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O DEBATE SOBRE O REPRESENTACIONALISMO NAS CIÊNCIAS

COGNITIVAS

THE DEBATE ABOUT MENTAL REPRESENTATION IN COGNITIVE SCIENCE

Luis Felipe Oliveira1

Resumo: Este artigo investiga o papel que o conceito de representação mental teve no
desenvolvimento das ciências cognitivas. Entendemos que estas ciências apresentam três
paradigmas centrais que se distinguem, principalmente, pela consideração que fazem sobre a noção
de representação mental. O paradigma cognitivista fundamenta-se sobre o entendimento de que a
mente opera sobre um conjunto de representações simbólicas armazenadas e manipuladas em
processos funcionalmente computacionais. O paradigma conexionista descreve a mente como um
sistema de processamento paralelo e distribuído que realiza operações sobre representações
subsimbólicas. O paradigma dinâmico da cognição estuda a mente por outras abordagens, inclusive
não computacionais, que questionam a necessidade explicativa da noção de representação mental.
Um dos modelos mais discutidos na literatura, com relação ao debate entre as visões
representacionalistas e as não-representacionalistas, é o Watt’s Governor, um mecanismo de
autorregulação para caldeiras à vapor. Por um lado, argumenta-se que o Watt’s Governor é um
sistema não-representacional de autocontrole; por outro lado, postula-se que o aparato é um sistema
representacional. Haselager et al. (2003) discutem esse embate e concluem que a ubiquidade da
representação enfraquece este conceito e expõe a falácia de se considerá-la como condição
necessária na explicação de fenômenos mentais. Nesse sentido, discutimos as conclusões desses
autores e abordamos a hipótese de que a semiótica pode oferecer contribuições interessantes às
ciências cognitivas, em suas considerações sobre os tipos e formas das representações.

Palavras-chave: Ciências cognitivas. Representação mental. Cognitivismo. Conexionismo.


Dinamicismo.

Abstract: This paper investigates the role that the concept of mental representation has had in
cognitive science development. We understand that cognitive science has three main paradigms
which are distinguished mainly by considerations about the notion of mental representation. The
(classical) cognitivist paradigm bears the understanding that mind operates upon a set of symbolic
representations stored and manipulated by functionally computational processes. The connectionist
paradigm describes mind as a system of parallel and distributed processing which instantiates
operations upon sub-symbolic representations. The dynamical paradigm of cognition studies the
mind by means of other approaches, including non-representational ones, that put under scrutiny the
notion of mental representation as an explanatory necessity. One of the most known and discussed
models in literature, considering the debate between representational and non-representational
points of view, is Watt’s Governor, a self-regulating mechanism used in steam machines. On the
one hand, it can be argued that a Watt’s Governor is a non-representational self-controlling system;
on the other hand, it can be postulated that such device is a representational system indeed.
Haselager et al. (2003) discuss that argument and conclude that the ubiquity of representation
undermines this very concept and exposes the fallacy of considering it as a necessary condition in

1
Docente do Curso de Música, Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul – UFMS. Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP/Marilia em
2003. E-mail: luis.felipe@ufms.br

https://doi.org/10.36311/1984-8900.2016.v8.n17.06.p85
O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

explaining mental phenomena. Thus, we bring that conclusion into question and suggest the
hypothesis that semiotics could offer interesting contributions to cognitive science, in its
considerations about the sorts and forms of representations.

Keywords: Cognitive science. Mental representation. (Classical) cognitivism. Connectionism.


Dynamicism.

1. Introdução

Estabelecer um marco preciso para o surgimento de uma nova área científica é,


geralmente, uma tarefa controversa e assim também ocorre com as ciências cognitivas.
Gardner (1995) atribui esse início ao Simpósio Hixon sobre Mecanismos Cerebrais e
Comportamento de 1948; já Dupuy (1996) atribui o surgimento desta área às Conferências
Macy, que ocorreram de 1946 a 1953, em um total de dez conferências. Certamente, os
maiores nomes do início das ciências cognitivas estavam presentes em ambos os eventos
realizados nos Estados Unidos, como John von Neumann, Nobert Wiener, Hebert Simon,
Alan Newell, Warren McCulloch, Walter Pitts, Karl Lashley, entre inúmeros outros, o que
dificulta uma demarcação mais precisa sobre o surgimento dessa ciência. Podemos dizer
que, por volta do final da década de 1940, começaram a surgir eventos e encontros entre
uma comunidade científica interdisciplinar que fundaram o que ficou conhecido como
cibernética, área que estava interessada em estudar mecanismos responsáveis por
comportamentos autocontrolados ou autorregulados, estudos os quais constituem a base
para os estudos cognitivos posteriores. Wiener (1961, p. 11) definiram a cibernética como
“[…] o campo completo da teoria do controle e da comunicação, seja nas máquinas ou nos
animais.”2Para tanto, esse grupo interdisciplinar envolvia pesquisadores das áreas da
matemática, da lógica, da engenharia, da fisiologia e da neurofisiologia, da psicologia e da
antropologia (DUPUY, 1996, p. 9). Em oposição aos pressupostos behavioristas do estudo
do comportamento humano, dominantes até então, as emergentes ciências cognitivas
buscavam estudar a mente de uma forma empírica mas que, ao mesmo tempo, considerasse
estados mentais em sua abordagem, através de uma equivalência formal entre estados
lógicos – que podem ser formalizados nas operações de uma máquina computacional – e
estados mentais.

2
[…] the entire field of control and communication theory, whether in the machine or in the animal.

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Estados mentais são conceitos do senso-comum relacionados a crenças, desejos,


percepções, ideias, imaginações, sensações, pensamentos, pelos quais se explica o
comportamento inteligente. Estados mentais, nesse entendimento de senso comum,
correlacionam-se ao conceito de representação mental das ciências cognitivas, que tem
tanto poder causal quanto conteúdos. Tomemos o exemplo de Pitt (2013, grifos do autor):
“Crenças e desejos causam os comportamentos que causam porque têm os conteúdos que
têm. Por exemplo, o desejo de tomar-se uma cerveja e as crenças de que há cerveja na
geladeira e que a geladeira está na cozinha podem explicar o comportamento de levantar-
se e ir até a cozinha.” Considerações, portanto, sobre representações mentais, seus poderes
causais e seus conteúdos, vinculam-se a inúmeras questões filosóficas, como a questão da
intencionalidade do comportamento, as propriedades semânticas das representações
mentais, as correlações com atitudes proposicionais, considerações sobre a natureza e as
formas das representações mentais, debates sobre internalismo e externalismo entre outras
considerações que a Filosofia da Mente traz à cena. No âmbito das ciências cognitivas, nas
palavras de Pitt (2013):

Filósofos da mente contemporâneos tipicamente supunham (ou


esperavam) que a mente pudesse ser naturalizada — i.e., que todos os
fatos mentais têm explicações em termos das ciências naturais. Esse
postulado é compartilhado dentro das ciências cognitivas, as quais tentam
oferecer considerações dos estados e processos mentais em termos de
características do cérebro e do sistema nervoso central. Nesse processo, as
várias subdisciplinas das ciências cognitivas (incluindo as psicologias
cognitiva e computacional e as neurociências cognitiva e computacional)
postulam um número de diferentes tipos de estruturas e processos, muitos
dos quais não são diretamente implicados por estados e processos mentais
concebidos pelo senso comum. Contudo, permanece um compromisso
difundido com a ideia de que estados e processos mentais serão
explicados em termos de representações mentais.3

Neste trabalho, então, assumimos o argumento de que as ciências cognitivas


3
Contemporary philosophers of mind have typically supposed (or at least hoped) that the mind can be
naturalized — i.e., that all mental facts have explanations in the terms of natural science. This assumption is
shared within cognitive science, which attempts to provide accounts of mental states and processes in terms
(ultimately) of features of the brain and central nervous system. In the course of doing so, the various sub-
disciplines of cognitive science (including cognitive and computational psychology and cognitive and
computational neuroscience) postulate a number of different kinds of structures and processes, many of which
are not directly implicated by mental states and processes as commonsensically conceived. There remains,
however, a shared commitment to the idea that mental states and processes are to be explained in terms of
mental representations.

