Amaya Felices - Sexto Inferno 04 - Sétimo Inferno (oficial) R&A

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O conteúdo desta obra é ficção.

Embora contenha referências a fatos


históricos e lugares existentes, os nomes, personagens e situações são
fictícios.
Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, empresas
existentes, eventos ou locais, é mera coincidência e fruto da imaginação do
autor.

©2016, Sétimo Inferno


©2014, Sexto Inferno
©2023, Capa: Jorge Gutiérrez
©2011, Amaya Felices
©2014, Desta publicação digital, saga Sexto Inferno nº 4

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almas/139462266127913

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ÍNDICE
UM. MARTA
DOIS
TRÊS
QUATRO. MARTA
CINCO. MARTA
DEIS
SETE. MARTA
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS. AS TRÊS IRMÃS CEGAS.
DEZESSETE
DEZOITO. MARTA
DEZENOVE
VEINTE
VINTE E UM
VINE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS. ATZIR'ITZ
VINTE E SETE
VINTE E OITO. 6 ANOS DEPOIS.
SOBRE LA AUTORA
PRIMEROS CAPÍTULOS DE PURO GLAMOUR
EXTRA: RELATO SIEMPRE VIOLETA
UM. Marta
Marta era uma índigo. Não só se tratava da descendente de Kendria,
uma índigo do século XIII, mas ela mesma era um novo ressurgimento da
linhagem do poder daquelas bruxas que adoravam Diana. No entanto, ela
ainda não sabia disso e estava sozinha, isolada e presa.
Já fazia mais de uma semana assim, embora não houvesse mudanças
nesse minúsculo plano prisão que a deixassem sentir a passagem do tempo.
Dez passos para cima, dez passos para baixo... se isso continuasse
assim, acabaria enlouquecendo pelo confinamento, a falta de espaço e a
solidão. Até as vozes em sua cabeça, as de outras matronas moon-wolf,
haviam cessado. A única saída que parecia haver ali era uma janela para o
plano de Shanetta, a deusa serpente, aquele templo onde haviam querido
assassiná-la no que tinha sido seu futuro mais provável. Claro, nem se
aproximava: estaria cheio de inimigas e suspeitava que se entrasse nesse
plano era muito provável que suas visões se cumprissem e se dirigisse para
sua morte.
Ou talvez não, talvez isso fosse algo que haviam planejado fazer
para levar seus deuses à Terra, algo que já não lhes era necessário após a
ruptura da prisão do dragão.
Não sabia. De fato, a única vez que tinha olhado pela janela havia
visto diretamente o templo, não as escadas como em sua visão. Mas era
arriscado demais. No entanto, o bom senso que lhe dizia para nem se
aproximar dessa janela, que esperasse que os seus fossem resgatá-la, cada
vez protestava menos quando as horas e os dias aprisionada lhe
sussurravam que, por se aproximar para dar uma olhadinha, talvez não
acontecesse nada.
DOIS
O sétimo inferno.
Meu avô nos havia convocado, a mim e sua guarda. Ainda estavam
construindo o castelo, então nos havia citado embaixo dele, na encosta do
vulcão e no meio dos rios de lava. O calor era excessivo inclusive para
minha parte demoníaca, mas não insuportável. Eu e Atzir'itz voamos em
silêncio montados em nossos wyverns e descemos ao alcançar nosso
destino. Nosso rei ainda não havia chegado, mas, assim que pisamos na
rocha do solo com nossas botas, apareceu na frente em meio a um estouro
de enxofre.
—Meu senhor —dissemos ambos em uníssono enquanto nos
ajoelhávamos.
Porque eu não esperava nada de bom desta reunião. Estava
plenamente consciente de que havia ocultado do meu senhor, um poderoso
demônio ancestral com pouca paciência e com tendência à tortura eterna, a
traição do triunvirato. Pior ainda, tinha me aproveitado dos sentimentos de
sua guarda por mim, para que este tampouco cumprisse com seu dever de
informá-lo. Após a batalha do dia do juízo final, tinha se limitado a me
repreender, mas seu tom havia deixado claro que, quando deixasse de ter
assuntos urgentes para atender, falaríamos das consequências. Agora,
olhando-o desde minha postura inclinada, podia ver seu cenho franzido e a
aura de poder que o rodeava, tão imensa que poderíamos nos afogar nela.
Sim... isso que eu estava sentindo, esse sabor acre em minha boca, era, sem
dúvida, medo. Pff... um velho conhecido; como ultimamente tinha subido
muito à minha cabeça ser uma princesa demônio, lhe agradeci por me
lembrar o que eu era ao lado da vontade do meu avô: nada.
Os segundos passavam e nosso senhor se mantinha em silêncio.
Desviei rapidamente o olhar (tampouco era confortável elevar os olhos
desde minha cabeça abaixada), não queria incomodá-lo mais do que já
devia estar. Ia nos matar sem nos dizer nada ou primeiro daria sua sentença?
Essas e outras dúvidas passavam velozes por minha cabeça a cada instante a
mais que nos tinha ali, ajoelhados e sentindo como a areia da ampulheta de
nossas vidas deslizava entre seus dedos. Sem dúvida, estava assustada: não
queria morrer, não ainda. Tinha provado o êxtase de combater em guerras
montada em minha montaria, a felicidade de ter família e uma boa amiga.
Então não, não estava preparada. Poderia dizer a mim mesma o contrário no
meio do fragor de uma boa batalha, mas a verdade era que estava mentindo.
E enquanto aguardava que nosso rei fizesse ou dissesse algo, senti
outro sabor amargo, como a bílis, neste caso a percepção de que tinha
arriscado tudo por um vampiro que jamais havia merecido, que tinha sido
apenas um manipulador sujo e traidor.
Meu rosto, apesar de olhar para o chão, deve ter mostrado algo, pois
meu avô contraiu sua aura de volta e nos falou.
—Levantem-se —ordenou. Quando o fizemos e o olhamos,
continuou—. Vocês me decepcionaram muito.
Sua voz caiu sobre nós como uma pesada laje, como uma sentença.
Pude sentir como Atzir'itz se encolhia ao meu lado sem mal se mover, do
mesmo modo que eu estava fazendo. Maldição, não estava pronta. Mas,
como sempre, aceitaria o preço dos meus erros e a vontade do meu senhor.
—Não parei Casio porque estava esperando que me contassem,
qualquer um dos dois—. Sua voz, potente, retumbava pela encosta do
vulcão como um trovão. A decepção era tão palpável que se sentia como
quilos de pedras sobre meus ombros—. E não o fizeram. Apesar de tudo, a
matriarca bruxa teria parado seus pés no momento em que ele e os seus nos
atacaram; mas o que nem ela nem eu vimos foi a traição de sua filha.
Agora, não é que esse vampiro tenha ganhado, mas ele destroçou muitos
países humanos. Não os ocupou, pois não tem tropas suficientes para isso.
Os cidadãos sobreviventes estão escondidos e buscando se organizar.
Klynth'Atz, Atzir'itz, o que devo fazer com vocês?
Por um breve momento me senti aliviada. Não tinha dito nossos
nomes completos, isso significava que ia nos perdoar?
—Não era uma pergunta retórica, digam-me —repetiu após um par
de segundos de silêncio.
Minha cabeça pensava a toda velocidade. Tratava-se de uma
pergunta armadilha com certeza e nem ideia de qual era a resposta correta.
—Minha vida já não é digna de servi-lo, nem eu de chamá-lo de
meu rei. —O íncubo não teve dúvidas.
Puta merda! Ele não podia dizer algo como que não voltaríamos a
fazer isso e que o serviríamos bem? Maldito soldadinho...
Tudo bem, não estava sendo justa com Atzir'itz: ele era um soldado
leal e é claro que tinha cérebro. Mas levava longe demais o senso de dever.
Longe demais, sim... e, no entanto, o ignorou por mim.
Sim, de repente me sentia muito culpada. Tive que intervir.
—Ele não fez nada, meu senhor. Fui eu quem lhe ordenou que
guardasse esse conhecimento uns dias com a esperança de provar que o
Triunvirato não era um traidor. Minhas emoções falharam com o senhor.
Falhei como arma e como herdeira da linha real. Castigue-me como
considerar.
Porque era a pura verdade.
Atzir'itz começou a dizer algo, mas meu rei o fez calar.
—Eu sou o único responsável pelas minhas decisõ...
—Silêncio. É certo que estou decepcionado. Também que ambos
agiram movidos não pelo cérebro, mas por suas emoções, essas que os
fazem se destacar entre os meus, as que sem dúvida foram um sucesso no
meu experimento. De todas as minhas tentativas —todas as suas tentativas?,
o que estava dizendo? Havia mais?—, apenas três têm potencial e, sem
dúvida, vocês são os dois melhores. Entendo que essa facilidade de vocês
para tomar almas sem que suas impressões os enlouqueçam é o que fez com
que me desafiassem. Deixaram que o coração os fizesse correr o risco
diante daqueles a quem amam —Nem me atrevi a olhar para o íncubo, mas
com certeza ele devia estar desconfortável com meu avô ressaltando que ele
me amava e eu a Casio. Só que esse amor agora era ódio, contra ele e contra
mim mesma por ser tão idiota. Amor verdadeiro... por favor, eu era um
demônio, como tinha podido cair em um engano tão tolo?—. Meu
julgamento acabou e meu veredito está tomado —Estalou os dedos e
começaram a aparecer ao seu redor demônios da corte, se teletransportando.
Parecia que a atmosfera tão rica deste plano estava aumentando a magia dos
nossos—. Klynth'Atz, você foi considerada culpada de ocultar informação
do seu rei. A boa fé dos seus atos, o acreditar que essa informação era falsa,
não a isenta de sua culpa. Sua vida lhe é perdoada por sua utilidade na
guerra pelo controle dos sete planos. Parte de seu castigo é que você já não
é minha vontade no mundo humano, já não é quem vai mandar em meu
nome. Sylth'Atz, dê um passo à frente.
Um íncubo, eu diria que tão bonito quanto Atzir'itz e sem dúvida
mais alto, o deu, se destacando da corte que nos rodeava. Seus olhos eram
de um tom verde azulado, muito claro, e seu cabelo de um vermelho tão
escuro quanto o de Lucas.
—Meu senhor —se inclinou com respeito.
—A partir de agora você se encarregará das negociações na Terra.
Ouvirá o conselho do líder alfa da Europa e do vampiro Lucas, mas não o
seguirá se não o considerar adequado. Eles são sábios e levam décadas,
séculos no caso do vampiro, comandando exércitos. Saberão lhe dar uma
boa perspectiva onde sua juventude possa fazer com que lhe falte
experiência.
—Às suas ordens, meu rei. Não o decepcionarei.
—Eu sei. Retire-se.
O demônio voltou a seu posto entre a corte e meu avô se virou para
mim. Mas eu já não tinha medo. Nos havia perdoado. Fosse porque ele
também tinha seu coraçãozinho bem escondido e formado por eras
devorando almas hominídeas ou humanas, ou fosse porque de verdade
éramos suas melhores armas, não ia nos matar. Por enquanto, seu castigo
era quase um prêmio. Isso de estar no comando de politicagens não me
agradava nada. Mais ainda era um alívio que passasse o problema para
outro.
—Klynth'Atz, lhe dou a missão de localizar e me entregar vivo
Casio. O estado não me importa desde que continue com vida. Quantos
mais dos seus caiam, antes reconsiderarei seu valor. Se fracassar, deixará de
me ser útil. Se triunfar, receberá a outra parte de seu castigo: vinte
chicotadas.
Tááá bom, se eu fracassasse me matava ou algo pior: decorar seu
salão do trono. Se tivesse sucesso me perdoava com... vinte chicotadas? Só
isso?
Algo deve ter visto em meu rosto porque por um momento seus
belos e temíveis lábios se curvaram em uma careta cruel.
—Atzir'itz. —olhou para ele—. Seu castigo vai ser lhe dar essas
vinte chicotadas em público. Claro que se ela não conseguir me entregar o
traidor com vida em um prazo de quinze dias, compartilhará seu destino.
—Sim, meu senhor.
—Como desejar —acrescentei eu.
E nem uma palavra de que tinha sido benevolente. Fazê-lo poderia
obrigá-lo a nos dar um castigo físico exemplar ali mesmo, do tipo agora
faça sua missão com uma perna a menos. Porque tinha fama de justo, mas
duro, e a fama tinha que ser mantida.
Sua corte aceitava sua sentença. Estavam cientes de nosso valor
como armas e, certamente, sabiam que nos perdoar não tornava fraco meu
avô. Alguém como ele podia se permitir ser um pouco prático, senão
clemente, de vez em quando.
Eu e o íncubo voltamos a nos ajoelhar, a corte se foi e meu avô ficou
nos olhando uns segundos. Sua expressão continuava imperturbável.
—Não me decepcionem —retumbou sua voz—. Seria um retrocesso
ter que voltar a começar com os experimentos.
E se foi, em meio a um estalido de enxofre. Me senti tão aliviada
que se o íncubo não estivesse ali sem dúvida teria me deixado cair de bunda
no chão.
Continuava viva!
E, ainda por cima, tinham me dado o presente da vingança.
Sorri.
Atzir'itz me olhou estranhado, talvez questionando minha sanidade
mental, mas, assim que se deu conta do motivo, formou em sua boca uma
careta sádica.
Sim... querido Atzir'itz, meu avô nos tinha dado via livre para
quebrá-lo, podia estar em qualquer estado desde que continuasse com vida.
Imaginei que, morto, não lhe serviria para sua decoração do trono.
TRÊS
—Não podemos enfrentar um deus, menos sete —estava dizendo
Ainhoa, a nova presidente da Espanha e com quem eu e Atzir'itz nos
reunimos para almoçar.
O que por que continuava querendo nos meter em assuntos que já
eram de Sylth'Atz? Nem ideia. Que me revistassem, porque certamente a
última coisa que queria era continuar com essas dores de cabeça que meu
sábio avô tinha delegado a outro. Suspirei e lhe respondi:
—O dragão está solto pela Terra e os outros seis deuses já não estão
proibidos, logo essas bruxas, em teoria, poderiam invocá-los. Por sorte,
como o dragão foi trazido para nosso plano, tem os poderes limitados. E
invocar um deus é complexo, requer uma grande quantidade de poder
mágico, como o que se desatou no Samhain no dia do juízo final. Não é
algo fácil de conseguir ou Morrigan e outros deuses já estariam andando
por aqui há anos.
—Ok, tudo bem; mas mesmo com tudo isso continua sendo um
deus. Você poderia com ele?
Bem, imaginei que dependeria se meu avô me faria um canal mais
largo até o poço de todas as almas. Agora mesmo, que voltava a ter o da
minha maioridade, não poderia nem com a freira fanática que tinha me
perseguido. (Como tinha feito bem em não deixá-la escapar!) E o poço...
digamos que a conquista do sétimo plano o tinha drenado um pouquinho
bastante. Passariam milênios até que voltasse a ser o que era. Para meu avô
não importava muito porque tinham se apoderado do enxofre do sétimo
inferno, o que permitia aos meus possuírem a magia demoníaca mais
poderosa. Só que eu não podia fazer magia. Todos esses compostos
químicos do plano não reagiam com a biologia do meu estômago como
faziam com a de uma súcubo que não fosse mestiça. Então, resignada,
neguei com a cabeça.
Não, eu agora mesmo não podia vencer um deus por muito limitado
que este estivesse.
Ainhoa me olhou como se estivesse satisfeita que eu tivesse lhe
dado a triste razão.
—Pois isso. Certamente não me agrada colocar meu país dentro do
Império Vaticano; mas, se for necessário, farei isso antes de permitir que
esses monstros nos aniquilem ou escravizem.
Sim, Império Vaticano, como se chamava agora a nova nação que
aglomerava o Vaticano, Roma, grande parte da Itália, Japão, Alemanha,
Polônia e Rússia. O Papa tinha deixado claro: se os governos que ainda
estavam sob controle humano quisessem sua ajuda, deveriam se colocar sob
seu comando. Que a Rússia, que sempre tinha se defendido sozinha, tivesse
cedido e chegado a um acordo com a Igreja, era mais que preocupante. Mas
claro, eles não me tinham a mim e o bisneto do meu avô para lutar ao seu
lado.
Voltei a suspirar, de cansaço por essa conversa. Todo mundo dizia
que Ainhoa era uma mulher doce e calma, ao mesmo tempo que forte; no
entanto, eu a estava vendo bastante melodramática.
—Veja, Ainhoa, os mutados e os vampiros não são nenhum
problema graças aos lobisomens e a Lucas e seus filhos. Os satanistas
também ajudam bastante. E você tem bruxas, porra, algo que nenhum outro
país pode dizer.
—Sim, uma matriarca sem matriarcado e todas as demais bruxas
mortas ou fugidas.
—Estamos nisso. Arianhrod duvida muito que todas as casas de
bruxas possam ter caído na sedução da magia proibida. Por exemplo, as
gilean, as curandeiras, não combina nada com elas. Por isso, só temos que
encontrá-las e dar-lhes uma opção diferente de serem controladas pelas
snake.
—A matriarca duvida, sério? —Ergueu uma sobrancelha com ironia
—. Igual a que aguentou a tentação sua própria filha?
—Isso foi cruel e desnecessário. —Franzi o cenho—. Em todo caso,
se nos colocar no império Vaticano, iremos embora eu e os meus, os
lobisomens, os satanistas, as bruxas que se mantêm fortes a seus deuses e
princípios e Lucas e os seus. Se a Espanha passar a estar sob o controle da
Igreja, não ficaremos para lutar contra a Inquisição.
Ainhoa percebeu que assim não chegava a lugar nenhum. Passou a
mão pelo rosto, pela testa e os olhos, e se desculpou.
—Você tem razão, sinto muito. Escuto vocês falarem de deuses e
não posso evitar buscar ajuda no meu, que por enquanto parece fazer caso
apenas ao Vaticano. Todos os padres daqui se retiraram; acho que Bruno,
que já não pode nem fazer exorcismos, é o único que fica na Espanha. Se
queremos eles de volta, assim como o apoio de suas tropas, temos que nos
subjugar a seu império. Isto é como um beco sem saída. Você acha que seu
avô e seu pai nos ajudariam? Sem dúvida teriam que poder com eles.
—Com um desses deuses pagãos e proibidos? Meu avô sem dúvida
e meu pai é bastante provável. —Dei de ombros.
Não ia revelar a ela o quão minguado estava o poço. Para mim, me
servia de sobra. Mas para uma drenagem como a que usou meu avô na
conquista do sétimo inferno, nem de brincadeira. Para isso se necessitariam
de novo milhares de anos de laborioso dízimo—. Em todo caso —continuei
dizendo a ela—, não sei o que está fazendo me perguntando isso quando já
sabe que eu já não me encarrego, que você tem Sylth'Atz para lhe
esclarecer.
Sem dúvida era maravilhoso que meu avô tivesse passado o
problema para outro; não tanto que a presidente humana parecesse se dar
melhor comigo do que com ele e que, por isso, fizesse coisas como nos
convidar para almoçar, a mim e Atzir'itz, quando a comida acabava sendo
uma emboscada.
—Sim, bem, é ótimo que seu avô e senhor tenha claro a quem quer
colocar no comando para nos ajudar a recuperar nosso mundo, mas eu estou
mais confortável com você.
Olhei meu prato, massa à carbonara que eu estava mais tempo
mexendo com o garfo do que qualquer outra coisa. Suspirei e decidi comer
um pouco. Eu tinha trabalho a fazer, um vampiro traidor para encontrar, não
podia perder tempo assim e, no entanto, tanto ela quanto Lucas
continuavam me chamando. Falando em chamadas, foi uma que me salvou
de continuar enrolando Ainhoa. Só que o que soou não foi meu celular, mas
sim meu nome gritado em meu interior através desse cordão palpitante e
escuro que me unia com minha irmã de magia negra.
QUATRO. Marta
Em algum momento perdido nesse transcorrer de tempo sem
sentido, a moon-wolf se aproximou da janela. Com cuidado, tentando não
se colocar bem na frente, deu uma olhada. Era o plano da deusa serpente.
Não as escadas pelas quais ela tinha subido, mas sim diretamente o círculo
do altar onde em sua visão a tinham sacrificado. Lembrou das bruxas, seu
cântico ritual, os golpes das palmas de suas mãos contra o chão, seus
cabelos girando ao som tribal dos tambores. Também dessas aberrações de
escuridão, os senhores demoníacos do sétimo plano, e da laje de sacrifício
na qual a tinham imobilizado. E a serpente.... Shanetta. Só que agora só via
silêncio e um espaço vazio.
Sabia que o lugar no qual se encontrava, a prisão do deus proibido
dragão, já não era mais. Os selos tinham se rompido, por isso a divindade
tinha podido escapar. Ela, no entanto, nem tinha sido convocada à Terra
como ele nem tinha nenhum poder ou feitiço que lhe permitisse sair dessa
dimensão. Estava presa e, no entanto, tinha que se sentir agradecida pois,
por algum motivo que desconhecia, ali não sentia nem fome nem sede; caso
contrário, possivelmente já teria morrido desidratada. Assim, essa janela
que as snake tinham aberto para debilitar a prisão do deus, para falar com
ele, era o único caminho que parecia ter. Claro, podia continuar esperando
que sua senhora a libertasse. Arianhrod continuava sendo sua senhora, tinha
que ser assim porque sua terceira prova tinha ficado interrompida. Se
tivesse fracassado, agora estaria morta por causa do contrato de vassalagem.
Por isso, sabia que tinha sido interrompida, o que queria dizer que, embora
não tivesse conseguido ajudar sua senhora no ritual como supostamente
deveria ter feito, sua ajuda tinha lhe servido o suficiente para que a terceira
e última missão de vassalagem ficasse em espera. E a sentia, sentia sua
senhora viva, mas fraca; embora não pudesse se comunicar com ela e, pelo
que parecia, o canal estava também bloqueado no sentido contrário.
Esperava que fosse pelo plano, porque até então sua senhora lhe tinha
mandado instruções claras via vínculo de vassalagem, como quando no
Vaticano lhe pediu a taça.
Como cada vez tinha menos claro que esperar fosse o correto, em
algum momento de seu encarceramento, dessas horas que se encadeavam
em dias sem que ela soubesse contá-las, tinha se aproximado para olhar o
plano da serpente. Só um instante. Em sua mente as perguntas davam voltas
uma e outra vez: Será que iam resgatá-la mesmo? Se pudessem, não o
teriam feito já? Não sabia quanto tempo estava ali, presa, mas sentia como
se fossem semanas.
Indecisa, um pouco nervosa pela emoção de deixar de estar
esperando, se afastou da janela e começou a percorrer a passos rápidos sua
minúscula cela.
—Porra! —exclamou— Isso acabei de copiar da Violeta.
E começou a rir, com uma risada breve e um pouco histérica.
O fato de se atrever a elevar a voz pela primeira vez em tanto tempo
e que não acontecesse nada (não soou nenhum alarme nem nenhum inimigo
entrou pela janela para matá-la), a fez soltar outra gargalhada.
Não, não estava ficando louca; pelo menos não ainda. Mas sem
dúvida acabaria pirada se continuasse ali presa. Anos, décadas, séculos... ou
até que seu corpo caísse velho e murcho se é que nessa dimensão se
envelhecesse, porque certamente suas funções biológicas de comer e
evacuar restos de alimentos pareciam ter parado.
O que Violeta faria no meu lugar?, pensou. Dizer algo do tipo ainda
bem sobre não ir ao banheiro, porque aqui não tem. E além disso, o que
faria?
Parou. Diferente de sua amiga, ela não refletia melhor ao caminhar
com energia. Não... Se apoiou contra o muro de sua cela e se deixou
deslizar até ficar sentada.
O que faria? Estava claro: teria coragem. Violeta não pensaria em
sua segurança se tentasse sair, mas sim na de todos os que teria deixado na
Terra e poderiam estar precisando de sua ajuda. Para ser uma princesa
demônio, sua amiga era das mais leais com as pessoas que lhe importavam
e as colocava na frente dela. Bom, talvez na frente da vingança a sua mãe
não, mas quanto ao resto...
—Muito bem, Violeta, que não se diga que não me ensinou bem —
murmurou—. Daniel, espero que esteja a salvo, com minha senhora, minhas
discípulas ou com minha amiga. Em todo caso, aguente, meu amor. Vou te
procurar.
Ali, nesse plano, soou um pouco estranho o "meu amor". Mas era o
que sempre tinha sido e, até que Arianhrod lhe tinha aconselhado deixá-lo
para seu bem, o que lhe chamava um dia sim e outro também. Bom, pois o
garoto estava metido nisso até o fundo. Tinha escolhido e já não havia
volta. O mínimo que podia fazer ela era ajudá-lo, não deixá-lo abandonado
em uma Terra onde não sabia se o padre Bruno teria conseguido impedir o
apocalipse sem a ajuda das bruxas.
Pelo que sua senhora e matriarca suprema lhe tinha contado, tinha
visto os possíveis futuros e com seu ritual iam ajudá-lo para evitar uma
crise de fé. E se por causa das traidoras o ritual tinha fracassado...
Não queria nem pensar, mas tinha que fazê-lo.
Como era bom ficar esperando que a salvassem, não é? Mas... e se
fossem eles que precisavam de sua ajuda? E se Daniel, suas novas acólitas,
sua senhora e Violeta precisassem dela?
Uma nova urgência se instalou em seu peito.
E se por esperar a ajuda estivesse condenando os seus?
—Merda! —exclamou e se dirigiu à janela.
Sem se agachar, sem meias medidas. Tão bruta como quando fez
aquele talho na palma em vez de uma mínima linha de sangue. Não tinha
nenhum feitiço na manga. Nesse plano não podia fazer magia. Tinha
tentado. Tanto fazia. Aproximou os dedos da janela para ver o que acontecia
e a atravessou com eles.
Perfeito.
Dava para notar que os selos da prisão estavam quebrados.
Esticou uma perna para passá-la, pôde se apoiar no marco do portal,
e passou depois a outra. Quase perdeu o equilíbrio e o resolveu com um
salto.
Bem, pois ali estava, na parte externa do círculo de ladrilhos de
pedra. Se virou. A janela para o plano prisão continuava ali, embora não se
pudesse ver o que havia do outro lado pois estava cheio de névoa.
Perfeito.
Antes que perdesse a coragem, começou a caminhar para as escadas
pelas quais tinha subido em sua visão. Agora percebia que essa visão era
um aviso de algo que já teria acontecido. Ou seja, de que iam prendê-la e
sacrificá-la antes do dia do fim do mundo. Ou talvez justo nesse dia, sabe-se
lá. Agora mesmo não fazia sentido que a necessitassem para um ritual;
menos ainda com o templo vazio. E se em sua visão a tinham trazido de
algum modo ao início das escadas, suspeitava que ali poderia haver um
portal para a Terra.
Bem.
Só que o templo não estava vazio.
CINCO. Marta
O templo não estava vazio. Havia uma estátua, a da deusa serpente, uma criatura esculpida
em pedra três vezes mais alta que Marta, tanto que ultrapassava as alongadas colunas que bordeavam
o círculo. Seu corpo era o de uma serpente enrolada sobre si mesma, tensa e meio erguida, como se
estivesse a ponto de atacar. Sua cabeça, similar à de uma cobra, era muito maior que a da bruxa e
mostrava uns agudos colmilhos. Estava colocada na parte oposta à janela da dimensão prisão. As
escadas, se avançasse pela borda do círculo, se encontravam a meio caminho entre esta e a estátua.
No centro, claro, estava o altar.
Com cuidado para não fazer barulho e evitando se aproximar desse
altar que lhe dava tão má impressão, Marta tirou os sapatos e começou a
caminhar descalça pela borda, colada às colunas. A pedra se sentia em suas
solas estranhamente cálida e suave. Seus passos, ao caminhar, não
arrancavam nem o mais mínimo som. O silêncio era tão absoluto que quase
lhe parecia escutar seu coração, batendo rápido, por baixo do suave som de
sua respiração e do tecido da saia de seu vestido.
O vestido...
Um calafrio a percorreu. Porque se tratava do cerimonial que a
matrona da lua cheia usava nos rituais e nas ocasiões importantes. Tinha
adaptado para si dos que Sonia guardava, todos herdados. E era exatamente
a saia gótica e o corpete com os quais tinha se visto em sua visão.
Mas não havia bruxas nem ela tinha entrado ali pelas escadas, então
não. Disse a si mesma que não acontecia nada, que essa visão era algo que,
por toda lógica, já tinha evitado.
Estava tão centrada em seus pensamentos que não percebeu; mas a
estátua de pedra, a serpente, abriu os olhos e ficou olhando para ela com
uma malícia infinita. Isso sim, no momento em que a pedra que recobria a
deusa serpente começou a cair no chão, deixando livre seu corpo serpentino
de mais de quinze metros de comprimento, Marta deu um sobressalto e
ficou congelada no lugar, a meio caminho das escadas, vendo como
Shanetta acabava a careta que tinha estado congelada em rocha, essa que
puxava para trás a pele de suas mandíbulas e mostrava seus colmilhos,
prontos para atacar. Duas gotas de veneno deslizaram desde suas pontas até
o chão. A bruxa reagiu e saiu correndo a toda velocidade até as escadas. A
serpente se lançou atrás dela. As duas gotas esverdeadas tocaram o chão e,
ácidas, furaram um pequeno buraco circular no ladrilho.
A moon-wolf estava mais perto e, apesar disso, quase não consegue
chegar ao primeiro degrau antes que a gigantesca serpente. Sem pensar,
com seu coração desatado e a adrenalina gritando para que corresse por sua
vida, se lançou degraus abaixo. Shanetta chegou instantes depois e começou
a deslizar até sua presa, golpeando o balaústre com sua longa cauda. Este
tremeu pelo impacto, mas se manteve intacto. Marta percebeu que não ia
chegar. Começou a sussurrar a ladainha de um feitiço enquanto movia suas
mãos. Mas um golpe, o da cabeça da deusa contra suas costas, a fez rolar
escadas abaixo, interrompendo sua magia. Passaram uns segundos que lhe
pareceram eternos, onde a dor de seu corpo batendo nos degraus se igualava
com a certeza de que se não fizesse algo essa deusa ia devorá-la. Ou algo
pior. Quando acabou a queda, estava muito machucada e dolorida, mas pelo
menos tinha conseguido proteger a cabeça com as mãos. Tentou se levantar.
Falhou uma perna. O tornozelo... estaria torcido ou quebrado e a serpente se
erguia sobre ela, majestosa, maligna, mortal. Não a estava atacando, era
como se desfrutasse de seu medo, de sua percepção de que tudo tinha
acabado. Curiosamente, sua mente parecia ter se dissociado em duas. Uma
parte estava dentro dela, gritando que ia morrer, aterrorizada. A outra, a
instava a fazer algo. Aproveitando que Shanetta ainda não a rematava,
olhou ao seu redor. Era uma planície que flutuava no vazio, como um
campo de futebol ladrilhado e rodeado por uma negritude absoluta. Isso
precisamente não ajudava. Além disso, nem sinal de nenhum vórtice ou
portal de saída.
—Nem tente, bruxa, você essstá presa —se regozijou a serpente—.
Essta zona é parte do meu plano, meu lar. Aqui só entram as sssnake e
porque eu as ajudo.
Marta não respondeu, mas também não quis abaixar a cabeça.
Estava cansada, cansada demais de que todo mundo a tratasse como um
zero à esquerda. Talvez em outro momento teria se resignado com seu
destino, mas agora mesmo não pensava se deixar pisar. Bom, o de pisar
talvez tivesse pensado pelo seu passado, neste caso era mais esmagar,
morder e devorar.
—Você ia sser o sacrifício para me dar acessso à Terra, mas não se
deixou capturar. E, agora que o dragão essstá livre, já não precisa matar
uma matrona para me libertar. Além disso, a última cassa, que
pateticamente inapropriado. Eu quero algo maiss poderosso, como sua
amiga ssúcubo.
Enquanto a serpente falava, essa parte de Marta que continuava fria
não parava de pensar. E percebeu algo. No ritual tinha gasto seu feitiço mais
poderoso, que tinha na manga, mas não o que guardava em seu bracelete de
matrona. No plano prisão não tinha podido fazer magia e seu bracelete tinha
se sentido vazio. No entanto aqui, antes que o golpe da deusa o cortasse,
tinha sentido como sua magia se acumulava nas palavras e gestos de seu
feitiço. Tentou sondar mentalmente seu bracelete. Sim! Estava ali. Só com
um feitiço não a venceria, nem lhe daria tempo suficiente para lançar outro.
Mas pelo menos morreria lutando. Do chão, onde estava sentada, ergueu
mais a cabeça, olhando desafiante nos olhos a criatura que se erguia um par
de metros acima dela.
—Más notícias, serpente, duvido muito que possam com ela.
Iomadh saighead!
E de seus dedos saíram as setas da lua, cinco projéteis de cor osso
que iam direto para a cabeça da serpente. Esta, que não esperava isso, que
sua presa se defendesse, reagiu tarde. Duas se cravaram em sua carne para
além de suas escamas e, a terceira, em um de seus olhos, cegando-o.
Furiosa, a deusa arremeteu contra Marta, qual cobra que se lançava
para dar o golpe mortal. A moon-wolf, ferida, rolou para se afastar já que
não podia ficar de pé. Conseguiu por pouco. Se a criatura tivesse mordido
essa perna que foi a última que tirou do meio, a teria arrancado. Tanto fazia.
Era o final. Marta sabia. Nos breves segundos que lhe restavam tentou
sentir paz, saber que tinha feito o que tinha podido, lutado até o final.
Mas enquanto a cabeça de Shanetta se lançava de novo contra ela
algo lhe gritou para lutar! Era absurdo, pois não lhe restavam mais feitiços
na manga e a deusa não ia lhe dar o tempo que precisaria para lançar sua
magia do zero. No entanto, ignorando os fatos, a voz de Kendria voltou a
gritar em sua cabeça: lute! Foi estranho, se sentiu estranho, como se o
espírito de sua antepassada tivesse conseguido romper a distância e a
lonjura para lhe dar o conselho. E Marta, instintivamente, obedeceu. Ergueu
a palma de sua mão contra a cabeça do monstro que se aproximava e, sem
duvidar, exclamou as palavras do feitiço de cegueira, gainne gealaich. Não
o tinha na manga, não o tinha preparado. Esse feitiço precisava de minutos
de minucioso recitar acompanhado de gestos e contorções de seu corpo. E,
no entanto, os colmilhos da besta ficaram congelados a poucos centímetros
de seus dedos.
Marta também, por uns instantes, ficou boquiaberta. Mas não
pensava desperdiçar o presente que sem dúvida Kendria acabava de lhe dar.
Tinha segundos antes que a deusa deixasse de estar imobilizada, isso se não
fosse menos. Não tinha armas, mas havia um feitiço, outro dos de mais
poder do grimório, que tinha estudado. Confiando que Kendria continuasse
ajudando-a, ergueu ambas as palmas ao céu e sussurrou:
—Paca mhadadh-allaidh làn ghealach.
Matilha da lua cheia.
Desse céu estranho e alienígena que havia sobre sua cabeça
começaram a descer uns espíritos cuja forma era a de lobos brancos que
pareciam estar feitos de retalhos de alma e de névoa. Quando suas patas
tocaram o chão, sua forma se solidificou, sem deixar de ser de um branco
fantasmagórico. Rápidos, se lançaram contra os olhos e o corpo da serpente.
Lhe cegaram o segundo olho e arrancaram pedaços de sua carne resistente
antes que esta deixasse de estar sob o feitiço que a tinha imobilizado.
Depois, a deusa sibilou de dor e raiva e lutou contra as criaturas. Mas estava
claro que estava perdendo. Com a mordida de seus colmilhos e seu veneno,
tinha conseguido acabar com um dos lobos, o qual desapareceu se
dispersando na mesma névoa que o tinha formado. Mas havia cinco mais e
ela estava cada vez mais ferida. Diante dos olhos da matriarca da lua cheia,
que estava sendo testemunha do poder que tinha tido sua casa, de um feitiço
capaz de convocar a própria matilha de caça de sua deusa Diana, a criatura
começou a serpentear escadas acima, com dois lobos agarrados a sua cauda
com suas mandíbulas fechadas e o resto seguindo-a entre dentadas e
arranhões. Shanetta, cada vez mais devagar por suas feridas, conseguiu
subir as escadas e voltar a sua posição original, a da estátua, onde
imediatamente se converteu em pedra. O chão estava cheio de um rastro de
sangue esverdeada e enegrecida, que devia ser ácida por como tinha
corroído o chão. Os lobos soltaram a carne resistente antes que a pedra os
recobrisse também e, orgulhosos inclusive os que estavam feridos,
desceram as escadas até a bruxa que os tinha chamado. Um deles, o maior,
lambeu o sangue de seu rosto e ficou olhando para ela. Por um momento
Marta pensou se essa saliva poderia conter magia curativa e sarar as feridas
que ali tinha feito apesar de ter se coberto com os braços. Mas não, tinha
sido apenas um gesto amável. Se perdeu em seus olhos de névoa e, então,
sentiu uma voz em sua cabeça, estranha e lupina.
—Innnnnndigooooo —uivou a voz—. Respeeeeeitooooo.
E imediatamente os lobos elevaram os focinhos ao céu, em um uivo
conjunto, e desapareceram para cima em forma de retalhos de névoa.
Marta estava boquiaberta, totalmente pasma. Tinha convocado os
lobos que acompanhavam sua deusa na caça e estes acabavam de chamá-la
de índigo. Acaso tinham podido se comunicar com Kendria através de sua
mente? Mas sabia que não, que tinham chamado isso a ela.
Arianhrod lhe tinha contado que umas poucas bruxas de grande
poder, ao longo da história, tinham sido capazes de fazer feitiços como se
estivessem na manga, sem ter que fazer primeiro os longos gestos e recitar a
ladainha mágica.
Índigo...
Não, não podia ser. Tomara! Como todas as garotas das quais
tinham abusado, tinha uma parte de si que sonhava em ser especial e super
poderosa, o suficiente para se livrar da dor. Mas tinha aprendido que a dor
psicológica dependia do que uma deixava que lhe afetasse as coisas e, a
física, era algo que se tinha que superar. Daí que tivesse dado um passo à
frente para tomar o controle de sua casa, em vez de entregar o grimório a
Sonia. Conseguir o grimório tinha sido arriscado, tinha colocado sua vida e
a de sua amiga em perigo. Isso... ter de repente esse poder, se sentia como
trapacear.
Será que ela ia ser mesmo tão especial?
Ora, vamos!
Essas coisas aconteciam a uma entre um milhão, não a ela.
Embora, uma voz animada em sua cabeça, sua própria voz, lhe
dizia:
E por que você não pode ser essa uma? Alguém tem que ser.
Sacudiu a cabeça. Estava perdendo um tempo valioso. Se tinha
disparado algum alarme, as snake poderiam estar vindo. Ou talvez a deusa,
na forma de pedra, se regenerasse de suas feridas e em breve voltasse atrás
dela.
Como tentou outra vez se colocar de pé e lhe doeu demais,
engatinhou com dois braços e uma perna buscando onde podia estar a saída.
Passaram minutos que lhe pareceram eternos. Não encontrou nada. Mas
todas as bruxas, inclusive as das casas menores, tinham um repertório de
feitiços comum e básico. Um destes era o de sentir a magia. Começou a se
mover e a sussurrar a ladainha do feitiço, mas se interrompeu, dizendo a si
mesma:
—Tonta, tente.
E o fez, tentou sussurrar apenas as palavras finais. Funcionou.
Detectou que havia muita magia escadas acima e bem na sua base. Se
aproximou dali. Era sem dúvida uma porta, não fechada de todo. Alongou
os dedos, para ver se podia interagir com os fluxos de energia mágica que
lhe mostrava o feitiço. Só tinha que forçá-la a se abrir. Sim... um pouco
mais... Sim, consegui!
Sorrindo, entrou no portal.
E apareceu no sancta sanctorum do porão da casa snake mais
poderosa, a câmara onde realizavam os rituais.
Mais uma vez, não estava sozinha.
DEIS
—Violeta, venha me ver já.
Benditas palavras da minha irmã de magia negra que me salvaram
do incômodo almoço com Ainhoa. Senti um puxão no meu peito e sua voz
soou forte e clara na minha cabeça. De fato, como não esperava (nem sabia
que podia fazer algo assim), não pude evitar soltar meu garfo, que deslizou
entre meus dedos e começou a cair em direção ao prato de macarrão.
Recuperei-o quase no ato ao mesmo tempo em que franzia o cenho. Atzir'itz
tinha acabado de ficar me olhando.
—Sinto muito, tenho que ir. É urgente —disse a eles enquanto me
levantava.
—Aconteceu algo ruim? —preocupou-se a presidente.
—Não, não se preocupe. Urgência familiar.
Me despedi rapidamente e saí da sala taqueando com minhas botas,
a passo ligeiro, enquanto Atzir'itz me seguia.
—O que aconteceu? —me perguntou uma vez fora do edifício.
—É Arianhrod. Acabei de escutá-la em minha mente, algo novo, e
parece que é urgente.
Porque eu, até agora, puxões desse vínculo que nos unia, falar com
ela confiando que me ouviria... sim. Palavras tão clarinhas, não.
—Vou com você.
Montamos os dois no meu Lamborghini vermelho e acelerei tudo o
que o trânsito me permitia até o apartamento que tinha alugado para minha
irmã de magia e o namorado de Marta.
Veja, não era que a bruxa não tivesse dinheiro, que pelo visto tinha e
muito, mas sim que queríamos evitar que pudessem averiguar onde estava
pelos movimentos de sua conta. Moradia própria em algum lugar secreto,
certamente não tinha, porque quando se tornou a matriarca suprema sua
casa passou a ser o Samhain. Quando as bruxas deram tanto ela quanto
Daniel como mortos, o melhor tinha sido procurar um lugar discreto para
que se escondessem, com o que o apartamento de Daniel ficava descartado.
Por isso o de alugar um apartamento para eles em um dos bairros
periféricos e, quando saíam, o faziam mudando seu aspecto à maneira
humana: perucas, roupas, maquiagem... Se usassem magia, um simples
feitiço de detectar a magia realizado por alguém com mais poder que
Arianhrod os delataria. Alguém com mais poder que a matriarca suprema?
Bem... há uns dias eu teria rido disso, mas desde o juízo final tudo tinha ido
por água abaixo. Suas inimigas a tinham dado por morta e possivelmente
uma das matronas snake teria tentado se coroar como a nova líder do
matriarcado. Somando os rituais realizados aos deuses proibidos e esse deus
dragão que tinham invocado, era possível que alguma de suas inimigas
pudesse superar Arianhrod. Isso que, sua deusa Morrigan de jeito nenhum a
tinha deixado de lado.
Enfim... As bruxas tinham um grande poder mas dependiam de seus
deuses. Os demônios da qualidade do enxofre de seu plano e eu, uma
súcubo mestiça, da boa vontade do meu avô na hora de abrir para mim a
comporta ao poço de todas as almas. Sinceramente, não saberia dizer o que
era melhor.
Quando chegamos a nosso destino, em pouco mais de doze minutos,
deixei meu carro estacionado na rua em frente ao bloco de apartamentos,
toquei a campainha e nos abriram no ato. Após subir pelas escadas (em
nossa velocidade, era mais rápido que esperar o elevador), a anciã estava
nos aguardando com a porta aberta.
—Rápido, entrem —nos urgiu.
—O que aconteceu? —perguntei a ela enquanto Atzir'itz fechava a
porta atrás de si.
A antiga matrona parecia ter envelhecido uma década desde a
traição de sua filha. Suas rugas tinham se acentuado, gravando sulcos mais
profundos; no entanto, eu sabia que continuava sendo forte e poderosa.
—É Marta, ela voltou. Posso senti-la. Chamei você assim que ela
apareceu no plano da Terra. Está ferida, lutou e, após me comunicar com
ela, sei que se encontra dentro da casa Esteno.
Esteno, a que possivelmente fosse a nova líder das bruxas traidoras.
—Ela precisa de nós? —me tensei.
Sim! Está viva, eu sabia! Minha Marta é dura demais para se deixar
matar facilmente.
—Sim.
—Vamos.
A morrigan moveu sua mão e, em meio ao ondular da manga de seu
vestido, nós três nos teletransportamos.
