou de Amélia.
— O nome dela é mesmo Rorie?
— Rowan — Amélia responde, umedecendo os lábios.
— Oh, bem irlandês. É de família?
— Hum… não, eu queria um nome que desse para ambos os
gêneros e gostei desse. Minha mãe era americana, mas acho que tinha
família na Austrália.
— Sinto muito — lamenta, supondo o mesmo que eu. Pais mortos.
Amélia não a corrige.
— Nós, Warren, somos… — começo a dizer, mas minha mãe
decide quebrar a harmonia momentânea.
— Vincent, você planeja registrar Rorie? É melhor fazer isso
enquanto ela ainda é um bebê.
37
AMÉLIA
O sangue se esvai do meu rosto enquanto me pergunto se ouvi
direito. É uma pegadinha? Lisa está me testando para ver se estou montando
uma armadilha para pegar dinheiro do filho dela? Com um bebê de outro
homem, ainda? Deus.
Pisco os olhos, tentando fazer meus ouvidos voltarem a funcionar.
— Mãe, isso definitivamente não é da sua conta — Vince responde
com a voz baixa. Sua expressão fica fria, indecifrável. Me deixa ainda mais
nervosa.
— Estou apenas dizendo que é uma responsabilidade grande —
Lisa fala, sua preocupação visível. Ela olha para mim, como se, não
recebendo resposta do filho, esperasse que eu preenchesse a lacuna. Não há
resposta certa. Não, eu acho? Nunca falamos desse assunto. Caramba, nós
não falamos sobre muitas coisas.
— Pare de olhar para ela — Vince fala, tentando me proteger de
alguma forma.
Mexo com as mãos, nervosa, meus olhos vão para o meu colo.
Estou tão constrangida. Ele não quer, certo? Registrar é adoção, o que quer
dizer que é para o resto da vida. Deve ser daí que Lisa tirou sua
preocupação, é arriscado se envolver assim com alguém como eu.
Olhe essa casa. Essas pessoas. Deus, eu mal tenho dinheiro para
pagar o aluguel. Sinto-me tão pequena, tão... errada.
O que estou fazendo aqui?
Vince se levanta abruptamente, murmurando algo sobre levar seu
prato para a cozinha. Me surpreendo que ele saiba onde o cômodo fica.
Além da empregada, os Warren ainda têm uma cozinheira.
Uma lembrança deslocada me vem à mente. Uma vez, quando eu
tinha uns quinze anos, minha mãe tinha arranjado um emprego para ser
ajudante de cozinha em uma mansão que ficava a alguns bairros de
distância. No dia em que iria começar, por um motivo que não me lembro,
decidiu não ir, e eu apareci lá em seu lugar. As geladeiras estavam vazias há
semanas, e qualquer coisa parecia melhor do que ir para a cama outra noite
com fome.
A governanta, ao me ver, percebeu que eu não tinha idade para
estar ali. Acho que ficou com pena de mim, porque me deixou trabalhar.
Naquele dia, o filho adolescente dos donos da casa me ofereceu cem dólares
para dormir com ele.
À noite, outra com o estômago vazio, me arrependi de não ter
aceitado.
Balanço a cabeça, sabendo o motivo de ter lembrado desse
episódio pela primeira vez em tantos anos. Eu sei o porquê.
Vozes altas o suficiente para chegar aqui, na sala de jantar, saem da
cozinha. A mãe de Vince foi atrás dele.
— Qual o seu problema? Você pensa antes de falar? — Esse é
Vince. — Semana passada, com a minha avó…
— É diferente, eu não estou com a cabeça no mesmo lugar que
aquela mulher.
Eles acham que não podemos ouvir?
— Esse é o seu problema, Vincent. Sensível demais. Você faz as
coisas sem pensar claramente e só torce os dedos e espera que tudo dê
certo. Depois, o resto de nós tem que lidar com as consequências!
Queimo de vergonha. Olho de soslaio para o Sr. Warren, que muda
as páginas do jornal como se não estivesse ouvindo nada.
O pior é que eu nem mesmo acho que a Lisa esteja errada. Se fosse
meu filho, também ultrapassaria a linha para protegê-lo.
Vince volta depois de alguns xingamentos. O rosto dele está
furioso.
— Vamos embora, Amélia.
Ele não diz nada quando me despeço dos pais e saímos da casa.
Meu estômago dói de constrangimento, porque agora somos obrigados a ter
essa conversa.
Vince está mais nervoso do que alguma vez já vi.
O relacionamento dele com os pais não é perfeito. Nunca pensei,
vendo-o tão descontraído e confiante o tempo inteiro, que pudesse se sentir
deslocado no lugar onde nasceu. Estar comigo só o distancia mais ainda da
família.
— Deus, que loucura — murmuro, tentando aliviar a tensão.
— O quê?
A voz dele é mais dura do que espero, o que me surpreende.
— Adoção — digo, franzindo o nariz. — De onde ela tirou isso?
O silêncio volta, pesado e opressivo. Vince dirige calado, sem me
olhar, até estarmos quase chegando ao apartamento.
— O que você acha que estamos fazendo, Amélia?
Pisco, confusa.
— O quê?
— Eu vi o seu rosto lá. Por que é tão absurdo? — Sua voz
aumenta. — Nós criamos Rorie juntos. Temos um cachorro. Fingimos que
não moramos no mesmo lugar, mas na prática, vivemos juntos.
Um bolo surge na minha garganta, e não consigo falar. Parte de
mim quer gritar de alívio, mas uma outra, muito mais potente, me diz para
ser mais esperta do que isso. Menos imprudente. Se não por mim, por
Rorie.
— Você sabe que não é tão simples — engulo seco. — E se
acontecer alguma coisa? E se a gente terminar ou…
— Ou o outro pai dela aparecer?
Outro. A pobre garota só tem você, Vince.
— Está sendo injusto — minha voz quase um sussurro.
Ele não responde, foca em estacionar o carro. Saio, me sentindo
entorpecida e confusa. Com raiva, também. Ele está descontando em mim,
está me pressionando.
Espero que venha, mas ele fica sentado, com o motor ainda ligado.
— Acho melhor eu ir para a minha casa — diz, sem me olhar.
Concordo com um aceno silencioso, algo doendo dentro de mim.
Magoada e, bem, acho que a decisão dele prova meu ponto de vista. Ele é
um homem, e homens vão embora. Afasto e subo as escadas, sem olhar
para trás.
Entro no apartamento entorpecida, tudo muito confuso e doloroso.
Insegura. Meu rosto não deve estar muito melhor do que o interior, porque
Molly pergunta se está tudo bem antes de sair.
Forço um sorriso e a acalmo.
— Sim, só estou muito cansada.
Fecho a porta atrás de mim e me encosto contra ela, sentindo o
coração pesado. Bruce coloca a cabeça para fora do corredor para me
checar, certamente estava no quarto de Rorie.
— Ei, garoto — digo, a voz trêmula.
Ele me dá um olhar tão humanamente preocupado que começo a
rir. Mas a risada rapidamente se transforma em lágrimas.

VINCE
Eu não consigo ir para casa, não quando tudo o que vou fazer é
olhar para as coisas de Amélia. Então, estou bar. Está fechado, só funciona
de quarta a domingo. Sento no balcão, observando o copo de uísque na
minha frente. Estou puto com ela, com minha mãe e, mais ainda, comigo.
Mas não consigo me obrigar a beber. Não quero ser o tipo de
homem que volta para casa fedendo a álcool.
Eu a amo.
Por que não deixa que eu... fique? Seja o cara dela?
Coloco uma música baixa, só para o silêncio ficar menos latente.
Como sou um masoquista, procuro uma playlist que Amélia fez e contra
minha vontade, rio do título: Músicas legais para Vince ouvir quando
Amélia não estiver perto. Segundo ela, tenho o gosto musical de um virgem
de quarenta anos que ainda mora com a mãe.
Engraçadinha.
Amélia é muito descontraída por trás daqueles olhos ariscos,
sempre esperando algo dar errado. Acho que teme que eu vá decepcioná-la
e a deixar sozinha, como tantos outros. Eu nunca faria isso.
... Exceto que é exatamente o que estou fazendo.
Porra!
Vou para o apartamento em um piscar de olhos, agitado e com a
culpa me consumindo. Está trancado, mas tenho uma chave. Ela nunca
pediu de volta.
A luz da sala está acesa. Talvez como uma forma de esperar por
mim, não sei. A cozinha e os quartos estão escuros, então faço silêncio. O
cachorro surge, me olhando com reprovação. Ele escolheu seu lado, e eu
respeito por isso. Decidindo que sou inofensivo o bastante, trota de volta
para o quarto de Rorie. Vou atrás dele.
No quarto da bebê, paro para observá-la no berço. Ela dorme
profundamente, numa posição estranha que só bebês conseguem. Não me
importo se ela não tiver meu sobrenome. Ok, me importo sim, mas a amo
do mesmo jeito.
Sigo para o quarto de Amélia, seus cabelos estão espalhados pelo
travesseiro e a respiração é leve. Minhas mãos se contraem com vontade de
tocá-la, e o nó na garganta aumenta. Ela parece tão frágil. Tão delicada.
Sozinha, como esteve boa parte da vida.
Não mais.
Quero atravessar o quarto e a acordar só para prometer que não
vou a lugar nenhum., mas Amélia precisa de espaço.
Por sorte, o baú com as roupas de cama fica no canto do corredor.
Abro e pego um cobertor, indo para o sofá com um suspiro resignado.

Desperto com uma mão suave me empurrando. Não sou a pessoa


mais esperta do mundo ao acordar, então levo um momento para perceber
que o rosto de Amélia está próximo a mim. Ela está linda, mesmo com a
expressão confusa e sonolenta. Os cabelos emolduram o rosto, e não resisto
em tocá-los.
Não estou pensando direito.
— O que você está fazendo aqui? — Pergunta, com a voz
carregada de sono.
— Hum... dormindo no sofá — respondo, piscando para clarear a
mente.
Estou delirando ou ela revirou os olhos?
— Você não pode dormir aí — boceja. — Seu corpo gigante mal
cabe. Além do mais, está cheio de pelos.
— Bem...
— Vem para a cama.
Oh.
— Certeza?
Amélia tem todo o direito do mundo de me expulsar da cama por
algum tempo. Nunca fez isso, nem naqueles dias, e sei que fica
desconfortável com a bagunça.
— Não. — Minha respiração para. — Mas venha mesmo assim.
Levanto devagar, meu corpo está pesado e é com muita vergonha
que aceito sua ajuda para não trombar nos móveis.
— Você já testou isso?
— Hãm?
— Sua confusão mental — murmura, sem prestar muita atenção,
ela mesma está embriagada de sono. — Não é incomum em adultos com
TDAH. Eu acho que você tem, como Justin.
— Certo...
38
AMÉLIA
— Você voltou — digo baixo, depois de nos acomodarmos na
cama.
Ainda estou com raiva? Não sei.
Ele está?
— Sim — vira para encontrar meu rosto. Seu corpo é grande, então
faz a cama inteira se mover. — Eu sempre vou voltar.
— Mesmo quando a gente discutir?
— Especialmente quando a gente discutir. Não quero que
terminemos a noite brigados. Nunca.
Uma onda de calor, apaixonada e carente, me toma, e coloco a
cabeça no seu peito, aspirando o cheiro. Vince levanta meu queixo,
analisando meus olhos vermelhos.
— Você chorou — constata, com a voz pingando culpa.
— Não, só estava… com a cabeça cheia.
Vince não acredita, e se odeia por isso.
Eu o amo por isso.
Mas reconheço que não estou sendo justa.
— Nós não conversamos muito — murmuro.
É culpa minha. Não me abro, não conto nada. Por que continuo
fazendo isso? Costume? Medo? Vou correr o risco de perder esse homem
porque estou com medo?
Não.
Porém, antes de falar, quero senti-lo mais uma vez. Pode ser que
mude irreversivelmente o que pensa sobre mim e, se for o caso, preciso de
mais um pouco do que temos agora. Fica imóvel enquanto vou para cima
dele, observando através dos cílios. É um olhar questionador. Puxo minha
camisola por cima da cabeça e o ajudo a fazer o mesmo com a camiseta.
— Quero sentir sua respiração, tudo bem?
É uma pergunta estúpida.
De toda forma, suas mãos vão para minha cintura e ele me puxa
para si até estarmos colados. Escondo a cabeça em seu ombro, o que estou
para dizer é uma vergonha.
— Eu sinto muito, Amélia — diz com a voz grossa ressoando no
meu corpo e aumentando minha culpa.
— Não é você, você é perfeito — me apresso em descartar. — Por
que está comigo, Vince?
— Amélia…
— Às vezes eu não acredito.
— Em mim?
— Na realidade — confesso. — Sou uma pessoa muito fácil de
enganar.
Espero que ele desdenhe de minhas preocupações e diga que são
infundadas, mas o que faz é muito mais eficaz. Beija meu pescoço,
descendo pela mandíbula até chegar ao vale entre os seios.
— Eu te amo — garante. — Muito.
Lágrimas enchem meus olhos, e acho que sorrio ao mesmo tempo.
Quando ele entra em mim, não é só sexo. É uma forma de
demonstrar pertencimento. Comunhão, carinho… tudo. O gesto faz com
que eu entenda por que chamam isso de amor.
Vince passa o dedo suavemente pela minha bochecha.
— Não sei o que aconteceu com você, Amélia, mas eu não sou
essa pessoa. Não vou te machucar. Eu vou ser o cara que fica.
É uma promessa.
E, por Deus, eu acredito.

VINCE
Amélia encosta a testa suada na minha.
— Eu também amo você — diz baixinho. — Depois de Rorie,
você é a pessoa que mais amo na vida.
Oh, porra.
O caroço na minha garganta é do tamanho de um sapato, e a única
coisa que consigo fazer é apertá-la, torcendo para não chorar. Amélia é
minha mulher, a parte mais bonita do meu coração.
Sim, sou emotivo e meloso.
Não me importo, serei amaldiçoado se não der a ela toda a ternura
que merece.
A felicidade dura pouco, no entanto.
— Ele é casado — murmura contra meu peito. Gelo, sem entender
porra nenhuma.
— O quê?
Ela…?
— O pai de Rorie — explica, afastando a cabeça para me encarar.
Morde os lábios, nervosa. — Ele é casado.
Não, caralho. Isso não.
O silêncio enche o quarto, e não consigo dizer nada com meu
coração bombeando adrenalina.
— Foi por isso que fiquei grávida, sabe?
Amélia teve um bebê para que o homem deixasse a esposa? É…
questionável.
— Não assim — diz, amuada. — Eu não sabia e ele… — suspira,
sem graça. — Ele me engravidou para que eu ficasse quando descobrisse.
Quê?
Por querer e sem avisar? Uma garota de vinte e três anos, porra?
Tenho de me sentar, mal contendo a vontade de matar o filho da puta. A
sede de sangue arde. Ela estremece, se abraçando.
— Amélia, amor — inspiro, tentando me controlar. Esse momento
não é sobre mim, é sobre ela. — Você não precisa me contar.
— Eu quero — diz, muito vulnerável. — Nos conhecemos em um
restaurante onde trabalhei. Eu era garçonete em um desses bistrôs chiques, e
Jasper pediu meu número na primeira vez que foi lá. Nem lhe dei atenção…
só que ele continuou voltando. Por meses.
Jasper. Anoto o nome do desgraçado mentalmente.
— Um dia, finalmente aceitei. Nem que fosse para ele desencanar.
Foi legal no início, aquela coisa de cara mais velho que parece ser capaz de
derrubar o mundo pela garota. — Ela ri, zombando de si mesma. — Mas ele
não era uma boa pessoa. Eu também não, honestamente.
— Como assim?
— A gente brigava muito e terminávamos todos os fins de semana
— conta, triste. — Só que ele sempre voltava, e eu cedia porque… não sei.
Não conhecia nada além disso, acho.
Sei o que está por vir, o filho da mãe resolveu que uma criança a
prenderia para sempre. Trabalhando como garçonete e sem família, poderia
acontecer. Só não esperou que Amélia lutasse contra.
— Quando engravidei, fiquei apavorada, Vince. A primeira coisa
que pensei foi “Deus, Jasper vai me matar”, então foi inesperado que ele
ficou feliz. Dócil como nunca. Me levou para procurar apartamentos, dizia
que eu deveria parar de trabalhar para ficar em casa com o bebê. Eu
pensei… sei lá, que talvez fosse para ser. Que ficaria tudo bem.
Filho da mãe.
Acaricio seus braços para confortá-la.
— Eu me recusei a sair do restaurante até ela nascer, e estava
considerando seriamente aceitar ajuda para alugar um lugar melhor até eu
me formar. Um dia, eu devia estar com cinco ou seis meses, peguei um
turno e servi jantar para essa mulher elegante. Esnobe. Aquele tipo que age
como se pessoas como eu nascessem para servi-las, sabe?
A esposa?
Não, o filho da puta não fez isso.
O rosto de Amélia diz que fez, sim.
Demônio imundo.
— Ele nem olhou na minha cara. Chegou, deu um beijo nela e
aproveitou a noite enquanto eu servia mesas. Parecia que queria provar para
si mesmo alguma coisa, ou me mostrar meu lugar. Nunca me senti tão
pequena na vida.
Porra!
Passo a mão pela barba, nervoso. Caralho, eu sabia que era ruim,
mas nunca me passou pela cabeça que fosse tanto. Que tipo de monstro faz
isso?
Ela espia através dos cílios, rosto desanimado.
Deus, isso explica muita coisa.
— Filho da puta — xingo, desejando uma morte lenta e dolorosa
ao infeliz. — Ele sabe onde você está agora?
— Não.
Bom.
Do contrário, eu iria para a cadeia.
— Ele conheceu a Rorie?
— Não — repete, e explica, na defensiva. — Quando viu que seu
plano não deu certo, ficou chateado. Como eu disse, não é um cara legal.
Chateado.
— O quão chateado, Amélia? Ele machucou você?
Não há distância que me impeça de achar o cara e colocá-lo
debaixo da terra.
— Não fisicamente — sussurra. — Jasper não era violento. Só...
uma pessoa horrível. Alguém que eu não deveria ter me envolvido, em
primeiro lugar. Quando percebi que usaria o bebê para me manipular, entrei
no jogo e aproveitei cada coisa que sabia para o convencer de que nunca
teria nada de bom vindo de mim.
— Ele vai aparecer um dia? — Pergunto, quase torcendo para
acontecer para que eu possa o matar. Mas não quero que Rorie, minha
Rorie, tenha de respirar o mesmo ar que o desgraçado. Ou Amélia.
— Não. Ameacei contar para a família inteira se não desistisse dos
direitos parentais, e bem... vim para cá — admite. — Eu tive uma infância
horrível, Rorie não precisa ter também, certo?
Amélia mexe as mãos, muito envergonhada, o que é um absurdo.
Conheço homens como ele. Ego frágil, veem uma mulher como ela e fazem
de tudo para reprimir e se sentir bem com a própria vida.
Eu cresci com homens assim.
Eu…
Minha respiração falha. Cristo, eu deveria confessar meus pecados.
Dizer o motivo de ter mantido distância quando nos conhecemos.
Mas Amélia não vai acreditar, não agora.
Vou perdê-la no segundo que abrir a boca, e não posso. Se ela me
abandonar, não vou suportar. Além do mais, é um monte de coisas para
lidar, e tudo o que quero lhe oferecer é paz. Não precisa lidar com minhas
merdas.
É melhor esperar até tudo estar resolvido.
— Sim, mesmo tão nova em uma situação ruim, fez o que era
preciso para garantir o bem estar da bebê — digo, passando a mão pelo seu
rosto. — Se é que é possível, sinto ainda mais orgulho.
Amélia abre um sorriso tímido, aliviada com minha reação.
— Fiz... — concorda. — Vim para cá te encontrar.
39
AMÉLIA
No fim das contas, eu me mudo para a casa do Vince.
A culpa é do maldito cachorro e suas bandanas fofas. Virou nossa
coisa comprar bandanas personalizadas.
Somos um casal brega.
Passamos duas semanas no dilema de viajar entre meu apartamento
e a casa dele, e nenhum de nós tem tempo para acordar no meio da noite
com o cachorro choramingando de aflição ou a Rorie de saudades. Juntando
a isso, meu contrato de aluguel chegou ao fim, e o Vince teve um ataque
quando viu que eu estava pesquisando apartamentos em Maple Grove.
Então, numa quinta-feira aleatória, cedi. Arrumamos minhas coisas
e viemos para cá. É estranho, mas estou amando viver em uma casa em vez
de um apartamento. Há algo especial em ter um quintal para correr quando
a bebê está muito exigente e preciso de um segundo para respirar.
Também é bom sentar na varanda com o Vince, assistindo a noite
cair. Ficamos muito mais próximos depois que lhe contei minha história. Eu
me permito ser mais carinhosa, e ele aceita, satisfeito.
O sexo sempre foi fantástico, e agora que é fantástico e diário, só
tenho a agradecer.
É assim que é ser feliz? Eu gosto.
Subindo as escadas, depois de levar o Bruce para fazer xixi, escuto
algo e acho que estou delirando. Tropeço até a sala, onde deixei a Rorie
brincando com blocos de madeira.
Ela não está feliz, o rostinho vermelho queima de impaciência
quando chama “mamãe”.
Coloco a mão na boca, lágrimas caindo como uma enxurrada.
Quero tocá-la, mas tenho medo de fazer isso e o momento acabar.
Sem perceber o que estou fazendo, ligo para o Vince. Atende no
segundo toque.
— Você pode vir para casa?
— O que aconteceu?
— Não aconteceu nada, eu só preciso de você aqui — digo, sem
tirar os olhos da minha filha.
— Três minutos.
Parece que ele chega mais rápido do que isso, não saberia dizer.
Estou plantada no mesmo lugar.
— Amélia? — Segura meu rosto. Sua voz é preocupada, ele
confere meu corpo. — O que foi? Você está bem?
— Ela falou — aponto para a Rorie. — Ela falou mamãe.
Seus olhos arregalam, e ele me puxa para um abraço.
O que significa que a Rorie se sente ignorada e grita mamãe de
novo. Dessa vez, com repreensão, porque estou com o Vince dela.
— Sim, meu amor — ele diz, passando por mim. — Essa é a sua
mamãe.
Coloco a mão no peito. Esperei tanto por isso.
Vince faz cócegas na barriguinha estufada, ganhando suas usuais
risadinhas. Ele me entrega a Rorie e beijo os cabelinhos finos em sua
cabeça.
— Significa que está tudo bem?
Tivemos outra crise de infecção na semana passada, e o Dr.
Charles e eu chegamos à conclusão de que serão necessários testes de
audição. Rorie responde a sons relativamente bem, mas isso não quer dizer
que nada esteja acontecendo. Meningite, infecções de ouvido e fala
atrasada. É como somar dois mais dois.
— É um bom sinal — digo, sorrindo. — Por um tempo, imaginei
que nunca fosse ouvir ela me chamar assim.
Vince concorda, sorrindo de volta, mas depois fica um pouco
calado.
Suponho que seja pelo óbvio – é a sua vez. Quer saber como Rorie
vai chamá-lo.
Eu confio nele.
Mas quanto? Com a Rorie?
A resposta vem em um gesto simples. A bebê decide mudar de
colo. Os dois nem percebem, ela só sai dos meus braços para os dele, e
imediatamente Vince entende que é para fazer aquela brincadeira de fingir
que estão voando.
A escolha nem é minha.
Ela o escolheu como pai.