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tradicionalmente explicam estados mentais em termos de representações mentais. Contudo,


além da correspondência entre estados mentais e estados representacionais, fazem-se
também necessárias considerações sobre a correspondência entre estados
mentais/representacionais/lógicos e estados físicos ou implementacionais.

Se assumirmos que uma das concepções fundacionais da ciência cognitiva


é que a mente/cérebro é um sistema computacional, o sustentáculo das
representações mentais será estruturas ou estados computacionais. A
natureza específica dessas estruturas ou estados depende do tipo de
computador que a mente/cérebro hipoteticamente é. Até o momento, a
ciência cognitiva focou-se em dois tipos: computadores convencionais
(von Neumann, simbólico, ou baseado em regras) e computadores
conexionistas (processamento paralelo e distribuído). Se a mente/cérebro
é um computador convencional, então os sustentáculos das representações
mentais serão estruturas de dados […]. Se a mente/cérebro é um
computador conexionista, então os sustentáculos da representação de
estados mentais ocorrentes serão estados de ativação de nódulos ou
conjunto de nódulos conexionistas.4 (ECKARDT, 1999, p. 527-528).

As palavras sintéticas de Eckardt nos remetem ao debate filosófico ou conceitual


que percorre a história das ciências cognitivas, sem sugerir ainda que mais recentemente
surgem abordagens não-representacionalistas que questionam tanto os modelos
computacionais apoiados sobre a noção de representação simbólica quanto os modelos que
operam sobre representações subsimbólicas. Nesse sentido, entendemos que a história das
ciências cognitivas pode ser segmentada em três distintas abordagens, as quais chamaremos
de paradigma cognitivista, paradigma conexionista e paradigma dinâmico da cognição. O
paradigma cognitivista vincula-se aos modelos computacionais apoiados sobre a noção de
representação simbólica; o paradigma conexionista, aos modelos de processamento paralelo
e distribuído, com representações subsimbólicas; o paradigma dinâmico da cognição
elimina (ou ao menos questiona) a necessidade explicativa da representação mental.
Historicamente, esta divisão paradigmática em três abordagens não é rigorosamente

4
If we take one of the foundational assumptions of cognitive science to be that the mind/brain is a
computational device the mental representation bearer will be computational structures or states. The specific
nature of these structures or states depends on what kind of computer the mind/brain is hypothesized to be. To
date, cognitive science has focused on two kinds: conventional (von Neumann, symbolic, or rule-based)
computers and connectionist (parallel distributed processing) computers. If the mind/brain is a conventional
computer, then the mental representation bearers will be data structure […]. If mind/brain is a connectionist
computer, then the representation bearers of occurrent mental states will be activation states of a connectionist
nodes or sets of nodes.

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cronológica, ainda que apresente uma certa linearidade temporal, e o surgimento dos
paradigmas mais recentes não substituiu ou eliminou os mais antigos. Isto é, muitas das
teorias postuladas nas ciências cognitivas assumem, implícita ou explicitamente, a visão
computacional da mente. Em áreas ou subáreas de estudos cognitivos que estão mais
distantes desse debate filosófico sobre representação mental, muitas vezes se assume o
pressuposto da visão computacional tout court.5 Não iremos, neste trabalho, apresentar uma
cronologia do debate sobre a representação mental nas ciências cognitivas, nem das teorias
envolvidas e postuladas nesse debate, nem iremos considerar historicamente todas as
abordagens que vinculam-se a esta ou aquela visão; iremos, diferentemente, apresentar
sinteticamente a discussão da representação mental nas ciências cognitivas, examinando os
três paradigmas que mencionamos, e, posteriormente, discutir um caso em particular no que
se refere às considerações sobre a existência ou não de representações ou de sua
necessidade explicativa, em termos cognitivos. Por fim, indicaremos que o debate sobre as
representações mentais nas ciências cognitivas pode ser bastante elucidado por
considerações advindas da semiótica peirceana.

2. A representação mental simbólica

A célebre frase sem verbos de Jerry Fodor (1975, p. 31) é emblemática com respeito
a como ciência cognitiva tradicionalmente vê a mente humana: “sem representações, sem
computação. Sem computação, sem modelo.”6 Trata-se do mote cognitivista, da máxima
que inúmeros estudos sobre a mente humana carregam, como dissemos, implícita ou
explicitamente. Segundo Pitt (2013, aspas do autor), “a noção de uma “representação
mental” é, argumentativamente, em primeiro lugar, um constructo teórico da ciência
cognitiva.” E o autor, corroborando a máxima de Fodor, continua, dizendo que a
representação mental “é o conceito básico da Teoria Computacional da Mente, de acordo
com a qual estados e processos cognitivos são constituídos pela ocorrência, transformação e
armazenamento (na mente/cérebro) de estruturas informacionais (representações) de um

5
Confira, neste sentido, a crítica de Oliveira (2014) sobre a ausência de debate sobre os modelos mentais
tradicionalmente empregados nos estudos em cognição musical.
6
No representations, no computations. No computations, no model.

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tipo ou de outro.”7 Como nos coloca Haugeland (1991) uma representação é algo que está
no lugar de outra coisa e, portanto, a representa; aquilo que ela representa é, então, seu
conteúdo. Esse conceito geral de representação, pode ser adaptado ao conceito mais
específico da representação mental: uma representação mental é algo que está na
mente/cérebro de um organismo e que representa outra coisa — como objetos do mundo
externo, outros seres, outros pensamentos, ideias abstratas etc — e, portanto, a representa;
aquilo que ela representa é, então, seu conteúdo.
Dentro do paradigma cognitivista, a representação mental é vista como um símbolo,
um objeto que não tem nem relação causal nem formal com aquilo que representa, assim
como as palavras da linguagem natural não possuem relações de causalidade ou de
semelhança formal com os objetos do mundo aos quais se referem, ou como um

V7representa um acorde de sétima de dominante. Neste sentido, as representações mentais


simbólicas são internas, abstratas, arbitrárias, discretas e infinitas, cada uma delas
correspondendo a um único objeto ou propriedade de um objeto. Ao ouvir música, se
alguém “é movido por ela, então deve ter passado por um estágio cognitivo que envolve a
formação de uma representação interna, simbólica ou abstrata, da música” (SLOBODA,
2008, p. 5). Percebe-se, dessa forma, pela afirmação acima, que dentro desta visão
cognitivista, que ouvir música — e ser movido por ela, e entendê-la — é formar
representações mentais dos fenômenos sensoriais.8 Quando alguém fala sobre o timbre
aveludado do violoncelo, sua mente está operando sobre representações simbólicas dessa
qualidade sensorial; ainda mais, para entender que esse timbre sonoro é aveludado, é
necessário relacionar as representações mentais do violoncelo, da sensação sonora do
timbre do violoncelo, do veludo, da sensação tátil do veludo, e somente então se pode
entender a frase o timbre aveludado do violoncelo. A compreensão dessa frase é uma
operação formal, i.e. computacional, sobre um conjunto de representações mentais e seus
conteúdos. Existe, nesta assunção, uma equivalência entre relações sintáticas (formais,
computacionais) e relações semânticas, que nos permite entender o significado da

7
The notion of a “mental representation” is, arguably, in the first instance a theoretical construct of cognitive
science. As such, it is a basic concept of the Computational Theory of Mind, according to which cognitive
states and processes are constituted by the occurrence, transformation and storage (in the mind/brain) of
information-bearing structures (representations) of one kind or another.
8
Sloboda (idem, ibidem) diz que “A natureza desta representação interna, e as coisas que ela permite que o
ouvinte faça com a música é a matéria-prima central da psicologia cognitiva da música.”

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expressão o timbre aveludado do violoncelo.