SETE. Marta
Marta não estava sozinha. Havia duas bruxas, duas servas da
matrona snake, na câmara.
Assim que apareceu pelo portal, ambas a olharam sobressaltadas.
Primeiro, porque quando sua senhora as tinha mandado limpar os restos do
último ritual não lhes tinha dito que estivessem esperando visita. Depois,
porque a que estava diante delas não era uma snake e sim a desaparecida
matrona da casa da lua cheia.
Marta, por um momento, ficou como elas, incapaz de reagir. Mas de
imediato se recuperou e ergueu uma mão em direção às servas.
—Iomadh saighead —pronunciou e as pequenas setas saíram de
seus cinco dedos para ir direto atrás de suas inimigas.
Três se cravaram no pescoço de uma delas, fazendo-a gritar de dor e
rompendo sua congelada surpresa. As outras buscaram também a garganta
da segunda bruxa, mas esta conseguiu se virar a tempo e, embora ambos os
projéteis tenham se curvado para alcançá-la, foi contra seu ombro que
impactaram.
De imediato, as serpentes de ambas as snake começaram a ganhar
vida enquanto um forte golpe de telecinese moveu uma cadeira que
impactou contra Marta e a impulsionou para trás. Por sorte para ela, o portal
tinha se fechado à sua passagem e atravessou o espaço inócuo onde a porta
dimensional tinha estado.
—Gainne gealaich! —nem pensou, ignorando a dor de sua barriga e
quadril direito pelo golpe.
Se de verdade podia usar seus feitiços como se estivessem na
manga, pensava continuar abusando enquanto funcionasse. De imediato,
ambas as inimigas ficaram imobilizadas, serpentes de suas tatuagens
incluídas. Marta deu uma olhada ao seu redor e observou que sobre a mesa
que fazia de altar, junto com umas velas e essências, estava a faca ritual.
Pegou-a. Se aproximou então da primeira das duas, a que não estava ferida,
e a apoiou contra sua garganta.
Hesitou.
Ela não era uma assassina a sangue frio. Mas se não o fizesse a
matariam. Sem dúvida, Violeta já teria cortado o pescoço das duas.
Apertou um pouco contra a pálida pele. Começou a se formar um
fiozinho de sangue.
—Maldição —xingou entre dentes. Não podia fazê-lo, não assim.
O feitiço não tinha muito tempo restante. Lançou-o de novo.
Funcionou. Percorreu com a vista a sala buscando algo pesado mas
manejável. O atril onde colocavam o grimório snake durante os rituais
serviria. Agarrou-o e o estampou contra a cabeça das duas. Em seguida,
aguardou que passasse seu feitiço e observou que estavam inconscientes.
Deixou escapar o ar que tinha estado contendo e buscou um modo de sair
dali.
Quanto às bruxas, seriam castigadas por seu fracasso. Esperava que
não com a morte ou a servidão eterna como fantasmas, mas, se fosse o caso,
já não seria por sua mão.
Saindo pela porta dessa câmara, entrou em um corredor estreito.
Percorreu-o e chegou a uma porta fechada e a umas escadas que iam para
cima. Essas escadas a levariam à rua, mas passando primeiro pelo resto de
uma casa que, possivelmente, estava cheia de snakes. Por enquanto, parecia
que podia fazer feitiços sem tê-los na manga, mas não confiava. Não tinha
claro se era um favor pontual de sua deusa ou se de verdade ela tinha esse
nível de poder. Tampouco sabia se poderia fazê-lo com qualquer tipo de
feitiço (ritual imaginava que não, pois as bruxas que ao longo da história
tinham podido fazê-lo, nunca tinha sido com rituais) ou havia um limite. O
limite poderia estar no poder do feitiço ou na energia própria que ela ia
gastando. Por isso, decidiu não se arriscar com as escadas e tentou com a
porta fechada. Esta dava para outras escadas, que neste caso desciam.
Seguiu-as, curiosa do que podiam guardar em um porão inferior ao de sua
câmara de rituais. A resposta foi simples: celas. Uma sala ampla com zonas
limitadas com grades onde havia múltiplas bruxas apertadas. Claramente,
essas celas não estavam projetadas para abrigar tantas. Ao descer ali, ao
encontrá-las, aconteceram duas coisas. A primeira, que muitas delas a
reconheceram, surpresas, e a esperança se avivou em seus olhos quando lhe
pediram ajuda. A segunda, que embora não houvesse carcereiro sim havia
câmeras e feitiços e pela casa começou a soar tanto um alarme humano
como um mágico, ativado pela presença nesse andar de alguém que não
levava em suas roupas o selo que impediria que se ativasse.
De imediato, Marta correu até a porta, para bloqueá-la de algum
modo. Mas nem tinha chave nem algum ferrolho que pudesse colocar.
Tampouco havia nenhum móvel que pudesse arrastar e colocar na frente.
Nem nada nos feitiços que tinha estudado do grimório que pudesse lhe
servir como barreira. Então fez o que lhe saiu de maneira instintiva: pedir
ajuda. O qual foi fazer caso por fim a Arianhrod, que desde que a tinha
sentido de volta estava tentando em vão se comunicar com ela. Não tinha
querido incapacitá-la para isso, como tinha feito no Vaticano para pedir-lhe
a taça, já que imaginava que a moon-wolf não estava a salvo.
—Senhora? —perguntou-lhe Marta mentalmente.
—Finalmente! —soaram aliviadas as palavras em sua mente—.
Posso sentir sua urgência. Descreva onde está.
—No porão de uma casa snake, a que tem um portal para o plano de
Shanetta. Desci abaixo, para umas celas que têm cheias de bruxas. Acabam
de me pegar, estão vindo atrás de mim.
—Aguente, Violeta está chegando. Em breve ajudaremos você. Não
bloqueie este vínculo, vou precisar dele para o feitiço de teletransporte.
Esse feitiço era coisa de morrigans, igual a telecinese era o presente
da deusa serpente às snake.
Marta assentiu, embora Arianhrod não pudesse vê-la, e buscou o
modo de abrir as celas. Não havia chaves, nem buraco para esta nas
fechaduras.
—É eletrônico —disse-lhe uma das bruxas presas, uma gilean.
—Não tenho nenhum feitiço elétrico que possa abri-las —
murmurou Marta mais para si que para elas—. A cavalaria está a caminho.
Aguentem.
—Aguentar? —ironizou uma das presas—. Estas celas estão seladas
para que não possamos usar magia. É você sozinha contra elas.
—Bem, pois eu sozinha.
Começou a gesticular e sussurrar as palavras de seu feitiço de
cegueira, por via das dúvidas. Não lhe deu tempo de terminá-las. Os passos
que se escutavam cada vez mais fortes chegaram ao outro lado da porta.
Um golpe de telecinese a abriu, arrancando-a de suas dobradiças e
lançando-a para frente. Marta interrompeu seu feitiço para saltar para um
lado, esquivando-a por pouco. A porta perdeu momento e acabou caindo
contra o chão, sem chegar a bater nas celas da parede oposta.
Múltiplos golpes de telecinese tentaram em vão arremessar Marta
contra o chão. Ela tinha mais poder e, por isso, essa magia não a afetava de
um modo direto.
—Corpo a corpo! —gritou a líder das bruxas snake que estavam de
guarda em sua casa, convocando suas serpentes e entrando a toda
velocidade na sala, faca na mão.
Marta se recuperou de sua surpresa e nem pensou. Estendeu as mãos
diante de si e pronunciou as palavras finais do feitiço que as imobilizaria.
Funcionou.
Com todas.
Foi alucinante, era como trapacear.
Normalmente, esse feitiço você podia ter uma vez na manga e,
passado o tempo do atordoamento, seus inimigos continuavam lutando. Se
podia estar lançando-o o tempo todo, aguentaria sem problemas até que
viesse a ajuda. Se preparou para quando despertassem. Restavam segundos.
Alongou as mãos. Pronunciou as palavras.
Não funcionou.
Tentou com as lobas, com as setas, nada.
Onze snakes muito zangadas estavam entrando na sala. Três delas
muito perto, com suas serpentes ondulantes praticamente a ponto de mordê-
la.
Além disso, desde que tinha lançado o último feitiço se sentia muito
fraca, como se tivesse abusado demais da magia.
Preço?
Seus feitiços tinham preço?
Sua deusa Diana era benevolente, só cobrava preço nos rituais. No
entanto, sentia que não aguentava mais, que ia desmaiar.
Justo nesse momento escutou uma súbita urgência em sua cabeça,
para que aguentasse, e segundos depois ao seu lado apareciam sua senhora,
sua melhor amiga e o bonito íncubo que lhe tinha designado seu avô.
Perdeu a consciência.
O chão a recebeu, frio e hostil.
OITO
Bruxas snake. Treze.
—Vá pegar as do fundo —indiquei a Atzir'itz enquanto sacava
minha adaga e me lançava atrás das três que estavam cravando as serpentes
de suas tatuagens na carne de Marta.
Tínhamos acabado de aparecer a menos de meio metro dela e eu
tinha acabado de vê-la cair no chão. Mostrava alguma contusão, mas nada
que parecesse ser grave. Sem perder um instante, dei rápidos talhos com
minha arma às serpentes, cortando suas cabeças, as quais se dissolveram
sobre a pele da minha amiga, deixando abertas as feridas de suas mordidas.
Os corpos se retraíram até as tatuagens das bruxas, onde se recuperariam
enquanto eu não rasgasse esses desenhos. Uma delas gritou pedindo ajuda
às suas. Três mais se viraram para mim.
O de rasgar tatuagens, já tinha feito uma vez. Não gostavam das
cicatrizes? Sorri e me lancei, não atrás das tatuagens da mais próxima, mas
sim de seu corpo. Para drenà-la com minha adaga. Um golpe forte me
arremessou para a direita, batendo-me contra as grades de uma das celas.
Eu costumava levar minha adaga antimagia sempre comigo, então estava
claro que a da telecinese era mais forte que a bruxa que a tinha encantado.
Sem problemas, a contusão no meu ombro se curaria rápido e as seis snakes
que estavam se lançando contra mim, facas na mão, não eram nenhuma
ameaça desde minha maioridade. Com meu acesso ao poço aberto de par
em par, dancei entre elas. Parei seus golpes, lancei os meus que, em maior
velocidade que os seus, sim acertavam. Em pouco mais de um minuto
estavam as quatro mortas no chão. Um par delas tinha me lançado seus
feitiços na manga. Ou talvez as seis, porque se tinham guardado o de
veneno nem tinha percebido. Por ser meio demônio, era imune. Em algum
momento da luta, da terra saíram raízes fantasmagóricas prontas para me
imobilizar. Foi fácil esquivá-las. Ao mesmo tempo, uma delas mudou suas
mãos para garras e ficou mais rápida. Não o suficiente. Uma vez que as
tinha derrotado, busquei mais inimigas mas não as havia. Atzir'itz tinha
acabado com cinco e minha irmã de magia, após ir proteger Marta, com as
duas que a tinham ameaçado. Embora estas últimas continuassem com vida;
inconscientes, isso sim.
—Você as deixa com vida? —estranhei.
—Não são demônios.
—Não, são piores. São traidoras.
—Na minha cultura todas somos em algum momento.
—Talvez às suas superiores para conquistar seu posto, mas não à sua
magia. Abriram selos e chamaram quem estava proibido.
Arianhrod me olhou muito séria, parecia cansada, quase anciã; um
aspecto dela que tinha se cuidado muito bem de não me mostrar ou ao
mundo até agora.
—Servimos a quarenta e nove deuses. Eu entendo que há sete que
não devem ser incomodados, mas não posso julgá-las por acreditar o
contrário. Em todo caso, Violeta, é muito provável que as suas as castiguem
com a morte.
—Isso é verdade —assenti—. Mas não antes que digam a sua
matrona que você está viva.
Voltou a camada de poder venerável que costumava recobrir minha
irmã, dando solenidade às suas palavras.
—Que assim seja. Que as que não estão de acordo com a nova
ordem que pretendem ter implantado saibam que continuo lutando.
Então, das celas que nos rodeavam, as demais bruxas começaram a
chamá-la, a pedir-lhe ajuda, a dizer-lhe que tinham se negado a jurar
obediência às snake, que sua deusa lhes tinha dito que a autêntica matrona
continuava com vida. Claro, tinham guardado o segredo apesar de que
várias tinham morrido torturadas.
Arianhrod, majestosa, se aproximou das celas e começou a sussurrar
as palavras de um feitiço. Enquanto o fazia e as rendas de suas mangas se
moviam varrendo o espaço ao seu redor com uma graça que nada tinha a
ver com sua idade, eu fiz um gesto com a cabeça a Atzir'itz. Que vigiasse a
entrada, não fossem vir mais bruxas. E, agora que pensava, se tinham
câmeras não precisavam desse par de snakes inconscientes para que lhes
contassem nada. Depois, me aproximei da minha amiga. Estava deitada no
chão. Me agachei e a meio incorporei, elevando sua cabeça e seus ombros:
não reagia. Por sorte, vi que sua respiração era pausada e que seu peito batia
com normalidade. Então, Arianhrod acabou seu feitiço e um arco de
eletricidade saltou de seus dedos a todas as celas, atacando a eletrônica que
as mantinha fechadas. Como se fossem uma, todas elas se abriram de golpe.
Mais de duas dúzias de bruxas saíram e se inclinaram respeitosas diante de
sua matriarca.
—Mmm... sinto interromper, mas temos que ir —intervim—. Estas
snake, o que seriam, as que estavam de guarda na casa? Não tinham magia
poderosa e proibida e eram duras, então não quero dar tempo para que
venha quem sim a tenha. Vamos? —Fiz um estalo com os dedos, me
referindo a que minha irmã nos tirasse como tínhamos entrado.
Ela me olhou e negou com a cabeça.
—A deusa me presenteia o poder do teletransporte, igual Shanetta
faz com a telecinese com suas acólitas. Mas somos muitos. Ou elas me
ajudam a fazer um ritual, coisa que não temos tempo, ou seu guarda-costas
nos abre um vórtice para o sexto inferno.
O aludido me olhou divertido. Sua expressão parecia dizer "guarda-
costas?". Sorri para ele. Claro, como meu avô o tinha mandado comigo,
fazia sentido que o associassem com esse papel. Era... complicado.
Sobretudo agora que sabia que tinha parte humana.
—As cativas podem lançar um feitiço para aguentar a respiração no
meu plano paterno? —perguntou ele.
—Sim. Uma vez fora das celas já podem fazer magia.
—E podem lançar também um para Marta?
—Claro.
—Muito bem então. Você faz as honras, guarda-costas? —
provoquei.
Pode ser que não tivéssemos dormido juntos, mas já não era meu
subordinado e tinha surgido certa camaradagem entre nós.
—Sempre como desejar.
Seus olhos se cravaram nos meus, insinuantes, e me estremeci.
Observei como tomava enxofre de um frasquinho e cuspia no chão. Se
havia alguma proteção na casa contra isso não funcionou, pois o vórtice
dimensional apareceu diante de nós. Peguei minha amiga nos braços e me
enfiei no lago do sexto plano. Minha irmã e as bruxas nos seguiram, o
íncubo por último. Uma vez no ilhote, ao vórtice da árvore. Ah... que pena
não ter meu Lamborghini estacionado perto. Certamente, com meu celular
encharcado, impossível chamar um táxi. Tivemos que andar um bom
pedaço por caminhos e campos.
—Estarão a salvo em suas casas? —perguntei a Arianhrod, me
referindo às cativas.
Estava ficando um pouco confusa com as bruxas. Minha irmã
percebeu e me esclareceu:
—A maioria das localizações das quarenta e nove casas são secretas,
por aquilo de que senão seria fácil demais para suas rivais atacá-las. Agora
mesmo, a Espanha está sob nosso controle, o do seu avô e Ainhoa. Por isso,
várias das que me atacaram abandonaram o país, para fundarem novas
sedes na França pelo que pude averiguar. No entanto, como de muitas de
suas casas não sabemos onde estão, não foram todas embora. Daí que eu
não soubesse onde estava a casa snake com as celas até que Marta me disse
que era onde ela se encontrava e me iluminou o caminho para poder nos
teletransportar através de nosso vínculo.
—E o de você e Daniel estarem em um apartamento anônimo? —
franzi o cenho, não me encaixava direito.
—Quando vocês nos encontraram, em pleno apocalipse, ainda não
estava muito claro o equilíbrio de poder e se por mostrar onde estávamos
poderiam nos atacar. Mas já se passaram quinze dias e agora mesmo
acabamos de resgatar várias das nossas. Já podemos nos defender. De fato,
vou voltar ao Samhain, para consertar os estragos e reconstruir o
matriarcado.
—As traidoras não fizeram o mesmo? Por acaso Esteno, a matrona
snake, não se declarou a nova matrona suprema?
Arianhrod me olhou e sorriu. Pude ver orgulho e sabedoria através
do cansaço que tornava mais lentos seus passos.
—Eu sou a matriarca suprema, enquanto não morrer, não podem me
substituir. Quando perceberam que tinham me dado por morta mas não
estava, você já tinha chegado e me ajudado a me esconder. Claro, sou o
primeiro objetivo delas. Mas agora que tenho apoios, que posso renovar
meu círculo de poder, posso enfim dar a cara e me defender.
—Conte comigo, beolach —interveio Marta que, em teoria
inconsciente em meus ombros, tinha acabado de despertar e estava seguindo
algo da conversa.
—Olá —cumprimentei com um sorriso enquanto parávamos e a
deixava com cuidado no chão—. Você está bem?
—Sim. Eu... desmaiei; mas vejo que a cavalaria veio ao resgate —
sorriu para mim.
—Sempre.
Nos olhamos nos olhos e separei minhas mãos de seus ombros.
Queria saber se podia caminhar.
—Você se vê com forças? Estamos a caminho de casa.
—Sim, acho que sim. E as minhas?
Meu rosto se nublou e ela notou.
—Suas melhores bruxas, aquelas que você levou ao Samhain, todas
morreram, sinto muito. —Vi a tristeza em seu rosto mas, de algum modo,
parecia que esperava—. Às demais moon-wolf encontramos escondidas e
dispersas por Zaragoza. Eram bruxas que, ou não tinham muito poder, ou
tinham sido velhas demais para serem treinadas com o novo grimório, além
de várias meninas e uma adolescente. Nove no total. As demais, ou não
tinham querido abandonar sua casa da lua cheia que tinha sido arrasada
também, ou as tinham encontrado e eliminado. O grimório, por sorte, estava
a salvo. Eu me encarreguei de reuni-las e lhes pôr custódia demoníaca.
—Não... —notei a dor em sua voz. Eu a entendia. Apesar de que
nunca a tinham aceitado muito como acólita, eram sua responsabilidade
desde que se fez sua matriarca—. Eu... falhei com elas.
—Não, Marta. —Arianhrod pôs uma mão sobre seu braço—. Não é
assim. Se alguém falhou com vocês esse alguém sou eu, e com todas; mas
não faz sentido se recriminar pelo que foi ou o que pôde ter sido, já que o
dragão moveu os fios do destino de tal modo que qualquer coisa
relacionada com nossas inimigas não aparece nas vidências. Essa magia...
foi proibida por algo. Então alegre-se pelas que restam vivas e proteja-as até
que possam lutar a seu lado. Quanto a seu oferecimento, Marta, me honra.
Não deveria continuar sendo minha serva, não com os poderes de sua
linhagem de sangue reavivados em você. Mas até que não cumpra com o
terceiro trabalho não posso liberá-la. Tampouco posso encarregá-la de um
simples, a magia de servidão não funciona assim.
Eu tinha acabado de me perder. Poderes reavivados? O que tinha
acontecido no sanctasanctórum das bruxas no dia do juízo final? Tinha
perdido mais do que achava.
—Você realmente quer me ajudar a restabelecer a ordem? —estava
dizendo minha irmã de magia, muito séria.
—Sim —nem hesitou. Essa era minha bruxa!
A julgar pela carnificina que tinha se montado ela sozinha antes que
chegássemos, tinha mudado e muito. Que era mais forte, eu esperava. O da
magia... que diabos tinha escrito nesse grimório da lua cheia? Porque fosse
o que fosse a tinha feito capaz de poder ela só contra muitas.
—Então, seu terceiro trabalho é acabar com a nova líder inimiga, a
que pretende se erigir em matriarca suprema —se referiu a Esteno—. Você
a mate ou pereça em outras mãos, tem sete semanas para acabar com sua
vida. Toda ajuda que eu possa proporcionar, só tem que pedir.
Notei como as matronas das celas, que tinham estado falando entre
elas enquanto caminhavam por trás, tinham ficado totalmente expectantes e
em silêncio ao escutar o do terceiro trabalho. Me virei e lhes dei uma olhada
rápida. Pareciam surpresas. Normal... não todos os dias, no meio de um
passeio por uma estrada rural, se fechava algo tão sério como se nada. A
vida de Marta e sua liberdade estavam em jogo. Não perguntou o porquê
das sete semanas e, como todos tinham ficado em silêncio, eu sim intervim:
—O que é isso do novo poder de Marta?
A aludida, que tinha se posto ao nosso lado enquanto falava com sua
senhora, enrubesceu e não disse nada. Lhe dava vergonha?
—Se trata de um ressurgimento de poder na linhagem das que
adoram a deusa Diana —me respondeu Arianhrod—. Uma índigo, como as
bruxas originais de milhares de anos atrás.
A matriarca gilean, que tinha visto a batalha, assentiu com respeito.
—E desde quando você sabe? —Me virei para minha amiga.
—Eu... desde agora pouco, desde que escapei do plano prisão do
deus dragão, embora soubesse que algo estranho acontecia pelas palavras de
minhas antepassadas e por frases que às vezes escapavam da minha
senhora.
—Eu sabia —confirmou esta—, mas não podia lhe dizer. Minhas
visões do futuro onde lhe contava se somavam a todas aquelas que
acabavam com nossa morte no dia do juízo final. Muitas delas com a sua
antes, sacrificada como oferenda pelas snake às quais enfrentava ao se
inteirar de quem era.
—Como em minhas visões no plano de Shanetta? —perguntou
Marta.
—Sim. —Isso pareceu lhe tirar um peso de cima à minha amiga.
—Minha senhora, todo meu novo poder está a seu serviço. Lhe
entregarei a morte de Esteno.
—E enquanto isso, vamos refazer o matriarcado, onde você vai estar
como uma das matriarcas. Katrina das gilean e Ana das taalam, seus postos
ali, evidentemente, nunca deixaram de ser seus. Então três novas
matriarcas, além de Marta, têm que ser nomeadas como membros do
matriarcado.
Ana era a matriarca de uma casa que se formou séculos atrás quando
a filha segunda de uma matriarca morrigan conquistou outra casa menor e a
usou como trampolim para subir na hierarquia. Passaram a adorar o
elemento terra, ou à deusa mãe como elas diziam.
—Uma pergunta. As morrigan... —duvidei por um momento, não
quis mencionar sua filha para não ser muito doloroso—, a matrona Lídia,
também está com as snake?
—Sim —foi a escassa resposta de Arianhrod.
Então ficávamos só com as gilean, as taalam e um par de casas
menores cujos componentes também tinham sido encarcerados.
Retomamos o passo. Em breve chegaríamos a uma zona com
moradias rurais onde poderíamos pedir que nos deixassem chamar uns
táxis.
Minha amiga podia-se ver que estava ao mesmo tempo triste,
irritada e resoluta. Eu a entendia. E a matriarca snake poderia ter todo um
deus dragão ao seu lado, mas eu não pensava abandonar Marta. Na medida
em que minha nova missão me permitisse, claro.
Porque eu tinha estado pensando e possivelmente era eu a que tinha,
desta vez, que pedir ajuda a ela.
NOVE
Muitas das bruxas das três casas gilean que havia entre as quarenta e
nove, assim como das duas taalam, tinham conseguido se esconder e não
tinham sido encarceradas. Por isso, uma vez que as presas tiveram acesso a
um telefone, a primeira coisa que fizeram foi avisá-las de que fossem ao
Samhain, em cuja planta térrea, a do bar, se apertaram todas. Atzir'itz
convocou os íncubos que meu avô tinha posto a seu serviço e eu Lucas para
pedir-lhe toda a ajuda que pudesse me dar. Pelo que Arianhrod tinha
acabado de nos contar, até que não restabelecessem as quarenta e nove
casas, seriam vulneráveis.
E depois por que não? Porque com seu círculo de poder
restabelecido estariam em condições de lutar. Quanto a de onde iam tirar
quarenta e nove casas, estava claro: as bruxas que continuavam fiéis à
minha irmã, incluídas as moon-wolf sobreviventes, iam ter que fundar
casas, ainda que estas só contassem com duas ou três integrantes. As
traidoras, ou tinham fugido da Espanha ou tinham se escondido. Esta terra
estava carregada de poder, não iam querer abandoná-la tão facilmente. Eu
mesma, Atzir'itz e toda a ajuda que pudemos encontrar tanto entre os
íncubos como entre os lobisomens, guardamos o Samhain enquanto as
bruxas se reuniam e organizavam. Começaram também a realizar
cerimônias de investidura e rituais sem pausa. E as horas foram passando,
lentamente.
Vários íncubos e vampiros estavam apostados em pontos
estratégicos de entrada ao polígono industrial onde se encontrava o
Samhain, com Lucas em pessoa custodiando a porta que dava para a rua. Eu
e Atzir'itz estávamos em um telhado de um galpão próximo, com umas
vistas ótimas à entrada do bar e aos locais da mesma rua. Em uma noite
normal anterior ao dia do juízo final, conforme o tempo passasse e fosse
escurecendo, teriam começado a abrir os bares próximos e os humanos
teriam acudido à rua, ainda que nenhum tivesse podido acessar o Samhain
pelos dois lobisomens que não lhes teriam permitido a entrada. Agora, no
entanto, tinha se feito noite fechada e a rua estava silenciosa como um
túmulo. Já não havia nenhum pub aberto e os humanos tinham aprendido a
não abandonar a segurança de suas casas após o anoitecer. Cansada de levar
tantas horas sem me mover, decidi dar uma pequena volta de
reconhecimento pela zona, ainda que fosse saltando de telhado em telhado
com a ajuda de minhas asas.
—Te acompanho —sussurrou-me Atzir'itz.
—Vamos —indiquei a ele.
Me estiquei um pouco ao me levantar, levava tempo demais sentada.
Ele me olhou, como não, com um brilho âmbar em seus olhos. Eu o ignorei.
Sabia me esticar de modos muito mais insinuantes mas ao íncubo dava no
mesmo. Poderia ter tido na frente uma stripper dançando e teria continuado
me olhando enquanto me desentupia de um modo dos mais práticos e
normais. Talvez, só talvez, poderia me acostumar a isso. A esse nível de
interesse por parte do meu companheiro. Mas não era algo que quisesse
nem cogitar até passar página com esse traidor do Casio.
Me irritei só de pensar nele e notei o olhar estranhado de Atzir'itz.
Dei de ombros e caminhei até a borda do telhado plano do galpão no qual
nos encontrávamos. O próximo não estava muito longe, não precisava tirar
minhas asas: simplesmente abri o acesso ao poço e saltei. A partir dali, foi
um relaxante passeio de telhado em telhado, salto a salto, às vezes com
ajuda das asas se o espaço a cobrir era de metros demais. Em velocidade
cada vez mais elevada, com o guarda do meu avô grudado nas minhas
costas. Eu precisava disso, um pouco de exercício, de me desentumecer
depois de tanto tempo sentada. Ver, não vimos nada. Parecia que as bruxas
inimigas não estavam interessadas em impedir que Arianhrod restaurasse o
matriarcado ou, mais possivelmente, nem imaginavam. Quando voltei a
nosso ponto de partida, esse telhado onde meu traseiro embutido em jeans
tinha deixado uma marca no pó, Atzir'itz sentou-se ao meu lado e emitiu
algo tão estranho como um suspiro.
—Você suspira? Você? —Em parte estranhei e em parte zombei.
—Pensava no castigo de nosso rei.
Esse castigo... Franzi o cenho.
—Bem, isso para mim é um alívio, não nos esquarteja nem nos une
à sua decoração.
Mas uma coisa era que me aliviasse e outra que me fizesse graça
que fossem me dar uma humilhação pública. Porque não me fazia nem um
pouco.
—Para mim também, mas gostei de fazer algo tão humano, tão
normal, como saltar telhados com você.
Me virei para olhá-lo, deixando de observar a entrada do Samhain.
Podia-se ver um pouco nostálgico. Decididamente, era estranho isso de não
ser o único demônio da minha raça com emoções. Deveria esclarecer a ele
que os humanos não se dedicavam a ir saltando telhados? Porque estava
claro que não tinha passado sua infância na Terra como eu e não tinha muito
claro o que se fazia por aqui para passar o tempo.
—Eh... e o que tem a ver isso com o do castigo?
Melhor não, estava especialmente sexy quando mostrava sua parte
menos demoníaca.
—Que temo que depois de me ver obrigado a lhe dar as chicotadas
já não seja igual.
Abri os olhos de par em par, um pouco surpresa. Isso sim que não
esperava.
—Atzir'itz, sei bem que esse castigo tão ridículo e absurdo é coisa
do meu avô. Você não tem culpa que se aproveite de sua fraqueza por mim
para castigá-lo assim. E, de quebra, a mim me humilha diante de toda a
corte. Para ele é uma boa solução com a qual, de passagem, nos mantém
vivos para servi-lo já que somos suas duas melhores armas.
Quando disse o de "fraqueza por mim" crispou ligeiramente os
traços. Imaginei que não era agradável ter sido tão transparente com seus
sentimentos para comigo e que eu... bem... eu continuasse pendente de
Casio; ainda que neste caso fosse para capturá-lo.
—Você tem razão —voltou a me tratar de você, quando já me
tuteava há dias.
—Oh, pois claro que tenho razão! —me exasperei. O que me faltaria
já, que pensasse que por me dar umas chicotadas de nada eu ia olhar mal
para ele—. Isso é uma bobagem e é melhor que não dê a importância que
não tem. Meu avô é assim, adora brincar com seus brinquedos. Como me
deixou me comprometer com o chupa-sangue sem me avisar de que era um
traidor...
Eu queria continuar falando, censurar-lhe se pensava que eu era tão
picuinha como para guardar rancor por um pouco de dor, mas fiquei calada
de repente. Estava olhando para o íncubo em vez de para a rua e, no
entanto, me pareceu ver algo pelo canto do olho. Algo que cruzava com
rapidez pela frente do Samhain e de Lucas.
—Violeta? —sussurrou-me Atzir'itz enquanto levava a mão a sua
arma e olhava para a rua.
Lucas não parecia ter se dado conta, continuava ali apostado como
se nada.
—Acho que vi algo lá embaixo, mas foi muito rápido. Não parecia
tampouco ser humano, e tinha asas —respondi enquanto desembainhava
minha adaga favorita e olhava ao meu redor não fosse ser que tivesse
subido a algum dos telhados.
—Não vejo nada... —De repente sua mão agarrou meu braço e
puxou de mim para a direita enquanto me sussurrava: —Ali.
Não havia dúvida. Em outro dos telhados havia uma criatura que
olhava tanto para o Samhain como para nós dois. Sua silhueta se parecia
com a do meu wyvern, mas com quatro patas e o dobro de grande. Antes
que pudesse reagir e ir atrás dele, abriu duas enormes asas e desapareceu
em um borrão de velocidade, rápido demais para segui-lo até com meus
sentidos aumentados.
—Você pode ver para onde foi? —perguntei ao íncubo.
—Não. Foi embora rápido demais, para a esquerda, e não
conseguiria segui-lo.
—Você acha que era...? —fiquei calada, sem ter muito claro se
pronunciá-lo.
Afinal, eu era um demônio: os deuses eram como palavras maiores.
—O deus dragão? Possivelmente.
Me estremeci.
Se era assim, era mais rápido que eu com meu acesso normal ao
poço. Para ser um dragão, não era muito grande (os tinha visto muito mais
gigantescos no segundo plano) mas, se era um deus, talvez pudesse mudar
seu tamanho a seu bel-prazer, além de sabe-se quantos poderes
extraordinários.
—Pois continuemos vigiando. Chame os demais guardas para nos
assegurarmos de que não matou nenhum e se prepare caso saiba o que as
bruxas estão fazendo e tente impedi-lo.
Por uma vez, tivemos sorte: não tinha atacado ninguém e não
voltamos a vê-lo no que restava de guarda. Isso me fez pensar que talvez
não tivesse entrado na Terra com todo seu poder e que tinha mudado seus
planos de ataque ao ver que estávamos defendendo as bruxas. Em todo
caso, em umas poucas horas mais de vigia (um total de mais de dez desde
que começaram), Arianhrod e suas matriarcas acabaram os rituais e tanto as
casas como o matriarcado foram restaurados.
Solucionado o problema, eu tirei da cabeça a sensação ominosa que
tinha me dado essa criatura e Marta foi ao apartamento onde estava Daniel.
Ia reconstruir sua casa mas não na antiga localização: tinha ficado
destroçada e, além disso, suas inimigas sabiam onde estava. Sorri ao ver
Daniel correr até ela e Marta corresponder-lhe. Se fundiram em um abraço,
em um beijo de alívio ao se verem a salvo, de amor, de felicidade... que me
fez suspirar.
Sim, a mim, que princesa súcubo que eu era.
Me despedi deles e voltei à minha casa. Tinham sido uma noite e um
dia muito longos. Além disso, em breve ia ter que me reunir com os líderes
lobisomens e o dos satanistas, assim como com Lucas e Ainhoa. Eles já
sabiam que meu avô só via uma situação aceitável na Terra: que
exterminássemos o inimigo. Ou seja, nada de equilíbrios de poder ou de
tréguas. Por sorte, eu só ia como assistente, nada de coordenar e dirigir.
Felicidade! Recaía no outro guarda íncubo do meu avô com sangue humano
o de fazer as honras. Se faço memória com as datas, o dia do Armagedom
foi 21 de junho e hoje estávamos a 13 de agosto. Foi no mesmo 1 de agosto
quando meu avô me chamou a seu plano para me deixar as coisas claras e
nesse mesmo dia apresentei Sylth'Atz a nossos aliados. Lucas não gostou
muito de tratar com outro demônio que não fosse eu e Ainhoa menos. Aos
satanistas, enquanto fosse um demônio da família real lhes dava igual,
como aos lobos. Como Sylth'Atz tinha resultado assimilar os sentimentos
humanos pior que eu e que Atzir'itz, tendia a ser bastante seco e a cortar
tudo o que não gostasse, fosse um comentário ou um conselho. A verdade é
que tinha sido divertido apresentá-lo mas, mesmo assim, nem assim me
livrava de ir às reuniões... Nesta em concreto, Ainhoa e Lucas tinham
solicitado que assistisse, o que se ia fazer. Em todo caso, tinha claríssimo
que primeiro precisava de um bom banho e, já que estávamos, dormir um
pouco. Ah, descanso, doce descanso... é que ultimamente, entre que cada
vez parecia precisar menos e com o enrolada que estava, o tinha
subvalorizado.
DEZ
Sylth'Atz se levantou bruscamente da cadeira em que estava
sentado. Poderia ter o mesmo tom de cabelo que Lucas, mas aí acabava toda
sua semelhança. Um era sério e dedicado ao seu trabalho e eu adorava
provocá-lo. O outro era como um muro inamovível: seu rei lhe havia
ordenado recuperar a Terra para os humanos e não pensava permitir que
ninguém lhe pusesse obstáculos, nem sequer a presidente da Espanha.
—Não, isso é inaceitável —acabava de dizer enquanto, com seus
olhos agora muito mais elevados que os do resto, a olhava sem piscar.
E Ainhoa era capaz de não se encolher em sua cadeira, isso que
enfrentava nada menos que um íncubo de beleza sobrenatural. Diria que
ponto para ela, mas, na realidade, eu acho que seria para Lucas. A mulher
estava voltando a se apaixonar, embora não confessaria a si mesma estando
tão recente a morte de seu marido. Mas, tanto isso como seu senso de dever
lhe permitiam nesses momentos não estar dizendo sim a tudo o que
Sylth'Atz quisesse ordenar-lhe.
—O exército não vai te dar um batalhão para lutar na França —
negava-se Ainhoa—. Precisamos de todos os nossos homens para terminar
de limpar nosso país de bruxas, vampiros e mutados indesejados.
—É claro que você vai me dar se quiser que ajudemos a libertar a
Terra.
Não, outra vez não... pensei. Agora ela volta a ameaçar se unir ao
império Vaticano e ele a retirar nossas tropas demoníacas... Será que vou ter
que voltar a intervir para acalmar os ânimos?
—Ainhoa, calma, ele não está te pedindo nada que não seja
cooperação aliada —interveio Lucas e eu teria lhe dado um beijo. Sim, por
favor, escute-o, que você dá mais atenção a ele do que a mim.
A conversa continuou por um bom tempo e Ainhoa acabou cedendo.
Eu ali já não pintava nada, não desde que Sylth'Atz estava no comando.
Assim que acabou, me aproximei de Lucas. Pedi para falar com ele e fomos
embora juntos.
—Eu não volto para mais nenhuma reunião, deixe isso claro para
Ainhoa.
—Imagino, seu avô colocou um substituto implacável para você.
Dei de ombros.
—Bem, eu também tenho minha tarefa, você já sabe.
—Meu pai —assentiu, sério—. E como vai?
—Bom, por enquanto mal.
Tínhamos saído do edifício e estávamos caminhando pela rua,
pouco transitada desde o apocalipse.
—Continua sem ter nenhuma pista?
—Sim. O canalha se esconde bem, é como se a terra o tivesse
engolido.
—E no entanto continua movendo os fios da maioria dos vampiros.
Nos países sob seu controle, os vampiros que não querem ver nossa raça
como marionetes ou aliados dos alquimistas, estão escapando como podem.
Na América, Louisiana e outros estados resistiram. Os vampiros antigos
que ali residem se negaram a se unir a ele. Quase todos os vampiros
rebeldes desse lado do charco estão jurando lealdade ao que agora se
conhece como o rei da Louisiana. Aqui, na Europa, estão vindo a mim, me
pedindo ajuda e se unir aos meus.
—Você está se tornando todo um referente. —Sorri para ele—. Por
favor, não acabe como seu pai.
Ficou muito tenso ao escutar minhas palavras, apertando os dedos
em um punho que tentou me ocultar em vão sob a manga de sua jaqueta de
couro preto.
—Eu não sou um traidor. Eu sou leal aos meus princípios e fui tão
enganado quanto você. Não se atreva a voltar a me comparar.
—Desculpe. —Ele tinha toda a razão. Eu tinha passado dos limites e
não tinha sido justa. Era só que eu sempre os tinha visto muito parecidos e o
poder corrompe... Se não que o dissessem ao meu tio, o que eu mesma me
encarreguei de deixar bem morto.
—Além disso, você já sabe que, se precisar da minha ajuda para
capturá-lo, ficarei encantado.
—Claro. Agora o que eu queria te perguntar é se algum dos
vampiros que vieram de longe pedindo asilo a você sabe algo, qualquer
coisa que possa me ajudar a localizá-lo.
—Não. Os novos guardas de Casio, mutados, matam os que não se
unem a eles. Mas ninguém sabe onde ele está. Se proclamou Triunvirato
Único e líder absoluto da noite e da nossa raça. Mandei alguns dos meus, da
minha linhagem de sangue, se infiltrar, fazê-los acreditar que estavam com
Casio. Nenhum voltou e senti como se rompia meu vínculo com eles com
sua morte.
—Porra!, sinto muito.
Não me respondeu, mas vi por como se tensionava uma veia em sua
testa que lhe resultava doloroso. Continuamos em silêncio até que Lucas se
deteve diante de um semáforo que continuava funcionando, embora mal
houvesse veículos nesta Espanha pós-apocalíptica.
—Nossos caminhos se separam aqui —me disse.
Continuava com o cenho franzido, levava assim praticamente o
tempo todo.
—Lembre à sua mulher que tenho trabalho, que não posso continuar
assistindo às suas reuniões ou ficando com ela como se eu ainda estivesse
no comando dos desígnios do meu avô na Terra.
—Não é minha mulher —aprofundou as rugas do cenho.
Não me aguentei, dei uma cotovelada nele. Não me importava que
seu pai fosse escória: ele continuava sendo Lucas e não pensava em mudar
o modo de tratá-lo.
—Vamos... que não estou cega, é questão de tempo.
Ri e fui embora. Ele não levou nada bem, pior do que quando eu
flertava com ele. O que me confirmou o que suspeitava: a coragem e o
senso de dever da humana tinham lhe tocado fundo.
Escutei-o pisar na rua com força, irritado.
Sim, tocado muito fundo. Muito.
E para mim ótimo se estava zangado, porque continuávamos em
guerra e eu queria sangue. Além disso, odiaria ter que matá-lo se acabasse
se apiedando de seu pai e pretendesse perdoá-lo.
ONZE
—Eu posso te ajudar —Marta soltou para mim com um grande
sorriso.
Eu tinha ido vê-la. A mulher estava bastante ocupada, sobretudo
agora que era membro do matriarcado, mas tinha reservado um tempinho
para tomar uma cerveja comigo. Ei, e nada menos que no bar do Samhain.
A verdade é que era de manhã e estava sem música e meio vazio, mas já
que ela tinha estado há pouco reunida no porão com Arianhrod, me
aproximei para não fazê-la perder muito tempo.
—Não me fode, e me diz isso agora? —respondi a ela.
Porque sim, estávamos falando do ponto morto no qual eu me
encontrava com a investigação de onde diabos se escondia esse sugador
traidor. A verdade é que suspeitava que minha amiga poderia me ajudar,
que possivelmente a magia me iluminaria ali onde eu era incapaz de ver
como continuar avançando.
—Bem, há uma parte do grimório da lua cheia, a dos feitiços de
mais nível, que não é precisamente simples de decifrar e, além disso, até há
pouco não tinha me ocorrido que esse feitiço em concreto poderia servir a
você.
—Diga-me, qual é? —perguntei mais que interessada enquanto dava
um bom gole na minha cerveja.
—Mealladh na gealaich. Ilusão de lua. Parece que minha casa é uma
das poucas que podem fazer esse tipo de feitiços e, sem dúvida, a única que
os tem em alto nível.
—Uma ilusão? O quão boa?
—Segundo o que minhas antepassadas me confirmaram, o suficiente
para fazer você passar por uma vampira diante de um monte desses
nosferatus.
Sorri.
—Você sim que sabe como fazer feliz uma amiga.
—Bom, você já conhece minha tarifa, mas como vai me ajudar com
o meu, essa te deixo de graça.
Bufei. Ela tinha coragem...
—E considerando minha desinteressada ajuda no Vaticano e que
você já não tem problemas em ganhar a vida, eu acho que vai me deixar
todas as outras de graça.
—Certo. —Deu de ombros—. Não é questão de você começar a me
cobrar.
Começou a rir.
—Pois não tinha me ocorrido, mas tampouco é uma ideia tão ruim...
—brinquei—. Bom, e você tem alguma vampira em mente para me fazer
passar por ela ou vai inventá-la?
—Uf, poderia inventá-la mas, considerando que não sou muito boa
imaginando detalhes, ficaria péssimo. Comentei isso agora há pouco com
minha senhora e ela me sugeriu que fale com Lucas, que com certeza tem
fotos ou vídeos de alguma que podemos copiar. Que nos passe também
informação de como se comporta, e pronto!
Útil que o de que os vampiros não se refletissem em espelhos ou
saíssem em fotos não fosse mais que um mito.
—Hmm... e se me descobrem porque ela está em dois lugares ao
mesmo tempo?
—Homem, mulher, que Lucas nos passe alguma que tenha morrido
no apocalipse e seja algo que ninguém mais saiba. Por exemplo, que só
saibam seus próximos e que estes sejam família de Lucas. Ou que seja uma
rival que matamos e os de Casio não sabem se continua viva.
—Isto último eu gosto mais, mas seria mais difícil me fazer passar
por ela... Vou perguntar a Lucas. E como vai com o seu? —me referi a seu
último trabalho.
—Bom, Esteno está na França, confirmado. Continuamos tentando
localizar as casas que lhes restam na Espanha, para atacá-las, mas se
escondem bem. Aí estamos. —Voltou a dar de ombros—. A taça, o cálice
que Arianhrod me pediu no Vaticano, era um instrumento de sua casa que
também tinha roubado a Inquisição. Ela o usa em seus rituais, a ajuda a
aumentar suas vidências e a se comunicar com sua deusa.
—E você com a sua, Diana? —me interessei.
