Behind the stars. (1)

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CAPÍTULO UM.

“Que tipo de lugar horrível é esse?”


“É a realidade.”
- Encantada; 40:17.

19:00 DA NOITE

Querer matar alguém é normal.

Certo?

A vontade de querer fazer aquela pessoa calar a boca e a encher de socos nunca desaparece
completamente. Mas é ativada em momentos críticos de estresse, raiva, urgência…etc. Eu só sei
de uma coisa, eu queria muito que minhas melhores amigas calassem a boca naquele momento.

Eu adoro elas, mas nunca quis tanto quebrar essas fuças. E eu não digo isso num modo irônico, se
eu pudesse agora dar um soco em suas caras sem afetar nossa amizade, eu daria.

Depois de uma noite passada em claro, o dia todo na faculdade e meu professor idiota me dando
diversas dores de cabeça, minha vontade é ir até a ponte mais próxima e pular, mas tenho a
certeza que só o táxi até lá me deixaria em divída. E também tem meus gatos que me impedem de
chegar nesse ponto depois de um dia de arrancar a cabeça, e minha amigas, mas claro, agora
quero arrancar a cabeça delas.

Não devia ter combinado de vê-las após as aulas. Erro terrível Via. Mas aqui estamos, as cinco
sentadas ao redor da pequena mesa de madeira no café que tenta parecer rústico e simples mas na
real, um simples cappuccino é o olho da cara. Cada uma acomodada em uma poltrona enquanto
falam abertamente, talvez a conversa me interessasse mais em outro dia.

Por que não desmarquei isso? Me odeio.

- O que me diz, Via? - Clara pergunta animada.

“Eu só quero que você cale a boca.” quase escapa dos meus lábios antes da minha mente repassar
a frase e vetá-la.

- Sobre que parte? - Digo tentando me situar enquanto tomo um gole do café feito de ouro.

- A do casamento. - Ela responde e eu engulo em seco. Olho para sua mão e percebo o anel
reluzente. Que merda Via, por que não estava prestando atenção.

- Eu… estou tão feliz por você. - Mentira.


O cara é um babaca, primeiro por que ele se chama Pedro, o que cientificamente não tem nada a
ver com sua personalidade mas, segundo porque ele vive a fama de seu nome. Eu já a avisei
diversas vezes sobre ele…na minha mente. Nunca tive a coragem de realmente falar o que acho e
bem, ela nunca perguntou. Acho que já foi traumatizada o suficiente com as opiniões de Áurea,
Mari e Tati que são abertamente contra ele.

Não posso julgar elas, Pedro já traiu Clara tantas vezes que nem se eu usasse minhas mãos e pés
seriam dedos o suficiente para a conta. E ela sempre o perdoa e deixa ele voltar, é obviamente
abusivo.

- Obrigada amiga! - Como já disse, não estava ouvindo o resto da conversa, mas se fosse para
adivinhar pela cara das minhas amigas, Clara disse sim e eu fui a primeira a parabenizar ela.

Às vezes sinto pena de Clara, ela é muito bonita e poderia ter vários caras aos seus pés e além
disso ela é uma das pessoas mais doces que eu já conheci, acaba sendo tímida também, o que na
minha opinião faz que ela não chute a bunda de Pedro.

Ela segura minha mão como se eu fosse aquela única porta de madeira a impedindo de afundar
depois do Titanic. Encaro os olhos verdes da ruiva pálida. É agora.

Essa é a hora de dizer o que realmente acho, de determinar minha opinião, talvez até fazê-la
mudar de ideia sobre o casamento. Mas a minha mente só superaquece e pensa “estou muito
cansada hoje, falo com ela amanhã” quando peço uma série de frases conexas para impedir
minha melhor amiga de fazer um dos maiores erros de sua vida. Se eu apenas fosse mais…
corajosa.

Meu cérebro pulsa.

- Isso quer dizer que você aceita ser minha madrinha? - Ela me olha com toda a emoção
transparente nos olhos.

“Não, definitivamente não. Esse homem é tóxico e vai te destruir, pode se casar se quiser mas eu
não vou assistir ele te matar mais uma vez num ciclo eterno que já é.”

- Bem. - Minhas palmas suam e troco olhares com Áurea, Mari e Tati, as três balançam a cabeça
discretamente em negativa para mim. Imagino a cara de Clara ao ter o pedido recusado pelas três,
respiro fundo me preparando para falar de novo. - Eu… - Mordo a língua. - Como posso dizer
não?

- Ah! - Clara solta um grito se levantando e vindo me abraçar. Ser apertada dessa forma aumenta
minha vontade de dar uma cotovelada na barriga dela e ver se ajeita o que tem de errado com o
senso romântico dela.

Ouço o suspiro decepcionado das outras três e solto o mesmo para mim mesma. Sou uma idiota.
Também quero dar uma cotovelada nas outras, não vêem o quanto machucam Clara fazendo isso?
Eu entendo, elas querem a proteger e ajudar a sair dessa, mas serem rígidas desse modo, só as
está fazendo serem más amigas.

- Hm… Clara. - Chamo hesitante.

- O que? - Ela diz com a voz fina e doce. Vai Via, você consegue.

É contigo.

- Sabe, é que eu- Eu não acho que essa relação seja a melhor para você. - Estou tão feliz por você
ter me pedido isso. - Termino e mostro o sorriso forçado.

- Te amo! - Ela pula sobre mim.

Me sinto tão irritada comigo mesma, odeio isso. Não consigo nem dizer o que realmente acho.

Sou covarde?

…. não precisa responder.

Deixo passar mais trinta minutos com a cabeça fervente, o cappuccino acabou, já comi três
biscoitos e um bolinho, o sol já se escondeu atrás das nuvens há um bom tempo.

- Ah, preciso ir. - Digo a fala ensaiada na minha mente depois de olhar o relógio e fingir arregalar
os olhos.

- Já? - Áurea fala e morde o lábio. Ela percebeu.

- Preciso estudar, os exames começam em duas semanas. - Respondo.

- Quer uma carona? - Tita (ou Valentina) me pergunta mas penso que estar num carro com ela por
vinte minutos me faria definitivamente enfiar o cotovelo na cara dela.

- Tem muito trânsito agora e você vai sair da sua rota. Vou pegar o ônibus. - Digo.

- O ônibus vai demorar pelo menos um quarenta minutos. – Maria fala enquanto olha o seu
instagram.

- É, mas… - Sou interrompida.

- Vamos, eu te levo, somos vizinhas de qualquer jeito. Não vou sair da minha rota.- Áurea diz e
levanta da poltrona.

- Não, fique aí, eu não quero…

- Venha logo Via. - Ela fala indo até o caixa e pagando sua parte.
- Tchau Via. Obrigada por tudo.- Clara sussurra em meu ouvido quando se despede. Eu não
preciso dizer a Clara minha opinião, ela já sabe, tanto quanto ela sabe a das outras garotas. Ela só
decide ignorar, me pergunto o quanto isso acaba com ela.

- Vejo vocês depois. - Digo sorridente ao sair do café. Perco o grande sorriso ao passar da porta e
solto o suspiro.

Não precisava fingir na frente de Áurea, nem fazia sentido, ela perceberia qualquer coisa.

- Aquilo foi… exaustivo. - Ela diz e alcança os cigarros dentro da bolsa antes de acender um e o
levar à boca.

Apenas concordo silenciosamente.

- Mais quieta que o usual. - Ela comenta ao encostar no carro e soltar a fumaça do cigarro.

- Não é nada. - Afirmo mas nós duas sabemos que estou mentindo. - Só estou cansada… ok?

- Se você diz. - Ela responde dando de ombros.

- Podemos ir, por favor? - Pergunto.

Ela desencosta do carro e apaga o cigarro.

- Vamos. - Diz e entra do lado do motorista. Abro a porta e me acomodo no assento.

Áurea dá partida no carro e logo estamos na rodovia, entre milhares de carros, pessoas, histórias e
mundos diferentes. Pensar muito nisso é uma crise existencial garantida, encaro a janela.

- Mari está com problemas no namoro. - Ela comenta tentando puxar assunto.

- O que? - Me viro imediatamente. - Ela e Julia estão brigando? Mas acabaram de se mudar
juntas, não era para ser uma lua-de-mel?

- Você saberia se estivesse realmente ouvindo vinte minutos atrás. - Ela diz num tom irônico.

Apenas converto minha curiosidade em um biquinho e cara de cachorro pidão.

Ouço o suspiro quando ela revira os olhos e acha graça de mim.

- Aparentemente, ela e Julia estão tendo discussões sobre o apartamento, o lugar dos móveis, a
cor das paredes. Ela disse que estão brigando por tudo.

- Mas elas nunca foram de brigar. Principalmente Mari, ela é tão pacífica, ainda mais com Julia e
seu temperamento.
Julia é um pouco… ansiosa vamos dizer. Eu a adoro, ela é engraçada, divertida, ótima com
bebidas, ainda mais que trabalhou como barman, mas ela não pensa antes de falar o que já causou
muitos problemas. Mesmo assim, é óbvio o amor dela por Mari e ao contrário também.

- As pessoas mudam depois de alguma convivência.- Ela diz por fim, e penso por um segundo se
estaria tudo bem com Áurea. - Mas logo elas se resolvem, tenho certeza.

Respondo um “Espero que sim” e o carro cai no silêncio, encaro a janela segurando fundo minha
vontade de simplesmente gritar todo o ar para fora de meus pulmões e perfurar a pele com as
unhas. É cansativo me sentir assim.

Impotente, o tempo todo.

- Você está bem? - Pergunto e ela tira os olhos da estrada para me observar durante um segundo.
Olhos ocos e cansados.

- Não pergunte se não tem vontade de saber.- A resposta fica por si só, no ar, na alma, marcada na
nossa amizade.

Logo, depois de algum engarrafamento, ela estaciona na frente do meu antigo prédio, a chuva
entrando em guerra contra a estrutura de aço mas nada acontece conosco, protegidas ali dentro,
mostro uma careta para a paisagem de fora, pensando no quanto me molharia do carro até a
entrada do prédio.

Não tenho tempo para ficar doente.

- Aqui. - Áurea chama minha atenção, procurando algo no banco de trás e em seguida estendendo
o pequeno guarda chuva verde para mim. - Na minha opinião, você deveria se molhar de vez em
quando, porém, como te conheço muito bem, sei que a Via odiaria a chuva.

Ela fala num tom engraçado, mas as palavras encontram meu coração amargas. O gosto de metal
sobe até minha boca quando sorrio e digo.

- Ainda bem que você me conhece tão bem! - Abro o guarda chuva juntamente com a porta do
carro e saio correndo, com as gotículas de água escorrendo pelas abas do protetor cor de musgo.

Entro no prédio esbaforida pela pequena corrida, o porteiro me cumprimenta, falhando em


chamar minha atenção, apenas fecho o guarda chuva molhado e adentro o lugar, o primeiro andar
consistindo apenas da recepção e elevadores, com alguns sofás de couro espalhados, a aparência
chique, um prédio que eu normalmente nunca poderia morar. Engulo toda a rigidez e a coloco em
um lugar escondido da minha mente e pensamentos, talvez seja lá que minha ética e moral foram
parar faz algum tempo.

Toco no botão do elevador, a cor vermelha aparece e o monitor acima indica a máquina de metal
descendo os andares que nos separam, com vontade de andar mais rápido e ser mais ágil. Enfim,
quando as portas se abrem, clico no décimo oitavo andar e me olho no espelho, ajeitando meu
cabelo, saia e aparência. Retocando meu reflexo e feição.

E as portas começam a se fechar.

- Espera! Segura aí!

CAPÍTULO DOIS.
“Eles dizem que quando você conhece o amor da sua vida,
o tempo para. Isso é verdade.”
-Big Fish, tempo.

19:30 DA NOITE.

- Leo! Mais uma entrega.- A voz da minha mãe atravessa a barreira do som e diversas paredes da
loja, sexta-feira à noite sempre é um dos dias mais movimentados.

Eu venho de uma família tradicional, e consequentemente, uma loja familiar, no nosso caso, um
restaurante de frango frito. Não somos extremamente refinados, mas, fazemos sucesso o
suficiente para pagar as contas do mês, e acima de tudo, somos felizes.

- Para o edifício Monte Negro, na Domingo Fernandes.- A dona Fernanda, ou como mais bem
chamada em casa, minha mãe, diz quando me aproximo do caixa, ela observa os detalhes no
aplicativo de entregas. - Acabei de te mandar os detalhes, leva um guarda chuva filho, esse céu
não tá com cara boa.