VINCE
Minha mente gira como um redemoinho.
É assim o tempo todo agora.
Deve ser a culpa. Amarga e viçosa, saindo dos meus poros a cada
respiração.
Amélia aceitou morar comigo. Tempos atrás, pensei que precisaria
arrastá-la ou – mais provável – reclamar no seu ouvido por meses. Temos
uma vida juntos, uma garotinha e um cachorro. É tudo que sempre sonhei.
Meu celular, no entanto, vibra o dia inteiro. Sarah quer conversar.
Está fazendo pirraça, como sempre. Tinha esquecido o quanto é incansável.
Honestamente, pensei em pegar um voo até São Francisco e acabar
logo com isso, mas eu nunca encontraria Sarah sem comunicar Amélia
primeiro. Seria demais.
Bato na porta.
— Vincent — minha mãe diz com o rosto fechado. — O que está
fazendo aqui?
— Não vai me chamar para entrar?
Eu não vim à casa dos meus pais nos últimos dois jantares, mas
Amélia ficou me perguntando como estavam até eu entender que ela queria
que eu viesse. Surpreendentemente, Amélia meio que gosta deles, o que é
estranho pra caramba.
— Claro, você é sempre bem-vindo na minha casa — diz, se
afastando. — É estranho, no entanto. Hoje não é feriado, e é uma quinta-
feira. Não que signifique algo para você, já que esqueceu dos jantares na
terça.
— Onde está a empregada? — pergunto, estranhando. Meus
ouvidos são treinados para ignorar suas alfinetadas.
— Por quê?
— Bem, você abriu a porta.
— Eu posso abrir a porta da minha própria casa.
Levanto as sobrancelhas.
— Ela precisou de alguns dias de folga e a empresa ainda não
encontrou outra para trabalhar aqui — admite a contragosto.
Muito mais crível.
— Certo — limpo as mãos na barba. — Eu vim aqui para…
— Se desculpar?
Jesus Cristo.
— Eu não quero brigar, mãe. Aquela noite foi… delicada.
— Você e Amélia conversaram?
— Mãe — suspiro, começando a me arrepender. — Não é da sua
conta.
— Claro que não — desdenha. — Então, por que você veio aqui?
Porque eu me odeio.
— O aniversário de Rorie é no próximo dia quinze... pensei que
poderíamos dar uma festa.
Os olhos da minha mãe brilham. Ela é a mulher que se chama para
organizar qualquer evento que seja. É sua especialidade.
— A Sra. poderia me ajudar com isso?
Nunca pedi ajuda com nada. Minha mãe abre a boca e a fecha
antes de forçar sua expressão a ser arrogante.
— Talvez — fala, cautelosa. — Podemos usar nosso jardim.
— Bem, minha casa funciona também.
Até porque, assim, é menos provável que haja mais de duzentas
pessoas.
— Não é só porque você nos odeia que as duas precisam odiar
também.
Hum? De onde saiu isso?
— Eu não odeio vocês. Eu só…
Não sinto como se pertencesse a esse lugar.
Fico em silêncio. Me incomoda que ela tenha essa percepção. Sou
tão difícil com eles assim? Seria diferente se fossemos mais... normais.
Não digo nenhuma dessas coisas.
Tiro o cartão da minha carteira e estendo para ela, que pega com
indiferença.
— Tem limite nisso aqui?
— Não — balanço a cabeça, rindo. — Faça o seu pior.
40
AMÉLIA
Acordo Rorie com balões rosa e amarelo voando pelo teto, e Bruce
está com uma bandana escrita “Feliz Au-niversário”.
Minha bebê está completando um ano.
Não consigo parar de sorrir. Deus, quem diria, um ano atrás, que
estaríamos aqui?
— Bom dia — falo com a voz boba. — Feliz aniversário, lindeza.
Vamos ver o que tem para seu café da manhã especial?
Desço as escadas, ela esperneia de felicidade no meu colo.
Encontramos Vince na cozinha, sorrindo.
Ele queria que ela experimentasse panquecas pela primeira vez e
insistiu em fazê-las. Usou aveia e bananas, porque tentamos mantê-la
saudável, mas o vi separar flocos de chocolate.
— Quem é a menina linda fazendo aniversário?
Rorie começa a gritar e sorrir com seus quatro dentes, sua forma de
dizer “sou eu!”
— Ei, espere, vamos tirar uma foto — diz, antes que eu encaixe a
bebê na cadeirinha. Vince usou os flocos de chocolate para fazer olhos e
nariz de uma carinha feliz, finalizando a boca com calda.
Jesus, meu coração infla. Ele pega a câmera e a coloca de forma
que capture a gente no balcão. Cada um de um lado, Rorie sentada com o
prato entre as pernas. Antes do timer piscar, ela já está enfiando a mão na
panqueca e colocando na boca.
Meu sorriso fotogênico vira uma gargalhada, e o timer pisca pela
segunda vez. Vince rouba um pouco da calda de Rorie e suja meu nariz,
outro piscar. No último, estamos nos beijando.
Vince foi para o bar logo depois do café da manhã. Sendo sábado,
é o dia de maior movimento, e, na semana que vem, ele já vai precisar sair
para ir ao jogo com Johan. Disse que voltaria à tarde para nos levar a um
lugar legal e que encomendou um bolo para comemorarmos à noite.
Passo a manhã mergulhada em momentos preciosos com minha
filha. Seguro suas mãozinhas enquanto ela dá passinhos vacilantes. Meio
que consegue andar, porque a mão dela mal me toca, mas, se não tiver
ninguém segurando, fica nervosa e cai.
— Você é tão corajosa, bebê — incentivo, agora ela está segurando
apenas um dedo. Desfaço o aperto, e Rorie fica paradinha. — Vamos, você
consegue.
Ela cai de bunda.
Bruce vem socorrê-la e, assim, a hora de aprender a andar chega ao
fim. Pego um livro que preciso estudar e leio, riscando as partes
importantes, enquanto os dois brincam.
O almoço passa e Rorie tira uma soneca. É início da tarde quando
Vince manda uma mensagem dizendo para nos arrumarmos.
Visto meu vestido rosa coral que comprei em comemoração ao
primeiro mês de aluguel que não precisei pagar. Ele tem mangas compridas
e os ombros de fora, além de ser fluido o suficiente para correr atrás de uma
bebê que pode ainda não estar andando, mas engatinha que só. Uma bota –
afinal, ainda sou eu. Fica bom, romântico e descontraído.
Rorie está em outro nível. Vince trouxe um vestido no início da
semana que é a coisa mais linda do mundo. Tem um tutu rosa claro e
pequenas borboletas brancas aplicadas no tecido. Duvido que ele tenha
comprado um desses sem ajuda, porque, convenhamos.
Ela parece uma princesa da floresta.
Tiro trinta fotos com meu celular e as mando direto para Levi.
Queria que estivesse aqui.
— Cheguei! — Vince avisa.
Olho para Bruce, me perguntando se ele não deveria estar
balançando o rabo, já que faz isso quando chego.
— Olá… uau.
— Ei — sorrio. — Como estamos?
— Você — responde, vindo me beijar. Viro o rosto para poupar o
batom, e seus lábios acertam meu pescoço. — Está deliciosa.
Suspiro. Vai demorar para a noite chegar.
— Rorie, o que achou do vestido?
— É lindo — eu quem respondo. — Obrigada.
Ele descarta com aquela cara que faz sempre que eu agradeço por
algo, fazendo festinhas na cabeça da bebê.
— Me dê cinco minutos para tomar um banho.
— Posso separar as suas roupas?
Nunca escolhi antes e, invocando uma parte de mim que eu não
sabia que existia, quis muito fazer isso quando vi o guarda-roupas dele.
— Sério?
Meu rosto esquenta.
Ele ri da minha expressão, um sorriso de verdade. Adorando.
— É claro que pode, Amélia. Você quem manda.
Ele tem uma blusa preta de botões que vai me fazer querer
ronronar no seu colo. As mangas vão até os cotovelos, então, deixa as veias
do braço expostas. Jeans escuros, botas. Talvez uma corrente? Procuro
alguma.
— Se divertiu? — Aparece na porta do quarto com a toalha na
cintura e o cabelo molhado. Gotas de água escorrem pelo abdômen e tenho
vontade de lambê-las. — Eu conheço essa expressão.
Vince diz que meus olhos ficam mais escuros quando estou com
tesão. A manhã foi tão corrida, não deu tempo de nada.
— Eu te negligenciei hoje? — sua voz é derretida, e as pupilas
dilatam.
— Bem…
— Acordou e eu já tinha levantado. Um erro, certo? — Ele vem
para meu pescoço e sua toalha cai no chão.
Olho para a porta.
— Bruce está vigiando ela — murmura. — Só preciso de um
minuto.
— Eu estou arrumada — protesto, e Vince levanta as sobrancelhas.
— Você não tem permissão para sujar meu vestido novo.
Se afasta alguns centímetros, e me arrependo de ter falado algo.
Mas ele só o faz para me olhar melhor, como se eu fosse uma presa.
Circula meus mamilos por cima do tecido
— Bobagem, você veste essas coisas só para me deixar doido.
Bufo de indignação.
— Convencido.
— É verdade, Amélia. Não posso ficar um dia sem te foder. Já
percebeu isso? Você fica louca.
Não é mentira, e as palavras rudes me deixam sedenta e dolorida.
— É uma reclamação?
— Tão exigente — fala, me encostando na parede e mordiscando
meu lóbulo. Segura a ereção, que esfrega na minha coxa, quente. — Tão
molhada.
É um ser infernal, usando a ponta para massagear meu clitóris,
enrolando. Ele quer que eu peça.
E não estou muito além disso.
Só que é mais divertido provocar.
— Se é tão custoso para você, aposto que consigo achar um
voluntário mais bem disposto.
Seus olhos faíscam, e colocando uma das minhas coxas na sua
cintura, bate dentro de mim. De novo e de novo.
Os dentes arranham meu pescoço, e Vince grunhe.
— Droga, você vai ficar com um chupão.
Eu deveria xingá-lo, mas estou muito ocupada com um orgasmo
errático e bagunçado.
Antes que eu diga para tirar, Vince já está gozando.
Puta que pariu.
— Você gozou dentro — reclamo com um tapa no seu braço.
— Você toma anticoncepcional. — Dá de ombros.
— Não tomo, e agora vou ter que trocar de calcinha. É a única que
não marca o vestido.
Ele para e me observa com uma ruga entre as sobrancelhas.
— Não?
O quê?
Ah, sim. Anticoncepcional. Mais uma conversa que não tivemos.
Limpo a garganta, não era assim que eu queria contar a ele.
Merda.
— Não. Eu sou… hã, estéril — admito, sem graça.
Vince arregala os olhos, surpreso.
Faço uma careta.
— Eu deveria ter dito antes. Desculpe.
— Não, não se desculpe.
Encaro seus olhos, me sentindo muito estranha. Eu deveria ter lhe
dito antes de me mudar. Provavelmente, quando começamos a namorar.
Mas odeio pensar nisso. Odeio qualquer coisa relacionada à gravidez.
— Deveria, sim — suspiro. — Eu não estava escondendo nem
nada assim, é que, honestamente, engravidar de novo nunca passou pela
minha cabeça. Nós… Jesus, você provavelmente quer ter filhos.
Desconforto sobe pela minha nuca. Como ele não diz nada,
continuo falando.
— Tive complicações no parto, nem sei direito o que ocorreu.
Foi… bem, foi complicado.
Tudo o que me disseram, afinal. Complicações.
— Tão ruim assim?
É com essa parte que ele está preocupado?
— Acho que sim — murmuro. — Eu não estava acordada.
— Levi?
— Não estava na cidade. Liguei para minha mãe, mas ela não pode
ir.
Não quis.
Minha garganta dói, e os pelos do meu braço se arrepiam. Lembrar
do dia em que Rorie nasceu sempre é uma má ideia. Tento não pensar nisso,
mas às vezes é impossível. De repente, estou sendo puxada para um abraço.
— Por isso vocês não tem contato — conclui, e concordo, com
aquela sombra de ressentimento que nunca vai embora.
— Sinto muito.
— O quê?
— Sinto muito que isso tenha acontecido com você, e que tenha
passado por tudo sozinha. Não deveria ter sido assim.
— Mas… e você? Você ama crianças.
Com certeza quer ter filhos.
Vamos terminar? Deus, podemos terminar.
— Estou ok com a Rorie.
Oh, caramba.
— Vamos, não podemos nos atrasar — sussurra, beijando meus
lábios e me soltando. Olha para suas roupas na cama, interessado. — Eu
tinha até esquecido dessa blusa.
Como ele pode ir de dizer as palavras mais perfeitas do mundo
para o casual?
Leveza.
Amélia Reid, vivendo uma vida tranquila. Nem tudo na vida
precisa doer.
Relaxo e abro um sorriso.
— Vista-se, vou pegar o corretivo. Você vai esconder essa marca
no meu pescoço.

Vince está quieto, concentrado na estrada. Rorie balbucia


alegremente, presa na cadeirinha no banco de trás. Não sei para onde
vamos, minha aposta é uma lanchonete com brinquedos infantis que fica
próxima ao parque.
Só que nos afastamos, indo para a estrada que leva à casa dos pais
dele.
— Você se importa se passarmos lá? — pergunta casualmente. —
É bom que minha mãe veja ela um pouco.
— Claro — respondo, achando um tanto legal que Lisa queira ver
Rorie. Droga, eu deveria tê-la convidado para sair com a gente? Nem
passou pela minha cabeça.
Estacionamos, e desço do carro, andando ao lado de Vince. Ouço o
som de pessoas à medida que nos aproximamos. Olho para o lado e vejo a
garagem de visitas cheia de carros. Lanço um olhar curioso a Vince, que
apenas sorri.
Ao chegarmos ao jardim, uma pequena plaquinha de madeira diz
“Primeiro aniversário de Rorie!” e tem uma seta indicando a entrada. Ao
lado, um cabide com asas de borboleta para crianças vestirem.
— Vince — choramingo, emocionada.
Rorie começa a bater palminhas.
— Eu gritaria "surpresa", mas assustaria a bebê — cochicha. —
Além disso, segundo minha mãe, é muito brega.
Rio, é exatamente algo que Lisa diria. Gosto dela.
Muitas pessoas estão aqui. Cassie e Pau. Molly, Emily, pais e as
crianças da creche de Rorie. Boa parte da cidade, na verdade. A festa é toda
em cores pastel, com doces em forma de borboletas e balões. Deus, tem
uma barraca de cachorro-quente e outra de churros, além de uma mesa
comprida e baixinha, com materiais de pintura para crianças brincarem.
É como um sonho.
Vince me observa atentamente, esperando minha reação.
— É lindo — consigo dizer, com a voz embargada. Ele sorri, e me
puxa para seus braços.
— Vocês — Lisa chama. — Olá, Amélia. Você está adorável —
passa a mão pela cabeça da bebê, absorta com seus olhinhos curiosos. —
Feliz aniversário, Rorie.
— Obrigada, Sra. Warren. Está incrível.
Ela sorri com o elogio, uma expressão orgulhosa. Tudo bem, Vince
teve a ideia, mas quem realmente organizou foi ela.
— Não há de quê — aperta os lábios. — Venha, você é a anfitriã.
Tem de mostrar a Rorie para todo mundo.
Todo mundo?
Meu Deus.
— Foi a senhora quem escolheu o vestido dela?
— Naturalmente.
— Ficou perfeito — elogio. — De muito bom gosto.
Tenho a impressão de que Lisa não é elogiada com muita
frequência. Ela é controladora, é verdade, mas o que esperar de uma mulher
que teve quatro homens na família?
Cumprimento os convidados, com minha sogra a reboque, me
instruindo. Fica mais fácil depois dos primeiros. Eventualmente, Rorie não
suporta ficar no colo, com tanta coisa divertida ao redor.
— Eu acho que ela quer ir para o chão — aponta Lisa, observando
a bebê se contorcer em meus braços. — Você está irritando ela.
Sim, mas é um vestido de, no mínimo, dois mil dólares.
— Ela vai sujar.
— Do contrário, vai começar a chorar — levanta a sobrancelha. —
Coloque Vince para andar atrás dela, assim não corre o risco de ser
pisoteada.
Hum, tudo bem.
— Vince?
— Sim?
— Prepare as costas — lhe passo a bebê irritada. — Leve-a para...
— estou acenando para a mesa de desenhos quando noto uma figura muito
familiar desenhando algo no bíceps de Justin. O garoto está com o rosto
firme, como se estivesse realmente recebendo uma tatuagem.
— Levi? — exclamo, indo em sua direção. — Como?
Ele abre os braços com um sorriso muito canalha.
— Você não achou que eu perderia o aniversário da minha
afilhada, né?
Primeiro, o abraço. Depois, dou um tapa em seu ombro por não ter
avisado. Ouço Lisa suspirar “Meu Deus” lá de onde está e, milagrosamente,
não me sinto julgada. Só sendo parte da família.
— Você nunca conseguiu guardar um segredo na vida!
Levi é o maior dos fofoqueiros.
— Vince me fez prometer com base em alguma lógica de amizade
masculina que eu não entendi muito bem, mas parecia sério o suficiente.
Vince. Claro. Está do meu lado, então só passo o braço em volta da
sua cintura, sentindo sua onda de calor me envolver.
— Amélia! — Justin chama minha atenção, desviando nossos
olhares. Exibe orgulhosamente o braço. — Olhe!
Caio na risada.
Há, no braço do meu futuro sobrinho, um coração com a inscrição
J+A.
Então, voltamos com a quedinha.
— Ele está ganhando de você — digo para Vince, que encara a
tatuagem com o rosto perplexo.
— É? Pois me dê esse canetão — resmunga, e me deixa um beijo
na testa antes de ir desenhar com Rorie.

VINCE
Voltamos para casa cedo o suficiente para aproveitar a noite, mas
ninguém tem força para fazer nada além de relaxar. A festa foi incrível e
exaustiva, especialmente para Rorie. Estou todo desenhado. Quando, por
questão de honra, estava escrevendo o nome de Amélia no meu braço,
Rorie se interessou e decidiu que eu seria seu pedaço de papel. Tentei
rabiscar algo em Amélia também, talvez um simples “V”, mas senti que ela
poderia me bater, então só fiz um solzinho feliz, como ela havia pedido.
A bebê está apagada agora. Ela ficou hiperestimulada depois dos
parabéns e teve uma crise de choro, o que é bem normal. Amélia a levou
para dentro e conseguiu fazer com que dormisse. Já tinham se passado
quatro horas de festa, então deu para aproveitarem bastante.
Achei que Levi fosse vir para nossa casa, mas ele disse que daria
uma volta pela cidade, dando a entender que deveríamos passar um tempo
sozinhos, em família… ou ele conhece Amélia o suficiente para saber que
sua cota social havia se esgotado, e receber um convidado em casa a faria
chorar. De toda forma, tenho a impressão de que algumas mulheres de New
Castle vão terminar a semana com o coração partido.
— Ei, eu vou levar Bruce para passear.
— Tudo bem, vamos assistir a um filme? Vou trazer as coisas para
a sala.
— Ótimo, podemos estourar pipoca?
Amélia olha para mim como se eu fosse um alienígena, assustada.
Eu só comi cinco cachorros-quentes, alguns churros, uma dúzia de salgados
e bolo.
— Por favor?
— Vou colocar no micro-ondas — cede, tentando não me matar de
fome.
Caminho para fora, Bruce andando entediado ao meu lado. É só
uma volta no bairro. Como saímos todos os dias à noite, ele está
acostumado e seria muita filha da putagem pular um dia, mesmo que eu
esteja morto de cansaço. Enquanto caminho, meu telefone começa a tocar e
tiro do bolso para olhar quem é.
Porra, é como se ela farejasse um dia bom para estragar. O nome
de Sarah aparece na tela, e a irritação surge instantaneamente. Hoje não.
Bloqueio o número sem pensar duas vezes.
41
AMÉLIA
Johan vem buscar Vince. Eles discutiram a semana inteira para
decidir em qual carro iriam. No fim das contas, Vince concordou em deixar
Johan dirigir, então o Audi ficará comigo.
Ele está tentando aposentar meu carro aos poucos.
— Tem certeza? — pergunta pela última vez. Está com um boné
vermelho que o deixa muito gato, uniforme do time e um sorriso muito
feliz. Ama futebol.
— Sim, Vince. Passe a noite por lá — repito. — Eu vou ficar bem.
— Mas o cachorro…
— Eu posso levar o Bruce para passear. O que eu não posso é que
vocês dois, idiotas, peguem a estrada bêbados e se envolvam em um
acidente.
— Não precisamos beber.
Johan protesta à distância.
— Você vai a um estádio em um dos últimos jogos da temporada.
Seu time está jogando e seus amigos estarão lá. Vá se divertir, pelo amor de
Deus.
— Ei, por que eu não arranjo uma namorada assim? — Johan se
intromete, eu e Vince reviramos os olhos ao mesmo tempo e rimos disso.
— Tudo bem. Vou sentir sua falta.
Beijo ao invés de falar mais, ou ficaremos aqui para sempre. Rorie
acena e assistimos à caminhonete se afastar até sumir na rua.
— Então, eu sei que você tem apenas um ano, mas vamos passar a
tarde em um bar — cutuco a bebê.
Ela já foi lá antes. Eu a levei e Vince também, sempre que
necessário. Hoje, vamos ficar até à noite, quando o novo garçom virá me
substituir.
Ofereci ajuda quando Vince começou a usar o Caverna como
desculpa para não ir ao jogo, o que é uma bobagem. Acho que trabalhei em
bares por mais tempo do que ele – e o homem é sete anos mais velho.
Ele me trata como se eu fosse de vidro.
Eu meio que gosto.
Dirijo para o bar com a bebê e o cachorro. Se o lugar não aceitava
animais de estimação, isso mudou. Bruce é meu babá canino.
Não tenho coragem de deixá-los fora da minha vista, no escritório,
então arrumo um canto com brinquedos onde posso observá-los. O chão
está limpo e coloquei uma colcha para aliviar a consciência. O movimento é
bem fraco no início da tarde, só com um ou outro cliente. Estou quase na
hora de sair quando começa a chegar mais gente.
Talvez não seja uma má ideia ligar para Molly e ficar até fechar.
Sim, é o que vou fazer. Estou mexendo no celular quando uma mulher loira
me aborda.
Levanto os olhos, desatenta, mas logo passo a prestar atenção.
Nunca a vi antes – eu teria reparado. Ela parece uma daquelas bonecas
Bratz, baixinha e magra, com cabelos loiros escorridos e grandes olhos
azuis.
— Posso te ajudar?
Ela sorri, feliz por eu ter perguntado.
— O Vince está aqui?
— Não.
— Oh — suspira, aborrecida, o que atiça minha atenção. — Eu vou
esperar. Você poderia me trazer uma bebida?
É estranho o que sinto. Um desconforto doloroso, como se ficasse
subitamente doente e, ao mesmo tempo, tentasse me convencer de que estou
sendo insensata.
Reativa.
— O que vai ser?
— Só uma soda, por favor.
Vou para trás do balcão, confusa. Topo com um cliente que já vi
aqui muitas vezes. Ele olha para ela fixamente, curioso demais.
— Você a conhece?
— Eu… — Olha para baixo, as bochechas ficando vermelhas. —
Sim. Ela costumava morar aqui.
Não dá mais informações, e eu não pressiono. Não o conheço o
suficiente para isso.
Pego a bebida e volto para a loira.
— Aqui — coloco na mesa. — Mas se você está esperando por
Vince, ele não vai voltar esta noite.
Ela deve notar a tensão na minha voz, porque seus olhos estreitam.
— Você trabalha aqui há muito tempo?
— Não.
— Certo — suspira. — Que droga. Ele está fugindo. Se o vir antes
de mim, diga que a Sarah está o procurando.
Minhas costas se endireitam.
Inferno, tenho que perguntar.
— Sarah…?
— Warren — diz. — Bem, Sampson-Warren. Eu sou a esposa dele.
Meu olhar perde o foco e os barulhos ao meu redor ficam mais
altos. Sinto-me afogando, sem conseguir respirar.
— Ei, você está bem?
Não me importo em responder, nem mesmo sinto meus membros
quando afasto e pego Rorie do chão.
Esposa.
A mulher – Sarah – me segue e arregala os olhos ao ver Rorie.
— De quem é esse bebê?
Fito seus olhos. Confusão e preocupação. Raiva.
Ela está se perguntando se eu tive um bebê com o marido dela.
Meu Deus. Não sei como acredito nela, mas estou certa de que não está
mentindo.
Olho ao redor, cada pessoa no bar assistindo e cochichando. Não
fiz uma cena; eles fofocam porque sabem.
Uma onda de vergonha quase me derruba. Vince é casado. Vince
mentiu para mim. Vince me fez ser sua amante e nem mesmo teve a
decência de manter segredo. Vince me exibiu como a outra mulher para a
sua família. Para a cidade inteira.
Estou com nojo de mim mesma. Como…? Quero entrar debaixo
d'água e me livrar de cada vestígio dele.
Cada memória.
— Minha — respondo com rispidez. — Essa bebê é minha.
— Espere…
Ela tenta me chamar, mas eu não olho para trás.