—Nada. Apesar do de ser índigo, não apareceu para mim como
Morrigan para minha senhora. Em todo caso, estamos nos preparando. Com
a ajuda do deus dragão, elas vão usar sacrifícios fortes demais para sua
magia, como sacrifícios de alma. Alguns animais têm alma, todos os seres
humanos a têm. Podem começar com cachorros ou gatos, que lhes resultará
mais simples, e passar a raptar pessoas para arrancá-la. Isso potencializará
seus feitiços muito mais do que nós possamos potencializar os nossos. Nem
te conto se sacrificam a alma de uma das suas ou da própria feiticeira.
—Dá para viver sem alma? —Franzi o cenho.
—Não. O dragão ou deus ao qual servem a devora e o corpo cai
morto.
—Má coisa.
—Com esses sacrifícios, podem fazer um ritual mais poderoso do
que possamos fazer nós; embora algo nos salvará o que eu seja índigo e
Arianhrod seja muito poderosa.
Assenti.
—Em todo caso, Marta, não estou muito a par da magia de vocês.
Por que a alma é tão forte?
—Ok. Vou te fazer um resumo rápido. Temos quarenta e nove
deuses, como você já deve saber. Estes se agrupam em sete famílias: os
corpos celestes, os animais ancestrais, os elementos, a dor, os sacrifícios, a
abundância e as artes. Diana, por exemplo, é a deusa da Lua, um corpo
celeste. A família da dor não tem deuses. Se refere apenas a que quanto
mais dói, mais poderosa é a magia. A dos sacrifícios sim os têm. Então,
menos a da dor todas as outras têm sete deuses, somando um total de
quarenta e dois. Assim por exemplo, você pode sacrificar um bem material,
um sentimento ou emoção, a memória, sangue, carne que seria mutilação,
saúde ou vida. Se por exemplo sacrifico uma emoção, dá pouco poder
sacrificar que adorei cheirar uma rosa esta manhã, mas muito se fosse meu
amor por Daniel. Se é saúde, tirar um percentual de visão em um olho me
daria muito mais poder do que sacrificar uma emoção pequena, mas menos
do que tirar trinta anos de vida. Como vê, o mais poderoso é sacrificar vida,
e seguindo a regra da dor, seria a vida própria ou a de um ser ao que ame
mais que a si mesma. No entanto, os deuses proibidos se enroscam sobre os
outros 42 de tal maneira que são um oitavo componente, mais poderoso.
Assim, se dos sete corpos celestes o mais poderoso é a Lua, há um oitavo,
Plutão, que lhe ganha em poder. E, seguindo este padrão, o dragão é o
oitavo animal, o mais poderoso, mais que o lobo. E a alma é o maior
sacrifício que se pode fazer, mais que a vida, já que, ainda que perca a vida,
pode conservar sua alma imortal, mas não se a sacrifica. Entende agora?
—Sim. Mas não vejo vocês tão mal. Quer dizer, não abundam as
bruxas sem braços ou velhíssimas.
—Claro, se quer sacrificar algo, é mais simples utilizar um animal
do que a si mesma para fazê-lo, ainda que seja menos poderoso. E o sangue
é muito poderoso e não há problema em derramar o nosso enquanto não
seja demais. Além disso, a maioria dos deuses só exigem sacrifícios nos
rituais. Pode-se dizer que os feitiços nos saem de graça, sem este tipo de
preço.
—Magia sem preço —sorri—. O preço será que sua deusa lhes
presenteia, pois sempre o tem.
—Sim, leis do universo —assentiu. Ia acrescentar algo, mas um
radiante sorriso iluminou seus olhos e saudou.
Me virei para ver quem se aproximava por trás de mim. Era Daniel.
Me resultava fascinante que Marta tivesse aproveitado estes tempos de crise
para deixar claro a qualquer bruxa: Ele era seu, não uma fraqueza. Não
pensava renunciar a ele por não poder garantir sua segurança. E todas o
tinham aceitado. Como não fazê-lo... se a própria matriarca suprema
aceitava o rapaz dentro do Samhain e Marta era agora a bruxa mais
poderosa.
—Olá, Violeta —me cumprimentou após dar um beijo em sua
namorada—. Como está?
—Bem, mas já estava indo —me levantei—. Tenho que ir ver
Lucas.
—Mande lembranças a Atzir'itz.
—Claro.
Tinham se tornado amigos. O íncubo o tinha ajudado quando Marta
quis deixá-lo. E eu demorando tanto para me dar conta de que tinha alma...
Inclinei a cabeça, em um gesto irônico comigo mesma, e acabei de
me despedir.
Falando de íncubos... devia a mim mesma uma conversa pendente
sobre quem ele era, só que eu continuava evitando todo contato que não
fosse estritamente profissional. Estava sendo estúpida, sabia. Mas assim ia
continuar sendo até que tivesse a cabeça de Casio.
DOZE
Nova Orleans. Berço do vodu e, se desse ouvidos aos rumores, sede
do recém-proclamado rei dos vampiros na América. Seu sangue de régio
abolengo não tinha nem a metade da antiguidade de muitos vampiros
europeus porque, para começar, o nosferatu tinha chegado ao outro lado do
charco vindo da Espanha, Inglaterra e França. No entanto, o ambiente de
decadência que envolvia a cidade, tão denso que se podia saborear se ao
mesmo tempo que respirava entreabria a boca, tão lânguido que parecia
mergulhar seus habitantes em um transe, ah... era delicioso. Nada a ver com
as urbes europeias.
Ao caminhar por suas ruas, me perguntei por que diabos não tinha
vindo antes.
Ah, sim, claro: supunha-se que sim tinha vindo antes; de fato, que
tinha nascido aqui como humana fazia quase trezentos anos. E o bonito
vampiro que me acompanhava, um loiro cinza de longos cabelos, era meu
consorte e filho de sangue ao mesmo tempo. Encantador, não é?
Pois era, de todas as opções que Lucas tinha me apresentado, a que
mais tínhamos nos convencido Atzir'itz e eu. Sim, o sexy guarda-costas
continuava comigo, me ajudando, e Marta nos tinha enfeitiçado para que
fôssemos exatamente iguais a ditos vampiros. Sua ilusão era tão poderosa
que nos variava tudo: aspecto, temperatura corporal, cheiro... inclusive
nossos gestos, esses que vêm tanto pela genética como pelo que vimos fazer
a nossos progenitores, se modificavam para ser os de Dennise Mathieu e
Dominique Lefebvre. Ambos tinham morrido durante as batalhas do dia do
juízo final, mas ninguém tinha sido testemunha. Residentes em Nova York,
mas ela nascida em Nova Orleans, estavam de viagem pelas Canárias
quando o apocalipse aconteceu. Tinham morrido nas mãos de um lobo que
não tinha sobrevivido e de um dos filhos de Lucas. Assim, este nos tinha
contado onde estavam seus restos e tínhamos podido pegar uma amostra
para que Marta fizesse a ilusão tão real. Cabelo e roupa, hein, nada de
pedaços podres de carne. Como fazia muito tempo que Dennise não pisava
em sua cidade natal e ele nunca tinha estado ali, o risco de sermos
reconhecidos por algum próximo não era muito grande. Ela nunca
converteu sua família humana e seu sire, o vampiro que a fez, era outra das
baixas na guerra. Menos mal, porque por muito boa que fosse a ilusão, não
podia fingir uma chamada dessas ameaçadoras que faziam os chupa-
sangues com sua linhagem de sangue.
—Curioso que tenham fama de ter bruxas quando todas as
autênticas estão na Espanha, não é? —comentei a Dominique enquanto
caminhávamos pela rua à noite.
Os edifícios eram preciosos, coloniais, e parecia que aqui não
tivesse chegado o fim do mundo. As pessoas caminhavam como se nada e
os vampiros vadiavam à vontade.
—Bom, de vodu sim há bruxos.
—Ahá, masculinos. O como os deuses e deusas outorgam o dom de
sua magia me parece dos mais curiosos —me referi a que não tinha visto
nem um varão com poderes entre as quarenta e nove casas.
Meu bonito loiro, nem a metade de sexy e arrebatador que o íncubo,
me acariciou o braço. O canalha estava levando a sério isso de se meter no
papel, pois se supunha que éramos um casal. E eu deveria fazer o mesmo,
então tentei pensar como ela e deixei que minha cabeça se apoiasse em seu
ombro por uns segundos, enquanto continuava caminhando agarrada pela
cintura. E o cheirei. E não cheirava ao íncubo. Genial. Sorri. O aroma e o
tato de Dominique não me provocavam nada: nem um calafrio, nem uma
carícia à minha alma, nem um desejo urgente de arrancar-lhe a roupa.
Genial.
Assim ia ser simples fingir ser Dennise. E não me importava que ele
aproveitasse para me apertar contra seu peito, afinal, eu tampouco cheirava
como Violeta.
Aproximei meus lábios de sua orelha, como se fosse sussurrar-lhe
palavras próprias de uma amante.
—Sério que você gosta de vampiras? Eu achava que as morenas não
eram sua praia —disse a ele em vez disso.
Ele riu e agarrou com mais força minha cintura enquanto
continuávamos passeando com languidez, seguindo a corrente de pessoas,
sem destacar.
—Não me importa que cor de cabelo ou forma você adote, eu sei
ver além.
Merda. Isso tinha sido um golpe que não esperava. Agora sim bateu
mais rápido meu coração e se acendeu meu sangue. E isso eu não queria. O
divertido era que, com esta maravilha de feitiço, quando meus olhos
brilhavam em âmbar se viam vermelhos. Então, apesar de tudo, a única
coisa que estava fazendo era tornar mais crível a ilusão.
E deve ter sido assim, pois havia olhos que nos vigiavam desde que
tínhamos posto o pé na cidade e, quando paramos em um pub para tomar
algo, sentados em uma mesinha discreta, um dos nosferatus se aproximou
de nós.
—Denisse Mathieu e consorte —nos disse enquanto nos fazia uma
reverência e se sentava ao nosso lado em uma cadeira vazia—. Vocês
tiveram sorte de poder escapar da Espanha. Como foi o voo?
—Bem —lhe respondi. Pois sim que tinham olhos, se nos tinham
seguido desde que iniciamos a charada nas Canárias ou desde que
aterrissamos nos Estados Unidos—. Com quem tenho o prazer de falar?
—Eu e Pierce —se referiu ao meu suposto sire morto— estávamos
na mesma linhagem de sangue. Conheci você uma vez, quando era uma
neófita, mas é provável que não se lembre de mim.
—Oh, sério? Meu senhor tinha muitos amigos, demais, e eu,
naquela época, era algo... incontrolável.
Sim, tinha feito o dever de casa. Nem fodendo ideia de quem era
este vampiro, mas a gente podia improvisar, imaginar o que Denisse teria
respondido sabendo que foi uma das neófitas mais difíceis de controlar que
seu sire tinha tido. Ou seja, um puto grão no cu.
E, por resposta, ele começou a rir. De algum modo, parecia que
tinha passado seu teste. (Bendita Marta, que poder você tinha agora).
—Desde a queda da Europa —era assim que chamavam?—, nos
tornamos um pouco mais cerimoniais por aqui. Se quer ficar na que é sua
casa, deve jurar lealdade ao rei.
—Claro —sorri a ele deixando brilhar em âmbar/vermelho meus
olhos como se apenas pensá-lo me produzisse prazer—, será uma honra,
mon ami.
—Então, querida, desfrutem da taça. Antes que acabe a noite
viremos buscá-los.
Se despediu e foi embora, me deixando me lambendo como uma
gata após encontrar o rastro de seu rato.
—Poderá nos descobrir? O que implica esse juramento? Sangue e
que possam ver que não somos vampiros?
—Bom —tirei importância com um dos gestos que imaginei que ela
faria (e se não desse igual, porque o feitiço de ilusão o mudaria)—, sangue
com certeza. Mas não nos descobrirão e, simplesmente, se o rei desejar nos
dar ordens baseadas nesse sangue, não acontecerá nada porque não somos
vampiros. Esse seria o momento no qual sim nos descobriria, então vamos
nos fazer suficientemente submissos para que não sinta a necessidade de
nos dar de verdade uma ordem.
—Lucas? —me perguntou pela fonte destes dados.
—Sim, seus informantes lhe disseram que é o modus operandi do
novo rei.
—Esperemos então, ma chérie. Outra taça?
—Não, com tomar uma de sangue como se fosse vinho, já tenho
mais que suficiente. Penso apreciá-la o quanto for preciso.
—Bom, então só outra para mim —apurou a sua e chamou uma
garçonete.
Maldito demônio. O nosso são as almas, mas não se importava de
beber sangue. Comecei a rir, decididamente se notava que o meu era meia
parte humana e o seu um quarto.
E assim, conversando como dois apaixonados, passamos as horas
até que vieram nos buscar.
TREZE
Por que íamos nos infiltrar na corte do rei nosferatu americano
quando estávamos procurando o europeu?
Porque nenhum dos vampiros que os nossos mataram da linha de
Casio me dava boa espinha. Ou eram próximos demais de alguém, com o
qual teriam nos pego, ou tinha havido testemunhas demais de sua morte.
Estes dois, Denisse e Dominique, eram perfeitos. Só tínhamos que ver se o
autoproclamado rei da Louisiana tinha contatos na Europa ou podíamos
convencê-lo de que nos mandasse para lá para iniciar umas conversas
diplomáticas com Casio. Tinha mostrado sua rejeição aos mutados, de
acordo, mas isso não queria dizer que ambos os líderes não pudessem estar
em contato ou negociar outros assuntos. Política... para mim não havia nada
mais amoral, sem dúvida fedia; por isso eu feliz de que a levasse toda meu
avô.
E ali estávamos, diante do rei, o qual tinha um trono que... bom... se
eu só tivesse visto o da TV em True Blood e o tivesse magnificado para
fazê-lo mais parecido ao da corte de Luís XIV na França, enchendo toda a
sala de quadros, suntuosas tapeçarias e estátuas... bom... não teria estado
mal. Inclusive melhor que o de Arianhrod. Mas claro, eu não era objetiva,
que tinha visto o do meu avô. Sugadores de sangue que queriam se fazer de
interessantes e poderosos para mim... Quando se rodeassem dos corpos
vivos e agonizantes de seus inimigos, falaríamos.
Dominique e eu fizemos ao rei uma colorida reverência. Claude I.
Um loiro com longo cabelo encaracolado e de rosto mais feio que um dos
extintos demônios do primeiro plano. Teria carisma, isso com certeza, já
que todos os vampiros o tinham, pelo menos com os humanos.
—Denisse Mathieu, filha de Nova Orleans, —estava me dizendo
enquanto me olhava com entediada indiferença. Aposto que estava ensaiada
—, lhe damos as boas-vindas à corte. Se aproxime com seu consorte e
jurem lealdade.
E agora era quando eu escolhia personalidade com as poucas
pinceladas que tinha desta vampira. Poderia me mostrar com certo medo
diante da majestade de Claude. Ou desafiante. Ou decidida. Escolhi o
último e com certa dose de independência. Queria chamar sua atenção, que
me valorizasse. Por isso esta chupa-sangue era tão perfeita: duvidava muito
que aqui a conhecesse alguém. Sua vida tinha acontecido em Nova York e
tinha sido do tipo eremita: reclusa em seu apartamento de luxo,
encomendando "comida" em domicílio de entre seu próprio rebanho e com
poucas saídas sociais. Com certeza, se tivesse nascido neste século, teria
desfrutado dos videogames.
Avancei, seguida pelo meu íncubo favorito, até chegar aos pés do
trono. Estava sobre uma plataforma elevada por causa da qual, quando me
ajoelhei, minha cabeça ficou um pouco abaixo dos joelhos do rei. Pelo
canto do olho, vi Dominique fazer o mesmo. Então, se aproximou outro
vampiro, um mais jovem, com uma pulseira de mão cobrindo de uma fina
rede de metal desde seu pulso até seu dedo indicador, no qual acabava em
uma falsa e afiada unha curva de ferro. Com decisão, me agarrou pelo pulso
e realizou uma incisão com dita unha. Evidentemente, a pequena ferida não
ia se curar assim como assim, mas o glamour da ilusão de Marta fez com
que parecesse. Bendita bruxa. De verdade que por um momento temi o pior.
Quanto ao corte, só me fez a mim. Como Dominique era filho de
sangue de seu sire Denisse, não era necessário que ele jurasse nada. Ou
seja, tipo feudal. Pirâmide de poder pura.
—Repita comigo —me indicou o mestre de cerimônias—. Eu,
Denisse Mathieu, juro lealdade e obediência ao meu rei Claude I. Lhe
ofereço meu sangue como tributo e laço. E minha vida será o preço se
romper meu juramento.
—Eu, Denisse Mathieu, juro lealdade e obediência ao meu rei
Claude I. Lhe ofereço meu sangue como tributo e laço. E minha vida será o
preço se romper meu juramento —repeti enquanto não separava meus olhos
dos do rei.
Queria que visse que o fazia livremente e que estava decidida a ser
um membro útil e valioso de sua corte.
O mestre de cerimônias se retirou após minha última palavra e meu
novo "senhor" me indicou que podíamos nos levantar. Assim o fizemos e
retrocedemos uns passos até nossa posição anterior. Então, sua majestade
nos dispensou com cara de tédio, mas eu pude ver certo interesse em seus
olhos. O tinha. Agora só devia me aproximar quando descesse do trono e se
misturasse com os seus como tinham me contado que costumava fazer ao
final da noite. Meu objetivo estava claro: ir como embaixadora à corte de
Casio. Bom, corte, conselho de um único conselheiro ou como diabos
quisesse chamá-lo.
Pois ia ser que não...
Tínhamos passado umas quantas horas fingindo ser esse par de
chupa-sangues apaixonados, eu acho que com Dominique se divertindo
demais, e por fim chegou o momento no qual o rei descia de seu trono e se
misturava com seus súditos, os quais estávamos tão lindamente bebendo nas
salas anexas à do monarca, decoradas com o mesmo toque de requintada
ostentação e decadência. Assim que vi a oportunidade, me aproximei dele.
Considerando que com minha atitude já tinha insinuado que buscava um
pouco de poder através de ser seu peão, me escutou com certo interesse.
Quando nomeei Casio, não pôde evitar me mostrar que era um assunto que
lhe preocupava. Mas, oh como o tinha julgado mal! Não queria negociar
com ele: queria matá-lo. Olha, se não fosse porque era uma maldita
sanguessuga, até me cairia bem. Mas, na minha experiência, só havia um
vampiro decente (Lucas) e apenas até que como seu pai me demonstrasse o
contrário.
—Deseja que o mate? —não precisei me fazer de surpresa—. Mas,
meu senhor, não me interprete mal, para mim é uma honra ser sua espada,
mas com meus escassos séculos de vida não sou páreo para um vampiro
bimilenar.
—Esquece que pode estar potencializando seus poderes com os
alquimistas.
Pois olha, sim, isso não tinha considerado... Por enquanto não tinha
precisado, mas como nos sete planos estavam perdendo, sabe-se lá.
—Com mais razão, então. Imagino que talvez tenha um plano ou
possa me dar ajuda. Não gostaria de manchar seu nome com uma tentativa
fracassada.
—Bem, a verdade é que já estava pensando em eliminar o assassino
de triunviratos, a escória que desprestigiou nossa raça ao misturá-la com
outras, que zombou de nossas leis e tradições. No entanto, não quero me
arriscar a perder meus homens de confiança e você, minha querida Denisse,
acaba de chegar e de se oferecer voluntária. Que tipo de monarca ruim eu
seria se me negasse a tão doce oferecimento? —sorriu ladino para mim.
Que canalha... Sou eu a pobre Denisse e já podia ir me despedindo
de ser uma não-morta. Imaginei que me queria para sondar o terreno e, se
saísse mal, negar que ele tinha estado por trás pois, afinal, eu não era mais
que uma recém-chegada a sua corte.
—Claro, meu rei —bordei a atuação de ter me visto sobrepassada,
de sentir o medo e saber que não podia fazer nada porque tinha jurado
lealdade a ele com sangue.
Senti como seus dedos acariciavam minha bochecha. Minha parte
humana sentiu nojo, a demônio vontade de arrancá-los com uma mordida e
a fingida... bom, deixei que Denisse se estremecesse como uma gatinha
extraviada à qual prometem um pratinho de leite. Os olhos do rei faiscaram
em vermelho.
—Não se preocupe, minha doce vassala —suavizou a voz—. Você é
linda, pode ser fácil para você seduzi-lo e assassiná-lo quando estiver mais
vulnerável —Este não conhecia Casio, não era vulnerável nem quando
estava transando com seu suposto amor—. Depois, volte para mim e a
recompensarei.
Assenti como se a promessa de um prêmio me satisfizesse e
afastasse um pouco o medo de saber que a missão era suicida.
—Um título? —ronronei.
Duvido muito que minha atuação resultasse crível se não tentasse. O
rei começou a rir.
—Claro, um título também.
Lhe dei as graças e ele se retirou, entabulando conversa com outros
de seus súditos. Atzir'itz, digo Dominique, tinha bordado os ciúmes. Me
aproximei dele com um sorriso.
—Vamos, bonitão, você sabe que não pode competir contra um rei.
Seu olhar foi todo um poema. Comecei a rir e lhe dei um beijo nos
lábios, metida em meu papel. Então nos retiramos. Aos olhos de todos, eu ia
consolar o pobre amante que sentia medo de me perder nas mãos de seu rei.
Na realidade, íamos falar de como, me fazendo passar pela
embaixadora de Claude I, ia pedir para me reunir com Casio e arrancar-lhe
o coração com minhas garras. Porra, isso não. Que meu avô o queria vivo.
Bom, pois os ovos; esses meu autêntico rei não precisava.
E falando de ovos... eu ia precisar de algo mais que um bom par
porque se pude com Casio no Apocalipse foi porque meu senhor tinha
triplicado o acesso ao poço. Se não repetisse, me anotei mentalmente que
tinha que interrogar Atzir'itz assim que chegássemos a nosso alojamento no
hotel. De verdade que precisava saber que tipo de poder ele tinha.
CATORZE
Uma vez fechada a porta do quarto de hotel, me separei dele como
se queimasse. Não estava gostando nada disso de fingir ser outra. Bastantes
décadas tinha me levado para me conhecer e me aceitar para agora tentar
pensar como uma sanguessuga.
—Ei, Denisse, olha que você é travessa —me disse enquanto me
agarrava por trás e colocava seus lábios em minha orelha. Ao mesmo
tempo em que fingia mordiscá-la, me sussurrou que podia haver câmeras.
Pois que puta merda. Me soltei com um golpe de quadril e apaguei a
luz.
—Assim melhor? —ronronei e soou falso demais.
—Microfones? —me sussurrou.
—Oh, sim, amor, um pornô para ambientar.
Me aproximei da televisão, busquei o canal de pagar e subi o
volume. Em seguida, o agarrei pelo braço e arrastei até a cama, onde lhe
indiquei que se sentasse ao meu lado.
—Já podemos falar, simplesmente não eleve demais a voz —lhe
disse.
—Minha senhora, você não está um pouco tensa? Para ser que acaba
de enganar o rei da Louisiana e é uma enviada de sua corte para matar o
traidor, deveria estar menos zangada.
—Certo, você tem razão. Talvez não devêssemos ter escolhido um
casal de amantes, não gosto de estar o dia todo tão melosa.
Tinha que reconhecer-lhe que quando queria era um encanto pois
tinha deixado no ponto para ele e não entrou no jogo. Nada de insinuar se
me deixava nervosa ou queria levar a brincadeira um passo adiante. Em vez
disso, ficou em silêncio. Estávamos no escuro mas pude ver seu rosto:
estava sério.
—Bom —continuei—, isto vai ficar melhor quando chegarmos
junto a esse bastardo e eu puder ser eu mesma para enchê-lo de porrada.
—Não duvido.
A ideia lhe agradava, disso não tinha dúvida. Suspirei. E deixei que
fosse embora este estado irritado no qual tinha mergulhado. Sinceramente, o
de ter que fingir tampouco era para tanto. O que sim me incomodava era tê-
lo tão perto, que me pegasse pela cintura, beijá-lo... Isso que meu coração
estava bastante insensível, como rasgado e congelado, desde que descobri a
traição de Casio.
—Bom, Atzir'itz, preciso saber quem você é. Essa puta sanguessuga
tem dois milênios de idade e não estará sozinho. Sem o acesso triplicado ao
poço, não posso vencê-lo. Quero saber do que você é capaz.
Oh, por um momento me olhou... demônios como me olhou. Só por
uns instantes, meu coração gelado deu uma forte batida, uma que fez
cócegas em meu corpo e que minha garganta conteve o fôlego como se
fosse uma adolescente a qual o garoto mais sexy e interessante do colégio
acabasse de reparar nela e parecesse querer devorá-la com os olhos.
Pfff...
Menos mal que só foi um instante, porque se meu coração e minha
mente tinham concordado em algo era em que nada de amor ou sexo até
que esse bastardo estivesse morto ou torturado para sempre na sala do trono
do meu avô.
—Sou bisneto do rei. Meu avô é irmão do seu pai, Vrsur'Mtz.
Assenti. Não era o sádico que assassinei, bom saber. Ainda que
tampouco teria mudado nada.
—Como já lhe confessei, um quarto do meu sangue é humano. Meu
avô, como seu pai, engravidou uma fêmea humana. Bom, uma... Todos os
filhos do rei estavam envolvidos no experimento e deixaram grávidas
bastantes mulheres. —A estas alturas, já não me surpreendia. Sabe-se lá se
teria algum meio-irmão entre os guardas do meu avô...—. Muito poucas das
crias sobreviveram o suficiente para chegar à maioridade. No meu caso,
diferente do seu, me criei em todo momento no plano demoníaco e, quando
viram que assim não aprendia a lidar com as emoções, me mandaram para a
Terra. Nunca me disseram onde estava minha família de sangue humana e
eu preferi assim. Só teria colocado eles em perigo e, além disso, tinham me
inculcado que os meus eram os demônios. Meus dois pais morreram em
uma das guerras entre planos. Após viver mais de cinquenta anos na Terra,
voltei ao sexto plano para me tornar um guarda do meu bisavô.
—Guerras entre planos? Quantos anos você tem?
—Cerca de quatrocentos.
Sério? Eu te fazia muito mais jovem, mas fazia sentido. Custava,
vixe se custava, lapidar um nome na corte demoníaca. Ser guarda de elite
do meu avô não era precisamente fácil.
—E você tem uma alma extra, não é?
Um íncubo normal, sem acesso ao poço, só podia recorrer ao poder
da alma com a qual tinha se alimentado. Normalmente uma, mas nossos
feiticeiros tinham criado modos para poder capturar almas adicionais.
—Tinha uma, em um cristal, uma gema demoníaca que tinha me
entregado nosso rei. Há pouco me honrou com outra.
—Duas gemas demoníacas e a devoradora de hostes —me referi a
essa espada que hipnotizava os demônios com a ânsia de possuí-la—. Além
de que, como tem mais sangue de demônio que eu, pode fazer magia e
espremer melhor as almas que eu.
Sim, eu perdia parte dessa energia ao utilizá-la. Um íncubo
completo não perderia nada. Ele, imaginei que uma quarta parte.
—Basicamente.
—Algo mais?
Deu de ombros.
—Lutei em numerosas batalhas, tanto na Terra como nos planos. Fui
formado em todo tipo de artes marciais e estratégia militar. Uma vez amei
uma súcubo, mas ela apenas brincava comigo.
—Não me referia a esse tipo de algo mais.
—Não deseja me conhecer?
Estava tão perto... apesar da TV, podia escutá-lo respirar pois meus
sentidos eram bons.
—Não preciso saber mais de você para conhecê-lo. Já me
demonstrou em combate que é honrado e digno de confiança.
Embora para mim, o de confiar, estava começando a resultar um
pouco difícil depois da punhalada de Casio.
—Ela não tinha alma, não tinha sentimentos. Só queria o prestígio
de estar com um guerreiro da linhagem de sangue real. Não pôde durar.
Imaginei que deveria haver tristeza em sua voz, mas não havia. O
que havia era uma fodida expectativa e me olhava com intensidade. Desviei
os olhos, centrando-os na televisão.
Uh, bom, com o que estava se mostrando ali melhor no armário.
—Entendo. —E te disse que não queria falar disso, não ainda...—
Você poderia com Casio se está com suas reservas de almas cheias?
—Sim.
—Perfeito. —Sorri pela primeira vez desde que estávamos ali e,
diferente de meus sorrisos da noite com os vampiros, este não era fingido
—. Porque vou precisar de você se meu avô não aumentar meu acesso ao
poço. Há outra coisa... queria perguntar a meu avô, mas com o do castigo
não tive a ocasião.
—Diga.
—Você sabe quantas armas somos? Eu não tinha ideia de que tinha
sido concebida como uma até minha maioridade. E agora resulta que você
também é uma e que há ou houve muitas mais —perguntei por fim, pronta
para saciar minha curiosidade e, ei, que não acontecia nada por aquilo de
não ser única. Neste mundo, a gente acreditava descobrir que era alguém
especial para que depois lhe dessem com a realidade no nariz e lhe tirassem
essa estúpida ideia de princesa na base da porrada.
—Sim, nosso rei projetou algumas. Todos somos seus descendentes.
Também há filhos do príncipe herdeiro que você matou, seu tio. Embora,
como já comentei, a maioria morreu jovem. De fato, vivemos mais os que
somos uma quarta ou oitava parte humanos. Mas os da oitava parte não
servem a nosso senhor, sangue demoníaco demais. Aqui, o realmente difícil
é sobreviver como você fez: sendo metade e metade. Frágil demais para o
plano demoníaco e seus castigos, cheia demais de instintos ferais para a
Terra.
Bufei. Algo disso me soava.
—Não estará me chamando de fraquinha ou frágil?
—Você? Jamais. O fato de que tenha chegado até aqui mostra sem
dúvida sua força, tanto física como de vontade.
Como não gostava do caminho que tomava a admiração em seu tom
e em seus olhos, mudei um pouco de assunto.
—Uau. Se restam algumas armas e são em parte humanas, os que
descendem do meu tio, o que matei, não vão querer se vingar?
—Ou te agradecer, vai saber. Em todo caso, o que meu bisavô sim
me contou é que os três favoritos somos você, eu e Sylth'Atz. Também,
quando me mandou para te dar cobertura, que com você tinham provado um
enfoque especial, um mais agressivo.
Já... imagino. O de fazer passar meu pai por morto e afastá-lo da
minha parte da Terra tinha sido um pouquinho bastante extremo. Que ilusão
saber que em algo sim continuava sendo única...
—E você sabe qual é seu propósito? Que lutemos entre nós para ver
quem é o melhor?
Não era para ficar paranoica, mas... pelo visto éramos bastantes
experimentos.
—Não creio. Ele quer generais para seus exércitos. Não pode
colocar nessa posição qualquer um. A mim, por exemplo, como sou apenas
um quarto humano e estou mais afastado da linha sucessória, ainda não me
deu acesso ao poço. Que tenha me dado outra gema implica que por
enquanto administro as emoções como ele espera de mim. Também me
manteve muito perto dele e pude aprender muito sobre governo, política e
logística.
Assenti.
—Pois obrigada pela informação.
—Não busco ser declarado herdeiro ao trono —me esclareceu,
embora isso para mim desse igual; eu sim o era, mas duvidava muito que
algum dia meu avô deixasse de governar ou de existir.
—Mesmo que fosse, não compito para subir nessa linha de herdeiros
—fui sincera.
—Ter alma, ter sentimentos, às vezes torna as coisas complicadas,
faz você desejar o que nenhum íncubo puro tem.
Voltei a olhá-lo. A que se referia?
—Algum dia, gostaria de ter uma companheira que sentisse amor
por mim e eu por ela. Uma que estivesse ao meu lado o resto da minha vida.
Outra vez essa confissão não buscada e que não tinha nada a ver
com o de ser uma arma. Tinha baixado as defesas, sem dúvida o tinha feito,
porque fiquei olhando para ele, sentindo seu hálito se aproximar de meus
lábios, desejando que me beijasse. E aqui não havia luxúria como depois do
elevador no Vaticano. Não... isto era outra coisa e eu não queria voltar a
despertar meu coração: estava muito bem letárgico. Não enquanto Casio
continuasse impune.
—Atzir'itz, eu... Eu também desejo isso. Aliás, acreditei tê-lo
encontrado com esse traidor. Por isso preciso de tempo.
—Eu sei —me sussurrou a meros milímetros da minha boca—.
Tenho todo o do mundo para você.
Ficou ali me olhando, desnudando sua alma para mim outra vez e eu
o observei pega como uma tonta, como um passarinho que não se afasta da
serpente. Até que se levantou me deixando meu espaço. E fiquei com uma
sensação de perda.
A cama estava de repente muito vazia sem ele.
Porra!
Era hora de dormir um pouco. Total, ia amanhecer logo e Denisse
não tinha antiguidade suficiente para sair para saudar os raios do sol.
Atzir'itz tinha se sentado no sofá, com o controle da TV à qual tinha
baixado o volume, e estava procurando algum outro canal.
Então me dei conta. Isto não ia ser difícil, de jeito nenhum. O de
fingir ser sua amante. Não porque quando tudo isso acabasse só havia dois
seres no mundo que podiam me separar dele: meu pai e meu avô. E por
como o segundo o tinha me servido na bandeja, duvidava muito que isso
acontecesse.
QUINZE
Paris. Um puto palácio. O palácio real, construído no século XVII
para o cardeal Richelieu e que teve diferentes usos e remodelações ao longo
da história. Agora mesmo, como na França haviam feito um massacre com
a polícia e o exército, tudo estava sob controle vampiro-mutado e era a sede
do novo poder. Quer dizer, Casio havia escolhido o edifício que mais gostou
para estabelecer seu Univirato, por assim dizer.
E ali estava eu, sob minha ilusão de Denisse, atravessando uns
enormes e belos jardins, junto com uma série de luxuosas salas, até chegar
ao nosso destino: a câmara do Univirato. Só que para minha mais absoluta
decepção, o traidor não estava lá.
Tratava-se de uma sala ampla, retangular, com várias pinturas a óleo
decorando as paredes. Uma enorme mesa de madeira presidia o fundo e,
nela, estavam sentados vários vampiros, um humano e uma bruxa. O
humano seria alquimista, imaginei. A bruxa parecia uma snake, pelas
marcas de antigas lutas que ostentava orgulhosa em seu rosto. Enquanto me
aproximava sorridente e lhes fazia uma graciosa reverência, disse para mim
mesma que não era Esteno. Seria outra matriarca snake ou alguma de suas
subordinadas. Claro, agradeci que Marta fosse agora uma índigo, porque
nenhuma outra bruxa tinha mais poder que ela e, portanto, não podiam ver
minha imagem real além do feitiço. Quanto à reunião, um saco. Passada
minha decepção pela ausência de Casio, tive que mostrar minhas
credenciais e assegurar-lhes que tinha que me reunir com ele para iniciar as
relações diplomáticas, que a proposta do meu rei vampiro não podia dizer a
seu segundo, que era o duque sanguessuga que presidia a mesa. Além de
constatar que haviam colocado um mutado em seu novo Conselho, assim
como a bruxa e o alquimista, não tirei nada mais claro.
Onde estava Casio? Fora. Onde? Sorriso enigmático. Fora.
Por que eu não dava minha mensagem a eles e eles a transmitiriam?
Porque meu rei havia me dado ordens claras. Sorriso de circunstância. Não
pensava soltar nada.
E assim por um bom e entediante tempo, além de parecer que
Dominique e eu estávamos sendo submetidos a um interrogatório sobre nós
mesmos e sobre as intenções do rei da Louisiana. Enfim... A coisa acabou
empatada. Sim, iam me levar a Casio. Não, não podia ser agora. Que
deixássemos nosso telefone e o hotel onde estávamos hospedados e já
entrariam em contato.
Pois nada, com meu melhor sorriso diplomático de embaixadora nos
despedimos. E quando saímos do palácio e nos afastamos várias ruas, me
aproximei do meu suposto amante e o beijei para ficar bem perto dele e
poder sussurrar:
—Quero seguir essa bruxa. Esperemos que ela saia. Conheço uma
moonwolf que está louca para saber onde encontrar as serpentes.
—Vamos ao hotel e eu cuido disso. Nem vai notar que a sigo.
Me afastei de seus lábios e assenti. Ele tinha mais anos que eu e
mais treinamento. Além de sua magia demoníaca e do acesso a três almas.
Sem dúvida seria capaz de seguir uma bruxa.
Eu mal podia esperar para conseguir a localização da casa snake e
ligar para Marta para contar a ela.
DEZESSEIS. As três irmãs cegas.
As três irmãs cegas moravam em uma cordilheira montanhosa no
terceiro plano, protegidas por seu exército de harpias.
O plano não era delas, não mais; mas essa zona, a de maior altitude
no continente do oeste, conformava seu pequeno reino, com picos rochosos,
ar rarefeito e muito vento.
Como videntes que eram, conheciam os fios do destino. Muitas
vezes haviam tentado assassiná-las. Os motivos variavam, normalmente era
porque temiam seu poder. Todas essas tentativas haviam fracassado. Afinal,
como acabar com aquelas que, sem olhos, podem ver?
Arianhrod, a matriarca suprema das bruxas, poderia ter respondido a
essa pergunta dizendo que ocultando o destino com a magia proibida de um
deus dragão. Mas as três irmãs, que séculos atrás haviam se escondido na
Terra e eram conhecidas tanto como as graias quanto pelo apelido de as três
parcas, podiam ver além da magia dos deuses. Não moviam os fios do
destino, nem o teciam ou cortavam; isso eram lendas. Se pareciam mais
com as graias, anciãs e cegas. Não compartilhavam um olho, simplesmente
não tinham nenhum. E em seu caldeirão, esse que mexiam, podiam ver o
futuro.
Neste momento, os vampiros e mutados que formavam o pequeno
exército enviado para matá-las, se aproximavam de seu reino montanhoso.
Voando era fácil entrar. No entanto, a pé como iam, havia apenas quatro
estreitas passagens guardadas por harpias. Os assaltantes escolheram uma e
acabaram com as guerreiras aladas que, furiosas, desciam em direção a eles
das alturas, armadas com grandes rochas que seguravam nas garras de suas
patas de ave e lhes lançavam do alto. Uma chuva mortal que acabou com
vários dos vampiros mais jovens, de reflexos menores. E apesar de
portarem lanças em suas mãos, de serem suficientes para travar uma boa
batalha antes de serem derrotadas, as guardiãs não travaram combate corpo
a corpo. Deixaram que os intrusos não abatidos atravessassem o
desfiladeiro e entrassem em seu reino de cumes elevados.
A partir dali, os vampiros não encontraram resistência. Com sua
velocidade e resistência, não demoraram muito para subir pelos estreitos
caminhos, atravessar montanhas e, depois de mais de uma hora, chegar ao
pico central, o mais alto e escarpado, ao qual só se podia acessar voando.
Então os mutados tiraram asas de demônio, agarraram cada um deles um
vampiro e subiram em direção às alturas, para acabar pousando sobre a
plataforma de pedra onde as harpias costumavam guardar o acesso a suas
senhoras, bem aos pés de uma caverna escavada na rocha. Só que estava
deserta. Com cuidado, os atacantes entraram. Tratava-se de uma caverna
espaçosa, que pelos futons de palha e os baús de madeira, devia ser o lar das
três irmãs cegas. Um caldeirão, enorme, borbulhava no centro, mas
ninguém o mexia. Um dos vampiros, frustrado, deu um chute em um baú.
Este caiu de lado, abrindo-se e derramando seu conteúdo: roupa de mulher.
—Elas foram embora, alguém deve tê-las avisado —resmungou
irritado.
—São videntes, o mais simples é que soubessem que vínhamos
matá-las —lhe esclareceu um dos mutados.
De mãos vazias, tal como haviam chegado, foram embora.
Receberam outra leva de pedras ao voltarem a atravessar o desfiladeiro
inicial, que lhes deixou com algumas baixas. O que não viram foi que na
caverna, disfarçadas entre a rocha, havia pequenas câmaras com baterias e a
última tecnologia humana. Seu ataque, sua tentativa de assassinato, havia
sido gravada.
E as três irmãs tinham muito claro a que demônio entregar a prova
de que o terceiro plano, supostamente neutro na guerra, já não o era.
Porque elas não haviam notado nada estranho em seu plano, nenhum
tipo de ataque ou colonização por parte dos vampiros; no entanto, sim
haviam visto algo que as afetava diretamente: uma visão enquanto mexiam
seu caldeirão, que as havia avisado de que iriam atacá-las em sua própria
casa. E isso, como muito bem sabiam, só podia significar que o terceiro
plano havia sido ocupado.
DEZESSETE
—Não me fode que estão aqui —sussurrou-me Marta enquanto
observava a casa no interior da França, a alguns quilômetros de Paris, onde
Esteno havia se estabelecido.
Tratava-se de uma mansão de uns dois séculos de antiguidade,
rodeada de campos de videiras. Estávamos totalmente fora de suas terras,
para não fazer disparar nenhum alarme mágico que sem dúvida teriam.
Apesar disso, com a ajuda de uns binóculos, Marta não tinha nenhuma
dúvida de que a passageira do carro que acabávamos de ver passar há
alguns minutos era a matrona snake que pretendia roubar o matriarcado de
Arianhrod.
—Sim. Então já sabe onde encontrá-la para terminar seu terceiro
trabalho.
—Obrigada.
—De nada —lhe respondi—. Mas você tem que me fazer um favor.
—Claro.
—Antes de vir atacá-la, me acompanhe ao conselho de vampiros.
Me intimaram esta noite para me levar a Casio e eu gostaria de contar com
sua presença. Você pode se passar por alguma vampira que não seja daqui e
dizemos que vem comigo. Se as coisas ficassem difíceis, eu gostaria de
contar com sua magia.
Deitadas como estávamos na cobertura de uns arbustos, pude senti-
la se retesar. Eu a entendia. Desde que a telefonei, haviam passado quase
dois dias. Ela pegou uma brecha no primeiro trem com vagas que vinha até
Paris, após falar com sua senhora e preparar alguns truques. Com ela
haviam vindo suas duas novas discípulas. Eram muito jovens, quase umas
meninas (acho que tinham 13 e 15 anos), mas era o melhor que restava à
casa da lua cheia. Depois de chegar, tiveram que se alojar em um hotel,
ocultando quem eram. Agora mesmo era dia e eu ia totalmente coberta para
que não me reconhecessem, pois Denisse não podia suportar a luz solar sem
cair morta.
—Você me pede muito, mas também lhe devo. De acordo, irei com
você caso precise de ajuda com Casio e, no dia seguinte, atrás de Esteno.
Sim, agora já não era rentável para uma bruxa atacar uma casa rival
à noite, como sempre havia sido feito. Não desde que vampiros e mutados
eram seus aliados. Eu lhe diria o típico de que era uma pena que já não se
respeitassem as tradições, mas seria mentira, pois eu sempre havia gostado
de quebrá-las.
—Atzir'itz, quando seguiu a bruxa, me avisou que eles têm os
campos de uva repletos de câmeras e alarmes eletrônicos, que não só os
protegem com magia.
Segui seus olhos até as parreiras, com os pequenos grãos de uva
ainda se formando, pois ainda faltava ao menos um mês para que a fruta
estivesse madura. Não viu câmeras, eu tampouco. Mas o guarda do meu avô
sabia onde olhar. Indiquei-lhe um ponto no qual o íncubo havia me dito que
havia uma e, depois de um tempinho, minha amiga assentiu. Acabava de
distingui-la, finalmente.
—Vocês só localizaram esta casa, certo? Nada das outras snakes ou
das morrigan —me perguntou.
—Correto.
—Bom, então irei me preparando. Muito obrigada novamente.
Vamos?
—Claro.
Me retirei para trás dos arbustos e me pus de pé devagar. Fomos
embora como havíamos vindo, andando. O carro estava a uns dois
quilômetros, conveniente e casualmente estacionado onde ninguém
suspeitaria de nada. Marta já estava tramando como atacar a mansão. Com
sua magia de ilusões, lhe seria simples fazer um ritual para enganar as
câmeras. No caminho, me contou o que tinha pensado e lhe assegurei que,
se pudesse, lhe daria uma mão.
Para isso estavam as amigas.