- Pode deixar, dona Fê!- No trabalho, sou exigido a falar de forma formal com ela- a mais formal
que o brasileiro consegue. Alcanço o celular no bolso para ver a localização da cliente enquanto
minha mãe entrega à sacola embalada com nossos frangos.

Vou à cozinha, onde meu pai, Dono Marcos, e meu irmão, Heitor, trabalham, fritando e
preparando os frangos, batatas e bebidas, o lugar em si cheira a gordura e concentra calor.

- Estou saindo, Hei, paps.- Falo aos dois.

- Veste a capa de chuva, tá no armário embaixo.- Meu pai fala e eu abaixo para procurar a capa de
plástico amarela, a coloco no corpo rapidamente enquanto descanso o pedido na bancada.

- Credo, chuva e capa amarela, isso te lembra de alguma coisa? - Hei, ou Heitor, fala enquanto ri,
ele usa um avental branco sob a blusa de regata e as calças jeans, os cabelos dourados presos na
touca em sua cabeça, ele é uma grande razão da “população feminina jovem vir aqui”, ou como
eu prefiro chamar, um biscoiteiro.
Sempre postando fotos trabalhando com os músculos definidos expostos trouxeram grande
atenção para o restaurante, e agora, ele está regularmente trabalhando na frente do campo de
batalha, como garçom.

Ele nasceu com a bunda virada pra lua, sortudo em tudo, acerteiro, já eu por outro lado, devo ter
nascido com ela virada bem pra terra, só me dou mal, minhas expectativas nem saem do chão,
elas estão enterradas lá embaixo, no centro do planeta.

- Se eu achar um palhaço assassino ou um barquinho de papel na rua, me certifico de te contar. -


Respondo terminando de abotoar o casaco.

- Caso você saia vivo. - Ele brinca mas por algum motivo, meu coração pesa. Como se tivesse a
mínima chance de eu não voltar para casa naquela noite.

- Heitor, pare de brincar com essas coisas. - Meu pai repreende. - Volte são e salvo, filhote.

- Conte comigo, paps! - Grito ao sair da cozinha carregando o pedido passando pelo caixa, onde
minha mãe me envia um beijo no ar, e pelas mesas com clientes, conversando e rindo, pouco se
preocupando com o mundo colapsando do lado de fora.

Do lado de fora do restaurante, a chuva começa a engrossar e mostrar-se como pequenas adagas
atravessando a pele desprotegida das minhas mãos e meu rosto, o vento forte, quase me direciona
para longe da motocicleta.

Guardo o pedido cuidadosamente dentro da caixa e subo na moto, ligando os motores ao virar a
chave, e em seguida, entrando no trânsito da furiosa São Paulo numa sexta à noite. As luzes do
carro, quando os passo com velocidades, me lembram de estrelas, como se as ruas movimentadas
fossem um grande universo, brilhante e barulhento, com os sons de buzinas e da chuva pesada.

Eu também queria ser uma estrela, contudo, só sou o pó delas.

Meu celular vibra no bolso, e minha mão coça com vontade de checar a notificação, ver se era a
notícia tão esperada, infelizmente, não posso fazer isso, agora estou focado, focado na minha
família, no restaurante, na entrega. Só nisso e nada mais. Nenhum outro desejo.

Avisto, um pouco de longe, o edifício Monte Negro, em toda sua esplendidade, um dos lugares
mais caros da cidade, se estendendo em mais de vinte andares, com luzes amarelas acesas
demonstrando que algumas pessoas, realmente tinham o dinheiro suficiente para morar ali, mês
após mês, ano após ano. Uma pequena chama de inveja se esgueirou pelo meu peito, que no
mesmo momento, foi apagada pela chuva incessante sobre minha cabeça.

Estacionei a moto e tirei o pedido do bagageiro, correndo para dentro do prédio, tentando
proteger mais a comida do que a mim mesmo. Afinal, sou só uma propriedade dentro do pedido e
o importante, é ele em si.
- Boa noite, como posso ajudá-lo? - O porteiro sorridente me pergunta assim que adentro o
prédio, encharcado e molhando a recepção inteira, respondo envergonhado.

- Entrega para Bianca, 702.- Falo e ele faz um gesto como se me pedisse para esperar enquanto
interfona para o número.

- Pode subir. - O homem, entre seus quarenta anos, com a cabeça sem um único fio de cabelo e a
aparência cansada, diz após alguns segundos de conversa com a provável cliente e aponta para o
caminho.

A recepção é apenas uma pequena introdução para a real entrada do prédio, guardada por sofás
pretos e mesas de vidro com adereços diversos, o chão de algum material preto brilhante, como se
o universo estivesse aos nossos pés e o teto, brilhando com as luzes amarelas que o lustre reflete.
Ele desce, em formato de solenóide, com os cristais reluzentes, tentando trazer alguma esperança
para aquele infinito céu escuro.

No fim do corredor, vejo o elevador se fechando devagar e começo a correr em direção a este.

- Espera! Segura aí! - Grito para sombra dentro deste.

Surpreendentemente, uma mão delicada impede, no último momento, a porta de se fechar, e


quando o elevador se abre novamente, os olhos cinzas sobem até encontrarem os meus, me dá a
sensação de um nevoeiro em que estou perdido, paro de correr, apenas reparando naqueles olhos
singulares, a face surpresa da mulher, com lábios entreabertos e franzinos, as sobrancelhas
grossas levantadas, os cabelos castanhos cor de ferrugem presos em um rabo de cavalo e
pequenos fios rebeldes escapando, o pescoço fino e busto grande, o corpo de um violão e as mãos
delicadas e pequenas.

É como se o tempo tivesse parado.

CAPÍTULO TRÊS.
“Não importa o que aconteça amanhã,
a gente teve o hoje.”
-Um dia; 1:35:41
19:57 DA NOITE.

Será que alguns minutos são realmente capazes de mudar uma vida? Só um minuto mais tarde, só
um segundo mesmo, e tudo seria diferente?

- E então? Você não vai entrar? - A voz obstinada pergunta, a mulher dentro do elevador, a
primeira instância surpresa, agora parece incomodada. Como se nem ela mesmo tivesse entendido
seu reflexo de segurar o elevador para mim.
- Obrigada. - Murmuro ao entrar enquanto ela abre espaço ainda com a mão na porta, em seguida,
clico no sétimo andar entre as dezenas de pequenos botões. Finalmente, o elevador começa a se
mover, devagar e rangendo, para um lugar tão chique, eles realmente deveriam mandar alguém
para checar os elevadores.

A música usual e chata da máquina de aço começa a tocar durante a subida, e ficamos presos
naquele loop entre a caixa de espera de um hospital e as gotas caindo do meu casaco e inundando
devagar o lugar, seguro o calor do pedido mais longe possível do meu próprio corpo tentando
evitar críticas do tipo “meu frango chegou encharcado junto com o entregador”, afinal, ninguém
gosta de comida molhada com água de chuva e suor de um desconhecido.

Os números sobem aos poucos no indicador e agradeço silenciosamente por ser o primeiro a
descer quando vejo o 5 em luzes alegres, seria muito estranho caso tivéssemos que ficar juntos até
o, vamos dizer, penúltimo andar. Olho para ela discretamente, os olhos marcantes ainda me
atraindo, toda sua estrutura parece tensa, como se ela estivesse prestes a ir para a batalha, seus
olhos procuram sangue sem piedade alguma. Pelos do meu braço se erguem quando decido olhar
para o outro lado e ignorar a presença impiedosa do meu lado.

Quando estou prestes a comemorar a chegado do sétimo andar, as luzes piscam. Isso mesmo, as
luzes piscam no elevador, no meio de uma tempestade, mas ele não para, ao contrário, as luzes
voltam e desaparecem de novo e quando vejo o grande e satisfatório sete no monitor, o elevador
desliga completamente.

- O que está acontecendo? - Pergunto com a voz meio trêmula, nunca gostei de escuros totais. E
ali estava, eu, o frango da cara cliente e uma mulher com o espírito sanguinário no meio do
escuro total presos num elevador.

- Merda. - Só escuto ela sussurrar, como se aquilo fosse inacreditável. - Nem ferrando.

Ouço alguns barulhos fantasmas que reconheço como ela procurando o celular na bolsa já que em
seguida, a luz da tela acende iluminando o rosto jovem de uma forma assustadora e merecedora
de filmes de terror.

- Com licença. - Estressada, ela passa pela minha frente, me afasto instintivamente, colando
minhas costas no espelho do elevador, e começa a passar o dedo indicador pelo painel de botões
até achar o amarelo com um sino- que ótimo sinal para uma emergência, não é- e em seguida,
tirar o telefone, ao seu lado, do gancho. - Olá, é, estou presa no elevador com mais uma pessoa,
não estamos machucados, a luz e simplesmente apagou. Ok, obrigada.

Me sentiria mais confortável sabendo o conteúdo completo da conversa da estranha com o


estranho do telefone, porém, ela retornou ao seu lugar e ficou em silêncio.

- Vão vir nos resgatar? - Acabo perguntando no fim, derrotado pela ansiedade.

- Ah, é. - Ela responde como se tivesse esquecido da minha presença. - Vão sim, mas talvez
demorem um pouco por causa da chuva, nada demais, acredito eu.
Não respondo nada mas deixo um suspiro pesado escapar, sei como essas coisas funcionam, “eles
estariam vindo logo sim”, em quarenta minutos, ainda mais com o trânsito de São Paulo e os
prováveis acidentes na chuva, pela minha falta de sorte enorme, eu e ela, estaríamos presos ali por
um longo tempo.

Tateio o lugar até encontrar o chão e deixar o pedido ali, em seguida, começo a desabotoar a capa
de chuva pesada, mas, sem pensar o suficiente, assustei a minha colega de prisão temporária.

- O que está fazendo? - Ela pergunta, consigo ouvir o tom quase como se estivesse prestes a
assediá-la e me sentindo novamente um bosta pelo mundo em que vivemos.

- Não se preocupe, estou apenas tirando a capa de chuva.- Tento falar do modo mais sutil que
posso, e ao terminar, tiro o peso e jogo no canto do elevador.

- Tudo bem. - Ela responde, o silêncio é pesado, ela com medo que eu vá fazer sabe-se lá o que, e
eu com medo que ela tente me assassinar a qualquer momento.

Mas não consigo me manter daquele modo por muito tempo, em pé e arisco, e por isso decido
uma coisa, se a mulher bonita quiser me matar, que me mate. E me sento no chão, estendendo
minhas pernas até elas tocarem na porta do elevador.

- Meu nome é Leo, aliás.- Falo.- Provavelmente vamos ficar presos aqui durante algum tempo,
não quero que sinta medo de mim.

- Medo? - Ela diz quase pretensiosa. - Por que eu sentiria medo de você?

Sua dúvida sai de uma forma tão absurda que quase me sinto tentado a relembrar os anos e anos
de abuso masculino contra a população feminina, mas nada disso sai, sinto apenas minhas
bochechas queimarem pela leve vergonha de ter pensado que poderia ser uma ameaça para
alguém.

Ouço o movimento dela, deixando a bolsa no chão e se acomodando do outro lado do cúbico
quadrado.

- Sou Via. - Ela fala, e as palavras voam no ar limitado.

- É um nome bonito. - Elogio.

- A versão completa é Viola. - A voz fala. - E você, imagino, é Leon?

- Quase, a versão um pouco mais completa disso.

- Leonardo?

- Acertou em cheio.- Minha voz soa divertida apesar do meu coração rufar pelo medo do
momento em que estar de olhos abertos ou fechados não faz diferença.
Novamente, reconheço o barulho do movimento vizinho, e após isto, a lanterna do celular dela
aparece, me cegando temporariamente, até que Viola deixe o dispositivo entre nós dois, com a luz
direcionada para o teto e possibilitando precariamente a visão do rosto dela. Apenas sombras, na
verdade.

- É irritante, ficar no escuro. - Ela esclarece e estou aliviado que não era o único com medo da
escuridão. - Meio que me faz sentir como se eu não existisse, não de verdade, pelo menos.

A declaração surpreende, porque ela nunca passaria como alguém que fala o que pensa para
qualquer um, contudo, estarmos presos aqui, sozinhos, acho que aumenta nossa vontade de não
estarmos solitários.

- Desculpe, isso foi algo estranho para falar com um desconhecido.- Na mesma hora, ela retrai a
pequena corda de intimidade que jogou para mim.