VINCE
Dirijo de volta para casa no dia seguinte. O jogo foi incrível. Ainda
há alguma adrenalina dentro de mim, já que nosso time ganhou, e a
comemoração foi exatamente como a Amélia sugeriu: muita bebida e muita
conversa fiada entre amigos. Mas, no fundo, sei que essa fase da minha vida
acabou. É divertido, só que agora prefiro momentos mais tranquilos, com
Amélia e Rorie.
Johan, por outro lado, estava no auge da energia – não neste
momento, já que está no banco ao lado, gemendo de dor – mas ontem
parecia um animador de torcida. Graças à sua ressaca, conseguimos pegar a
estrada só no início da tarde.
Meu celular esteve inútil desde o fim do jogo, quando a bateria
acabou. Achei que tivesse esquecido o carregador em casa, mas, por sorte,
estava aqui no carro. Ligo o cabo na bateria e espero.
Começam a pipocar notificações. Nenhuma de Amélia, o que me
deixa desconfortável. Nem um "boa noite"? É estranho não ouvir nada dela.
Há mensagens dos dois garçons do bar e do cozinheiro, além de algumas
mensagens de amigos distantes tentando puxar conversa. Algo aconteceu.
Meu coração acelera, com o sangue rugindo nos ouvidos. Ligo
para Amélia e cai direto na caixa de mensagens. Isso não é normal.
Discando seu número de novo, estaciono o carro na estrada.
— Que isso, cara?
— Vá para o volante. Preciso fazer algumas ligações.
— Ah, isso de novo não — reclama Johan. — Ontem, assim que a
primeira cerveja caiu, a única coisa que você falava era em voltar para a
Amé...
— É sério — falo com a voz tensa. — Dirija.
Trocamos de lugares. Ligo para Amélia mais três vezes e então
decido mudar de tática. Abrindo o aplicativo de mensagens de novo, leio
para ver se há alguma informação.
A mensagem de Derek, meu funcionário mais antigo, me envia
para um abismo:
Cara, sua ex-esposa apareceu aqui ontem. Tá sabendo disso?
Que?
Caralho.
Tremendo, disco o número de Paul. Falta uma hora para chegarmos
em New Castle, é tempo demais.
— Vince?
— Eu preciso que você ache a Amélia — falo rápido. Meu irmão
não questiona, tendo notado o desespero na minha voz.
— Onde?
— Em casa. É domingo, ela deve estar estudando.
— Você vai ficar na linha?
Paul sabe que sim, é exatamente o que ele faria se fosse com a
Cassie. Nós não moramos longe, apenas dois quarteirões de distância. Ouço
o carro ligando, e não demora cinco minutos até ele bater na porta.
A ansiedade me consome.
— Paul?
— Ela não está aqui — as palavras gelam minha espinha.
— Tente no quintal de trás, ela pode estar com Rorie e Bruce...
— Vince — paro de respirar por um momento. — Irmão, ela
realmente não está aqui.

Eu não acredito até chegar à minha casa.


Me recuso.
Paul é um idiota, ele não sabe o que está dizendo. Abro a porta e
desço antes que o carro efetivamente pare. A fachada da casa está como
sempre, e eu sei que estaria diferente se Amélia não estivesse.
Só há meu carro na garagem, mas isso não significa nada. Ela pode
ter saído com o seu próprio.
Giro a maçaneta com a respiração suspensa.
Há brinquedos de bebê na sala, e a cadeirinha ainda está na
cozinha, o que me permite respirar quase com alívio.
Dura muito pouco.
Ando pela casa, percebendo que as coisas que estão aqui são
especificamente as que comprei para Rorie. Nada do que ela trouxe.
Procuro, com o coração acelerado, qualquer coisa dela: roupas, perfumes,
cremes...
Porra.
Porra!
O desespero sobe pelo meu pescoço, minhas mãos tremem.
Johan passa pela porta.
— Você está bem, cara?
Não. Nem um pouco. Tento respirar direito, e é impossível.
Ela se foi.
A agonia começa a me dominar.
Desbloqueio meu telefone e percorro os contatos até chegar no
Levi. Ele atende no terceiro toque.
— Vince? E aí, o que pega?
Desligo. Sua voz é muito amigável, ele não sabe de nada. Além
disso, Amélia... ela não correria para um amigo.
Ela simplesmente correria.
42
AMÉLIA
Entorpecida até os ossos, olho para a porta do quarto da nossa nova
casa, onde os dois estão brincando, alheios a tudo.
Eu não vou devolver a porra do cachorro.
Assim que tomo essa decisão, pela milésima vez desde que o sol
nasceu, minha consciência insiste em me contradizer. Tenho que devolver.
Mesmo se colocasse uma cerca no quintal para impedir a saída para a rua e
instalasse uma passagem na porta da cozinha – duas coisas para as quais
não possuo dinheiro – eu ainda não saberia como fazer a logística de
passear com ele duas vezes ao dia. Também há as contas do veterinário,
enormes quantidades de ração...
Deus.
Estou com frio e meus dentes batem, mas a temperatura está
perfeita para o final do outono. Uma queda de pressão, talvez? Glicose? Ou
é só... tristeza?
Suspiro, enjoada. Nem sei por que me dou ao trabalho de fingir.
É assim que uma pessoa se sente quando arrancam fora seu
coração.
De novo.
Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo. Não é assim
que se diz?
Sento no sofá áspero, vou precisar colocar uma colcha se não
quiser que Rorie machuque a pele. Lembro que minha mãe costumava fazer
isso quando eu era pequena, nas vezes em que nos mudávamos no meio da
noite para qualquer lugar com mobília duvidosa. Foi assustador o quão
rápido consegui me virar ontem, é como se estivesse impresso nos meus
ossos.
Só que, ao invés de ser a criança confusa, sou a adulta arrependida
de uma decisão ruim.
Olho ao redor, engolindo o desgosto na boca. Pelo menos não é um
trailer. Mas não é muito além disso, também. Uma cozinha que não cabe
dois adultos, com fogão a gás e armários de metal com a tinta descascada.
Tem apenas um quarto, e o berço não coube lá, então está na sala.
Eu odeio.
Sou uma estúpida. Eu sabia que o outro apartamento estava abaixo
do preço, mas não imaginei que fosse tanto. New Castle tem um custo de
vida alto.
E vou embora daqui na primeira chance que aparecer.
Não conseguirei conviver com essas pessoas depois de tudo que
aconteceu. Por que ninguém disse nada? Foi divertido zombar pelas minhas
costas? O espetáculo do ano, aposto.
Uma outra Amélia faria isso com o queixo erguido e exalando
indiferença. Agora... Jesus, agora eu não quero ser forte. Quero desabar no
chão, à vista de todos.
Batem à porta de leve e, só de ouvir, sinto as lágrimas surgirem nos
meus olhos, mas as afasto. É ele.
Chegou a hora.
Eu não quero mesmo devolver o cachorro.
Com uma última respiração pesada, levanto do sofá e abro.
Vince está uma bagunça, com os olhos injetados e a blusa
amassada. O cabelo está em vinte direções diferentes. Sei que ele passa os
dedos na cabeça sempre que fica nervoso.
— Amélia.
Fecho os olhos. A voz dele transborda dor. Meu instinto,
construído por todo o tempo que passamos juntos, é abraçá-lo. Suprimo-o
imediatamente.
Uma esposa.
Vince tem uma esposa.
Ele nunca foi meu. A nossa história nem mesmo foi verdadeira.
Nada foi.
— Amélia — repete. — Por favor, me ouça.
— Você vai ficar com o Bruce — digo com a voz oca. — Eu não
posso. Não há espaço para ele aqui.
— Não...
Dou as costas e pego a coleira. Vou para o quarto buscar o cachorro
e Vince tem a audácia de entrar, ao invés de esperar lá fora. Eu o olho,
furiosa, mas ele está ocupado demais encarando as coisas ao redor com uma
expressão enjoada.
Minha vontade é arrancar a expressão no tapa.
— Vocês duas não podem ficar aqui. Volte para casa. Eu saio, eu...
— Vá se foder! — xingo. — Bruce! Venha cá!
O cachorro aparece na porta com as orelhas levantadas.
— Sinto muito — peço desculpas, com o coração partido. — Você
vai ter que ir com ele.
— Amy, por favor — as palavras saem rápidas, desesperadas. —
Não é o que você está pensando. Eu posso explicar.
Desgraçado.
Viro para ele.
— Você é casado?
— Não é tão simples — promete. — Juro, não é.
Ao meu ver, não poderia ser mais simples.
— É uma resposta de sim ou não. Então, de novo, você é casado?
— Você está entendendo errado, nós...
— Eu não quero saber das suas desculpas! Seja homem e responda.
Vince me olha com o rosto magoado. Ele esperava o quê? Calma?
Compreensão? Sério?
— Sim — admite com os olhos baixos.
Eu já sabia. Ouvir ele dizer em voz alta, no entanto... queima.
Machuca. Quebra. É incrível como o corpo humano consegue permanecer
de pé após se desfazer por dentro. Engulo os soluços e dou dois passos para
trás, precisando da maior distância possível.
— Por Deus, Amélia, é só um pedaço de papel. Não significa nada
— grunhe, atormentado. — Eu não via a Sarah desde...
Mentiroso.
Mentiroso e filho da puta. Manipulador.
— Nessa cidade minúscula, você me fez ser a mulher que dorme
com um homem casado? — pergunto com a voz alta. — Que seja isso que
vão falar para a minha filha quando ela estiver na escola? Que a mãe dela é
uma vadia?
É como se eu tivesse lhe dado um tapa. Seus olhos se arregalam,
em pânico, angústia. Raiva, até.
— Eu amo você — diz com emoção. — Amo vocês duas. Estava
esperando até tudo estar resolvido... — passa a mão na barba, perdido. —
Eu ia te contar, Amélia, mas não podia perder vocês. Não posso.
É como um déjà vu.
— Você queria que eu estivesse envolvida demais antes de me
contar — concluo, vazia. — Exatamente como ele fez.
Vince pisca, medo reluzindo em seus olhos.
Pois é.
— Amé...
— Seu estúpido! — empurro o peitoral. — Se essa tática
funcionasse, eu teria ficado com o pai da minha filha!
É minha forma de machucar de volta, e é eficaz. Vince se encolhe,
não movendo um músculo para impedir meus safanões.
— Não diga isso — pede baixinho. — Vocês são minha família.
Não posso ouvir. Torna tudo pior.
— Saia daqui.
— Por favor.
— Saia!
Os olhos de Vince, vermelhos, vão para algo atrás de mim.
— Ela está andando?
Viro, atônita, e encontro Rorie dando seus primeiros passos.
Ela está com as mãos estendidas em direção a ele.
Não. Meu Deus, não.
Abaixo e a pego no colo.
— Você precisa sair, Vince. — Aperto o corpinho, que se debate
para que eu a solte. Meu coração parte em milhões de pedaços por ela. É
tudo minha culpa. Eu fui idiota e a expus a essa confusão. Beijo sua testa
suada, me desculpando do fundo da alma.
— Amélia, não faça isso. Estou implorando — suplica.
— Vá embora.

VINCE
Os dias desaparecem em uma névoa de nada. O que ocorre dentro
de mim é o mesmo sentimento que se tem quando se está andando
tranquilamente e, de repente, escorrega, vendo o chão vindo na sua direção.
Mas, em vez de durar apenas um segundo, não passa.
Pânico o tempo todo.
Saudade angustiante.
Estaciono em frente à casa onde Amélia está morando com Rorie
mais uma vez. Todos os dias, como um ritual, venho aqui, na esperança de
que ela me deixe entrar. Fico olhando para a porta da frente, sempre
fechada. Preciso ter certeza de que ela está bem e que Rorie está segura.
Não consigo me afastar. Não posso.
No final da tarde do sétimo dia, vejo a patrulha se aproximando
pelo retrovisor. O carro para, e o policial bate na minha janela. Abaixo-a,
confuso.
— Vince? — chama com a voz cansada e desconfortável. — Você
não pode ficar aqui.
— O quê?
— Recebi algumas ligações — explica, suspirando.
— Amélia... chamou a polícia?
Em vez de me incomodar, algo parecido com esperança acende no
meu peito. Amélia falou com alguém. É a maior notícia que tive dela desde
aquela noite.
— Não ela. Vizinhos.
Oh.
Como se eu fosse um perseguidor ou algo assim?
— Danny, você me conhece. Todo mundo me conhece.
— O que você está fazendo aqui, Vince?
A forma como ele pergunta não é um questionamento policial, é
como se ele perguntasse o que estou fazendo da vida.
— Eu... — As palavras morrem na minha garganta. — Eu só quero
ter certeza de que elas estão bem.
O policial me observa por um longo tempo, fazendo um silêncio
insuportável.
— Todos nós sabemos o que aconteceu, rapaz. A cidade inteira
sabe. Você não pode ficar aqui.
— Mas…
— Eu sei que você nunca machucaria uma mulher fisicamente —
suspira. — Só que você está machucando ela mesmo assim.
As palavras são um tapa na cara.
Meus olhos ardem, e eu viro o rosto, tentando esconder a vergonha.
— Amélia é uma mulher decente, só quer criar a filha dela em paz.
— Ele faz uma pausa, deixando as palavras pesarem no ar. — Dê isso a ela,
pelo menos.
A dor no meu peito se intensifica, e o que restava do meu coração é
esmagado. Ele está certo. Lembro da expressão dela, profundamente
magoada. Amélia me olhou como se não me conhecesse e, pior de tudo,
como se estivesse tentando proteger Rorie de mim.
Porra...
Porra!
Eu estraguei tudo. Não as mereço. A última coisa que Amélia
precisa agora é da minha presença atormentando sua vida.
Engulo em seco, tentando dissipar o nó na garganta.
— Não se preocupe — garanto, minha voz rouca e trêmula. —
Estou saindo.
Sem mais uma palavra, o policial se afasta. Sentindo a culpa me
sufocar, aperto o volante e vou embora.
JANEIRO
FEVEREIRO
MARÇO
43
AMÉLIA
— Obrigada pela paciência nas últimas semanas. Sei que tem sido
um período difícil.
É, esse seria o eufemismo do século.
Sentada no consultório do Dr. Charles, lugar onde tenho aparecido
com uma frequência incrível, espero a notícia.
Vamos lá. Só mais essa.
— Rorie tem uma audição parcial, cerca de sessenta por cento no
ouvido esquerdo e quarenta e cinco no direito. Infelizmente, a perda
auditiva é gradual, e é provável que ela perca completamente em alguns
anos.
Certo, eu estava esperando por isso. Concordo, incapaz de
encontrar palavras. A consciência corporal de que Rorie está nos meus
braços intensifica, e acaricio seus cabelos macios. São finos e dourados,
com reflexos de bronze.
— Temos tratamentos e dispositivos que podem ajudar.
Precisaremos ajustar aparelhos auditivos para maximizar a audição que ela
ainda tem e preparar para o que está por vir. — Ele faz uma pausa. —
Também podemos considerar a terapia de fala e, eventualmente, implantes
cocleares, dependendo de como progredir.
Acompanho o que ele está dizendo, mas me sinto entorpecida.
Parece distante e irreal e, ao mesmo tempo, extremamente doloroso.
— Você sabe, se precisar falar com alguém… — Meu olhar o cala.
Sério?
Três meses atrás, entrar aqui foi uma das coisas mais degradantes
da minha situação atual, porque Charles simplesmente é o cunhado de
Vince. Irmão de Sarah. A sensação de que o homem que cuida da minha
filha passou meses sabendo que eu estava transando com o marido da irmã
é indescritível.
Charles foi gentil e muito profissional quando perguntei se ele
gostaria de desistir de ter Rorie como paciente – o que o ofendeu. Não fosse
vergonhoso o suficiente, ele confessou que, a princípio, não tinha certeza se
eu sabia ou não e mesmo assim continuou trabalhando, então não faria
sentido parar agora.
Essa honestidade me deixou mais segura em relação ao seu
trabalho, mas também tornou aquele dia um dos mais desumanizantes da
minha vida. E olha que tive muitos desses.
— Obrigada — agradeço com a voz dura, minha mente se
apegando à lógica. — Qual é o plano? Quando começamos?
— Se não quiser conversar comigo, o que eu entendo
completamente, temos uma psicóloga na clínica para pais…
— Eu sou psicóloga — grunho. — Não preciso de terapia para
aceitar minha filha.
— Então você sabe que deveria conversar com alguém.
— Qual é o plano? — insisto. Charles suspira, passando a mão na
barba.
— Shelby Marshal é uma fonoaudióloga infantil. Acredito que ela
irá recomendar atendimentos para Rorie duas vezes por semana. Faça a
primeira consulta e vocês irão ajeitar como funcionará. — Ele pega um
cartão e me passa. — Nós iremos nos ver mensalmente para verificar o
progresso de Rorie, com ou sem aparelho auditivo. Caso opte por ele,
vamos tirar um molde para fazer um tamanho adaptado.
— Eu nunca vi um bebê usando aparelho. Vai machucar? Tem
efeitos colaterais?
— É mais comum do que parece — responde, paciente. — Pode
ser um incômodo no início e é provável que levemos algumas tentativas até
acertar o ideal. Irritação na pele é esperada, passarei uma pomada para
vocês usarem. Ela é muito sensível sensorialmente?
A imagem daqueles fones de ouvido que usava quando era
pequenininha me atinge. Não tive coragem de jogar fora, como fiz com
tudo que remetesse a Vince.
— Não, acho que não.
Deus, não parece ser o suficiente. Preciso de mais informações.
O médico vê o desespero nos meus olhos.
— Tire uma semana para pensar a respeito. Pesquise, volte com
perguntas. O modelo que pretendo usar é o BTE. Há muitas informações
boas que você pode encontrar online, fóruns de pais com depoimentos…
não tenha pressa.
Ele está sendo muito mais gentil do que eu mereço.
— Obrigada, Charles. Farei isso.