—Não me acostumo a vê-lo assim, como Dominique, sem todo seu


sexappeal avassalador —disse Marta a Atzir'itz após cumprimentá-lo.
Tínhamos ido ao hotel de Marta, já que não estaria vigiado como o
nosso, e o íncubo havia se juntado a nós ali.
—No final você ainda se divertiria quando fomos às compras,
confesse —brincou ele.
Parecia que, depois de se tornar amigo do namorado de Marta, havia
ganhado confiança com minha amiga. Que diabos! Se a havia ganhado até
comigo: já não me tratava de você e, quando fingia ser meu amante
vampiro, tomava liberdades demais.
—O quê? Não! Nem pensar —horrorizou-se ela—. Da próxima vez
que eu quiser que todas as outras mulheres desejem me assassinar, dou um
tiro em mim mesma.
Ele caiu na risada. Ainda com a ilusão posta, descobri que gostava
do som.
—Pronta para fazer seu feitiço de ilusão, Marta? —perguntei-lhe.
—Sim, Lucas me passou uns vídeos de uma das filhas de sangue de
Denisse. Na verdade, ela não está morta; mas realizei um feitiço de
localização e ela se encontra em algum lugar de Manhattan, possivelmente
escondida. Não suspeitarão. E agora, se me derem um momento...
Minha amiga começou a desocupar o quarto, empurrando a cama
contra a entrada e afastando o pequeno sofá e a mesinha. Atzir'itz e eu nos
apressamos em ajudá-la e, depois, saímos do caminho sentando na cama.
Em seguida, pudemos ver como ela tirava um pequeno pote com um
pigmento dentro e umas velas. Com ajuda de um pincel, desenhou um
pentagrama que adornou com várias figuras geométricas. Uma vela em cada
ponta e ela se colocou no centro. Começou seu feitiço, que era mais um
pequeno ritual, abrindo um círculo de poder, como elas diziam. Eu sempre
gostava de ver sua magia em ação, como essas linhas no chão se acendiam
em pequenas chamas. Me parecia inspirador. Eu não podia fazer magia e,
talvez por isso, continuava me parecendo tão maravilhosa e digna de
admiração como na primeira vez que a presenciei. Pouco a pouco, a bruxa
foi pronunciando as palavras, recitando-as com força. Sua imagem começou
a se confundir diante dos meus olhos, flutuando entre a moon-wolf com seu
cabelo escuro e uma vampira loira de traços anódinos. Quando acabou o
feitiço, apagou as velas entre seus dedos e o pigmento acabou de se
consumir, já não era Marta e sim Nadine. Perfeito. Haviam me intimado
para me levar diante de Casio. Ia incluí-la como parte da minha comitiva
diplomática.
Não faltava muito para o Sol se pôr. Saímos para jantar algo no
restaurante do hotel e, depois, caminhamos até o palácio real.
Um táxi podia ser investigado, ver onde o havíamos pego para
chegar ali. Preferia ir a pé.
Parecia que eu não era a única que havia trazido alguém novo à
reunião. Nos encontrávamos na mesma câmara espaçosa de antes, a da
mesa de madeira cujas pernas estavam belamente entalhadas. No entanto,
agora já não só se sentava ali uma das bruxas de Esteno: a própria líder da
oposição à minha irmã de magia negra, por assim dizer, estava me olhando
com o cenho franzido.
Parecia, não sei, como se notasse algo. Mas se fosse capaz de ver
além da ilusão já teria nos delatado, certo?
Dissimulando, olhei para Marta pelo canto do olho, enquanto
escutava o vampiro porta-voz nos dizer que iam nos levar diante de seu
líder, mas que eu não devia tomar isso como uma norma, pois seria só uma
vez. Nas seguintes, trataríamos apenas com ele. Marta, Nadine agora, não
era tão boa atriz como eu e não podia afastar os olhos de Esteno. Eu
adoraria perguntar-lhe se acontecia algo, mas eu não tinha poderes
telepáticos, isso que as súcubos sim têm e lhes vêm muito a calhar para se
tornarem ainda mais desejadas. A mulher deve ter acabado de notar algo e
me olhou. Foi um pouco descarada, isso aumentou ainda mais o cenho de
Esteno. Virou levemente a cabeça, negando, como me dizendo que não
havia quebrado a ilusão, que seguia funcionando também para Esteno.
Bom, deveria ser assim, afinal de contas, Marta havia sido
promovida por sua deusa ao nível de poder das bruxas originais, aquelas
cuja magia se diluía de mães para filhas. O motivo, eu não sabia. Porque se
eu fosse uma deusa promoveria todas as minhas adoradoras. Talvez
houvesse regras e leis entre os deuses e precisassem de algo para poder
fazê-lo, como o praticamente extermínio da decadente casa da lua cheia.
Não sabia e não me importava. O importante era que agora mesmo
tínhamos a bruxa mais poderosa conosco, então seus feitiços não podiam
ser detectados ou quebrados por nenhuma outra bruxa. Outra coisa seria se
várias se unissem em um ritual, mas para isso teriam que estar procurando
algo, e este feitiço de ilusão, novo, eu duvidava muito.
Prestei mais atenção ao vampiro, agradecendo-lhe. Estava esperando
que nos levantássemos e nos levassem para onde Casio se escondia em
alguma de suas limusines de vidros escuros. Mas não era o caso. Esteno
parecia cada vez mais incomodada, começou a sussurrar algo, e o vampiro
fez um gesto grandiloquente com sua mão em direção às nossas costas.
Estranhando, me virei e meus dois acompanhantes fizeram o mesmo.
Na sala estávamos nós três em pé, os representantes do Conselho
sentados à mesa e um par de guardas em ambos os lados da porta. Estes
acabavam de se separar e, no amplo espaço vazio que havia na câmara, se
acabavam de pôr a cuspir após engolir umas bebidas de dissolução líquida
com metais.
Demônios...
Não eram demônios e sim mutados, mas deviam ter tal porcentagem
de demônio em sua genética que estavam fazendo feitiços como se fossem.
Não pude evitar me arrepiar. Porra, sim, o que os alquimistas
estavam fazendo era uma puta aberração. Tudo bem que eu fosse uma
criatura meio sobrenatural, mas o meu seguia a natureza. Se alguém
acreditasse em deus (que não era meu caso, para mim o único deus era meu
avô), nos veria todos como parte de sua criação, mas isso... essa mistura de
raças, de essências, ia totalmente contra a natureza. Os humanos haviam
misturado ciência, genética e magia e o que haviam conseguido se sentia
totalmente fora de lugar. Ao ver uma mistura tão brutal com demônios, de
repente compreendi Arianhrod quando dizia que os deuses proibidos, a
magia proibida, eram uma aberração e deviam se manter selados.
Enfim, que enquanto eu perdia tempo me horrorizando (e sim, em
Denisse se notava, mas eu não me importava porque encaixava na
personagem. Duvidava muito que essa vampira tivesse visto um mutado
antes de morrer), acabava de se abrir um vórtice dimensional como os do
meu avô. Através de seu redemoinho, pude ver o que sem dúvida era um
plano demoníaco. Havia um pouco de vegetação, murcha mas ainda com
tons esverdeados. Isso eliminava os planos superiores e também o primeiro,
pois eu havia estado lá e era muito mais verde. Porra com o sanguessuga
traidor. Havia se escondido em um inferno.
Não podia esperar para contar a meu avô.
Um par de vampiros membros do Conselho estavam se levantando
enquanto me comunicavam que iam atravessar conosco. Bem então, pouco
antes de passar para o outro lado, aconteceu:
—São inimigos! É a súcubo Violeta —gritou Esteno ao mesmo
tempo que se levantava e me apontava.
Puta merda!
Os sussurros de Esteno, que eu havia perdido por causa da minha
nefasta fascinação com os mutados, eram palavras de um feitiço. Como
descobri mais tarde, a maldita havia sido "promovida" por sua deusa, por
todo o poder que havia estado reunindo e suas conquistas rompendo a
prisão de dragão, e acontece que também era uma índigo. Tinha um poder
similar ao de Marta, então não havia podido ver além de sua ilusão, mas
sim notar que algo estava errado, então havia lançado um feitiço de
detecção de magia e outro para quebrá-la.
Parecia que os empates de poder podiam ser resolvidos assim.
Eu, claro, não fiquei congelada ao escutá-la. Isso eu deixava para a
Marta de antes, não para a de agora, que havia se virado para sua rival e a
olhava com vontade.
Sim, eu te entendo, tentou te matar, deu seu namorado por morto,
fez com que a filha da sua mentora a traísse... que vadia, pensei.
—Pulem para dentro! —reagiu Atzir'itz assim que ouviu os gritos de
Esteno.
A qual, por sinal, havia subido na mesa de um salto e corria em
minha direção. Marta foi até ela. Atzir'itz agarrou os dois guardas antes que
pudessem reagir e os enfiou pelo vórtice, entrando com eles. Eu entendi o
que ele queria fazer.
—Marta, vamos! —eu lhe disse ao vê-la se colocar na frente de
Esteno.
Os outros da mesa, mais lentos para reagir, já estavam se levantando
para vir atrás de nós. Os dois de antes, no meio do caminho. Nem pensei
duas vezes, agarrei minha amiga por um braço e pulei para o vórtice
dimensional. Ela, por sua vez, havia agarrado o de Esteno e a enfiou
conosco.
Assim que entramos, Atzir'itz fechou o vórtice com sua própria
magia. Em um dos dois mutados ele já havia dado um bom soco com sua
força potente que o havia lançado para trás, desequilibrado. Logo que
fechou o portal, formou suas garras e acabou com o outro antes que o
primeiro reagisse. Hmmm... extração do coração como se fosse uma bruxa
dos contos de fadas. Ai... eu adorava. Meu coração deu um segundo
batimento, como aquele que havia dado antes, forte, fazendo com que meu
sangue se movesse com um pulso de excitação que me secou a boca. Porra.
Sim, eu desejava o íncubo. Podia tentar negar qualquer sentimento antes de
acabar com Casio, mas o maldito demônio estava bom demais e fazia coisas
sexy demais para negar que havia uma forte atração entre nós dois.
Do outro lado do portal, no inferno, claro que havia mais guardas.
Não bem ali, mas sim pela área. Eu também tirei minhas garras, me dava
vontade de um pouco de corpo a corpo com esses mutados. Abri totalmente
minha comporta para o poço. Marta, por sua vez, estava mais que feliz em
se encarregar de Esteno. Fazia muito tempo que a procurava. Sim,
decididamente eu não gostaria de estar no lugar dessa snake agora mesmo.
DEZOITO. Marta
A bruxa da lua cheia olhou com ódio para Esteno. Poderia se dizer
que, para Marta, o ódio era uma emoção negativa forte demais. Mas ela
estava farta. Essa bruxa havia mandado suas subordinadas para assassiná-la,
além disso, havia tentado levá-la ao plano de sua deusa serpente e sacrificá-
la e, como se não bastasse, quase matou Daniel e havia se confabulado
criando outro aquelarre, tudo para se erigir como a nova matriarca suprema.
E quase havia conseguido. Normal que a moon-wolf, sempre tão pacífica e
calma, a olhasse com um sentimento tão intenso.
Oh, desejava matá-la. Claro que sim. Além de por tudo o que lhes
havia feito, porque era seu último trabalho de servidão. E onde ficava
aquilo que lhe haviam inculcado desde criança de "perdoe, seja compassiva,
seja boa"? Ficava esquecido. Havia aprendido bem a lição de que se você
derrota e perdoa uma assassina, só serve para que ela corte seu pescoço
enquanto você dorme.
Bruxinha boa?
Sim, mas não idiota.
Por isso, quando a snake devolveu o olhar, carregado de ira e ódio,
sorriu. Se entendiam, finalmente o faziam. E esta ia ser uma luta até a
morte.
Com o canto do olho viu que seus dois amigos já estavam lutando
corpo a corpo contra os mutados. Ótimo. Podia se concentrar em sua
inimiga.
—Gainne gealaich! —pronunciou e de seus dedos saiu a luz escura
da lua.
Como Esteno a estava olhando fixamente, ficou temporariamente
cega.
—Saighead seacaid! —gritou Marta em seguida, aproveitando o
momentâneo aturdimento de sua rival.
Uma flecha, uma criada do negro mais escuro de uma noite de lua
nova, a flecha da caçadora, saiu disparada em direção à testa de Esteno.
Que era fácil demais com seu truque de te deixar fora de combate e
te lançar um ataque mortal? Besteiras. Se a matasse nesse instante, Marta se
sentiria feliz. Nisso não era como sua amiga súcubo, não acreditava que
uma luta só era boa se fosse longa e acabasse machucada. No entanto, não
foi tão simples. O cegar da lua não durou o que deveria e a snake, reagindo
quando a flecha negra estava na metade do caminho, convocou um escudo
com uma só palavra, igual ao que ela fazia. Marta imaginou que seria o
feitiço que tinha na reserva e, como também era matrona, teria outro em seu
bracelete. Some a telecinese e as serpentes da barriga e esse seria todo o
repertório com o qual poderia enfrentá-la. Depois, teria que pronunciar cada
feitiço linha por linha, perder um valioso tempo que a moon-wolf usaria
para derrotá-la.
Então Marta a ficou olhando com um sorriso expectante nos lábios.
Observou como sua flecha saía ricocheteando contra o escudo mágico,
perdendo-se na distância. O escudo, uma semiesfera esbranquiçada que
cobria a bruxa, tremeu mas aguentou. Sem dúvida, Esteno era muito forte.
Não quadrava a Marta que fosse tão forte quanto uma índigo; mas se
tratando da líder das snakes, que havia brincado com magia proibida,
esperava qualquer coisa.
—Jkococotho —pronunciou Esteno e uma nuvem esverdeada saiu
de seus dedos se dirigindo a toda velocidade em direção a Marta.
Bem, seu segundo e último feitiço preparado, pensou esta enquanto
conjurava sua própria barreira mágica.
Magia básica, presente nos grimórios de todas as casas.
E lhe ocorreu o mesmo que à snake: a barreira, semiesférica, tremeu
ao receber o ataque, mas aguentou a investida da nuvem esverdeada,
seguramente um veneno. Repeliu-o para os lados, não deixando que
continuasse indo dirigido a ela. Tratava-se de um gás que, por isso, deveria
se espalhar e atacar Marta pelas costas, onde não tinha escudo. Mas a magia
deste havia desviado o feitiço em outra direção. Por sorte, não havia sido
em direção a seus amigos.
—Já não lhe resta nada, bruxa —sorriu-lhe Marta.
Era bom saber que não era a mais fraca, mas sim a mais poderosa.
—Você acha? —Arqueou uma sobrancelha—. Pois vai ter uma boa
surpresa.
A moon-wolf esperou um ataque de telecinese ou das serpentes das
tatuagens. No entanto, foi outra palavra mágica que provocou que, no chão
sob seus pés, estéril, nascessem trepadeiras que cresceram a grande
velocidade e rodearam seus tornozelos, subindo com força por suas pernas.
—E isso? —ficou atônita em vez de reagir.
As plantas subiram por seu ventre.
—Você não é a única que foi renovada como índigo. Shytja amiash!
—respondeu-lhe e a terra entre ambas começou a se levantar, como se algo
a empurrasse para fora.
A revelação foi como um balde de água fria em toda regra.
Marta, de imediato, se recriminou por ter sido tão idiota e deixado
que o poder lhe subisse à cabeça. Porque a batalha naquelas celas snake
havia sido tão fácil... Rapidamente, enquanto as trepadeiras chegavam a seu
peito e tentavam agarrar suas mãos, lançou o feitiço de dardos de cor osso,
a drenagem de lua que havia usado em sua luta contra Sonia, para cortar as
trepadeiras e impedir que lhe imobilizassem.
—Deoghal gealach —ordenou e as cinco setas cortaram os ramos de
trepadeira.
Repetiu mais uma vez, para acabar com a planta que tão
arteramente, ao vir de baixo, havia burlado seu feitiço defensivo.
Falando em escudos...
Havia uma serpente píton enorme, de corpo tão grosso quanto o
tronco de um carvalho, que estava se lançando contra seu escudo. E o
quebrou. E se atirou em cima dela.
—Gainne gealaich! —se defendeu, cegando-a.
Além disso, como a snake a havia estado olhando, seu escudo
também se quebrou.
De imediato, Marta tirou uma adaga e a cravou nessa enorme
serpente em um olho, confiando em chegar a seu cérebro.
Era... asquerosamente real. Não uma flecha fantasmagórica como as
que ela conjurava, como ilusões. Não... era uma serpente de verdade que a
regou com seu sangue assim que retirou a adaga e procedeu a cravá-la a
toda velocidade no outro olho. Em seguida, Marta se afastou. O
aturdimento do feitiço acabou rápido e a serpente se lançou onde instantes
antes ela havia estado.
—Deoghal gealach! —gritou e os cinco dardos acabaram com a
besta ferida, a qual, ao cair morta no chão do plano, se dissolveu em uma
fumaça esverdeada, como se nunca tivesse existido. Sua marca na terra,
provocada por seu peso, foi o único rastro que restou da monstruosa
criatura.
Mas a snake não havia ficado quietinha olhando. Novas trepadeiras
iam atrás de Marta, a qual, ao escutar a palavra do feitiço, já estava se
afastando.
—Saighead seacaid! —gritou enquanto acabava de esquivar as
plantas, lançando uma nova flecha de lua contra sua rival.
Esta voltou a erguer seu escudo para se proteger e com um golpe de
telecinese mandou Marta contra a trepadeira. A mulher caiu de lado, bem
sobre os verdes talos que se apressaram a agarrar sua cintura e quadril.
—Deoghal gealach —se liberou com as cinco setas.
Em seguida, enquanto pensava que isso parecia um maldito empate,
convocou seu escudo.
O que ela sabia sobre combates de bruxas? Pouco. Que as matronas
costumavam ganhar por ter um feitiço extra na reserva, já nem se fala da
matriarca suprema que sabe-se lá quantos tinha. E se fossem bruxas do
mesmo nível, uma vez acabada a reserva, se dedicavam a se contorcer e
recitar sua magia, em uma tentativa de ser mais rápida que a outra e, assim,
ganhar a batalha. Alguma vez, uma bruxa havia ganhado por atacar sua
rival com uma adaga ou uma pistola enquanto esta realizava sua magia.
Marta tinha um ás na manga, mas se sentiria melhor consigo mesma
se o fizesse por si mesma, sem usá-lo. Então, enquanto seu escudo se
formava diante dela, espremia o cérebro tentando encontrar um modo de
vencer Esteno. Ambas eram índigos e pareciam ter o mesmo nível de
magia. Isso quadrava com por que havia demorado a penetrar seu feitiço de
ilusão. O que deveria fazer?... Se a atacasse corpo a corpo, a snake tiraria
suas serpentes tatuadas, então melhor se manter a vários metros dela. O que
lhe restava? Puxa... assim, por ora, não lhe ocorria nada.
Esteno acabava de voltar a fazer tremer a terra, em vários lugares ao
mesmo tempo. Saíram não uma, mas múltiplas serpentes, porém menores.
—Deoghal gealach, Reamhar gealach —contra-atacou Marta.
O primeiro para quebrar-lhe o escudo com outra flecha; o segundo a
gravidade da lua para que tanto sua rival quanto as serpentes ficassem
grudadas no chão e incapazes de se moverem pelo súbito e brutal aumento
do peso de seus corpos.
Funcionou. Aliás, a bruxa caiu no chão antes que a flecha acabasse
com seu escudo, já que a gravidade, como as plantas, não era um ataque que
viesse de frente. Aproveitando que sua rival estava de joelhos, com as mãos
apoiadas no chão e fazendo força para não cair de cara contra este, Marta
lhe lançou outra flecha de lua, que acertou o alvo. Pôde ver sua inimiga se
sacudir pela dor quando a ponta, escura, se cravou na carne de seu peito.
Uma pena que tivesse errado o coração. A haste se dissolveu como o
restante da seta, deixando um buraco carmesim em seu vestido.
—Deoghal gealach —repetiu e notou que cada vez lhe restava
menos magia, menos dessa energia que pulsava com força em suas veias
desde que era uma índigo. O outro feitiço, o da gravidade, era de altíssimo
nível e a havia drenado bastante. Era melhor que acabasse logo com sua
rival porque não lhe restava muito e não queria acabar como no cárcere
snake: inconsciente por abusar da magia.
Antes que a flecha voltasse a impactar em Esteno, a gravidade
acabou e esta moveu seu braço, levantando-o do chão para arremessar
telecineticamente uma das serpentes contra a flecha. Ambas as criações
mágicas se anularam mutuamente, se dissolvendo no ar. Era o que acontecia
quando as bruxas tinham o mesmo poder.
Mais telecinese, pensou Marta, ou por ser matrona ou por ser índigo,
quem sabe.
As demais serpentes já iam atrás dela. Seu escudo não aguentaria
muito. Precisava voltar a conjurar a gravidade lunar e então acabar com
Esteno mesmo que fosse com sua faca. Enquanto havia estado no chão, não
parecia ser capaz de lançar magia. Deixou que as serpentes atacassem seu
escudo e começou a correr em direção a sua rival, que a olhou estranhada e,
depois, sorriu. Provavelmente pensava que havia ficado sem magia. As
tatuagens da snake começaram a se remexer em seu estômago, sua tinta
ondulando, crescendo em três dimensões e lançando sete serpentes que se
retorciam um par de metros pelo ar, na direção pela qual Marta se
aproximava.
—Tão cedo se rende, bruxinha? Sempre foi uma desgraça para
nossa sociedade —zombou Esteno.
Três de suas serpentes do feitiço anterior haviam se dissolvido para
quebrar o escudo. As demais estavam dando meia-volta, para atacar Marta
por trás quando a alcançassem.
A moon-wolf nem lhe respondeu. Estava correndo o mais rápido
que podia para encurtar as poucas dezenas de metros que a separavam de
sua rival. Esta não lhe atirou com nada. Ou porque estava convencida de
que Marta não tinha mais magia ou porque queria poupar a sua. Antes de
chegar ao alcance das serpentes de seu estômago, Marta voltou a chamar a
gravidade:
—Reamhar gealach —pronunciou, e sentiu como suas forças a
abandonavam.
Mas tinha que continuar, não podia parar, não por mais que se
sentisse tão cansada. Adaga na mão, devorou a toda velocidade os escassos
três metros que a separavam da bruxa que estava outra vez contra o chão.
Suas serpentes, as tatuadas, haviam caído e já nem se retorciam: estavam
totalmente grudadas no chão. Marta pisou em um par enquanto corria.
Quando chegou diante de Esteno, nem pensou, levantou sua arma para
cravá-la na nuca. Uma explosão de telecinese a jogou para trás. Parecia que
a força da gravidade lhe impedia de falar, mas não de lançar-lhe esse poder
que sua deusa lhe dava. Marta caiu de bunda contra o chão, a adaga se
soltou de seus dedos e aterrissou a seu lado. Antes que pudesse se levantar,
aturdida pelo golpe, o feitiço da gravidade lunar havia acabado e Esteno
acabava de convocar suas plantas. Os talos, verdes e fortes, a agarraram
pela cintura, pernas e braços, imobilizando-a.
Maldição, será que ia perder?
Não, Marta se negava. Que se dane seu recém-encontrado orgulho.
Usaria seu ás na manga, pediria ajuda a Arianhrod. Mas enquanto o fazia,
enquanto as pequenas serpentes que já haviam chegado diante dela
cravavam seus agudos dentes nas pernas e no estômago, enquanto sentia a
dor e as criaturas mágicas se dissolviam em névoa após terem cumprido sua
função, sua conexão não funcionou.
Sua senhora estava na Terra, com seu círculo, em um ritual pronto
para lhe mandar poder. No entanto, ela estava em um plano demoníaco. A
conexão havia se rompido e era agora, quando precisava, quando a buscava,
que a moon-wolf se deu conta.
O terror se refletiu em seus olhos.
Esteno, que estava de pé diante dela ignorando o sangue que
manchava seu peito, começou a rir.
—Viu, coisinha de nada? Não deveria ter aspirado a mais do que ser
a última merda, a bruxinha mais patética das quarenta e nove casas. Brincou
com fogo e agora vou te queimar. —Curvou os lábios em uma careta sádica,
bem do estilo das snake, e Marta soube que estava acabada. Olhou ao seu
redor. Violeta, Atzir'itz? Talvez pudessem ajudá-la?
Mas ambos pareciam ter desaparecido. Estava sozinha.
Esteno deu outro passo em sua direção, estava fazendo com calma,
parecia estar saboreando o momento. Normal, Marta havia frustrado todas e
cada uma de suas tentativas de assassiná-la. Inclusive havia se negado a ser
um aperitivozinho para sua deusa Shanetta. E por isso, porque já não era a
que foi, porque havia caminhado entre cadáveres no Vaticano, convocado a
névoa, desafiado Sonia, recuperado sua casa, caminhado ao lado de sua
senhora Arianrhod, escapado do plano prisão do deus serpente... não
pensava se render.
Sentia medo, sim, mas precisamente esse medo que a percorria
estava clareando sua mente. Sabia que se não fizesse algo ia morrer; pior
ainda, fracassar na terceira prova de servidão. Também que essa Esteno era
tão presunçosa como sempre: a dava por acabada. E ela ainda tinha um
pouco de magia, ainda podia fazer mais um feitiço. Uma pena que não o da
gravidade. Havia algo no grimório, um feitiço que havia memorizado mas
não testado. Estava marcado como perigoso, como que talvez se o lançasse
morreria no processo ou não haveria volta. Sentia que podia fazê-lo. Uma
voz em sua mente, a de sua antepassada, a encorajou. Soava fraca pelo
inferno em que estavam, mas podia escutá-la, tênue e fantasmagórica.
—Faaaça issoooo.
Não hesitou. As serpentes do ventre de Esteno haviam voltado a sua
posição tatuada, possivelmente esgotadas temporariamente pela gravidade
lunar. A bruxa não havia tirado nenhuma arma, parecia que tinha em mente
acabar com ela ou torturá-la com algum tipo de feitiço. Bem, era o
momento.
—Smaer gealach —sussurrou.
E sentiu o poder percorrendo-a. Primeiro drenando-a, já não lhe
restava nada e, depois, percorrendo-a. Loba de lua. Era um feitiço
metamorfo, para transformá-la em uma das lobas que caçavam junto a sua
deusa Diana.
Doeu, como o demônio. E os talos de trepadeira se romperam diante
da mudança de seu corpo. Os ferimentos que tinha na cintura e nas pernas
continuaram ali, mas já não importavam: não incapacitavam a criatura na
qual estava se transformando. Esteno, mortificada, se apressou a lançar dois
feitiços: uma telecinese que lançou Marta para trás e um escudo.
Aterrissou no chão totalmente transformada, com suas quatro patas
apoiadas. Sua pelagem era de um branco níveo e seus olhos marrons. Era
muito maior que um lobo normal, tanto que a cabeça de Esteno caberia sem
problemas entre suas mandíbulas.
—Não pode ser... —murmurou Esteno.
Porque em seu grimório não estava a magia para se transformar em
serpente. Essas malditas dançarinas da lua cheia haviam sido as bruxas mais
poderosas na Idade Média por algum motivo. Começou a convocar
serpentes do chão, trepadeiras, inclusive a lançar-lhe ondas telecinéticas.
Mas a loba já estava sobre ela. Esquivou das raízes enquanto saltava
sobre seu escudo, o qual quebrou com duas mordidas. As serpentes ainda
não chegavam até ela e a telecinese apenas a sacudiu um pouco para o lado,
de onde saltou com agilidade em direção a sua presa.
Suas enormes patas impactaram no peito da snake e a jogaram para
trás. Seus beiços se contraíram mostrando suas presas. A saliva gotejou
sobre o rosto de Esteno instantes antes de que suas mandíbulas se
cravassem em seu pescoço. Mordeu. Arrancou-lhe a cabeça. Essas
serpentes que já haviam chegado até a loba e começavam a mordê-la se
dissolveram com a morte de sua bruxa.
Manchada de sangue, parte seu e mais parte de sua inimiga, Marta
ergueu o focinho em direção a um céu sem lua e uivou.
Esgotada, sem poder mágico, havia se perdido.
O pior de tudo, era que continuava sendo a serva de sua senhora, a
terceira prova de servidão não havia se cumprido. A última coisa que
pensou antes de perder toda consciência humana foi que, no final, havia
tido uma luta das que Violeta gostava: longa, fodida e cheia de hematomas
por todo o corpo.
DEZENOVE
—Marta, Marta, volte a si —eu disse à enorme loba que sem dúvida
era minha amiga.
Mas a besta, ferida, estava me mostrando os dentes e rosnando para
mim.
Para mim e Atzir'itz não havia custado muito acabar com os guardas
mutados que havia neste lado do portal. Como tinham parte demoníaca, a
atração da Devoradora de hostes havia funcionado às mil maravilhas.
Quando terminamos, vimos Marta tão metida na luta, que decidi não
intervir. Era sua prova de servidão, a última, e, conhecendo-a, desde que
havia adquirido culhões não iria gostar nada se eu lhe desse uma mão. Se o
fizesse, certamente ficaria brava e me ressaltaria que teria podido sozinha.
Bom, era uma índigo então... não havia perigo. A deixávamos sozinha. De
fato, fui com meu demônio favorito (depois do meu avô) investigar a área,
não fosse haver mais guardas por perto.
Guardas não vimos, nem mutados, mas sim alguns demônios de
baixo nível. Este plano... qual seria? O segundo?
—O terceiro —me confirmou Atzir'itz assim que perguntei.
Ótimo então. Nos livramos com facilidade desses demônios e
voltamos com Marta. Chegamos bem a tempo de ver o final da luta: ela
imobilizada (confesso que me fez repensar sobre não intervir), a snake já
saboreando sua vitória e a gloriosa loba branca arrancando-lhe o pescoço.
Uau.
Não sabia que minha amiga podia fazer isso.
O problema foi que não voltava a mudar para sua forma humana, era
como se tivesse ficado travada no feitiço e estava rosnando para nós.
—Marta, sou eu, Violeta, não se lembra de mim? —suavizei minha
voz.
Continuei tendo um rosnado como resposta.
—Cheira a magia, não a licantropia —comentou Atzir'itz.
—Ainda bem, já seria o que faltava para ela. Vamos, Marta, sou eu...
—Comecei a me aproximar, bem devagar.
Ela rosnava para mim, me mostrava os dentes, mas não fazia
menção de saltar para me morder. Menos mal, porque com minha adaga e
um vampiro eu podia me regenerar, mas minha cabeça cabia dentro dessa
enorme boca e se a arrancasse a morte seria imediata. Fim de qualquer cura.
Claro, sentia o íncubo tenso às minhas costas, como se preparando
para imobilizar a loba se fosse necessário. Ele era mesmo um amor.
—Marta, amiga, calma... deixe-me te levar para casa, para a sua
casa, com Daniel.
Olha, o nome de seu namorado pareceu fazer algo, pois fechou o
focinho e ficou me olhando com uma expressão entre lastimosa e
desconfiada. Perfeito. Aproveitei para terminar de me aproximar e,
lentamente, estendi os dedos para acariciá-la. Era enorme. Me esticando,
cheguei a seu pescoço.
—Atzir'itz, portal o mais perto possível do Samhain, por favor.
—Casio está aqui, não quer que vamos atrás dele antes que o avisem
que o descobrimos?
—Quão grande é este plano?
—Bastante, como a Europa e a Ásia juntas.
—Então, não. Além disso, esses mutados morreram sem nos dizer
onde procurá-lo. —Havíamos tentado, mas foram ou obstinadamente leais
ou muito moles—. Vamos ao Samhain deixar Marta com Arianhrod e
depois ao sétimo plano. Talvez eu tenha sorte e meu avô me empreste
algumas tropas para atacar e vasculhar este plano.
—Para a Terra então —assentiu o íncubo e tirou um frasquinho de
seu bolso. Engoliu-o, regurgitou e realizou sua magia demoníaca.
O vórtice se abriu diante de nós, mostrando o polígono industrial
onde se encontrava o sancta sanctorum das bruxas.
—Venha, Daniel está do outro lado —indiquei a Marta enquanto
puxava com suavidade sua pata dianteira.
Deve ter me entendido porque saltou. Nós a seguimos. Assim que
pisamos na Terra, uma bruxa com aspecto de estar preocupada se
teletransportou diante de nós.
—Arianhrod me manda, acaba de sentir vocês de volta. O que
aconteceu? Vamos, venham, ela está esperando.
Bom, já que de fato íamos para lá... Nós a seguimos até a porta do
bar e para o andar de baixo, onde nos recebeu minha irmã de magia negra.
Estava com seu círculo, parecia que haviam estado fazendo um ritual. As
chamas da tinta pintada no chão estavam recém apagadas, ainda se podia
sentir o aroma que emitiam ao arder com suavidade. Havia velas acesas,
outras com o pavio fumegando. Arianhrod caminhou com sua habitual
lentidão, como uma dama venerável, até a loba.
—Marta —lhe dizia—. O que você fez? Se arriscou muito...
Pôs a mão em seu focinho e os olhos da loba pareceram conectar
com os da bruxa. E sim, a mão em seu focinho: Marta havia se deitado
diante de sua senhora.
—Bom, não tem problema, fique tranquila... Na minha magia não há
nada para te tirar deste estado, você tem que fazer isso. Mas... Esteno?
Fiquei intrigada. Era como se, enquanto estava com Arianhrod, os
olhos de Marta fossem menos de um animal e mais humanos, como se
voltasse a ser ela, ao menos em consciência. Não tinha muito claro o que
estava acontecendo. Por sorte, minha irmã me explicou:
—Ela matou Esteno —nos disse depois de terminar de falar com
ela. Uma bruxa havia trazido Daniel e a enorme loba havia se retirado para
seu lado. Parecia feliz enquanto ele a abraçava—. Teve que fazer o feitiço
da loba da lua, apesar do perigo que implicava de morrer ao lançá-lo ou se
perder nesta forma, porque Esteno era uma índigo snake. No entanto, não é
a líder de nossos inimigos como eu acreditava e por isso ainda não superou
a terceira prova de servidão.
—O quê? —Foi tudo o que consegui dizer, atônita.
—Não se preocupe, Marta é forte, encontrará o caminho para voltar
a ser ela, voltar a ser humana. Enquanto eu não estou usando minha magia
para ajudá-la, não se lembra muito de quem é, apenas sensações, como que
você é sua amiga ou Daniel é seu lar. Peço sua ajuda, Klint´Atz. Preciso que
você vá com ela acabar com a líder bruxa. Em sua forma Marta é muito
poderosa, mas não pode fazer magia. Como índigo, segue sendo imune aos
feitiços de todas aquelas bruxas com menos poder, mas não vai poder
conseguir sozinha.
—Sem problemas, irmã. Só que primeiro devo ir correndo ver meu
avô e ao terceiro plano. Lá está esse traidor do Casio e não quero que ele
me escape de novo.
—Claro. Cuidaremos de Marta enquanto isso.
Não me deu tempo nem de agradecer. Com um gesto de seu pulso,
um fluir do tecido de sua manga direita, Atzir'itz e eu aparecemos em certa
árvore em certo campo. Parecia que Arianhrod lembrava onde estava o
vórtice que dava no lago. Era o sexto plano, tudo bem, mas nesse lago havia
outro que nos levava ao sétimo, então coloquei meu celular na capa de
plástico que levava para esses casos (quando não preferia escondê-lo no
campo), olhei para o íncubo que me fez um gesto afirmativo, e pronunciei
as palavras de abertura.
—Hekjoa glmaltar emnj.
Saltamos. E dali para o ilhote, para chamar nossas montarias, e
depois ao vórtice do sétimo plano. Aparecemos em suas planícies escuras e
sulfurosas, a várias centenas de quilômetros do vulcão sobre o qual estavam
construindo seu castelo. Meu avô, uma das primeiras coisas que fez após
conquistar o inferno, foi colocar um vórtice que o comunicasse com seu
lago. Os íncubos e súcubos que agora moravam neste plano haviam se
tornado mais poderosos ao respirar uma atmosfera mais rica nos
componentes de nossa magia. Ou melhor dizendo, sua magia; já que meu
estômago não era capaz de obrá-la a não ser que eu drenasse algum com
minha adaga.
Tal como estavam agora distribuídos os infernos, nós controlávamos
os dois mais poderosos e o segundo; além disso, estávamos aliados com as
sombras que governavam o primeiro. Havíamos tido uma aliança com o
quarto, mas os demônios do quinto, aproveitando as guerras do dia do juízo
final, o haviam conquistado. Agora mesmo, nos planos quarto e quinto era
onde haviam se refugiado os senhores demoníacos sobreviventes quando os
expulsamos do sétimo. O terceiro em teoria permanecia neutro, era das
harpias, das irmãs cegas e seus demônios autóctones. No entanto, agora
sabíamos que Casio e os seus se escondiam lá. Talvez pretendessem
conquistá-lo. Meu avô, com os dois últimos planos, qualquer um diria que
por ora teria que estar mais que satisfeito: estava no topo da cadeia
alimentar, o predador mais forte e, além disso, tinha que esperar um pouco
para encher o poço, o que iria lhe levar séculos. Sim, já não milênios, pois o
aumento da população humana na Terra tinha seus lados bons. Uma pena
que com o apocalipse tantos tivessem morrido...
No entanto, esse qualquer um não o conheceria bem, pois já havia
nos comunicado a seus generais que tínhamos que exterminar até o último
dos senhores demoníacos. Sem acesso à magia do sétimo plano, havia
acabado para eles o negócio das bolas de fogo e esse teletransporte quase
sem limite. Mas, mesmo sem magia, basicamente, seguiam sendo os
demônios mais fortes que havia. Por isso, tínhamos que esmagá-los como
baratas, para que não se reproduzissem e invadissem nossa nova casa. Sorte
que nós sim tínhamos magia e, claro, almas.
Isso de esmagá-los, possivelmente incluísse conquistar mais planos.
O quarto e o quinto.
Bem, em todo caso, eu tinha pressa. Tinha que ver meu avô e
conseguir reforços antes que essa sanguessuga me escapasse outra vez.
Meu precioso Txhat potch, meu wyvern de verdes escamas, havia
vindo comigo do sexto inferno. Se molhar não gostava muito, mas já estava
acostumado. Em seu lombo, os quilômetros de interminável planície carente
de vida vegetal deslizaram rápido. Atzir'itz montava no seu próprio, uma
fêmea maior que Txhat potch e que tinha uma enorme cicatriz cruzando-lhe
o focinho. Um pouco mais acima e a teria deixado cega de um olho.
Quando chegamos aos pés do vulcão, dessa imensa estrutura de pedra e
feitiços, de torres retorcidas que arranhavam o céu e se assemelhavam à
arquitetura do castelo no sexto inferno, não pude deixar de me maravilhar
com o quão avançada estava a construção. Demônios menores carregavam
imensos blocos enquanto os feiticeiros de nossa raça os entalhavam,
colocavam e fixavam mediante sua magia. Sobrevoei até a torre central, já
construída, e pedi permissão para aterrissar. Os guardas, ao ver quem
éramos, nos deram passagem franca. Meu avô, pelo visto, estava
supervisionando a decoração de seus aposentos reais. Me dirigi para lá, não
muito certa se era o melhor momento para incomodá-lo. Normalmente,
costumava estar em sua sala do trono. Atzir'itz me seguia à minha direita e
meio passo atrás.