Se, em princípio, relações sintáticas podem ser paralelas a relações


semânticas, e se, em princípio, pode-se ter um mecanismo cujas operações
sobre fórmulas sejam sensíveis às suas sintaxes, então pode ser possível
construir uma maquina sintaticamente dirigida, a qual seria o que é
necessário para se ter um modelo mecânico da coerência semântica do
pensamento; correspondentemente, a ideia que o cérebro é tal máquina é a
hipótese fundacional da ciência cognitiva clássica.9 (FODOR;
PYLYSHYN, 1988, p. 30)

No paradigma cognitivista entende-se, portanto, que (ao menos parcialmente) o


pensamento compartilha propriedades com a linguagem natural; o pensamento estrutura-se
como a linguagem, gerando complexos representacionais potencialmente infinitos a partir
de processos combinatoriais sobre um conjunto de finito de estados representacionais
primitivos: “a semântica, tanto da linguagem quanto do pensamento é composicional: o
conteúdo de representações complexas [como o timbre aveludado do violoncelo] é
determinado pelos conteúdos de seus constituintes e suas configurações estruturais” (PITT,
2013, Seção 8, ênfase do autor).10 O paralelismo entre as relações sintáticas e as relações
semânticas é o que garante que “a linguagem do pensamento” possa ser investigada
empiricamente, através de máquinas computacionais diferentes daquela que é o cérebro
humano. Toca-se, neste ponto, em uma problemática bastante discutida na literatura
filosoficamente crítica do paradigma cognitivista, a saber, do isomorfismo.
Como nos coloca Haselager, Groot e Rappard (2003, p. 8), “um sistema físico é
considerado como realizador de um modelo computacional particular quando existe um
mapeamento um-para-um entre os estados computacionais e suas estruturas formais, por
um lado, e os estados físicos e suas estruturas físico-causais, por outro lado.”11Ainda pelo
argumento do isomorfismo, assume-se que um sistema físico-computacional seja

9
If, in principle, syntactic relations can be made to parallel semantic relations, and if, in principle, you can
have a mechanism whose operations on formulas are sensitive to their syntax, then it may be possible to
construct a syntactically driven machine would be just what’s required for a mechanical model of the
semantical coherence of thought; correspondingly, the idea that the brain is such a machine is the foundational
hypothesis of classical cognitive science.
10
[…] the semantics of both language and thought is compositional: the content of a complex representation
is determined by the contents of its constituents and their structural configurations.
11
A physical system if thought to realize a particular computational model when there is a one-to-one
mapping between the computational states and their formal structure on the one hand and the physical states
and their physical-causal structure on the other hand.

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

isomórfico ao sistema cognitivo humano, i.e., o sistema físico-computacional


físico
capaz de implementar as mesmas relações formais/físico-
mente/cérebro, desde que seja capaz formais/físico
causais. A Fig. 1 apresenta graficamente essas relações de isomorfismo descritas aqui,
associadas ao paradigma cognitivista ou cognitivismo clássico.

Figura 1: Isomorfismos associados ao paradigma cognitivista


cognitivista da cognição.

Porém, a visão do isomorfismo entre estados mentais e cerebrais não implica que
apenas cérebros podem realizar o tipo de computação que cérebros realizam, já que existe,
ao mesmo tempo, no argumento cognitivista, a crença de que esse sistema possa ser
funcionalmente
ionalmente equivalente de outro sistema computacional que não seja implementado em
um cérebro, mas em uma máquina. Em outras palavras, o nível funcional de análise é
diferente da, e não pode ser exclusivamente identificado com a, realização física específi
específica
— o que precisa haver, ao contrário, é uma correspondência isomórfica.

[...] identificar o estado [mental] em questão com sua realização física ou


química seria bastante absurdo, dada que a realização é, em certo sentido,
bastante acidental, do ponto de vista da psicologia, contudo. […] É como
se encontrássemos marcianos e descobríssemos que fossem isomórficos a
nós em todos os sentidos funcionais, mas nos recusássemos a admitir que
eles pudessem sentir dor porque suas fibras C eram diferentes.12
(PUTNA 1980, p. 136)
(PUTNAM,

Analisando a teoria do funcionalismo com relação ao cognitivismo clássico, Dupuy


(1996, p. 26, aspas do autor) afirma que “Essa teoria que se nos tornou familiar, pela qual
distinguimos o “programa” (software)
( ), é um produto da
do “material” (hardware),

12
ntify the [mental] state in question with its physical or chemical realization would be quite
[…] to identify
absurd, given that the realization is in a sense quite accidental, from the point of view of psychology, anyway.
[…] It is as if we met Martians and discovered thatthat they were in all functional respects isomorphic to us, but
we refused to admit that they could feel pain because their C fibers were different.

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p.
O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

revolução conceptual que assinala o advento das ciências cognitivas, e não sua origem,”
mesmo porque os primeiros modelos computacionais como aqueles desenvolvidos por
McCulloch e Pitts (1943) ou mesmo a máquina de Turing (2004) ainda não tinham essa
distinção funcional.
A visão funcionalista da mente associa-se, normalmente, a um entendimento
internalista, “pelo qual se pensa que os conteúdos representacionais [e seus poderes
causais] são determinados apenas pelas propriedades intrínsecas do indivíduo” (PITT,
2013, Seção 7), ou então se postula, em uma visão menos radical, que se pode distinguir
entre conteúdos representacionais em sentido estrito ou lato, sendo que em sentido estrito
os conteúdos são governados pela estrutura sintática do sistema e indiferentes e invariáveis
ao contexto externo, enquanto que os latos são determinados pelos conteúdos estritos
associados a fatores externos. De qualquer forma, o pensamento é um processo (interno) de
geração, manipulação (por um conjunto de regras sintaticamente estruturadas) e
armazenamento de representações internas cujos conteúdos tem poder causal sobre o
comportamento e as ações. Para o cognitivismo clássico o conteúdo e a manipulação das
representações mentais não dependem, causalmente, do ambiente externo justamente
porque as representações representam as características importantes desse ambiente, como
afirmado por Haugeland (1991, p. 62):

Um sistema sofisticado (organismo) desenvolvido (evoluído) para


maximizar algum fim (e.g., sobreviver) precisa, em geral, ajustar seu
comportamento para características, estruturas, ou configurações
específicas do seu meio ambiente em modos que podem não ter sido
totalmente pré-arranjados em sua configuração. […] Mas se as
características relevantes não estão sempre presentes (detectáveis), então
elas podem, pelo menos em alguns casos, estar representadas; isto é,
alguma coisa pode estar no lugar delas, com poder de guiar o
comportamento em seus lugares. O que está no lugar de outra coisa, neste
modo, é uma representação; aquilo para o qual ela está no lugar é seu
conteúdo; e estar no lugar de algo para este conteúdo é representá-lo.13

13
A sophisticated system (organism) designed (evolved) to maximize some end (e.g., survival) must in general
adjust its behavior to specific features, structures, or configurations of its environment in ways that could not
have been fully prearranged in its design ... But if the relevant features are not always present (detectable),
then they can, at least in some cases, be represented; that is, something else can stand in for them, with the
power to guide behavior in their stead. That which stands in for something else in this way is a representation;
that which it stands for is its content; and its standing in for that content is representing it.

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3. A representação mental subsimbólica

Pode-se distinguir as abordagens computacionais das ciências cognitivas em dois


paradigmas: o paradigma cognitivista — ou cognitivismo clássico — e o paradigma
conexionista. Da mesma forma que os modelos computacionais do primeiro paradigma, os
modelos conexionistas também têm sua origem localizada durante a cibernética dos anos
40, novamente pela influência dos trabalhos de Alan Turing. Devido a sua natureza
puramente lógica, a máquina de Turing possibilitou diferentes caminhos
implementacionais, um desenvolvido por von Neumann que levou ao computador serial
digital (o modelo cognitivista), e outro caminho implementacional que teve como
fundadores o neuropsiquiatra Warren McCulloch e o matemático Walter Pitts, que criaram
a primeira modelagem conexionista (GARDNER, 1995, p. 159-160). Dupuy (1996, p. 56)
diz que o “número de atores” envolvidos na modelagem cibernética da mente não era
apenas dois, o organismo e a máquina, mas eram três os agentes envolvidos: “[…] o
organismo em sua estrutura (o cérebro), o organismo em sua função (a mente) e a máquina,
com esta última desdobrando-se em máquina lógica (máquina de Turing ou máquina de
McCulloch e Pitts) e máquina artificial, material (o computador).”
Em 1943 McCulloch e Pitts publicaram seu referencial artigo A Logical calculus of
the ideas immanent in nervous activity. É nesse artigo que encontramos a primeira
caracterização de uma rede de neurônios como um sistema formal, operando de acordo com
procedimentos lógicos. A máquina lógica de McCulloch e Pitts é inspirada na estrutura e no
funcionamento cerebrais, incluindo em sua modelagem os tão importantes mecanismos de
feedback, os quais os cibernéticos consideravam como dirigentes do comportamento.
Contudo, apesar da inspiração neurofisiológica desse modelo, sua plausibilidade biológica
não é tão pertinente quanto se supunha na época — para os padrões da atual neurociência
tal modelagem é considerada como sendo não realista, ou abstrata, por não incluir muitos
dos aspectos e propriedades cerebrais de baixo-nível (CHURCHLAND; SEJNOWSKI,
1992, p. 136). Mesmo assim, existe, nas máquinas conexionistas, uma equivalência entre os
níveis físico e computacional.

