Melhor Não Contar Tatiana Salem Levy
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Tatiana Salem Levy
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Obras citadas
Autora
Créditos
1
Era um domingo, e eu, que costumo ser péssima com datas, cravei
esta na memória: 3 de dezembro de 1989. Minha primeira lembrança
com data.
Estou sentada no jardim da casa de praia do meu padrasto em
Itacoatiara. Minha mãe, ele e eu deixamos as horas passarem
lentamente, não temos nada para fazer. Abandono o olhar pelo
contorno da piscina em forma de oito, sem azulejos, o cimento à
mostra pintado de azul, e me perco em devaneios. Embora eu me
lembre com detalhes desse dia, que me perseguiu durante os anos que
vieram mais tarde, e continua me perseguindo agora, enquanto
escrevo, não sei dizer por que a minha irmã não foi com a gente. Onde
ela teria passado o fim de semana? Por que não estava ali para
brincarmos juntas?
Minha mãe rompe o silêncio me perguntando por que não faço
como ela e tiro o sutiã do biquíni. Sempre que podia, no terraço
indevassável lá de casa ou em Itacoatiara, ela usava só a parte de baixo
do biquíni. Quando comecei a usar sutiã na praia, dois ou três anos
antes, ela não se conformou, Aproveita enquanto é criança e não
precisa disso. E acrescentava, Sutiã é tão desconfortável…
Aos dez anos, tenho peitos que começam a ganhar volume, os
mamilos despontando. Aos dez anos, e naquele dia em particular,
tenho muito pouco controle sobre meu corpo.
Tá só a gente aqui, ela insiste. Para a minha mãe, ter os peitos de
fora na praia ou na piscina significava ser livre; e essa liberdade, a das
mulheres, pela qual tinha lutado e da qual não abria mão, era o
primeiro mandamento lá de casa.
Meu sutiã, de cortininha, é lilás nos triângulos, rosa nas cordas.
Levo o braço direito até a omoplata e desfaço o laço, deixando parte
dos meus peitos de fora. Quando termino de tirá-lo, sou invadida por
uma sensação muito diferente da que a minha mãe descrevia. Não
experimento nada de confortável.
A nuvem que cobre o sol se afasta naquele instante, um raio
violento me obriga a fechar os olhos e levo as mãos ao rosto. O calor
também alcança os mamilos, e o desconforto vai se espalhando pelo
corpo inteiro. Como as crianças pequenas que brincam de se esconder
tapando os próprios olhos, pensando que, por não verem os outros, os
outros não as veem, permito que o sol me toque até entre as pernas,
que contraio, certa de que ninguém está me vendo. Volto a mim com
o barulho do copo de cerveja caindo no chão, minha mãe ergue o
jornal, Droga, meu padrasto se levanta para pegar um pano, um
pequeno abalo naquela manhã plácida.
Depois, cada um volta para o seu silêncio. Estamos juntos, mas
fazendo coisas distintas e solitárias. Na realidade, eu não estou
fazendo nada, oscilando entre o tédio, que ocupa boa parte dos meus
dias, e a excitação, que surgiu desde que tirei o sutiã. No chão melado
pela cerveja aos poucos forma-se um trilho de formigas, e aqueles
insetos andando de forma sistemática provocam o mesmo efeito do sol
entre as minhas pernas. Aproximo o rosto para apreciá-las de perto, as
patas pequeninas caminhando numa velocidade impressionante. Pego
uma delas e ponho sobre minha barriga enquanto deito de costas no
piso rígido. Sinto uma cócega ligeira, ela desce pelas minhas costelas e
depois se perde, mas é como se eu a continuasse sentindo, o vestígio
de suas patas sobre o meu ventre, um movimento sobre o meu corpo.
Adormeço.
Mas é rápido, muito rápido. Lembro do barulho das páginas de
jornal virando, minha mãe concentrada. Havia dois movimentos: um,
que fazia com que o exterior se fundisse ao meu interior, como se eles
fossem uma coisa só, tudo parte do mesmo mundo, da mesma
natureza, sem distinção de seres; outro, que me separava claramente
do lado de fora, de modo tão radical que eu tinha a sensação de não ser
vista por ninguém, que o que acontecia dentro de mim era tão secreto
e tão meu que ninguém, jamais, descobriria.
Nos últimos meses, desde que os meus peitos começaram a
despontar e entre as minhas pernas haviam nascido alguns pelos,
sentia de alguma maneira que eu e minha mãe começávamos a nos
afastar. Nada muito grave, apenas um incômodo, mais um, entre os
tantos que de um momento para outro passei a sentir.
Mas os incômodos não me incomodavam tanto assim. Havia algo
de prazeroso neles, e eu sempre tão facilmente levada pelo prazer… E
pelas perguntas, que agora me descolam do chão e me fazem deslizar
os olhos pelo contorno da piscina, o pensamento ininterrupto, o sol
intenso sobre os peitos livres. Àquela altura, eu já esqueci por que tirei
o sutiã, e até mesmo que tirei o sutiã ali na piscina, com a minha mãe
e o meu padrasto ao redor. Levo um susto ao constatar que me sinto
sozinha no mundo. Mais sozinha do que alguma vez imaginei.
Permaneço observando diferentes tipos de insetos que surgem na
borda da piscina, duas libélulas que se cruzam no voo, colando-se uma
à outra, tudo nos mais ínfimos detalhes. Toda forma viva desperta um
poro da minha pele, até mesmo as folhas que balançam na
jabuticabeira quando a brisa passa. Sussurro o meu nome
pausadamente, sílaba a sílaba, Ta-ti-a-na, repito-o um pouco mais
veloz, depois mais e mais veloz, até a palavra virar uma massa
uniforme e sem significado. Não gosto nada do meu nome. Minha
irmã mais velha herdou da nossa bisavó paterna o Djamila, que
significa bela em árabe; a Dina tem o nome da mãe do nosso pai. Só eu
ganhei um tão comum. Apesar da banalidade do nome, eu me sentia
estranha, diferente das outras meninas, numa época em que tudo o
que a gente quer é ser igual (como elogio, minha mãe me comparava a
um camafeu; dizia que só os homens mais velhos podiam
compreender minha beleza).
Aqueles mamilos só me faziam sentir ainda mais esquisita do que
as outras meninas, para não falar nos pelos pubianos, vindos antes da
hora, dez anos não é idade para isso. De alguma forma, sei que as
coisas tendem a me acontecer antes do momento previsto; então eu as
aceito, não completamente, mas aceito, e experimento o prazer
enquanto meus olhos deslizam pelos insetos. Se eu fosse bonita,
poderia partilhá-lo com alguém, penso enquanto amarro, naquele 3 de
dezembro de 1989, um laço comigo, com a minha solidão, que vou
levar vida afora. Uma promessa?
Isso eu não sei ainda. Por ora é só um acontecimento. Eu ali na
piscina, aos dez anos de idade, os mamilos à mostra, o corpo
descobrindo o prazer com tudo o que o rodeia — as formigas, as
plantas, as libélulas, o sol, o vento, a água —, os sentimentos de feiura
e precocidade inaugurando a relação entre prazer e solidão, e de
repente a voz do meu padrasto, a voz doce e mansa do meu padrasto,
junto com o gesto, o braço estendido, uma folha na minha direção, e o
susto, o despertar repentino, como se me acordassem de um sono
muito profundo, de um sonho palpável e real. Então seguro a folha e
olho para o desenho que o meu padrasto esteve a fazer enquanto,
sentada, eu olhava as formigas.
E aí é como se eu descobrisse, tarde demais, que tapar os olhos não
é suficiente para os outros não me verem. Na folha branca, traços
simples feitos com caneta azul contornam o corpo de uma menina
sentada; uma menina sem rosto — sem olhos, sem nariz, sem boca —
com um cabelo levemente encaracolado. Seus mamilos, apontando
um para cada extremidade do papel, chamam a atenção. Há mais tinta
neles, foram desenhados com força. Estão eretos, reparo.
Então, outro acontecimento se sobrepõe ao acontecimento. Minha
solidão foi invadida, está ali exposta no desenho, tudo o que eu achava
que era só meu, concentrado naquelas duas bolinhas de tinta azul.
Delicadamente, porque naquela idade todos os meus gestos ainda
são delicados, repouso o desenho no chão, entro na piscina e vou
nadando até a borda oposta, onde não tenho pé. De longe, vejo minha
mãe segurando o desenho e sinto uma vergonha imensa, o coração
acelerado, a sensação de que alguma coisa muito errada está
acontecendo, embora não saiba identificá-la. Dou um mergulho e
prendo a respiração, as bolhas soltas só quando não aguento mais. Não
tenho grande resistência embaixo d’água, odeio fazer as aulas de
natação para as quais minha mãe me obriga a ir duas vezes por
semana, mas juro que a partir daquele dia vou me dedicar mais,
preciso aumentar o fôlego, abrir os pulmões, minha mãe tem razão,
penso, antes de inspirar fundo e mergulhar, na tentativa de atravessar
a piscina por baixo d’água. Ela ainda segura o papel quando eu, a
menina do desenho, a menina da lembrança, a Ta-ti-a-na, ouço sua
voz, Bonito, né? Discretamente, e por timidez, concordo com a
cabeça. Ela afirma que o olhar do meu padrasto sabe enquadrar tudo
tão bem, ele capta a essência das pessoas em poucos traços. Além de
bom fotógrafo, de ser um cineasta que revolucionou o cinema
brasileiro, também desenha com primor. A menina, na sua delicadeza,
sorri e volta a nadar.