Rorie acorda emburrada assim que entramos no carro. Demorou


muito tempo para que ela voltasse ao normal depois que Vince e Bruce
foram embora, sei que suas noites insones, a recusa em se alimentar e os
choros frequentes eram por saudades. Eu não estava muito melhor.
Ainda não estou.
Abro a porta de casa, acostumada com o ambiente pequeno. É
difícil encontrar um lugar para morar que eu consiga pagar sem ser
exatamente como esse. Além disso, apesar de o seguro de saúde estar sendo
incrível com as despesas, pagar a babá e gasolina para terminar o semestre
na universidade faz diferença no meu orçamento. Os dias que precisei tirar
do serviço para levá-la a consultas também. Agora, ainda há a
fonoaudióloga. Ficaremos aqui por mais tempo do que o planejado.
A menos que algum dos lugares para os quais me candidatei para
trabalhar responda, aí será adeus New Castle – para nunca mais voltar.
Estou exausta. Meu corpo chora por descanso, mas não consigo
desligar a mente. Rorie, por outro lado, decide vagar pela sala com seu
andar engraçado de bebê. Ela é feliz? Voltou a se alimentar direito depois de
um mês, quando Levi veio aqui e passou uma semana entre o Natal e o Ano
Novo. O choro ficou por mais tempo, tinha dias em que nós duas
simplesmente sentávamos no sofá e chorávamos por horas e horas. Agora,
ela é… cautelosa, se é que isso faz sentido. Sem a confiança excessiva que
os bebês às vezes têm.
Uma Reid, verdadeiramente.
A campainha toca e vou atender. Sei quem é, só uma pessoa vem
me visitar.
— Olá! Veja, eu trouxe isso. — Emily levanta o braço, onde há
uma garrafa de vinho. — E isso. — No outro braço, uma caixa de pizza
congelada.
— Entre — digo, com um sorriso fraco. Confesso que, quando
começou a vir aqui, ficava desconfortável, mas ela insistiu até que eu me
acostumasse. É bom ter alguém para conversar.
— Cadê minha pequenini… oh, aí está você! Como está a
cachinhos dourados hoje?
A resposta de Rorie é estender os braços e aceitar carinho por
exatos trinta segundos, antes de querer voltar para o chão e continuar o que
estava fazendo – espalhando os brinquedos.
Colocamos a pizza no forno e nos acomodamos na sala. Emily fica
com o sofá e eu com o chão, afinal de contas, por que não?
— Como foi a consulta?
Eu viro a primeira taça e encho a segunda antes de lhe contar. Seus
olhos vão arregalando, preocupados, de acordo com as notícias.
— Merda. Sinto muito.
— É — concordo.
— Você está bem?
Estou no chão bebendo vinho barato, então não exatamente.
— Sim, eu estava preparada.
É uma mentira e nós duas sabemos. Ninguém está preparado para
uma coisa dessas.
— Bem, então vamos pesquisar! — Tenta soar animada, mas seus
olhos estão cheios de pena. Ela se levanta e vai para a mesa, onde meu
notebook está. Assim que se ajeita, pergunta, confusa. — Você está indo
embora?
Meus currículos estão abertos. Droga.
— Talvez. — Dou de ombros. — Morar perto da universidade não
seria má ideia.
O rosto de Emily fica sério, algo pouco comum para sua
personalidade de grilo falante.
— Quer mesmo sair daqui?
— Não é isso… é só que Denver tem mais oportunidades.
— Amélia, você começou a estudar para ser assistente social aqui.
— Eu sei, mas veja bem, Rorie vai precisar de tratamento. É uma
cidade maior, certamente com mais opções. Criar ela lá não seria ruim,
sabe?
— Não é verdade. Você tem uma fonoaudióloga que te vê no
mercado e sabe quem são os professores dela. O médico se preocupa, os
vizinhos se preocupam… uma comunidade. Rorie não terá pessoas mais
preocupadas com ela do que em New Castle.
— Mas essa casa…
— É pequena, mas não é perigosa — aponta. — Você tem
adolescentes maconheiros vagabundeando pela rua, e o vizinho parece não
saber onde colocar o lixo, mas ninguém nunca irá machucar vocês,
entende? Podem caminhar às duas da manhã com o celular na mão, o
máximo que vai acontecer é ser cumprimentada por um bêbado.
Suspiro, fechando os olhos para conter as emoções. Emily está
certa. Eu sei dessas coisas. Só que New Castle machuca. Desde o episódio
com aquela desgraçada loira e seu marido mais desgraçado ainda, estou
louca para fugir.
Era a última semana antes do recesso de Natal e, na segunda-feira,
quando saia para ir trabalhar, congelei, com o estômago doendo. Pensar em
todas as pessoas me olhando doía fisicamente. Mas aí minha chefe mandou
uma mensagem dizendo para tirar a semana de folga, fez isso sem que eu
precisasse dizer nada. Sua consideração me tocou.
Então, vieram os outros gestos de solidariedade. O rapaz estranho
do mercado ajuda com minhas compras porque é difícil fazer com a bebê.
Molly, fora do horário de babá, e Emily aparecem aqui aleatoriamente para
brincar com Rorie – acontece quando preciso estudar. O Sr. Carl, do outro
lado da rua, me viu sofrendo com o cortador de grama e, quando cheguei
em casa no outro dia, estava tudo aparado.
Pensei que seria altamente desprezada, já que New Castle é meio
conservadora, mas estava enganada. No geral, foram muito gentis.
— Amélia — Emily começa, hesitando por um momento. — Você
está pensando em se mudar por causa de Vince?
Viro para baixo, fugindo de seus olhos. Não suficiente, levanto
para checar a pizza e ficar de costas.
— Não, Vince é só um cara.
Repito essas palavras sempre, ansiosa para o dia em que se
tornarão verdade. Tenho que parar de sentir em algum momento, certo?
Ninguém morre por coração partido.
Mas se alguém pudesse, seria eu. Caramba, sinto sua falta o tempo
inteiro – estou infeliz o tempo inteiro. Deprimida e vazia.
Descartável.
Ele veio aqui por sete dias. Ficou com o carro estacionado lá fora,
vigiando a casa, mas nunca bateu na porta. Depois… sumiu. Não o vi em
lugar nenhum. Cassie, exclusivamente, é quem busca Justin quando tem
sessões comigo no fim da aula. Quando encontro Johan, ele sempre
cumprimenta e pergunta como estou, mesmo que eu tenha ignorado nas
primeiras vezes.
Nada de Vince.
Como se nunca tivéssemos nos conhecido.
É tão fácil para ele assim fingir que eu não existo?
44
VINCE
— Você não quer ficar um pouco? — minha cunhada pergunta
quando deixo um Justin todo sujo de grama e terra em sua sala de estar com
tapetes brancos. Estávamos em um treino.
— Não, obrigado. Tenho de ir para casa.
Ela me dá um sorriso triste.
Sei que não tenho nada para fazer lá. Só levar o cachorro que me
odeia para dar uma volta. Depois outra, mesmo que não precise, porque não
ter nada para fazer à noite é uma tortura.
— Tem certeza... — Ela faz uma careta e soluça, levando a mão à
boca. — Desculpe — e sai apressada até o banheiro de visitas.
Que porra?
Vou atrás, preocupado.
Fico na porta, acho que meu irmão me mataria se eu seguisse a
mulher dele até o banheiro.
Até ouvir barulhos de vômito.
Foda-se.
— Estou entrando — aviso.
— É nojento — geme. — Não precisa, eu...
— Trabalho em um bar, mulher — quase digo que Rorie já
vomitou em mim um monte de vezes, mas suprimo, com aquela dor de
morte que sinto todas as vezes que penso em uma das duas.
Ligo a torneira e molho uma toalha, esperando ela colocar todo o
conteúdo do estômago para fora.
— Jesus, Cass — digo quando termina. — Comeu alguma coisa
estragada?
— Não, é só... — dá de ombros, limpando o rosto, vermelha de
vergonha.
Com muita pena, o que quer dizer...
— Vocês vão ter um bebê? — pergunto, surpreso.
— Sim — morde o lábio.
Minha nossa.
— Parabéns! — A puxo para um abraço, com o coração estranho.
Outro carinha? São ótimas notícias. Sempre me perguntei por que
estavam demorando tanto para me dar outro sobrinho.
— Obrigada — sorri, tímida.
Sua expressão corporal retraída entrega que não está lá muito
confortável em me dar a notícia. Honestamente, meu estômago começa a
doer de ansiedade também.
Por mais que eu esteja feliz por eles – e estou – vai ser difícil
assistir Paul e Cassie terem um bebê quando eu perdi o meu.
De repente, sinto uma necessidade enorme de ir embora.
— Vou ligar para o Paul — digo, pegando o telefone. — Não posso
te deixar nesse estado.
— É só um enjoo — prostesta.
— Mesmo assim — disco o número, mas Cassie impede.
— Ele vai ficar preocupado à toa, e você não precisa ir. Podemos...
hum... conversar.
— Cassie.
— Vince.
Suspiro, passando a mão pelo rosto.
— Não há o que conversar. Você está grávida, e eu estou muito
feliz por vocês.
— Sei que está — balança a cabeça. — Mas...
Não discuta com uma grávida – isso é tipo uma regra universal.
Além do mais, sou um filho da puta por estar fazendo ela se sentir culpada
quando deveria estar, sei lá, radiante.
— Tudo bem.
Sentamos na cozinha. Ela está terminando de fazer algo que cheira
muito bem. Justin aparece e rouba um pouco de comida antes de voltar para
o quarto. Estão esperando Paul chegar. O desgraçado é muito sortudo.
Ou só um homem melhor.
— Eu vi Sarah — Cassie finalmente diz.
— Sinto muito — digo, inexpressivo.
Depois da merda que fez aparecendo lá no bar, minha futura ex-
esposa decidiu não me abordar em público. Brigamos pelo telefone, e eu
esperei que ela entendesse que eu não queria vê-la nem pintada de ouro.
Então, a infeliz adotou uma nova tática: embaraçar o divórcio. Não temos
acordo pré-nupcial, e eu cheguei a propor que ela ficasse com o
apartamento onde vivíamos e setenta por cento de toda a minha conta
bancária, mas não foi o suficiente.
Eu não ligo para o dinheiro exatamente, mas quero ter o bastante
para comprar a casa. Tipo, lá é... bom, é o lugar onde eu e Amélia criamos
Rorie, e não tem a menor chance de eu abrir mão dela. O plano sempre foi
comprá-la assim que o divórcio saísse.
E não, não vou aceitar dinheiro dos meus pais ou – Deus me livre –
daquela megera da minha avó.
— Vince? — chama minha atenção.
Droga, perdi o que estava dizendo.
— Hum?
— Eu disse que vamos contar para seus pais na terça-feira —
repete. — Sobre o bebê.
— Ah, sim. Eles vão ficar felizes.
— Não quer aparecer por lá?
Porra, não.
Eu não suportaria. Meu contato com os Warren está limitado a
Justin e Cassie.
— Vou estar ocupado.

O bar está agitado, como sempre acontece nas tardes de sexta-feira.


O som das conversas e da música preenche o ambiente, uma distração
imprestável para a mente. O celular vibra no meu bolso.
— Vincent Warren?
Nome inteiro. Faço careta. Nunca é um bom sinal.
— Sou eu.
— Boa tarde, Sr. Warren. Aqui é Sandra, da seguradora de saúde.
Estou ligando a respeito da permissão para realizar um procedimento em
Rowan Reid.
Meu coração para. Rorie.
— Procedimento? Do que se trata? — Minha voz sai alta, atraindo
olhares dos clientes.
— Hum… está registrado como a configuração de aparelho
auditivo retroauricular infantil. Você está sabendo a respeito?
O pânico toma meu corpo.
— Retro… o quê?
Meu Deus. A mulher repete e fala outras coisas, mas não entendo
porra nenhuma. Rorie está doente de novo? Jesus Cristo, acho que vou
vomitar.
Ela não, caralho.
— Sr. Warren, você está aí? Eu posso ligar depois.
— Não! Dê a permissão. Tudo o que for necessário.
— É um procedimento de alto custo, vamos precisar da sua
assinatura.
Porra.
— Onde?
— Temos um escritório em Denver, e o horário pode ser agendado
para a próxima semana.
— Próxima semana? Para uma emergência médica?
— Senhor, não se trata de uma emergência — gagueja. — Quarta-
feira está bem?
— Mande uma mensagem com o horário e o endereço. — Desligo.
Minha cabeça começa a latejar.
— Derek, você pode assumir o balcão? Tenho que sair.
— Claro — ele me olha estranho. — Tudo bem?
— Não sei — murmuro, pegando minhas chaves e a jaqueta.
A viagem até o bairro delas é um borrão, minha cabeça cria
cenários terríveis.
Eu entendi que estraguei tudo. Sozinho. A única coisa que podia
fazer por Amélia, especialmente com o inferno que Sarah começou a criar
na minha vida, era dar sossego. Fui um covarde, e por isso perdi minha
família. É algo com que tenho de conviver e aceito porque mereço. Mas não
saber o que está acontecendo com elas? É mais, até para um desgraçado
como eu.
Tenho vivido em um aspiral de culpa, transitando entre me sentir
miserável e infeliz. É como se não fosse mais uma pessoa funcional,
acordar e ter de fazer minhas coisas dói. Nunca fui um sujeito solitário, mas
agora? Não sou o mesmo de antes. A vida sem Amélia é devastadora.
Olho para os lados, engolindo bile quando bato na porta. Não
deveriam estar aqui. Não tem um balanço, e Rorie adora balanços.
— Emily, você… — Amélia abre a porta com a filha nos braços.
Seus olhos se arregalam e ela tenta fechar, mas impeço com o pé.
É a primeira vez que a vejo em meses, e o tempo para.
Deus, a beleza de Amélia me afoga. É trágica, porque há, nos
traços felinos, uma tristeza resignada, daquelas de pessoas que já viram
demais na vida. Olheiras fundas denunciam que não tem dormido, e o corpo
está mais magro do que me lembro. A criança adormecida… Jesus, uma
criança crescida.
— Ela tem cabelo agora — murmuro.
O caroço que me sobe na garganta é tão grande que acho que não
vou suportar. Por que está dormindo? Não é a hora da soneca. É porque está
doente?
O pânico toma conta de mim e meu peito é esmagado pelo medo.
Meu campo de visão se estreita e, de repente, o coração bate de forma
irregular. Tento respirar, mas o ar não entra.
— Vince, você está bem? — A voz de Amélia é abafada, como se
estivesse embaixo d'água. — Vem, vamos para dentro.
Ela tomba Rorie em um ombro e usa o braço livre para me puxar.
Quando conseguimos entrar, sento em um sofá pequeno. Minha mente está
descontrolada, medo e arrependimento fervendo. Sinto falta de Amélia, a
saudade é insuportável.
Éramos tão felizes.
— Vou colocar Rorie na cama — diz lentamente, mas meu temor
aumenta ainda mais.
— Não! Não a deixe. Ela está bem? Por favor, me diga que ela está
bem.
Amélia me observa com o rosto confuso e preocupado.
— Vince, Rorie está bem — garante. — Está dormindo. Vou
colocá-la na cama e volto logo.
Ela se afasta, carregando Rorie com cuidado, e me sinto
abandonado. Quando Amélia retorna, minha respiração está errática e a
sensação de sufocamento é incapacitante.
— Acho que estou tendo um infarto.
— Você está tendo um ataque de pânico. Respire devagar, eu vou
pegar um copo d'água.
— Não vá — murmuro com a cabeça baixa.
Amélia não se afasta, fica em pé, ao meu lado, em silêncio. A ouço
suspirando enquanto aguarda para ver se vou morrer ou não.
Não falamos nada. Sei que está se perguntando o que estou fazendo
aqui e desejando muito me expulsar. Quando consigo ar o suficiente para
falar, busco seus olhos.
— O seguro de saúde ligou.
O rosto dela fecha imediatamente.
— Por quê?
— Ainda sou o contato de emergência — digo uma meia verdade,
me arrependendo assim que as palavras saem. Foi isso que nos levou a essa
confusão. — Alguns meses atrás, coloquei você e Rorie no meu seguro —
confesso.
— Droga, Vince — reclama e se dá um tapa na testa. — É claro.
Eu devia ter estranhado por estarem cobrindo tudo. Quanto te devo?
— Nada.
— Nós não… — as palavras morrem.
Me levanto, agora consigo firmar os passos. Seus olhos estão tão
tristes.
— Meu amor…
— Não me chame assim — corta. — Você não tem permissão para
me chamar assim.
Ela sempre será o meu amor.
— Nunca tivemos a chance de conversar — lamento. Se pelo
menos eu pudesse me desculpar de forma apropriada...
— Não quero conversar. Você melhorou? Vá embora antes que
Rorie acorde.
Ah.
— Ela também me odeia?
— Não é isso, Vince — suspira, passando as mãos pelo rosto. —
Ela não entende. Sua vida já está passando por muitas mudanças, ela não
precisa ficar confusa com o cara que agia como seu pai sumindo e
aparecendo, só para sumir de novo.
Cada palavra é uma faca nas minhas entranhas, machucando
profundamente. Sinto-me como se estivesse apanhando e, porra, Amélia dá
golpes certeiros. Respiro fundo, tentando me recompor.
— O que você quer dizer com Rorie passando por mudanças?
Amélia morde os lábios, incerta.
Caramba, eu tenho que saber.
— Amélia?
— Ela está perdendo a audição.
Ah, porra.
Amélia lidando com tudo isso sozinha? Cristo.
— Me diga o que posso fazer por vocês. Nós vamos passar por isso
jun…
— Por favor, Vince. Só vá.
Há lágrimas não derramadas em seus olhos. Elas me matam,
principalmente porque sou responsável por colocá-las ali. Amélia, tão
orgulhosa e centrada, chorando. Concordo e vou para a porta, rezando
internamente para que me peça para ficar.
— Temos que ir a Denver na quarta-feira para resolver as coisas do
plano.
AMÉLIA
Assinto lentamente. Sou a pessoa mais azarada do mundo. Vince
pagando o plano de saúde... Eu nunca aceitaria ajuda, mas estamos falando
de Rorie. O que eu não faria por ela? Por aquela menina, eu roubaria,
mataria e começaria guerras.
— Tudo bem — murmuro, apenas para que vá embora logo.
O cheiro dele está me perturbando. É ainda melhor do que eu me
lembrava, mas o resto não. Ele parece ter passado pelo inferno e voltado,
até as roupas estão amassadas.
— Hum… você me bloqueou no seu telefone.
Como ele sabe? Eu o bloqueei muito tempo depois que ele parou
de ligar, e foi um dos piores dias. Eu tinha sonhado com a gente, um
daqueles flashes tão mundanos que sonhamos logo antes de acordar.
Pareceu tão real que, por um segundo, quando despertei, achei que era
verdade.
A dor voltou com tudo quando recobrei os sentidos e vi que não
era.
Vince estende a mão e roça a minha bochecha, e só então percebo
que lágrimas escorrem dos meus olhos.
Patética. Passei anos sem derramar uma lágrima. E aqui estou,
chorando por causa de um homem.
— Amélia.
Eu o empurro.
Ele deixa.
Fecho a porta, e os olhos azuis marejados são a última coisa que
vejo.
45
AMÉLIA
Algumas pessoas têm dignidade.
Outras são como eu, e se envolvem com homens casados na
esperança de conseguir favores em troca.
Aposto que minha mãe estaria muito orgulhosa.
Saio do serviço mais cedo, antes do almoço. Minha chefe tem sido
muito compreensiva com o tempo que preciso para cuidar de Rorie. Hoje,
vou com Vince resolver os papéis do seguro de saúde.
Aliso meu vestido com as mãos nervosas e sinto um impulso de
retocar o batom, mas logo desisto, me sentindo um lixo. Não vou me
arrumar para ele. A esposa é linda, sempre muito bem vestida, e, pelo que
vi, deve vir de uma família rica. Tem um irmão médico, pelo amor de Deus,
provavelmente os pais são do mesmo nível que os de Vince.
Bato o pé na calçada, roendo a unha, um tique nervoso que adquiri.
Impaciente, pego meu telefone e reviso as mensagens novamente.
Desbloqueei Vince há algumas noites, e ele notou imediatamente. Mandou
um meme pouquíssimo engraçado, e eu respondi com um emoji horas
depois. Parece que isso abriu espaço para mensagens de bom dia, boa noite
e boa tarde. Quem manda boa tarde? Bloqueei de novo, e só voltei a
receber mensagens hoje de manhã, quando o desbloqueei outra vez para
combinar a viagem para Denver.
Vamos no mesmo carro, duas horas de ida e duas de volta.
Caramba, odeio ser pobre. Sei que é uma idiotice, mas faz diferença no meu
orçamento. Entre a babá e a gasolina, cada viagem para Denver não custa
menos de cem dólares, e eu já preciso ir para a universidade quase toda
semana. Esse valor pode não ser muito para a maioria das pessoas, mas para
mim, pode significar não conseguir comprar frutas para minha filha no final
do mês. Não posso me dar ao luxo de ser exigente. Além disso, já estou me
humilhando, então o que é um pouco mais de desconforto?
O Audi preto para na calçada, e eu entro antes que mude de ideia.
Não olho para ele, apenas me acomodo e afivelo o cinto. De relance, vejo
que a cadeirinha infantil ainda está no banco de trás, intocada.
Não sei como me sinto em relação a isso. Aliviada? Aborrecida?
Destroçada?
— Ei — cumprimenta, me fazendo virar em sua direção.
Ele levanta os óculos escuros, e seus olhos, gentis e hesitantes,
encontram os meus.
— Olá — murmuro, sem graça.
Não tenho ideia do que dizer. É muito cedo para perguntar se a
esposa sabe que ele está dando carona para a amante? Talvez seja melhor
esperar até o fim da viagem para não pesar o clima.
— Não fique nervosa — diz, dando partida no carro. — Vai dar
tudo certo.
Não conversamos por uma hora inteira. Começo a murmurar a
música que toca no rádio, e, sem dizer uma palavra, Vince muda para minha
estação preferida, que sei que ele odeia.
Quando entramos na cidade, decide falar um pouco.
— Como Rorie está lidando com tudo isso?
Franzo as sobrancelhas. Rorie? Ele acha que ela fez vinte e cinco
anos durante esses três meses?
— Ela não entende o que está acontecendo. Para ela, é… normal.
Deve ter começado quando era muito pequena.
— Logo depois da meningite?
— É — confirmo. — Ela está bem.
Vince faz um som pensativo com os lábios.
— Aprendeu novas palavras?
— Não. Pode ser que ela acabe sendo não verbal, ainda não
sabemos.
— Não verbal? — Sua voz demonstra surpresa. — Ela disse
“mamãe”.
Olho para baixo, triste.
— Não ultimamente — sussurro.
Na psicologia, estudamos que as reações humanas raramente têm
uma causa única, e é difícil identificar um fator determinante. Rorie tem
audição parcial, então talvez tenha parado de falar por não ouvir bem o que
acontece ao seu redor, ou a si mesma…
Mas crianças dessa idade podem regredir quando sofrem um
trauma, como ter a vida revirada de repente.
— Sinto muito — diz, com uma tristeza genuína. — Mais do que
eu posso expressar.
— Como está Bruce? — pergunto, querendo mudar de assunto.
Adoro aquele cachorro. Uma vez, depois de algumas garrafas de
vinho com Emily, planejamos roubar Bruce da casa de Vince. Nunca
faríamos isso, claro, mas foi divertido fingir que sim.
Uma sombra de sorriso passa pelo rosto de Vince.
— Ele me odeia.
— Odiar é uma palavra forte — aponto, me sentindo um pouco
feliz com isso. Então, me sinto culpada por Bruce ter que viver com alguém
que ele não gosta.
— É? Olhe isso. — Mostra o antebraço, que tem uma cicatriz de
cerca de dez centímetros.
É uma mordida feia.
— O que você fez com o pobre cachorro? — pergunto,
preocupada. Agora, o sorriso de Vince é grande e nostálgico. — Por que
está rindo?
— Quando ele me mordeu, imaginei como seria contar isso a você.
Eu tinha certeza de que ficaria do lado dele.
Abro a boca, surpresa.
— O cachorro é bonzinho! — defendo.
Ao contrário de você, traíra.
— Claro — bufa.
— Sério, não pode ter sido sem motivo.
O sorriso de Vince desaparece, e ele se concentra na estrada.
— Ele encontrou o cachorrinho de pelúcia da Rorie — fala com a
voz grossa. — Tentei pegar de volta, não queria que estragasse.
Oh.
Não consegui encontrar ele quando saí de lá. Foi uma sorte que,
depois que Bruce entrou em nossas vidas, Rorie desapegou um pouco.
Comprei um semelhante, mas ela não tem mais um brinquedo preferido.
Pensando bem, isso é bem triste.
Os dois brigaram pelo brinquedo dela?
Engulo meus sentimentos.
— Quem ficou com ele no fim das contas?
— O cachorro — responde Vince, apertando o volante. — Mas ele
nunca o mordeu.