- Também tenho medo do escuro. - As palavras saem imediatas, como para resgatar aquilo que
acontecia há alguns momentos. - Não da noite nem nada assim, mas do breu.

- Não diria que eu tenho medo. - Ouço o resmungo baixo e vejo como ela encontra uma posição
mais confortável.

- Dia ruim? - Pergunto.

- Como sabia? - Ela fala como um poço profundo de frustrações, esperando mais alguma pessoa
jogar uma moeda recheada com desejos em si.

- A intenção assassina que revolve seu corpo. - Brinco rindo e consigo ouvir uma pequena
resposta alegre dela. - E seus olhos.

- Meus olhos?

- É, eles pareciam prontos para um combate. - Continuo rindo ao falar, mas ela fica mais quieta
que antes.

- Já sentiu como se nada que você fizesse funcionasse? -Não respondo imediatamente, sem saber
se ela iria falar mais algo. - E todos sabem o desastre ambulante que você é.

- Minha mãe sempre costuma dizer que ‘ninguém pode te transformar em algo que você não é,
contanto que você não permita’. Ela sempre foi a pessoa que discursava sobre como a violência
não leva a lugar algum.

- E você é um grande briguento? - A voz indica a brincadeira, mas mesmo assim, meu coração
pesa.

- Até parece. - Rio de volta. - O que eu quis dizer foi, todos estão errados em pensar que sabem
de tudo, a única pessoa que realmente te conhece é a si mesma.
- Obrigada, nunca pensei que iria desabafar em um elevador parado com alguém que nunca vi
antes. Quais são as chances desse elevador cair, você acha?

- Baixas, eu espero. - Respondo automaticamente. - Caso caia, o que fazemos?

- Morremos. - Ela responde e logo complementa.- Agora falando sério, fora do roteiro de “Diário
de uma paixão”, caso caia, deveríamos nos deitar e esperar pelo melhor.

- E se eu esperar para pular logo antes do impacto?

- Você está brincando, né?

- Sim. - Digo e o silêncio fica pesado, a piada não foi bem vista, ou pelo menos é o que eu acho,
até que ela começa a rir descontroladamente.

- Genuinamente espero que esse elevador não caia. - Ela fala ao meio das risadas. - Não quero ir
ao céu com alguém que conta piadas tão ruins.

- Bem, você está rindo, então… Acho que tem o senso de humor pior que o meu.

- Impossível. Até eu faço melhor.

- Te dou as honras para fazê-lo, então.

- Me deixe pensar. - Ela fala e vejo a sombra mover a mão entre sua testa e queixo, até que o
barulho dela batendo palmas me traga de volta para realidade. - Preparado?

- Mais do que nunca.

- Ok! O que o martelo foi fazer no culto? - Viola pergunta já rindo enquanto espera minha
resposta.

- O quê?

- Pregar. - Seus risos baixos se tornaram em uma bola alta e descontrolada, seguida por aplausos e
tentativas de não morrer asfixiada.

- É isso que você chama de engraçado?

- É sim, senhor senso de humor. - A conversa entre nós, diferente do imaginado, não é
desconfortável, ou impossível. Na verdade, tudo flui bem, como se nos conhecêssemos antes
disso. - O que você acha do universo, espaço e essas coisas?

A voz brinca detrás da pergunta profunda, como um outdoor informativo com luzes neons sendo
escondido por um resort. Paro para pensar um pouco antes de suspirar a resposta.
- O mesmo que eu acho de umbigos, formigas e a palavra “carniça”.

- Meu deus, será que o oxigênio está se esvaindo e finalmente te afetou?

- Calma, me deixe continuar, todas essas coisas que eu falei não tem sentido nenhum, nem
propósito nenhum, apenas existem. Igual a nós, o universo e essas coisas.

- Está dizendo que não importamos? - Ela pergunta e fica em silêncio antes de voltar a falar. -
Realmente, não importamos.

- Nós podemos não importar no universo e espaço, mas estamos aqui, e nesse momento, somos
tudo que existe.

- Enquanto estamos presos no elevador?

- Quando esquecemos do mundo lá fora.

Mais silêncio.

- E se algo louco acontecer? - Pergunto ansioso, não querendo chegar ao fim da conversa e ficar
sozinho nesse lugar.

- Tipo…?

- O elevador cair e acordamos em um universo paralelo com unicórnios e sereias? - Não sabia o
que dizer, e por isso, disse besteira.

Bom trabalho, Leo.

- Provavelmente, estaríamos em coma. - A resposta vem, sensata e lógica, exatamente o contrário


que eu queria, e sem conseguir evitar, reclamo por meio de um murmuro. - O quê? É verdade!

- Você pode só entrar na onda às vezes, sabia? - Falo enquanto ouço ela puxar os fios soltos da
calça jeans, como se fosse uma melodia, um após o outro, sem parar.

- De unicórnios e sereias? - Sinto seus olhos reviraram no meio do escuro, talvez, meus outros
sensos já estejam se acostumando à falta da visão, a não ser pela pequena faixa de luz entre nós
direcionada ao teto.

- Eu respondi sua pergunta sobre o universo, espaço e tals.

- “E tals”? Está me parafraseando errado, tão cedo? - Amo o jeito que ela parece ofendida mas sei
que está sorrindo.

- Só responda.- Falo brincando mas querendo saber o que ela faria caso se deparasse com um
cenário completamente ilusório na vida real.
- Beleza, eu cavalgo o unicórnio, peço para a sereia me ensinar a respirar debaixo d’água, e vou
encontrar a terra das fadinhas e a Tinker Bell, feliz?

- Esplêndido. - Digo, abrindo um sorriso que faz os cantos da minha boca se repuxarem e
doerem.- Como você veio morar aqui? Pais ricos? - Sou direto, não parece que realmente existe a
cortesia de ser educado entre nós.

- Não, não muito. - …- Só aconteceu assim.

Só aconteceu assim? Uma jovem com seus vinte e poucos anos morando num prédio de luxo em
São Paulo e “só aconteceu assim”?

- Minha tia morreu, ela morava no apartamento e deixou para mim. Nós realmente não temos
dinheiro, mas ela casou e depois se divorciou de um cara rico. - Não consigo ver suas expressões
faciais, porém, caso conseguisse imaginar, seus lindos olhos cinzas estariam turbulentos juntos
de suas sobrancelhas, ela parecia angustiada.

- Meus pêsames, sinto muito.- Falo a única coisa possível.

- Não é como se fosse sua culpa. - Ela diz, e aí sim acontece, o silêncio estranho e desconfortável
entre duas pessoas que por alguns minutos esqueceram ser desconhecidas. - Não tem problema.

Mas tem problema. Está claro que tem.

- Se hoje é tudo que temos, é melhor aproveitarmos.- Contudo, não se tem resposta, nada, até eu
perguntar de novo. - Quanto tempo já se passou?

- Quinze minutos. - Ela responde.

CAPÍTULO QUATRO.
“Eu estou de vestido, tô com gel no cabelo, não dormi a noite toda,
estou morrendo de fome e ainda estou armada, então, não mexa comigo.”
-Miss Simpatia; 35:04
21:45 DA NOITE

Já faz mais de uma hora que estou presa com um completo estranho no elevador, e
surpreendentemente? Eu não estou odiando tanto quanto achei que odiaria.

Sem sinal, não é possível ligar ou mandar mensagem ou até mesmo avisar alguém que estamos
presos ali, Leo, ou Leonardo, tentou inventar todos os jeitos possíveis de avisar a família da
situação e acabou falhando miseravelmente.

Sendo realista, nós, ali, presos, no meio de uma tempestade torrencial, não parece o melhor
aspecto para uma salvação rápida. Isso ainda aconteceu numa sexta à noite no horário que as
pessoas estão saindo do trabalho e indo para baladas. Ou seja, para ser mais realista, devem ter
acidentes ainda mais importantes acontecendo pela cidade que dois jovens presos num elevador
seguro de um prédio chique.

Entretanto, o lado bom é que descobrimos um jeito de passar o tempo.

E isso envolve frangos e cervejas.

Assim que meu estômago começou a roncar audivelmente, a primeira coisa que esse garoto de
cabelos cacheados loiros e olhos amarelos fez foi oferecer a comida do cliente, e obviamente,
recusei pela educação. Quando ele ofereceu pela segunda vez, o cheiro da comida havia
envolvido completamente o lugar, minhas papilas gustativas responderam por mim, se enchendo
de saliva e pedindo com todo o carinho do mundo por uma mordida daquilo.

E além de um balde de frango tamanho G, essa cliente pediu três garrafas de cerveja, me
comprometi a pagar tudo depois, mesmo que acabasse com meu pequeno rendimento do mês, e
nós dois começamos o banquete.

A primeira coisa que percebi quando parei instintivamente o elevador para Leo foi que ele é
atraente, quero dizer, está bem ali na cara, é notável. Como uma escultura grega, as maçãs do
rosto altas, o maxilar definido, e o nariz, apesar de grande, reto e bem arqueado, seus cachos
loiros com tons castanhos misturados levemente e os olhos mais cor de âmbar existentes.

Isso foi o que consegui perceber durante os cinco minutos que ficamos juntos com as luzes
acesas, imagine o que veria com todas essas horas, às vezes estarmos no escuro é uma forma de
milagre que a divindade me concedeu.

Leo me disse que ele tem um irmão mais velho que é considerado a celebridade da loja deles, me
pego imaginando uma versão mais madura dele, e como detalhado pelo próprio “mais bonita”,
apesar que acho isso difícil de acreditar.

- Não estou conseguindo abrir a garrafa. - Estamos na número dois, muito rapidamente, nosso
único acordo é: nos controlarmos para não ter algum acidente estilo número um aqui nesse
elevador.

- Quer o canivete de novo? - Tiro a pequena adaga da minha bolsa e o entrego, apesar de me
observar fazer pela primeira vez, Leo se atrapalha ao tentar enfiar a faca na tampa. - Quer mais
luz?

Pego o celular e aponto o flash para ele, o aviso de bateria baixa já tinha sido dado a alguns
momentos e por enquanto, apenas espero ficarmos no escuro total novamente. Ao apontar a luz
para ele, vejo de novo, tudo gritante como o sol ali, sua própria energia, tão exuberante como uma
estrela cadente. Hoje, e apenas durante essa noite, estou sendo uma pessoa diferente.
Não sou a Via que tem medo de dar sua opinião, ou a Via que não gosta de se molhar, pelo
menos, não aos olhos de Leo. Em sua história, vou ser determinada e corajosa, não sou uma
boneca de pano com medo de tudo.

Talvez seja pelo escuro, ou por estarmos presos ali juntos sem mais ninguém, na verdade, talvez
seja até por que ele não tenha a mínima ideia de quem eu sou, mas por isso, sinto que realmente
tenho forma ali.

Como se eu pudesse ser qualquer um, qualquer coisa, porque nada existe lá fora, somos os únicos
existentes e o resto do mundo explodiu. Clara e sua relação tóxica não existem, Júlia e Mari não
estão tendo problemas, Áurea não me conhece mais do que eu mesma e Tita não me olha com dó
ou pena.

Aqui dentro, posso ser diferente, é frustrante sempre estar próxima de pessoas que nunca pensam
que você pode mudar por causa de tudo que estão acostumadas a te verem ser. Mesmo que eu não
possa mudar, quero ter espaço para isso.

Para errar e me transformar. Ser nova e idiota sem ser julgada. Só acho que meus erros são muito
grandes para serem chamados de “juventude” e eu sou muito pouco inocente para me denominar
criança.

Meus olhos brilhantes desapareceram, meu sorriso verdadeiro, minha face real, só mantenho o
que foi deixado para trás, as memórias do passado, e o preço dos meus pecados. Não sou mais
uma criança inocente.

- Aqui, Ola. - Leo vêm testando apelidos faz cerca de trinta minutos, uma pequena lista do que ele
me chamou consiste em:

Cachos.
Névoa.
Violão.
Víscera.
Vida (esse acabou criando um clima muito estranho entre nós).
Vih
Lálá
(E o mais novo adicionado)
Ola.

Não me sinto fortemente infeliz com nenhum que não seja ‘Víscera’. Infelizmente, isso fez esse
virar o apelido preferido dele.