2
Todo mundo conhece os peitos da tua mãe, diz uma amiga oito anos
depois do episódio da piscina, com um sorriso que é seu até hoje.
Será?, retruco. Ela não faz a menor questão de os esconder, afirma.
Não sei se há crítica em suas palavras, mas há humor, e também
ternura, porque essa amiga, que também escreve, se entendia muito
bem com a minha mãe. Quatro anos mais velha do que eu, entrou na
minha vida no ano em que a Djamila morreu — e ficou.
Da minha mãe, tenho um segredo. E toda uma vida que ela não
conheceu.
Não sei quantos segredos ela teria de mim, quantos segredos nunca
vou conhecer.
A minha amiga tem vários. Faz parte dela ter segredos. Ela não
gosta que nada seja grave. Então, espera o tempo passar, espera muito,
e de repente, numa conversa banal, num café da manhã em sua casa,
ela revela algo drástico do seu passado como se eu já soubesse. Foi
assim, por exemplo, que me falou de um aborto mais de vinte anos
depois. Como se nada fosse, ela comentou, Acho que eu nunca tinha
te contado. E vida que segue, porque afinal vinte anos já tinham se
passado.
Na hora em que as coisas acontecem, essa amiga que também
escreve acha que nomeá-las as torna reais em excesso. Ela não gosta
de sobressaltos, tem receio dos meus dramas, que, diz ela, fazem tudo
ficar mais intenso. Pouco depois da morte da minha mãe, seu irmão
mais novo teve o mesmo câncer do qual ela havia morrido. Tudo
começou com uma dor de garganta que não passava e uma série de
exames. Quando lhe perguntei sobre o resultado, ela deve ter
hesitado, mas preferiu me dizer que era só uma inflamação. Alguns
meses depois, encontrei-o num evento, sem cabelo.
Demorou, mas acabei compreendendo os segredos da minha amiga
como parte dela. Parei de querer que me contasse tudo. E assim, vez
ou outra, num café da manhã, descabelada, de pijama, com a maior
naturalidade do mundo, esvaziada de peso, ela me revela alguma
história difícil da sua vida da qual eu talvez tenha participado sem
saber, em silêncio.
Quando contei o segredo que guardei da minha mãe para ela, a
minha mãe ainda estava viva. Ela achou melhor eu não contar.
7
F., outra amiga, mais antiga, também achou melhor eu não contar.
L., uma amiga da escola, também achou melhor eu não contar.
M.F., uma amiga da faculdade com quem troquei uns beijos numa
noite, também achou melhor eu não contar.
V., uma paixão, também achou melhor eu não contar.
M.B., um namorado, também achou melhor eu não contar.
A ex-psicanalista da minha mãe também achou melhor eu não
contar.
A minha irmã, quando soube, a nossa mãe já tinha morrido; então
ela me disse, Preferia que você não tivesse me contado.
Se fosse hoje, eu responderia, Eu também preferia que não tivesse
acontecido.
8
Ó
sócio italiano a Óptica Lux. De origem pobre (com oito anos começou
a vender botões na rua), subiu na vida, como tantos imigrantes no
Brasil. Construiu uma casa enorme para a família na quadra da praia
no Leblon — nos anos 1950 e 1960, um bairro que não tinha o mesmo
status de privilégio de hoje. Minha mãe a descreve em seu livro Entre
árabes e judeus: “Era assim a nossa casa de pedra no Leblon. Embaixo,
a sala de jantar, copa, cozinha, sala de visitas, banheiro, duas varandas
e o hall de entrada — tudo bem amplo. No andar superior, outro hall,
o quarto duplo de meus pais com espaçosa varanda, o banheiro deles
(rosa, de mármore), o das crianças (azul, de azulejos), um quarto para
meu irmão Sérgio (com uma grande escrivaninha) e outro para as três
meninas (com uma penteadeira). Do lado de fora, jardim, garagem,
lavanderia, salão de jogos, um quarto para cada um dos três
empregados. Ou seja, uma casa onde sobrava espaço, mas nós três
possuíamos apenas um quarto para dormir, guardar nossas roupas,
livros, coisas em geral”.
Minha mãe comentava com frequência a geografia da casa, que
reservava apenas um quarto para as três irmãs, sem lugar de estudo, e
um inteiro para o irmão mais velho, que reinava no contexto
doméstico. Também dizia que as meninas — apesar de estudarem em
bons colégios, terem aulas de inglês, francês e piano — eram educadas
para encontrar um noivo no CIB, o Clube Israelita Brasileiro. A
inteligência da mulher se revelava na escolha de um bom marido.
Nessa economia familiar, minha mãe havia chegado por último,
depois de um menino morto na barriga da minha avó, com a gravidez
avançada. Quando ela nasceu, meu avô sofreu de desgosto diante de
mais uma menina. “Nunca me esconderam também que papai chorou
muito quando nasci — de tristeza, de raiva”, escreve a minha mãe.
Não sei se a sua força e a sua liberdade vieram de ela ser a caçula,
de ter sido indesejada, nem sei o que fez com essas palavras que ouviu
desde pequena. Sei que, das três meninas, foi a única que não saiu
para casar de véu e grinalda, e virgem, na sinagoga. Tendo nascido
depois de um menino perdido, fez coisas que só os meninos faziam.
Também sei que, para ela, minha avó aconselhava o que jamais diria às
outras: “Minha filha, não entre na cozinha, que você não sai mais de
lá”. Na sua loucura, Judith lhe havia dado o melhor dos conselhos.
Anos após a morte da minha mãe, escrevi no meu segundo
romance uma personagem que tinha transtorno obsessivo-
compulsivo. Só então, ao pesquisar e escrever sobre o tema, entendi
que, se fosse viva, Judith seria diagnosticada com TOC. Ela exigia que
os objetos da casa ficassem rigorosa, milimetricamente organizados;
gritava se encontrasse uma escova de dentes fora do lugar; repetia a
mesma pergunta compulsivamente. Chegou a ser internada numa
clínica psiquiátrica, de onde conseguiu fugir saltando o muro.
Minha mãe nunca se deu muito bem com sua mãe, mas
provavelmente se parecia com a mulher que Judith havia sido antes do
casamento: uma mulher de gargalhadas soltas. Judith parou de rir
porque meu avô não gostava e também porque não era feliz como mãe
e esposa nem tinha como pular fora. Ou pulou fora de um modo torto,
com suas obsessões, suas mil doenças, cirurgias, enxaquecas.
Talvez Judith enxergasse na caçula a coragem necessária para não
entrar nas prisões em que ela se via: a casa, a cozinha, o marido, a
maternidade, a vida doméstica, enfim. “Meu pai pôde vencer na vida,
ser um grande comerciante; minha mãe só pôde casar e procriar. Não
tenho dúvidas de que ela era bem mais inteligente, viva, do que ele.
Apenas não pôde viver”, escreveu a minha mãe.
Apesar do tamanho e da beleza da casa no Leblon, ela sempre me
pareceu um lugar apertado por causa de suas convenções. Um lugar
onde eu não gostaria de ter nascido. Muitas vezes, tentei imaginar as
meninas no andar de cima, minha mãe escrevendo seus diários na
cama enquanto as irmãs dormiam. Ela costumava dizer que ansiava
pelo momento em que elas casassem e o quarto se tornasse apenas
seu. E assim foi: primeiro a Lúcia, depois a Gilda, e o quarto ficou só
para ela. E foi chatíssimo.
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27/01/1961
Querido Diário,
Mamãe continua na mesma briga conosco por qualquer coisinha, às
vezes chega a ser insuportável. Oh! Você não sabe como é horrível ter que
mentir para a mamãe assim. Como eu gostaria de poder contar tudo para
ela assim como eu conto para você, contar-lhe que agora eu conheço muitos
rapazes e outras coisas. Está certo que ela não me deixe namorar, mas não
me deixar conversar com rapazes como amigos é horrível! Eu jamais me
conformarei com isso! Eu, se algum dia tiver uma filha, creio que jamais
terei coragem de fazer uma coisa dessas! Mas não adianta, mamãe é assim
mesmo, tem ideias muito antigas, creio que não faz isso por mal.
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Eu também tive o meu quarto das três irmãs. Quando meus pais se
separaram, passamos a viver em guarda compartilhada. Depois,
quando fiz dez anos e me mudei para uma escola grande, perto da casa
materna, passei a viver só com a minha mãe. Eu, Dina e Djamila
dormíamos na casa do nosso pai todas as terças-feiras e dois fins de
semana por mês.