VINCE
Não demoramos a chegar ao prédio.
Graças a Deus, achei que Amélia fosse pular para fora do carro
depois que contei sobre a mordida. Ela está arrependida de ter vindo
comigo, aposto. Eu devia ter ficado calado.
Estaciono o carro e desligo o motor, virando para o lado quando ela
não se move. Pelo vidro, vejo seu reflexo, olhando para a janela. Está tão
perdida quanto eu, e isso parte meu coração.
— Chegamos.
Amélia se assusta com minha voz, saindo de um devaneio
profundo. Apenas assente, sem me olhar, e abre a porta para sair. Enquanto
entramos no edifício, me obrigo a fazer duas coisas: primeiro, a não tentar
pegar a mão incerta dela, mesmo que eu queira muito. Segundo, fingir que
não estou morrendo de preocupação.
Um de nós precisa ficar firme, e meio que é meu trabalho.
Não precisamos aguardar na recepção, assim que nos
apresentamos, somos encaminhados para uma sala onde há um cara de
terno para nos atender.
— Sr. Warren, é um prazer recebê-lo — estende a mão e sorri para
Amélia, que segura uma pasta enorme de papéis. — Sra. Warren.
Merda.
— Srta. Reid — corrige, e tenho vontade de socar o idiota. Ele
limpa a garganta, desconfortável, e uma ruga surge entre as sobrancelhas
franzidas.
— Certo, eu só preciso checar algumas informações — fala com a
voz um pouco trêmula. — Poderiam me passar os documentos, por favor?
Entregamos nossas identidades, e Amélia revira um monte de
papéis até achar a certidão de nascimento de Rorie.
O homem confirma as informações duas vezes antes de falar.
— Vocês não são casados um com o outro.
Sério, porra?
— Não — ela responde. Parece ficar envergonhada, porque olha
para baixo, encolhendo-se.
— Isso é mesmo necessário?
— Bem, eu temo que tenha ocorrido um erro — diz com a voz
cuidadosa. — O senhor não está registrado como pai de Rowan e não
possui a guarda da criança, suponho. Vocês não são casados, então ela não
pode ser incluída no plano de saúde. Nenhuma das duas pode.
O quê?
— Elas já estão incluídas — rosno. — Temos usado o plano para
exames e consultas há meses!
— Como disse, foi um erro. Ela nunca deveria ter sido aprovada —
pausa, fazendo careta. — Os serviços já utilizados podem ser contestados
pela seguradora, e as futuras despesas não serão cobertas.
— Isso é ridículo! Ela é minha… quer dizer, cuidamos dela juntos.
O homem balança a cabeça, desconfortável com a situação.
— Infelizmente, o plano não permite incluir dependentes que não
sejam filhos biológicos ou adotados oficialmente. Ou cônjuges.
Meu estômago revira, e Amélia, que estava paralisada até então,
pergunta com a voz baixa:
— Quanto seria se eu tivesse de pagar pelo tratamento sem o
seguro?
Ela usa o singular, mas nem ligo. Estou furioso demais para me
sentir ultrajado.
Ele volta a mexer no computador, digitando coisas até levantar o
rosto com uma expressão grave.
— Para os dois ouvidos, o custo pode ultrapassar cento e cinquenta
mil dólares, considerando o aparelho, as cirurgias e os eventuais ajustes.
— Isso é três vezes minha renda anual — Amélia diz para si
mesma, perplexa, e se levanta da cadeira.
Porra, ela não precisa de mais preocupações. Quero tirar a
expressão triste de seus olhos, garantir que vai ficar tudo bem.
— Há algumas alternativas. Uma delas seria tentar inscrever
Rowan em um programa de assistência governamental. Esses processos
podem ser demorados e não há garantia de que cobrirão todos os custos,
mas vale a pena tentar. — Nós três sabemos que é mais fácil chover cacos
de vidro antes disso acontecer. — Outra opção seria vocês se casarem e,
com isso, ela poderia ser incluída como dependente no plano familiar.
Certo, vou matar esse verme.
— Obrigada — Amélia agradece, amarga, e sai em direção à porta.
Vou atrás dela, sabendo que meu rosto é a última coisa que ela quer ver.
— Amél…
— Vou ligar para o convênio da escola — explica, virando as
costas.
Certo, faz sentido.
Quando ela sai para verificar essa possibilidade, questiono o
homem se não consigo fazer um seguro para as duas separadamente ou algo
assim, e ele responde que, dadas as circunstâncias, dificilmente alguma
seguradora aceitaria fechar contratos independentes só para pagarem o
tratamento de Rorie logo na sequência.
Qual é o problema dessas empresas?
Saio, dando a ele um olhar nervoso. Encontrar Amélia é fácil, só
preciso seguir os gritos. Observo ela indo da fúria à resignação, até desligar
o telefone com um aperto forte. É perceptível que resiste à vontade de jogá-
lo no chão.
E é simplesmente impossível para mim ficar parado e não ir
confortá-la, prometendo que vou cuidar de tudo.
46
AMÉLIA
Quando desligo o telefone, o sentimento é mais do que impotência:
é mágoa. Eu tenho um emprego fixo, nunca fiz mal a ninguém, e minha
filha é tão preciosa quanto qualquer outra criança com melhores condições
financeiras. Não ter direito a tratamento médico quando está doente? Quão
cruel isso é?
Minha garganta começa a se fechar, pensamentos de revolta me
tirando a razão. Estou a ponto de surtar quando Vince se aproxima, mãos
estendidas em minha direção para me envolver em um abraço.
Eu amo seus braços em volta de mim.
Eu quero.
Mas uma voz na minha cabeça grita para que eu me afaste.
— Preciso de carboidratos — digo de forma abrupta, dando um
passo para trás. Sua expressão muda de preocupação para confusão, mas ele
não hesita.
— Há uma lanchonete no fim da rua — sugere, e concordo.
Vince me conduz até o pequeno fast food com cheiro de frituras e
pede dois combos de hambúrgueres com milkshake. Ambos no tamanho
grande.
Sentados em um banco de praça, devoro a comida sem sentir o
gosto de nada. Ele me encara, estranhando.
— Ansiedade. É isso ou vinho, e não posso chegar em casa bêbada.
Ele assente e não fala mais nada enquanto terminamos a refeição.
Estou feliz com o silêncio, mas sei que ele quer dizer algo. Depois de
alguns minutos, não suporta mais ficar calado.
— Você sabe que não precisa se preocupar, certo? Eu vou...
Antes que possa continuar, o interrompo com um suspiro pesado.
— Você tentou.
— Há outras opções, o cara disse — insiste.
— Vince, não — o corto novamente. — Não há nada que você
possa fazer, a responsabilidade é minha. Mas obrigada pelo esforço,
significa muito.
Ele está longe de prestar atenção.
— No Colorado, não há tempo de espera entre divórcio e
casamento.
Eu não acredito no que estou ouvindo.
Fecho o rosto, sentindo a raiva e o ressentimento subirem como
uma maré. O que se passa na cabeça desse imbecil? É insultante. Olho para
ele, incrédula e com o rosto quente.
Não conversamos sobre ela. Acho que não conseguiria ouvir Vince
falando sobre outra mulher.
Ah, sim. Eu sou a outra mulher.
— Nunca mais diga isso para mim, Vince. Nunca mais.
Ele se retrai. Seu semblante é perturbado, mas não desvia o olhar.
Levanto o queixo em desafio, e o que ele vê nos meus olhos o faz
desistir de argumentar.
— Sinto muito, Amélia. Por tudo.
A voz é tão cheia de arrependimento que me deixa balançada, e
assim percebo que preferiria uma briga. Sim, discutir com ele nesse
momento seria melhor do que toda essa dor e confusão.
É culpa minha. Eu, que persistentemente, aceito ajuda. Depois de
três meses sem trocarmos uma palavra, estou aqui, certo? Pronta para
receber um favor.
— Esquece, vamos embora.

As duas horas que passam me jogam em um lugar de inferno


pessoal, no qual perco a noção de tudo ao meu redor. Vince, no carro ao
meu lado, não é mais do que um plano de fundo.
Cento e cinquenta mil.
Rorie perdendo a audição.
O homem que amo casado com outra pessoa.
Meu cachorro mal-humorado, que usa bandanas ridículas, foi
embora.
— Amélia — fala com cuidado, como se eu estivesse à beira de
colapsar na sua frente. É justo, pois realmente estou. — Podemos, por favor,
conversar?
Por que os homens acham que usar "por favor" faz diferença?
— Não, é melhor não.
Suspira, frustrado.
— Nós precisamos conversar.
— Não.
— Amélia — repreende, e seu tom de voz me irrita.
Vamos fazer isso agora? Tudo bem.
— Dói — murmuro com os dentes cerrados. — Dói o tempo
inteiro, Vince.
— O quê? — Ele olha, checando se algo no meu corpo está
sangrando.
Não encontrará nada externo.
— Falar com você machuca. Tem ideia de como é? Quão destruída
eu me sinto? — Minha voz se eleva e levanto os olhos, encontrando os
seus. — Um dia, estávamos morando juntos e eu pensava que era para
sempre, que você era o cara com quem eu ia passar o resto da minha vida.
Então, descubro que é casado através da própria esposa! — Tomo fôlego,
trêmula. — Quem faz uma coisa dessas? O que diabos você estava
pensando?
É uma pergunta sincera, que martelou na minha cabeça pelos
últimos três meses diariamente. Como ele pôde?
— Eu não tinha a intenção, ok? — Sua voz é brusca e me assusta.
Vince nunca falou comigo nesse tom. — O que eu estava pensando? Que eu
tinha conhecido uma mulher que amo mais do que qualquer coisa no mundo
e que poderia perdê-la por causa de um erro que cometi quando era jovem e
estúpido! Era isso, Amélia, isso que eu estava pensando — cospe. — E não
estava enganado, estava? Você foi embora. Perdi minha família, perdi tudo.
Minha família.
É a segunda vez que nos chama assim.
Sem nem perceber, minhas mãos estão nas suas, e me vejo
tentando confortá-lo. Afasto-me, como um gato escondendo as unhas.
Como chegamos aqui?
— Eu não fui embora — protesto, e ele bufa com uma risada
amarga. Certo, eu mudei de bairro, grande coisa. — Qual é, você tentou
uma semana.
— Se eu te pressionasse, você iria embora.— murmura,
cabisbaixo.
Não há desculpas em seu semblante, apenas tristeza. Crua e
profunda.
E sim, eu iria.
— Você é casado — aponto. — Casado, Vince.
O que explica o motivo de ter se afastado no início, logo depois
que Rorie teve meningite. Não nos falamos por meses. Havia indícios,
percebo agora. Eu só estava cega demais para notar.
— Você a ama?
— Amélia — seu olhar é ofendido.
— Certo, não precisa...
— Eu achava que amava — interrompe, e mordo o canto da
bochecha. Parece que vou sim ouvi-lo falar da esposa. — Nos conhecemos
na escola e, então, fomos para a universidade. Quando voltei para New
Castle, e Sarah voltou junto a contragosto, pareceu certo casar, sabe?
Tínhamos vinte e cinco e estávamos juntos desde os quinze. É muito tempo.
Dez anos. Jesus Cristo, é uma vida.
— Agora, entendo que não deveria ser motivo suficiente para casar
com alguém. Mas eu era jovem, Amélia. Estúpido. Sei que você tem vinte e
quatro e é toda inteligente e madura, esse não era o meu caso.
— Vinte e cinco — corrijo. — Eu fiz vinte e cinco em janeiro.
A informação faz as linhas de tristeza nas suas feições se
acentuarem em vários graus.
— É verdade. — Engole seco. — Perdi isso também.
Vince.
Jesus, ele vai me fazer cair nos seus braços.
— Por que ela foi embora? — pergunto, contra qualquer bom
senso. Não posso ficar pior do que já estou. As fofocas da cidade não foram
claras quanto a isso, na verdade, a grande maioria presumiu que se
separaram e que ela se mudou para lidar com o fim do casamento.
Vince coça a barba, cansado.
— Um dia, Sarah chegou e disse que tinha arranjado um emprego
em São Francisco. Fiquei chateado, mas não havia muito o que pudesse
fazer, certo? Eu não seria o cara que impediria a esposa de trabalhar —
explica, fechando o rosto. — Comecei os arranjos para nos mudarmos,
perguntei por aí se alguém tinha interesse em alugar o apartamento onde
morávamos.
Apartamento. Não a casa que nós dois dividimos.
Meu corpo relaxa um pouco.
— Pensei que seria apenas alguns anos e poderíamos voltar
quando...
Quando tivessem filhos, entendo, com um gosto amargo na boca.
De forma hipócrita, pensar em Vince tendo um bebê com outra pessoa me
corrói as entranhas. Vendo minha expressão, ele escolhe melhor as palavras.
— Poderíamos voltar quando estivéssemos mais velhos. Mas Sarah
achou estranho, porque ela ia para São Francisco, não nós.
Deus, foi ela quem o deixou, não o contrário.
É muito pior.
— O que você fez?
— Fiquei possesso, Amélia.
— Por que você a queria...
— Porque não era assim que imaginava um casamento. Paul e
Cassie, porra, até meus pais... eles nunca abandonariam seus parceiros, não
importa o motivo. Família não abandona família.
Ele está sendo honesto e a admiro isso, mas acho que é o
suficiente. A última coisa que preciso é uma narrativa de Vince com o
coração partido.
— Tudo bem, não é da minha conta.
Mas ele está determinado a falar.
— Me mudei — continua. — Achei uma casa do tipo que sempre
quis viver. As semanas passaram e havia dias em que nem me lembrava
dela. Deveria ter pedido divórcio antes, mas fiquei acomodado. Digerindo
tudo. Então...
— Eu apareci — completo para ele.
— É — concorda com olhos brilhando. — Você apareceu.
— Quanto tempo entre vocês e nós? — pergunto, insegura.
Vince toma uma respiração longa antes de responder.
Merda.
— Sarah se mudou cerca de oito meses antes de você chegar —
confessa, e perco o fôlego.
Oito meses? O que são oito meses perto de dez anos? Eles
provavelmente teriam se acertado. Ainda podem.
Meu Deus.
Vou vomitar.
— Ei, não — lê meus pensamentos. — Meu casamento estava
acabado.
— Você ainda é casado, Vince.
— Não por muito tempo. Eu liguei para um advogado no dia em
que percebi que estava apaixonado e que ficar longe de você não era uma
opção — promete. — Juro por Deus, Amélia, só entrei na sua vida depois
de iniciar o processo de divórcio.
Se está falando a verdade, tudo o que ele tinha de fazer era contar.
Deus, se tivesse confiado em mim um pouco, não precisaríamos estar nessa
confusão.
Mas bem… estar sendo enganada novamente é sempre uma
possibilidade.
— Por que ela está aqui, então?
É uma coisa que, contra minha vontade, fiquei sabendo. Não faz
sentido. Sarah não foi embora, está hospedada na casa dos pais. Eu tive a
sorte de não a ver, já que não frequentamos os mesmos lugares.
— Ela é difícil. Não quer desistir de ter um plano reserva.
O que pode ser o caso dele também.
Caramba, não posso pensar nessas coisas agora.
A conversa toma parte da energia que ainda tinha, e não digo nada
enquanto o carro entra na minha rua e para em frente à pequena casa. Não
faz diferença, no fim das contas. Talvez seja um encerramento? A partir
daqui posso seguir em frente?
— Obrigada por me contar — falo, cada terminação nervosa
gritando de aflição.
Tiro o cinto, pronta para sair, mas Vince me impede com a mão.
— Sobre Rorie...
— Não se preocupe. É comigo agora.
47
VINCE
Tudo mudou.
Eu não posso obrigar Amélia a me aceitar, especialmente
considerando que fui o responsável por toda a sua dor. Mas estarei morto
antes de deixá-la sozinha com Rorie.
Então, três dias depois de vê-la entrar naquela casa que odeio,
espero Sarah no escritório. Tentei evitar esse momento, preferia que nossos
advogados lidassem com isso sozinhos, mas agora é hora de acabar com a
pirraça.
Minha futura ex-esposa ficou na cidade, encontrou com antigos
conhecidos e fingiu surpresa quando perguntam da nossa separação. Ela não
foi bem-sucedida em difamar Amélia, apesar de nascida e criada aqui,
nunca foi exatamente querida e, sendo honesto, Amélia inspira muito mais
respeito. Sei bem de tudo isso, tenho sido alvo do mesmo desdém coletivo.
Na semana do Natal, Levi apareceu no bar e quebrou meu nariz.
Não revidei – eu mereci o soco, e pude notar que alguns clientes ficaram
muito felizes com a cena. Ele também quebrou os vidros do meu carro e
amassou todo o capô com uma chave de roda. Soube mais tarde que a
senhora da padaria da frente – que conheço desde sempre – lhe ofereceu
uma bebida quente depois, já que estava nevando. Amélia é querida em
New Castle, e acho que nem mesmo tem noção do quanto.
— Tenho que dizer, você não está tomando uma decisão muito
inteligente aqui — meu advogado diz pela décima vez.
Ele está enganado, eu só preciso que tudo termine o mais rápido
possível.
O advogado de Sarah chega antes dela, que faz questão de nos
deixar esperando uma hora e meia. Porra, para quê? Fazer uma entrada? É
tão típico dela.
Quando finalmente chega, sou atingido pela mesma impressão de
sempre. Ela está impecável, cada fio de cabelo loiro colocado no lugar certo
e o batom cuidadosamente aplicado para destacar seus lábios finos. Seus
olhos azuis varrem o cômodo, agitados. Sei que está irritada, e também sei
que está se preparando para fingir que não.
É uma mulher mimada, vai colocar um sorriso sedutor no rosto e
pressionar até conseguir o que quer. E o que ela quer, nesse momento, é me
ver implorar para que não vá embora.
Ela não vai conseguir.
Não fiz isso nem quando me deixou e foi para São Francisco e eu
achava que a amava. Agora, então? Só tem uma pessoa nesse mundo por
quem eu ficaria de joelhos.
O advogado começa a falar, listando os termos do acordo.
— O Sr. Warren ficará com o bar, e a Sra. Sampson ficará com o
apartamento onde ambos residiam, bem como com as economias conjuntas.
Por economias conjuntas, ele quer dizer as minhas. Com esse
acordo, ficarei praticamente quebrado. Meus pais são ricos, eu não, só tenho
o suficiente para ter uma vida confortável. Mas com o bar, posso trabalhar e
cuidar das garotas.
Meu advogado, no entanto, não compartilha da mesma aceitação.
Ele olha para mim com uma expressão de pura incredulidade.
— Vince, isso é altamente desvantajoso.
— Ele ainda está ficando com o bar — interrompe o advogado de
Sarah, como se isso compensasse todo o resto.
— O bar que meu cliente comprou com o próprio dinheiro —
rebate. — Onde ele trabalha exclusivamente há quinze anos. Nenhum juiz o
obrigaria a vendê-lo.
Sarah revira os olhos, entediada com essa discussão. Ela sempre
odiou o bar. Segundo suas próprias palavras, é apenas um buraco escuro
que me mantém longe de tudo que ela tanto adora. Para mim, é o lugar onde
construí a vida sem precisar aceitar nada dos meus pais.
Pela perspectiva de hoje, entendo que imaginou que eu mudaria
eventualmente, ficaria mais sofisticado. Sou um Warren, afinal. Eu, também
errado, só queria uma família mais unida do que aquela que nasci.
Dou um longo suspiro, sentindo o cansaço se acumular.
— Está tudo bem — digo. — O bar é tudo o que eu preciso.
Sarah solta uma risada curta e sarcástica, cruzando os braços.
— Bem, eu não vou assinar.
Puta que pariu.
Todos os olhares se voltam para ela, acho que até o seu advogado
quer estrangulá-la, mas Sarah não se importa. Minha paciência pula pela
janela.
— O que raios você quer? Meu sangue? Um rim?
— Eu quero que você pare de agir como se pudesse jogar fora o
que nós construímos! — Faz beicinho, os olhos se enchendo de lágrimas.
— Você só está com raiva porque fui embora, e eu já pedi desculpas.
— Raiva? — Balanço a cabeça. — Agradecido, isso sim.
Fica sem palavras por um segundo, e seus olhos azuis,
convenientemente secos, se estreitam.
— Você transou com alguém, grande coisa, Vince. Eu não ligo.
Podemos trabalhar no nosso casamento.
— Eu não transei com a Amélia — falo lentamente. — Eu me
apaixonei por ela. E, de alguma forma, nesse processo, tive uma filha.
— Você não teve filha nenhuma — bufa. — Isso é uma bobagem.
Nós podemos ter filhos de verdade, e não uma…
— Não termine essa frase.
A violência na minha expressão a deixa desarmada. Assustada.
Nossos advogados tentam interromper, mas eu os ignoro.
— Acabou. Aceite e siga em frente. Seja feliz — desejo, e quero
mesmo que ela encontre a felicidade. Mas acrescento, para não restar
dúvidas: — Longe de mim.
Deixo minha assinatura em todos os lugares indicados, sentindo
um alívio tremendo em fazê-lo. Porra, eu precisava disso. Fico aguardando,
com o rosto fechado.
Ela decide assinar.
Graças a Deus.
Depois de deixar seus rabiscos relutantes, Sarah se levanta de
forma abrupta.
Grito antes que passe pela porta:
— Ei? Se eu ficar sabendo que você incomodou Amélia ou falou
dela para alguém… acredite, vai se arrepender. Ela e Rorie estão fora dos
limites.
Para por um momento, me encarando com desdém. Muito desprezo
também.
— Não se preocupe — diz, com um sorriso amargo. — Amélia e
essa criança não significam nada para mim.
Se a intenção das palavras era ferir, não funcionou. Pelo contrário,
me deixam aliviado pra caralho. Sarah vira as costas e sai da sala sem olhar
para trás, os saltos ecoando pelo corredor.
— Quantos dias até o divórcio ser formalizado? — pergunto ao
meu advogado, sem desviar os olhos da porta.
— Já está valendo — me olha por cima dos óculos. — O que
acabamos de assinar é o acordo final. Vocês estão legalmente divorciados.
Levanto-me. Tenho coisas para resolver, e nenhuma delas pode
esperar.
— Vou passar no banco — digo, mais para mim mesmo do que
para ele.