Ele dá um gole antes de me entregar a garrafa e o canivete, decidimos dividir, pensando que uma
garrafa para cada um seria nossa própria ruína, assim, estamos os dois, bebendo meia garrafa e
mais alguns golinhos. Seguro os objetos e guardo a arma na minha bolsa enquanto encosto a
cabeça na parede fria de metal, fechando os olhos cansados e bebendo calmamente.
Quanto termino de beber, não abro os olhos, continuo ali em silêncio, sentindo o gosto alcoólico e
amargo na minha boca, só devolvendo a bebida para ele, e pegando mais um pedaço de frango do
balde.

- Preciso admitir, a comida do restaurante da sua família é incrível. - Digo após uma mordida na
coxa dourada.

- Você é bem-vinda a vir a qualquer momento, vou te dar um desconto para “garotas que eu fiquei
preso no elevador”. - Ele diz brincando.

- Quer dizer que tem mais de uma? - Pergunto, as palavras mais bagunçadas do que
pronunciadas.- Pensei que eu era especial.

- Nos pague uma visita e vamos ver. - Ele fala e consigo o ouvir causar uma pequena comoção
capaz de me fazer abrir os olhos e levantar a cabeça.- Achei, aqui, o cartão do restaurante, tem o
nosso número, pode me ligar se precisar.

- Ah, claro…

Pego o cartão e o aperto levemente, não pensei que conheceria Leo fora do elevador, acho que
esqueci que ele existia no mundo lá fora, com uma família, e um trabalho, e irmãos e hobbies.

Tudo que o faz uma pessoa real.

Será que o Leo fora do elevador também é diferente? Do mesmo modo que eu sou outra pessoa
entre essas quatro paredes de metal?

- Você não precisa ir se não quiser. – Ele diz rindo e coçando a parte de trás do pescoço.

Na luz precária entre nós ainda consigo ver, ele está envergonhado por ter me convidado, esse
menino está me chamando para sair. Um dos garotos mais lindos que já presenciei na Terra com
medo de eu recusar ir no restaurante da sua família.

- Não, não, eu devo ir, certo? Pelo desconto de garotas que você já ficou preso no elevador.-
Tento melhorar o clima rindo, mas ele apenas me encara.

O que você está pensando, Leo?

- Certo. - Ele diz começando a rir comigo, saindo de um transe.

- Eu espero que sua namorada não se importe.- Comento e mordo a língua. Em nenhum mundo
esse garoto não tem uma namorada linda e perfeita.

Devo estar imaginando esse pedido. Talvez ele só queira chamar atenção para o restaurante, sim!

É isso, definitivamente é iss…


- Não tenho namorada. - Ele diz e meu coração bate só um pouquinho mais forte que antes. Me
sinto quase culpada, pega no flagra por ele.- Inclusive, você pode trazer seu namorado também, o
desconto vai valer para vocês dois.

Por um segundo, uma imagem perturbadora invade minha mente, sem permissão alguma,
assumindo meus pensamentos.

- Então o desconto também é para o namorado da menina que você ficou preso no elevador? -
Falo fingindo dúvida e a expressão dele fica nervosa.- Uma pena que não tenho um.

Leo volta a rir.

- Quase te enganei? Será que eu deveria contratar um namorado falso só pelo desconto?

- Ah, é uma ideia genial!- Ele segura sua barriga ainda gargalhando. - O único porém é que talvez
você não devesse ter falado isso para o filho do dono.

- É, talvez não.- Concordo e sigo seu compasso deixando risadinhas caírem da minha boca.

Uau, nada disso sou eu. Viola não é engraçadinha, ou faz piadas, quer dizer, ela pode tentar, mas
nunca faz as pessoas gargalharem. Leonardo é o primeiro que ri por algo que eu digo, e só por
isso, minhas bochechas esquentam e borboletas são liberadas no meu estômago.

Meu celular volta a apitar, vejo as horas “22:22” brilhando na tela antes do aviso da falta de
bateria e meu celular desligar completamente.

- Merda. - Murmuro dando tapinhas no telefone como se isso fosse o fazer voltar a funcionar.
Agora, estamos no escuro de novo.

- Não tem problema, podemos usar o meu. - Leo indica, procurando o dispositivo no bolso até eu
o parar.

- Nem pensar, você vai precisar dele quando formos sair daqui, não faça isso. - Digo.

- Ficamos no escuro, então? - Ele pergunta.

- É, no escuro. - Respondo. - Você não tem medo nem nada, né?

- Não é medo… - Ele começa. - Só que ficar nesse escuro, meio que me faz pensar que não
existimos. Que não somos nada.

- Tecnicamente, nós realmente não somos nada em meio a tudo que existe no universo. -
Complemento.
- Novamente com o sentido da vida, universo e essas coisas, né?- Consigo o sentir sorrindo daqui,
brincando comigo.

-Aham, espertinho. - Reviro os olhos, mas não de irritação ou nada do tipo, nunca pensei que
existia um bom tipo de provocação. Porém, me provando errada, balanço a cabeça em negação
rindo e revirando os olhos.

- Você quer saber a resposta? - Pergunta. -Tipo, a resposta de verdade para o sentido de tudo?

Sei que ele está sendo irônico, mas mesmo assim quero ouvir a besteira que vai sair dos seus
lábios.

- Faça o favor de me contar. - Finjo hiper interesse.

- 42. - Leo fala.

- O que? - Meu queixo cai desfazendo o sorriso por ser tão aleatório, inclino a cabeça confusa.

- Não me diga… você nunca leu O Guia do Mochileiro das Galáxias? - Ele parece perto de ter
um ataque de pelancas.

- Nunca ouvi falar. - Sincera, respondo. Um péssimo, péssimo erro já que Leo coloca a mão sobre
o coração fingindo ser esfaqueado.

- Isso é um crime. - Ele responde.

- Que crime? - Pergunto. - De valorizar a literatura nacional invés da estrangeira? Me diga se


você já leu “Dom Casmurro”.

- Para sua informação, sim, eu já li vários de Machado de Assis. - Ele diz. - E isso não valida seu
crime.

- No fim das contas, Capitu traiu ou não traiu? - Pergunto mudando o assunto rapidamente.

- Está mais que claro que ela traiu. - Leo diz e eu quase pulo do chão lembrando dos dias de
ensino médio.

- Não traiu nada, aquele homem odiava ela, ele era maluco.- Respondo rápido.

- Quem? Bentinho?

- Aham.

- Do que você está falando?


- Sejamos honestos, a mulher estava apaixonada? Você já viu uma mulher apaixonada? Faria
qualquer coisa, e ela também. A realidade é que quem estava apaixonado por Escobar era
Bentinho!

- Dessa vez, você foi longe demais!- Leo diz me olhando como se eu fosse estranha, mesmo
assim, ainda em tom de brincadeira, como se me pedisse para continuar falando.

- Que nada, o homem era gay e culpava a Capitu por estar no armário! Se eu pudesse dar um
conselho pra ela seria: foge mona, esse homem te odeia. - Digo tudo embolado numa velocidade
assustadora, isso é o que acontece quando me animo, tudo fica bagunçado.

Depois de alguns minutos em silêncio completo, ele fala.

- Agora que você disse, talvez ele fosse gay.

- Eu sei!- Falo e deixo uma risada alojada cobrir o local perfeitamente.

- Uau, isso é algo que nunca pensei em ouvir. - Leo diz.

- Eu sei… - Respondo. - Mas ainda bem que ouviu, certo?

- Certo. - Ele concorda freneticamente com a cabeça.

Eu não quero ir embora. Não quero sair daqui.

- Espere um pouco. - Vasculho minha bolsa pelo pequeno estojo. - Me dê sua mão.

- Para que? - Ele pergunta imediatamente me entregando sua mão antes mesmo da minha
resposta.

- Meu número. Vou escrever na sua palma. - Falo.

- No escuro? - Ele pergunta.

- Uhum. - Respondo concentrada, desenhando os caracteres na mão dele de uma caneta com a cor
que não conseguiria imaginar.

- E se não conseguir ler depois?

- Bem, você sabe onde eu moro. E também sei onde trabalha. - Me agarro à pequena faísca entre
nós dois, aqui, nesse momento, tentando impedir que se apague com minhas mãos.

- Verdade. - A resposta vêm.

- Pronto, agora, você pode me ligar no mundo lá fora. Onde nós existimos.
Onde eu não sou nada do que te mostrei hoje.

Será que o Leo se interessaria pela Via idiota, “maria vai com as outras”, assustada?

Provavelmente não. Mas queria que sim. Desesperadamente.

- Obrigada. - Ele diz quieto, não posso ver, mas sinto seu olhar subindo da mão para meus olhos,
meio que deixando um caminho para trás, uma linha invisível.

- Não é nada.- Sussurro e aí, o elevador faz um barulho estranho e despenca, parando alguns
segundos depois como uma sustentação do divino.

O grito mais agudo existente saiu das minhas cordas vocais naquele momento, segurando a mão
de Leo forte e deslizando para perto dele com medo da morte imediata. Meu coração ainda treme
como um despertador no peito, gritando “vamos morrer, vamos morrer!” várias vezes, quando
percebo o quão próximos estamos.

- Está bem? - Ele me pergunta, segurando minha mão de volta, faço a mesma técnica de
respiração que Tina me ensinou para ataques de ansiedade.

- Achei que ia cair.- Falo depois de algumas tentativas falhas de me acalmar.

- Vai ficar tudo bem, lembra? - Ele diz e me torno um sorvete, derretendo ao lado do sol. - Logo,
devem chegar para nos resgatar.

Algumas palavras. Foi tudo que ele precisou para me fazer relaxar novamente. Fico mais
consciente agora, dos nossos braços se tocando, de sua mão na minha, ainda sinto a umidez da
chuva em sua pele, e recebo um pequeno choque ao toque.

- Ia morrer com tantos arrependimentos. - Deixo escapar e sabendo que não posso me conter,
continuo. - A única coisa que pensei foi “Nossa, chegou a hora? Achei que tinha mais tempo para
consertar tudo”.

Leo não me pergunta o que quero consertar ou do que me arrependo, invés disso, ele dá a melhor
resposta possível.

- Sempre achamos ter tempo demais e por isso pulamos as coisas, por pensar que existe outra
chance. Mas às vezes só não tem mesmo, às vezes a gente só morre. Esse é o motivo de vivermos
vidas felizes e completas.

Eu sei disso, sei muito disso, claramente, mas não consigo convencer meu coração a ser valente, a
arriscar, jogar tudo na mesa. O elevador treme de novo e solto um barulho esganiçado.

Se for realmente acabar aqui, e tudo que eu não fiz? E tudo que perdi?
A mão dele agora massageia a minha, fazendo círculos calmos e completos como um pedido para
me acalmar.

- Leo. - Chamo, tentando achar seus olhos amarelos em meio ao escuro.

- Sim? - Ele responde na hora.

- Posso te beijar? - Pergunto por que não existe vergonha nenhuma, só o medo de deixar passar.
De me arrepender se não o fizer.

- Sim. - Ele responde um tempinho depois.

Encosto minha mão disponível em seu rosto, tentando encontrar as partes que via tão bem
encaixadas na luz, acho primeiro seu nariz e desço meus dedos até seus lábios, encostando na
carne macia e quente. Aproximo meu rosto ainda com o dedo localizando o destino, assim que
encontro, coloco minha mão em seu pescoço.

No fim das contas, beijo Leo. E é aí que as luzes piscam de novo e as portas do elevador abrem.

CAPÍTULO CINCO.
“Eu ia esperar você telefonar, mas minha vida não será
tão longa quanto a sua.”
-Gilmore Girls, 4x03; 8:12

Foi meio como um ato de magia, na hora que as portas abriram, Via se tornou uma pessoa
diferente se afastando imediatamente de mim e levantando. Os bombeiros agiram como se não
fosse nada demais, esperando até pior, enquanto minha face queimava e rugia por um esconderijo
depois de alguns segundos de contato entre nossos lábios.

Em seguida, ela pegou a bolsa no chão e disse “Até mais, Leo.” correndo para fora do elevador
antes mesmo que eu pudesse ver sua expressão, talvez ela tenha se arrependido? Fiquei lá em pé
por um tempo, até um dos homens ficar com dó de mim por ter recebido um fora e me oferecer
carona de volta para casa.

Voltei para o restaurante no carro dos bombeiros.

Foi uma longa sessão de indagações dos meus pais quando me viram, sem saber onde eu estava e
recebendo uma ligação de reclamação da cliente que não recebeu seu pedido, eles acharam que
tinha me envolvido em algum acidente na rua. Depois, quando expliquei que fiquei preso no
elevador do prédio com uma inquilina, tive que os explicar que Viola não é nenhum tipo de
psicopata nem me violentou. Eles sabiam que tinha algo errado, mas só não sabiam o que.
E agora estou deitado na cama, de barriga para cima, com os olhos fechados, pensando em tudo
que aconteceu, em como ela é incrível e como ela saiu correndo como se tivesse comido algo e
não gostado. Será que fiz algo errado? Foi algo que falei?