Quando a mãe da minha irmã mais velha morreu, de um câncer
fulminante nos pulmões, ela se mudou. O nosso quarto também se
tornou só dela nos momentos da nossa ausência. Foram quatro anos
assim, até a madrugada em que meu pai acordou com a campainha, o
bombeiro na porta, anunciando o desastre.
Ficamos horas do lado de fora, sem conseguir entrar no Miguel
Couto nem ter notícias do seu estado de saúde. Sabíamos apenas que
ela estava no CTI. Em algum momento, eu e meu pai conseguimos
entrar. Nos corredores repletos de gente do hospital, interceptamos
um médico que passava. Meu pai descreveu a filha, e a resposta dele
foi, Só um milagre. Um milagre? Ele já tinha visto algum milagre
acontecer? Já tinha visto, naquele hospital acostumado a receber
emergências, uma mulher de vinte e seis anos bater um Uno branco
contra uma árvore no aterro do Flamengo, ser levada com
traumatismo craniano, o corpo todo deformado e morte cerebral,
sobreviver? E o jeito frio, assertivo como ele disse “Só um milagre”
antes de seguir o seu caminho não nos deixou qualquer dúvida. Soltei
um grito que escuto até hoje e despenquei no chão. Uma enfermeira
surgiu, me amparou, depois desapareceu e voltou com um copo de
água com açúcar. Em seguida, andamos pelo corredor, não lembro por
que, nem para onde, mas vejo e escuto meu pai, que nunca chora,
chorando. A casa vai ficar tão vazia, ele constatou.
No dia seguinte, no enterro, uma amiga do meu pai me segurou e
me disse com firmeza, Cuida do teu pai. Perder uma filha é pior do
que perder uma irmã.
Mania que as pessoas têm de quantificar a dor.
De comparar as dores.
De pronunciar sentenças definitivas em momentos de desespero.
De colocar na cabeça de crianças e adolescentes frases que elas
jamais conseguirão esquecer, porque nessa altura da vida as sentenças
grudam na cabeça e não descolam mais.
Juntei as frases, a do meu pai e a da amiga dele, e me mudei, aos
dezessete anos, dias antes de começar o primeiro semestre na
faculdade, para a casa que não podia ficar tão vazia. Ocupei o quarto
que nunca mais seria de nós três, onde encontrei os presentes que a
Djamila havia comprado para me oferecer no aniversário: o CD Joia,
de Caetano Veloso, e uma agenda de 1996 que eu mesma lhe havia
pedido, para anotar os acontecimentos dos meus dias. E o que
aconteceu ao longo daquele ano fui eu tentando preencher o vazio da
casa.
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31/01/1961
As coisas vão da mesma maneira, e até agora nada de novo, continuo a não
ter sorte no amor, a não ser com os que eu não gosto, continuo a ter amores
impossíveis (Biriba, Roberto e Robertão) e assim por diante. Mamãe hoje à
noite estava muito zangada e portanto brigou muito, mas depois isso
passou. Bem, agora vou dormir. Boa noite.
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01/01/1965
Querido Diário,
É estranho estar sozinha no meio de tantas pessoas. Só em todos os
sentidos. Mas é bom. Faz-nos crescer, e muito. Parece também que os fatos
ocorridos recentemente não se realizaram, não foram reais. O embarque,
papai chorando, as confusões no colégio, minha despedida do prof. Hugo,
Maria Luiza, tudo, enfim. Entretanto, essas coisas estão bem vivas em
minha mente. Não esqueço um só detalhe. O ano que passou teve muitas
pedras [perdas?], mas foi um ano muito intenso para mim.
02/01/1965
Não sei o que me ocorreu hoje à noite, não conseguia me integrar entre as
pessoas, sentia-me quase como L’etranger, de Camus. Como eu gostaria de
ser diferente, de ser realmente extrovertida. Ser humano é mesmo um bicho
complicado. Veja só eu, por exemplo, nunca estou satisfeita com o que tenho
ou o que sou.
P.S.: Se imaginasses essa cabine… Gostaria de escrever muita coisa. São
mil pensamentos que borbulham em minha mente. Mas este sono…
16
Ah, não, em sussurro já foi até aqui. Agora você vai gritar bem
aaaaalto, vai deixar a menina tímida de lado, vai escrever num tom de
voz límpido e forte tudo o que aconteceu com você; tudo o que você
não contou à sua mãe e te sufocou esses anos todos. Você vai gritar e
vai se perguntar, Quais eram, quais são meus verdadeiros medos?
Lembrando que, se o que você quer não é apenas contar essa história,
mas escrevê-la, não poderá deixar de se revelar, de se expor, o que
significa, em outras palavras, não ser complacente consigo própria.
Escrever, ou escrever-se, dói mais do que contar.
22
03/01/1965
Continuo a sentir grades ao meu redor. Penso às vezes que fui eu a própria
construtora, mas penso também que podem ter sido as condições que me
cercam as responsáveis.
Estava em busca de total alienação, mas não consigo viver num oceano
de superficialidade. Caio nas valas, aterro-me, não posso, sinto dificuldade
em me misturar com os outros. Contudo, não quero continuar assim, tenho
horror à solidão. Sei também que sou ingrata, exigente demais. Tenho
pensado muito, há diversas coisas que necessitam urgentes reparos em mim.
Hei de mudar.
24
15/02/1961
16/02/1961
Não sei, mas acho que não gosto do Ricardo. Ele não me atrai em nada.
Bem, mas tão cedo não posso terminar, pois a Verinha falou que seria muita
sujeira. Vou ver se aguento ele umas duas semanas… Oh! Pensando bem,
como foi chato esse negócio do Ricardo ter me salvado hoje, e pior ainda é
eu estar namorando ele. Mas não posso terminar por outro motivo, que a
Verinha me disse, se eu terminasse logo com ele, ia acabar ficando com a
fama da Maria Lúcia, pois eu já havia namorado o Bira só dois dias (12 a
14/01). Tomara que eu o aguente 2 semanas. Até já, depois do jantar
voltarei a escrever, “Ciao Diário”.
17/02/1961
Eu não sei, eu faço tudo pra ele brigar comigo, mas não adianta. Creio que
duas semanas eu não o aturarei. Vou ver se termino o mais rápido possível.
Talvez amanhã, já me enchi!
P.S.: Agora ficarei menos na rua, pois não fica bem uma menina passar o
tempo todo na rua.
18/02/61
Terminei com o Ricardo hoje à noite. Não sei, sinto-me tão triste e chateada.
Sinto-me extremamente culpada e má. Vejo a Lúcia e a Gilda como são, tão
diferentes de mim, têm o coração tão bom. Sinto-me egoísta, muito egoísta e
por isso estou zangada comigo mesma. Quero ser diferente, e serei! Não
posso continuar assim, tanto peço para ter mais paz comigo mesma, mas
hoje estou em guerra! Estou tão chateada, tão triste, tão desanimada! No
amor, não tenho mesmo sorte.
P.S.: Amanhã é o pior dia pra praia, pois amanhã o papai vai, e eu não
posso falar com garotos.
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05/01/1965
Querido diário,
Quando coisas desse cunho ocorrem comigo é que posso realmente medir
o grau de minha insegurança e imaturidade. Hoje foi um dia triste,
essencialmente vazio.
Ontem foi um dia ótimo. E se foi ótimo devo-o ao Roberto, bem sei.
Porém, o que vi nele, o que ele despertou em mim foi a projeção autêntica do
vazio do meu coração. Tudo isso é tolice. Analisando racionalmente, vejo
que é. Acontece que nem sempre conseguimos ser racionais. Creio que não é
necessário lembrar que, apesar de tudo, sou um ser humano, e muito
complicado. Ele tem namorada e, além do mais, é muito bonitinho. Veja lá,
quem sou eu?
Como é difícil a gente almejar a ser gente de verdade.
31
07/02/1961
Estou apaixonada por G., o avesso deste livro, a sua parte oculta. É o
encontro com ele que me leva a escrever este livro, a me questionar,
Quantas vezes temos que repetir a mesma história para sair dela?
34
O sangue entre as pernas poderia ser outro dos meus segredos, mas
não sei o que fazer e, apesar de não ter vontade alguma, preciso contar
à minha mãe.
Assim que chegamos em casa, eles sobem e me deixam no andar de
baixo. De novo, fico só. Sento na escrivaninha forrada com fórmica
branca, pego meu diário da Hello Kitty e escrevo: “Hoje eu estava lá
em Itacoatiara (domingo) e aconteceu uma coisa que eu não queria, eu
menstruei. Poxa, por que não podia esperar eu fazer onze anos? Eu
sempre quis menstruar só com doze ou treze anos. Eu estou doida
para contar para a mamãe o que aconteceu, mas o meu padrasto tá
aqui e ela não me dá atenção. Agora que já aconteceu, eu estou doida
para ver a mudança que vai acontecer na minha vida. Adeus ao meu
tempo de criança”.
Minto para o meu próprio diário, assim como alguns anos antes
mentia para a psicóloga que a minha mãe me obrigara a frequentar.