Demostra ele [McCulloch, no artigo de 1943], em princípio, a existência


de uma máquina lógica equivalente à de Turing (tendo em vista que tudo

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

que uma pode fazer, a outra pode fazer, e reciprocamente), que pode ser
considerada em sua estrutura e em seu comportamento uma idealização da
anatomia e da fisiologia do cérebro. Este resultado, na mente de
McCulloch pelo menos, constitui um avanço decisivo, já que não é mais o
cérebro em sua função (a mente), mas também o cérebro em sua estrutura,
o cérebro material, natural, biológico, que é assimilável a um mecanismo
e, mais precisamente, a uma máquina de Turing. É assim que o
cibernético julga resolver o velho problema da alma e do corpo, ou, em
seus próprios termos, do “embodiment of mind.” O cérebro e a mente são
um e outro uma máquina, e a mesma máquina. O cérebro e a mente,
portanto, são um só. (DUPUY, 1996, p. 59, grifo nosso, aspas do autor)

Essa equivalência implica na existência de uma diferença significativa entre os


modelos cognitivistas e os modelos conexionistas, pois se ambos dependem de relações de
isomorfismo entre estados físicos e estados computacionais — i.e., para cada estado físico
deve corresponder um estado lógico, com as mesmas relações causais —, nas máquinas
conexionistas a teoria funcionalista se apresenta diferentemente, pois ela se torna
parcialmente dependente do estado físico em questão. Ou seja, não se admite que apenas
relações de isomorfismo garantam a correspondência necessária e suficiente entre estados
lógico-computacionais e quaisquer outros sistemas físicos que possam implementar
satisfatoriamente (isomorficamente) tais estados.14 Gonzales (1991, p. 96, grifos da autora)
distingue, neste sentido, entre o funcionalismo lógico-computacional e o funcionalismo
neuro-computacional:

Uma versão informal do funcionalismo nos diz que, apesar de as


máquinas e os seres humanos serem fisicamente diferentes, ambos
possuem sistemas de processamento de informações, cujas operações
mentais/computacionais podem ser entendidas em termos de suas
organizações funcionais. Atualmente existem dois ramos principais do
funcionalismo na Ciência Cognitiva, os quais denominaremos: (i)
funcionalismo lógico-computacional, (ii) funcionalismo neuro-
computacional. A diferença central entre (i) e (ii) é que, no primeiro caso,
os processos mentais são estudados como se fossem apenas computações
abstratas — independentemente de suas realizações físicas e do meio
ambiente — que desempenham papéis funcionais no sistema cognitivo.
Em contraposição, os funcionalistas neuro-computacionais enfatizam a
relevância de considerações acerca dos aspectos físicos, neurofisiológicos
e ambientais para o estudo e compreensão dos processos mentais. A
diferença de enfoque dos processos mentais existente entre as abordagens
(i) e (ii) é particularmente relevante para a nossa presente análise das
representações mentais. Como ficará claro a seguir, os funcionalistas

14
Como diz Putnam (1980, p. 134): “We could be made of Swiss cheese and it wouldn’t matter.”

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

lógico-computacionais descrevem as representações mentais como


abstrações que funcionam como mediadores entre o organismo e o seu
meio ambiente. Para os funcionalistas neuro-computacionais, entre os
quais esta autora se inclui, as representações mentais são estruturas
emergentes da ativação de unidades neurônio-símile (neuron like units)
que se auto-organizam em função da informação disponível no meio
ambiente.

As unidades de processamento conexionistas, ou neurônios-símile ou neurônios


artificiais, podem ser configuradas em um sem número de arquiteturas diferentes. A Fig. 2a
apresenta um neurônio artificial típico e a 2b uma arquitetura de rede neural multicamada
do tipo feedforward, uma rede bastante utilizada para classificação de padrões
representados por vetores de entrada. Cada neurônio de uma rede tem ligações com outros
neurônios, e os sinais enviados de um para outro podem ser mais fortes ou mais fracos, pois
são ponderados. Em um dado momento, na dinâmica temporal de uma rede neural artificial,
existe uma configuração de ativação dos neurônios envolvidos, e isto é a representação
distribuída de algo. Mas a mesma população neuronal também pode representar, e de fato
representa, n outras coisas em outros momentos. Estas outras representações são, então,
outros padrões de ativação, que são armazenadas na forma de pesos sinápticos, ou
configurações dos pesos das conexões envolvidas (que variam de acordo com a arquitetura
da rede). Tais pesos possibilitam a recuperação de outros padrões de ativação perante um
estímulo específico para determinado padrão. Através desses processos podem ser
armazenados inúmeros padrões, de acordo com o treinamento — ou fase de aprendizagem
— ao qual se submete uma rede neural.15

15
Descrever minuciosamente o funcionamento de uma rede neural artificial está fora do escopo deste trabalho
e essa descrição visa apenas oferecer ao leitor não familiarizado com a computação conexionista uma
ilustração. Sugere-se, para maiores esclarecimentos sobre redes neurais, a leitura dos textos técnicos de
Haykin (2008) e Kung (1993), ou a discussão mais conceitual de Churchland e Sejnowski (1992).

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Figura 2: A imagem (a) ilustra uma unidade de processamento de uma rede neural típica, com as conexões de entrada Sn,
os pesos de cada entrada Wn, a função de ativação E e a conexões de saída So. A imagem (b) ilustra um exemplo de
arquitetura de rede neuralartificial multilayer do tipo feedforward. (Imagens retiradas de GONZALEZ, 1991)

Por um lado, arquiteturas conexionistas diversas buscavam e buscam simular (e


entender) diferentes organizações de populações neuronais, lembrando
lembrando-se que a
plausibilidade biológica das arquiteturas das redes neurais artificiais é sempre discutível em
face dos avanços das neurociências;16 por outro lado, independentemente da simulação
organizacional de populações específicas
especí se que arquiteturas
de neurônios, observou-se
conexionistas distintas possuem propriedades variadas na resolução de problemas lógico-
lógico
matemáticos. Por exemplo, redes neurais artificiais realizam computações que apresentam a
capacidade de aprendizagem (supervisionada
(su supervisionada) pela exposição a
ou não-supervisionada)
padrões; a capacidade de generalização no reconhecimento de padrões informacionais

16
Neste sentido, dos modelos conexionistas, é interessante observar que muita plausibilidade biológica pode
po
não ser apropriado para o estudo da mente pois ““models models that are excessively rich may mask the very
principles the models where built to reveal. In the most extreme case, if a model is exactly as realistic as the
human brain, then the construction and th thee analysis may be expensive in computational and human time and
hence impractical”” (CHURCHLAND; SEJNOWSKI, 1992, p. 137). Acreditamos que eles, os modelos
realistas, seriam interessantes na medida em que se quer construir uma mente artificial, mas para exp
explicações
científicas sem esta pretensão, esses autores dizem que o importante é “[…] make the model simply enough to
reveal what is important, but rich enough to include whatever is relevant to the measurements needed” (idem,
ibidem).