AMÉLIA
Eu deveria estar estudando. As leituras da faculdade já começaram
a se acumular, mas Rorie tem outros planos. Ela escala meu colo com uma
determinação quase cômica e se aninha contra mim. Os brinquedos não
funcionaram para distraí-la, nem a televisão.
— Bebê — começo a protestar com um suspiro cansado. Então, ela
faz aquele movimento de filhote de desenho animado, tombando a cabeça
no meu colo e me encarando com seus olhinhos grandes. Tudo o que
consigo fazer é abraçá-la. — Você é um carrapato, sabia?
Rorie sorri, mostrando os dentinhos afiados, e meu coração duplica
de tamanho. Puxo ela para brincarmos no tapete. Minha filha não é uma
criança exigente, e, convenhamos, tem tão pouco que não poderia ser
mesmo. O que são alguns minutos de atenção? Nada.
— Gostamos da estrela, Rorie? — pergunto, e ela balança a
cabeça, negando. Tão fofa. — Que tal a girafa?
Também não.
— Que tal…
Ela imita um cachorro, e eu me assusto. Rorie não falou mamãe
por três meses, e não aprendeu outras palavras também. Agora, está latindo,
o que, pensando bem, é engraçado. Pego o cachorrinho de pelúcia, mas ela
faz sinal de que não, apontando para a porta.
É Bruce. Rorie quer o cachorro dela de volta.
Suspiro, exalando forte o suficiente para manter minhas feições
calmas.
— Vamos ficar bem — digo, passando as mãos pelos seus fios
macios. — Você, pequenina, vai ficar bem.
A resposta é um olhar questionador, perguntando se eu não vou
mesmo buscar o cachorro. É difícil. No dia, pareceu muito mais sábio uma
ruptura limpa ao invés de um afastamento gradual. Ela era tão novinha,
pensei que se esqueceria em semanas.
— Sinto muito — sussurro. — Eu prometo que vamos...
A campainha me interrompe.
Talvez seja Emily. Ou, meu coração salta, Vince.
Não existe tempo de espera entre divórcio e casamento. O que se
passa na cabeça dele? Isso é, para todos os efeitos, uma proposta.
Encantador.
— Um minuto, amor.
Levanto e a deixo no tapete com a televisão ligada. Respiro fundo
e abro a porta.
É Lisa.
Por um breve momento, congelo, surpresa. Um terninho
impecável, pérolas e saltos de cinco centímetros. Ela olha ao redor, nervosa
com o que está vendo. Deve achar que a casa é uma caixa de sapatos.
— Amélia, olá — cumprimenta enquanto a encaro.
Um segundo de silêncio constrangedor passa. Não quero que ela
entre e veja onde estou vivendo. Não, droga, não vou sentir vergonha da
realidade que foi imposta a mim.
— Venha, entre.
Dou espaço, esperando que ela passe, e a conduzo até a sala-
cozinha. Seu ar de superioridade está sempre presente, mas, nesta casa, é
gritante.
O que, em nome de Deus, está fazendo aqui?
— Olá, Rorie — abre um sorriso cordial. — É bom te ver.
A bebê reconhece sua presença com um rostinho curioso. Elas não
se viram muito, então acredito que Rorie não se lembra.
— Está tudo bem? — pergunto, tentando manter minha voz
tranquila.
Lisa não responde. Em vez disso, abre sua bolsa de couro e tira um
pedaço de papel, colocando-o com cuidado sobre a bancada. É um cheque.
Olho do rosto dela para o papel, sentindo algo entre vergonha e
ultraje.
— Isso é para eu ficar longe do Vince?
Ela solta uma risada curta.
— Amélia, por favor. Não sou vilã de desenho animado —
responde com um toque de ironia. — Este cheque é para garantir que você
não deixe o orgulho te impedir de tomar boas decisões.
Eu não entendo. Orgulho?
— Você soube de Rorie — concluo, e ela só dá de ombros, como
se fosse a coisa mais natural do mundo. Claro. Essa mulher tem um detetive
particular? Jesus. — E por que meu orgulho não me impediria de aceitar
sua ajuda?
— Honestamente, não é um dinheiro que faz diferença para mim.
Eu acredito nela. Vi sua casa, seus colares, roupas. A festa que os
Warren deram para Rorie não deve ter custado menos do que meu salário
anual. Há algo na honestidade de Lisa que me desarma. Não há simpatia ou
pena, apenas verdade crua.
Ela então se inclina para o chão, acariciando suavemente os
cabelos da minha filha.
— Aproveite o desenho — diz, sua voz assumindo um tom
surpreendentemente gentil, e se levanta para ir embora.
Não sei o que dizer, minha cabeça está oca para qualquer
raciocínio.
Eu não vi Lisa desde o término, e até pensei que estaria aliviada.
Quer dizer, quem é que ficaria feliz com o filho aparecendo em casa com
uma amante? Especialmente em uma família tão tradicional.
— Ele não sabe que você está aqui, certo?
O olhar, através das sobrancelhas arqueadas, deixa claro o quanto a
pergunta é estúpida.
— Boa noite, Amélia.
48
AMÉLIA
— Vamos, vamos! — falo, apressando Rorie. — Tem que vestir o
casaco, bebê. Está frio.
É impressionante minha capacidade de me atrasar,
independentemente do horário em que acordo. Não foi sempre assim,
quando vivíamos com Vince... bem, é melhor não pensar nisso.
Nos últimos dias, cheguei à conclusão de que pensar dói.
Meus olhos se voltam para a bancada, onde o cheque de duzentos
mil dólares está, intocado. Deus, como eu queria que Rorie fosse velha o
suficiente para decidir por si mesma. É horrível tomar decisões. Acho que
Lisa fodeu com a minha cabeça, que já não estava lá muito boa.
Prendo Rorie na cadeirinha e vou para o volante, dirigindo em
direção à creche. Ela está quietinha hoje.
— O que você está pensando? — pergunto, do nada. Ela não ouve,
então pergunto mais alto. — Rorie? O que está passando na sua cabecinha,
pode me dizer?
A bebê só me olha como se eu fosse louca.
— Você é um pé no saco, garota — reclamo, e paro no
estacionamento vazio. Olho no relógio. Quinze minutos de atraso. Não é tão
ruim.
Pego as bolsas e a coloco na cintura, sem tempo para deixá-la
caminhar, como temos feito. As cuidadoras a recebem com aquele sorriso
que só quem trabalha com pessoinhas em miniatura tem. Um pouco
lunático, mas está tudo bem.
— Tchau, querida. Te vejo à tarde — beijo a testa de Rorie e a
transfiro de colo. — Obrigada, bom trabalho para vocês.
Caminho de volta para o meu carro, apressada, mas uma mulher de
cabelos pretos lisos para ao meu lado, então reduzo o passo. Não consigo
lembrar o nome dela. Ela é elegante de uma forma meio hippie e natural,
aquela espécie de mulher que parece abraçar árvores e bater palmas para o
pôr do sol.
— Ei, Amélia — cumprimenta com um sorriso sincero.
— Ei, hã... — tento esconder minha vergonha de ser chamada pelo
primeiro nome e não ter nada para dar em troca. Ela não parece perceber, no
entanto. Ou não liga.
— Como Rorie está indo na terapia? — pergunta abertamente.
Eu... caramba, eu falei disso com alguém?
— Só fomos a uma sessão — respondo, baixo.
— Ah, sim! Minha filha do meio, Jenna, também fez terapia de
fala com Shelby. Foi ótimo para ela. Eles dizem que é importante começar
cedo, sabe? Ela está falando como uma maritaca agora, simplesmente não
para.
Aceno, sorrindo, embora a situação seja um tanto inusitada. Ela
não é uma completa desconhecida, já a vi na creche antes, mas só isso.
Finalmente, ela menciona, provavelmente vendo meu rosto confuso:
— Eu não sou maluca — explica com uma risada rouca. — Estava
no aniversário de Rorie.
— Sim, é claro — concordo, me sentindo culpada. — Me
desculpe, minha memória não é das melhores.
— Cabeça de mãe é assim. Tenho três filhas. Confie, minha cabeça
está longe de ser perfeita.
— Três? Uau.
Isso é um monte de crianças.
— Acho que meu marido estava louco — brinca.
Eu gosto dela imediatamente.
— Sabe, temos um clube de leitura que se reúne nas tardes de
sábado — fala, com a voz mais tímida agora. — Vamos no camping
infantil, já que a maioria de nós tem crianças. Talvez você gostaria de ir um
dia?
— Bem, eu...
— Eu sei, está ocupada com a universidade e tudo — me adianta,
com ainda mais conhecimento sobre minha vida particular. — Sem pressão.
Às vezes, Rachel leva bolos, sucos e petiscos, porque ela é uma dessas
pessoas, mas a maioria de nós só aparece por lá. É bom, você vai gostar.
— Certo — limpo a garganta, e ela ri de mim.
Ri mesmo.
— Você me lembra de mim quando era mais nova — diz,
pensativa. — Quando vim para New Castle, antes de conhecer meu marido,
minha filha mais velha tinha apenas quatro anos. Eu estava bem sozinha,
sabe? Mas não era ruim ter outra coisa para fazer além de ser mãe —
suspira. — Deus, isso deve ter soado mal, eu não quis dizer...
Ok, somos muito parecidas. Esse desajeito social? Aposto que essa
mulher planejou nosso encontro umas três vezes. Ela, tímida e excêntrica,
está saindo da sua bolha para me oferecer suporte.
Vida em comunidade, exatamente como Emily disse.
— Você está certa — interrompo, decidindo que vou, e que vou
levar Emily comigo. — Qual livro vamos ler?
— Livro?
— É, para o clube de leitura.
— Ah, nós não lemos nada.

Vou para a escola estranhamente satisfeita. Eu tenho um programa


para a tarde de sábado, é uma novidade.
Ajeito minha sala e assino alguns relatórios. Meu celular toca.
Considerando que tenho Rorie, nunca o deixo no silencioso. É do
consultório médico.
— Bom dia, senhorita Reid. Estou ligando para confirmar os
moldes do aparelho auditivo de Rorie. Podemos agendar para a próxima
semana?
Fecho os olhos, resignada.
— Não marcamos. Tive problemas com o seguro de saúde, ainda
estou tentando...
— Na verdade, senhorita, esses serviços são particulares. Não há
necessidade de acionar o seguro. Já estão pagos.
Fico em silêncio, processando a informação. O cheque de Lisa
ainda está lá na bancada. Como...?
Vince.
— Posso ligar para você depois? — desligo antes da resposta.
Ele deve ter cuidado disso sem me contar. Uma enxurrada de
emoções me atinge de uma vez, uma mistura de carinho e gratidão. Está
sempre encontrando maneiras de cuidar de nós.
Mas logo essa ternura é substituída.
Pelo quê, eu não sei.
Só sei que eu e Vince precisamos conversar.
49
VINCE
O sol se põe e a noite entra, trazendo o frio consigo. Minhas
crianças estão finalizando os alongamentos, e Johan está de pé com uma
prancheta, fazendo sabe-se lá o quê. Acho que ele só gosta de andar com
uma prancheta mesmo.
— Vince? — Johan me dá um leve empurrão no ombro. — Olha
quem está aqui.
Seguindo o olhar dele, vejo Amélia encostada no meu carro. Meus
olhos se fixam nela, e logo percebo que não sou o único. Quinze pequenos
rostinhos se viram, e logo ouço um murmúrio coletivo de “ihhh” e “você
está em apuros”.
São as crianças de Maple Grove. Esses moleques são muito mais
espertos do que meus alunos mais antigos – não que sejam maus, mas
sabem das coisas.
É mais divertido trabalhar com eles.
— Quietos — grunho, tentando recuperar o controle, mas meu
foco já está em Amélia.
Me aproximo e vejo Justin chegar antes de mim. Eles trocam um
toque de mãos elaborado. Mesmo durante o tempo em que Amélia e eu
estávamos separados, ela continuou tratando Justin como paciente e amigo.
O ódio que ela sentia pelos Warren não se estendeu a ele.
Naquele período, passei incontáveis horas conversando com meu
sobrinho, na esperança de ouvir qualquer coisa sobre ela, apenas para ter
um vislumbre de sua vida, do que estava acontecendo.
— Ei — abro um sorriso, tentando soar casual, e os gritos atrás de
mim aumentam.
Caramba, até Johan?
— Ei — ela sorri de volta, suas bochechas corando ligeiramente.
— A gente pode conversar?
Meu coração acelera. Ela deve ter descoberto sobre as despesas
médicas de Rorie. Será que veio aqui dizer que não precisa de mim? Por
favor, não.
A angústia começa a apertar meu peito.
— Claro. Podemos conversar agora, se quiser.
— Não, por favor, termine — aponta para o campo. — Eu não
quero atrapalhar.
— Você nunca atrapalha, Amélia — Justin intervém, exibindo suas
covinhas e me lembrando que não estamos a sós.
Droga. Preciso me livrar da plateia.
— Só faltam cinco minutos. — Tento controlar a frustração. —
Podemos ir para minha casa depois?
Pergunta idiota, ela nunca iria...
— Tudo bem — aceita, e eu engasgo de surpresa.
Eu... porra, ela disse sim?
Engulo em seco.
— Nós... — pigarreio. — Certo, então vou...
— Terminar com os meninos? — ajuda, solidária.
— Isso. — Balanço a cabeça, mas não consigo me mover. Não
quero sair de perto, não quero que mude de ideia.
Eu quero ela.
— Tio? — Justin chama minha atenção, com os olhos
semicerrados. — Está tudo bem?
Porra, não está.
Com dificuldade, consigo voltar para o treino. Faço isso tão rápido
quanto posso, entregando as crianças para os pais. Justin, que deveria pegar
carona comigo, fica com Johan. Quando volto, vejo Amélia olhando para o
nada, perdida em pensamentos.
— Vou te seguir com o carro — diz, e eu aceno.
Enquanto dirijo, tento lembrar do estado em que deixei a casa. Tive
uns dias ruins, em que a deixava bagunçada por semanas, e umas crises de
limpeza aleatórias. Bem, não tive uma dessas há um tempo.
Inferno.
Por favor, que não esteja um caos.
Chegamos juntos e, assim que abro a porta, Bruce salta em direção
a Amélia, quase a derrubando. Ela solta um "opa" e ri. Jesus, o bicho tem o
dobro do tamanho dela. Vou ajudá-la, mas, assim que estendo a mão, ele me
olha com aquela expressão de aviso pré-rosnado.
Assim, eu ficaria mais do que feliz em pular na frente de um
ataque para salvar Amélia, mas para ela são só lambidas. Logo, fico quieto.
— Ah, garoto. Eu senti sua falta — diz, a voz doce e carinhosa
afagando Bruce.
O cachorro fica imensamente feliz. Eu... eu me sinto pequeno ao
lado deles.
Deixo os dois se reencontrando e começo a juntar a bagunça
espalhada pela sala. Não está tão ruim, ainda bem.
— Ela não está aqui — ouço Amélia dizer. Levanto o olhar, mas
não está falando comigo. Está falando com Bruce, que olha para a porta.
Rorie.
Meu peito aperta de culpa. Claro que ele sente falta dela também.
Mais uma coisa para minha lista de erros.
— Sinto muito — murmuro baixinho. Não sei se ela me ouve, está
pensando nas próprias coisas, tristeza estampada em seu rosto.
Limpo a palma da mão nas calças.
— Vou fazer o jantar, tudo bem?
Amélia levanta os olhos. Há uma mistura de vergonha e ansiedade
ali. Saudade também. Nós dois sabemos o que noites como essas
significaram no passado: começavam comigo fazendo o jantar e
terminávamos amarrados um no outro.
Deus, a falta que eu sinto dela é esmagadora.
— Com quem está a bebê? Molly?
— Emily — responde, sentando-se na bancada que dá para o fogão
e a pia, de onde pode me observar. — Nós viramos amigas.
— Fico feliz. — É bom que não tenha ficado sozinha.
Ela morde os lábios, hesitante.
— Eu vim aqui por causa dos aparelhos de Rorie.
Meu estômago dá um nó, e antecipo o pior. Vai recusar o
tratamento? Não posso deixar acontecer.
— Eu amo você de todo o coração e respeito suas decisões, Amélia
— começo com sinceridade, odiando antagonizá-la e, ao mesmo tempo,
incapaz de aceitar. — Mas estamos falando de Rorie. Ela vai ter todo o
tratamento médico que precisar.
Amélia pode argumentar que Rorie não é minha filha, mas eu me
recuso a ouvir isso. Ela é minha, sim.
Ao invés de responder, Amélia me encara com uma intensidade
que faz com que eu prenda a respiração. Seus olhos verdes estão cheios de
emoções. Medo, raiva, amor… Sim, amor.
De repente, tira um cheque do bolso da calça e o estende para mim.
Eu estreito os olhos, incrédulo. Está tentando me pagar? É ridículo.
Então, olhando com atenção, minhas vistas saltam. Não pelo valor,
mas pela assinatura ao lado.
Minha mãe.
— Amélia, eu… — as palavras me escapam.
É um problema meu, porque ela cruza os braços, aguardando
respostas. Não tenho a menor ideia de como explicar isso.
— Eu não falei nada com ela. — Sinto o sangue subir à cabeça.
Vou matar minha mãe. — Te disse aquele dia, lembra? Que eu posso cuidar
de vocês? Falei sério. Minha família é enxerida, eles devem ter descoberto.
Juro para você, não tem mão minha nisso.
Amélia suspira, estupefata.
— Eu sei, o hospital ligou. Você já tinha pago o tratamento quando
ela foi lá em casa.
Porra. Graças a Deus, Amélia é lógica, mesmo quando está
chocada.
— Não posso aceitar.... Cristo, Vince. É assustador que tenham
tanto dinheiro assim disponível.
Nunca cometerei o erro de mentir para Amélia novamente.
— Eu não tenho — confesso com um suspiro pesado. — Fiz uma
hipoteca do bar.
— Fez o quê?

AMÉLIA
Ele o quê?
— Você perdeu a cabeça? — Minha voz sai alta e estridente, e ele
encolhe, com os ouvidos machucados. — Uma hipoteca?
Ele não pediu dinheiro emprestado para alguém da família ou fez
um acordo temporário. Não, foi ao banco e colocou o bar como garantia.
Vince não responde, o que me deixa ainda mais desconcertada. Por
que ele não está dizendo nada?
— Você ama aquele lugar.
— Eu amo vocês mais — responde, sem hesitar.
E só piora as coisas.
— Mas... — começo a falar, mas ele me interrompe, os olhos fixos
nos meus.
— Eu não tinha o suficiente guardado — admite, quase pedindo
desculpas. — Mas está tudo bem, não precisa se preocupar com isso.
Eu o encaro, meus olhos arregalados de incredulidade. Ele está
falando sério?
— Vou recuperar, prometo. — Continua, tentando me tranquilizar.
— Não vou poder comprar a casa agora, mas conversei com o proprietário e
ele garantiu que não vai rescindir o aluguel pelos próximos anos, então...
— suspira profundamente. — Por favor, confie em mim. Nós temos onde
morar. Nunca vou deixar faltar nada...
— O quê? — Tento entender o que está realmente tentando dizer.
Acha que minha preocupação é com o meu bem-estar?
Vince pensa por um segundo e dá de ombros.
— Só estou dizendo que está tudo bem.
Não, ele está tentando garantir nosso futuro, e é demais. Não
consigo processar tudo de uma vez, não estou preparada para isso. Vim aqui
apenas para contar sobre o cheque, porque ele merece saber. Agora, minha
cabeça está girando, e estou completamente perdida.
Morrendo de saudades.
— E a sua esposa? — murmuro.
— Ex-esposa — corrige rapidamente. — Não é da conta dela, e de
toda forma, está saindo da cidade.
Ele se divorciou.
Meu Deus, ele se divorciou, hipotecou o bar e pagou pelo
tratamento da minha filha. Nós nem estamos juntos – eu sequer fui legal
com ele. Também não fui com Lisa, pensando bem.
Está tudo errado.
Uma ansiedade nascida da confusão e do remorso me faz
estremecer. Vince me machucou, eu não deveria estar me sentindo assim.
Só que… Rorie.
— Você realmente a ama, não é? — pergunto baixinho.
Vince teve um ataque de pânico quando soube que ela estava
doente. Eu vi. Nem Levi, que a ama loucamente, teve uma reação tão
visceral. Desde o primeiro dia, independentemente de como nosso
relacionamento estivesse, ele colocou Rorie em primeiro lugar. Até se
ofereceu para casar comigo por ela.
Vince dá um passo em minha direção, e eu dou um passo instintivo
para trás.
— Muito. Vocês duas são minha vida.
Fecho os olhos, me apegando apenas à parte que consigo aceitar
neste momento: o relacionamento dele com Rorie e como eu posso ter
errado nisso.
— Sinto muito pelo que disse aquele dia — falo, sentindo a
vergonha subir ao meu rosto. — Sobre Jasper ser o pai dela.
Eu usei Rorie para punir Vince? Meu Deus, que coisa horrível de
se fazer. Eu estava cega.
Outro passo na minha direção, outro passo para trás.
— Você estava machucada — diz, com a voz grossa. — Não se
sinta mal, foi tudo culpa minha.
Chego a encostar na bancada, sem mais espaço para me afastar.
Sua respiração quente queima minha pele, e seus olhos firmes são tudo que
consigo ver.
— Eu estou machucada, Vince. Não sei se algum dia vou deixar de
estar. — Quando digo isso, ele estremece. Não é minha intenção, não tenho
prazer em sua dor, mas não quero mentir ou suavizar a verdade.
— Nunca mais vou te machucar. Vou passar o resto da minha vida
provando isso para você.
As palavras me deixam balançada, mas eu tento ignorar.
— Você deveria ir vê-la — digo, e meu queixo treme. — Se quiser
ter contato com Rorie, eu não vou afastar vocês dois.
Vince pisca lentamente, e é palpável o alívio correndo por sua pele.
Continua se aproximando, e prendo a respiração quando passa os braços ao
meu redor.
Ele é quente. Seguro.
É como voltar para casa.
Não quero me aninhar, mas meu corpo está além do meu controle,
e me vejo inclinada em direção a ele, como se fosse puxada por gravidade.
Eu amo quando esse homem me abraça, poderia viver nos seus braços.
Vince encosta a testa na minha, e suas palavras saem com um
sussurro.
— Eu adoraria — murmura. — Obrigado.
Sinto minhas bochechas ficarem molhadas e, após algumas
respirações, percebo que não são minhas lágrimas.
Ele está chorando.
O abraço de volta com cuidado, confortando seu corpo enorme.
50
VINCE
Encaro o espelho, irritado. Fiz um corte ao fazer a barba, e agora
estou com um curativo ridículo no queixo. Troquei de camisa três vezes e
passei uma loção nova.
Estou pronto? Sinto que não.
Mas não quero me atrasar. Inferno, se não sair agora, vou acabar
vestindo um terno. Suspiro, ansioso, e ajeito o colarinho da camisa uma
última vez. Rorie. Amélia. Tenho um encontro com as minhas garotas.
Consegui esperar até a tarde do dia seguinte, depois que Amélia
veio me visitar, para mandar uma mensagem e marcar nosso encontro. Não
deu para ser tão rápido quanto eu gostaria. Ela tinha coisas da bebê e da
universidade que precisavam de atenção, e apesar da vontade de ir até lá e
fazer parte de tudo, não quero assustá-la.
A verdade é eu não vou desistir até que Amélia esteja do meu lado
com um anel no dedo. Ela me ama e pode não reconhecer, mas confia em
mim. Do contrário, nunca me deixaria ter contato com Rorie.
Farei o que precisar para Amélia entender que respiro por ela.
Chego à porta e hesito antes de dar três batidas leves. É um
costume que peguei quando Rorie era pequenininha.
A porta se abre. Amélia me dá um sorriso contido, com aquela
beleza cegante que me deixou de joelhos desde que a vi pela primeira vez.
Atrás dela está Rorie.
Sentada em meio a uma pilha de lápis de cor, a bebê observa o que
Amélia veio fazer na porta. Vejo o exato momento em que ela me
reconhece. Seus olhos se arregalam e ela solta um gritinho, levantando-se
para correr na minha direção. Suas perninhas ainda estão aprendendo, então
tropeça e cai. Meu coração quase para, mas se levanta tão rápido quanto
caiu, com os bracinhos estendidos para mim.
Ajoelho, com as lágrimas ameaçando brotar, e abro os braços para
ela. Rorie se joga contra mim com uma força impressionante.
— Oi, princesa — sussurro, passando a mão nos seus cabelos. São
lindos. Cobrem o que antes era sua cabecinha careca e começam a fazer
cachinhos na altura da nuca. — Senti tanto a sua falta.
De forma assustadora.
Ela se aconchega no meu peito, suas mãozinhas pequenas
segurando minha camisa como se eu pudesse desaparecer. Fecho os olhos,
respirando fundo, inalando o cheiro doce de bebê.
— Acho que ela sentiu sua falta também — Amélia sussurra, a voz
carregada de constrangimento e tristeza. Olho para cima e vejo que ela
desvia o olhar. — Vou dar a vocês um momento.
Ela se retira para o que suponho ser seu quarto.
Amélia está se sentindo culpada. Eu certamente aprecio o fato de
que ela tem plena consciência da responsabilidade por suas ações, mas não
quero que se agarre a isso. Amélia estava, como sempre, fazendo o que era
necessário para sobreviver.
Mas falaremos sobre isso depois.
Agora, é hora de aproveitar a bebê mais fofa do mundo.