Aos dez anos, eu achava que a minha intimidade era mesmo só minha,
nem o meu diário poderia saber toda a verdade. Nunca confiei nesse
interlocutor universal das meninas, o “Querido Diário”, e talvez por
isso eu tenha desistido tantas vezes de seguir adiante. Eu sabia o
tempo todo que estava mentindo — e o que eu queria da escrita não
era a mentira.
A verdade é que eu não estava doida para contar para a mamãe. Eu
precisava contar. Eu não estava doida para ver a mudança que ia se
realizar na minha vida. Eu estava muito assustada com o que estava
acontecendo e com tudo o que iria acontecer.
Então escrevo num pedaço de papel “Fiquei menstruada” e o
deslizo por baixo da porta do quarto da minha mãe, à espera que o
leia, e quando ela desce as escadas toda sorridente pela primeira vez
começo a chorar, um choro copioso, que parece nunca terminar.
Tudo o que não cabe em palavra nenhuma, nem num amontoado
de palavras, o que não cabe em significados, em explicações, se
transforma em lágrimas e soluços. Quero bater na alegria da minha
mãe, espancar a alegria da minha mãe e, com medo de que aquela
alegria a leve a espalhar a novidade, imploro que não revele a
ninguém, sobretudo à minha tia, a quem ela contava tudo, ou quase
tudo.
Repouso a cabeça em seu colo, enquanto ela me faz cafuné e diz
que também ficou menstruada aos dez anos — sim, nós somos muito
parecidas, quase iguais, mas há diferenças, que ela faz questão de
elencar: estou um ano adiantada na escola, aprendi a ler com quatro,
pulei o jardim de infância 2, o que significa que, embora eu tenha dez
anos, as minhas amigas têm onze ou mesmo doze. Além disso, as
férias acabaram de começar, vão se alongar até março, haverá tempo
suficiente para eu me acostumar à novidade, até mesmo para eu fazer
onze anos, as minhas amigas doze ou treze, não será uma anomalia,
muito pelo contrário, e assim o choro vai amainando e, de tanta
exaustão, adormeço.
Quando acordo, ela está ao telefone, contando para a irmã que
fiquei menstruada, que chorei muito, mas que agora estou dormindo.
Não quero acreditar que a minha mãe, a minha cúmplice, está me
traindo tão rápido, na minha cara, contando justamente para quem
pedi para não contar.
Fico possessa.
Por que você fez isso?, eu lhe pergunto. Ela me abraça, me pede
desculpas, diz que tenho toda razão, mas que não aguentou, está tão
feliz, teve que dividir aquela felicidade.
Com o decorrer dos anos, a cena sempre retornando, a intensidade
das sensações se desembrulhando muito lentamente, se tornando
palavras com o ritmo moroso de uma floresta que nasce numa terra
queimada, vou descobrindo que a minha mãe me traiu outras vezes
naquele dia.
Mas nenhuma dessas traições fez com que eu gostasse menos dela.
Ou sentisse raiva além daquela ira imediata de quando a ouvi ao
telefone com a Gilda.
A morte da minha mãe faria com que eu nunca conversasse sobre
esse episódio com ela. Haveria para sempre esse buraco, essa
impossibilidade. Qualquer tentativa de contar a verdade seria um
fracasso.
Mas por ora não sei de nada disso. Ela ainda não está doente e eu
sou uma criança. Continuo deitada em seu colo, quando ouço o som
dos passos do meu padrasto na escada. Agarro sua cintura e,
sussurrando, lhe peço, Por favor… Ela assente com a cabeça, é claro
que depois do ocorrido não comentaria nada com ele, que chega à sala
ansioso, já são nove e meia da noite, vai começar o primeiro debate do
segundo turno das eleições presidenciais entre Fernando Collor de
Mello e Luiz Inácio Lula da Silva na TV Manchete.
Muita coisa está em jogo nesse debate. São as primeiras eleições
diretas depois de uma longa ditadura. Ter o Lula na Presidência seria
conseguir pelo voto aquilo pelo qual a geração dos meus pais tinha
lutado na clandestinidade. Passei os últimos meses cantando “Lula
lá!”, vestindo camisetas e broches do PT, indo a passeatas, comícios e
showmícios, transformando Collor no vilão das brincadeiras infantis.
Até para a menina que sou esse debate é um acontecimento, por isso
subo com eles à sala do segundo andar, onde fica a televisão. Ainda
vejo a Marília Gabriela anunciar as regras do jogo, mas logo adormeço
e só acordo no dia seguinte com o galo do morro ao lado, que canta
todas as manhãs.
35
07/01/1965
11/01/1965
20/02/1961
Hoje de manhã eu fui à praia. O mar estava ótimo, mas sucedeu um fato
que aqui de casa ninguém pode saber a não ser você.
41
A data, não lembro. Nem o mês. Sei que foi no segundo semestre de
1996, porque eu estava lendo a Ilíada e a Odisseia para a disciplina
grego 2 da faculdade de letras da UFRJ. Eram esses os livros que
estavam em cima da mesa de centro na sala de estar, no andar de baixo
da cobertura de Laranjeiras, quando a campainha tocou. Achei
estranho, não estava à espera de ninguém e eu era a única em casa.
Assim que abri a porta, meu padrasto se jogou, bêbado, nos meus
braços. Não era algo que costumasse acontecer, ele chegar lá em casa
bêbado. Muito menos se jogando nos meus braços.
Mas ele se jogou e não me largou. Grudou em mim, o bafo de
álcool, o corpo e a voz gosmentos de álcool, no meio da tarde, num
dia de semana, eu lendo Homero para grego 2, e aquele corpo
quarenta e oito anos mais velho colado no meu. Eu tentava me
desvencilhar com delicadeza, porque aos dezessete anos eu ainda era
delicada, e sentia muito medo de parecer bruta, mas não conseguia
afastá-lo, pois ele me apertava com força, então tive que ouvir sua voz
no meu ouvido dizendo que tinha saudades minhas. Depois de um
silêncio, da sensação de que eu não dominava meu corpo, apesar da
sua presença latejante, corpo presente, consegui dizer, Preciso
estudar, ao que ele retrucou, Te adoro, um te adoro solto, deslocado,
que fazia a frase te adoro não ter sentido nenhum, e eu continuei,
Tenho prova amanhã, e ele repetiu, como se eu não tivesse ouvido e
precisasse ouvir, Te adoro, então finalmente consegui ir me afastando,
empurrei sua barriga grande, redonda, dura para longe de mim, fui
deixando para trás aquele homem careca, quarenta e oito anos mais
velho do que eu, bêbado, decadente, fraco, a voz mole, o ouvido que
não ouvia, a gente tinha que gritar, ele se recusava a usar aparelho
auditivo porque não queria parecer velho, aquele homem velho foi
ficando para trás, enquanto eu caminhava lentamente, trêmula, em
direção ao sofá e, sentada, puxei a mesa de centro contra o joelho até
me sentir escudada, e comecei a perceber que o que aquele homem
velho, gordo, surdo, fraco, decadente estava me fazendo era de uma
violência vigorosa, gritante, e comecei a desejar que nada tivesse
acontecido e nada mais acontecesse. Seria absurdo que aqueles poucos
minutos colocassem tudo em causa: nós convivíamos desde 1984, o
ano da separação dos meus pais, da alfabetização, do tombo do
beliche, do tombo na escola, do queixo costurado, da melancolia.
Embora não vivesse lá em casa e fosse casado com outra mulher, ele
era o meu padrasto, era assim que eu e Dina nos referíamos a ele, da
mesma forma que ele se referia a nós como suas enteadas. Na minha
memória, ele seria sempre o homem por quem minha mãe tinha sido
apaixonada, o único por quem eu a vi apaixonada, já que dela com
meu pai só me lembro da separação. Seria absurdo que aqueles poucos
minutos também erguessem um muro na relação de mãe e filha,
estabelecessem um triângulo onde não havia nenhum. Eu não fazia
parte daquela linha para a qual estava sendo arrastada. Eu só queria,
como quis outras vezes na vida, que o tempo voltasse, que aquele
homem saísse pela porta e não tivesse chegado nem se jogado nos
meus braços, fazendo com que aqueles minutos se repetissem ao
longo da minha vida nas formas mais variadas, como imagem,
segredo, pesadelo, silêncio, repetição, fantasma, culpa.
Tremendo, tentei fingir que ele não estava ali e peguei um dos
livros de Homero. Ele começou a discorrer sobre os gregos, ao mesmo
tempo que repousou a mão na minha coxa. O peso daquela mão, a
espessura daquela mão sobre a minha perna descoberta — eu vestia
um short e uma camiseta —, sinto até hoje, mesmo agora. Diante da
minha paralisia, meu corpo forte e vigoroso se tornando fraco e
trêmulo, ele deslizou a mão pela minha coxa uma, duas, três vezes. E
com a mão na minha coxa me perguntou se eu poderia ler um pouco
da Odisseia em voz alta. Talvez ele tenha imaginado que a cena ficasse
mais bonita assim, com a menina de dezessete anos lendo Homero
para o cineasta renomado de sessenta e cinco anos. Tanto que, diante
do meu silêncio, ele insistiu.