Sobre a Capitu, talvez?

Leonardo, seu idiota.

Coloco a mão sobre meus olhos grunhindo de insatisfação com todas minhas respostas, assim que
abro os olhos, ainda escondidos sobre minha mão, vejo a tinta vermelha borrada na minha palma.

- É isso! - Grito sentando na hora. - Como não pensei nisso antes?!

Pego uma folha de papel e caneta ao sentar na minha mesa de estudos para transcrever o número
como a coisa mais urgente do mundo. Encaro os dígitos na minha mão, o suor, a maçaneta da
porta de fora molhada, tudo isso contribui para que alguns dos números desapareçam.

“9874-06??”

Os últimos dois dígitos sumiram. Ferrou, deixo a cabeça cair sobre a mesa gerando um barulho
enorme do baque e murmurando palavras irreconhecíveis.

- Não vai calar a boca? - Heitor abre a porta do meu quarto e se apoia na guarnição com os braços
cruzados. - Meus pais estão te chamando para almoçar.

- Sem fome. - Respondo ainda com a cabeça baixa, todos os frangos fritos ainda rolando no meu
estômago.

- Foi o que eu pensei, depois de ter comido um balde inteiro sozinho. - Ele diz. - Ah, espera, não
foi sozinho, tinha uma menina com você, não é?

Solto mais um murmúrio de reclamação e ele se aproxima.

- Não me diga, está assim por causa da garota? Se apaixonou ou algo assim? - Ele provoca e eu
levanto a cabeça olhando com raiva. - Que susto. - Ele reage a minha ação repentina. - Mas, é
isso? Criou um crush nela?

- Tipo isso.- Só respondo, sabendo que aqueles fogos de artifício que meu coração soltou quando
nos beijamos não poderiam ser um simples “crush”.

- E qual é o problema para te fazer não querer comer? Você sempre está com fome, Leo.

- Ela me passou o número dela. - Digo. - Mas estão faltando os últimos dois dígitos, não tem
como ligar.
Mostro a mão para ele com o número escrito numa letra desastrada. Meu irmão puxa minha mão
com tanta força que quase caio da cadeira, analisando tudo.

- Ela parece bonita. - Ele diz.

- Você não a viu.

- Sei pela letra. - Ele dá de ombros e se vira. - Amanhã você pode testar todos os dígitos finais
para o número, por enquanto, desça e coma está bem?
- O que disse? - Pergunto como se uma ideia tivesse sido acendida na minha mente.

- Desça e coma ou papai e mamãe vão se preocupar.

- Não, antes disso.

- Que amanhã você pode testar as combinações? - Ele pergunta duvidoso.

- Isso é ótimo, Heitor. Realmente, ótimo! - Grito animado, levantando e dando um beijo na
bochecha do meu irmão antes de descer para a sala.

Ainda no meu quarto, consigo o ouvir limpando a bochecha e dizendo.

- Precisava me beijar? Seu nojento.

(Corte de tempo)

9874-06??

9874-0601 9874-0602 9874-0603 9874-0604 9874-0605 9874-0606 9874-0607

9874-0608 9874-0609 9874-0610 9874-0611 9874-0612 9874-0613 9874-0614

9874-0615 9874-0616* 9874-0617 9874-0618 9874-0619 9874-0620 9874-0621

9874-0622 9874-0623 9874-0624 9874-0625 9874-0626 9874-0627 9874-0628

9874-0629 9874-0630 9874-0631 9874-0632 9874-0633 9874-0634 9874-0635


9874-0636 9874-0637 9874-0638* 9874-0639 9874-0640 9874-0641 9874-0642*

9874-0643 9874-0644 9874-0645 9874-0646 9874-0646 9874-0648 9874-0649

9874-0650 9874-0651* 9874-0652 9874-0653 9874-0654 9874-0655 9874-0656

9874-0657 9874-0658 9874-0659 9874-0660 9874-0661 9874-0662 9874-0663

9874-0664* 9874-0665 9874-0666 9874-0667 9874-0668 9874-0669 9874-0670

9874-0671 9874-0672* 9874-0673 9874-0674 9874-0675 9874-0676 9874-0677

9874-0678 9874-0679 9874-0680 9874-0681 9874-0682 9874-0683 9874-0684

9874-0685 9874-0686 9874-0687

A página acabou. Droga, o que diabos estou fazendo? Bagunço a parte de trás do meu cabelo
basicamente deitando sobre a mesa em sinal de desistência.

- Ainda nisso, bro? - Heitor tem a mania de me chamar de “bro” como se não morássemos na
capital mais populosa do Brasil.

Me viro e o encontro no, aparentemente, seu lugar favorito, encostado na minha porta me
observando.

- Desde quando está aí? - Pergunto desanimado.

- Duas últimas ligações, pelo visto, nada da mulher do elevador. - Ele fala entrando para dentro e
olhando no meu caderno cheio de números riscados.

- O nome dela é Viola.- Digo incomodado com seu olhar vasculhando minha pesquisa minuciosa.

- Caralho, para quantos números já ligou?

- Todos os riscados. - Suspiro, deixando meu irmão vencer na base do cansaço. - Marquei os que
não atenderam, mas a maioria nem existe.

- E os que atenderam e não eram ela? - Ele pergunta sentando na minha cama enquanto tira um
pacote velho de chicletes do bolso.- Aqui, presente de consolação, para sorte.

Aceito a goma embrulhada no papel cinza brilhante.


- Perguntei se era o celular dela, e quando diziam que não, ou desligam na minha cara ou muitas
vezes, me xingam. Teve uma mulher, com um sotaque meio estrangeiro que me brigou comigo,
ela e o namorado estavam no meio de ver “Gatinhas e Gatões” quando liguei.

- Telemarketing é mesmo uma merda. - Ele fala já deitado.

- Não é telemarketing. - Reclamo.

- Poxa, ah é, é só stalking. - Ele responde com a mesma língua afiada de sempre.

- Não é stalking se ela me deu o número. - Brigo de volta.- Infelizmente, eu perdi alguns deles.

- E agora você está correndo atrás do multiverso telefônico só para achar. - Ele diz. - Mas ei, eu
entendo, também ligaria para mais de cem números se fosse pela Marta.

Marta é a moto dele.

- Ainda bem que tenho sua compreensão, Tor. - Digo. Apelidamos o meu irmão com a mesma
pronúncia do Deus do Trovão.

Acho que muitas meninas diriam que é por que ele é tão bonito quanto um deus, mas eu e meus
pais sabemos o motivo real- além da fonética.

Heitor foi acertado por um raio, e impressionantemente, não morreu.

Na quinta série, durante uma excursão escolar para o zoológico, meu irmão, sempre preguiçoso,
preferiu dar um perdido na professora e dormir embaixo de uma árvore, e desse mesmo jeito, uma
tempestade começou, todos desesperados em achar ele mas não podiam em meio a toda chuva,
ele acordou se sentindo super energizado e andou de volta para escola embaixo da chuva, por
vinte minutos.

E só depois descobrimos que ele acordou se sentindo tão “animado”, por que ele tinha sido
atingido por um raio, a árvore que levou a descarga foi desintegrada e teve de ser arrancada do
lugar, mas não meu irmão. Ele é só um dos casos malucos que nenhum médico conseguiu
explicar, e agora, seu batimento cardíaco sempre é mais acelerado do que deveria.

Disseram que ele devia ter tido uma parada cardíaca faz anos, mas nada nunca aconteceu, ele só
seguiu vivendo normalmente com uma pequena cicatriz na mão. Esse é Heitor, um danado
sortudo pra cacete.

- Sabe a parte boa? - Ele pergunta e eu só murmuro em resposta como um sinal para que continue
falando. - São só os últimos dois números, o que quer dizer que você só tem 99 tentativas a fazer.

- Isso é… na verdade meio animador. - Falo surpreso com um comentário útil saindo da boca
dele.
- Em que número está, maninho?

- Agora? No 88. - Cansado olho para Heitor, como se esperasse ansiosamente para eu fazer a
próxima ligação, como se essa fosse mesmo a certa. Ficamos paralisados por algum tempo até eu
desistir. - Você quer que eu ligue na sua frente?

- Absolutamente. Sim. - Ele acena com a cabeça na hora, se ajeitando na cama e esperando eu
digitar o número no celular.

Seguro o dispositivo na orelha, ouvindo o toque enojante depois de tantas ligações, são quase três
da tarde e estou sentado aqui faz duas horas ligando, ligando e ligando sem resultado nenhum.

Evento canônico na vida de todo homem, né?

Levanto as sobrancelhas para meu irmão, movendo minha boca formando a frase “eu te disse”,
porém, ele só abre um sorriso convencido e faz um movimento com as mãos como se me pedisse
calma.

- Alô? - Quase caio para trás quando a voz feminina soou do outro lado. - Quem fala?

O celular, pela tamanha surpresa, escorrega da minha mão e cai atrás da minha mesa.

- Merda, merda, merda. - Sussurro os palavrões irritado, praticamente me jogando embaixo da


mesa para alcançar o celular, assim que o pego, quase grito.- Oi! Alô!

A linha fica silenciosa por um instante.

- Leo? - A voz pergunta duvidosa.

- Via! Sim, sou eu. O Leo. - Falo agora sentado no chão apoiando minha cabeça no pé da mesa.

Do lado de fora, ouço o risinho pretensioso do meu irmão.

Safado sortudo.

- Eu não achei que você iria ligar. - Ela menciona, sinto como se as palavras saíssem entaladas da
garganta dela.

- Bem, você não ligou. - Digo obviamente. - Então, eu deveria ligar não é?

- Não achei que você ia querer… - Viola não termina.

- O quê? - Pergunto rapidamente, ainda com o coração batendo desesperado e as mãos suando
tanto que o telefone continua a escorregar.
- Não é nada. - Ela responde rindo.

- Se não é nada, por que não… Espera aí. - Levanto do chão e começo a balançar as mãos para
Heitor sair do meu quarto.

- O que? Eu não posso ouvir sua conversa com a garota do elevador? - Ele pergunta baixinho
enquanto eu o expulso para fora e fecho a porta.

- Pronto.- Sento na cama, agora, sozinho no quarto. - Como você tem estado?

- Desde ontem? - Ela pergunta duvidosa. - Normal, bem, quer dizer, super bem. E você, foi fácil
chegar em casa?

Penso na demorada carona dos bombeiros, como o carro cheirava a batata frita, cigarro e café
instantâneo, como o homem, com barba longa e bafo horrível fazia questão de continuar puxando
assunto e espalhando o cheiro em todo lugar. No fim, o entreguei um balde de frango de graça.

- Tudo normal. - Respondo, por fim.

- Que bom! - Ela parece realmente aliviada. - Eu saí sem me despedir…

Lembro do beijo e minha cara inteira esquenta na hora.

- Não tem problema. - Rio para dispersar minha vergonha iminente, não tem como ela ouvir esse
tipo de vergonha por meio da ligação, né?

- Eu sinto muito do mesmo jeito. - Ela fala e meio que consigo vê-la. Os cabelos
vermelhos-acastanhados presos em cima da cabeça, os olhos cinza se movendo afiados, os cílios
longos complementando a aparência de uma raposa.

- Por que não me compensa, se sente tanto assim? - Nem sei de onde saiu isso, só saiu.

E se eu pareci convencido e obstinado? E se ela odiar isso?

Ela fica quieta do outro lado.

- O que está pensando? - Via decide perguntar e solto o ar que nem percebi segurar.

- Jantar. - Decido instintivamente. - Aceite o convite que te fiz ontem, venha comer na loja.

- Está me chamando para conhecer seus pais no primeiro encontro? - Ela pergunta e consigo
sentir seu sorriso caloroso.
- Nunca disse que era um encontro. - Provoco de volta.- E nunca disse que seria só o jantar. Eu
tenho um ótimo lugar para te mostrar, dá pra ver as estrelas.

- Em São Paulo? - Ela pergunta incrédula. - Eu duvido.

- Venha e veja com seus olhos. - Convido prontamente.

- Tem certeza que não é um psicopata querendo me matar?

- Só tem um jeito de descobrir…

Consigo perceber que ela está considerando, pensando se deve ou não vir.

- E então, Ola?