—Avô —me inclinei com respeito desde o umbral do aposento.


Meu rei, que estava contemplando um quadro que detalhava uma
das chacinas da batalha que lhes havia dado o controle do plano, não se
virou ao me ouvir. Ao seu redor, no gigantesco aposento, múltiplos
demônios menores estavam colocando os móveis (uma cama gigantesca
feita com madeira morta das árvores atarracadas do sexto inferno, estátuas
de diversos demônios fêmea e de montarias de guerra, candelabros,
grilhões, mais quadros... o típico).
—Klynth'Atz, entre, estava te esperando antes.
Concentrado, inclinou um pouco o óleo para a esquerda e assentiu
para si. O que me faltava ver, um ser ancestral preocupado que seus quadros
estivessem retos. Essa faceta sua eu havia perdido. Depois, estalou os dedos
atraindo a atenção dos servos, fez um gesto em direção à porta e estes se
apressaram em sair. Finalmente, virou-se para mim e se aproximou alguns
passos. Sem aumentar seu tamanho, meu avô era mais alto que eu,
imponente. Sustentei seu olhar. Ele nunca havia buscado medo em sua
família, mas sim força.
—Meu senhor. —Fiz-lhe uma reverência, igual a Atzir'itz—. Venho
porque Casio está...
—No terceiro inferno —me interrompeu—. Como dizia, você é
lenta. Se não fosse porque são videntes, o traidor teria matado as três irmãs
cegas. Esperava mais diligência de você. Tem que melhorar.
Me olhou com desaprovação e eu me estremeci. Isso não era bom,
nada bom. Por sorte não foi decepção porque, nesse caso, sim que podia me
considerar morta.
Qualquer outro... se meu avô fosse qualquer outro, eu teria mandado
para a puta que o pariu. Porque não havia sido precisamente fácil descobrir
onde se escondia essa sanguessuga. Mas para meu avô... para meu avô um
"sim, senhor, farei senhor". Seria sua neta, mas só porque era sua arma. Isso
era algo que uma princesa demônio esperta era melhor não esquecer.
Porque... o que acontecia com uma arma quando ficava obsoleta ou se
quebrava? Era jogada fora.
Pois isso.
—Espero que sim —me respondeu, severo—. E já chega de perder
tempo. Você tem cinquenta íncubos e súcubos em suas montarias, aos pés
do castelo —Sim, os havia visto ao vir—. Pegue-os e cumpra sua missão.
Tripliquei temporariamente seu acesso ao poço. E lembre-se —me sorriu
com certo deleite e cruel expectativa—, o quero vivo.
—Sim, meu senhor.
Ótimo! Um pequeno exército para mim e mais poder. Isso ia ser
divertido. Não pude evitar que meus olhos brilhassem em um âmbar raivoso
enquanto me inclinava para me despedir e me custava não sair correndo até
Txhat potch. Não precisava me virar para olhar Atzir'itz para saber que
estava como eu, excitado pela ideia de nos vingarmos a golpes de espada,
sangue e, no caso dele, também magia.
—Klint´Atz —escutei meu avô quando já quase havíamos
abandonado o dormitório que estava decorando—, não acho que vá
precisar, mas um pequeno incentivo: esse outro vampiro que esteve presente
no assassinato da sua mãe não é um mutado. É Casio.
Fiquei congelada. Não podia ser. Mas sim, podia ser... Esse filho da
puta, esse bastardo que não merecia viver nem mais um segundo, sabia
quem eu era desde o começo. Com certeza matar minha mãe havia sido
perfeito em seu plano de me encontrar sozinha e desamparada na Terra, me
oferecer sua ajuda e me enganar para assinar esse contrato que teria me
escravizado a ele, tanto a mim quanto a meus poderes.
Não me importei de estar diante do meu avô.
Gritei.
Gritei com toda a raiva e a ira que havia estado guardando desde que
descobri sua traição. Minha mãe, minha pobre mãe humana... Isso era
demais. Jurei e o amaldiçoei. Desejei-lhe todo mal e jurei diante do meu
avô (que curiosamente estava na frente, mas eu o ignorava) que o traria para
que decorasse a parte mais humilhante de seu novo salão do trono por toda
a eternidade.
(Onde o traseiro do meu avô? Sob os esporões de seus pés?
Aceitavam-se ideias).
Quando me dei conta do que acabava de fazer, da minha perda de
controle e falta total de respeito, me virei. Meu avô estava rindo aprovador
e o desgraçado do Atzir'itz parecia ter desfrutado de cada um dos meus
gritos e insultos.
Ótimo.
Voltei a me inclinar e saímos dali a toda velocidade.
Esse filho da puta estava muito morto. E sabia disso. E eu ia levá-lo
ao meu rei para que desejasse estar morto de verdade por toda a eternidade.
VEINTE
Abraçando como nunca minha parte demoníaca, com todos os meus
atributos se mostrando ao máximo (chifres, presas, esporões e uns olhos
âmbar clamando por morte), encabecei meu pequeno exército através do
vórtice ao terceiro plano.
Poucos minutos antes, havia cumprimentado minhas tropas aos pés
do castelo do meu avô. Uma delas, uma súcubo, havia me estendido um
mapa desenhado em pele. Tratava-se do terceiro plano e havia uma zona
rodeada em vermelho.
—Nosso rei me indicou que lhe entregue, minha senhora —havia
me comunicado—. As irmãs cegas apontaram a área marcada como a mais
provável para a fortaleza dos mutados.
Fortaleza, claro... não ia ser tão simples. O covarde fugia para fora
da Terra e se levantava uma estrutura defensiva por precaução. Bem, tanto
fazia, isso só atrasaria o inevitável.
—Obrigada. —Peguei o mapa, o estudei e o guardei.
—Alguma informação relevante a mais? —perguntei-lhe.
—Só que as irmãs disseram para você tomar cuidado para não
tropeçar.
O que era isso? Uma vidência? Bufei.
—Perfeito. Vamos.
E havíamos partido voando em nossas montarias em direção a onde
meu avô havia colocado o vórtice.
Uma vez no terceiro inferno, nos encontramos em uma zona
diferente da que eu conhecia pela luta de Marta e Esteno. Tratava-se de um
bosque. Sob as asas de nossos wyverns, pequenas e não tão pequenas
criaturas saltavam assustadas pelos galhos das árvores, se escondendo.
Normal, estávamos montados em malditos dragões.
Ok, talvez não tão grandes como os dos contos, e com duas patas em
vez de quatro, mas dragões afinal. E possuíam sopro, claro que sim, um
esverdeado e ácido que, se o exalassem, extinguiria o bosque em questão de
segundos, junto com todas as criaturas que ali habitavam e que não
tivessem resistência a seu veneno.
Sim.
Imaginava que os mutados dos quais essa sanguessuga teria se
rodeado seriam a elite, os mais fortes, os que teriam poderes como os de um
vampiro milenar. Mas o que poderia lhes dizer? Eu também era elite, eu e
as tropas que me seguiam.
Afinal de contas, agora nós éramos os temidos demônios do sétimo
plano e, como se não bastasse, meu vovô havia me aberto o acesso ao poço
ao triplo.
Vovô?
Ops... pois sim que estava me dando liberdades, sim, ainda que só
fosse na minha mente. Supus que devia fechar um pouco o acesso, que
tantas almas estavam me embriagando.
Sobrevoamos o extenso bosque com rapidez e continuamos nosso
caminho até a zona marcada no meu mapa. Chegamos umas duas horas
depois. Paramos. Nossas montarias aterrissaram sobre o solo pedregoso.
Não para descansar, pois para um dragão demoníaco um par de horas de
voo não é nada, mas sim para nos organizarmos. O terreno era um deserto
cheio de pedras de grande tamanho, terra rachada pelo calor e um ou outro
arbusto atarracado que tentava sobreviver como podia. Não estávamos nem
nas montanhas, nem no mar, nem em uma das zonas de florestas. Isso era
uma planície a meia altura, que parecia interminável se você olhasse para o
horizonte. De cima, não havia visto nada que se parecesse a uma fortaleza,
então supus que se as irmãs cegas haviam acertado, a construção não
superaria em muita altura as enormes rochas que salpicavam a planície.
—O primeiro é localizar onde se esconde essa sanguessuga. Então
vou mandar exploradores. —Olhei para meus soldados. Na verdade, eram
bastante parecidos em tamanho e atributos, igual aos wyverns. Dei de
ombros mentalmente. Dez quaisquer me serviriam—. Vocês e vocês. —
Apontei ao acaso—. Quero que saiam em voo de reconhecimento. Se
localizarem a fortaleza, voltem imediatamente para informar. Se os
atacarem, voltem também. Quero que saibam que esses vampiros se apoiam
demais na tecnologia humana. Neste plano, um míssil não acho que
aguente: o calor e a radiação freariam sua eletrônica; mas certamente terão
também armas mecânicas. Sei que uma pistola não vai fazer nada a um
wyvern, mas os humanos têm armas mais potentes, de funcionamento
mecânico, que sim poderiam feri-lo ou matá-lo. Então, se os atacarem,
desviem e voltem para informar. Alguma pergunta?
—Nenhuma, minha senhora —me respondeu uma deles.
—Perfeito, partam.
Observei como empreendiam a marcha, as asas de suas montarias
batendo com força no ar, e continuei dando instruções:
—Quando os tivermos localizado, atacarão a fortaleza sem mim.
Atzir'itz, você liderará o ataque. Eu só precisarei de um par de soldados
para que me ajudem a vigiar a zona. Sobrevoaremos os arredores, porque
esse traidor é um covarde. Ele se acha superior aos demais e teceu uma rede
de controle e engano. Já fugiu de mim uma vez, no apocalipse, e se
escondeu tão longe que foi para um inferno. Não lutará. Com certeza tem
uma saída secreta, algum túnel, pela qual escapar.
—E se for um portal? —me perguntou meu segundo íncubo favorito
enquanto franzia o cenho.
—Os demônios dos planos inferiores não têm magia para abrir
portais —constatei o óbvio. De fato, o lago de vórtices do meu avô era
como uma das sete maravilhas demoníacas. Se os demônios dos dois
primeiros planos quisessem ir à Terra, era como endemoniados, possuindo
corpos, não tinham outro modo. Bem, se fossem convocados por um
humano, também podiam. Mas portais... nem pensar. No sétimo plano, seus
antigos senhores, bebiam da rica magia para se teletransportar. Agora que já
não estavam lá e já teriam acabado com seus frasquinhos cheios de metais
do plano, nem se teleportar nem bolas de fogo. O que lhes restava? Imagino
que teriam disposto de mutados demoníacos com sua reserva de metais para
se abrirem um portal a este plano. Mas esse portal nós o havíamos fechado.
Poderiam ter outro na fortaleza? Hmm... talvez. Bom ponto para Atzir'itz—.
Claro que já vimos como algum de seus mutados, com frasquinhos do
sétimo plano, puderam fazê-lo... Deixo isso com você. Quando atacarem, se
notar que está se fazendo magia para fazer um portal, a prioridade será ir
fechá-lo.
—Será um prazer, minha senhora. —Seus olhos reluziram em um
perigoso âmbar.
Sim... não duvidava que você também estava louco para cravar as
garras nesse bastardo.
—Agora, descansem.
Aguardamos até que os exploradores voltassem. Um não demorou
nem dez minutos, pois o haviam atacado. Foram chegando pouco a pouco e
o penúltimo foi o que havia encontrado o prêmio gordo.
—Minha senhora, a fortaleza está a menos de vinte minutos em
direção sudoeste. Trata-se de um edifício de pedra, não muito elevado. Não
quis me aproximar demais, acho que não me viram.
—Perfeito. Suponhamos que sim o fizeram e isso os fez aumentar
suas patrulhas ou os guardas que tenham. Deixem uma mensagem para o
explorador que falta, que saiba onde nos procurar, e vamos. À vingança e à
morte! —gritei enquanto montava em Txhat potch.
Alguns humanos buscavam a glória na batalha; outros, dinheiro.
Nós éramos mais básicos: diversão, conquista e vitória. Mas sobretudo
diversão. Éramos demônios, medrávamos na morte e na dor.
Minha parte humana fazia já dias que deixou de se horrorizar com
isso. Além disso, todos os que estavam nessa fortaleza seriam aberrações
mutadas, demônios do sétimo plano ou vampiros assassinos. Sem dúvida,
não mereciam nada melhor.
Assim, sem perder nem um instante, lá fomos.
Sobrevoamos os céus seguindo o explorador. Quando este esteve a
distância suficiente para avistar nosso objetivo, sua montaria começou a
mover pesadamente as asas, para se manter quieta no ar, sem avançar.
—Ali, minha senhora! —gritou-me e segui a direção que me
marcava sua mão estendida.
Apertei os olhos para ver melhor e sim: na distância podia ver a
fortaleza, feita da mesma rocha que atapetava o terreno, indistinguível pela
cor mas sim porque nenhum outro agrupamento de pedra era tão largo.
—Perfeito. Vocês dois fiquem comigo para varrer o perímetro.
Atzir'itz, o resto é todo seu.
O aludido deu a ordem e os quarenta e oito guerreiros restantes (o
explorador já havia se juntado a nós, após esporear sua montaria) o
seguiram em seu voo. Teriam avançado uns trezentos metros quando se
ouviu o som da defesa antiaérea. Eram carros de combate, antigos, com dois
ou três canhões de artilharia que disparavam balas de tamanho suficiente e
com força suficiente para derrubar um wyvern. Imediatamente, Atzir'itz
deve ter dado uma ordem pois todos os wyverns se separaram para desviar
das balas e subiram em direção ao alto, para atacar a fortaleza de uma altura
segura à qual não chegasse a artilharia inimiga. E uma vez lá... oh, sim,
gostava de como pensava o íncubo, pois todos os wyvern deixaram cair
para baixo seu sopro venenoso e ácido. As nuvens, densas, baixaram com
lentidão. Quando chegaram à fortaleza, os inimigos haviam se abrigado
dentro, exceto os poucos desgraçados que deviam se manter nos carros. O
sopro de wyvern foi capaz de corroer tanto a pedra quanto o metal dos
carros, assim como os vampiros e mutados que estavam dentro destes. Não
cheguei a escutar seus gritos de dor, estava longe demais, mas os imaginei.
Deliciosos. Quanto a meus dois companheiros e eu, nos havíamos separado
controlando o perímetro, olhando para baixo para ver se víamos o covarde
sair fugindo. Isso nos fez nos aproximar do chão mais do que eu teria
gostado, mas Atzir'itz já havia se encarregado da artilharia antiaérea. O
seguinte para eles, segundo me contou, foi simples: pousaram na pedra
destruída dos tetos, a qual em muitos casos desabou sobre os diferentes
cômodos da fortaleza. O seguinte foi sopa no mel. Se o teto caía, os
wyverns revoavam e, de cima, seus cavaleiros lançavam bolas de fogo
contra os ocupantes. Depois, entravam e lutavam corpo a corpo para chegar
aos demais cômodos, guerreiros íncubos e súcubos armados com espadas e
adagas, prontos também para lançar magia demoníaca. Os inimigos não
tiveram nada a fazer. Foi uma gloriosa carnificina. Alguns mutados
pareciam vampiros milenares, havia também antigos senhores do sétimo
plano que deviam estar totalmente sem frasquinhos de metais, pois não lhes
restava mais magia que a pouca que pudesse sustentar a atmosfera do
terceiro plano. Estes dois casos foram os inimigos mais difíceis, mas nada a
que os guerreiros do meu avô não pudessem fazer frente. Que algum dos
nossos caiu, ferido ou morto? O que importava, não foram muitos e essa
possibilidade de morrer tornava a luta e a vitória muito mais doce para
minhas tropas. Quanto a mim... foi um dos meus dois companheiros quem o
avistou e gritou para me avisar. Esporei Txhat potch e voamos a toda
velocidade em direção a esse rato rasteiro. Ali estava: correndo pela
planície enquanto um par dos seus saíam de um buraco que devia haver sob
uma pedra que haviam tombado e afastado.
—Casio! —o chamei enquanto abria ao máximo meu acesso
triplicado ao poço.
Mas ele nem se virou, continuava correndo.
Hmm... devia ter ou outro refúgio ou algum modo de escape ali na
frente. O que quer que fosse, não pensava deixá-lo chegar. O cavaleiro que
o havia visto, uma súcubo, estava planando sobre ele para que seu wyvern o
agarrasse com as garras. Meu outro cavaleiro estava mais longe, ainda a
caminho.
Dois mutados a mais saíram desse buraco e, os dois de antes,
flexionaram as pernas, abriram suas asas e saltaram em direção ao wyvern,
para interceptá-lo.
Mutados com asas... realmente essa alquimia dava nojo.
Meu wyvern não ia pegá-lo, não com o sanguessuga queimando até
a última gota de sangue milenar para correr tanto. Então saltei. Não caí no
chão: minhas asas se abriram e continuaram o voo. Ia direto atrás dele. Já
havia comprovado no Vaticano que com esse presentinho do meu avô era
mais forte e rápida que ele. Só que de repente o muito covarde aumentou
mais sua velocidade. Franzi o cenho. Não pude evitar. Um vampiro tinha o
poder que tinha por sua antiguidade, não era algo que pudesse aumentar
como eu com meu acesso ao poço modulado pelo meu avô. Só me ocorria
uma resposta para por que estava ganhando terreno de mim: havia mutado.
Meus dois soldados estavam ocupados lutando com os asseclas que
haviam saído do buraco. Então não tinha que me preocupar que me
atacassem pelas costas. Aterrissei no chão e corri, a toda velocidade, com a
esperança de talvez assim poder apanhá-lo. Se pudesse fazer magia, lhe
lançaria uma bola de fogo; que pena que não era o caso. Frustrada, porque
cada vez se distanciava mais de mim, gritei para ele:
—Maldito covarde de merda, dê meia-volta e lute!
E que me expliquem por que funcionou.
O cretino parou em seco, se virou e, quando me teve a uns cem
metros de distância, me disse com esse sorrisinho presunçoso dele (que os
infernos me perdoem por tê-lo achado sexy alguma vez):
—Você tem razão. Sou mais forte que você ou teria me pego. Para
que correr se posso te esmagar?
Eu também parei. Queria ouvir de seus lábios a traição antes de
acabar com ele.
(Ah, que era mais forte... Bom, provavelmente, mas ignorei essa
parte: não me interessava).
—Maldito bastardo, você é o vampiro restante que matou minha
mãe.
Ele caiu na risada.
—Claro, tinha que me assegurar que ela não te criasse nem uns
anos, como seguramente teria permitido seu pai. Te queria fraca
emocionalmente, para te resgatar e que fosse simples te submeter a mim.
—Seu filho da puta maldito, sádico, assassino de mulheres
indefesas, não merece nem o ar que respira ou o sangue que chupa, tomara
que a terra te agarre e te arraste até as profundezas de suas entranhas, onde
nenhum caixão te proteja de ser devorado por vermes uma e mil vezes,
maldito bastardo, manipulador, escória, traidor! —explodi.
—Terminou?
O desgraçado estava rindo de mim, sabendo que se me tirasse do
sério eu seria ainda mais fácil de derrotar. Mas não me importava! Estava
tão brava que já nem lembrava do negócio de deixá-lo vivo para meu avô.
Tirando garras me lancei contra ele.
Que me esquivou com facilidade, da minha esquerda agarrou meu
pulso e me estampou contra uma rocha próxima.
Foram vários dentes e uma boa contusão na cabeça. Tentei me
levantar, mas meti o salto em uma fenda do terreno e tropecei de volta ao
chão. Sem me dar tempo de reagir, aproveitou a oportunidade e começou a
me dar socos na cara. Parecia que o desgraçado estava se compensando
porque eu não havia me deixado controlar, ao menos não totalmente, e não
havia assinado seu contrato.
Bem.
Não havia nada como umas boas porradas para que uma princesa
súcubo recobrasse sua cabeça fria. E olha só, era ele agora quem estava se
deixando levar pela raiva...
Não sorri porque tinha a boca partida. De meus olhos era melhor
nem pensar. Mas também não precisava ver para levar minha mão a Skitkk
Maaz e cravá-la nas bolas dele.
Bom, errei.
Teria sido bom poder ver.
Mas a virilha também funcionou para o efeito de drenar.
Eu adorava esse outro presentinho do meu avô... Sim, esse bastardo,
se havia mutado, era mais forte que eu; mas queria ver o que fazia enquanto
a Morte Cevada drenava sua vida e me passava, capacidade de regeneração
incluída.
Pois que depois de uns quinze segundos me deu outro soco.
Merda. O cara havia ficado forte. Porque até agora nenhum
sanguessuga havia sido capaz de se mover enquanto minha adaga os
drenava. Algo assim como quando um humano se conecta a muitos volts de
uma corrente elétrica.
Retorci a adaga dentro de sua carne.
Me deu outro, desta vez mais forte e na mão da adaga. Soltei-a.
E de imediato esse filho da puta, com a adaga ainda cravada na
virilha, se lançou contra mim para me imobilizar e me acabar.
Mas eu já havia me curado. Sua energia, milenar, fazia maravilhas.
Aliás, a mordida que acabava de me dar na jugular enquanto com sua maior
força havia me imobilizado pelos pulsos contra a rocha, estava se curando
enquanto a sanguessuga mordia para dilacerar e me matar.
Ha!
Uma energia tão poderosa que ainda tinha os efeitos de sua
regeneração. Hmmm... e não deveria ter aumentado também minha força?
Tentei mover as mãos, mas nada. Talvez sim o tivesse feito, mas nesta
postura era difícil me libertar. Ou não tanto...
Agora sim sorri, enquanto o dano que estava fazendo na minha
garganta se curava no ato. Usei o truque de qualquer garota na minha
situação e, ei, para acertar nas bolas com o joelho não precisava ver.
Cravei meus olhos em sua cabeça, seu cabelo preto, a única coisa
que podia já que, qual cachorro, estava emperrado em me dilacerar a
jugular. Ficou quieto. Repeti o movimento, certeza que doeu. Aproveitei
que afrouxou o aperto nos meus pulsos para tirá-lo de cima de mim.
Apoiando minhas costas na pedra, dobrei ambas as pernas e lhe dei chutes.
Saiu bruscamente arremessado para trás. Não caiu, recuperou o equilíbrio.
Seus olhos estavam totalmente vermelhos. Mas agora eu sabia a que tipo de
monstro me enfrentava. E não era a um vampiro líder do Conselho, mas sim
a um covarde que medrava traindo os seus, matando mulheres humanas
indefesas e manipulando suas crias.
Maldito Casio.
Cuspi só de pensar em seu nome.
Essa escória não merecia que eu voltasse a pensar nele. O bom de
ser demônio e não meramente humana era que podia me ensanhar com ele,
devolver-lhe golpe por golpe, e que a lei do meu avô aprovaria.
Enquanto meu pescoço se regenerava, embora desta vez não
totalmente (parecia que o efeito de sua energia vital já havia se esgotado),
sorri para ele com desdém.
—O que foi, vampirinho? É que nem mutado você é homem
suficiente para uma mulher.
Se lançou contra mim, sem nenhum tipo de controle. Estendi minhas
asas enquanto saltava para cima, voando para ficar fora de seu alcance.
Olha, saltava mais alto do que quando era meramente vampiro. Já que
estava voando, olhei em direção à zona do buraco. Meus dois soldados
voavam até mim, um montado em seu wyvern e o outro com suas próprias
asas de súcubo. Deviam ter vencido esses mutados. Sim, as tropas do meu
avô eram muito fortes, pois não duvidava que os mutados que essa
sanguessuga covarde havia arranjado como guarda-costas tinham um poder
similar ao dos vampiros milenares. Fiz-lhes um gesto com a mão para que
não se aproximassem mais. Essa escória nosferatu era minha.
Fiquei um tempo brincando de gato e rato. Foi divertido ver como se
desesperava para me alcançar. Mas isto tinha que acabar antes que se
cansasse e recuperasse o controle, porque se eu não drenasse sua energia,
era mais forte que eu. Bem. Quando menos esperava me lancei em um
mergulho atrás dele. Reagiu a tempo e me agarrou. Não me importava.
Minhas asas estavam dobradas contra minhas costas, então não as quebraria
com facilidade. E minha mão havia chegado onde queria: sua virilha.
Enquanto aguentava a dor de seus dentes me mordendo outra vez e
arrancando carne (este tinha complexo de cachorro, depois de tudo), agarrei
o cabo da minha adaga e puxei para tirá-la. De imediato, voltei a afundá-la.
Desta vez nessas bolas que já havia esmagado antes com um par de chutes.
Ficou quieto e começou a se retorcer de dor. Ótimo. Girei a lâmina dentro
de sua carne: que a dor durasse.
E assim fiquei, drenando-lhe a vida, a energia, através da minha
adaga. Quando o vi consumido e seus testículos já não eram mais que uma
massa sanguinolenta que não regenerava, tirei uma adaga normal e comum
da bota e o estaquei bem no coração.
Bem, isto o manteria quietinho. A seguir, curvando meus lábios em
deliciosa antecipação, tirei Skitkk Maaz de suas bolas e as cortei, junto com
o membro.
Me perguntei se Atzir'itz acharia ruim se as emoldurasse.
—Ai!, dói? —ronronei enquanto segurava meu troféu perto de seu
rosto—. Diferente das de verdade, estas vão crescer de novo em você. Mas
sabe o melhor? Não serei eu quem vai cortá-las de novo... Meu avô guarda
um lugar em seu novo salão do trono, esse lugar especial que destina à pior
escória: os traidores.
Não podia falar, mas vi como seu olhar passava da dor e do ódio ao
medo, ao terror mais profundo. Caí na gargalhada. Era bom ter tirado este
peso de cima. Limpei Skitkk Maaz, joguei no chão suas partes e as pisei.
—Vigiem-no, temos que levá-lo ao meu avô —indiquei aos dois
soldados demônio depois de fazer-lhes um gesto para que se aproximassem
—. Não tem problema se brincarem com ele, só tem que chegar vivo ao
nosso rei e, sobretudo, não toquem na adaga —apontei para seu peito.
Sem perder meus lábios a careta de satisfeito deleite, chamei Txhat
potch e montei.
Tantos anos de controle, junto com a dor de ser traída por aquele a
quem havia amado e escolhido para passar minha vida lutando ao seu lado
(como soava bem o verbo no passado)... tanta merda eliminada em um
momentinho. E minha mãe, já vingada, por fim poderia descansar em paz.
Ao menos assim era para mim.
Ahh, os humanos poderiam dizer que a vingança era coisa de fracos,
mas... como me fazia bem!
Eu era uma princesa demônio, afinal de contas.
Tirando por fim essa coisa dos meus pensamentos, sobrevoei o
terreno até a fortaleza, para ver se meu segundo íncubo favorito precisava
de ajuda.
Parecia que não.
Estavam terminando de acabar com os últimos e, como eu havia
imaginado ao vê-lo sair de um buraco, não tinham nenhum portal ali dentro.
Atzir'itz, ao me ver aterrissar, se aproximou de mim. Como era
bonito! E por fim, agora que já não tinha uma pesada pedra nas minhas
costas, podia me sentir livre para me deleitar no modo como se movia, no
brilho de seus olhos ao me olhar, em tudo o que já era livre para fazer com
esse pedaço de demônio.
—Tudo controlado? —perguntei-lhe.
—Tudo. O traidor?
—Embrulhado e pronto para ser entregue.
Me perscrutou, tentando chegar à minha alma. Sorri para ele. Deve
ter visto na minha nova postura a liberação que acabava de experimentar,
porque vi seus olhos mudando para âmbar.
—Este plano volta a ser livre e neutro. Fazem as honras e abrem um
portal?
Sem parar de me olhar, Atzir'itz chamou três dos soldados e, juntos,
abriram um vórtice temporário ao sétimo plano pelo qual passamos todos.
Não estávamos muito longe do castelo e do vulcão. Qual general vitoriosa,
encabecei a comitiva, com os dois demônios levando uma coisa acorrentada
e estacada logo atrás de mim. Notei a expectativa nos íncubos e demônios
menores que nos haviam visto e se acumulavam fazendo-nos um corredor
aéreo até o castelo.
Queriam vir ver como nosso rei colocava o traidor em seu novo
lugar por toda a eternidade.
Não os culpava. Eu também confiava que fosse um lugar
especialmente desagradável. Embora já não houvesse emoções em relação a
essa coisa. Por sorte, quando lhe arranquei os ovos acabei de matar todas.
VINTE E UM
Momento triunfal, doce e delicioso instante da glória.
Se o caminho até o novo salão do trono foi delicioso, caminhando
por um corredor de demônios quais conquistadores, entregar a presa ao meu
avô foi ainda melhor. Os guardas que custodiavam a porta do salão nos
deixaram passar com um brilho dourado expectante em seu olhar. Eram
íncubos de elite, os melhores entre os melhores, entre os quais Atzir'itz
havia galgado um posto de comando. Assim, por um lado havia respeito ao
vê-lo voltar vitorioso, por outro desejo de ver os inimigos de seu senhor
humilhados e torturados e, claro, o reconhecimento do meu lugar como
princesa real na linha de sucessão ao trono. Sorri para eles. Estava de bom
humor e gostava de ser algo mais que a menina mestiça e espancada que fui