Então eu me levantei e disse, Acho que você deveria esperar a
minha mãe lá em cima, ela já vai chegar. Disse-o com uma voz cheia
de medo, mas também firme, e ele saiu do sofá, subiu as escadas e
desapareceu da minha visão.
Nos anos seguintes, nos quais meu corpo pulsava vida, força, tesão
e o corpo da minha mãe adoecia e envelhecia, ele se jogou em cima de
mim algumas vezes, me sussurrando palavras que eu não queria ouvir,
que me feriam e que eu desprezava, exatamente como nesse primeiro
dia. Algumas delas, em situações em que eu estava muito frágil: a
minha mãe internada, a minha mãe cega por causa da doença, a
poucos dias da morte.
42
Hoje contei para o G. que decidi incluir a nossa história no livro. Ele
não gostou. Os homens nunca gostam que a gente escreva sobre eles.
Ele não quer que eu fale da nossa história para ninguém. Ele gosta que
a nossa história seja um segredo só nosso. É discreto. Não gosta da
ideia de ter a vida exposta num livro. Eu o tranquilizei, Ninguém vai
saber quem você é. Você vai ser apenas a sombra do livro, o não dito.
43
Alguns dias depois da tarde em que meu padrasto se lançou nos meus
braços, minha mãe chegou em casa depois de um jantar com ele, tirou
da bolsa um embrulho e me estendeu a mão. Abri o presente que ele
tinha me enviado, enquanto ela comentava que ele era muito afetuoso,
pensava sempre na gente, comprava presentes… Eles já não
namoravam como antes, porque na configuração amorosa havia
entrado outra mulher, mais jovem do que a minha mãe, que, por sua
vez, era vinte anos mais nova do que ele. Agora, eram três, com idades
decrescentes: a esposa, a minha mãe e a nova amante.
No papel de embrulho, havia um livro, capa dura, vermelha, uma
representação da luta entre Teseu e o Minotauro, no qual pude ler:
Dicionário de mitologia grega e romana, Pierre Grimal. Não fiz cara de
quem tivesse gostado, não sorri, não agradeci. Muito pelo contrário,
senti o peito apertando, o corpo curvando, a vontade contida de
arremessar o livro contra a parede, de tapar a boca da minha mãe, que
dizia, Que maravilha, parece que ele adivinhou que você está
estudando grego, e gritar por cima, Ele é um babaca, mãe, um ba-ba-
ca. Como eu odiei aquele livro, que me paralisou e ao mesmo tempo
transformava meu padrasto num cara ainda mais legal.
Há coisas que, se a gente não grita na hora, num ataque de raiva,
virando o mundo pelo avesso, elas se encrustam na gente, se agarram
aos nossos órgãos, com unhas afiadas, e vão ganhando solidez e
imobilidade com o passar do tempo — fazendo com que se torne cada
vez mais difícil a sua transformação em palavras.
44
18/03/1961
[…] Já não suporto mais, mamãe nunca conversou comigo direito, como eu
gostaria de apresentar meus amigos a ela, como todas as meninas o fazem.
Isso é horrível, ter que mentir tanto, tudo está errado. Seria tão bom se
mamãe fosse mais carinhosa, ela e papai são tão antigos, que chega a ser
demais. Hoje, porque eu estava triste e calada, ela virou-se para mim, após
uma bronca, e disse que cortaria com todas essas minhas amizades, que não
me queria no meio dos meninos etc.
Para esquecer um pouco as minhas tristezas, começarei a estudar muito.
Eu já não sei mais o que fazer, às vezes tenho ímpeto de chorar, chorar
sem parar. Ninguém me compreende, Diário querido, a não ser a Gilda e
você, os meus melhores companheiros. Gosto muito de todos aqui em casa,
mas mamãe e papai estão longe de me conhecerem, cada vez eles ficam mais
distantes de mim, cada vez o meu coração se fecha mais para eles, e eu sei
que a culpada de tudo isto não sou eu, não sou eu!
45
O meu padrasto tinha um nome para nós, era o nosso padrasto, mas
era o quê da minha mãe? Namorado? Amante? Marido em casas
separadas? Amigos coloridos? Tantos anos numa relação sem um
nome certo, mãe?
46
12 de janeiro de 1994
A minha mãe, que no seu diário de treze anos revelava a feminista que
viria a ser, a única das três irmãs que saiu de casa para viver sozinha, a
única correspondente mulher no Cairo, no meio de um monte de
jornalistas homens do mundo inteiro, dona de seu próprio corpo,
sobrevivente de um estupro, essa mulher tão livre, mas também tão
interessada nos outros, tão atenta a mim, que nunca deixava escapar
meus medos, minhas tristezas, ela olhou para o desenho e não viu o
que eu vi, não se espantou. Ela até disse que era um desenho bonito,
uma menina sem rosto, eu, com os peitinhos despontando. Ela não viu
o que estava lá, o que me assustou e o que anos depois me faria voltar
a esse episódio como a pré-história do mal.
Mas eu nunca questionei minha mãe, nunca achei que ela tivesse
errado, talvez porque culpá-la seria colocá-la como cúmplice de uma
história em que para mim havia — e ainda há — um carrasco claro,
uma vítima clara e uma vítima oculta. Só agora, trinta e três anos
depois, quando finalmente decido escrever esse episódio que tantas
vezes revi na memória, eu me pergunto, Como você não viu, mãe?
Como você, que sempre disse tudo, diante daquele desenho de uma
menina sem rosto, eu, com os peitinhos despontando, não disse nada?
52
Minha mãe adorava escrever cartas. Sei que nos anos de exílio enviou
muitas aos amigos que estavam no Brasil. Depois, passou a enviar a
pessoas que ia conhecendo pelo mundo nas viagens que fazia. Tenho
esta lembrança bastante viva: minha mãe em frente à máquina de
escrever, depois em frente à máquina de escrever automática, depois
em frente ao computador, digitando numa velocidade que me
impressionava. Ela nunca escrevia à mão porque ninguém
compreendia sua letra.
Das cartas que me enviou, ou me deu em mãos, há duas que me
acompanham para onde quer que eu vá. Quando sinto vontade de
conversar com ela, releio-as. As mesmas palavras servem de resposta e
alento para momentos distintos, como se fossem um enigma que a
cada vez interpreto de uma forma. Ou como se deixassem de ter um
significado específico e se tornassem presença, a voz da minha mãe, o
colo da minha mãe, o toque da minha mãe, seu cheiro.
54
55
Quantas vezes li e reli essa carta? Quantas vezes imaginei minha mãe
grávida, reluzente, caminhando por Lisboa e pelas praias da costa?
Guardo as fotografias dessa época. Na estante, tenho emoldurada uma
em que ela está com uma barriga de cinco ou seis meses numa praia
de nudismo no sul da França: estão todos nus, menos a minha mãe,
que veste um biquíni completo, o que ela justificou pela presença de
seu pai e de seu irmão mais velho.
Quantas vezes a senti ao meu lado, me apoiando? Quantas vezes
pensei na sua capacidade de me conhecer, mesmo eu escondendo
tudo? E quando digo tudo falo da solidão à qual ela se refere, das coisas
que eu sentia e guardava só para mim — e que ela entendia tão bem;
que ela adivinhava, porque também havia sido assim.
Quantas vezes me perguntei onde eu estaria naquele aniversário de
dezesseis anos, para ela estar comemorando o meu aniversário por sua
conta e silenciosamente? Acampando com amigos? No Ceará, com
meu pai e a minha irmã? Sei que foi nesse verão que fizemos essa
viagem, mas não lembro a data exata.
Quantas vezes não revisitei os meus dezesseis anos, o último na
escola, estudando para o vestibular, decidindo se faria física, história
ou letras? Em 1995, eu era apaixonada pelo meu professor de
literatura, que tinha o dobro da minha idade, trinta e dois anos, uma
mulher e um filho. Todos os dias, eu ia para a escola ansiando o
momento no qual cruzaríamos um com o outro no corredor. Todos os
dias, eu esperava a quinta-feira, dia da sua aula, Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, o modernismo era a paixão dele. Não se entendia
muito com Clarice e me propôs que eu escolhesse o livro que a turma
leria e desse uma aula sobre ela. A hora da estrela, e muito nervosismo
para falar na frente dos meus amigos, o mesmo nervosismo que senti
durante anos para apresentar meus livros — até que certo dia eu já não
era aquela menina tímida, fechada.
Para que se expor tanto?, perguntaria G.
Como aquela menina que guardava tudo para si se tornou uma
mulher que se expõe tanto? Será que eu deveria voltar a ser aquela
menina? Será que conseguiria? Às vezes, tenho saudades dela.
Quando escrevo, é ela que tento ser: a menina que não se expõe me
expondo.