- Que horas? - Ela pergunta em contrapartida.

- O que você acha das sete?

- Às sete parece ótimo.

Nós temos um encontro.

CAPÍTULO SEIS.
“Eu posso ser gelatina.”
“Não! Crème brûlée nunca vai ser gelatina.”
-O casamento do meu melhor amigo; 1:15:00

Às sete é horrível. Não sei o que eu estava pensando.

- Não acredito que vai sair com esse cara. - Áurea fala, desde que recebi a ligação de Leo decidi
que precisava de uma opinião afastada, por isso, liguei para ela e contei tudo.

- Nem eu. - Deixo escapar. - Ele é legal. - Digo, pensando em Leo ontem, e hoje no celular.

- É o que todas falam quando tentam esconder o fato que ele é um filho de cruz credo.

- Você está certa. - Concordo. - Mas Leo não é assim…

Relembro das características do homem, os olhos âmbar, os cabelos cacheados cor de ouro, o
sorriso matador, seu hálito de menta apesar de beber cerveja e comer frango.

- Ele é bonito. - Decido confessar. - Muito bonito.


- As peças não se encaixam. - Ela fala pelas caixas de som do celular. - Ou ele é bonito ou ele é
legal, se decida.

- Não tem como ser os dois? - Pergunto.

- Ele é homem?

- Sim.

- Então, não. - Ela responde na hora, completamente certeira de sua opinião.

Faço barulhos incompreensíveis reclamando de algo que nem consigo verbalizar, que horrível né,
Via? Um garoto lindo, legal, com senso de humor te chama pra sair e você age como se fosse uma
sentença de morte.

Mas meio que é, por que Leo não sabe, ele não faz ideia que a Via do elevador não tem nada a ver
com a vida real. A Via real é a que correu, na hora que as portas abriram, que fugiu já que tinha
muito medo de ver os olhos dele depois.

Nem pensei que Leo ia se importar, achei que ele não iria querer saber de mim de novo, então não
liguei, e logo, foi ele que me ligou.

- Como você se transforma em outra pessoa, Áre? - Pergunto segurando o celular enquanto
vasculho meu guarda roupa por pelo menos uma roupa bonita.

- Não tem como. - Ela diz.

- Mas as pessoas fingem ser as outras pessoas toda hora.

- Estou dizendo que não tem como para você, Viola. - Ela diz. - Você é muito consistente, até nos
seus erros.

- Mas Áre…

- Não tem “mas”. - Áurea me corta. - Via que nunca entra na chuva, fala sua opinião, gasta sem
pensar, toma o risco. Essa é você, não dá pra simplesmente mudar isso da noite pro dia.

Pare de me dizer quem eu sou o tempo todo. É cansativo. Suspiro forte o suficiente para ela ouvir.

- Obrigada pela opinião.- Falo pronta para desligar quando ela volta a dizer.

- Sabe, Via… Não faz nem tanto tempo desde… os rumores só agora estão começando a parar.

Endureço minha expressão, esse é o único assunto que combinamos nunca falar.

- Dez meses, Áurea.- Corrijo.- Fazem dez meses, acho que é tempo suficiente, não?
- Só estou tentando te proteger, depois da sua última experiência, só não quero que você se
machuque.

Não é seu papel me proteger. Eu preciso me proteger sozinha.

Respiro fundo.

- Eu sei… Me desculpe por despejar isso tudo em você. - Falo entre os dentes.- Obrigada pela sua
preocupação, de verdade.

Desligo com o coração ainda queimando, acabei ouvindo tudo que não queria. Não quer dizer que
foram mentiras. Áurea está certa, você não pode simplesmente mudar da noite pro dia.

A Via é uma chata, certinha e idiota. E da única vez que decidiu quebrar as regras, percebeu o
quão cruel é o mundo que se faz isso. As pessoas ainda sussurram pelas minhas costas na
faculdade, muitos continuam sem saber a história real e só julgam o que sabem. Durante algum
tempo foi insuportável, quase tranquei o semestre.

Talvez eu deva só desmarcar o encontro, nem faz sentido, isso não vai dar em nada. E Leo é ainda
por cima dois anos mais novo que eu, pelo que ele comentou ontem que tinha vinte. É uma
grande diferença de maturidade.

Eu realmente não deveria ir, absolutamente não!

- Devo apenas ligar para ele agora e cancelar?- Divago em voz alta.

Na hora que estou prestes a apertar o botão, minha campainha toca. Quando abro a porta, vejo
Clara parada ali, vestida com roupas de verão apesar do clima nublado e segurando algumas
sacolas.

- Presente para minha dama de honra! - Ela ergue as coisas que carrega, sorrindo.

- Clara, não avisou que vinha. - Digo.

Queria que ela não estivesse aqui, é uma péssima hora.

- Desculpe, Vi. - Ela diz, apenas.- Achei que você estava meio mal ontem e queria te animar,
trouxe salgadinhos.

Vejo ela balançar a sacola cheia de salgados e olho o relógio do lado da minha porta, marcando
quase quatro horas, qual é a diferença de eu desmarcar agora ou daqui a trinta minutos, de
qualquer jeito?

- Isso tudo aconteceu de ontem para hoje? - Clara me pergunta depois de eu terminar toda
narrativa sobre o elevador, Leo, o beijo e a ligação.
- Sim. - Digo com a boca ainda cheia de batatinhas super salgadas e calóricas.

- Ele parece ser o pacote completo. - Ela fala e abre mais um vinho na caixinha para tomar com o
canudinho.

- Não o conheço tão bem assim… mas parece mesmo.- Concordo rindo e balançando meus pés no
sofá, nós duas estamos jogadas na sala.

- E você ainda quer desmarcar o encontro? - Clara pergunta como se eu fosse maluca.

- Áurea está certa, uma pessoa não pode mudar da noite para o dia.- Falo completamente
desanimada. - E a eu de ontem é quem Leo espera.

- A você de ontem ainda é você, boba. - Clara diz o óbvio.

- Não, eu estava sendo diferente, sabe? Por causa do elevador, eu fui divertida, engraçada e
sincera, mas não de um jeito doloroso, só falei o que pensava e tudo fluiu tão bem…Maldito
elevador.

- Vi? - Ela pergunta e eu respondo com um “sim?”. - Você já considerou que talvez não tenha sido
o elevador que tenha te feito ser diferente? Talvez, e só talvez, tenha sido o próprio Leo?

- Como assim, Cla?

- Às vezes, você pode ser com ele uma versão sua que não se sente confortável em ser comigo, ou
com as outras meninas.

- Mas vocês são as pessoas que eu mais confio no mundo.

- Isso não quer dizer que você vá nos mostrar todos seus lados, tem umas coisas que são
reservadas para pessoas especiais, sabe? - Clara segura minha mão enquanto fala. - Esse pode ser
um lado seu que desperta perto do Leo, e sabe de uma coisa? Essa é a melhor parte, pessoas
mudam outras pessoas.

- Pessoas realmente mudam pessoas.- Concordo baixinho, minha mente levando a frase para
outro lugar, um sentido diverso que ela não deveria se encaixar.

- Não pense nele. - Ela aperta minha mão mais forte. - Não misture as duas memórias. Leo e
Thiago não tem nada a ver, certo? São duas pessoas diferentes.

Gelo só de ouvir o nome que me aterroriza até hoje, depois de meses, ainda congelo só de ouvir
seu nome sendo jogado levianamente em conversas pelo campus.
- Você não pode ser alguém que não é, Vi. - Clara me diz. - Porém, pode descobrir lados de si
mesma que nem sabia existir, e a gente precisa de um pouquinho de ajuda para encontrar mesmo.

Descanso minha cabeça no ombro da garota. Clara, com roupas de verão no inverno, com os
piores julgamentos do mundo para si mesma e com ótimos conselhos para os outros.

- Pedro fez isso para você? - Não consigo me segurar e pergunto. - Te ajudou a descobrir uma
parte de si própria que desconhecia?

Sem conseguir ver sua face, só ouço a respiração dela acelerar.

- Eu o amo. - Ela declara.

E no que isso responde o que eu perguntei?

Mas é essa a resposta que Clara me dá. Que ela o ama tanto que não vê problema em deixar certas
partes desconhecidas só pelo prazer de estar com ele.

Ele não te merece. Quero gritar, mas não posso, sou o único apoio que ela tem no meio desse
amor doente, quase como uma obsessão.

- E aí? Vai começar a se arrumar para o encontro?

- E se eu não puder ser a mesma Via de ontem?

- Aí seja outra versão dela. - Clara diz dando de ombros. - Quer que eu vá com você e me esconda
em um cantinho de outra mesa?

- Sim! - Respondo na hora e ela se assusta.

- Sério? Eu estava brincando. - Na hora mostro minha decepção e ela coloca as mãos sobre meus
ombros. - Tudo bem! Eu vou junto!

- Eu te amo, Cla! - Jogo meus braços e a abraço, deixando todo meu peso cair na menina e
arrastando nós duas para o chão.

- É melhor você ir tomar banho. - Ela diz meio esmagada meio mandona.

(Corte de tempo)

Vejo meu reflexo no espelho, não se parece nada comigo, apesar de ter os mesmos olhos, cabelos
salmões (com o mesmo corte de cabelo que mantenho faz anos), Clara realmente conseguiu me
mudar até o DNA.

- O que acha? - Ela me pergunta abraçando meus ombros por trás.


- Não parece comigo. - Digo analisando cada pedaço, como uma refeição deliciosa que não se
pode evitar guardar as melhores partes para o fim. - Eu amei.

Minha amiga conseguiu desenterrar um antigo vestido que Tita me deu quando fiz dezenove anos
e nunca usei. Por que nunca usei? Porque é um vestido off-white que vai até o meio das minhas
coxas e tem um fenda que por pouco não alcança minha calcinha, com mangas longas e duas
partes do tecido cruzando meu pescoço.

- É super apertado. - Clara diz sorrindo de bochecha a bochecha. - Tem certeza que você se sente
confortável?

- Não… - Falo considerando todas as outras roupas no meu armário, folgadas e desinteressantes,
definitivamente nenhuma para festas ou encontros. - É perfeito.

- E maquiagem? - Ela pergunta.

- Só falta meia hora pras sete, Cla. - Digo preocupada sem saber quão longe a loja realmente é.

- Tempo o suficiente. - Ela responde. - Agora, senta.

Obedeço e Clara faz um ótimo trabalho com os poucos recursos que tenho em casa e com a
maquiagem que ela leva na bolsa para todo lugar, no fim, fico com uma aparência natural- que de
nada tem a verdade- e saudável.

Meio que escondem minhas olheiras de noites e mais noites sem dormir por conta de trabalhos
extensos dos professores universitários. E o rímel deixa meus olhos pesados e sonolentos, tenho
vontade de deitar e adormecer.

- Estamos atrasadas. - Clara proclama e olha para a tela do celular, depois virando para mim.

19:25.

É, estamos atrasadas.

- Vamos ir descendo enquanto eu chamo um carro.- Aviso e levanto na hora quase me


estabacando de volta para o chão.

- Ei, ei, ei. - Minha amiga me segura. - Você sabe andar de salto, né?

- Bem. - Penso nos sapatos altos em meus pés, brancos e só utilizados na minha formatura do
ensino médio, com muito esforço, e jogados no fundo do guarda-roupa desde então. - Sim. Só me
desequilibrei.

Clara me larga duvidosa e nós duas descemos até a recepção do prédio no momento em que o
motorista chega para pegar.
- Vai demorar muito, moço? - Ela pergunta quando nós duas estamos sentadas no banco de trás.

- De vinte e cinco a trinta minutos. - Ele fala.

- É tão longe assim? - Eu pergunto.

- Trânsito de sábado, querida. - Engulo o desconforto que o “querida” traz e colo meus lábios
juntos até alcançarmos o destino.

- É aqui? - Clara pergunta depois que nós duas saímos do carro e ficamos paradas em frente à
loja.

As letras amarelas brilham acima da vitrine, chamando a atenção de qualquer pessoa que passe
por ali, a completa parte de frente da loja é feita de vidro, fazendo possível a visão de todos os
clientes lá dentro, sentados conversando e rindo. Apesar de não ser chique, a loja ainda sim
mantém um ar de elegância, vejo um pequeno lustre de cristais no teto, as paredes lá dentro
pintadas em um tom azul claro decoradas com vários tipos de plantas, desenhos e galinhas, por
mais estranho que isso soe.

- Frangos nas nuvens. - Clara lê o enorme nome do restaurante. - Fofo.