uma vez. Encabecei nossa pequena comitiva seguida de Atzir'itz e dos três
soldados que arrastavam o traidor acorrentado. A adaga continuava onde eu
a havia deixado, em seu coração, impedindo-o de se mover. Claro, não me
virei para olhá-lo. Imaginava que em seus olhos continuaria havendo ira e
orgulho ofendido. Tanto fazia. Ele já não era nada para mim e só restava
uma pequena coisinha...
Acabei de chegar diante do trono do meu avô e me ajoelhei. Este
trono, diferente do sexto plano, estava muito vazio. Havia que adorná-lo.
—Meu senhor —cumprimentei.
—Klint'Atz, levante-se, neta minha. Vejo que voltou e me traz presa
a escória que te encarreguei.
—Como ordenastes —lhe disse enquanto me punha de pé.
Havia me chamado de neta. Devia estar satisfeito.
—O terceiro plano?
—Livre de inimigos. Volta a ser neutro ou vosso se desejardes
reclamá-lo.
—Não, as irmãs cegas são aliadas valiosas e elas gostam de
permanecer neutras. Trinj'Atz. —Virou-se para meu pai, que estava entre a
corte que enchia o salão e se deleitava com nossa entrada triunfal—. Irá vê-
las para fazê-las saber, para entregar-lhes o inferno como agradecimento por
suas vidências.
Meu pai assentiu e meu avô cravou seu olhar no traidor. Fez um
sinal ao íncubo que o arrastava acorrentado e este o aproximou até os pés
do meu avô.
—Casio, que acreditou que eu não sabia o que planejava, que por ter
um par de milênios de vida pensou que era mais astuto que eu, que vivi
eras... —começou a lhe dizer de maneira casual, mas sua aura de poder
estava se tornando tangível e eu, como cada vez que a sentia, me estremeci
de terror. Quando meu avô me lembrava quem ele era, não podia mais que
me sentir tremer assustada pois seu poder, para mim, não tinha rival—.
Crasso erro. Agora ocupará seu lugar por toda a eternidade.
Meu avô se pôs de pé. Sim: se levantou. Não era algo que o havia
visto fazer antes; pois quando se sentava em seu trono não se movia até
abandonar a sala. Agora, porém, com suas calças de couro preto e seu torso
descoberto, encarava o inseto que havia no chão abaixo do degrau sobre o
qual se apoiava o enorme trono. Sim, este era ainda maior que o do sexto
inferno e meu avô, cheio da magia demoníaca mais rica do plano, havia
deixado que seu próprio tamanho aumentasse de maneira natural. Era quase
tão grande quanto os antigos senhores demoníacos e tudo isso sem gastar
nem um ápice de seu poder na transformação.
Tanto eu como o resto da corte estávamos contendo a respiração ao
tê-lo visto levantar-se. Olhei de soslaio para meu pai. Um sorriso cruel
curvava seus lábios. Não devia ser a primeira vez que o via assim. Eu,
porém, nunca o havia visto adicionar uma nova criatura à sua sala de
torturas. Vi-o inalar, respirar com calma profundidade o ar que nos rodeava.
Depois pronunciou algumas palavras em nosso idioma, que eu sabia que
significavam "escravidão eterna, dor insuportável, morte ansiada". Olhei
para aquele que um dia se fez chamar Casio. Algo deve ter entendido
porque a soberba de seus olhos se transformou em um terror absoluto. E
meu avô cuspiu, não sobre o chão mas sim sobre a cara deitada de costas do
traidor. Sua saliva, negra, começou a crescer e a envolver o vampiro,
queimando-o com seu componente ácido, arrancando-lhe a pele e a carne,
devorando as órbitas de seus olhos, elevando-o pelo ar e partindo seus ossos
para, finalmente, movê-lo não em direção ao trono mas sim a um ponto na
entrada de sua sala, em uma coluna próxima à porta onde cada demônio ou
visitante que entrasse ou saísse estava convidado a torturá-lo à vontade. O
feitiço que ali o ancorava regenerava seu corpo, lhe impedia de morrer e
multiplicava sua dor. Ao mesmo tempo, mantinha sua mente sã para que a
loucura não lhe aliviasse jamais. A adaga que estava cravada em seu
coração acabou de se dissolver diante da saliva corrosiva e a criatura,
outrora vampiro, pôde se mover um pouco, se contorcer de dor nessa parede
na qual estava meio fundido. Olhei-o pela última vez. Meu avô nem sequer
o havia considerado um inimigo digno de seu trono. Sorri. Às vezes as
coisas eram muito melhores do que eu havia imaginado.
Meu avô voltou a se sentar, sua aura se retraiu e eu pude voltar a
respirar tranquila outra vez. Era meu senhor, nunca o enfureceria. Havia
sido uma idiota por me calar sobre essa escória. Ainda bem que meu castigo
eram uns simples açoites. Imaginei que, claro, ter-lhe trazido o traidor havia
sido uma espécie de prova.
—E sem dúvida a superou com louvor —soou sua voz no salão do
trono, clara em meio ao silêncio que só rompiam os alaridos de seus
torturados, aos quais um feitiço baixava o volume.
—Meu senhor, sinto muito ter-vos falhado. Não voltará a acontecer
jamais —lhe contestei sincera.
—Com certeza, Klint'Atz. Volte em três luas da Terra, terei tudo
preparado para seu castigo. Até então, deixo-lhe o acesso ampliado ao poço,
já que ainda tem que ajudar a bruxa.
—Meu senhor —me inclinei submissa.
—Quanto a você, Atzir'itz, requeiro de seus serviços para me ajudar
a organizar os infernos. Permanecerá em minha guarda pessoal até o
castigo. A única exceção é que acompanhará a bruxa a acabar com a casa
snake em Paris.
—Como ordenardes, meu senhor.
—E agora —mudou de assunto e passou o olhar por sua corte—,
celebremos o fim das guerras, a conquista dos planos e uma nova ordem
nos infernos onde os senhores demoníacos foram exterminados e nós temos
os planos mais poderosos.
Basicamente assim era. Após o dia do juízo final meu avô dominava
os planos sexto, sétimo e segundo; além de estar aliado com as sombras do
primeiro. Agora, o terceiro voltava a ser neutro. Haviam restado os planos
quarto e quinto, onde a princípio haviam se refugiado os senhores
demoníacos. Como as palavras do meu avô acabavam de me estranhar,
perguntei mais tarde, na celebração, e descobri que, aproveitando minha
incursão no terceiro inferno, dois dos generais do meu avô haviam tomado
os planos quarto e quinto. As batalhas foram rápidas pois a maioria dos
senhores demoníacos haviam ido ou ao terceiro plano ou à Terra. Uma vez
conquistados, ficamos com o quinto e devolvemos o quarto a nossos antigos
aliados, ou ao menos ao que restava deles: vários milhares de demônios que
haviam sido escravizados.
Assim, com as palavras do meu rei começou uma festa, um
banquete de comida e sexo que meu avô apenas presidia. Eu me limitei à
parte da comida, servida generosamente pelos demônios menores em umas
mesas que haviam se apressado em trazer à sala por outra parte vazia.
Atzir'itz também não participou mas me olhava, como me olhava, e eu sabia
ler o desejo em seus olhos.
Em breve, muito em breve... mas o que havia entre ele e eu não
pensava resolver no meio de uma orgia e rodeada de demônios. Era pessoal
e privado.
VINE E DOIS
Olhei para Marta. Ia ajudá-la a tomar a casa snake em Paris. Era um
pouco de loucura, porque ela era uma loba enorme e não falava. Aliás, nem
sequer era ela mesma exceto quando estava junto a Arianhrod. Neste
momento, Marta era mais uma loba, um animal cheio de impulsos cuja
única memória de ter sido humana era ter bem claro quem lhe caía bem e
quem mal. Assim que, seguindo esse instinto, eu não duvidava que ia saltar
na jugular de todas as bruxas snake. Como minha amiga não podia fazer
magia, haviam vindo um par de gilean para lançar os feitiços básicos de
silêncio e detecção de armadilhas mágicas. Eu havia pedido a Lucas um trio
de vampiros, para desativar alarmes e câmeras. Ele os havia mandado sem
problemas. Teria gostado de vir em pessoa, mas o nosferatu estava bastante
ocupado trabalhando com Sylth'Atz para tomar justamente a França e os
demais países que haviam estado sob controle de Casio.
Eu adorava esse "haviam". Porque essa sanguessuga traidora estava
agora no poder do meu avô.
Hmm... como se sentiam bem tanto a vingança quanto a justiça.
E falando de vampiros e da França... Lucas havia comunicado ao rei
de Nova Orleans as más notícias da morte de sua embaixadora.
Enfim, distrações mentais minhas à parte, ali estávamos. Uma vez
que a segurança foi desativada e alguns alarmes e armadilhas mágicas
também, entramos na zona do vinhedo. Por entramos me refiro a Atzir'itz, a
loba e eu. Os vampiros foram embora após terminar seu trabalho, pois
Lucas precisava deles, e as duas bruxas gilean ficaram do lado de fora, caso
precisasse fazer algum feitiço de cura ou apoio. Nada mais, pois não
estavam treinadas para lutar.
Sem problemas.
Todos esses quilos de loba - que eram muitos pois eu com a mão
estendida para cima só lhe chegava ao pescoço -, junto com dois demônios
de linhagem real, íamos ser mais que suficientes para acabar com um ninho
de snakes sem matrona. E a verdade é que foi simples, quase
decepcionantemente simples. Mas, veja, nem todas as batalhas iam ser
longas e sangrentas por mais que eu gostasse assim.
Para começar, havia apenas um par de guardas pelo perímetro dos
campos de videiras cercados, aos quais meu segundo íncubo favorito se
encarregou de maneira rápida e eficaz. Uma figura masculina que de
repente se coloca às suas costas, umas mãos em sua cabeça, um pescoço
quebrado... Algo assim como o que os vampiros centenários costumavam
fazer aos lobos: ser mais rápidos, não lhes dar tempo de reagir. A magia do
aquelarre da casa era a defesa mais poderosa que tinham e, com sua
matrona morta, a haviam perdido.
Em seguida, entramos no vinhedo e caminhamos em direção ao
edifício. Na entrada principal havia também um par de bruxas de guarda.
As que pudessem estar dentro controlando as câmeras não perceberiam que
estávamos ali; pois os vampiros as haviam hackeado com um loop de
gravação onde não se via ninguém se aproximando.
—Vamos por uma janel... —comecei a dizer, para entrar com
discrição.
Mas a loba tinha outra ideia. Se já havia estado rosnando quando
nos aproximamos da propriedade e me custou que ficasse comigo e não
fosse com Atzir'itz atrás dos dois guardas, desta vez me ignorou
completamente e, em meio a um rosnado que alertou as duas bruxas, se
lançou a toda velocidade sobre elas.
—Estamos sendo atacadas! —gritou uma por um comunicador que
levava na cintura, alertando sem dúvida as de dentro.
A outra havia tirado uma pistola e estava atirando em Marta.
Merda. Uma pistola.
A loba seria imune a sua magia, mas não às balas.
Três tiros foi tudo o que lhe deu tempo de apertar o gatilho antes que
o enorme animal aterrissasse com uma de suas patas sobre cada snake,
jogando-as para trás. A primeira errou, as outras duas lhe acertaram em
cheio em uma das patas. Mas a enorme loba pareceu não se importar com o
sangue e a dor. Não havia mais que fúria e determinação em seus olhos.
O seguinte foi o animal arrancando-lhes a vida com um par de
mordidas. Era suficientemente grande para fazer isso com uma só bocada
por bruxa. Dando de ombros e pensando que as gilean sim iam ter trabalho
depois de tudo, me apressei em segui-la. A porta principal estava fechada.
Não importou: abriu-a à força, investindo. Após algumas sacudidas, cedeu o
batente. (Mas que força tinha essa besta?) Como se tratava de uma porta
grande, de duas folhas, Marta abaixou a cabeça e pôde passar.
Uma vez dentro da casa, a magia retumbou sobre a loba ferida:
telecinese, serpentes, veneno...
Nós, os demônios, éramos imunes ao veneno mas teria dado no
mesmo porque Marta fez todo o trabalho sozinha. Rosnava, saltava, dava
patadas e, sobretudo, mordia. Como de uma mordida arrancava um membro
ou partia um torso em dois, acabei ficando embasbacada olhando-a.
Atzir'itz, que percebeu, caiu na risada.
—Não vendem dessas na loja de animais —chegou-me sua voz,
grave e forte, apesar da bagunça que a loba estava aprontando.
Uma pena.
O íncubo saiu para fora da casa caso alguma tentasse fugir por uma
janela ou porta traseira. As gilean haviam posto um sensor mágico no
perímetro e, se alguma o cruzasse, nos avisariam. Não foi o caso. E Marta...
Marta acabou com todas e cada uma das bruxas. A magia snake não lhe
fazia nada. Era totalmente imune e isso provocava que a luta de mais de
trinta contra uma fosse tão desproporcional: As snake não tiveram nada a
fazer. Quando acabou com o grosso das inimigas, a loba se pôs a revistar
cada cômodo, fazendo um buraco em cada entrada para poder passar.
Curiosa, me aproximei de uma das divisórias e comprovei que eram de
drywall. Quando só restava uma bruxa viva, a que devia ser uma das
segundas no comando de Esteno, consegui parar Marta. Tive que me
colocar na frente dela, com risco de levar eu a mordida.
—Marta, você quer saber onde estão o restante de suas inimigas. Me
dê um minuto.
Algo deve ter entendido pois, mostrando as presas, rosnando e sem
desgrudar seus olhos da bruxa que havia ficado sem magia, me deixou
fazer.
—Quem é sua líder? —Me virei para ela dando as costas à loba—.
A que orquestrou o ataque ao matriarcado.
—Minha lealdade é com Esteno.
Faria as gilean virem, para que fizessem algum feitiço de detecção
da verdade, mas duvidava que a loba me desse tanto tempo.
—E Esteno a quem é leal?
Não me respondeu.
—Toda sua casa está morta, acabada. Se não quer que ela te devore
membro a membro, fale! —a ameacei.
Marta estava rosnando cada vez mais forte; sua saliva, misturada
com sangue que não era seu, pingava no chão. A bruxa sentiu medo, não
pôde me ocultar. Pareceu hesitar, mas no final falou.
—O deus dragão. Ele voltou. A matriarca de sua nova casa é mais
poderosa que sua patética moon-wolf. Não têm nada a fazer.
—Quem é?
Mas não lhe deu tempo de responder. Algo de Marta ainda estava ali
dentro dessa enorme cabeça de loba, porque o "patética" não lhe fez graça e
me afastou com uma patada para arrancar a cabeça da snake com uma
mordida. O pior foi que não a cuspiu.
Eu, que saltei de reflexo, fiquei olhando-a. Tinha fome ou estava
fazendo por puro rancor?
Bom, minha amiga bruxa era um ser humano doce que não
costumava guardar rancor de ninguém. Talvez esta loba tirasse sua parte
mais oculta e animal. Em todo caso, me lembrei que era melhor não me
meter demais com ela. Telefonei para Atzir'itz para dizer-lhe que já havia
terminado e que trouxesse as gilean para que curassem a pata da loba. Pela
bagunça que aprontou, duvidava que seus ferimentos fossem muito
profundos. Certamente tinha a pele e a carne muito mais dura que a de um
lobo normal.
—Como foi? Tem algum nome ou localização para continuar?
—Pff... Aqui a loba é das mais sensíveis. Comeu a última snake
antes que pudesse nos contar.
Do outro lado da linha o íncubo caiu na risada.
—Cada vez gosto mais da sua amiga, entendo por que Daniel gosta
tanto dela.
VINTE E TRÊS
—Sério que ela vai saber nos guiar?
Estávamos de volta a Zaragoza, nos arredores.
Após a incursão ao terceiro inferno e nossa pequena escapada
naquele vinhedo parisiense, Sylth'Atz havia me intimado no dia seguinte
para ir vê-lo no que era sua sede, a antiga prefeitura da cidade que Ainhoa
lhe havia cedido para que trabalhasse dali. Poderia ter ido a Madri com ela,
mas preferia estar aqui para ter mais à mão tanto Lucas quanto Arianhrod.
O caso é que havia me contado que tinham lutado na França e
acabado com os mutados que governavam o país. Havia sido relativamente
simples após a queda de Casio. Cinco novas casas de bruxas haviam sido
encontradas e neutralizadas com a ajuda da minha irmã de magia negra,
mas nenhuma delas escondia sua nova líder. Pelo que haviam arrancado
delas, tinham quase a mesma informação que nós: tratava-se de uma nova
índigo, desta vez do deus dragão.
Outra índigo, só o que faltava...
E como após mais interrogatórios acabavam de confessar que se
escondia em Zaragoza, não muito longe do Samhain, Arianhrod havia me
pedido que ajudasse Marta a terminar de cumprir sua última tarefa de
servidão.
Quanto à minha pergunta, se minha amiga ia saber nos guiar,
ninguém me respondeu. Bom, era mais retórica que outra coisa. Como meu
segundo íncubo favorito estava retido pelo meu avô até seu castigo, havia
ficado sem guarda-costas. Havia me acostumado com ele, uma pena. Claro,
a loba não podia se comunicar comigo e esse par de vampiros que Lucas
havia me emprestado não iam se dignar a fazê-lo. Quase todos os
sanguessugas eram igualmente soberbos.
Marta, cuja consciência era mais loba que humana, sabia que tinha
uma presa para caçar e estava se deixando guiar por seu faro, seus instintos
ou o que fosse. Havíamos partido do Samhain e já fazia quase uma hora
dando voltas pela área. Primeiro pelo polígono industrial e depois pelos
arredores da cidade, com uma mistura de campos de cultivo e terreno de
sequeiro com arbustos e pouco mais.
Se a casa de bruxas que procurávamos estava oculta com magia, eu
certamente não ia vê-la mesmo que me deparasse com ela. Marta era outro
caso, então confiava que tivesse sucesso. Depois de mais meia hora pareceu
ter encontrado algum rastro, pois começou a avançar mais depressa, com o
focinho colado ao chão. Depois de uns minutos parou bruscamente no meio
de uma suave colina cheia de mato. Levantou os beiços e mostrou as presas
ao mesmo tempo que rosnava. Eu não via nada diante dela. Os vampiros,
que usavam óculos de visão infravermelha, me olharam e negaram com a
cabeça. Bem, eles também não.
De repente, Marta se lançou para frente e cravou seus dentes em
algo. Isso foi o que rompeu o feitiço. Diante de nós apareceu uma casa de
campo com uma horta e uma gigantesca serpente bloqueando a passagem.
O tipo de vibração que emitia dava uma péssima sensação. Duvidava muito
que fosse um animal da Terra, mas tampouco parecia um demônio. Marta,
porém, sim devia ter claro quem era pois havia se jogado para trás de um
salto, com o focinho manchado de sangue de um verde enegrecido, e
continuava rosnando para ela como se fosse sua inimiga.
Fiz memória, essas visões que teve... Shanetta. Era possível que se
tratasse da deusa das snakes? Mas, se era assim, o que fazia aqui em vez da
França onde haviam estado suas bruxas?
Olhei para Marta. Ela e a serpente não tiravam os olhos uma da
outra. Uma sibilava e a outra rosnava. Bom, se era uma deusa não era a
líder das bruxas traidoras, então era melhor tirá-la do caminho rápido. Fiz
um sinal para os vampiros e convoquei minhas garras, chifres, esporões,
presas e asas. Meu avô havia me deixado o acesso triplo ao poço e agora,
vendo uma deusa, entendia o porquê. Tirei minha adaga, Skitkk Maaz, e me
lancei contra a criatura apontando para um de seus dois enormes olhos. Os
vampiros, mais lentos que eu, demoraram a reagir e fazer o mesmo. Marta
não parava de olhar para sua inimiga e rosnar. Assim que eu estava a meio
caminho, saltou para dar outra mordida nela na cauda. Shanetta, claro, não
ficou quieta: a uma velocidade que era semelhante à minha, jogou a cabeça
para um lado, esquivou meu ataque e conseguiu cravar suas presas na
minha perna direita, me atravessando completamente a coxa.
Doía. Bastante. E era mais que possível que tivesse me injetado
algum tipo de veneno. Por sorte eu já estava acostumada aos ferimentos em
batalha e reagi com rapidez, recolhendo minhas asas, retorcendo meu corpo
e me dobrando para cravar minha adaga na pele escamosa da serpente, perto
de onde essas presas enormes se cravavam na minha perna.
Ao mesmo tempo, tanto os vampiros quanto a loba chegaram a
Shanetta e a atacaram, eles com suas espadas e minha amiga mordendo e
arrancando um bom pedaço de carne dura.
Minha adaga começou então a drenar a criatura, me mandando sua
energia vital, que foi como uma brutal dose de poder.
Enlouqueci.
Quase literalmente.
Havia provado muitas criaturas, vampiro milenar dopado com
mutações incluído, mas nada como isso.
Os deuses eram feitos de outra essência, uma tão pura e poderosa
que fechou no ato meu ferimento da mordida e me deixou louca. Depois,
fazendo memória, acho que me lembro de gritar para Marta e os vampiros
se afastarem. Esta demorou a me obedecer; mas quando viu como eu
agarrava a deusa pela cauda, abarcando o que podia com meus braços,
enquanto esta se debatia furiosa e me mordia, quando percebeu que a luta
havia mudado de nível, se afastou de um salto e acho, só acho, que me
olhou com algo parecido a rancor.
É possível que tanto poder até me fizesse crescer de tamanho, pois
chegou um momento no qual a serpente não era tão grande nem eu tão
pequena. As feridas de suas mordidas eram eliminadas de imediato com a
essência que havia chegado da minha adaga, essa que continuava cravada
na criatura e eu ignorava, pois estava bêbada demais por sua essência para
fazer algo que não fosse uma carnificina ao mais puro estilo feral.
Sim, carnificina.
Uns segundos de cravar garras, dilacerar e arrancar escamas e carne
enquanto Shanetta tentava me esmagar ou fazer o mesmo com meu pescoço
e minha cabeça.
Ou a deusa não era tudo isso ou a adaga era uma arma poderosa
demais contra ela. Pelo que Marta havia me contado, em seu plano não
havia sido uma rival tão difícil e, se estava na Terra, deveria ser ainda mais
fraca, não? Em todo caso, quando recuperei o senso comum, com a
sensação de ter sonhado um sonho delicioso, me repreendi: minha Morte
Cevada continuava cravada na criatura mas esta já estava morta. Ou de
volta a seu plano, sei lá, com o qual não podia tirar mais dessa fabulosa
energia. Estendi a mão para tirar minha arma e, antes de poder fazê-lo, caiu
no chão. O corpo da enorme serpente acabava de se desfazer diante dos
meus olhos, se transformando em luz e desaparecendo para algum lugar do
céu.
O que acabava de acontecer?
A deusa havia voltado a seu plano?
Sacudi a cabeça, era estranho. Notei um golpe na minha perna e
quadril direitos. Era a loba. Estava encostando seu focinho contra mim,
lastimosa.
—É porque te deixei de fora, não é? Sinto muito, Marta, não foi
minha intenção. Não era eu, estava como que possuída por todo esse poder
—me desculpei enquanto a acariciava entre as orelhas—. Foi... estranho —
lhe disse após um segundo de hesitação ao não encontrar uma palavra
melhor.
A loba rosnou suavemente e se afastou. Uma pena que não me
restasse mais dessa energia, nos viria bem na luta contra o dragão e sua
índigo. Mas vamos, já tinha uma chave de como fazê-lo: cravar minha
adaga no deus e roubar-lhe a essência.
—Vamos —indiquei a meus três acompanhantes, a loba e os
vampiros, e me internei na horta.
Não tivemos que avançar muito. Antes de chegar à casa, as portas
desta se abriram. Saíram cinco bruxas encapuzadas que avançaram alguns
metros em nossa direção. Quatro delas começaram a sussurrar as palavras
de um feitiço. A quinta, justamente a que estava no meio, deu mais um
passo e tirou o capuz.
A vários metros de distância (uma plantação de alfaces e tomates
para ser mais exata), pudemos ver os traços da filha de Arianhrod. A
traidora. Elvia.
—Então por fim dá as caras.
Marta estava rosnando ao meu lado. Não seria eu quem a deteria.
Seria bom atacar antes que essas quatro terminassem seu feitiço.
—A cachorra da minha mãe, nunca dito melhor —matizou com
desprezo—, vem fazer o que ela não pode.
Marta já estava galopando em direção a Elvia. O negócio de
cachorra a havia irritado. Além de que sabia que esse era seu último
trabalho de servidão. Não importava que estivesse perdida em forma de
loba, o mais importante ela levava gravado na mente. Vamos, a quem
amava, quem lhe caía bem e quem tinha que matar sim ou sim.
Prêmio.
E chegou antes que as quatro bruxas terminassem seu feitiço, só que
Elvia lançou um. Não direi que o da reserva, pois como índigo os tinha
praticamente infinitos. O poder total que lhe dava seu deus era seu único
limite.
Marta se chocou contra o muro invisível de um escudo. O fez com a
cabeça para frente, o que lhe arrancou um ganido. Imediatamente, saltou
contra este para quebrá-lo com suas patas dianteiras mas, antes de poder
conseguir, uma bola de fogo havia partido das mãos de Elvia e ia direto para
a loba.
Merda.
Me lancei sobre ela, para afastá-la. Apesar de todo o peso que tinha,
ao pegá-la sobre duas patas consegui derrubá-la no chão e a bola passou
perto, mas sem nos atingir. Ainda assim, a pelagem da loba se chamuscou e
eu senti queimaduras na minha lateral. Então as outras quatro bruxas
terminaram seu feitiço e se materializaram umas correntes no ar, as quais se
apressaram a se enroscar nas extremidades da minha amiga.
Marta não ficou quieta. O primeiro que fez foi voltar a se jogar
contra o escudo, quebrando-o. E quando esses elos metálicos tentaram
apertar em suas patas, ela os ignorou saindo correndo em direção a sua
inimiga. Por um momento, ficaram em tensão, mas em seguida se
romperam: deveriam ter criado um feitiço melhor. Nem entre quatro
puderam fazer algo capaz de segurar uma índigo. A bola de fogo que Elvia
estava lançando de novo era outro caso e desta vez minha amiga a comeu
inteira. Em um piscar de olhos, a loba branca estava envolta em chamas.
Me assustei, mas foi precipitado, pois Marta era capaz de aguentar tanto a
dor quanto as queimaduras. Não parou em seu salto e aterrissou sobre Elvia,
jogando-a no chão de costas.
—Vamos! —disse aos dois vampiros.
Isso não era tirar segurança, ok, mas eu precisava deles. Apesar de
já terem lutado contra Shanetta, se olharam duvidosos durante uns instantes.
Talvez as bruxas fossem mais ameaçadoras que a serpente. Repeti meu
comando e saí correndo em direção a uma das quatro bruxas, com minha
comporta ao poço aberta ao máximo. Não me virei para olhar, mas escutei
como me seguiam. Quanto à bruxa, não teve nenhuma chance. Não tentou
me desviar com sua telecinese, o que me estranhou. Lançou-me um feitiço,
o da reserva, uma espécie de seta de fogo, como o irmão menor da bola de
Elvia. Não o esquivei e me acertou em cheio no ombro, me provocando
queimaduras graves. Não me importei. Só precisaria de um sanguessuga
para resolvê-lo e, naquele momento, já estava sobre a bruxa, arrancando-lhe
a garganta com minhas garras.
(A propósito, desde quando as morrigan têm feitiços de fogo em seu
repertório? Isso devia ser porque agora serviam ao deus dragão.)
Os dois vampiros, que haviam sido mais espertos esquivando do que
eu, já estavam com duas das bruxas, mordendo-as até deixá-las secas. Me
encarreguei da restante, que havia lançado sua seta contra um dos vampiros
e agora estava sussurrando as palavras de outro feitiço. Foi simples.
Enquanto isso, Marta e Elvia rolavam pelo chão, enredadas em uma luta
corpo a corpo. Que me explicassem como uma mulher de tamanho humano
podia igualar uma enorme loba no quesito de dar socos e mordidas. Bom,
Elvia mordidas não dava, mas sim socos e chutes. Parecia mais forte do que
deveria. Certamente algum feitiço de alto nível ao qual poderia ter tido
acesso por ser índigo. Pelo canto do olho, percebi que um dos dois
vampiros pretendia ir ajudar Marta. O detive colocando uma mão em seu
braço.
—Essa luta é dela. Não podemos ajudar.
—Então voltamos com Lucas.
Não me agradou muito. Afinal de contas, eles eram meu seguro para
me curar se recebesse algo pior que uma queimadura. Mas tinham razão. Já
haviam me ajudado com algo diferente de desativar a segurança, que era
para o que a princípio os havia chamado. Assenti e pedi que agradecessem a
seu senhor de minha parte. Em seguida, me afastei uns metros e fiquei ali,
olhando como minha amiga e a filha da minha irmã de magia lutavam até a
morte. Não ia intervir; mas se da casa saíssem reforços para Elvia, os
deteria.. No iba a intervenir; pero si de la casa salían refuerzos para Elvia,
los pararía.