Aos dezesseis anos, também fui apaixonada por outro homem,
doze anos mais velho do que eu, casado, que fazia aula de dança
contemporânea comigo. Um dia, ficamos só nós e o professor na sala
e, ao fazer um exercício de cabeça para baixo, meus peitos ficaram de
fora, a camiseta tapando meu rosto. Um dia, ficamos nus no quarto de
uma república em Ouro Preto. Um dia, minha mãe estava no festival
de cinema de Toronto, perdi a virgindade com ele na cama dela. No
dia seguinte, chorei muito — e escrevi um fax para ela contando tudo.
Alguns meses depois, em fevereiro de 1996, eu chegaria em casa e
ouviria um recado da minha irmã mais velha na secretária eletrônica,
Alô, alô, S.O.S. irmãs, tô com muitas saudades, me liguem, por favor.
Não liguei. Passei a tarde esperando o telefonema do homem doze
anos mais velho do que eu, tínhamos combinado de nos encontrar,
fiquei com receio de ligar para a minha irmã, ele ligar bem na hora e,
diante do número ocupado, desistir. Então não liguei (ele tampouco).
Na manhã seguinte, ainda muito cedo, acordei com a voz da Dina em
desespero, Didi bateu com o carro, levanta. Depois, eu, ela e a minha
mãe encontrando o meu pai no Miguel Couto, a falta de notícias
durante horas, depois a notícia, a mais terrível, a mais triste, o meu pai
aos prantos, A casa vai ficar tão vazia, e o seu corpo deformado que
não me deixaram ver, o corpo que imagino há vinte e sete anos. Dessa
data não me esqueço: 1º de fevereiro de 1996.
Muitos anos depois, vinte e quatro, para ser precisa, o homem doze
anos mais velho do que eu me escreveu uma mensagem: “[…] Ano
passado, li o teu último livro. Mexeu demais comigo. Lendo, te via o
tempo todo há tantos e tantos anos… E me vi também, num tempo
tão inconsciente quanto distante. A vida me fez não falar, não escrever
na época… Mas agora senti uma imensa vontade de falar para você o
quanto te admiro! Queria poder escrever mais sobre o que senti e o
que pensei ao lê-lo, mas teria que ler novamente, as ideias que tive na
época se esvaneceram, só sobrou um sentimento de profundo carinho
por uma história compartilhada juntos, mesmo que numa época tão
imatura… uma vontade de acolhimento. Me vi no teu livro, nem
sempre de forma muito positiva. Infelizmente, agora acho que era
muito idiota naquele tempo. Mas guardo tudo com carinho…”.
A vida dá voltas, diz o clichê. Ainda bem que tenho a escrita e que
ela está comigo em todas as voltas que a vida dá. Alguns homens com
quem me relacionei vieram parar nos meus livros. Um deles nunca
mais falou comigo. Outros não leram — ou fingiram que não. Um se
divertiu. O homem doze anos mais velho do que eu, se não estou
enganada, foi o único que me escreveu.
E você, G., o que vai fazer?
A minha mãe tinha medo que eu repetisse a história dela: homem
muito mais velho, comprometido, disponível pela metade. Ela me
dizia isso com todas as letras. Queria tanto que sua filha igual a ela
fosse diferente dela… Que eu fosse feliz, Que você busque essa
felicidade, pra valer.
Quando foi que me dei conta de que nunca busquei essa felicidade
pra valer porque me sentia presa à ideia de que só se é profundo e
intenso na tristeza? Porque me sentia presa ao passado e às suas
dores? Porque pensava que me aproximar da felicidade implicaria um
corte com a minha mãe e as mulheres que vieram antes dela?
Quantas vezes, mãe, eu me perguntei por que no início de 1995
você escreveu até velhinha vou me lembrar a cada dia 24 desses
momentos? Você realmente acreditava que ficaria velhinha mesmo
estando doente desde 1991? Você queria que eu acreditasse nisso? Ou
era só a expressão de um desejo seu?
Ou será, me pergunto agora, que por ter escrito essa carta você
realmente está mais velhinha, com setenta e cinco anos, se lembrando
de mim a cada dia 24, vendo meus filhos crescerem? O meu filho, tão
parecido comigo. E a minha filha, tão diferente de mim.
56
Rio, 22-07-1984
Esther querida,
Muitos beijos,
Helena
59
Dois ou três dias depois da tarde em que o meu padrasto se jogou nos
meus braços, o telefone tocou e eu atendi. Do outro lado, ele, que
nunca ligava para a linha que eu dividia com a Dina, a não ser em caso
de emergência, me perguntou se a minha mãe estava, e por um
segundo me senti aliviada, era com ela que ele queria falar. Demorei
um pouco para entender quando ouvi, Estou ligando porque eu queria
fazer umas fotos tuas. Fotos?, repliquei. É! Arranjei um estúdio bacana
na Barra, dava pra fazer umas fotos boas. Mas eu não quero fazer fotos,
respondi. Vão ficar lindas, ele insistiu. Tô cheia de trabalho pra
faculdade, justifiquei. Pensa nisso, ele disse. Assim você fica com um
book pronto.
Naquela altura, eu já não queria ser atriz da Globo. Além de
Homero, eu havia lido Clarice Lispector, Simone de Beauvoir,
Katherine Mansfield, Sartre, Camus, Guimarães Rosa, tantos livros,
eu tinha passado os últimos anos lendo, havia descoberto esse outro
prazer na solidão; sabia até que era isto que eu queria fazer a vida toda,
ler e escrever, e de vez em quando eu ensaiava uns contos, uns
fragmentos, uns poemas. Eu havia participado de um concurso
literário com três narrativas curtas, com pseudônimos distintos, um
envelope pardo para cada uma, levados pessoalmente a uma casa em
Laranjeiras, o coração acelerado, uma esperança lá no fundo, eu era
muito jovem, mas vai quê. Tudo isso em segredo, claro, ninguém além
da comissão julgadora leu esses contos, nem eu disse que participaria,
nem que havia participado do concurso, eram coisas minhas, da minha
solidão. Uma das narrativas, eu me lembro, era uma menina que se
masturbava na banheira. Anos mais tarde, eu descobriria que quem
ganhara esse concurso era agora uma grande amiga minha, nove anos
mais velha, e pela primeira vez eu contaria a alguém que tinha fechado
aqueles três envelopes secretos e os entregado em mãos.
Eu estava quase desligando o telefone, quando ouvi a voz dele,
Espera: não conta pra tua mãe que eu liguei, tá? Não fala pra ela essa
história das fotos, é uma coisa nossa. Então, se da tarde em que ele
chegara bêbado eu ainda tentara guardar alguma dúvida, a partir desse
telefonema eu já não poderia nem dizer a mim mesma que talvez eu
estivesse equivocada.
Não conta pra tua mãe que eu liguei, tá?
Não conta, tá?
É uma coisa nossa.
Nossa.
Ao longo dos três anos que se seguiram, não houve um dia no qual
eu não ouvisse a voz dele do outro lado da linha, Não conta pra tua
mãe que eu liguei, tá?
Conto? Não conto? Conto? Não conto?
Quase diariamente eu me interpelava.
E se eu disser e a minha mãe não quiser acreditar em mim?
Claro que vai. Feminista, jornalista, justa, esclarecida, me conhece
na palma da mão, sabe quando estou dizendo a verdade.
Mas e se agora, pela primeira vez na vida, ela não acreditar?
Não, não foi por isso que eu não falei. Ou talvez tenha sido
também.
Eu não queria tornar mais infeliz a sua história de amores infelizes.
A história que ela se contava — que ela se contou desde muito cedo,
que ela me contou e não teve tempo de contar de outra forma. Eu
sabia que ela não ia viver até velhinha, provavelmente não teria tempo
de se apaixonar de novo, e eu não quis, mas eu quis, contar para ela
que seu último amor estava fazendo aquilo comigo, com a gente.
Será que ele confiava que, naquela situação, eu jamais diria nada?
Ou se arriscava?
Tentei fazer com que ela desconfiasse, mas ela não desconfiou.
Conto? Não conto? Conto? Não conto?
Fui contando a outras pessoas, para eu não explodir. Contei às
minhas amigas mais próximas, que sentiram raiva e nojo. No fim, eu
perguntava a elas:
Conto? Não conto? Conto? Não conto?
E a resposta era sempre, Não.
Contei a um amante italiano, que conheci pouco depois desse
telefonema — ou terá sido antes? Minha mãe andava preocupada,
porque o italiano era dezesseis anos mais velho do que eu, e ela tinha
medo que eu repetisse a sua história.
(Mas a minha beleza, mãe, não é diferente? Não foi você que disse
que só os homens mais velhos são capazes de vê-la?)
Contei ao meu primeiro namorado, vinte anos mais velho do que
eu.
Conto? Não conto? Conto? Não conto?
Ele também respondeu, Não. Alguns anos depois, ele me convidou
para participar, na faculdade onde dava aulas, de uma mesa-redonda
junto com o meu padrasto; achou que seria boa ideia a gente falar para
a sua turma, ele mediando. Olhei para o e-mail sem acreditar, vontade
de partir o computador, de cuspir naquelas palavras, mas respondi
apenas, Não, muito obrigada, estarei em Paris a trabalho.