Meio que paraliso, lá no fundo da loja, vejo de semblante dois meninos loiros, um mais velho
usando uma regata preta, com braços musculosos para fora cobertos de tatuagens até o pescoço,
cabelos loiros e cacheados. E do seu lado, o mais novo, um pouco mais baixo, com o sorriso mais
atraente do mundo no rosto, usando um avental verde sobre as roupas casuais e atendendo os
clientes.

- Qual deles é Leo? - Minha amiga pergunta meio hipnotizada na cena.

- O de avental. - Respondo também encarando freneticamente.

- Então o outro é irmão dele? - Ela pergunta e tenho vontade de responder “só pode ser” mas
antes disso, os olhos castanhos me pegam desprevenida.

Ouço as batidas do meu coração nos ouvidos quando Leo para por um momento para me encarar
e logo depois acena. Devolvo o gesto e indico para Clara que devemos entrar.

Não sou a Via hoje. Sou a Ola.

CAPÍTULO SETE.
“Uma rainha nunca se atrasa.
Todos os outros estão adiantados.”
-O Diário da Princesa 2: Casamento Real; 04:32
- Ela te deu um bolo. - Meu irmão diz depois de me ver olhando na direção da entrada pela
décima terceira vez.

- Provavelmente ela só está atrasada. - Acalmo meus monstros interiores que Heitor se atreve a
soltar.

- Ou não vem. - Ele responde e lhe dou o olhar de “cale a boca”. - Qual é cara, só precisa aceitar
que talvez ela não venha e é isso. Nem sempre funciona.

- Não deveria estar dando atenção ao seu fã clube lá fora? Por que está se escondendo na
cozinha?

- Sabe irmãozinho, a vida te dá algumas lições na marra às vezes.- Heitor diz, estufando o peito
como se fosse revelar um segredo super hiper mega secreto. - A maioria das mulheres lindas são
malucas.

Quase começo a rir, incrédulo por acreditar, mesmo que só por segundos, que ele realmente
falaria algo importante.

- Pedido da mesa doze está pronto. - Meu pai grita e Frederico, um funcionário que está conosco
faz alguns meses, me passa o balde de frango com as bebidas em uma bandeja.- Heitor, pare de
ficar de bobeira!

- Sim, senhor!- Meu irmão bate um pé no chão e finge uma saudação militar, me seguindo para
fora da cozinha.

Ouço suspiros por todo restaurante quando Heitor coloca o pé para fora, algumas meninas tentam
filmar secretamente para postar nas redes sociais, outras acham que aparecer aqui diariamente vai
dar-lhes a chance de tirar a atenção unilateral de Marta- novamente, a moto dele. Ele é quase uma
subcelebridade pela região.

- Aqui está seu pedido. - Sorrio para a mesa com um pai e sua filha, o homem, por volta dos
cinquenta anos com a barba preta e os olhos castanhos olha para a menina, que apesar de ter
muitas das suas feições faciais, está com o olhar colado no celular.

- Obrigado, meu caro. - Ele diz colocando um sorriso fraco no rosto.

- Ei. - Heitor me cutuca forte e eu viro reclamando.

- O que foi? - Já pergunto sem paciência.

- Não me diga que… é aquela a menina do elevador? - Meu irmão fala e aponta para a entrada da
loja. Vejo pelas vitrines, a imagem de duas garotas, acabando de sair de um carro, e uma delas
retribuiu meu olhar.

Viola está absurdamente… nem sei se existe uma palavra para descrever. Deslumbrante.
Ela usa um vestido branco com uma fenda na coxa e saltos altos brancos, seus cabelos longos
castanhos-avermelhados sedosos cobrem suas costas e consigo daqui, ver o delineado fino
cobrindo a parte de cima dos olhos, o nariz reto e pequeno, as bochechas grandes e rosadas e os
acessórios discretos escondidos.

Só nós dois existimos ali, como em uma peça de teatro, quando todas as luzes do palco se apagam
e só restam dois pontos de luz, focados nos principais daquela cena. É assim que me sinto, como
se nós fossemos o foco ali.

- Eu admito, ela é bonita. - Meu irmão fala e quebra todo o encanto, levanto a mão rápido para
acenar e incentivá-la a entrar.

Noto sua amiga quando elas já estão do lado de dentro, ela anda atrás de Viola, com os cabelos
curtos marrons e a franja escassa escondendo a testa, o tom de pele rosa saudável e bem cuidada,
com o nariz alongado e olhos arredondados e puxados, sua boca consiste de lábios grossos e
delicados. Consigo ver o brilho dos seus brincos de longe.

- A amiga também, com os cabelos ruivos. - Meu irmão fala e eu viro quase violado.

- Cara não, Viola é a de cabelos ruivos. - Digo deixando um soco em seu peitoral.

- Por que está bravo? Também disse que ela é bonita. - Ele reclama enquanto me afasto para falar
com elas.

- Viola! - Chamo e me aproximo. - Você está…uau.

Via, agora muito diferente da noite anterior, abaixa a cabeça sorrindo ao encarar o chão, sua
amiga passa na sua frente e estende a mão.

- Você deve ser o Leo. - Ela diz sorrindo. - Meu nome é Clara.

- E eu sou Heitor. - Meu irmão me atropela entrando entre mim e Clara. Tem como ele ser mais
óbvio que está interessado nela?

- Prazer. - Ela ri e volta o olhar para Viola. - Vi me disse que vocês se conheceram em um
elevador?

- Presos em um, mais especificamente. - Respondo.

- Quase mortos também. - Viola escolhe pular para dentro da conversa. - Teve momentos que eu
jurei que ele ia cair.

- Somos dois. - Rio e penso nela ali em minha frente, número 88 e basicamente irresistível.
Mas também em como é estranho, tudo isso, por que eu e Via não nos conhecemos, pelo menos,
não de verdade.

A realidade se desdobra em sermos espectros um do outro, do que era verdade ali dentro e do que
era mentira. Pelo pouco que sei, ela poderia ser uma fanática por bolinhas de queijo e Alvin e os
Esquilos, o que não é ruim, nem perto disso, mas é um dos cenários.

O momento estranho entre quatro pessoas que não se conhecem e que mostra como essa situação
é aleatória invade o restaurante, com aquele ar estranho e aquela famosa e terrível torta de climão.

- Por favor, se sentem.- Meu irmão decide ser um cavalheiro pela primeira vez em sua vida e
indicar a mesa para as duas mulheres, ouço cerca de quatro suspiros apaixonados espalhados pelo
restaurante por causa da ação mais mixuruca que já vi na minha vida. - Idiota, o cardápio.

Ele chama minha atenção e reajo imediatamente pegando dois papéis plastificados e entrego na
mão de Viola e Clara, as duas partilham um minúsculo olhar secreto e começam a passar os olhos
pelo cardápio. Heitor faz um sinal para nos afastarmos por um momento.

- Cara, que climasso. - Ele diz. - Você preparou uma lista de assuntos para conversarem?

O olho assustado, nem tinha chegado nesse ponto no meu raciocínio.

- Eu devia ter preparado uma?

- Seu idiota! - Ele sussurra irritado e nós dois olhamos para trás discretamente, agora, Clara e Via
estão apoiadas em cima da mesa conversando sobre algo e lançam um olhar na nossa direção. -
Olha só, agora elas estão discutindo as primeiras impressões sobre você.

- Como sabe disso? - Pergunto, também começando a sussurrar indulgindo nas fantasias do meu
irmão.

- Eu conheço mulheres.- Ele responde e na hora vem uma suspeita gigante sobre esse fato
piscando em cores vermelhas no meu consciente.- Relaxe, irmãozinho. O que você vai fazer é o
seguinte:

Heitor fica em silêncio e sinaliza para eu me aproximar ainda mais.

- A primeira coisa é elogiar sua aparência, talvez, um leve toque no ombro, dizer o quanto branco
combina com ela,que seus cabelos vermelhos te dão vertigem por sua luminosidade e que você
sonha quilômetros a frente em sua relação, aí vai tomar muito cuidado ao se aproximar e
preparar o terreno para o flerte secreto dos Nuvem.

Nuvem é nosso sobrenome.

- Qual é o flerte secreto? - Me arrependo no mesmo segundo.


- Você vai chegar perto, bem perto mesmo, e aí vai sorrir. - Ele diz.

- E aí? - Espero o resto.

- É isso, ela vai saber.

- Mas quem que vai saber, Heitor? - Penso nas características que ele passou: roupa branca,
cabelos vermelhos, quilômetros à frente…- Você está falando da sua moto, Heitor?

Ele não responde e algumas vezes isso é resposta o suficiente.

- Seu idiota!- Me afasto e tiro seu braço dos meus ombros.

- Confia cara, funciona. - Ele joga uma piscadela para o meu lado.

- Uma ova. - Rebato e agora noto os olhares curiosos dos clientes em nossa direção, não apenas
deles, mas também da minha mãe, a mulher mais astuta e afiada que eu conheço. A mesma que
agora divide a atenção entre nós dois e Viola e Clara.

Volto a olhar para as duas, percebo que passei um tempo absurdamente longo ouvindo as
baboseiras do meu irmão e agora parece absurdamente estranho voltar à mesa e conversar
normalmente com Via.

Como se conversa normalmente mesmo?

Ao mesmo tempo que meus pés se aproximam, minhas cordas vocais encurtam e derrubam minha
estrutura vocal, como se ela fosse uma tesoura cortando fio por fio ali dentro, me impedindo de
ser articulado em sua presença.

- Você está completamente maravilhosa. - Digo. Merda.- Seu vestido é lindo, seu cabelo também,
a cor combina muito contigo.- Merda, merda, merda.

Encosto no cardápio na mesa e abaixo o corpo até que minha face esteja na mesma altura que a
dela.

Eu odeio Heitor, absoluto ódio.

E faço a única coisa que posso, sorrio. Depois de três segundos sem saber o que deveria acontecer
nesse momento, desvio o foco para o plástico na mesa.

- Já conseguiram pensar no que pedir? - Troco o assunto. - Não se esqueçam que é por conta da
casa.

- Devo pedir o mais caro, então? - Viola brinca ao analisar o cardápio.


- Ao contrário. A casa está falida pela quantidade de comida grátis que o herdeiro oferece. -
Respondem.

Isso mesmo, respondem. Não sou eu que respondo, na realidade, talvez fosse minha maior
inspiração ao se tornar pesadelo. A única pessoa que pode me fazer ter a sensação dos dezessete
anos com minha face queimando de vergonha e querendo gritar uma única palavra.

Mãe.

Minha mãe.

- Quais são as vantagens de ser um herdeiro se ele não pode nem oferecer comida grátis para
meninas bonitas.- Heitor tenta, e devo ressaltar o verbo tentar, ajudar a situação.

Mas como sempre, ele só piora as coisas.

- Vim dizer para os dois voltarem ao trabalho. - Ela diz sorrindo e por trás do sorriso, mandando.-
Agora.

- Vou deixar vocês pensarem melhor no pedido. - Digo e pisco para Viola enquanto eu e Heitor
nos separamos pelo salão.

Infelizmente, minha mãe continua ao lado da mesa conversando com Viola sobre coisas que eu só
posso tentar imaginar e com rosto queimando de vergonha só de pensar.

E se tudo isso foi uma péssima ideia?

- Cara, relaxa. - Heitor diz tentando me animar. - Quem não tem a mãe se intrometendo no
primeiro encontro?

Talvez eu faça ele engasgar com uma coxa de frango.

CAPÍTULO OITO.
“Tem que prometer não se apaixonar por mim.”
“Não será um problema.”
-Um Amor para Recordar; 24:46

COMBO “NAS NUVENS” - 120,00


Balde G de frango a passarinho; batata grande; coca 2 litros. (Serve de 3 a 4 pessoas).

COMBO “AMOR DA MINHA VIDA”- 79,90


Balde M de frango a passarinho; batata média; coca 1,5 litros. (Serve 2 pessoas).

COMBO “ESCOLHA CERTA”- 59,90


Balde P de frango a passarinho; batata pequena; coca 1 litro. (Serve 1 pessoa).
PORÇÕES:
Frango a passarinho- 24,00
Cortes de coxa e sobrecoxa com tempero da casa.
Batata frita- 20,00
Uma porção de 400 g.

Encaro as opções do cardápio ainda sem certeza do que pedir, o sorriso brilhante de Leo
ofuscando todos os meus pensamentos desde o momento que ele se aproximou do meu rosto e foi
expulso por sua mãe.