AMÉLIA
Sento na beirada da cama com um livro da universidade nas mãos,
mas estou apenas fingindo ler. Minha mente está do outro lado da parede,
onde Vince e Rorie estão juntos.
Olha o que eu quase tirei da minha filha.
Não a via tão feliz assim há tanto tempo. Meus dedos apertam a
borda do livro enquanto a culpa me consome. Ele é tão bom com ela, tão
naturalmente amoroso. Me sinto uma vadia egoísta.
Fecho os olhos, tentando afastar esses pensamentos mesquinhos.
Adormeço numa posição desconfortável e uma batida leve na porta
aberta me faz despertar, confusa. Afasto o livro que caiu no meu rosto e
vejo Vince, com Rorie pendurada na cintura. Seu sorriso é suave.
Seus olhos fixos em mim, não tão suaves.
— Vai embora? — pergunto, com a garganta seca.
Vince balança a cabeça devagar, sem desviar o olhar.
— Não, só vim ver se você estava viva — brinca, mas logo
acrescenta, mais sério. — A menos que queira que eu vá.
— Não... — murmuro, levantando-me da cama. Bocejo, meio
desajeitada. — Desculpa.
Recebo aquele sorriso que faz meu coração derreter. Quando
estendo as mãos para pegar Rorie, minha filha me surpreende, escondendo
o rosto no peito de Vince e agarrando-se a ele com força.
Minhas bochechas queimam de vergonha.
Sei que o pensamento nasce da culpa, mas parece que ela me odeia
por tê-lo afastado.
— É porque sou novidade — murmura Vince, tentando me
consolar. — Uma novidade antiga.
Adorável da parte dele dizer isso, mas é uma mentira de piedade.
— Não — mordo os lábios. — Ela te adora e estava com muita
saudade.
Não dou a ele chances de continuar sendo gentil comigo. Deixo um
beijo na cabeça relutante de Rorie, para mostrar que está tudo bem, e saio
do quarto.
Quando entramos na sala-cozinha, noto que já está escuro. Cristo,
dormi o quê? Duas horas? Tenho que dar o jantar para Rorie, ou ela vai
juntar os brinquedos e decidir ir embora com Vince.
Viu? Mesquinha.
— O que acha de sairmos para jantar?
A ideia de sermos vistos juntos faz um nó formar na minha
garganta.
— Que tal pedir pizza? — Pergunto. Vince tenta disfarçar, mas
percebo a decepção nos seus olhos antes de recuperar o sorriso.
— Sim, uma pizza seria ótimo.
— Presunto com abacaxi?
Ele faz careta, odeia pizza havaiana. Tínhamos essa discussão toda
semana e sempre acabávamos pedindo duas.
— Pepperoni?
— Obviamente — responde. — E Rorie? Ela já come pizza?
— Só belisca, vou fazer uma omelete.
— Eu posso fazer — oferece, como fazia sempre que eu sugeria
cozinhar, um pouco preocupado.
Estreito os olhos.
— É que tenho uma receita nova — diz, apressado, me entregando
a bebê. — Vou adorar mostrar para ela.

Nós três ficamos no chão, e Rorie come sua omelete – que me


parece a mesma receita de sempre – sujando as mãozinhas gordinhas.
Depois, fazemos uma brincadeira a três de bater carrinhos, algo que ela
adora desde que compramos um no mercado.
As pizzas chegam e me levanto para pegar o dinheiro. Vince faz o
mesmo.
— Você é meu convidado.
— Amélia, não vou deixar você pagar uma pizza para mim —
responde, ofendido.
— Isso é um pouco sexista, sabia? — aponto, voltando para o meu
lugar. Ele revira os olhos.
Vince atende a porta e abre as pizzas no chão. Estou sentada com
as pernas cruzadas, ele deitado de lado no carpete, apoiado em um dos
bíceps. Rorie faz bagunça entre nós. Não surpreendentemente, Vince
termina sua pizza antes de eu estar no terceiro pedaço.
Ele definitivamente ganhou alguns quilos de músculo nos últimos
meses. Começo a rir sozinha.
— O que foi? — pergunta, curioso.
— Sempre que brigamos, você volta com alguns quilos a mais. Por
quê? Eu te deixo passar fome?
Minha risada puxa a sua.
— Muito tempo livre, gasto ele na academia.
Encaro seu corpo rapidamente. É, posso ver.
Quando chego ao rosto, há um sorriso presunçoso. Abaixo o olhar
e percebo um movimento. Sinto seu polegar molhado de saliva na minha
bochecha.
É um toque gentil e, por um momento, nossos olhos se encontram.
Tudo que consigo fazer é piscar, confusa.
— Catchup — explica.
Faz sentido.
Ou não, porque estou queimando em lugares onde não deveria. O
coração, principalmente.
Somos uma confusão.
— Você já falou com sua mãe sobre o cheque? — Pergunto por
impulso, precisando de um assunto.
Os ombros de Vince enrijecem, e ele solta um suspiro cansado.
— Ainda não.
Claramente o assunto o chateia muito.
— Ela te ama, sabe? — digo, com o instinto materno falando alto.
Tive uma mãe que não ia muito com minha cara, esse não é o caso de Lisa.
— Dinheiro significa muito para ela, é sua forma de demonstrar que se
importa.
Vince me olha perguntando, confuso, onde quero chegar com isso.
Pego uma mecha rebelde de cabelo e coloco atrás da orelha, sem graça.
— Nem todo mundo consegue ser como você — explico, me
referindo ao fato de ser o homem mais carinhoso que conheço.
— Você está usando sua cabeça de psicóloga para me analisar,
hein?
Absolutamente.
— Só estou dizendo que ela te ama, ok? Não seja tão duro.
Concorda silenciosamente, mas não me parece prestar muita
atenção. Seus pensamentos estão longe. Depois, me observa por um
momento. Estende a mão e gentilmente acaricia a pele do meu rosto.
— O que foi?
— A forma como sua cabeça esperta vê as coisas — suspira,
satisfeito — Senti falta disso.
E eu senti falta de você.
51
VINCE
— Aqui, eu vim te devolver — tiro o cheque do bolso e mostro
para a minha mãe. Ela não parece particularmente surpresa, ou
impressionada.
— Não me lembro de ter te oferecido qualquer coisa.
É, preferiu passar por cima de mim e tentar resolver minha vida do
seu jeito.
— Sei que você não está fazendo por mal — digo. Na verdade, foi
Amélia quem sabia e me contou. — Mas não precisa. Minhas garotas, eu
cuido delas, ok? Por favor, pare de oferecer dinheiro a mim ou à Amélia. É
muito atrevido e, honestamente? Um pouco humilhante.
Sua expressão é irritada e com um quê de provocação.
— Suas garotas?
— É.
Não me estendo no assunto. Quero resolver as coisas com Amélia
antes de sair dando notícias. Ela nem pisca com a afirmativa.
— Rorie não está precisando de tratamento médico?
— Sim, e estou cuidando disso — como o adulto funcional que
sou, quase completo.
— Você não foi estúpido ao se divorciar de Sarah e ficou à beira da
miséria?
— Mãe — suspiro. — Pare. Estamos bem.
— Devolva — insiste. — Pare de agir como se dinheiro fosse os
males da humanidade, é patético.
Cristo.
— Eu não preciso do seu dinheiro.
— Não é para você — diz com dentes cerrados, perdendo a
paciência. — É para a garota.
Hum.
Bem, sou um estúpido.
Está preocupada com Rorie.
Sua atitude, ao saber das despesas médicas, foi... a mesma que a
minha. Garantir que Rorie estivesse segura antes de tudo.
Em um canto da minha mente, me precipitei, pensando que ela
poderia ter uma reação como a da minha avó, mas o que aconteceu não foi
nem perto disso. Ela não fez nada além de trabalhar para inserir as duas na
família.
Pensando bem, lembro de ter ficado puta da vida quando descobriu
que Amélia me deixou. Não com ela, mas comigo. Achei que fosse por toda
aquela ladainha de manter as aparências, porém, poderia simplesmente estar
sentida por ter perdido duas pessoas com quem se importa.
Tenho vontade de abraçá-la, algo que não faço há muito tempo. O
corpo fica rígido quando passo os braços ao seu redor.
— Por que está fazendo isso? — pergunta, me afastando.
Afinal, segundo Amélia, pessoas demonstram amor de forma
diferente.
— Nada, é só que… não sei. Eu vou devolver, sim. Desculpe.
Não me deixa passar, quando vou virar, ela entra na minha frente.
— Diga.
— Estou feliz que você tenha aceitado Amélia e Rorie tão bem —
confesso. — Obrigado.
Meu agradecimento é respondido com um franzir de lábios.
Certo.
Aliás, não necessariamente. Preciso quebrar esse mal-estar. Em
alguns meses teremos outro bebê na família, Rorie ainda é tão nova. É um
ótimo momento para tentar ser diferente.
— A cor dela é amarelo — digo, coçando o queixo. — Adora
cachorros e patinhos de plástico. Sua babá se chama Molly, filha do Danny,
o policial.
— O quê? — pergunta, confusa.
— Sabe, caso queira passar algum tempo com Rorie, chame a
Molly ao invés de outra babá — digo, me sentindo muito aberto. — Porque
eu vou me casar com Amélia um dia, mas, independente disso, Rorie é
minha.
Minha mãe assente, analisando meus olhos. Permito que veja a
verdade neles e, de um jeito estranho, ela o faz.
— Molly — repete. — Tudo bem. Entrarei em contato.

Vou até o apartamento delas com Bruce. Ele e Rorie ainda não se
encontraram e, assim que descemos do carro, o cachorro abana o rabo com
tanta força que o corpo todo se move.
Amélia abre a porta com uma carranca, e eu rezo para que se torne
um sorriso. Ela nunca foi de gostar visitas.
— Desculpe não ter ligado — digo, nem um pouco arrependido. —
Mas você e Rorie não querem fazer uma caminhada com a gente?
Mantenho uma expressão muito inocente.
— Só uma volta no quarteirão — acrescento. — Depois podemos
pedir pizza, ou eu cozinho alguma coisa? — sugiro.
— Bem…
Ouço um gritinho que dispara endorfinas pelo meu corpo. Eu e
Amélia olhamos para trás. Abro um sorriso grande, satisfeito. Rorie viu
Bruce. Está correndo em direção a ele com passos confusos e palminhas
abertas. Quando se encontram, é coberta por lambidas no rosto.
Amélia morde os lábios, olhando para eles, depois para mim. Será
que está se lembrando do quanto éramos bons? Que ainda podemos ser?
Não consigo enganá-la, sabe exatamente o que estou fazendo.
Implorando para que abra o coração e me deixe entrar.
Lentamente, como sempre fizemos. Amélia precisa que eu vá com
calma.
Eu preciso dela.
— Deixe eu pegar um casaco.

AMÉLIA
Ninguém quer ser o idiota que perdoa.
Em algum ponto no esquema da vida, indulgência deixou de ser
uma virtude. É como se colocasse uma placa no pescoço dizendo "fique à
vontade para fazer hora com a minha cara, não dá em nada".
As pessoas julgam. Te chamam de fraca pelas costas.
— Quer um sorvete? Eu posso distrair a Rorie para você comer.
O negócio é que é muito difícil não ceder quando se trata de Vince.
Aceno, e ele salta do banco para ir até a barraca. Não preciso dizer o sabor,
Vince sabe quais são os meus três preferidos e a ordem de preferência. Sabe
como gosto da calda, e que as colheres de madeira são infinitamente
superiores às de plástico. Deus, o homem até está trazendo guardanapos
extras para eu limpar os dedos.
— Aqui — entrega e senta de novo ao meu lado. Não precisa ir até
a bebê, Rorie está tão absorta brincando com Bruce que não liga se estou
comendo doce escondida.
— Sabe que não podemos separá-los agora, certo? — Pergunto,
lambendo meu sorvete de café.
Vince se distrai observando minha boca e coloca as mãos nos
bolsos antes de sugerir:
— Vocês podiam ir lá para casa.
— Boa tentativa — rio
Ele não fica chateado, só sorri, como se fosse a resposta que
esperava.
— São seis horas agora, a gente pode jantar e assistir a um filme
até que ela durma — tenta. — Levo vocês para casa depois.
Parece inofensivo.
Tudo bem, posso lidar com isso.
É o que penso até horas depois, quando estou cansada e cheia de
carboidratos. Rorie está dormindo em um colchonete no chão, segurando a
orelha de Bruce.
— Droga, me parece que você tem uma decisão difícil — Vince
aponta, muito feliz consigo mesmo.
Gemo, quero voltar para casa.
Mentira, quero ficar aqui, mas quero muito deitar. São onze horas,
e eu acordei às seis. Junte a TPM à mistura, e lágrimas saem dos meus
olhos. Xingo, limpando o rosto.
— Amélia? — pergunta, ficando com a expressão séria e alarmada.
— Me desculpe, só estou brincando. Vou levar vocês sim, não precisa…
— Não é isso — grunho, irritada de uma forma infantil. — É que
estou cansada.
— Cansada?
— Sim, cansada e cheia — aponto para minha barriga satisfeita —
Com cólicas, ainda. Quero dormir.
Vince compreende que só estou fazendo pirraça e suspira de alívio.
— Sei como ajudar — diz, e se afasta, voltando segundos depois
esfregando as palmas. Quando se aproxima, percebo que está esquentando
óleo corporal.
Deus, esse homem faz as melhores massagens.
— Minhas intenções são puras — garante, mas eu nem estou
prestando atenção. Deito de costas no sofá e ajeito uma almofada na cabeça.
— Posso? — Aponta com o queixo em direção à bainha.
Aceno lentamente, e ele levanta a blusa com cuidado. Está tudo
bem, ver meu abdômen não é nenhuma novidade, não há porque ficar
acanhada. Vince passa as mãos escorregadias em círculos, desfazendo os
pontos doloridos e deixando apenas um calor muito gostoso.
Extremamente relaxante.
Com uma ruga entre as sobrancelhas, demonstrando o quanto está
levando o serviço a sério, emite ruídos de aprovação. Minha respiração
pesada é audível por todo o cômodo. Toda a casa, provavelmente.
É bom ficar assim, molenga e com a guarda baixa, deixando a
lassidão adormecer minhas veias.
Há quanto tempo não me sinto assim? Sempre foi uma coisa dele
cuidar para que eu tenha momentos como esse, que só posso descrever
como paz. Sendo muito honesta, acho que eu nem conhecida esse
sentimento até o encontrar.
— Meu bem? — chama, e levanto os olhos, fraca.
— Hum?
Estou sonolenta e confusa, mas até uma pessoa morta veria o
brilho nos olhos de Vince, somente por eu atender à forma como me
chamou. Meu bem.
— Nada — sorrindo, deixa um beijo próximo ao meu umbigo.
É apenas um carinho, mas um suspiro molhado me sai os lábios, e
em resposta, seu corpo fica rígido.
Droga.
Somos nós.
Tirando o sexo desesperado, o preguiçoso é nossa especialidade.
Meu corpo sabe disso, e grita de carência.
Eu senti tanta falta.
Não estamos prontos.
Vendo minha confusão, ele volta a blusa para o lugar. Me atordoa,
e não sei se estou feliz ou muito chateada. Apoiando com o braço em cima
da minha cabeça, paira com o corpo grande sob o meu. Sinto a ereção
inchada, o corpo quente e caramba, seus olhos estão famintos.
Não tenho como resistir.
Mas me beija a... testa?
— Durma — sussurra.
52
AMÉLIA
Eu estou ciente de que a cidade inteira está ciente.
Todos sabem que Vince esteve na minha casa algumas vezes essa
semana, e eu na dele. Saímos para passear com Bruce e Rorie quase todas
as noites e até fomos jantar fora em um dia particularmente agradável. É
impossível ignorar os olhares e sussurros no mercado, padaria e escola.
Normalmente, ser o centro das atenções me faria ficar quietinha no meu
canto, só que hoje é a reunião do clube do livro.
Eu já tinha prometido levar Emily.
Na verdade, nesse exato momento, estou a ignorando. Ela está do
meu lado, tentando tirar alguma coisa da minha boca.
— Amélia, você está me ouvindo?
É certo que não.
— Desculpe, perdi a última parte.
— Eu só estava dizendo que é legal ter te chamado para o clube do
livro — repete, animada. — Eu gosto desse parque, Vince já te trouxe aqui?
Meu Deus.
— Não.
— Só estava perguntando — dá de ombros e vira o corpo para o
banco de trás, onde Rorie está. — Alguém já te disse o quanto sua mãe é
mal-humorada?
Não demoramos para encontrar um grupo de mulheres. São cerca
de sete, e estão sentadas em uma mesa de piquenique bem-feita, próximo a
algumas crianças. Conheço um ou outro da escola, inclusive Justin.
Libby – a que me convidou – é a primeira a nos ver. Acena,
tampando os olhos do sol com a mão. Empurro o carrinho de bebê com um
sorriso fraco.
Graças a Deus trouxe Emily. Quero estrangulá-la, mas ela é minha
ponte.
— Amélia, que bom que pôde vir — sorri Libby. — Aqui, essas
são… ah, quer saber? Você vai conhecer todo mundo.
Concordo, um pouco tímida. Todas têm um ar boêmio e
sofisticado, e eu sou a mais nova aqui. Sinto-me uma adolescente com
minhas botas e vestido.
Uma adolescente emo.
— Olá, é um prazer. Eu… hum, essa é Emily — aponto para minha
amiga, me sentindo estúpida porque, claro, sabem o nome dela. É New
Castle.
Libby ri e me ajuda a acomodar, tirando Rorie do carrinho e me
entregando. Penso em mantê-la no meu colo, mas sou cutucada por um
garoto sujo de terra.
— Oi, Amélia — Justin cumprimenta com um sorriso fofo e
aponta para Rorie. — Posso brincar com ela?
Hesito, piscando os olhos. Eu amo Justin.
Mas, bem, ele tem mãozinhas desesperadas e nunca mostrou muito
interesse em brincar com Rorie. Cadê a mãe dele para interferir?
Só que Rorie é uma bebê, e bebês amam crianças. Está olhando
para o Justin interessada, e as pernas começam a me chutar.
— Minha mãe vai ter um neném, sabia? Agora sou o mais velho!
— explica, sem notar minha preocupação.
Certo, não tenho como sair dessa. Me ajoelho, colocando Rorie no
chão. Não sairei de perto deles.
— Tenha cuidado, ok? Ela é pequenininha.
Com a seriedade de uma criança em uma missão de vida ou morte,
Justin acena.
— Prometo que vou cuidar bem dela.
Ele estende a mão e espera que Rorie se equilibre. Andam só até
uma piscina de areia e sentam para cavar e encher baldes, o que não tem
graça nenhuma para um garoto de nove anos, mas é o paraíso para Rorie.
Sento-me na mesa e interajo um pouco, sempre com os olhos fixos
nos dois. Minha filha ri, jogando areia para todos os cantos, e olha de
esguelha para Justin de tempos em tempos, checando se ele está achando
legal também. Está encantada.
Uma limonada é colocada na minha frente, e agradeço. Quando
dou um gole, esperando o sabor refrescante, o líquido desce queimando pela
garganta.
— Isso tem álcool — constato, e recebo um olhar coletivo de "o
que você esperava?"

Eu só posso descrever como pandemônio.


Parece que estou em um episódio estranho de uma série de mães
malucas. As conversas iniciam e não terminam, vozes se sobrepõem umas
às outras, alguém começa a falar sobre uma viagem exótica, outra sobre os
filhos e uma terceira menciona algo sobre religião.
Tento acompanhar, tento mesmo, mas é impossível. Saindo daqui,
vou me trancar em casa, sem dizer uma palavra, até o início da próxima
semana.
Elas podem parecer perfeitas o quanto for, mas por dentro são bem
doidas.
— Pois bem, cheguei — Cassie anuncia. — Desculpe o atraso, e
obrigada, Libby, por ter trazido Jus… oh, Amélia — sorri. — Ei, que
surpresa.
— Cassie. — Meus olhos vão para sua barriga pequena, e, sem
graça, tento desviar. As mães devem ser as que dão notícias das suas
gravidezes.
Só que ela percebe.
— Está tudo bem — tranquiliza. — Não anunciamos ainda, mas
você é família.
Eu sou? Olho para Justin e Rorie brincando, e Cassie segue meu
olhar.
— Ele está empolgado.
— Parabéns — falo baixo, para ninguém ouvir. — Vocês devem
estar muito felizes.
— Meu marido ficou louco — ri. — Lisa e Garret também, estão
sempre pedindo netos. Vince… — a voz morre, olhos, de repente, muito
hesitantes.
Bem, Vince também ficou nas alturas, óbvio. Não existe tio mais
apaixonado.
— Vince…?
Ela morde os lábios, parecendo culpada.
— Ele não estava muito bem quando soube.
Fico em silêncio, sem ter certeza do que dizer. A limonada batizada
está fazendo efeito, ou meu cérebro tem recebido pouco oxigênio.
Eu perdi minha família.
Crises de pânico quando se trata de Rorie.
Hipotecou o bar sem pensar duas vezes.
— Amélia? — Emily chama. Ela está para lá de bêbada. — Então,
você já bebeu o suficiente para nos contar se vai perdoar o nosso garoto de
ouro?
— Sabe que estamos todos torcendo por vocês, certo? — uma
desconhecida acrescenta.

VINCE
"Quer brincar de assistir a um filme quietinho?"
Abro um sorriso ao ler a mensagem.
— O que foi? — Johan pergunta. — Por que está rindo como um
idiota?
Nem me incomodo em fechar a cara. Respondo à Amélia,
prometendo que não direi uma palavra, só questionando o que levar para o
jantar. Os pontinhos aparecem e param por um tempo, então sei que ela está
indecisa. Vou levar uma porção de tudo.
— Vince?
— Quebra um galho para mim? — peço, já saindo de trás do
balcão. — É meio urgente.
Ele estreita os olhos, o que é justo. É um sábado à noite, e Johan
está de olho em algumas turistas que apareceram para uma despedida de
solteiro.
— Urgente tipo o quê?
— Tipo, minha mulher está chamando para ver um filme —
confesso.
Johan não zoa, abre um sorriso bobo também. Ele viu, de primeira
mão, o declínio da minha sanidade depois que ela me deixou. Teve
momentos em que ficou preocupado de verdade, sei disso. É um bom
homem.
— Vá lá — dá um empurrão no meu ombro. — Mande um oi por
mim.
Nem fodendo.