O gesto mais inusitado que cometi no meu desespero de saber qual
era a atitude correta, contar ou não, foi ter me tornado paciente da
analista da minha mãe — e tê-lo feito apenas para poder lhe perguntar,
Conto? Não conto?
E, assim, cada vez que eu tentava me afastar da minha mãe, romper
com a maldição, mais eu me confundia com ela.
Os mesmos pensamentos.
Os mesmos sentimentos.
A mesma infelicidade.
A mesma gargalhada.
A mesma angústia.
Os mesmos diários.
A mesma escrita.
A mesma analista.
Conto? Não conto? Conto? Não conto?
Então, minha mãe morreu. No enterro, eu usava um vestido longo
de veludo preto e chorava copiosamente. A certa altura, tive que parar
de falar com as pessoas, porque era muita gente, fazia calor, embora
fosse inverno, a minha pressão caiu, precisei me sentar.
O caixão estava fechado, no judaísmo é assim.
A Djamila havia sido enterrada num cemitério católico, sua mãe era
católica, mas seu caixão também estava fechado. Seu corpo e seu
rosto, com o acidente, tinham ficado deformados demais para serem
expostos.
Não vi minha irmã morta. Não vi minha mãe morta.
A primeira vez que verei um corpo morto será anos depois, no
enterro do pai de uma amiga. Discretamente, vou me aproximar do
caixão e olhar em detalhe para o corpo, procurando nele o da minha
irmã e o da minha mãe.
Enquanto estávamos no cemitério judaico do Caju, me imaginei
várias vezes abrindo o caixão e sussurrando no ouvido dela a verdade
toda, minha última chance.
Conto? Não conto? Conto? Não conto?
Conto?
61
02/04/1961
Hoje foi um dia como a maioria desses últimos dias, não muito bom, sendo
portanto ruim.
Ele já vai se mudar, e eu preciso esquecê-lo, preciso, mas não consigo,
adoro-o, quer dizer, gosto demais dele, e ele nem sonha em gostar de mim.
Já não me aguento mais, esses dias têm sido horríveis para mim, já não me
aguento mais de tristeza.
10/04/1961
Hoje, deitada no divã, fiz algo que nunca faço: falei do que estou
escrevendo. Detesto falar sobre o processo durante o processo; sinto
que as palavras pronunciadas não dão conta das palavras escritas, que,
por sua vez, são demoradamente trabalhadas para se aproximarem o
possível daquilo a que os psicanalistas chamam de real. Cada camada
de representação é um afastamento da coisa em si. Pensemos no big
bang. O universo inteiro era um pequeníssimo ponto com toda a
energia concentrada. Esse ponto explodiu e foi se espalhando, se
espalhando. Quanto mais o universo se expande, mais longe ficamos
do ponto inicial. Com a escrita, é como se eu tentasse me aproximar
do ponto concentrado de energia. Para isso, é preciso muito cuidado e
muito silêncio, como quando um animal caça outro, ou como quando
queremos fazer uma surpresa, dar um susto em alguém. Falar sobre a
escrita pode significar pôr tudo a perder, ser jogada para um ponto
longínquo na expansão.
Eu havia dirigido dos Anjos a Belém pensando em tudo o que tem
acontecido entre mim e o G., era sobre nós que eu queria falar, mas aí,
com a minha mania de contextualizar — os tais detalhes, de que ele
me acusa carinhosamente —, acabei mencionando a escrita deste
livro, e quando me dei conta estava narrando, em voz alta, a cena da
piscina, o desenho, a Playboy, a masturbação, o sangue, a volta para o
Rio. Ele me entregou o desenho e quando vi era uma menina sem
rosto, eu, os peitos despontando, ele tinha visto o que eu achava que
só eu sabia. Então ficou aquele silêncio típico de uma sessão de
análise, um silêncio que parece conter todas as palavras do mundo, de
todas as línguas, as vivas e as mortas, e de repente ela me perguntou,
Você se sentiu excitada?
64
09/03/1961
[…] Gosto tanto, tanto dele, que me sinto tão triste, às vezes com vontade
de chorar (mas não choro, não sou desse gênio de chorar muito), quando
penso que ele nem sonha em gostar de mim.
66
10/03/1961
G. diz que me conhece na palma da mão e, quando ler este livro, vai
saber se fui até o fundo, se me expus de fato ou se me coloquei num
lugar fácil. Ele lembra a conversa que tivemos sobre As confissões, de
Rousseau. Diz que o pior que pode acontecer num texto
autobiográfico é eu ser conivente comigo mesma. Ele não está, com
isso, querendo saber se me fiz de vítima ou se sou vítima. Ele não o
questiona. Só acha, mas esta é a minha interpretação, que escrever é
complicar as coisas. Na literatura, mesmo quando falamos de pessoas
reais, mesmo quando escrevemos sobre fatos, ou sobretudo nesses
casos, as relações não podem ser apenas de causa e consequência.
Quem narra sobre si não pode ser linear.
Os outros podem até não enxergar, mas eu vou saber, ele me diz
com ironia.
É claro que eu poderia responder, também com ironia, Quem é
você para achar que me conhece na palma da mão?, mas aceito o
desafio.
Em casa, faço uma lista de perguntas:
Leio tantas vezes no diário da minha mãe que o Biriba não gostava
dela — “E eu queria tanto…”. Eu também queria tanto, mãe… Mas
também queria me libertar desse passado que roubei para mim: o da
menina sozinha no quarto, sofrendo por amor. O passado que minha
mãe me deu de presente com seus diários e que talvez ela tenha
herdado da minha avó.
Nunca conheci Judith, que depois de casada se tornou Judith
Ivonne. Dela ouvi poucas histórias. Que era obsessiva, arrumava a casa
sem parar, gostava de tudo no exato lugar, perguntava as mesmas
coisas dezenas de vezes. Era fechada, durona e gritava muito. Mas
diziam que era alegre e risonha antes de conhecer o marido. Minha
mãe falava pouco a seu respeito, sempre com críticas, mágoa ou culpa.
Às vezes, dizia que eu me parecia com ela, mas era sempre nos
defeitos. Quando eu perguntava demais. Quando eu me revelava
hipocondríaca ou com alguma pequena obsessão.
Nasci no hospital em que Judith morreu, o Hospital Cruz
Vermelha, em Lisboa. Os meus avós tinham vindo visitar os meus pais
no exílio, quando ela sofreu uma parada cardíaca. Não morreu
imediatamente. Ainda deu tempo de esperar a chegada de seus outros
filhos. Morreu numa terra que não era a sua, em outubro de 1977. Em
junho de 1978, numa tarde ensolarada de primavera, luz radiante, a
praça do Rossio repleta de pessoas, minha mãe entrou na farmácia
Estácio para pegar o resultado do teste de gravidez: positivo. Em
janeiro do ano seguinte, eu nasceria numa terra que não era a minha,
no hospital onde a minha avó havia morrido.
Volto algumas vezes ao estranhamento do dia em que entrei no
quarto da minha mãe, e ela, que não era desse gênio de chorar muito,
estava chorando na cama. Vejo tudo: o espelho na parede lateral do
quarto, a colcha desenhada sobre a cama, um ar antigo, assim como as
duas mesas de cabeceira, a televisão e o videocassete num carrinho, o
armário do lado oposto ao espelho. Então eu lhe pergunto, um pouco
ressabiada, por que o choro, e ela me diz que está com saudades da
mãe. E naquele choro não há críticas, não há mágoa, não há culpa, pela
primeira vez eu vejo a avó que não conheci, vejo a minha mãe e a
minha avó e, apesar de toda a beleza que há naquele choro, eu me
angustio profundamente, pensando que um dia estarei no lugar dela,
chorando não apenas por uma mãe que se foi, mas por uma mãe que
se foi há muitos anos, tantos, que a minha filha que não a conheceu já
é adolescente, que a minha filha que não a conheceu sabe tão pouco
dela, só o que conto, o que escrevo e o que choro.
73
O que estava combinado para ser uma semana de escrita numa casa de
campo se transforma num acampamento infantil. Meu plano de
solidão se desfaz, tenho que ficar com as crianças. Decido então
chamar a Rafa, uma amiga brasileira que se mudou para Lisboa
fugindo do Bolsonaro. Antes de sair da cidade, vamos juntas fazer
compras: eu, V., E., ela e T., seu filho.
Desenhamos a seguinte estratégia de sobrevivência no
supermercado: enquanto ela enche o carrinho para os próximos oito
dias, eu acompanho as crianças para escolherem um brinquedo de até
cinco euros. A tarefa não é fácil. Depois de muita insistência, acabo
subindo o limite para oito euros e, finalmente, elas escolhem seus
presentes. V. e T., os meninos, querem dois carrinhos; E., a minha
filha, vem até mim com uma caixa colorida contendo três lápis, um
apontador, duas borrachas, uma régua e um diário prateado com um
unicórnio branco e rosa no qual se lê: Sweet Dreams. Vais escrever um
diário?, pergunto. Não, ela me diz. Vou desenhar. Em casa, ela pede
uma caneta azul e rabisca, literalmente, todas as páginas do seu
caderno novo com a força e a fúria que só uma criança de três anos
tem.