As duas bruxas já levavam um tempo lutando corpo a corpo. Ambas


apresentavam feridas. Uma por patadas e mordidas e a outra tinha
hematomas e talvez algum osso quebrado. Em algum momento, Elvia deve
ter se cansado ou decidido que assim não ia vencer, pois pronunciou uma
única palavra e as mesmas correntes de ferro de antes, embora mais grossas,
se materializaram no ar em torno do pescoço e do lombo da loba. Em
menos de um segundo haviam se tensionado e puxavam para cima,
separando-a da bruxa dragão e obrigando sua cabeça a apontar para o céu. E
Marta, por mais que se debatesse, não conseguia se soltar.
A bruxa dragão sorriu, com uma expressão de malícia digna de um
demônio. A tinha onde queria e sabia disso. Tomou um segundo para
saboreá-lo antes de começar a usá-la de alfineteiro para suas bolas de fogo.
Eu, nesse momento, me perguntei se devia intervir. Porque não passaria na
terceira prova de servidão se a ajudasse, mas se não o fizesse, podia ser loba
morta. Claro que, se falhasse, também morreria. E então, literalmente, dei
um tapa na minha própria cabeça.
Sim, eu fazendo um gesto tão humano.
Mas é que o merecia, pois tinha que ser idiota para não confiar em
Marta. Ela era minha amiga, havia me demonstrado uma e outra vez que
podia contar com ela e agora era nada menos que uma índigo de Diana. Que
Elvia era do dragão e se supunha que o deus proibido era mais poderoso.
Pois ok. Mas Marta venceria. Elvia havia sido a filha da matriarca suprema,
educada para triunfar. Marta uma descastada que havia sido criada entre
humanos e tinha que sofrer o sistema de magia desde baixo. Veríamos quem
botava mais culhões na batalha.
Sorri.
Relaxei.
Essa bruxa dragão não tinha ideia de com quem estava lidando.
E tive razão, porque aos poucos segundos minha chamuscada amiga
de pelagem carbonizada havia conseguido romper as correntes e voltava a
saltar sobre sua inimiga. Desta vez conseguiu pegá-la de surpresa, nesse
breve instante de assombro ao se dar conta de que apesar de todo o fogo
continuava com capacidade para lutar e partir-lhe o pescoço.
Em dois, para ser mais exata. Dois pedaços de um corte totalmente
desigual, onde a cabeça da bruxa acabava dentro da cabeça da loba e esta a
cuspia no chão.
A entendia. Carne cheia de traição. Não devia ser um prato
agradável de engolir.
Assim, ali estavam. O corpo e a cabeça sangrentos de Elvia de um
lado e minha amiga do outro. A loba havia ficado totalmente quieta. Era
assim o negócio de deixar de ser vassala? Mas não, não era isso porque
começou a se sacudir e a oscilar sua forma entre a de uma loba e um ser
humano: estava voltando a seu ser, saindo desse feitiço que havia lançado.
Quando a forma da minha amiga ficou definida, parecia estar fraca.
Estava de pé, mas se balançava um pouco. Corri para abraçá-la mas ela
estendeu uma mão para me deter.
—Isso não acabou —me sussurrou arrastando as sílabas como se lhe
custasse falar. Efeitos de ter sido loba tanto tempo, imaginei—. Ainda sigo
sendo vassala de Arianhrod. Espere.
Olhei estranhada o corpo decapitado enquanto escutava Marta
sussurrar a palavra de um feitiço de cura. Era um de baixo nível pois não
era uma gilean, sua casa só tinha os básicos comuns a todas as bruxas. Por
isso, o repetiu mais umas duas vezes. Observei estranhada a bruxa dragão:
estava morta. Acaso era como Esteno? Tampouco era ela a inimiga a
derrotar?
Mas não...
De repente, uma estranha energia encheu a zona, tão forte que pude
senti-la sem problemas. Foi como se os céus ameaçassem tempestade,
enchendo tudo de eletricidade. O sangue que encharcava o chão, procedente
do pescoço da bruxa, começou a se mover, a fluir como se se tratasse de
dedos de uma espessa substância. Abandonou a terra, se moveu em direção
à cabeça, fez contato com os mesmos fios carmesins que partiam desta e,
então, diante dos olhos de Marta que estava se curando e não reagiu a
tempo para tentar pará-lo, a cabeça se dirigiu em direção ao corpo a toda
velocidade, se unindo a este. De imediato, se fechou a carne rasgada e
inclusive se regeneraram aqueles pequenos pedaços que haviam ficado
entre os dentes da loba. Em um piscar de olhos, Elvia estava inteira e abriu
os olhos.
—Marta, cuidado! —gritei.
Absurdo, eu sei. A garota já havia percebido.
E nem me respondeu. Toda sua atenção estava cravada em sua rival.
—O que é você? Imortal? —perguntou-lhe.
—Servir ao deus dragão tem suas vantagens. Meu círculo, essas
bruxas que os seus mataram, haviam feito um ritual para que, se morressem,
sacrificassem suas almas ao vazio para me dar poder. E olha só, o sacrifício
delas serviu.
—Pois te matarei outra vez, todas as vezes que for preciso.
—Você fala muito, moon-wolf —sorriu-lhe com crueldade.
Sabia algo que Marta e eu não.
Minha amiga lhe lançou o feitiço de gravidade, esse que
imobilizava, e Elvia seu escudo. Não chegaram a se enredar em uma luta de
feitiços para ver quem aguentava mais pois a terra deu uma forte sacudida
e, em seguida, começou a tremer. A bruxa dragão ampliou seu sorriso. Um
ser enorme, maior do que era antes um demônio do sétimo plano, acabava
de se aproximar voando, aterrissar dezenas de metros por trás da bruxa e
estava caminhando em direção a ela.
Um maldito dragão. Como os das lendas. Era o que havia visto entre
os telhados mas muito maior. Que sim, que meu wyvern também era um
dragão, mas os wyverns são menores e andam sobre duas patas. Este tinha
quatro, escamas de um negro azeviche e poderia partir em dois meu
precioso Txhat potch de uma bocada. É que nem os filmes do Senhor dos
Anéis ou a série Game of Thrones lhe faziam justiça. Para terminar de
rematar, a bruxa deu vários saltos até conseguir se encarapitar em seu
lombo (sim, com a luta contra a loba já havia demonstrado sua força e
agilidade sobre-humanas). Uma vez ali, sua expressão de maldade daria
inveja a qualquer demônio que não fosse da minha família real. Meu Deus.
Marta ia ter dificuldade. E eu devia estar tomando a alma de algum jogador
de videogame, outra vez, porque era como se estivéssemos diante do boss
final e este acabasse de mudar de fase.
—Isso não é uma invocação, é seu deus. E a minha não está neste
plano. Violeta, me ajude com o dragão.
—Será um prazer.
Não era uma frase feita, era a realidade. Não gostava de ficar
olhando, menos se as coisas de repente se tornavam tão injustas. Por sua
parte, a amazona e sua montaria não haviam ficado aguardando
amavelmente enquanto minha amiga e eu falávamos: um sopro de fogo ia
direto para Marta enquanto as correntes apareciam para apertar em seus
braços e pernas.
Só que desta vez minha amiga já não era uma loba e podia fazer
magia. Com seu escudo freou essa enorme labareda, tão larga que encheria
sem problemas uma rua de quatro faixas. As correntes? Foram mais rápidas
que seu escudo, a pegaram. Enquanto isso, eu já estava com minha Morte
Cevada na mão e ia direto para a barriga do dragão. Não é que essa zona
fosse mais macia ou tivesse menos escamas, mas sim que ali estaria a salvo
de suas mordidas e labaredas. Se conseguisse feri-lo, minha arma faria o
resto. Havia provado a essência divina, o mais embriagador e poderoso que
havia tocado seu fio, e sua lâmina rúnica estava vibrando ávida em
antecipação. Como sempre, não foi tão simples, pois a besta saiu voando
pelos ares fora do meu alcance e tive que tirar as asas para persegui-la.
Marta continuava tentando se livrar das correntes.
—Deoghal gealach —pronunciou pela segunda vez.
Uma segunda leva de pequenas setas saiu de seus dedos e impactou
contra o frio metal. Era como com a falecida índigo Esteno: no segundo
feitiço, as rompeu. Uma bola de fogo de Elvia havia impactado contra seu
escudo, o qual já havia aguentado as chamas do deus dragão; assim,
também se quebrou. Uma terceira leva de setas foi contra o escudo que
Elvia ainda tinha, igualando as coisas.
—Gainne gealaich! —gritou então Marta, mandando tanto para a
bruxa quanto para a besta a luz mais escura da lua, para cegá-los.—
Saighead seacaid! —Continuou imediatamente, mandando a flecha a sua
rival, antes que deixasse de estar aturdida e pudesse se defender.
A bruxa dragão, que não havia podido reagir após a ruptura de seu
escudo pois seu dragão acabava de dar uma brutal sacudida, de perder toda
inércia e de ficar congelado no ar, sentiu em seu peito o impacto da flecha.
Furiosa, reconvocou seu escudo.
Eu, claro, havia aproveitado que o dragão também havia ficado cego
para chegar a ele por baixo e, ajudada por todo o momento que havia
conseguido me impulsionando com minhas asas a toda velocidade,
consegui fazer com que minha adaga penetrasse entre duas das grossas
escamas. Meu acesso triplicado ao poço foi vital, não o teria conseguido
sem ele. Mas, o que ocorre quando você deixa uma enorme massa no meio
do ar sem nada que a segure ou sustente? Pois que cai. Concretamente
quinze metros e em cima de mim, me esmagando contra a terra embaixo.
O fluxo de energia de Skitkk Maaz a meus dedos, a meu corpo, foi o
que me curou no instante. Cada osso que se quebrava se reparava pela
imensa energia que estava sugando do deus.
Eu isso não vi, estava ocupada demais sendo esmagada, mas Marta
me contou que havia chamado a matilha da lua cheia e que os lobos haviam
se lançado contra Elvia, quebrando seu escudo de duas mordidas e fazendo
com que esta desmontasse para poder lutar melhor contra eles. O dragão,
mais que irritado tanto pelo cegar de Marta quanto pela minha adaga, saiu
voando em direção ao alto. Skitkk Maaz havia ficado presa entre suas
escamas e eu, que não a soltava, saí arrastada pelos ares. Chegou um
momento, a mais de um quilômetro de altura, onde podia ver claramente a
casa e os campos que a rodeavam, no qual o aperto da minha adaga cedeu e
se soltou. A besta havia subido tão rápido que eu não havia conseguido me
agarrar a nenhuma de suas patas, as quais se moviam para esquivar minhas
tentativas. Assim que notei a queda livre, estendi minhas asas. Horizontais
ao chão, me tiraram grande parte da velocidade. Temendo a labareda que já
estava chegando, as bati para sair do caminho. Tive sorte, consegui sem me
queimar demais, só uma lateral e um braço. Gastei grande parte da energia
divina que me restava para regenerá-los e a outra parte em voltar a me
lançar contra ele. Este, ao perceber que havia esquivado suas chamas e
tentava alcançá-lo por trás, se virou no ar, reorientando seu jorro de fogo
para me atingir. Chegou a me acertar e já não me restava energia para me
curar, pois a havia acabado de gastar nesse impulso inicial brutal que me
levava para cima. Aguentei a dor, não variei minha trajetória pois sabia que,
se o alcançasse, me curaria de novo. Quando estive tão perto da criatura que
suas chamas já não podiam me atingir, esta bateu as asas para se afastar. Fiz
o mesmo. Joguei a luta nesse instante. Ou cravava minha adaga entre suas
escamas, ou estava morta. Com as queimaduras que tinha, com partes do
meu corpo onde se via o osso, não aguentaria muito. Por sorte, havia
conseguido proteger minhas asas.
Três, dois, um... os segundos até alcançá-lo ou falhar transcorreram
agônicos. Escutei um grito feminino de dor embaixo. O ignorei.
Zero.
Cheguei. Por um triz. Mas minha Morte Cevada se cravou nas
costas da besta e ali fiquei, cada vez com mais força, afundando também em
sua carne, entre escama e escama, os esporões das minhas pernas e as garras
da minha outra mão. Que voasse o mais agressivo que quisesse. Não ia me
mover dali até que o deus dragão caísse no chão sem forças e, como
Shanetta, se desvanecesse de volta a seu plano.
Ou em sua prisão neste caso.
Quando estive melhor, me permiti olhar para baixo. O grito de dor
devia ter sido de Elvia pois Marta e seus lobos a tinham encurralada e
sangrando. Ambas as bruxas continuavam lançando feitiços sem pausa, mas
estava claro quem estava levando a melhor. Sorri e desfrutei da viagem.
Bruscos giros em direção ao céu ou ao chão, quase nos esborracharmos
contra árvores... tudo o que ele pensava para se livrar de mim e cada vez a
uma velocidade menos vertiginosa. Se até tentou cuspir fogo em suas
próprias costas sem nenhum resultado pois ele era imune e eu me
regenerava tão rápido que parecia que nem me afetava. No final, depois de
mais de um quarto de hora, acabou caindo no chão. Eu notava que o fluxo
de sua essência divina havia finalizado, então estendi minhas asas, soltei
minhas garras e fiquei no ar com a adaga entre os dedos da minha mão
direita, enquanto a criatura se lançava contra o chão. Se dissolveu em luz
pouco antes de se chocar contra este. Impressionante. Eu, por minha parte,
estava bêbada de poder. Uma pena não poder ajudar Marta. Embora
tampouco é que precisasse, a vi dando o golpe final. Tinha Elvia jogada no
chão, suas mãos e corpo sob o peso de três lobos e minha amiga se cernia
sobre ela, de pé, com determinação em seus olhos.
—Você teve uma boa mãe e não soube apreciá-la. A traiu. Agora
receba o preço —lhe disse logo antes de lançar cinco setas de cor osso que
se cravaram em sua garganta, acabando com ela.
Uau.
Quase não reconhecia minha Marta.
Desci a seu lado e, enquanto o fazia, observei como uma espécie de
resplendor escuro a envolvia e ela parecia se erguer mais. Devia ser a
servidão, paga por fim. Cheguei a seu lado e a abracei. Depois não pude
evitar por mais tempo: me pus a gritar, eufórica, e me lancei a voar pelos
ares.
Isso que levava dentro, a energia que minha adaga havia me
passado, era forte demais e lutava para sair.
—O que está fazendo? —me gritou minha amiga, estranhada.
—Tenho dentro energia demais do deus dragão, tenho que queimá-la
de algum modo. Não é como a de um humano ou um vampiro, esta me dói,
é poderosa, não está criada para ser contida por um corpo terreno, nem
sequer pelo de uma semi-demônio.
—Você vai ficar bem?
—Muito foda! —vociferei desde cada vez mais distância no alto—.
Volte ao Samhain, eu irei depois.
Precisava voar, caçar, lutar, dilacerar... Qualquer coisa para liberar
esta energia furiosa que se revolvia dentro de mim. Skitkk Maaz, a
desgraçada, vibrava feliz dentro da minha bota. Parecia estar mais que
satisfeita com a comida. Bem, isso seria o mais parecido a uma bebedeira
que meu corpo imune ao veneno conheceria nunca. De fato, tenho borradas
as horas do resto da noite. Sei que voei até a França, planei com umas
águias que encontrei em um pico dos Pireneus, que uma vez do outro lado
busquei restos dos mutados ou dos vampiros de Casio, cacei, dilacerei, vivi,
desfrutei... até que o efeito passou e que muito avançada a tarde seguinte
acordei sem roupa na minha cama em Zaragoza. Bom, ao menos estava
sozinha. Havia deixado de comer as almas diretamente dos humanos desde
minha maioridade e não queria que isso mudasse.
Que noite...
Jogadas no chão estavam minhas botas e, dentro de uma delas,
Skitkk Maaz continuava zumbindo satisfeita.
Essência de um deus dragão... Sacudi a cabeça. Isso ia ser difícil de
repetir. Minha arma mágica ia ficar muito decepcionada depois de
semelhante banquete.
Caí na risada. Havia acabado bem. Tínhamos conseguido. Como
ainda faltava muito para que passassem as três luas da Terra às quais meu
avô havia se referido, fui para o chuveiro. Depois, vesti meus jeans, uma
camiseta, as botas e peguei as chaves do meu Lamborghini. Marta
continuaria seguramente no Samhain. Sim, uma olhada rápida nas
mensagens do celular me confirmou. Estavam em celebração. Perfeito, que
melhor momento para me juntar a elas?
VINTE E QUATRO
Estacionei perto da entrada do Samhain e me dirigi a suas portas.
Dois lobos as guardavam, como era habitual. Me reconheceram e deixaram
passar, me cumprimentando com a cabeça. Eu havia me tornado bastante
popular. De ser uma semi-súcubo desconhecida a neta do rei, a irmã de
magia negra da matriarca suprema e, como não, a general demoníaca que
capturou e capou em pessoa o triunviro traidor.
Ahh... bela fama.
Atravessei o umbral e me encontrei com o bar que ocupava o térreo
do antigo galpão industrial. E estava cheio, com todas as bruxas, cheiros de
incenso e uma deliciosa música de rock gótico trovejando pelos alto-
falantes. Se sentia como uma segunda casa. Sorri e me dirigi à mesa central
onde minha amiga e o restante do matriarcado estavam tomando umas
cervejas.
—Klint'Atz, entre, bem-vinda —me cumprimentou Arianhrod ao
ver como me aproximava delas.
—Violeta —me disse Marta com um enorme sorriso.
Parece que já fazia um tempo e estavam relaxadas, a bebida
correndo sem pausa. Peguei uma cadeira livre de uma mesa próxima e me
aproximei da minha amiga, que se afastou um pouco para a esquerda para
abrir espaço para mim.
—Como se sente não dever nenhuma servidão? —perguntei à minha
moon-wolf favorita. Certamente, radiante ela parecia.
—Maravilhoso. Não se ofenda, senhora —acenou para a matriarca
suprema—, mas saber que não me espera uma servidão eterna se eu falhar
é, simplesmente, maravilhoso.
Tratava com familiaridade Arianhrod... sim que lhe havia feito bem,
sim.
—Não é ofensa. —Caiu na risada a aludida—. Eu também me sinto
feliz que você tenha conseguido. Elvia... —Uma sombra de pesar passou
por seus olhos—. Não sabia que minha filha era a primeira acólita do deus
dragão, nem que por isso havia sido promovida a índigo e que Esteno lhe
havia cedido seu posto como líder, fosse voluntariamente ou à força. As
filhas... as crias pensando o melhor para elas, ainda que tenha que fazer
sacrifícios deixando-as sozinhas ao abandonar sua casa para ser a matriarca
suprema, e depois... bem... não posso lhe reprovar nada. Talvez se eu tivesse
continuado sendo uma morrigan, entã...
Ah não, por isto sim que não passava. Estavam em festa, chego eu e
lembro a ela sobre sua filha? Não. Me apressei a colocar uma mão sobre a
sua, que estava mais ou menos sentada na minha frente e brincando com o
caneco de cerveja.
—Talvez nada teria mudado. Não podemos nos responsabilizar
pelas decisões que não são nossas e a sede de poder que leva alguém a trair
suas raízes não é algo que se aprende. É parte de você.
Minha irmã de magia negra me olhou nos olhos durante uns longos
instantes. Pude ver muito neles: sabedoria - não tanta quanto a do meu avô
mas sim mais que a minha -, culpa, dor e aceitação.
—Talvez sim, talvez não. Mas não é o momento de recordá-lo. —
Controlou totalmente seu tom de voz e sua expressão, passando a sorrir e
soar alegre, toda nuvem afastada de seus olhos—. É o momento de celebrar
que conseguimos, que nós continuamos vivas, que nossas casas vão
ressurgir, que afastamos de novo a magia proibida, que o dragão voltou a
seu plano prisão e que um novo matriarcado ressurge com força. Brindemos
a isso!
Uma garçonete me trouxe um caneco e me juntei ao bater de seus
copos. E agora que pensava... o selo da prisão do deus não estava quebrado?
Olhei para Marta e sussurrei minha pergunta.
—Não se preocupe —me respondeu em voz baixa após beber um
gole—, assim que o mandamos de volta a seu plano, Arianhrod deu ponto
final ao ritual que estava realizando para selá-lo, com as demais matriarcas.
Assenti mais tranquila. Não era questão que tudo começasse de
novo. Bom, tampouco é que tivesse sido tão terrível, mais bem divertido.
Talvez se escapasse e tivéssemos novos inimigos isso continuaria animado.
—Não sei o que você está pensando, mas não gosto. —Marta me
deu uma cotovelada—. Esse é seu olhar de procurar briga. Agora é hora de
paz. Vou soletrar para você: P A Z. E descansar um pouco que já toca. E ia
te dizer depois, quando Daniel se juntasse a nós, mas olhe: você está
convidada para meu casamento.
—Não! —exclamei—. Vocês vão se casar? É maravilhoso!
A palavra casar, pronunciada tão alto, fez com que todas as risadas
da mesa parassem e que todas as bruxas girassem a cabeça para nos olhar.
Ops... ainda pensavam que uma bruxa apaixonada ou com namorado era
uma bruxa fraca? Acho que não, porque Arianhrod estava sorrindo.
—Bom, pregue aos quatro ventos —riu Marta—. Sim, Daniel e eu
vamos nos casar e estão todas convidadas para o casamento.
E como se de um aquelarre paralelo se tratasse, todas as sentadas a
essa mesa, todas matriarcas, felicitaram Marta com alegria genuína. O que
estava acontecendo? Olhei para minha irmã de magia negra, estranhando.
—Os tempos mudam —me sussurrou—. A pequena moon-wolf lhes
demonstrou a força que é preciso ter para lutar apesar de saber que podem
atacar seu amor para chegar a você. Olhe para ela, ninguém ousaria chamá-
la de fraca.
—De fato —continuou sua voz dentro da minha cabeça—, é minha
principal candidata para me suceder.
E tinha razão. Possivelmente, Marta fosse inclusive mais poderosa
que Arianhrod e quando tivesse filhas e estas herdassem sua casa, ela seria
a melhor candidata para continuar o trabalho de sua senhora.
Voltei a erguer meu caneco para brindar por ela. E pela vida. E pelo
restante dessas mulheres que não haviam se rendido apesar da terrível
punhalada que sofreram no dia do juízo final.
Depois de um tempo chegou Daniel e choveram as felicitações. Eu
mesma brinquei um pouco com ele e lhe prometi que o deixaria dar
pessoalmente a boa notícia a Atzir'itz. Pode ser que por ser imune aos
venenos o álcool não me fizesse nada, mas relaxei e desfrutei do ambiente
de euforia das bruxas.
A vida era boa. Inclusive quando não havia brigas. Embora restasse
um pequeno detalhezinho, certo castigo... o afastei da minha mente e
continuei bebendo.
VINTE E CINCO
Eu já havia pagado minha dívida com meu rei, já havia entregado o
traidor. Agora restava Atzir'itz.
Açoites...
A princípio, juro que havia sentido vontade de protestar irritada
quando o escutei dizer isso ao meu avô. Chegava a ser qualquer outro e eu
teria me ensanhado com gosto. Por sorte eu tinha mais de um par de
neurônios de cérebro ou, como diziam agora, mais de dois de QI. Se tivesse
mostrado qualquer outra reação que não fosse obediência, o castigo teria
aumentado; além de que, claro, sabia que tinha que me sentir afortunada.
Continuava viva.
Tratando-se meu senhor de um demônio ancestral aterrorizante que
governava com tortura e mão de ferro, não era para menos. Então não disse
nada. Abaixei a cabeça e aceitei. E como tudo chega, até o ruim, havia
chegado o momento do castigo ao íncubo.
Que sacana...
Como ia ser um castigo que os açoites os recebesse eu?
Oh, senhor íncubo! Me dá taaanta pena e tanta empatia imaginar o
quanto vai doer seu forte braço ao levantar o chicote.
E isso, visualizar seu braço (forte, musculoso, masculino e capaz de
fazer com que qualquer garota babasse como se não tivesse cérebro)
empunhando o chicote, visualizar essas mãos que eu negava sobre si mesma
acariciando o couro como se de mim se tratasse...
Bom... que uma não era de pedra e a imaginação tinha bem vívida. E
agora que esse filho da puta do Casio, manipulador e traidor, estava onde
merecia por uma laaaaarga eternidade, bom... pois agora uma garota podia
se permitir reconhecer que fazia tempo demais desejando se jogar no
maldito guarda.
"Ei, que é família", me pareceu escutar escandalizar-se minha parte
humana.
Sim, um sobrinho demoníaco que nem de longe se parecia com
Marcos. Ha! Os demônios não faziam laços de sangue como os humanos e,
do ponto de vista de se acasalar para perpetuar a raça que eles tinham,
quanto mais poderosos os progenitores, melhor. Não importava nem que
fossem irmãos.
Então de família uma merda.
De guarda-costas que havia me feito desejar durante tempo demais o
que não podia ter, muito. De cata-ovários. De bocado proibido. De demônio
com sentimentos como eu mesma e que havia estado me negando porque
sentia que o de Casio não estava acabado. Muito.
Por favor!
Se quando me olhava com esses olhos tristes, tão sério e respeitando
meus desejos, me davam vontade de comê-lo e não precisamente a beijos.
E agora eu por fim estava livre.
Acabavam de vir me buscar dois guardas do meu avô depois que um
par de súcubos da corte me trouxeram o vestido que devia pôr. E enquanto
deixava que me agarrassem pelos braços e me tirassem para o pátio do
castelo, eu, com a cabeça bem alta, olhei primeiro para meu avô e depois
para o íncubo que, chicote na mão, me contemplava horrorizado.
"Horrorizado por me dar umas chibatadas, bonitão?", pensei e então
me ocorreu uma ideia, o germe de um plano à altura não de uma princesa
demoníaca mas sim de qualquer mulher que havia se cansado de negar a si
mesma um bom doce. "A mim me fizeram tanto mal nas lutas pela minha
vida que uns açoites, ainda que me chegassem ao osso, do que duvido,
seriam pouco mais que cócegas. Sou forte, sou um demônio, um pouco de
dor talvez até goste se me der o íncubo adequado."
Sorri.
Ele, ocupado como estava olhando o chicote com pena, nem
percebeu. Mas meu avô sim. E havia me demonstrado que com Casio não
havia se enganado. Estava louca para ver o quão boa era sua recomendação
do guarda.
Me estremeci enquanto me acorrentavam, pulsos juntos e por cima
da cabeça, braços estirados. Não era de medo, mas sim de expectativa.
"Meu querido Atzir'itz, não sabe o que te espera."
VINTE E SEIS. Atzir'itz
Vinte chibatadas.
O castigo para Atzir'itz por colocar os desejos daquela que amava à
frente de suas ordens. Podia parecer que seu senhor havia sido benevolente
e, no entanto, machucá-la de propósito ia supor um duro preço por sua
desobediência.
Ali estavam. No novo castelo no Sétimo Inferno. Erguido sobre o
vulcão. De arquitetura impossível sem magia e com um pátio interior
imenso, bem onde ela estava amarrada a um poste com correntes. Em frente
à súcubo haviam colocado um trono para seu avô. A corte, como
espectadores, os rodeavam. Aguardavam de pé, expectantes, deixando seu
rei em primeira fila.
E ali estava também o íncubo, com um chicote de nove tiras e
pontas de aço que acabava de lhe entregar o carrasco oficial de seu senhor.
Ao pegá-lo, ao sentir o tato do couro em sua mão, deslizar os dedos até a
ponta das tiras e notar o frio tato do metal, sentiu repulsa. Para começar,
com a temperatura desse plano o metal deveria estar ardendo; mas estava
encantado para retardar a regeneração que sem dúvida a súcubo podia
conseguir facilmente com sua adaga e um vampiro ou um lobisomem. As
marcas iriam embora, sim, mas lhe custaria ao menos uma semana. Ele
sabia, ela sabia e o antigo guarda do rei estava sofrendo porque não queria
causar dano àquela pela qual daria a vida.
Desejaria ser ele o que estivesse acorrentado em vez dela, o que
sofresse a dor contanto que a evitasse... mas não podia. Seu rei jamais
permitiria a troca e graças a que ambos eram armas úteis, generais que
haviam demonstrado seu potencial e seu valor, não haviam morrido dias
atrás nem faziam parte da decoração da nova sala do trono de seu bisavô.
Agradecido por isso, porque ela seguisse com vida, deu os passos
que o separavam da distância perfeita para dar as chibatadas. Violeta, ao
escutá-los, separou o rosto do poste, inclinando-o para lhe olhar. Seus olhos
não refletiam medo, apenas determinação.
"Vai" lhe sussurrou. "Já sofri torturas piores, são só umas chibatadas
de nada. Terminemos logo. Tenho coisas para fazer" finalizou com um
sorriso torto.
O íncubo entendeu a referência. Anos atrás, no sexto plano, havia se
montado um evento semelhante, com o rei e a corte olhando, só que para
cortar a cabeça do pai de Violeta.
Uma pena que o de agora não fosse também falso...
Se resignou de novo.
A princesa era linda. Desafiante inclusive acorrentada pelos pulsos a
esse poste de madeira. Usava um dos vestidos que as súcubos usavam na
corte. Não costumava vesti-los, não gostava deles. Sua antiga senhora era
mais de jeans e camisetas, mas não podia negar que estava espetacular. As
transparências da seda branca deixavam ver suas longas pernas, seu traseiro
perfeito, suas costas esbeltas cobertas em parte pelos longos mechas
platinados. Percebeu então que seria melhor afastar seu cabelo e se
aproximou. Sem soltar o chicote, estendeu as mãos e com delicadeza
recolheu sua cabeleira em um rabo de cavalo que deixou cair pela frente do
ombro direito da mulher. Ao tocá-la, ao roçá-la, sentiu a familiar descarga
elétrica que costumava ir direto ao seu pau. Só que desta vez não: ia
machucá-la e ele não era um sádico. Bom, não com quem não merecia e
certamente não com a demônio que amava. Ela se retesou ao sentir tanto o
roçar de seus dedos como do áspero couro do chicote contra suas costas. Se
arqueou inclusive. Ainda mais quando ele rasgou as costas do vestido para
deixar descoberta sua pele. Atzir'itz, que estava tão perto que seu hálito caía
sobre a recém despida nuca feminina, pôde ver através desse tecido
transparente do vestido como seus peitos se marcavam mais com o
movimento, com suas duas extremidades perfeitas começando a se erguer.
Se recriminou. Não era momento para esses pensamentos. Não com
o que tinha que fazer a ela.
"Sinto muito" lhe sussurrou ao ouvido e se afastou.
Mas não antes de escutar um leve gemido feminino.
Franziu o cenho. Estava a ponto de torturá-la e ela o castigava
assim? Talvez o fizesse para irritá-lo, para que não demorasse mais em dar
essa primeira chicotada.
Não queria fazê-lo, mas se esse era o presente que ela lhe dava, sua
desculpa por ter-lhe pedido que desobedecesse a seu rei, o aceitou. Usou a
raiva para dar a primeira chicotada. Forte, ou seu rei não contaria.
Seu braço baixou, o chicote estalou e as nove pontas se cravaram na
suave pele feminina, penetrando-a, rasgando-a, arrancando caminhos de
sangue.
E ela gemeu.
"Um" soou divertida a voz do rei, aprovando o golpe.
Mas o íncubo só podia pensar nesse gemido. Era impossível que
tivesse gostado. Ainda mais que ele tivesse começado a suar. Esse plano
infernal com o vulcão tinha uma temperatura muito elevada, mas não era
isso. Era a proximidade da súcubo, com seu corpo lhe tentando, com sua
aceitação do castigo o que estava lhe deixando tão quente.
Maldita Klynth'Atz.
Isso não deveria lhe agradar. Ela era uma princesa súcubo, era a que
matava e dilacerava e infligia tortura. Se estava ali, se retesando, se
remexendo e ofegando com a chibatada era sem dúvida para lhe provocar.
"Minha senhora..." sussurrou baixinho. "Quem está torturando
quem?"
E não pôde ver, mas o rei sorriu satisfeito. Se o tivesse visto,
possivelmente sua crescente excitação teria congelado de medo. Ou talvez
não. Era seu bisavô. Seus desígnios não tinham por que ser tão malvados,
não?
Se sentindo de repente mais vivo, como quando no Vaticano ela o
beijou, ergueu o chicote.
"Dois" aprovou o rei.
Novos sulcos de sangue se uniram aos anteriores, deixando suas
costas dilaceradas. Violeta ofegou quando ouviu assoviar as tiras e gemeu
ao receber o castigo em sua carne.
Atzir'itz não pôde evitar notar como seus olhos eram de um âmbar
raivoso, como o couro da calça lhe apertava demais, como essa súcubo que
queria como sua e para sempre estava lhe fodendo vivo. Já não se sentia
mal ou culpado pelas chibatadas. Sua parte humana cada vez contava
menos e a outra, a demoníaca, queria se saciar dela. Tempo demais
desejando se meter entre suas pernas e sendo parado pelo firme não da
súcubo. Dias demais, meses, cheirando seu aroma excitado e se resignando
a que ela o negasse a ambos, ainda que só sua parte humana entendesse o
porquê e sua parte demônio estivesse cada vez mais frustrada. E irritada.
"Quatro."
Ela gemeu outra vez. A corte estava em silêncio, não ousando falar
caso seu rei os castigasse, mas enlouquecendo pela excitação e a tensão
sexual que envolvia esses dois e se espalhava, qual veneno de uma imensa
flor de depravação e abandono, por todo o pátio e, como seguissem assim,
logo por todo o castelo.
Não aguentando mais, o íncubo se aproximou dela, a agarrou pela
base do cabelo, na altura da nuca, e a fez girar sua cabeça para cima. Viu
seus lábios entreabertos, provocadores, e seus olhos brilhando em âmbar. Se
tinha dúvidas, isso as tirava todas: gostava. E muito. Sua senhora,
desgraçada, passou a língua lentamente pelos lábios ressecados. Seus
mamilos, que se marcavam contra esse tecido que estava se tingindo de
vermelho, estavam totalmente eretos. E eram gloriosos.
Com um grande esforço, o íncubo recuou e voltou a levantar o
chicote. Tinha que cumprir o castigo se não queria um pior. Agora que tinha
que aguentar outras dezesseis chicotadas com ela clamando assim para que
a fizesse sua, entendeu melhor o alcance do castigo. Um que agora via claro
que estava desenhado sob medida.
"Cinco."
Com o estalar do chicote e as pontas desenhando sulcos cada vez
mais profundos em sua carne, veio o ofego. Só que desta vez sua voz,
quebrada por uma mistura de prazer e dor, pronunciou uma palavra.
"Me possua."
Maldita Violeta, brincava com ele... É que queria que seu avô o
matasse por não poder cumprir com o castigo? Além disso, estava ali toda a
corte, olhando...
Como se pudesse ler sua mente, se ouviu uma gargalhada, a de seu
rei. Parecia que estava se divertindo. Isso o ajudou a voltar a se concentrar.
Levantou o chicote.
"Seis."
"Sou sua..." gemeu.
Maldita fosse. Já não havia corte, já não havia nada para Atzir'itz:
apenas os dois, umas correntes, um poste e um chicote. E a certeza de que
tinha que terminar de castigá-la porque havia sido uma súcubo má. E ele
estava enlouquecendo pelo quanto a desejava. Sua mente lhe mostrava
imagens de si mesmo jogando o chicote contra a pedra do chão, terminando
de arrancar-lhe o vestido e se cravando bem fundo nela enquanto seu corpo
se colava contra o da mulher, imobilizando-a contra o poste, sentindo-a se
retorcer enquanto se afundava em seu interior uma e outra vez.
Quando soou a chicotada número dezoito, o rei fez um gesto
imperativo à corte e todos abandonaram o pátio, rei incluído, deixando-os
sozinhos.
O dezenove não teve, pois, ninguém que o contasse em voz alta,
mas dava no mesmo, Atzir'itz havia deixado de escutá-lo vários números
atrás.
"Já está quase, meu valente guerreiro" ofegou ela, rendida,
abandonando todo jogo.
Com o vinte, o chicote caiu no chão instantes depois de golpear suas
costas. De imediato, a boca do íncubo cobriu a feminina, absorvendo seu
ofego, devorando-o.
"Me faça sua" ouviu.
Não precisou de mais. Sua senhora havia lhe confirmado a
permissão. Sua parte humana, a pouca que ainda lhe restava, se retirou.
Atzir'itz arrancou suas próprias calças e a penetrou de uma vez, enquanto
com uma mão agarrava seu cabelo e com a outra se apoiava no poste. A
descarga elétrica foi brutal, a sentiu em cada centímetro de seu membro.
Após um brutal e rápido orgasmo para ambos, mudou para o outro lado do
poste e se deu um banquete com seus peitos. Erguidos, cheios, igual ao que
sempre havia imaginado e sonhado. Porque ela era perfeita.
"Me dê mais, agora" lhe urgiu Klynth'Atz, pois o do castigo não
havia sido mais que um jogo para ela. O comando, o poder, a dominação,
era seu. Sexo incluído.
Sem duvidar, Atzir'itz obedeceu. Os dois demônios, íncubo e
súcubo, começaram a dançar uma dança de prazer e êxtase que acabou com
as correntes arrancadas do poste ante a ordem de Violeta, com ela em cima
tomando o que era seu, com ambos pelo chão, pelos ares voando, contra os
muros do pátio... Um e mil orgasmos não eram suficientes para saciá-los.
Toda a tensão, toda a liberação, rugindo em seus corpos e unindo essas
almas que tinham apesar de serem demônios, por sua parte humana.
Quando acabaram ela se deixou cair sobre ele, saciada, apoiando sua
cabeça sobre seu peito.
"Pois não foi tão terrível o castigo" brincou. "Teria que ter
desobedecido meu avô antes, nada a ver isso com o de Casio."
"Ainda sentindo algo por esse traidor?" franziu o cenho seu amante.
"Está brincando?" Caiu na risada ela. "Está ótimo no novo trono do
meu avô. Fico feliz que tenha sido um traidor, assim minha parte humana
pôde superá-lo. Você é muito melhor na cama."
"Cama?"
"Bom, correntes, chão de pedra, o que seja."
Se apoiou com seus braços no forte peito masculino para se
incorporar um pouco e poder olhá-lo nos olhos.
"Violeta, eu..." ficou de repente sério o íncubo.
"Sim?" deu corda ela.
"Te amo. Quero ser o pai de suas crias."
O rosto feminino se iluminou.
"Toda garota deseja que lhe digam que a querem e toda súcubo de
sangue real o segundo. Você sim que sabe como se declarar" brincou.
"Violeta?" perguntou de propósito com seu nome humano, porque
era sua alma aonde mais lhe interessava chegar, não seu corpo.
"Sim. Às duas coisas. Porra, Atzir'itz, somos duas armas perfeitas
que vão ter bebês ainda mais aterrorizantemente perfeitos. Nem que tivesse
planejado meu avô" ironizou.
"É possível. Te incomoda?"
"Não. Na verdade não" Caiu na risada. "Faz muito que assumi que
os desejos do meu rei são o que minha parte demônio quer cumprir e, ei, se
você é seu escolhido para mim, tenho que reconhecer que tem bom gosto."
Atzir'itz, cuja pena havia se consumido toda nessas horas de frenesi
sexual, se sentiu infinitamente agradecido e feliz. A incrível mulher que
amava lhe correspondia. Nada, nem ser o herdeiro de um império
demoníaco, podia se comparar a isso.
Sua alma humana bateu feliz.
VINTE E SETE
—"Te amo. Quero ser o pai de suas crias."
As palavras do guarda do meu avô, arma como eu e também um
possível sucessor ao trono, ressoaram com força dentro de mim.
Te amo...
Eu sabia, eu o sabia. Se já havia suspeitado antes, tive certeza após o
dia do juízo final. E, no entanto, não havia podido aceitar.
Não porque supostamente eu era um demônio e por isso não tinha
direito a ser feliz.
Um momento, não havia mandado toda essa baboseira para o
inferno depois de me envolver com Casio?
Ah... mas é que meu lance, meu "sou a namorada do vampiro
milenar" tinha me saído pela culatra. Sim, claaaaro, eu ia ser a mulher e
guerreira de semelhante espécime de falsidade e desdém masculinos. Aiii,
vovô, é que eu ainda, de algum modo, devia seguir me sentindo indigna de
ser feliz como qualquer garota humana porque sou meio demônio. E olha
que você me dizia, brinque com ele, não lhe dê seu coração ou sua alma.
Para ser uma súcubo que se alimentava de almas deveria ter sido
mais esperta.
Por sorte, minha natureza demoníaca era mais sagaz e frente a me
alimentar de idosos ou desprezíveis pedófilos e me consolar com um
vampiro que me utilizava e menosprezava como parceira, tinha estado me
mostrando o que seria me desatar com alguém como o fodidamente sexy
guarda do meu avô. E olha... agora que já havia conseguido dar um pé na
bunda no lance com Casio (ou deveria dizer buraquinho no trono de corpos
torturados do meu avô?), bem isso, que já estava livre.
Porque sim, Atzir'itz me amava. Era capaz de sentir e acabava de me
demonstrar mais uma vez, como quando calou sobre Casio diante do meu
avô. Havia arriscado sua vida por mim e eu tinha que reconhecer que o
rapaz era dos mais sexy. A maneira como acabávamos de nos fundir, corpos
e almas, era algo que nem suspeitava que podia existir. Era como sentir o
sol após uma noite de estrelas. Agora entendia que não se podia confundir o
reflexo da lua com o amor, por mais que tivesse servido para abrir a um
vampiro as portas da minha casa. Agora entendia também o que Marta tinha
com Daniel; só que eu, sendo demônio, bem... digamos que o êxtase e o
prazer eram mais intensos do que poderiam suportar dois corpos meramente
humanos.
E que porra eu estava pensando, divagando mentalmente em
milésimos de segundo após ouvir que me amava? Pois me sentir plena,
completa, feliz. Tanto como para ignorar o negócio das crias porque minha
parte súcubo sabia que era o pedido correto para obter a mão da neta do rei.
Zombei um pouco dele. Vi seus olhos escurecerem com preocupação,
tensarem suas feições perfeitas. Caí na risada. Esclareci que estava tudo
ótimo, que eu também o amava. E voltei a apoiar minha cabeça em seu
peito. Era forte, grande, seguro. Eu não precisava de segurança em um
demônio, nem a buscava, mas podia desfrutá-la nesses momentos.
Que estávamos no pátio do novo castelo do meu avô onde ninguém
se aproximava para nos incomodar, mas certeza que mais de um demônio
havia desfrutado do espetáculo?
E daí?
Eu nesses momentos só era uma garota que sentia o coração de seu
amado bater compassado ao seu. Não sabia quanto duraria nem me
importaria se fosse para sempre. O que sim por fim havia compreendido era
que merecia que me acontecessem coisas boas e ia desfrutá-lo enquanto
durasse.
Demônios apaixonados?
Qualquer um riria disso. Íamos lhes demonstrar o quão bem
funcionávamos como armas agora que estávamos juntos e que nossa força
conjunta era muito mais forte que a soma das partes.
Feliz, adormeci.
(No pátio do castelo, tá bom. Com certeza Atzir'itz me levaria a
meus aposentos)
VINTE E OITO. 6 anos depois.
—Mamãaaaae! A babá não se deixa arrancar os chifres de novo —
me chegou a voz da mais velha das minhas duas filhas gêmeas.
A babá era a demônio menor que costumava cuidá-la em nossos
aposentos no castelo do sétimo inferno e que havíamos trazido à Terra para
ir ao batizado da primeira filha fêmea de Marta. A coitada, por mais que
tivesse tentado, até agora só havia tido meninos. E não me interpretem mal,
adoro meninos; mas a magia das bruxas vai por linha feminina e estavam
loucas para ter uma herdeira do poder da índigo da casa da lua cheia.
—Plomtukj —repreendi a babá—, é que você se deixou arrancá-los
alguma vez?
A aludida abaixou a cabeça, culpada, e eu suspirei. Em que
momento havíamos passado de torturar nossos filhos (como fizeram
comigo) a deixar que estes torturassem os demônios do serviço?
—Está totalmente proibido que deixe. Se voltar a acontecer, eu
mesma reclamarei sua cabeça.
Ficou pálida. Normal. Estava a serviço da família real, poderia ao
menos mostrar um pouco mais de profissionalismo.
—E você, pequena súcubo —me virei para minha filha e me agachei
para ficar à sua altura—, não vai voltar a machucar pelo prazer de fazer
isso. Não somos assim. E se quer provar o que se sente, talvez tenha que
deixá-la passar uma temporada com meus tios.
—Não será necessário. —Saiu em sua ajuda meu lindo Atzir'itz—.
Amanhã mesmo a levo de caçada para que aprenda.
Suspirei.
As estava mimando demais e o pior era que eu estava sendo fácil
demais de convencer. Assenti. Talvez devesse mandar algum dos demônios
ferais que meu avô guardava em suas cavalariças para lhe dar um bom
susto. Estava imaginando a cena quando soou o alarme que havia posto para
não me atrasar.
—Vamos —os apressei.
Uns vinte minutos depois estávamos no meu novo carro (o
Lamborghini não me servia com as meninas, mas o tinha a bom recato para
quando escapava sozinha pela Terra), uma minivan, a caminho do Samhain.
Ali, no mesmo sancto sanctorum do porão ia Arianhrod oficiar o que
havíamos chamado de batizado mas que, na realidade, era para dar ao bebê
seu nome verdadeiro, apresentá-la a sua deusa e ajudar seus poderes a
despertar. Era uma cerimônia que normalmente se oficiava na casa da bruxa
mas, por se tratar da filha primogênita de uma das matriarcas do
matriarcado, a fazia a própria Arianhrod em pessoa.
—Como vai? —perguntei à minha amiga uma vez que estávamos
dentro do Samhain.
Marta havia subido ao andar de cima para nos receber e levava sua
pequena nos braços. Dei-lhe um abraço com cuidado de não machucar o
bebê.
—Nervosa —me respondeu.
—Vai dar tudo certo. É tão bonita quanto a mãe, vai crescer sã e
poderosa.
Marta me sorriu. Fazia tempo que não nos víamos. A vida se
tornava agitada quando se tinha filhos, algo com o que meu avô, agora que
estávamos em uma época de paz, estava mais que satisfeito. Não duvido
que via minhas gêmeas como futuras armas ainda mais poderosas que seus
pais, e por isso nos havia deixado criá-las a nosso modo.
Descemos e presenciamos a cerimônia. Só estavam ali as matronas
do matriarcado e Daniel. Tanto a presença do pai como a nossa eram uma
exceção a seus costumes. Ou um retorno ao que uma vez foi, antes da
inquisição. Pude ver o quão orgulhosa Marta estava de seu bebê. No final
tudo havia dado certo.
O apocalipse havia passado deixando uma Terra onde os seres
sobrenaturais éramos conhecidos e o Vaticano tinha um grande poder, mas,
no entanto, nos países que não controlava, sua aliança conosco nos permitia
viver em paz com a população humana. Havia leis que haviam substituído o
conselho vampírico, leis que protegiam os seres humanos e, entre a polícia,
havia membros sobrenaturais para ajudar a lidar com os que não as
acatavam. Era um mundo estranho mas, ao mesmo tempo, similar ao que eu
sempre havia conhecido. A única coisa que sentia falta eram as guerras.
Adoraria tanto que chegasse uma nova ameaça e poder voltar a sair voando
no comando de um exército demoníaco montado em wyverns...
—Sei o que estava pensando —me sussurrou mais tarde meu
amado, quando estávamos celebrando o batizado no andar de cima, sentado
a meu lado em uma mesa—. Você morre por um pouco de ação.
—Tanto assim que se nota?
—Venha caçar conosco.
—Não é a mesma coisa.
—E se eu dissesse que os bruxos do seu avô estão a ponto de
descobrir o modo de abrir a entrada a novos planos, novos infernos?
Sorri. Isso sim que seria uma boa notícia. Deve ter iluminado todo
meu rosto.
—Não mentiria para mim com algo assim, certo?
—Para você? —Caiu na risada—. Gosto de continuar conservando
minha cabeça —brincou.
—Pois isso seria genial. Por fim um pouco de ação.
Marta viu a mudança na minha atitude e me olhou interrogativa.
Desde as lutas com as quais se liberou da servidão, eu sabia que ela havia
pego gosto e que também sentia falta, por mais pacífica que a garota tivesse
sido no passado.
—O que me diria se precisasse voltar a contratar seus serviços? —
lhe perguntei.
—Que contrato uma babá para toda minha prole —saiu-lhe da alma.
—Você não dizia que era hora de paz? —lhe lembrei.
—Por favor, faz anos disso e sinto falta de um pouco de ação.
Ri. Erguemos os canecos e brindamos a isso.
Continuava sendo bom estar na minha pele de semi-súcubo. Esses
tempos sombrios, prévios à minha maioridade, cada vez estavam mais
enterrados na lembrança. A tristeza e a melancolia as havia combatido a
golpes de sabre e adaga. Havia aberto meu próprio caminho e não duvidava
de que teria que seguir fazendo-o. A vida, se quisesse desfrutá-la, tinha que
encará-la com força.
E força e magia era precisamente o que não faltava esta manhã no
Samhain.
Sorri e me alegrei de estar em tão boa companhia. Não podia ser
melhor. Não com a faísca entre Atzir'itz e eu ainda ardendo com mais força
a cada dia.

FIM DA SAGA
O boca a boca é crucial para qualquer autor. Se você gostou deste
romance, por favor considere deixar uma resenha. Mesmo que seja de
apenas uma ou duas linhas, adorarei lê-la e será de grande ajuda.

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Primeiras páginas de A Sombra da Aranha

ZERO
Não tenho muita certeza do motivo pelo qual estou correndo.
Apenas sei que estou arriscando muito mais do que uma nota. Talvez
minhas pernas tenham ganhado vida própria por causa dos gritos abafados
das minhas colegas ou, quem sabe, pela sensação de que não estamos
sozinhas neste corredor da ala proibida. Há algo no ar, algo que vem se
formando há semanas, que me faz sentir que o mal já não está de férias.
Não lembro das paredes serem tão estreitas, nem das sombras entre
as lâmpadas serem tão densas. Por sorte, Kate está correndo na minha
frente. Não nos damos muito bem, mas talvez juntas consigamos sair do
internato.
—Kate, me espera! —grito.
Não consigo evitar que o tom agudo da minha voz me assuste, como
se chamar a atenção fosse perigoso.
—Me esquece, perdedora —responde, tão odiosa como sempre,
minha colega de quarto. —Você não faz ideia do que é isso.

Ela nem sequer olha para mim.