“Você está completamente maravilhosa”.

Meu rosto queima quando penso na frase novamente e novamente. As palavras em reprise dentro
do meu cérebro.

- O que você acha desse? - Clara aponta para algo no menu e eu concordo observando as letras
desfocadas e desejando secretamente pelo meu óculos- o qual abandonei após perceber o quanto
meu nariz fica maior ao usar ele.

Clara levanta a mão chamando a atenção de Leo novamente e meu coração começa a acelerar no
momento que ele anda na direção da nossa mesa.

Vamos Via, aja como qualquer um menos você!

- Conseguimos decidir! - Clara diz sorrindo.

- E o que eu posso fazer a honra de trazer para vocês? - Dessa vez é Leo que responde. Nunca
reparei que ele tinha uma voz tão bonita. Na verdade, não sei se já achei a voz de qualquer um
bonita, mas por que é que a voz de Leo parece tão confortante?

Clara me encara, encorajando para que eu responda e finalmente entre na conversa.

- Ahn. - Olho para o cardápio onde o dedo da minha amiga está posicionado. - O amor da minha
vida.

Na hora que as palavras saíram da minha boca eu reli novamente o nome do combo e praguejo
contra minha amiga diversas vezes mentalmente. Clara sempre foi uma espertinha malévola.

Sorrio morrendo de vergonha por dentro, ele com certeza vai interpretar como um flerte, certo?

Mas isso também não é necessariamente mal, né? Quer dizer… estamos em um encontro.

Pelo menos eu acho que é um encontro.

Deve ser um encontro após eu o ter beijado no elevador.


Fico vermelha lembrando do beijo.

Por alguma sorte milagrosa, Leo apenas anota o pedido e nos diz:

- O seu combo vai chegar em cerca de 15 minutos. - Ele avisa e se afasta da mesa, indo em
direção à cozinha.

Assim que ele sai da minha vista, eu esfaqueio Clara com meu olhar.

- Achei que seria fofo.- Ela diz com uma risadinha.- Se bem que a reação dele foi imprevista.

- O que você queria que ele fizesse depois de eu praticamente dizer que queria ele como amor da
minha vida? - Esbravejo aos sussurros.

- Não é tão sério assim, Via. - Clara me acalma. - Ele deve estar tão acostumado com esses tipos
de flertes que nem percebe mais.

- Você acha? - Penso em voz alta.

- Bem, o irmão dele tem definitivamente uma beleza mais madura. Mas você estava certa, Leo é
certamente muito bonito, várias meninas devem vir para ver ele também.

Fico chateada com o pensamento de outras meninas vindo a loja apreciar a beleza de Leo, em
seguida me repreendo já que não tenho direito nenhum sobre esse sentimento.

- Mas eu acho… - Clara, dessa vez, sussurra e eu me aproximo para escutar melhor. - Que ele está
100% a fim de você.

Por um momento considero a ideia de Clara e imagino um Leo que, dentro dessa teoria, nutre
sentimentos românticos por mim. Como seria se ele me olhasse amorosamente, segurasse minha
mão, fosse a encontros.

Contudo, o calor no meu peito logo se torna outra coisa… uma sensação de aperto dolorosa.

Apesar de ter dito aquelas coisas a Áurea e ter vindo aqui depois de ele ter me ligado, sei que
nunca poderíamos ter esse tipo de relação. Não sei como ter uma relação saudável com alguém,
ainda mais depois de Davi.

- Viola! - Uma das minhas melhores amigas aperta a pele do meu braço até ficar vermelha. - Pare
com isso.

- Com o que? - Respondo puxando o meu braço para longe do alcance das unhas afiadas de Clara.

- De ficar indo para aquele lugar sombrio onde ninguém pode te achar. Você é merecedora de
amor e de alguém que te ame. Não fique pensando o contrário por conta daquele babaca.
- Não acha que está pedindo demais de um primeiro encontro? - Pergunto.

- Não estou falando que deve ser com Leo, só quero que você saiba. Só preciso que você saiba
disso. - As mãos dela aquecem a pele gelada das minhas, confortando algo além do meu coração
machucado, tocando a minha alma.

- Obrigada. - É a única coisa que consigo dizer já que não posso lhe prometer fazer melhor e não
consigo tirar a frustração do meu coração.

- E aqui está. - Leo chega com uma bandeja contendo um balde enorme de coxas de frango,
batatas e uma garrafa de refrigerante.

Penso na rapidez do pedido mas ao olhar o relógio percebo que já se passaram quinze minutos
sem eu nem notar.

- Quer uma dica? - Ele chega bem perto da minha orelha e diz baixinho.

Endireito minhas costas enquanto os pelos do meu braço se arrepiam por poder sentir o cheiro do
seu hálito de menta. Viro um pouco para tentar vê-lo e isso deixa nossos rostos ainda mais
próximos.

- Sim. - Respondo baixinho também.

Uma dica? Sobre o quê?

- Misture o barbecue com o molho da casa. - Ele diz.- Pode parecer estranho mas fica uma
delícia.

Solto uma risadinha pela forma confidencial que ele resolveu falar de molhos.

- Não precisa me agradecer depois. - Leo continua a sussurrar perto da minha orelha e o volume
da minha gargalhada aumenta a cada minuto.

- Isso é ridículo. - Digo ainda rindo. - Acho que é o primeiro encontro que o meu parceiro fica tão
pouco presente.

- Encontro? - Leo trava e pisca uma vez. Em resposta, eu pisco duas.

ELE NÃO CONSIDERAVA ISSO UM ENCONTRO?

Ele realmente me convidou apenas querendo fazer publicidade para o restaurante da família? Ou
com o desejo de uma amizade?

Fiz uma rápida lista de coisas que poderia fazer para remendar a situação:
1. Me jogar em frente de um caminhão.
2. Volte à opção 1.

- Quer dizer… eu pensei que - Na mesma hora minha mente responde: Você pensou errado.

E volto a me calar.

Quando Leo parece recuperar o chão e voltar a ser capaz de pronunciar palavras, o irmão dele-
Heitor, se não me engano- aparece envolvendo os ombros do irmão com um dos braços.

- Não podemos deixar isso assim, então. - A versão mais madura do querido menino de cachos
dourados fala. - Acho que é hora de você pegar a mão dela e sair correndo. - Termina de dizer e
dá um sorriso meio torto.

Ele fala mais alguma coisa no ouvido do irmão e empurra o mesmo um pouco para frente.

Todo meu rosto ainda queima da recente vergonha quando Leo estica a mão na minha frente,
consigo sentir o nervosismo palpável dele quando seguro a mão masculina e áspera. Mesmo
sendo dois anos mais novo que eu, sua mão parece vinte vezes maior que a minha.

Assim que aperto a palma dele, um sorriso acende no rosto do menino que faz meu coração
acelerar tanto que sinto medo dele poder ouvir o batimento.

- Vamos fazer esse primeiro encontro contar. - Leo responde e sai me puxando para a parte de trás
da loja.

- Onde estamos indo? - Eu pergunto quando chegamos na frente de uma escadaria.

- Ah, é. Devia ter mencionado antes, nós moramos em cima da loja. - Ele diz coçando a parte de
trás do pescoço. - Estamos indo para a minha casa.

Ele diz cada palavra com um receio tão óbvio que me dá vontade de dar um beijo em sua
bochecha e pedir para seguir o caminho.

Só que como isso seria deveras estranho, eu apenas concordo com a cabeça e continuo andando
atrás dele até a entrada da casa.

- O que vamos fazer na sua casa, inclusive? - Apesar de ser errado, os primeiros pensamentos na
minha cabeça são inapropriados demais para até se dizer em voz alta, por isso engulo em seco
enquanto cavo um lugar inabitado da minha mente em ordem de enterrar essas imagens.

- Tem algo que eu quero te mostrar. - Ele responde encaixando a chave na porta de madeira.

Mostrar? Algo que ele queira me mostrar?


Mais imagens indesejáveis aparecem na minha cabeça e faço questão de olhar para o maxilar bem
desenhado de Leo juntamente com os músculos escondidos por baixo do uniforme do restaurante.

Não se atreva a pensar besteiras, Viola!

Leo não é esse tipo de pessoa, pelo menos, eu acho que não?

Lembra do que Clara te disse antes, pare de se preocupar tanto com as coisas.

- Está escuro, cuidado. - Leo diz ainda segurando minha mão e me guiando pela casa escuro.

- Por que não apenas acendemos as luzes? - Indago com medo de bater em algum móvel.

- Não vamos precisar.- Ele responde e subimos mais uma variedade de escadas até parar na frente
de uma porta de metal. E antes mesmo que eu pergunte aonde estamos, Leo já informa. -É o
telhado.

De repente me lembro do que ele disse na ligação.

“Eu tenho um ótimo lugar para te mostrar, dá pra ver as estrelas.”

Leo abre a porta do telhado e a primeira coisa que faço é olhar para o céu.

A mudança de ambiente me faz tremer, o telhado sendo definitivamente mais frio que dentro da
loja, e o vento frio batendo no meu rosto. O vestido inapropriado para o clima. Mesmo assim, a
única coisa que noto são os diversos pontos brilhando para mim em meio a escuridão total.

- Isso é lindo. - Digo sem nem notar. - Às vezes fico tão preocupada em tentar achar alguma
beleza aqui embaixo que esqueço que posso simplesmente olhar para cima.

Mesmo morrendo de frio, ainda há uma leve sensação de calor restante na mão que Leo continua
segurando cuidadosamente.

Encaro seus olhos amarelos e nós dois sabemos qual é a próxima ação que ele deve tomar.

Leo solta minha mão e acaricia meu rosto com seu polegar enquanto se aproxima lentamente. Sei
que ele vai me beijar, tenho noção disso e por algum motivo, um medo se aloja em mim. Algo
que grita para eu correr para as montanhas e me proteger, guardar meu coração fraco e covarde.

Mas novamente, por algum motivo que não sei explicar- da mesma forma que não sei explicar
por que eu beijei-o no elevador- minhas pernas continuam paradas.

Assim que Leo se aproxima o suficiente para eu sentir sua respiração, coloco um dedo sobre seu
lábio e me afasto até que ele possa me ver bem.

- Preciso que me prometa uma coisa. - Peço delicadamente em meio ao silêncio daquela noite.
- Diga. - Ele pede como se estivesse pronto para me prometer qualquer coisa. Mesmo que eu
pedisse seu amor eterno agora, seus olhos me mostram que ele diria sim.

“Via que nunca entra na chuva, fala sua opinião, gasta sem pensar, toma o risco. Essa é você,
não dá pra simplesmente mudar isso da noite pro dia.”

Engulo em seco de novo. Pensando na frase e retirando meu dedo da boca dele.

- Não se apaixone por mim. - Peço e apesar do tom brincalhão, falo sério e sei que Leo também
percebe isso. Mas ao invés de qualquer resposta que ele poderia dar, ele apenas se aproxima
novamente e sussurra para mim.

- Impossível. - Ele responde tão certo que a determinação dele abala meu coração medroso.

E Leo me beija. Diferente do último beijo, que se consideraria mais como um selinho que
qualquer outra coisa, consigo sentir o gosto da menta em seus lábios, o cheiro do shampoo em
seus cabelos e o perfume masculino em seu pescoço.

Ele faz carinho em minha bochecha ao me beijar tão carinhosamente que sinto como se fosse uma
confissão de amor.

Do mais profundo nada, sinto uma gota de água cair em minha bochecha, em seguida de outra e
outra.

- Está chovendo. - Ele parte o beijo para estatar (declarar) a, mais do que óbvia, chuva.

- Eu sei. - Respondo. Geralmente ficaria irritada, a chuva ia ser uma terrível mudança nos meus
planos, prometendo me atrasar caso eu estivesse a caminho da aula, me bagunçar se eu tivesse um
compromisso importante ou nessa situação, interromper um ótimo beijo com um cara de tirar os
fôlegos. Por todos esses motivos, normalmente ficaria muito irritada com o início da chuva bem
agora.

Entretanto, como tudo que eu faço perto de Leo não faz sentido, a chuva não me incomoda nem
um pouco. Não estou chateada ou me sentindo nojenta e com medo de ficar parecendo um
monstro com a maquiagem borrada na frente dele.

- Você realmente… traz algo diferente em mim. - Falo e antes que ele pudesse me interrogar
sobre a frase, eu me aproximo e volto a beijá-lo.

Já que preciso admitir:

Beijar Leo é uma das melhores decisões que a Viola não faria.

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