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

estáticos e dinâmicos; a capacidade de classificar e extrair características em conjuntos de


dados; capacidade de interpolar e extrapolar funções; robustez ou tolerância a falha e a
capacidade de lidar com estímulos ruidosos, entre outras. Encontra-se na literatura diversos
trabalhos taxonômicos sobre arquiteturas conexionistas associadas com a resolução de
problemas computacionais (HAYKIN, 2008; KUNG, 1993; CHURCHLAND;
SEJNOWSKI, 1992, entre outros). Entretanto, as arquiteturas conexionistas as mais
variadas compartilham algumas propriedades gerais, às quais podemos vincular,
novamente, a discussão das representações mentais, agora sob o novo enfoque que o
paradigma conexionista trouxe.
Vimos que, grosso modo, representações mentais podem ser entendidas como
objetos internos a uma mente que representam coisas que estão fora dela. Na perspectiva do
cognitivismo, entende-se que elas possuem uma natureza estritamente simbólica, ou seja,
não há correspondência direta e necessária entre o símbolo e o que ele representa, a não ser
a convenção de um código (ou, nas palavras de Fodor, uma ‘linguagem do pensamento’),
independentemente de existir ou não um mapeamento um-para-um entre representações e
coisas representadas (HASELAGER, 1997, p. 47). De maneira semelhante à reformulação
conexionista do funcionalismo, que passou a defender que o nível mental é dependente do,
ou ao menos possui estreita relação com o, nível material e dos processos que ali ocorrem,
o entendimento das representações mentais também é revisitado no paradigma
conexionista. Em termos bastante sintéticos, assume-se que se as arquiteturas
computacionais são modelos para as ciências cognitivas — e já vimos, neste trabalho,
inúmeras citações que corroboram esta afirmação — o modelo de processamento paralelo e
distribuído das redes neurais é mais interessante, entre outras coisas, por ser menos dualista,
porque considera que o nível físico é tão importante quanto o nível lógico para a explicação
de processos cognitivos (ou, se se quiser assumir o argumento reducionista exposto por
Dupuy na citação que há pouco trouxemos, nesta seção, a mente e o cérebro são a mesma
máquina).
Dentro do paradigma conexionista, as representações mentais são usualmente
denominadas de representação subsimbólica ou distribuída. O entendimento conexionista
da representação mental vincula-se ao fato de que desde a década de 50 as neurociências
gradativamente deixaram a teoria da codificação local (local coding theory) da informação

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em função de uma forma de representação distribuída (ou vector coding ou


representation) da informação (CHURCHLAND; SEJNOWSKI, 1992, p.
multidimensional representation)
157-162).

Figura 3: Exemplo de reconhecimento de padrões por processos de aprendizagem supervisionada para duas classes de
categorias, a partir da decomposição de um sinal acústico em vetores de entrada. (Imagens retiradas de GONZALEZ,
1991)

Em primeiro lugar, a representação distribuída ocorre sobre um conjunto ou


população de neurônios que representa um objeto (enquanto que no local coding, cada
neurônio individualmente seria responsável por representar uma característica específica do
o representado). Ou seja, a representação mental não é um objeto único (token),
objeto ( um
encontra se espalhada sobre um conjunto de unidades integradas,
símbolo armazenado, mas encontra-se
formando um espaço multidimensional. Como ilustração, a Fig. 3 apresenta uma rede
ral multicamada do tipo feedforward que classifica o tipo de material geológico a partir
neural
do sinal acústico captado, o qual é transformado em um vetor de valores que alimenta a
camada de entrada da rede. Neste exemplo, os padrões que a rede aprende a classi
classificar não
representados em algum dos neurônios da rede, mas é a distribuição (dos pesos das

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

conexões) que representa ao mesmo tempo cada um um dos padrões. Observe na Fig. 3 que
todos as unidades são conectadas a todas as demais unidades. Outra característica
importante de ser destacada nas arquiteturas computacionais conexionistas é que a
população neuronal é sempre a mesma para diferentes representações, fato que van Gelder
(1991) chama da sobreposição (no caso do exemplo da Fig. 3 as duas categorias que a rede
classifica são representadas nos mesmos neurônios da camada de entrada e intermediária).
Em outras palavras, nenhum objeto ou conteúdo ou característica de um objeto é
representado por um único neurônio (van GELDER, 1992).17 Em segundo lugar, outra
característica fundamental das representações distribuídas é que elas apresentam
redundância, visto que várias unidades representam a mesma coisa. A redundância
representacional relaciona-se, ainda, à robustez do sistema quanto a falhas, já que a perda
de uma ou algumas unidades neuronais não implica na eliminação completa de informações
ou representações (ao contrário, se cada unidade armazenasse exclusivamente um símbolo
ou token, sua inoperância resultaria na perda desse código, invariavelmente).

4. A visão não-representacional da mente

As seções anteriores evidenciam, e as inúmeras citações nelas contidas corroboram,


o argumento de que as ciências cognitivas vinculam-se de maneira bastante forte aos
modelos computacionais da mente, seja pelo viés do cognitivismo clássico — e do modelo
do computador serial digital —, seja pelo viés do conexionismo — e o modelo das
máquinas de processamento paralelo e distribuído. Vimos que a base para os modelos
computacionais da mente dentro dos paradigmas cognitivista e conexionista é a noção de
máquina de Turing, diferenciando os modelos (e as teorias sobre eles desenvolvidas) de
cada abordagem pelas questões colocadas pela distinção entre as versões lógico-
computacional e neuro-computacional do funcionalismo. Pudemos perceber, portanto, que
dentro dessas abordagens computacionais, apesar das diferenças encontradas, a noção de
representação mental é indispensável. Destarte, podemos estabelecer dois pressupostos

17
Com relação a esta última afirmação, Churchland e Sejnowsky (1992, p. 165) discordam parcialmente:
“[…] in some instances, the vector components may correspond to features such as the color, shape, motion,
etc. of an object, but in other cases there may be no identifiable microfeature corresponding to any
component.

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centrais à ciência cognitiva:

(i) as ciências cognitivas, tradicionalmente, apoiam-se sobre a visão computacional


da mente;18
(ii) a noção de representação mental é, neste contexto computacional, condição
necessária para a explicação dos processos cognitivos.

Não obstante, mais recentemente começam a surgir pesquisadores insatisfeitos com


estes pressupostos carregados pelos estudos da cognição e tão amplamente aceitos dentro
das ciências cognitivas. A crítica à visão computacional da mente se constrói, então, na
confluência de diferentes propostas teóricas que, de um modo ou de outro, entendem que
modelos cognitivos devem ir além das proposições explicativas baseadas exclusivamente
processamento interno de informação (representação), i.e., dos modelos computacionais da
mente.

Entretanto, até hoje essa orientação alternativa não tem um nome bem
estabelecido, sendo mais um guarda-chuva que cobre um grupo
relativamente pequeno de pessoas trabalhando em diversos campos.
Propomos como nome o termo enacionismo, para enfatizar a convicção
crescente de que a cognição não é representação de um mundo
preestabelecido por uma mente preestabelecida, mas, ao contrário, é a
atuação de um mundo e de uma mente sobre as bases de uma história da
variedade de ações que um ser executa em um mundo. (VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 1991, p. 9)19

As abordagens da cognição adotadas e propostas por este grupo sem nome, que
Varela et al. chamam de enacionistas, nós abarcaremos no que chamamos de paradigma
dinâmico da cognição. Entendemos que, tratando da questão da representação mental, na

18
Associada a esta afirmação existe uma considerável e interessante (e datada) discussão sobre máquinas
serem ou não sistemas dotados de estados mentais, i.e., se máquinas computacionais são apenas modelos da
mente ou se, de fato, elas realizam estados mentais. Neste sentido, Searle (1980), por exemplo, distingue entre
o que chama de inteligência artificial forte e fraca. Esta discussão ultrapassa os limites deste trabalho e, aqui,
estabelecemos o pressuposto (i), acima, em termos epistemológicos nos estudos da cognição e, portanto, não
consideramos e não iremos discutir a tese forte da inteligência artificial.
19
As yet, however, this alternative orientation does not have a well-established name, for it is more an
umbrella that covers a relatively small group of people working in diverse fields. We propose as a name that
term enactive to emphasize the growing conviction that cognition is not the representation of a pregiven world
by a pregiven mind but is rather the enactment of a world and a mind on the basis of a history of the variety of
actions that a being in the world performs.