— Eu tenho peixe, frango, bife com batatas e uma torta que


pareceu muito boa — digo, entrando na casa pequena. Bruce, ao meu lado,
dá uma lambida em Amélia e vai direto procurar Rorie. — Ou posso
cozinhar, se preferir.
Cheio de sacolas, me surpreendo sendo abraçado. Amélia, com o
rosto cansado e em paz, passa os braços ao meu redor e encosta o rosto no
meu peito.
— Eu senti sua falta — diz baixinho.
Bem, e eu te amo, quero responder.
— Estou bêbada — acrescenta. — Fui ao clube do livro e me
encheram de limonada batizada.
Jesus, se for o que imagino, minha pobre mulher sofreu com tanta
gente agitada querendo conversar com ela. Perguntando sobre a gente.
Deixo as sacolas no chão para que possa acariciar suas costas.
— Como foi?
— Um inferno.
Merda.
— Sinto muito — digo, e ela olha para cima com as pálpebras
caídas, linda como nunca, e abre um sorriso lento.
— Eu gostei.
Bom. Anormal, é certo, mas legal.
Será que ela…?
— Você pode cuidar da gente?
Oh, porra.
— Sempre — prometo.
53
AMÉLIA
Rorie está sentada no meu colo, e, mesmo assim, não resisto à
vontade de agitar as pernas para me acalmar.
Ela vai colocar os aparelhos hoje.
O Dr. Charles está falando coisas importantes, mas não entendo
nada. Eu mal o vejo, como se meu cérebro estivesse se desassociando. O
nervosismo que sinto é paralisante.
Estou aqui sozinha, porque, mesmo que o médico não tenha aberto
a boca para reclamar da situação com Sarah, era um drama que eu queria
evitar. Uma exposição desnecessária, certo?
Achei que pudesse lidar com a consulta sem Vince, e eu talvez
possa.
Mas não quero.
— Amélia? — A voz de Charles me tira do meu transe. Ele me
olha com preocupação e impaciência.
— Desculpe.
— Ligue para ele — diz, e minha respiração falha.
— O-o quê? — gaguejo, envergonhada.
— Rorie é minha paciente, não faz sentido que ambos os pais não
estejam aqui — diz, com a voz séria. — E eu preciso que você preste
atenção.
Pais.
Ele está certo. Caramba, todo mundo está.
Pego o celular na minha bolsa com as mãos tremendo. Rorie fica
brincando com os legos que sempre estão no consultório, e eu passo pela
porta para fazer a ligação.
Ele atende no segundo toque.
— Vince? Eu preciso...
— Eu estou aqui — sua voz sai do telefone, e não compreendo até
ver o corpo grande levantando da cadeira na sala de espera, ainda com o
celular no ouvido.
Caminho inconscientemente, e em um segundo estou abraçada à
sua costela, aspirando meu cheiro preferido.
— Você sempre está aqui — sussurro.
— É. — Beija o topo da minha cabeça. — E eu nunca vou embora.
Olho para cima, encontrando o azul acinzentado que soa como
minha casa.
— Vamos cuidar da nossa garotinha.
Essas palavras são tudo de que preciso. Vince não pergunta por que
eu não o chamei antes, não me julga. Em vez disso, apenas aceita o que
consigo lhe dar, devolvendo nada além de devoção pura.
Eu o amo.
Entramos no consultório, e Rorie, sentindo a presença de Vince,
estende os bracinhos com um sorriso. Ele a pega no colo e a segura com
todo o cuidado do mundo.
— Prontos? — Charles pergunta.
Sim, nós três estamos. Assentimos.
— Vamos começar — diz, abrindo o estojo e pegando os pequenos
aparelhos. — Vai melhorar a audição significativamente, mas é importante
que vocês entendam que ela ainda precisará de tempo para se ajustar.
Respiro fundo, prestando atenção, e sinto a mão de Vince apertar a
minha suavemente.
— Tudo bem, Rorie, vamos colocar isso aqui — ele ajusta o
aparelho atrás das orelhas dela, e a expressão de Rorie muda, seus olhos
piscando rapidamente.
Quando tudo está no lugar, o médico liga o dispositivo. Rorie mexe
no colo de Vince com o rosto surpreso, levanta a mãozinha e toca a orelha
esquerda com curiosidade.
Minha filha olha diretamente para mim, olhos brilhando de
estranheza.
— Mamãe? — Pergunta o que raios está acontecendo. Depois,
franze as sobrancelhas por como sua voz soou.
— Sim, meu amor. Mamãe — digo, querendo chorar.
Ela podia ouvir antes, mas agora é provavelmente a primeira vez
em muito tempo que consegue ouvir minha voz com clareza.
Vince, ao meu lado, está emocionado. Muito orgulhoso.
— Aqui está seu papai — digo, recebendo um rostinho confuso.
Não é uma palavra que ela conhece.
Mas, pela expressão de Vince, isso vai mudar.
Lágrimas saem dos seus olhos ao mesmo tempo que ri, sem se
importar com onde estamos ou quem está vendo.
— Papai — ele repete, fazendo carinho na barriguinha dela. —
Você pode dizer? Nada me faria mais feliz.
E eu acredito nisso.
A resposta de Rorie é um sorriso brilhante, que Vince aceita com
igual carinho.
— Eu amo você — sussurro baixinho.

VINCE
Levo Amélia e Rorie para a casa delas, e tenho certeza de que meu
peito está estufado.
Eu sou pai.
Bom, não apenas pai. Papai. Fico pensando em como será a
palavra saindo de sua vozinha doce. É minha missão de vida ensiná-la.
Podemos treinar a língua de sinais americana também; pesquisei um pouco
nas últimas semanas.
Tento voltar a cabeça para o lugar, preciso lembrar tudo o que o
Charles disse sobre os aparelhos. Deveria ter anotado, minha mente tem
tantos pensamentos felizes que não confio totalmente na minha memória
agora. Amélia tem um bloco de notas na casa dela, vai ter de servir.
— Como ela está aí? — pergunto, olhando no retrovisor. Amélia
foi no banco de trás para ficar próxima de Rorie.
Minha filha, Rorie.
— Curiosa.
— Acha que devemos fazer silêncio para que ela não fique
sobrecarregada?
Amélia começa a rir, e percebo que é uma ideia estúpida.
— Pai de primeira viagem — dou de ombros, sem me desculpar.
Chegamos. Estou muito ansioso para levá-las de volta para nossa
casa. Mais cedo, trouxe uma mochila, que está escondida debaixo da cama.
Pedi ao Johan para ficar com o Bruce por uns dois dias, pensando na
possibilidade de ele lamber a orelha de Rorie e pegar o aparelho.
Agora, isso também parece estúpido.
Não vou nem arriscar dizer isso em voz alta, é só pegar o cachorro
à noite e fingir que nada aconteceu.
54
AMÉLIA
Tomo uma ducha enquanto Vince vai buscar meu cachorro.
O homem realmente acha que não percebi a mochila embaixo da
cama? Eu vivo no chão, brincando com Rorie. É adorável de uma forma
indescritível. Acho que tenho o cara mais doce do mundo.
Digo tenho porque ele é meu.
Não quero que ele pise em ovos ao meu redor, quero seus braços
fortes em volta de mim e todas as coisas lindas que vêm junto disso.
— Cheguei — anuncia.
Por algum motivo, parei de frente ao espelho, enrolada na toalha.
Não respondo, ele continua me procurando até me encontrar, afinal, a porta
está aberta.
Em todos os sentidos.
— Amélia?
A voz está grossa, e vejo, através do espelho, seu pomo de adão se
movendo. Vince, sendo Vince, está esperando que eu esteja pronta. Que
tenha certeza.
E, por Deus, não sei se já estive tão certa na vida.
Eu o convido com os olhos, e ele caminha até ficar bem próximo,
com o abdômen encostando nas minhas costas. Quente. Passa as mãos pelos
meus braços, e fecho os olhos, suspirando.
Tombo a cabeça, e um beijo muito suave roça o meu pescoço.
Escolho as palavras com cuidado.
— Você vai ter que me pedir em casamento de uma forma épica,
Vince — falo, e ele nem mesmo para com as carícias, não hesita.
Pelo contrário, seus beijos ficam mais gostosos.
Animados.
— Eu vou. — Recebo uma mordida tão forte de afirmação que
meu corpo se inclina para o lado, e é ele quem me segura.
Caramba, senti falta disso.
A toalha cai no chão – bem, eu a solto.
VINCE
— Obrigado, porra.
55
VINCE
Esfrego minhas mãos, nervoso.
Tudo tem de estar perfeito.
Alguns dias atrás, quando fui guardar o cheque de Rorie, topei com
a caixinha de madeira que Amélia usa para guardar suas coisas especiais. É
claro que bisbilhotei, parecia muito mais cheia do que quando a vi no ano
passado.
Estava lotada de fotos da gente.
Desde aquelas que tiramos em família, com Rorie e Bruce, até
selfies de apenas nós dois juntos, todas com a data atrás. Já fiquei
emocionado, mas o que chamou mesmo minha atenção foi uma flor seca
guardada em uma folha de papel.
As rosas que dei a ela.
Pela data, reconheci como sendo no dia do nosso primeiro
encontro. Aquele que não pudemos ir porque Rorie estava adoentada, e
Amélia, uma confusão emocional e física. Mesmo assim, ela tirou um
momento para guardá-las como lembrança.
Não vou mentir, quase chorei.
Meu telefone toca e penso em ignorar, mas vejo que é minha mãe.
Ela está com Rorie, então atendo.
— Ela não larga o cachorro, Vincent — reclama antes que eu diga
alô.
— É, eles têm essa coisa mesmo. É só… deixar.
A ouço suspirar, não sei se através do telefone ou por ser alto a
ponto de ouvir daqui.
— Vocês estão criando a garota como o Mogli — resmunga. —
Ótimo.
Bufo, chocado com a comparação muito... precisa.
— A senhora pode lidar com isso? — pergunto.
Honestamente, já sei a resposta. Minha mãe, à própria forma, tem o
coração muito mais mole com os netos. Rorie, especialmente, porque é
nossa única menina.
Paul e Cassie terão outro carinha.
Não que fizesse diferença, acho.
— Claro que sim — responde com um "tsc" e desliga na minha
cara.
Hum, ok.
Resolvido isso, volto a esperar com o coração batendo forte.

AMÉLIA
É final da tarde e dirijo de volta para casa, depois de outro
encontro na universidade. Estamos apenas no meio do semestre e, se
continuar assim, vou ter de começar a injetar café na veia. O que, segundo
Levi, faz mal. Não me surpreenderia se tivesse tentado, ele é doido nesse
nível.
Mas está bem.
Rorie está feliz, a sua fase de adaptação correu sem grandes
problemas.
Em um ano estarei formada e pronta para começar a trabalhar com
serviço social.
Eu e Vince… loucamente apaixonados, e ainda assim com uma
base sólida de confiança e realismo. Um dia, o homem sentou na cadeira e
me explicou tudo sobre as suas finanças. Não precisava, e eu
definitivamente não esperava por isso. Mas ele sabe que tive um passado
duro e queria garantir que nunca mais precisarei me preocupar com dinheiro
na vida.
Não me ofendeu. Na verdade, achei incrivelmente sexy esse lado
adulto responsável.
Estaciono o carro e desço devagar, andando até a porta, muito
distraída. O céu está em um tom de rosa pálido lindo e, estranhamente, o
vento traz um perfume de flores.
Paro na entrada e puxo a respiração novamente. Confusa, giro a
maçaneta, abrindo a porta.
E o mundo se enche de vermelho.
Meu coração salta, e por um segundo, parece que estou sonhando.
Rosas em todos os cantos. Do chão ao teto, espalhadas pela mesa, cobrindo
cada móvel, cada prateleira, cada espaço que minha vista alcança.
Minha garganta aperta e o calor sobe pelos olhos. Dou uma risada
incrédula. Vince deve ter comprado todas as rosas vermelhas de New
Castle.
Fico parada, imóvel. Simplesmente sentindo. Paz, calor. A
sensação de ser amada. A garota que passava as noites sozinha com sua
recém-nascida, sem confiar em ninguém, sempre estará dentro de mim, mas
agora… a vida mudou.
Depois de encarar tudo mais uma vez, pego meu telefone no bolso
e saio. Até porque não caibo em casa.
Lá está ele.
Vince, encostado contra o carro com os braços cruzados.
Meus pés se movem por vontade própria, e antes que eu perceba,
estou bem na sua frente. Vince me puxa para um abraço, o lugar onde
pertenço.
Ficamos assim, aspirando o calor um do outro por um tempão.
Então, ele segura meu rosto entre as mãos e sorri. Afasta uma
mecha de cabelo dos olhos, seus dedos roçando minha pele.
Tira uma caixinha de veludo do bolso.
— Você consideraria esse um momento épico, Amélia?
EPÍLOGO
VINCE
Alguns anos depois.
Acordo dentro dela.
Bem, tecnicamente não, mas é a primeira coisa que faço quase
todos os dias, e cada um deles tenho certeza de que não tinha vida até
Amélia. Deus, os anos passam e minha obsessão por ela só aumenta.
Ela está de bruços, então subo em cima do corpo, enfiando o rosto
no vão entre o pescoço e o ombro. Amélia geme no sono, sem se dar o
trabalho de abrir os olhos. É uma preguiçosa de manhã, mas com a libido
nas alturas. Ama ter seus orgasmos e voltar para a terra dos sonhos por mais
uma hora.
— Bom dia — grunho, deslizando para o canal quente, ainda
molhado de ontem à noite.
Toda suja de mim.
Minha resposta não passa de um suspiro dengoso.
Não demoramos, nossos corpos se conhecem muito bem. Cada
ponto sensível, cada terminação nervosa.
— O que vai querer de café? — pergunto, beijando sua bochecha.
— Ovos com bacon ou panqueca?
— Os dois — resmunga, já voltando a dormir.
Sorrio, eu adoro mimar essa mulher. Foi uma coisa que prometi
nos meus votos de casamento.
Visto roupas limpas e destranco a porta que instalamos alguns anos
atrás para evitar acidentes. Ainda é bem cedo, nem sete horas, mas assim
que passo pela copa encontro Rorie sentada à mesa da sala, com o cachorro
aos seus pés e um passarinho chamado Penoso observando seja lá o que ela
esteja fazendo.
Rorie é sempre a primeira a acordar. Acho que adora ter um
momento sozinha com seus animais – o que era assustador pra caramba
quando estava na idade entre três e cinco. Quase tinha um ataque cardíaco
toda vez que acordava e ela já estava de pé, mas hoje em dia é nossa rotina.
— Ei, princesa — cumprimento quando ela me olha. — Como
passou a noite? Teve bons sonhos?
Acena com a cabeça, me dando um sorriso alegre.
Rorie fala e usa língua de sinais, mas na maioria dos dias fica feliz
em apenas responder com os olhos.
— Hum, e o que está fazendo aí?
Ela me mostra um desenho bonito. É um gatinho.
Jesus, aposto que será nossa próxima aquisição. Rorie vai achar um
animal perdido, conquistá-lo com suas mãozinhas gentis, e antes que eu e
Amélia pisquemos os olhos, um novo integrante da casa Warren estará entre
nós.
— Está lindo — elogio, alisando seus cabelos avermelhados. —
Vou fazer café. O que quer hoje?
Agora, ela diz, com gestos ágeis, para eu colocar bastante
chocolate nas suas panquecas. Faz isso porque Amélia está dormindo, é
nosso segredo matutino.
O que posso dizer? A garota me tem na palma da mão, e sou muito
pai de menina, com todos os estereótipos possíveis.
Deixar me maquiar? Sim.
Sentar em uma cadeira minúscula para beber chá? Com certeza.
Viver em meio a um zoológico? Bem, além de Bruce, nós temos
um passarinho com bico torto, três coelhos e, em algum momento no
passado, uma galinha.
Passei dois meses sem comer carne quando decidiu ser vegetariana
e me chamou para juntar a ela, mas não aguentei. Amélia teve de interferir
para acabar com minha miséria.
Nós a mimamos muito, é verdade, mas Rorie tem uma natureza tão
doce que não parece fazer muita influência em sua personalidade.
Criamos uma filha segura e amada.
E eu mal posso esperar para ser pai de novo.

AMÉLIA
Mais alguns meses depois.
— Sem pressão, ok? — Vince diz pela milésima vez. Ele está
dirigindo o carro, mas tão ansioso que me surpreendo por conseguir manter
as mãos no volante.
— Eu sei, Vince — repito, tentando transmitir alguma paz. — Vai
ficar tudo bem.
Eu sabia que esse momento chegaria. Alguns meses atrás, ele
começou a falar sobre crianças e paternidade, até perguntou a Rorie o que
ela acharia de ter "mais alguém" em casa. Esperei que o convite finalmente
viesse.
Paramos em frente ao campo de futebol americano. Pelo que Vince
me disse, é um dos garotos que ele treina.
Descemos do carro, e Vince ajuda Rorie a saltar do banco de trás.
— Ouça, se você achar melhor não… — murmura, inquieto.
— Vince — toco seu braço, tentando tranquilizá-lo. — Acalme-se,
amor.
Ele assente, ainda agitado.
— Quem devo procurar?
Vince ainda não me disse o nome do menino, evitando criar
expectativas até que tudo estivesse acertado e conversássemos com Rorie,
mas suponho que seja alguém que eu conheça por causa do meu trabalho.
New Castle não é muito grande, e sou assistente social há mais de cinco
anos.
— Liam — diz. — Você procura por ele, eu e Rorie vamos esperar
aqui fora.
Concordo, e antes de me afastar, beijo seus lábios. Deixo um beijo
na testa de Rorie também. Ela sabe o que está acontecendo, mas hoje está
quietinha.
Deixo os dois e, pensativa, caminho pelo gramado.
Imagino uma criança tranquila, tímida, com olhos brilhantes e um
sorriso cativante. A imagem que tenho em mente é de alguém como Kaleb,
o filho mais novo de Cassie e Paul. Ou Justin antes de virar um adolescente
mal-humorado.
Mas, quando pergunto, me apontam um garoto sozinho, jogando a
bola com um semblante fechado.
Deve ter por volta de onze anos, tem cabelo escuro e grande
demais, e a pele queimada de sol. Olhos castanhos, nada amigáveis.
— Liam?
Ele me encara lentamente, avaliando com um olhar astuto. Não diz
nada.
— Sou Amélia.
— Sei quem você é — responde, cruzando os braços na defensiva.
Dou um passo mais perto.
Eu me lembro dele. Sua mãe faleceu anos atrás, e acompanhei o
caso quando o deixamos aos cuidados de uma tia-avó mais idosa do que eu
gostaria. Não encontramos nenhum outro familiar apto a assumir a guarda.
— Então, futebol? — puxo assunto, apontando para a bola.
— Sabe jogar? — desafia, levantando o queixinho.
Meu Deus, claro que Vince não ficaria louco por uma criança fácil.
O garoto, arisco e desconfiado, é uma versão mais nova de mim quando nos
conhecemos.
— Não — rio. — Mas meu marido joga.
Sua resposta é apenas um erguer de sobrancelhas.
— Podemos conversar um pouco? — peço.
Com o rosto cético, ele caminha ao meu lado.
Quer saber qual é a minha.
Meus pensamentos vagam até Rorie, que cresceu de forma tão
diferente. Eu amo o fato de que ela nunca passou um dia sem saber o que é
amor incondicional. Todas as crianças deveriam ter isso.
Todas as pessoas.
Especialmente as feridas.
É algo que só fui conhecer com Vince.
Olho para o outro lado do campo, perto dos bancos, e vejo os dois
conversando em linguagem de sinais. Ele diz algo, e Rorie sinaliza
rapidamente em resposta.
— Você é a esposa dele? — Liam pergunta de repente.
— Sou, sim — aponto para Rorie. — Aquela é a nossa filha.
Ele a observa, confuso.
— O que eles estão fazendo com as mãos?
— Conversando. Rorie é surda, então às vezes nos comunicamos
assim.
— Surda? — pisca, surpreso. — Mas ela… parece normal.
— Ela é normal — explico com um sorriso gentil. — Só não
escuta como a gente.
Liam assente, intrigado e desconfortável ao mesmo tempo.
— E ela vai ficar assim para sempre?
— É uma possibilidade... Estamos esperando até que ela seja mais
velha para decidir se quer usar um implante.
Liam franze a testa novamente.
— Eu não sei nada disso.
— Você pode aprender — digo, encorajando-o. — Quer ir lá
conhecê-la?
Nem preciso pensar muito a respeito, Liam já me conquistou.
Foi assim que Vince se sentiu quando conheceu Rorie? Ele sempre
diz que foi pai muito antes de adotá-la legalmente, logo antes de nos
casarmos. Eu me perguntava como tinha tanta certeza, e agora estou
começando a entender.
Liam hesita por um segundo, mas então assente.
São segundos apreensivos até chegarmos perto de Vince e Rorie.
Sinto uma mistura de emoções, e o garoto ao meu lado parece muito
incerto. Eu me lembro de como é viver o tempo todo com a guarda alta, e,
me sentindo protetora, quero garantir que ele ficará bem.
Vince o cumprimenta com um desses toques que garotos gostam, e
Rorie, muito curiosa, dá um passo à frente e sorri. Sinaliza um "oi" com a
mão.
Liam olha para ela, depois para mim.
Tenta imitar o gesto.
— Oi — murmura também, sem jeito.
É o suficiente para minha Miss Carisma. Ela estende a mão,
chamando-o para brincar. Liam só aceita depois de encarar como se fosse
uma armadilha. Então, relutante, a segue.
Vince vira para mim, os olhos cheios de expectativa.
— E então? O que achou? — Pergunta. — A tia está com a saúde
ruim, não tem conseguido... hum, cuidar bem. Está procurando uma
família...
Envolvo meu braço ao redor dele, interrompendo, e deixo um beijo
em seu maxilar barbado.
— Vamos tirar um momento para ver nossas crianças brincando —
sussurro, apoiando minha cabeça em seu ombro.
NOTA DA AUTORA
Jesus, meninas, esses dois me deram trabalho. Só Deus – e a
Isabela e a Chelly, para ser justa – sabem quantas vezes pensei em desistir,
começar de novo, tentar algo diferente... Hoje, sinto-me extremamente grata
por ter dado a Amélia e Vince uma chance. Eles entraram profundamente
no meu coração, e espero que entrem no de vocês também.
Gostaria de agradecer à minha família pelo estranho apoio –
embora não façam ideia de qual livro estou falando, eles foram animados o
suficiente para me arrancar muitas risadas.
Às minhas amigas, já mencionadas, que me empurraram sempre
que necessário.
Agradeço muito às minhas parceiras, que estão fazendo um
trabalho incrível nessa pré-estreia. Sério, de onde vocês saíram?
E, principalmente, a você, meu leitor, por me dar a oportunidade de
contar mais uma história de amor.
Abraços, e até a próxima!
Ah, e não se esqueçam de avaliar!
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Carter é uma alma perdida.
Rae protege seu frágil coração com unhas afiadas.
No turbilhão de excessos do mundo da música, intermináveis altos
e baixos nos bastidores, a vida de Rae, uma artista anônima, vai de encontro
com Carter Hunter, o polêmico vocalista da banda Bad Habits. Cotada para
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precisam um do outro… até quando resistirão a fazer um pacto?
Dilemas do passado e impasses do presente…

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