75
Eu: Peguei esta citação do Barthes no livro da Paloma: “Saber que não
se escreve para o outro, saber que essas coisas que eu vou escrever não
me farão jamais amado por quem eu amo, saber que a escrita não
compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente aí onde
você não está — é o começo da escrita”. A escrita se faz aí onde você não
está, ela não sublima nada, é lindo isso.
G.: É que ao mesmo tempo sublima — é realmente complicado.
Eu: Pode ser.
G.: Em termos absolutos não redime, nada redime — mas em
termos relativos talvez sim. E tudo o que existe na vida existe em
termos relativos, relacionais. Ou pelo menos assim me parece.
Eu: Pela minha experiência, nem em termos relativos. Não estou
pensando apenas no amor. Acho mesmo que a escrita não redime, não
sublima, não compensa nada. A perda dá início à escrita, mas não há o
movimento contrário. Digo: escrever não traz um passado de volta,
não me traz a minha mãe, não me faz ser amada.
77
09/03/1962
Por que você implica tanto com ele?, me perguntava a minha mãe
sempre que eu pedia para o meu padrasto não ir lá em casa, e eu
respondia, Porque ele te faz sofrer. Isso não era uma mentira, mas ela
encontrava sempre um jeito de se justificar, A nossa relação é assim,
Eu sei o que faço, Está tudo sob controle, Não estou sofrendo, Estou
bem, e seguiam-se explicações sobre um amor mais aberto que
pareciam engolir minha mãe, sua história, seu jeito de ser.
Eu procurava uma forma de escapar, me trancava no quarto, ia ler
um livro, ver televisão, saía de casa, mas em alguns momentos era
obrigada a conviver com ele. E nesses momentos eu fazia de tudo para
o meu padrasto perceber não que eu implicava com ele, mas que o
desprezava.
Certo dia, quando minha mãe repetiu a pergunta, eu respondi,
Porque ele vota no Fernando Henrique Cardoso, apoia publicamente o
Fernando Henrique Cardoso. De que adianta fazer filmes
revolucionários, retratar o povo e depois votar no Fernando
Henrique? Ele virou de direita, mãe, como você consegue? Ela sorriu,
talvez aliviada, depois de tantos anos não seria uma discordância
política como essa que os afastaria. Se fosse Collor × Lula… FHC × Lula
não era motivo suficiente.
A partir daí, o tema se tornou uma obsessão para mim. Sempre que
ele puxava conversa sobre qualquer assunto, eu o indagava, Como
você pode votar no FHC?, e saía disparando argumentos contra o
neoliberalismo, a favor do Partido dos Trabalhadores, toda a minha
raiva sintetizada numa rivalidade política. Aquele homem, de quem eu
gostava, se tornara odioso para mim; a sua presença, intolerável, e eu
fazia questão de que ele soubesse disso.
Mas ele tinha suas armas de defesa, a simpatia e o sorriso que abria
toda vez que eu começava a discussão, como se eu fosse uma
adolescente que tinha muito o que aprender, uma adolescente
ingênua que apenas esbravejava a sua preferência política de forma
quase histérica. O que significava o seu sorriso enquanto eu despejava
palavras contra Fernando Henrique Cardoso? O que ele queria com
isso? Me irritar? Se salvar? Mostrar que por mais que eu gritasse ele
continuaria impávido, sereno e leve?
88
Esther querida,
Helena
02-09-1987
89
16/02/1965
Hoje finalmente chorei. Tenho mudado muito nestes últimos dias, talvez
aprendendo bastante. Não sei o que vai ser de mim. Tristeza. E sono.
91
17/02/1965
Querido Diário,
Parece incrível, mas a viagem chegou ao fim. Quero voltar, porque já se
tornou muito difícil viver sem o calor, mas sinto calafrios ao imaginar que
“aquela vida” se aproxima. Eu tenho medo, muito medo. E estou triste.
Triste pelo prof. Hugo, pela Maria Luiza, enfim, por todo o Experimental.
18/02/1965
06/03/1965
Querido Diário,
Sinto-me ainda estranha. Não consegui me refazer de todo. Minhas
ideias estão confusas. O prof. Hugo não me sai da cabeça. O dia da minha
chegada, ainda não consegui definir. O Experimental me envolve. Tenho
medo do ano que agora vai começar. Não sei como o enfrentar.
07/03/1965
Querido Diário,
Fui na casa da Maria Luíza. Gosto muito dela. Medo. Nervoso. Estou
com medo. Não me sinto forte o suficiente.
Helena
A vida como tá, tá uma merda. Não dá para continuar. Estou achando sem
sentido. Faculdade? Trabalho? Algo que vá acarretar uma modificação na
minha vida. Não sei bem o que farei. Não planejei quanto a isso. Depois, o
que é pior, esta vida individual, sem objetivo, está cansando. É como se
todas as portas estivessem fechadas. Problema de classe. Certo?
Hoje pensei nele. No que a gente não fez. Na minha neurose. No pouco
que tenho progredido recentemente — digo na prática, não na minha
cabeça. No meu infantilismo emocional. De como só agora começo a beirar
os problemas.
Tenho tudo para ser, mas não sou feliz. Não, não quero ser. Não posso.
Terei de viver a vida inteira assim?
96
Meu corpo ainda sangra, pouco, mas sangra. E essa coisa fácil que é
fazer um aborto começa a se complicar em mim, ganhando uma forma
difusa, incerta, melancólica. Deitado na cama, G. diz que não dá mais,
precisamos parar, cortar, interromper. Um filho, mesmo que abortado,
é um dado concreto, palpável. Mostra para ele o quanto a nossa
relação tem de real. E isso o assusta. Então ele sai, escapa. Bem no
momento em que estou mais frágil (ele mesmo dirá que aquele sangue
todo o repeliu). Eu agora não sou, nem serei nos próximos meses,
aquela mulher forte, resiliente. Vou cair bem fundo, vou ser fraca,
impaciente com meus filhos, vou ter muitas insônias e enxaquecas.
Tudo começa quando desperto de madrugada e caio num choro
descontrolado. Ele acorda e me consola. Ele adora me consolar. Ele
me mostra como tenho uma vida melhor do que a sua, como sou mais
descolada, viajada, amada, e por fim me diz que há muitos homens
melhores do que ele, certamente vou me apaixonar em breve e
esquecê-lo. Enquanto as minhas lágrimas correm, entre os elogios e a
falta absoluta, fazemos sexo, e me assusto com a minha facilidade em
gozar no meio de tanta violência.
No próximo mês, tudo ficará mais violento, e nas vezes em que
fizermos sexo vou gozar cada vez com mais facilidade. Quando a
minha amiga M.H. me perguntar se estou desistindo de romper essa
relação, não vou mentir ao dizer que não, mas não direi a verdade
quando me justificar, Fomos longe demais na dor. Quando ler a cena
da piscina, M.H. vai me dizer que sempre se pergunta se as mulheres
são complacentes porque é o que lhes resta ou porque estão
identificadas com as novas mulheres que nascem.
97
Será que foi porque eu contei o assédio do meu padrasto para o G. que
a nossa história não deu certo? Será que isso é mesmo uma praga que
afasta os homens, todos eles?
98
Oi,
Oi, Tati,
Vamos nos ver, sim. Estarei no Hotel Esprit Saint Germain, tel 01 44
71 20 80, a partir do dia 19. Qual o seu tel?
beijos
Outras perguntas, que me fiz menos vezes: por que ele quis me dar
essas cartas? O que ele ganharia com isso? Teria ainda a ilusão, o
desejo, a perversão de me seduzir? Sabia ele que o que eu queria fazer
da vida era escrever? Queria ele que eu escrevesse sobre essas cartas?
Que as reproduzisse? Que as revelasse? Era isso que ele queria? Ser
inscrito, povoando a minha escrita com as suas cartas, o meu corpo
com as suas cartas, suas nojentas palavras de amor?
102
A violência faz o quê com tudo que ele representava na minha vida
antes da violência? Faz o quê com os momentos alegres que vivemos
juntos, em família? Faz o quê com a história dele com a minha mãe?
Faz o quê com a minha memória? Com a minha história? Anula tudo?
E se eu perguntasse o contrário: o que os momentos alegres que
vivemos juntos, em família, fazem com a violência? O que aqueles
momentos fazem com a memória que eu tenho da violência?
103
A minha mãe morreu sem saber que a minha tia havia morrido.
Mas no fundo ela sabia.
E preferiu não saber.
A minha mãe morreu sem saber que eu tinha sido assediada pelo
meu padrasto.
Mas no fundo ela sabia?
E preferiu não saber?
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116
capa
Flávia Castanheira
obra de capa
Carolina Martinez
composição
Lívia Takemura
preparação
Ciça Caropreso
revisão
Ana Alvares
Tomoe Moroizumi
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN978-65-5692-602-5
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub
CDD B869.3