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visão desses pesquisadores — os quais vêm de diferentes áreas, da biologia à psicologia, da


inteligência artificial à semiótica, da linguística à música etc — considerações sobre a
cognição devem olhar o sistema como algo efetivamente incorporado e atuante no mundo e
não como um sistema abstrato de operações lógicas sobre representações simbólicas,
destacado de sua materialidade, e também não como uma população altamente conectada
de neurônios de um cérebro sem corpo, sem ação no mundo, sem uma história que se
correlaciona com essa atuação. Como nos coloca Haselager, Bongers e Rooij (2003, p. 6):

Em primeiro lugar, este argumento destaca que nosso sistema cognitivo


está essencialmente fundamentado em nosso cérebro e este está integrado
com o nosso corpo. Muito da natureza dos nossos processos cognitivos
está determinado pelas possibilidades específicas de ação oferecidas pelo
nosso corpo. Isto é, nosso sistema cognitivo não é um sistema de
processamento de informação independente, mas um sistema que está
essencialmente corporificado. Em segundo lugar, a abordagem dinâmica
enfatiza o fato de que cognição e comportamento são resultado da
interação entre nosso sistema cognitivo e seu entorno imediato. Desta
forma, ela reforça o fato de que cognição e comportamento estão situados
em uma rede causal que engloba o cérebro, o corpo e o ambiente.
Sobretudo, a abordagem dinâmica confere uma estrutura na qual a
cognição e o comportamento são tomados como resultado de interações
dinâmicas complexas entre cérebro, corpo e ambiente. O surgimento da
abordagem dinâmica coincide com um descontentamento crescente com
as abordagens preponderantes da cognição. Em particular, existe uma
séria dúvida sobre, e muitas vezes uma forte insatisfação com, a visão
tradicional de que a cognição deve ser definida em termos de
transformações computacionais sobre representações internas.20

Se quisermos ser mais pontuais e mais precisos em apontar razões específicas para
esse descontentamento, podemos verificar quais são as ‘dores de cabeça’ que a noção de
representação mental infligiu aos pesquisadores vinculados aos paradigmas

20
First, this claim highlights the fact that our cognitive system is essentially grounded in the brain as it is
integrated with our body. Much of the nature of our cognitive processes is determined by the specific action
possibilities afforded by our body. That is, our cognitive system is not an independent information-processing
system, but a system that is essentially embodied. Second, the dynamical approach emphasizes the fact that
cognition and behavior are the result of the interaction between our cognitive system and its immediate
environment. As such, it stresses the fact that cognition and behavior are embedded in a causal web that
encompasses brain, body, and environment. In all, the dynamical approach entails a framework in which
cognition and behavior are taken to result from complex dynamical interactions between brain, body, and
environment.The advent of the dynamical approach coincides with a growing discontent with the prevailing
approaches to cognition. In particular, there is serious doubt about, and sometimes strong dissatisfaction with,
the traditional view that cognition should be defined in terms of computational transformations over internal
representations.”

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computacionais. Haselager (2004) diz que o mal estar do representacionismo21 decorre de


sete ‘dores de cabeça:’ o problema do frame; o problema de estrutura representacional; o
problema das raízes do significado; o problema da operacionalização; o problema do
observador; o problema da dependência; o problema da ubiquidade da representação.
O problema do frame diz respeito à tentativa (fracassada) de formalização do
conhecimento de senso comum; i.e., explicar através dos modelos cognitivistas ações que
realizamos em nosso dia com bastante eficiência sem a necessidade de muito esforço
intelectual, como por exemplo, dirigir por uma cidade conversando com um amigo
passageiro. A inteligência artificial teve muito mais sucesso em criar algoritmos que
joguem xadrez com o campeão mundial do que em criar uma máquina que consiga servir
uma xícara de café e saber quanto açúcar colocar ou um robô que ande de bicicleta. Parece,
pois, que alguns domínios são mais propícios para que modelos cognitivistas ou mesmo
conexionistas atuem eficientemente e, assim, podem ser considerados como modelos
dignos de estudo. Como colocado por Varela, Thompson e Rosch (1991, aspas dos
autores):

Essa abordagem [simbólica] da cognição como resolução de problemas


funciona, até um certo grau, para tarefas que estão em domínios nos quais
é relativamente fácil especificar todos os estados possíveis. Considere, por
exemplo, o jogo de xadrez. É relativamente fácil definir os constituintes
do “espaço do xadrez:” há posições no tabuleiro, regras para os
movimentos, jogadas que são feitas e assim por diante. Os limites desse
espaço são claramente definidos; de fato, é quase um mundo cristalino.
Não é surpreendente, então, que o jogo de xadrez seja uma arte avançada
na computação.22

Ao contrário de ações que podemos fazer em domínios tais quais esse mundo
cristalino do jogo de xadrez, as ações diárias que realizamos parecem ser melhor explicadas
sem a mediação da representação mental e do processamento de informação
necessariamente requerido. Gibson (1979, 1966) propôs a teoria da percepção direta, e a

21
Encontra-se, muitas vezes, variações na grafia deste termo, que ora se apresenta como representacionalismo
e ora como representacionismo. Tratamo-os como sinônimos.
22
This [symbolic] approach to cognition as problem solving works to some degree for task domains in which
it is relatively easy to specify all possible states. Consider for example the game of chess. It is relatively easy
to define the constituents of the “space of chess:” there are positions on the board, rules for movements, turns
that are taken, and so on. The limits of this space are clearly defined; in fact, it is an almost crystalline world.
It is not surprising, then, that chess playing by computer is an advanced art.

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chamou de direta por que explica a relação entre percepção e ação sem a mediação de
representação mental, especialmente nessas questões vinculadas ao problema do frame.
Gibson explica as ações estabelecendo uma ligação causal não-mediada entre percepção e
ação, porque, como colocam Michaels e Carello (1981, p. 47), “para a percepção ser válida
(e valiosa), ela deve estar manifesta em ações apropriadas e efetivas em um ambiente. E,
por sua vez, porque ações, para serem efetivas e apropriadas, devem estar restringidas por
percepções precisas do meio ambiente.”23
O problema da estrutura representacional diz respeito a forma adequada de
representação para explicar os processos cognitivos. Vimos, neste trabalho, que o modelo
de representação simbólica, apesar de dominante dentro das teorias cognitivas propostas,
limita-se, em seu alcance explicativo a certos domínios; por outro lado, que o advento do
conexionismo possibilitou a superação de falhas dos modelos clássicos, embora também
apresente limitações em seu alcance explicativo. Encontra-se na literatura uma considerável
quantidade de artigos de proponentes de ambos os modelos, com réplicas e tréplicas que
visavam estabelecer os limites dos modelos explicativos. Haselager (2004, p. 4) nos
esclarece que o problema mais preocupante é que ambos os lados estão certos:

É preocupante que os fundamentos da ciência cognitiva, que se alicerçam


nas representações, sejam objetos de acalorados debates sobre sua correta
estrutura. Esta questão se torna mais séria ainda quando as críticas a
ambas as estruturas representacionais estão basicamente corretas. A
questão que surge em decorrência disso é: será a pedra fundamental da
ciência cognitiva tão sólida quanto se pensava?

O problema das raízes do significado toca um ponto importante e relacionado a


algumas das discussões que aparecem nas seções anteriores deste trabalho, especialmente a
segunda. Se uma representação é um símbolo, o que estabelece, ou por qual processo se
estabelece, a correlação entre uma representação e seu significado? Pesquisadores como
Fodor, por exemplo, oferecem teorias como a linguagem do pensamento, que é,
basicamente, uma hipótese de que processos mentais são resultado da manipulação sintática
de representações simbólicas, cujos significados se estabeleçam sobre “paralelos” entre os

23
For perception to be valuable, it must be manifested in appropriate and effective actions on the
environment. And, in turn, for actions to be appropriate and effective they must be constrained by accurate
perception of the environment.

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domínios sintáticos e semânticos. Ora, o que garante esse paralelo? Na perspectiva do


cognitivismo o significado deixa de ser inerente ao sistema, para, na melhor das
possibilidades, ser nele colocado por algum agente externo (como o programador). No
conexionismo a questão se apresenta diferentemente, de um modo menos linguístico, mas
também de maneira problemática, já que as representações são mais inerentes ao sistema,
no entanto ainda dependentes de arquiteturas específicas para problemas específicos, e sem
conseguir oferecer insight sobre como as representações adquirem significados, inclusive
simbolicamente — retornaremos a esta questão mais a frente, com um possível
encaminhamento.
O problema da operacionalização relaciona-se a abordagens mais recentes da
computação, como os autômatos celulares ou os algoritmos genéticos ou a computação
evolutiva, nos quais não existe programação prévia de sistemas representacionais, nem em
termos simbólicos nem em termos subsimbólicos. Shellard et al. (2010, p. 410) afirmam
que, “dentre os métodos de computação adaptativa, a computação evolutiva (CE) é aquele
inspirado nas estratégias biológicas de adaptação em populações de indivíduos, como
inicialmente descrito por Charles Darwin. CE é normalmente usada para encontrar a melhor
solução possível para problemas quando não existem informações suficientes para resolvê-
los através de métodos formais (determinísticos).”24 Essas recentes abordagens
computacionais colocam em cheque a tradicional noção de representação das ciências
cognitivas porque emprega modelos que lidam com problemas mal formulados, do ponto
de vista informacional, e que, portanto, não podem ser representados a priori, ou seja, não
podem ser operacionalizados através dos métodos tradicionais de computação.
O problema do observador relaciona-se a premissas como o mote de Fodor de que
sem representação não há modelos de processos cognitivos. Trata-se, quase, de um axioma
da ciência cognitiva. Haselager (2004, p. 6) postula que assim como projetamos nossa
intencionalidade e desejos sobre objetos e outros seres, como cachorros, gatos,
computadores ou robôs, os cientistas cognitivos também o fazem, com respeito a
representações mentais: “sempre que observam o comportamento de um sistema,

24
Among computational adaptive methods, Evolutionary Computation (EC) is the one inspired into the
biological strategy of adapting populations of individuals, as initially described by Charles Darwin. EC is
normally used to find the best possible solution to problems when there is not enough information to solve it
through formal (deterministic) methods.

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manifestam essa compulsão de atribuir-lhes representações internas.” O autor aponta que


um dos fundadores da ciência da cognição, Herbert Simon, já havia nos alertado sobre esse
fato, ao afirmar que a complexidade dos nossos processos cognitivos são decorrência da
complexidade do ambiente que nos envolve. Nesse sentido, é bastante tentadora a
comparação desta afirmação com um dos argumentos associados com teoria da percepção
direta de James Gibson, que citamos brevemente alguns parágrafos acima. Gibson entende
que à descrição dos processos cognitivos pelos sistemas de processamento de informações
internamente representadas associa-se a ideia de que o ambiente é pobre (ou confuso)
informacionalmente e, que, assim, um sistema cognitivo precisa elaborar os estímulos
sensoriais para poder construir informações que o permitam ligar com seu entorno. Os
sistemas perceptivos, no entendimento da teoria da percepção direta, vinculam-se à ideia de
que o ambiente é, contrariamente, extremamente rico em termos informacionais e que,
portanto, o sistema perceptivo precisa, ao invés de elaborar representações informativas,
filtrar as informações ambientais, em um processo de sintonia (self-tuning) entre organismo
e ambiente.
O problema da dependência é que os cientistas cognitivos, ao pensar em soluções
para problemas — ou quando propõem modelos para a cognição —, não conseguem
escapar à tentação de usar a noção de representação mental, não verificando a cada caso se
esta noção é realmente necessária. Este vício, esta dependência, decorre da superexposição
a esse tipo de solução, criando um hábito tão enraizado que sequer se cogitam outros tipos
de explicação. Haselager aponta, como ilustração de tal problema (e de vários dos outros
apontados), o controlador centrífugo, ao qual iremos discutir na próxima seção.
Por fim, chegamos ao problema da ubiquidade da representação, o qual iremos
discutir em maiores detalhes neste artigo, na próxima seção. O problema da ubiquidade da
representação é abordado em alguns artigos (HASELAGER, 2004; HASELAGER;
BONGERS; ROOIJ, 2003; HASELAGER; GROOT; RAPPARD, 2003), e o sintetizamos
aqui. Haselager e seus coautores defendem que se possa ter uma visão ampliada da
representação; visão esta que resulta em se enxergar uma ampla variedade de processos
como sistemas representacionais, incluindo sistemas mecânicos como o controlador
centrífugo. O problema da ubiquidade da representação, então, é que ela perde o seu poder
explicativo quando se aplica a qualquer sistema. Certamente, nesse entendimento ampliado

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da representação, as noções mais restritas ddaa representação mental simbólica ou


subsimbólica não bastam, e o debate sobre a forma da representação mental se transforma o
debate sobre a existência ou não da representação mental. O argumento, pois, é que a
ubiquidade da representação enfraquece sua co
condição
ndição de fundamento explicativo da ciência
cognitiva. Trataremos mais desta questão a seguir.

5. O controlador centrífugo e o argumento da ubiquidade da representação mental

Quando van Gelder (1998), em seu seminal artigo, formula a hipótese dinâmica do
estudo da cognição ele assume que sistemas cognitivos podem ser ontologicamente
sistemas dinâmicos ou podem ser descritos enquanto tal. Um dos modelos mais populares
na discussão
ão dinâmica da cognição, tanto pelo lado daqueles que defendem esta abordagem,
quanto pelo lado dos que continuam a estudar processos cognitivos pelos paradigmas
computacionais, é o Watt’s governor ou controlador centrífugo, o qual Tim van Gelder
(1995) já havia vinculado à questão da cognição em termos não computacionais.
não-computacionais.

Figura 4: Representação ilustrativa de um Watt’s governor, um dispositivo de finais do século XVIII empregado para
controlar a pressão de admissão de vapor em máquinas de tecelagem.

A Fig. 4 ilustra esse dispositivo que foi criado por James Watt para controlar a
pressão de admissão de vapor para máquinas de tecelagem. Tal dispositivo pode ser visto
como um sistema que controla (ou autocontrola) a pressão de vapor pelo acoplamento

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

físico com uma máquina movida a vapor. A rotação do motor é transmitida por uma correia
ao eixo vertical no lado esquerdo da Fig. 4. Por influência da força centrífuga, em oposição
à força da gravidade, a velocidade da rotação transmitida a este eixo faz com que as massas
cilíndricas movimentem-se centrífuga ou centripidamente. Articulado às massas, liga-se um
eixo de conexão que movimenta a válvula de admissão de vapor do motor. Dessa forma,
fecha-se um círculo de causalidade que autorregula a velocidade de rotação do motor em
função da manutenção da pressão de admissão de vapor.
Tim van Gelder, assim como todos os dinamicistas que o seguem analisando o
controlador centrífugo, entendem que se trata de um sistema que consegue se autorregular
sem envolver a noção de representação. O paradigma dinâmico da cognição traz à luz
diversos conceitos da teoria dos sistemas dinâmicos aplicados ao domínio da cognição,
como a auto-organização, propriedades, estruturas e comportamentos emergentes,
acoplamentos informacionais e a crítica recorrente o emprego da representação mental
como condição necessária para explicações da cognição e, por extensão, de sistemas que
apresentam comportamentos autônomos, mesmo se não o considerarmos, de fato, sistemas
cognitivos. Se voltarmos às origens cibernéticas da ciência cognitiva é possível entender
que este aparato de controle tem muito em comum com os interesses daqueles
pesquisadores (mecanismos de autocontrole com a utilização de feedback em relações
causais e/ou informacionais). Parece, então, que a ciência cognitiva, em suas próprias
origens, optou por enxergar os fenômenos que estudava sempre pelo viés da representação
interna; esquecendo-se que, em muitos casos, possam existir outras explicações, às vezes
mais simples e diretas — lembremos da questão da dependência. Haselager (2004, p. 6)
traduz a solução que van Gelder diz ser aquela que um cientista cognitivo tipicamente
apresentaria para solucionar a regulação das máquinas de tecelagem a vapor:

1. Medir a velocidade da roda;


2. Comparar a velocidade atual com a velocidade desejada;
3. Se não há discrepância, voltar ao primeiro passo. Se houver:
a. medir a pressão usual do vapor;
b. calcular a pressão desejada da pressão do vapor;
c. calcular o ajuste necessário na válvula;

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4. Fazer o ajuste necessário na válvula reguladora da pressão;


5. Voltar ao primeiro passo.

Esta solução é uma proposta evidentemente representacional. Todos os cálculos são


realizados a partir de representações discretas de estados de partes do sistema armazenados
partir de tais cálculos o
internamente em um sistema de processamento computacional. A partir
sistema de controle efetiva as ações para correção da atuação da válvula, quando
necessário. Comparando essas duas perspectivas para a solução do mesmo problema, a
parece nos que o modelo de Watt é mais si
dinâmica e a computacional, parece-nos simples, mais
eficiente e mais robusto. Assim, corrobora se o argumento de Haselager de que a
corrobora-se
representacional decorre mais de um hábito epistemológico do que de uma necessidade
efetiva.
Entretanto, existe uma terceira opção. Haselager, Groot e Rappa
Rappard (2003) discutem
o argumento (e o diagrama) postulado por Bechtel (1998) de que o governador centrífugo é
isomórfico a um sistema computacional e, portanto, representacional, mesmo sem ser um
algoritmo como este que van Gelder hipotetizou como típico do cognitivismo. Na Fig. 5a,
se observar as relações causais operantes no Watt’s governor;
pode-se governor na Fig. 5b,
se a versão representacional do mesmo diagrama. Bechtel sustenta
paralelamente, observa-se
iagramas e, dessa forma,
que existe uma relação funcional de isomorfismo entre os dois diagramas
assume uma explicação representacional do mecanismo de autocontrole.

Figura 5: Análise diagramática de Betchel (1998) do controlador centrífugo (a), e como sistema representacional (b),
onde X é o objeto ou evento representado, Y o objeto ou evento representando e Z o sistema que usa Y para coordenar o
comportamento com X.

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p.
O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

O argumento de Haselager e colaboradores é que posturas como a de Bechtel


enfraquecem a capacidade da ciência cognitiva de explicar processos cognitivos,
justamente por enxergar tudo como sistema representacional: a tese da ubiquidade da
representação (e a ‘dor de cabeça’ dela decorrente). Nos parece que, ao fim e ao cabo, nessa
tese da ubiquidade, assume-se uma postura duplamente problemática. Por um lado, critica-
se a representação estrito senso dos paradigmas cognitivista e conexionista, pois formas tão
restritivas de representação mental não são adequadas a toda a variedade de processos os
quais descrevemos como cognitivos. Como visto, representações simbólicas lidam bem
com processos linguísticos ou quase-linguísticos, com domínios abstratos e cristalinos, e
apresentam dificuldades em sistemas que não requerem este tipo de processamento
informacional; representações subsimbólicas lidam bem com fenômenos mais concretos, e
conseguem abstrair informação mesmo em ambientes com variações nos padrões de
entrada, em mundos não tão cristalinos. Mas, como o problema do frame evidencia, para
muitas ações corriqueiras as noções estritas de representação parecem mais complicar do
que ajudar, especialmente em casos que envolvem a causalidade circular entre percepção e
ação. Temos a impressão de que se coloca o debate sobre o representacionalismo como um
caso do tipo tudo-ou-nada, como se sistemas cognitivos ou possuem representações
simbólicas ou subsimbólicas ou não as possuem.
Por outro lado, critica-se argumentos como o de Bechtel pela sua permissividade
(ou promiscuidade) explicativa a partir dessa noção de representação lato senso e ubíqua.
Utiliza-se uma versão tão flexível ou tão polivalente do conceito sobre uma gama tão ampla
de fenômenos que o emprego dessa própria noção se enfraquece e o conceito basal que
deveria servir para explicar os processos cognitivos, inclusive por dintinguí-los dos não-
cognitivos — e por distinguir a ciência cognitiva do behaviorismo—, perde sua
aplicabilidade. Se tudo é representação, e se representação é esse conceito tão vago, a
ciência cognitiva perde sua capacidade explicativa. Sobre essa noção lato senso da
representação, Haselager, Groot e Rappard (2003) dizem que se o Watt’s governor é um
sistema representacional, uma bicicleta também o é. Será que algum cientista cognitivo
diria que uma bicicleta é um sistema cognitivo? Se não é, o que, então, caracteriza um
sistema como cognitivo? Seria, de fato, a noção de representação mental?

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

6. Considerações finais

Neste artigo trouxemos uma célere reconstrução da história da ciência cognitiva —


sem pretendermos fazer uma historiografia — na qual destacamos três principais enfoques,
sob os quais englobamos a maioria das teorias: o paradigma cognitivista; o paradigma
conexionista; o paradigma dinâmico da cognição. Buscamos descrever e elucidar os
conceitos de representação mental relacionados a cada uma dessas perspectivas. Tratamos
da representação mental simbólica, das suas potencialidades e das suas limitações;
trouxemos a versão conexionista da representação subsimbólica e o debate que ela trouxe
ao campo dos modelos cognitivos; por fim, apresentamos a crítica à própria noção de
representação mental que as diversas abordagens dinamicistas compartilham. Nosso intuito
foi o de ilustrar o debate a partir de inúmeras citações que evidenciam as três posições e
que destacam argumentos em defesa desta ou daquela posição. Prosseguimos descrevendo
as ‘dores de cabeça’ representacionais que Haselager imputa à ciência cognitiva
computacional. Dos problemas apresentados, destacamos a questão da ubiquidade
representacional e discutimos o sintomático exemplo do controlador centrífugo.
Encerramos a seção anterior com a pergunta sobre o que caracteriza um sistema cognitivo e
se o conceito de representação seria suficiente, então, para tanto.
Mesmo que não respondendo a tais questões, aqui — e tal resposta extrapolaria os
limites deste trabalho —, sugerimos uma hipótese. Como observamos ao fim da seção
anterior, muitas vezes o debate acaba tornando-se uma querela do tipo tudo-ou-nada: ou
tem-se modelos cognitivos representacionalmente simbólicos, ou tem-se modelos
subsimbólicos, ou tem-se modelos não-representacionalistas. O incômodo com essa postura
muito rigorosa entre um tipo, ou outro, ou nenhum, nos leva a considerações de que a
cognição pode ser mais — e arriscaríamos a dizer que, certamente, é mais — do que aquilo
que um modelo muito restritivo pode oferecer. O comportamento inteligente engloba
inúmeros processos e o debate entre as formas de representacionalismo mais serviu para
destacar e distanciar teorias divergentes (que muitas vezes buscavam e buscam explicar
fenômenos diferentes) do que integrá-las em abordagens mais amplas e promissoras.
Modelos alternativos precisam ser integrados; visões alternativas precisam ser integradas.

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O debate sobre o representacionalismo nas Ciências Cognitivas

Contudo, não estamos defendendo simplesmente que se congregue teorias contrárias ou


contraditórias; faz-se necessária, ao contrário, uma abordagem integradora que seja
consciente dos alcances e limites explicativos das abordagens existentes e da problemática
envolvida com as diferentes formas representacionais. O ponto, então, não é simplesmente
juntar-se alhos com bugalhos, mas de saber-se como juntar. A integração exige esforços
atentos e, talvez se admita, a colaboração de outras áreas — e nesta questão apresentamos
uma última hipótese.
O problema colocado à ubiquidade da representação é que, sendo tudo
representação, se perde a força explanatória desta noção tão fundamental à ciência
cognitiva. Nossa hipótese é que o problema não é ser tudo representação, mas ser tudo a
mesma e vaga noção de representação, ou ser tudo descrito pela mesma e vaga noção de
representação. Nos parece evidente, então, que para uma superação desse embate,
precisamos nos aprofundar sobre este conceito e se a ciência cognitiva não tem ferramentas
para tanto, a filosofia peirceana, especialmente a semiótica, pode colaborar
substancialmente. O estudo rigoroso dos tipos, das formas, das propriedades das variadas
formas de representação, associadas às considerações lógicas do raciocínio e da
criatividade, do papel do acaso e da evolução nos processos sígnicos, amplia o
entendimento cognitivo sem incorrer aos perigosos holismos apressados e quebradiços. O
rigor da semiótica e a amplitude epistemológica da filosofia de C.S. Peirce possibilitam
uma visão integradora dos fenômenos cognitivos, sem derrubar as bases que sustentam a
ciência cognitiva, de uma forma consciente dos problemas envolvidos no debate sobre o
representacionalismo.

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