Abro a boca para protestar. E a fecho. Aos poucos, minhas pernas
param de me impulsionar para frente, e os ladrilhos do chão parecem
ganhar peso ao redor dos meus tênis. Em uma fração de segundo, algo, de
uma forma tão aberrante que minha mente não consegue compreender, sai
de uma das sombras no teto, dispara um apêndice com garras em direção a
Kate, corta sua garganta e a arrasta para cima. A criatura desaparece na
escuridão que engole ainda mais as poucas luzes espalhadas, deixando para
trás um arrepiante “glu-glu”. Outra dessas criaturas surge perto de mim.
Eu grito. Grito e recupero o controle das minhas pernas, deixando
parte das solas dos meus tênis nos ladrilhos. Mas aquilo é rápido. Me viro.
Estou apavorada. Não entendo o que está acontecendo, mas não vou morrer
como uma covarde. Cerro os dentes. Então ele aparece. Ele. Que me
empurra, que se coloca entre mim e aquele ser.
Ele...
Está tão impossivelmente encantador como sempre. Meu coração
bate traiçoeiro com a ideia de que ele vai me salvar. Ele está com uma
espada, e com um golpe demonstra que sabe usá-la. A criatura se desintegra
em uma nuvem que cheira a ovos podres.
“Victor...” —suspiro, como uma tola.
Não consigo evitar observar a habilidade com que ele manuseia a
arma ou o brilho de seus olhos azuis enquanto estende o braço na minha
direção, oferecendo uma saída.
—De novo? —Ele retira, zombeteiro, a mão que havia estendido
antes que eu pudesse alcançá-la. —Você realmente acha que vou te tirar
daqui? Só vim me despedir. Me de-cep-cio-na —ele silaba com desdém. —
Esperava muito mais de você. Não sabe enfrentar um demônio menor?
Afinal, parece que Paula tem razão: você não é digna de mim.
Ele sorri para mim. Um gesto sarcástico que, apesar de tudo, faz
com que meu peito se agite nervosamente, fazendo meu café da manhã
parecer querer sair. Ele é tão lindo... mesmo quando o odeio. E, tão
silencioso como apareceu, ele se vai, com o eco de seus passos confiantes
ressoando pelo corredor.
Um demônio... Absurdo. Lágrimas encharcam meu suéter, gotas de
humilhação. Não deveria ter pensado, mais uma vez, que eu significava
algo para ele. E corro. Sem rumo. Em vão. Outra dessas criaturas surge
diante de mim, exibindo um sorriso faminto nas gengivas desdentadas de
sua boca agonizante. Ele me rejeitou, aquele cretino convencido voltou a
zombar de mim. A raiva e o medo brigam no meu estômago. Me inclino
para frente, apertando a barriga com um braço. Vou vomitar. Enquanto os
tentáculos da criatura se estendem em minha direção, não consigo evitar me
perguntar o que será mais difícil de limpar da minha roupa: o vômito ou o
sangue. Embora não seja como se alguém fosse querer guardar o que sobrar
dela.
UM
—... acima de tudo, lembrem-se de que amanhã corrigiremos os
problemas do dezesseis ao vinte e três e vou perguntar as fórmulas —disse
o professor de física, momentos depois de soar o sinal das duas, marcando o
final da aula.
Como sempre, apenas os alunos da primeira fila ainda estão
ouvindo. Deveríamos estar sentados em ordem alfabética, mas ele nos deixa
escolher nossos lugares, desde que não façamos bagunça. Enquanto isso, os
outros já estão guardando suas coisas ou correndo para a porta com suas
mochilas. Acabei de anotar os deveres na agenda e a guardo junto com a
caneta, o caderno de física e o livro. Despeço-me do professor com um
impessoal “até segunda-feira” e vou encontrar minhas amigas, que, como
de costume, estão me esperando no corredor.
—Finalmente, Tory! Você é muito lenta... —reclama Ana, minha
melhor amiga, enquanto alisa sua saia com suas unhas bem cuidadas. —Se
você se sentasse lá atrás com a gente, não teríamos que esperar por você.
—E privar você do prazer de reclamar? —respondo com um sorriso.
Meu nome é Victoria, mas, desde que Ana decidiu aos doze anos
que é um nome sério demais, todos me chamam de Tory. Exceto, claro,
meus pais.
—Amiga, isso seria um desastre, né? —brinca ela, me dando um
leve empurrão com o cotovelo.
—Que amigas maravilhosas eu tenho! —protesto, revirando os
olhos. —Vamos para casa almoçar rápido, porque depois temos a festa!
—Festa? É assim que você chama aquela cerimônia chata de entrega
de bolsas? Ou talvez ver “as clônicas” desfilando na frente de todo mundo
para provar o quanto são dignas de entrar no internato?
Desde que foi anunciado que a prestigiada academia para senhoritas
Belynda abriu um novo centro nos Pirineus aragoneses e que a única
maneira de entrar é por meio de bolsas... todas estamos nos perguntando se
seremos uma das sortudas. Gostaria de fingir que sou madura o suficiente
para estar acima disso, que entrar em uma instituição cujas sedes na França,
Inglaterra, Alemanha e Suíça já tiveram até alunas da realeza não me
importa nem um pouco. Mas a verdade é que, por mais que eu queira
parecer madura (principalmente para agradar minha mãe), não sou. Então
sim, adoraria ser aceita em um internato onde talvez pudesse conhecer a
filha de algum artista famoso. E para não envergonhar o lado racional que
meus pais tanto se esforçam para cultivar em mim, valorizo o fato de que
todas as formandas de lá conseguem empregos excelentes. Não acredito que
vou acabar sendo diretora de uma revista de moda ou executiva de uma
grande empresa, mas não posso negar que a ideia de uma bolsa que me
permita estudar lá por cinco anos acelera meu coração. Além disso, duvido
que lá tenham tantas regras quanto na minha casa.
Maria, a outra integrante do nosso trio inseparável, interrompe
minhas, digamos, reflexões.
—Ah, você não gostaria de ser escolhida? Imagine a cara de Paula
“sou-super-importante” —imita com uma voz de falsete— se escolhessem
você no lugar dela.
A imagem de Paula, a autoproclamada líder do grupo das clônicas,
franzindo seu rosto impecavelmente maquiado, me faz sorrir. Mas,
imediatamente, imagino Ana e Maria como as novas vítimas de suas
brincadeiras cruéis pelo resto do ano, apenas por serem minhas amigas, e a
diversão desaparece. Sempre é melhor que essas bruxas não reparem em
você.
—De qualquer forma, não sabemos quais critérios usaram para dar
as bolsas —lembro a elas. —Podem ter anunciado que vão escolher várias
alunas deste colégio, mas, se levaram em conta coisas como dinheiro, as
candidatas são Paula e suas amigas, não nós.
—Lembre-se, querida, que é absurdo dar uma bolsa para quem já
tem dinheiro —comenta Ana enquanto se dirige à saída do colégio.
—Certo, mas não há outra maneira de entrar, e duvido que seus pais
influentes gostem que ela fique de fora.
Todos sabemos que, na verdade, ela é a única com uma família
realmente rica no grupo dela. As outras, exceto talvez Gema, se limitam a
tentar imitá-la. Por isso as chamamos de clônicas.
—Pode ser —concorda Maria. —Mas abrir o centro na Espanha nos
dá uma oportunidade que não tínhamos antes. E estudar lá significa, no
mínimo, um emprego muito bem pago. E status social. O que você acha que
a mãe dela repete desde que ela começou a usar sutiã? E, embora eu saiba
que não seja o caso com você, minha mãe tem sido muito insistente há dois
anos: “destaque-se em algo, filha, qualquer coisa, para ver se, quando o
internato abrir, eles se interessam por você e te dão uma bolsa” —imita,
diminuindo ainda mais o ritmo do passo.
Nesse momento, estamos passando em frente ao banheiro, cuja porta
está aberta. Vejo nosso reflexo no espelho: eu, um pouco mais alta que elas,
Maria, um pouco “menos magra” (como ela gosta de especificar), e eu, a
única morena. As duas têm a sorte de ter lindos cabelos loiros escuros.
—Amiga, sua mãe exagera... —resmunga Ana.
—Além disso —continuo na mesma linha de pensamento—, não
acho que se obcecar por entrar em uma instituição tão exclusiva seja
saudável. Primeiro porque temos poucas chances de conseguir e, segundo,
já pensou que, se for escolhida, não verá a gente, nem sua família, por cinco
anos? —fico séria de repente.
Se Maria vai começar a dar ouvidos à mãe, melhor que não seja
nisso.
—Que bobagem, amiga! Eu já sei que não vou entrar, mas sonhar é
de graça. E eu sentiria falta de vocês, mas de mais ninguém! Como se não
ver a pentelha da minha irmã, que está sempre mexendo nas minhas coisas,
fosse algo ruim... Claro que tanto tempo sem garotos é outra história.
—Maria...! —Ana finge escândalo. —Você só pensa nisso...
—Ei, eu não tenho culpa de vocês duas serem tão recatadas que
ainda não saíram com ninguém.
—Sair com alguém? —Paula não consegue evitar se intrometer na
conversa ao ouvir ao passar por nós. —Como se algum garoto quisesse sair
com vocês, pirralhas!
—Olha quem fala —resmunga Maria—, a rainha dos encontros. —
Percebo que ela morde a língua para não dizer “vadias”.
Não convém irritá-las. Elas são muitas. Ainda lembro como fizeram
da vida de uma pobre garota chinesa um inferno apenas por respondê-las
mal.
—Com certeza, garotinha. Eu diria para você não ir à festa hoje à
noite, mas então não veria meu triunfo. Pelo menos, faça um favor a si
mesma e não tente se arrumar. —Ela me olha com desdém de cima a baixo,
do alto de seus longíssimos cílios curvados. —Você sabe o que dizem sobre
macacas vestidas de seda... —Se acaricia sorridente sua cabeleira loira
platinada e segue adiante, acompanhada por seu grupo.
Exceto por serem solitárias, as clônicas me lembram garças.
Elegantes, magrelas, de bico perigoso. Mal podia imaginar naquele
momento que Paula se pareceria ainda mais com essas aves de pernas
longas, pois deixaria de andar em grupo. Ou, menos ainda, que sua nova
melhor amiga morreria diante dos meus olhos.
—Fica tranquila, amiga —Ana tenta acalmar Maria depois que elas
já não podem nos ouvir—, deixa que essa bruxa se regozije. Deus queira
que não escolham ela.
—Ah, tomara que escolham. —Dou de ombros, tentando aliviar o
assunto. —Você consegue imaginar como seria terminar o colégio sem ela?
Uma bênção!
—Isso sim. —Elas me sorriem, não muito convencidas.
—Bom, vejo vocês mais tarde —lembro a elas, já chegando no
portão de saída.
—Certo! Às cinco lá em casa —responde Maria.
Ela parece animada. É muito provável que já esteja imaginando a
tarde de escolhas de roupa que nos espera. Engulo em seco.
—Nos vemos. Cara, que fome eu tô —despede-se Ana.
Se meus pais me ouvissem falando assim… levaria uma bronca na
certa.
—Essa boca... —dou um leve toque amigável no ombro dela, ao que
Ana mostra a língua e se apressa para casa.
—“Senhor” —não posso evitar pensar comigo mesma— “não vai
ter jeito, vou ter que aguentar mais uma das sessões de beleza da Maria,
como se isso fosse me adiantar para alguma coisa!”
Estoy en el caminho para casa, mal passaram dez minutos desde que
me despedi das minhas amigas. Caminho pela ampla rua arborizada que
leva ao apartamento onde moro, no bairro Actur de Zaragoza. Enquanto
minha mente vagueia pensando no que minha mãe deve ter preparado para
o almoço hoje, começo a sentir uma sensação muito estranha, como um
calafrio percorrendo minha coluna e fazendo todos os poros do meu corpo
arrepiarem. E não é porque eu tenha parado para aproveitar o sol da tarde,
pois não há como confundir a agradável sensação de calor na pele e o
relaxamento mental que sinto ao me expor ao sol com o frio que agora me
invade, apesar da ensolarada tarde que se inicia.
Desconcertada, ergo o olhar e então o vejo. Está a uns dois metros
de mim, recostado de forma relaxada contra uma árvore, e é o garoto mais
bonito que já vi. Não me surpreenderia nada se, ao virar, ouvisse risadinhas
de um grupo de estudantes o admirando encantadas. Isso combinaria muito
mais com sua postura do que esta rua deserta, como se houvesse jovens
feitos para serem admirados.
E eu, fico tão hipnotizada pela imagem que quase não piscava. Não
entendo, é a primeira vez que algo assim me acontece. Não é seu cabelo
castanho escuro, quase preto, cortado em mechas desiguais, nem as feições
angelicais que emoldura. Talvez seja o contraste entre a doce beleza de seus
traços e o brilho ligeiramente curvado de seus lábios. Não é seu corpo
proporcionado e forte, nem sua altura um pouco acima da média. Talvez
seja o jeito como está recostado contra a árvore, com insolência, como se
desafiasse o mundo com um gesto de seus braços. Tampouco são seus jeans
desgastados ou seu suéter que parece ser bem caro. Inclino-me mais para a
combinação de tudo isso. Mas, acima de tudo, é algo que não consigo ver:
sua mente, tão poderosa que não pode deixar de me impactar mesmo sem
dizer uma palavra, refletindo-se no jeito rigoroso como me analisa; seu
sorriso sarcástico, como se estivesse considerando o que fazer comigo; a
fria arrogância de seus olhos azuis, que me avaliam como se tivessem o
direito. E, sob suas sobrancelhas ligeiramente franzidas, uma determinação
teimosa, como se já tivesse decidido que eu lhe interessava, e eu já estivesse
perdida. Estremeço. É ele, o garoto com quem algumas sonham, capaz de te
enfeitiçar apenas com a intenção de um olhar.
Não consigo evitar me aproximar, é como se ele me chamasse. Dou
um passo vacilante após outro, me aproximando tanto que meus lábios
ficam a centímetros dos dele. Nunca me comportei assim antes. Uma coisa
é brincar com Ana quando ela se gaba de seus namoricos, outra é tê-los.
Não que eu ignore os garotos, mas também nunca conheci nenhum que me
atraísse assim, como se ele fosse um ímã e eu uma partícula de ferro sem
outra escolha além de me render. Até agora. Há algo nele que me chama,
me faz questionar como seria bagunçar aquelas mechas de cabelo, se teriam
a aspereza suave que aparentam, se eu tocaria seus ossos da face ao afastá-
las de seu rosto... estou completamente hipnotizada. Então ele move os
lábios, muito perto de onde, distraída por seu cabelo, coloquei os meus sem
perceber. Contemplo como eles se curvam, muito devagar, com uma
lentidão quase dolorosa; anseio por seu beijo. Até que ele termina sua
expressão sardônica, rompendo o feitiço e transformando a leve excitação
no meu estômago em uma súbita dor de náusea.
—O que foi, Victoria? Decepcionada? Achou que eu fosse te beijar?
—me pergunta com uma voz que, embora masculina, tem um leve tom
musical.
—Eu...
Se eu precisava de algo para me arrancar da estranha e cálida
enfeitiçação em que me senti presa, isso bastou. Pisquei e recuperei a
lembrança de como havia me aproximado dele. Genial. Sinto o calor nas
bochechas me indicando que fiquei corada e, morta de vergonha, me afasto
três passos para trás, de forma desajeitada e hesitante. Não entendo nada.
Mas o jeito como ele me olha, divertido e cínico, me faz desejar não ter
saído da cama hoje. Ainda assim, algo no meu estômago, que continua
protestando pela transição de "menina-hipnotizada-hormonalmente" para
"patinho-feio-que-ousou-se-achar-princesa", me faz virar e correr para casa,
com meu coração batendo rápido demais ao som da risada sarcástica do
garoto. E é então que percebo que ele sabe meu nome.
—Entra, Victoria, as meninas estão no quarto da Maria —me
informa sua mãe ao abrir a porta naquela mesma tarde.
Com seus cabelos loiros e o mesmo tipo de gestos, é a viva imagem
da filha vinte anos mais velha.
—Obrigada —respondo e cruzo o umbral.
—Corre, Tory —grita uma voz animada do outro lado do
apartamento—, estamos quase começando sem você.
Atravesso o corredor até o quarto iluminado da minha segunda
melhor amiga. Sempre que entro, experimento um déjà-vu dos meus dias de
infância. O cômodo, com suas paredes cor-de-rosa, cortinas de corações e
sua enorme quantidade de bichos de pelúcia não só sobre a cama, mas
espalhados por todos os cantos, quase machuca os olhos. Não dá para negar
que a garota precisa ou de um decorador ou de uma boa lixeira.
Maria, depois de me olhar de cima a baixo, balança a cabeça com
desaprovação e aponta para a pilha de roupas espalhadas sobre o colchão,
com os ursos e outras criaturas de pelúcia jogados para o lado.
—Olha, garota, separei algo para você porque já imaginava como
viria vestida —comenta ela com um tom de fada madrinha.
Mentiria se não admitisse que isso me incomoda um pouco.
—O que há de errado com a minha roupa? —respondo na defensiva.
—Ai, Tory, se acha que vou deixar você ir com esses jeans velhos e
essa camiseta enorme... Toma, por sorte temos o mesmo tamanho. —Ela me
joga um top e uma saia curta.
—Você não está pensando que vou vestir isso, né? —Coloco as
mãos na cintura em um movimento inconsciente que enfatiza a rejeição das
minhas palavras.
Desde quando faço parte do time de "quanto mais pele à mostra,
mais bonita"?
—Se não quiser que eu me irrite, sim. Já sei que vou me destacar
mais se você não se arrumar, mas... fazer o quê, sou boazinha demais —
dramatiza, jogando a cabeça para trás e levando uma mão à testa.
—Anda, se veste, nós já estamos prontas —me incentiva Ana.
É lógico que reparo nelas. Maria está usando um vestido justo no
busto, bem decotado, com a saia rodada desde a cintura (assim disfarça
aquele “menos magra”), que revela suas pernas desde bem acima dos
joelhos até os tornozelos, onde começam uns sapatos azuis combinando,
com salto anabela. Deve ter comprado o conjunto especialmente para a
ocasião, pois nunca a vi com ele antes. E não é só que sua mãe a deixe sair
assim de casa, mas aposto que foram juntas às compras. Fico pasma. Por
sua vez, Ana está usando seu top favorito sem mangas, com um enorme
coração bem no centro do próprio, junto com seus shorts da sorte e botas de
cano alto. Parece que não vou escapar nem com meus jeans... Bem,
suponho que, como Paula disse, não importa como nos vestimos; então,
para evitar discussões, coloco as roupas que Maria me deu.
—É uma pena não calçarmos o mesmo número. Seus tênis devem
ser confortáveis, mas são tão simples e sem graça... —reclama ela assim
que me vê com o top e a saia.
Maria sempre foi fã de sapatos que mais adornam do que vestem os
pés. Especialmente agora, com o calor do final do verão ainda permitindo
exibir o bronzeado.
—Claro, é isso. Preciso dos meus jeans para escondê-los. —Estalo
os dedos e finjo pegar meus jeans de cima da cama de Maria, onde os
deixei.
Não cola.
—Nem pense em colocar os jeans de volta. Quanto aos tênis… um
mal menor. Com sorte, ninguém vai reparar nos seus pés.
Como dizer à minha segunda loira favorita, sem parecer chata, que
andar por aí com quase tudo à mostra me deixa desconfortável? Não estou
acostumada a isso, e das outras vezes em que caí nessa armadilha, passei a
noite inteira preocupada se minha roupa íntima estava visível ou se o top
sem alças poderia escorregar enquanto eu dançava. Que droga...
—Que ninguém vá olhar para meus pés? —respondo. —Então quer
dizer que nem eu acho que estou mostrando demais.
—É disso que se trata, então nem pense em tirar!
—Não sou eu mesma assim...
—Cala a boca, bonita. Toma, vou te dar um casaquinho de tricô,
mas só para a cerimônia de entrega das bolsas. Depois você tira. E agora
deixa eu te maquiar.
Um casaquinho, pelo menos isso...
—Eu não uso maquiagem...
—Shhh —interrompe Ana—, relaxa, amiga, você sabe como Maria
é. Além disso, quando entregarem as bolsas, temos que estar lindas, não é?
—Isso mesmo, senão eu vou ficar brava —concorda Maria.
—Tá bom... Por sinal, contei que minha mãe me deu um sermão na
hora do almoço?
—Por quê? Você sempre tira boas notas, então não deve ser por isso
—pergunta Ana enquanto entrega o estojo de maquiagem para Maria.
Eu me sento resignada na cadeira do quarto, afastando-a da
escrivaninha, e respondo:
—Por causa da bolsa.
—Ela também está pressionando você sobre como seria bom
ganhar? —Ana mostra interesse enquanto me limpa o rosto com algodão e
espuma de limpeza.
—Na verdade, é o contrário. Ela disse que, se eu não for, tudo bem.
Dá para ver que eles não querem que eu vá, por causa de tanto tempo
separada. E, claro, também dizem que, se eu for, será uma grande
oportunidade e blá-blá-blá. Ah, e, Maria, não me enche de base, por favor
—acrescento ao ver a quantidade que ela pega do frasco.
—Eu exagerar? O que é isso? Anda, senta direitinho, que, quando
eu terminar, nem sua mãe vai te reconhecer.
Ela finge inocência enquanto me dá uma piscadela, mas está claro
que está nervosa com essa história de bolsas. Não quis falar sobre isso
desde que anunciaram oficialmente que o nosso colégio daria ao menos
uma integral e algumas parciais. Ainda assim, tenho certeza de que sua mãe
a pressiona muito. Como se a essa altura pudéssemos fazer algo para
conseguir a bolsa... ou soubéssemos o quê.
—Também acho —respondo baixinho.
Essa garota é um perigo maquiando. Pelo menos para mim, que
geralmente me contento com um pouco de batom e lápis branco nos olhos.
Passam-se mais de quinze minutos até que minhas duas amigas
finalmente ficam satisfeitas com o resultado. Prefiro não olhar, basta saber
que não é nada discreto. Mas tudo bem, elas são as especialistas. Coloco
meu casaco (fino, mas longo, graças a Deus) e sigo as duas para a rua.
Antes de sair do quarto de Maria, não consigo evitar reparar que ela fixou
no mural de cortiça o recorte do jornal onde falam sobre o internato. É do
Heraldo de Aragón, de 16 de outubro. E a palavra “bolsas” está sublinhada
em vermelho.

O INTERNATO FEMININO BROTO ABRIRÁ SUAS PORTAS


EM OUTUBRO
Enrique Juárez

A família Niven, proprietária de vários internatos na Europa,


anunciou que não vai mais adiar a inauguração de seu novo centro.
Embora um mês mais tarde do que o previsto, as obras do internato
feminino Broto foram finalmente concluídas. O centro está localizado na
antiga vila de Yosa de Broto, nos Pirineus Aragoneses, próximo a Ordesa e
Monte Perdido.
Nesta escola, bilíngue em inglês, serão ministrados os cursos de
Ensino Secundário Obrigatório (ESO) e Bacharelado. Suas professoras são
nativas de língua inglesa, com destaque para a famosa botânica Mary
Keiton, que lecionará Ciências Naturais, Biologia e Geologia. Além disso, o
centro conta com um ambiente natural privilegiado, oferecendo um amplo
programa educativo ao ar livre, com atividades tanto esportivas quanto de
trabalho de campo em diversas disciplinas. No entanto, sua localização
apresenta algumas desvantagens: só é possível acessar o centro pelo
helicóptero da escola ou pelo caminho íngreme de terra construído a partir
da estrada de Oto durante a construção do edifício.
A diretora, Eloísa Niven, afirma que sua escola é baseada nos
princípios pedagógicos construtivistas.
—Quis construí-la em um local tão isolado por vários motivos —nos conta
—. Existem estudos que demonstram que o ar contaminado das cidades
diminui o rendimento acadêmico; além disso, nos internatos mais isolados
da comunidade, a concentração dos estudantes aumenta. Baseei-me nesses
estudos para ir um passo além. Se colocarmos a escola em um habitat
natural, que fortaleça o compromisso dos estudantes com a natureza, em um
ambiente suficientemente isolado para que bares, drogas ou interferências
modernas, como celulares ou internet, não cheguem até eles, teremos o
ambiente ideal para educar as futuras integrantes de nossa sociedade, não
apenas no nível intelectual, mas também em valores.
Pergunta. Não é muito radical desconectar as jovens das novas
tecnologias, tão presentes nas TICs e no currículo escolar?
Resposta. Claro que as jovens aprenderão a manejar as TICs,
Tecnologias da Informação e Comunicação, mas o acesso à internet será
possível apenas na sala de informática e, obviamente, não será via Wi-Fi.
Meu objetivo é evitar que as jovens fiquem até altas horas da madrugada
conversando pelo celular ou redes sociais e, no dia seguinte, adormeçam
nas aulas. Além disso, lembremos que, por definição, um internato é uma
instituição para aqueles pais cujos trabalhos não lhes permitem atender seus
filhos —no caso, filhas— como gostariam, e que estão dispostos a pagar
para que, no período escolar, seus filhos recebam a mesma educação que
eles dariam. Além disso, as companheiras de suas filhas serão o tipo de
amigas que eles próprios escolheriam para elas. O estabelecimento de
contatos sociais sempre foi parte da importância de um internato, assim
como um estilo de vida ordenado, sujeito a regras concretas, onde as alunas
adquirem competências sociais, aprendem a trabalhar em equipe, considerar
os outros, praticar autocrítica… e, sobretudo, formar amizades que durarão
por toda a vida.
P. Isso não vai contra o princípio de educação comum?
R. Para isso já existem as escolas públicas. Broto é uma escola
privada, é a visão educacional de minha família, que funciona há mais de
cem anos em outros centros europeus e cujos alunos nunca tiveram
problemas para ingressar em uma boa universidade. Além disso, para
aquelas alunas brilhantes cujas famílias não possam pagar, Broto oferece
cinco bolsas anuais.
P. A senhora não acha que as alunas não vão querer entrar em um
centro tão isolado, onde não podem ir a uma discoteca e a cidade mais
próxima está a horas de caminhada?
R. Para isso temos nossos eventos sociais, como o baile de fim de ano, onde
convidamos os rapazes que possivelmente se tornarão os solteiros mais
cobiçados no futuro. Ou as festas de fim de curso, realizadas anualmente
em um centro de um país europeu diferente. Esses eventos são incentivos
suficientes, oferecendo-lhes um tipo de experiência que dificilmente
poderiam desfrutar de outra forma.
P. Este ano vocês também ofereceram bolsas parciais, com matrícula
e primeiro trimestre gratuitos, para incentivar as famílias a experimentar a
instituição. Receberam muitas solicitações?
R. Sim. E é normal. Os pais se preocupam com a formação de seus
filhos.

(O que me faltava, me tirarem o Face e o Tuenti.)


Atrasada por ficar olhando o recorte, saio da casa de Maria e desço
as escadas alguns minutos depois delas. De modo que, ao chegar à rua, elas
estão me esperando na padaria da esquina. Faço um gesto com a mão e me
preparo para atravessar a calçada; justo nesse momento, vejo um
conversível, um belíssimo BMW Z4 preto que chama minha atenção. Meu
pai adora falar de carros, apontá-los na rua ou me mostrar fotos na internet
de seus modelos favoritos, e esse é um deles. Por isso, embora eu esteja
diante de uma faixa de pedestres, paro para olhar melhor enquanto ele
passa. No entanto, o carro para bem na minha frente. Indico ao motorista
com a mão para seguir, e me dou conta de que, o que eu tinha tomado por
um homem, é na verdade um rapaz apenas alguns anos mais velho que eu.
Quando ele desvia o olhar da estrada para me encarar, vejo dois olhos azul-
escuro que me observam sorridentes. É a maneira mais simples de
descrevê-los. Olhos sorridentes. As palavras surgem na minha cabeça assim
que os vejo, pois parece que ele me conhece, como se fosse um velho
amigo feliz por me reencontrar. Fora isso, ele usa uma camisa com alguns
botões abertos, e seu cabelo é loiro e muito fino, do tipo que escapa pelos
dedos se você tentar segurá-lo.
Eu e os cabelos... considerando que não vou ser cabeleireira,
adoraria que alguém me explicasse por que estou tão fixada nos cabelos
alheios hoje.
—Você é Victoria Escartín, certo? —ele diz, inclinando a cabeça,
com o sorriso se espalhando pelo rosto.
"Ótimo. Todo mundo conhece meu nome hoje", penso.
—Com licença? Te conheço?
—Tome.
Ele tira o cinto de segurança, se inclina em minha direção através do
banco vazio do passageiro, pega uma das minhas mãos e a envolve com as
duas dele. E eu, surpresa, não consigo reagir. Não estou acostumada a que
coisas tão estranhas aconteçam comigo. Menos ainda duas vezes no mesmo
dia.
—O quê?
Suas mãos são quentes, mas não tanto quanto algo que está entre
elas e minha palma.
—Você vai precisar disso. Me devolva quando nos virmos
novamente.
Ele gira minha mão, a fecha, volta a sentar-se direito em seu banco e
pega o cinto de segurança.
—Espere! Que brincadeira é essa?
Ele me encara de novo, como se considerasse dizer algo mais. Vejo
uma sombra passar por seus olhos, azuis como os do outro rapaz, mas tão
diferentes, e ele se prende novamente ao cinto.
—Apenas guarde. Dizem que, se você mantêm em contato com a
pele, dá sorte.
Faço menção de pegar a porta do carro, mas percebo em sua postura
que ele está prestes a acelerar, então não faço nada. Deixo que ele se vá
(como se tivesse outra opção!), em meio a uma nuvem de cheiro de
gasolina mal queimada. Aproximo minha mão dos olhos e a abro. Estou
segurando uma grossa corrente dourada, de algum tipo de metal
envelhecido, com um pingente esferoidal do tamanho de um damasco
pequeno. Sua cor é vermelha, com algumas ondas pintadas que parecem
lambê-lo como línguas de fogo. Não sei bem o que fazer com isso; mas
antes que consiga decidir, Maria me chama em voz alta. Guardo o objeto no
bolso do casaco, atravesso e sigo pela rua até chegar à padaria.
—Quem era o garoto do carrão? —pergunta Ana.
—Não sei. —Dou de ombros—. Me perguntou sobre o Paseo
Independencia.
Não sei por que menti. O fato é que neste momento não estou nem
um pouco inclinada a contar que um estranho, na verdade o segundo do dia,
me chamou pelo nome e me deu algo; seja um fora ou um pingente.
Aqueles dois pares de olhos azuis, um frio e outro sorridente, parecem
dançar na minha memória.
—Ele era bonito?
—Maria! —Ana lhe dá uma cotovelada.
—O quê? —protesta.
—Você tem namorado, ou não lembra?
—Bom... isso não quer dizer que assinei um contrato de fidelidade.
Não chamam isso de casamento?
—Vamos logo, vamos nos atrasar —as interrompo.
Elas me olham como se houvesse algo escondido. Entendo. Em
qualquer outro dia, eu não teria perdido a chance de provocar Maria e sua
teoria de "buscar o garoto nota dez", uma baseada em tentativa e erro, mas
hoje não. Hoje não. Na verdade, não estou com muita vontade de falar.
Ainda estou meio em choque depois do primeiro garoto. Não precisava
adicionar outro. O pingente, que na verdade tem a solidez de uma joia
antiga e muito metal, pesa no meu bolso como se fosse de chumbo. Talvez
andando eu descubra o que fazer com ele, ou talvez devesse trocá-lo por
uma cruz que, em vez de espantar vampiros, afastasse garotos estranhos.
Sigo andando atrás das minhas amigas, participando o mínimo
possível da conversa delas. Percebo que Ana me olha intrigada, e que mais
de uma vez parece morder a língua, contendo a vontade de me perguntar
algo. Já no colégio, nos dirigimos ao salão de atos. Passamos pela porta do
ginásio, que agora está fechada, mas será aberta após a cerimônia, já que é
lá que vai acontecer a festa. Sinceramente, não entendo por que adicionar
música e comida a um evento tão formal como a entrega de bolsas, mas
desde que as meninas da comissão cultural insistiram que um baile era a
melhor maneira de terminar o evento, milagrosamente ninguém as
contrariou. Então, em vez de estarmos vestidas formalmente, viemos com
roupas de balada, porque, segundo Maria, nunca se sabe quem poderia notar
a gente durante a festa.
Gostaria de insistir mais uma vez que tudo isso é ridículo, mas
aqueles dois garotos parecem ter alugado permanentemente o espaço do
meu cérebro reservado para pensar. Quando entramos no salão de atos, a
maioria das meninas já está lá. As clônicas, como eu suspeitava, ainda não
chegaram. São do tipo que aproveitam até o último minuto para causar
maior impacto. E, com certeza, não estarão tão maquiadas nem tão ousadas
quanto nós.
"Por que fui deixar Maria me convencer?" —me recrimino
mentalmente, embora sem muita força.
Ana vive dizendo que se arrumar desse jeito é como se conquista
alguém. Mas essa não é minha intenção, e, para ser sincera, nem acho que
ela esteja certa. Todo mundo sabe quantos garotos Paula já beijou, e ela
nunca se exibiu assim. Nos sentamos em algumas cadeiras livres. Todos
estão nervosos, falando sem parar, inclusive os garotos, embora eles não
possam concorrer às bolsas. Imagino que estejam curiosos para saber quem
vai embora. Bom, logo descobriremos. São apenas cinco bolsas integrais
para todos os colégios, das quais uma será destinada ao nosso.
Considerando que nosso colégio não se destaca em nada, parece uma sorte
incrível... Quem sabe por que nos escolheram?
Me sento ao lado de Ana, que tenta acompanhar como pode o
monólogo de Maria. Parece que ela está mesmo ansiosa para ser escolhida.
E eu? Me dou conta de que também deveria estar nervosa. Ou querendo
isso. Mas para quê? Duvido muito que alguma de nós três seja escolhida, e
isso é o que realmente importa. Estamos juntas desde o ensino fundamental
e pretendemos continuar assim, pelo menos até a universidade. Então,
apenas ouço as duas conversarem sem prestar muita atenção no que dizem,
enquanto deixo meu olhar vagar pelo salão, cada vez mais cheio. Vejo Paula
entrando com o grupo dela. Com seus suéteres de gola em V, saias ajustadas
a um palmo do joelho e sandálias de salto agulha, estão impecáveis como
sempre.
"Talvez na próxima festa eu use meus jeans e esqueça a 'moda',
segundo Maria" —penso, sorrindo para mim mesma.
Então eu o vejo. É ele, o garoto dos cabelos castanhos. Ele está
usando as mesmas roupas de algumas horas atrás, e elas ainda ficam
impressionantes. Sem que ele me olhe, consigo observá-lo à vontade. Sim,
ele é muito bonito e tem aquele ar perigoso, como se estivesse seguro
demais do que sabe fazer e do que deseja. Mas, por sorte, desta vez meu
estômago não se revira, e meu cérebro continua funcionando normalmente.
Até que ele me vê e me pisca um olho.
No instante seguinte, o mesmo feitiço parece cair sobre mim: fico
olhando para ele, totalmente hipnotizada, e sinto a necessidade de tocá-lo.
Tenho que cravar as unhas nas palmas das mãos para resistir ao impulso de
ir até ele. Não vou passar vergonha na frente de todo mundo. Ele então me
aponta e forma, lentamente, com os lábios (aqueles lábios tão tentadores), a
palavra "parabéns".
É uma sensação muito estranha, como se meus olhos tivessem um
zoom e eu pudesse ver os lábios dele se movendo muito devagar, a poucos
centímetros dos meus. Aperto as mãos com mais força. Não vou cair nessa
de novo. Ele acaba de me felicitar e desaparece pela porta. O encanto se
dissipa junto com ele.
"Lábios tentadores? —me repreendo mentalmente, irritada—. Argh!
Em que diabos estou pensando? E parabéns? Por quê? Por ser tão idiota a
ponto de ficar olhando para ele como se nunca tivesse visto um garoto
bonito antes...? Nem parece o Robert Pattinson em pessoa!"
Para tirá-lo da minha cabeça, chamo a atenção de Ana com um leve
toque no braço e tiro o pingente do bolso do casaco. Maria, que está absorta
olhando para o pequeno palco do salão, onde o diretor e a coordenadora
estão entrando, nem percebe. E o pingente funciona. Nada como um garoto
para me fazer esquecer outro.
—Por que está sorrindo? —pergunta Ana, percebendo que estou
perdida em pensamentos.
—Por isso, olha.
Mostro o pingente. Ela se inclina para perto de mim e o pega. É
como se o brilho vermelho que parece animar a pedra perdesse intensidade.
Ótimo. Só me faltava essa: ilusões de ótica. Minha imaginação deve estar
mais influenciada por esses dois garotos estranhos do que pensei. Ou talvez
seja culpa do café da manhã… Será que minha mãe colocou algo nos
cereais? Tento imaginá-la fazendo isso, sempre tão carinhosa e distraída.
Não. Decididamente, não. Isso deve ser porque minha menstruação está
chegando.
—O que é isso? —sussurra Ana.
O diretor está falando, e a maioria está prestando atenção. Ele repete
algo sobre a tradição e prestígio da instituição Niven, seus outros internatos
pela Europa e o impacto das bolsas para a comunidade escolar. Abaixo
minha voz ainda mais para responder.
—Um colar. O loiro do conversível me deu.
—O cara do carrão de antes? —seu tom sugere que ela não acredita
muito em mim.
—Sim.
—Por quê? Você conhece ele?
—Não. Foi muito estranho. Ele disse para eu guardar, que eu ia
precisar.
Desabafar me faz sentir um pouco melhor. Ana, no início, me encara
com as sobrancelhas arqueadas. Mas me conhece bem e, ao ver minha
expressão, percebe que não estou brincando. Por fim, aceita o que digo.
—Você acha que ele é um admirador secreto?
—Sim, claro. Tenho certeza disso. —Respondo com sarcasmo.
Demora alguns segundos para perceber o tom irônico. Não costumo
usar sarcasmo em voz alta; normalmente, guardo esse tipo de pensamento
para mim. E olha que nem mencionei o outro garoto…
—Tory… Não seja maldosa.
Por isso, geralmente fico quieta. Em todo caso, a diretora do
internato está sendo apresentada. Paramos de conversar por um momento
para olhá-la. Parece uma mulher muito jovem para o cargo, com pouco mais
de trinta anos, e é incrivelmente bonita. Usa um coque severo demais para o
meu gosto, mas mesmo assim é impressionante. Seu traje verde-acinzentado
é elegante, e a coleção de anéis e pulseiras que usa contrasta com a
simplicidade do resto de seu visual.
—Tory, me diz… Ele não te parece familiar? —insiste Ana.
—Não. E com certeza eu teria notado se o tivesse visto antes,
acredita em mim.
—Tudo bem. Se você o vir de novo, me avisa. O colar é bonito.
—Não sei. Por enquanto, vou guardar.
Dou de ombros e recupero o pingente. Assim que o seguro, as
chamas vermelhas da pedra parecem ganhar vida novamente. Observo com
mais atenção. Parece um cristal; como se fosse âmbar, mas em vez de
conter um inseto, há reflexos escuros que simulam fogo. Está até mais
quente do que seria normal. Fecho os olhos por um instante e o devolvo ao
bolso. Um admirador… Não seria ruim, ele parecia simpático. Mas não me
deu o colar de presente; ele o emprestou. Além disso, um admirador secreto
não faz as coisas assim, pessoalmente. Pelo menos, não nas histórias que
ouvi.
Olho para Ana novamente. Ela está atenta à diretora, que continua
falando sobre o prestígio da instituição. Massageio as têmporas e tento me
concentrar. Mas é difícil, com tantas coisas mais interessantes em que
pensar.
—... E agora, depois desse breve panorama sobre a história da
prestigiada instituição Niven, passaremos à entrega das bolsas. Uma
integral e duas parciais.
"Breve, claro… —penso entediada—. Quase uma hora ouvindo o
discurso sobre como todas as alunas da Niven se destacam no mercado de
trabalho, entram nas melhores universidades… A única coisa que quero
saber é: vamos nos livrar de Paula?"
—Tory —Ana me cutuca com o cotovelo, me tirando dos
pensamentos—, para de viajar ou você vai perder a melhor parte!
Me recomponho rapidamente, prestando atenção enquanto o diretor
começa a anunciar os nomes.
—...Paula Martínez.
Um estrondo de aplausos irrompe na sala, vindo principalmente do
grupo de admiradores de Paula, incluindo boa parte dos meninos. Entre
minhas amigas e eu, porém, só trocamos olhares.
—Inacreditável —murmura Maria—. Já imaginava que o dinheiro
do papai dela ia ajudar.
—Bom, pelo menos nos livramos dela. Isso é algo positivo, não? —
tento animá-la.
Maria não parece muito convencida. É como se uma parte dela
tivesse desejado ser escolhida, apesar de saber que é impossível. Afinal, de
onde os pais dela tirariam dinheiro para o resto das despesas?
—Shh, se concentra ou vamos perder o próximo nome —as
interrompo.
Vemos Paula chegar ao palco, onde o diretor lhe dá dois beijinhos e
entrega o microfone.
—É um privilégio poder frequentar esta instituição. Nunca imaginei
que seria escolhida —Paula diz, cheia de falsa humildade.
Ana se inclina em minha direção e sussurra:
—Claro. Como se os pais dela não tivessem doado nada… Talvez
até uma ala da biblioteca.
Dou uma risadinha.
—Não seja má... —respondo, em tom igualmente baixo.
A diretora, Eloísa, responde com um sorriso educado:
—Para nós também é um privilégio ter alunas com as suas
capacidades.
Maria arqueia uma sobrancelha e murmura:
—"Capacidades"? Tipo fazer as unhas francesas ou colar nos
exames?
Faço o possível para conter o riso.
Logo depois, Paula é direcionada a uma cadeira reservada no palco,
e o diretor prossegue:
—A próxima aluna escolhida para uma bolsa parcial é Gema Ortiz.
Outro estrondo de aplausos, mas desta vez solto um suspiro audível.
Felizmente, o barulho cobre o som. Não é difícil imaginar quem será a
terceira beneficiada.
—Segunda no comando do clube das clônicas —resume Ana.
Maria permanece em silêncio, visivelmente abatida.
Gema se levanta e caminha até o palco, com sua roupa em tons
pastel, cabelo platinado impecavelmente cortado e passos de princesa,
parecendo uma cópia de Paula.
—Se eles gostam de meninas com gosto duvidoso, claramente não
temos chance —Maria comenta, resignada.
Desta vez, não consigo esconder a preocupação em minha voz:
—Não fica assim. Olha pelo lado positivo: vamos nos livrar delas.
Sem líderes, o grupo delas vai desmoronar. Isso significa que vão parar de
mandar no colégio.
—Vendo por esse ângulo…
—Exatamente! Vamos ter um ótimo ano. —Ana dá um leve
empurrão em Maria—. Embora, sendo sincera, teria sido incrível se as três
de nós tivéssemos sido escolhidas. Impossível, claro. Mas seria perfeito,
né?
—Nem me fala! —concorda Maria, empolgada—. Imagine nós três
vivendo juntas...
—Podemos fazer isso na universidade. Que tal? —sugiro—. Mesmo
que estudemos coisas diferentes, podemos morar na mesma residência.
—Combinado —responde Ana.
Ela mal termina de falar, e percebo que todas as atenções estão
voltadas para nós. O silêncio repentino é desconcertante. Franzo o cenho,
confusa. O que aconteceu? Será que Gema desistiu da bolsa? Olho ao redor,
tentando entender. Então, o diretor se aproxima do microfone, com um tom
levemente reprovador:
—Senhorita Victoria Escartín, poderia vir ao palco, por favor?
Demora um segundo para eu processar o que ele disse. A terceira
escolhida... sou eu?
"En-ho-ra-bue-na", a palavra silenciosa do garoto de cabelos
castanhos ecoa na minha mente. Como um autômato, levanto-me. Ouço
Ana conter um grito de empolgação, enquanto Maria me lança um olhar que
mistura surpresa e algo parecido com mágoa. Dou meu primeiro passo em
direção ao palco, e o tempo parece desacelerar.
As pessoas ao meu redor, seus olhares e gestos, tornam-se borrões,
como se tudo fosse parte de um sonho. Sinto o peso dos olhares dos meus
colegas, alguns surpresos, outros tentando entender por que eu fui
escolhida. Eu mesma não sei. Sou o tipo de garota que passa despercebida,
que não se destaca em nada, nem mesmo nas notas.
Subo à plataforma, ainda atordoada. Enquanto caminho, os
murmúrios começam a surgir. Normalmente, isso me incomodaria, mas
agora estou muito perdida em meus próprios pensamentos. A única coisa
que consigo sentir é o peso das expectativas. Quando finalmente chego até a
diretora, seu olhar intenso, negro como um poço profundo, me atinge. É frio
e analítico, semelhante ao do garoto de olhos azuis, mas ainda mais
penetrante.
"En-ho-ra-bue-na…"
Por um instante, sinto como se ele estivesse novamente ao meu lado,
e um arrepio percorre minha espinha. Tento ignorar a sensação, mas não
consigo evitar olhar de relance para trás. Nada. Apenas meus colegas, todos
olhando para mim como se eu fosse um enigma. Respiro fundo, aperto a
mão firme de Eloísa e me aproximo do microfone, sem ter ideia do que
dizer.
—É… eu… —começo, mas logo ouço risadinhas.
Ótimo. Exatamente o que eu precisava para completar o dia.
Recorro ao mais básico:
—Muito obrigada.
A diretora pega o microfone com uma elegância que contrasta com a
minha falta de jeito e responde, como se nada tivesse acontecido:
—É normal sentir-se emocionada, mas estou certa de que nossa
terceira bolsista não é menos importante por ter sido anunciada por último.
De fato, sua recomendação não poderia ser melhor.
Recomendação? Desde quando eu tenho alguém para me
recomendar?
Com cuidado, devolvo um sorriso tenso e me dirijo à cadeira
reservada. Paula e Gema me lançam olhares de desdém, deixando claro que
minha presença as incomoda.
"Essas vão ser minhas novas colegas? —penso comigo mesma—.
Excelente…"
Afundo na cadeira, exausta, enquanto tento processar o que acabou
de acontecer. Uma parte de mim gostaria de rir da ironia, mas tudo o que
consigo fazer é fechar os olhos e me perguntar como, afinal, minha vida
ficou tão complicada de repente.
DOIS
—E eu achava que meu futuro imediato era uma droga? Assim que
entro com minhas amigas no ginásio, percebo que estava errada.
A sala, espaçosa, tem algumas guirlandas como decoração. Os
bancos estão encostados nas paredes, e instalaram um sistema de som que
imagino que comece a tocar a qualquer momento. Somos uma das primeiras
a chegar, o que me agrada, já que assim poderei conversar com minhas
amigas com um pouco de privacidade, sem ser o centro das atenções. Essa
sensação de parecer que me colocaram um holofote na testa não é nada
agradável.
—Sua jaqueta, muito obrigada. Está vendo? Eu a tiro até antes de
você poder me dar bronca.
Entrego a peça para Maria, esperando que uma pequena brincadeira
alivie seu semblante franzido.
Ela se limita a pegá-la de um jeito brusco.
—Então agora você vai se tornar alguém importante. Como se
merecesse mais do que eu... —ela dispara num tom que soa, de maneira
muito suspeita, como inveja.
Tudo bem que o breve trajeto até aqui tenha sido um pouco
silencioso e tenso, mas eu não esperava por isso.
—Maria! Deixa isso para lá —«obrigada, Ana», penso ao ouvi-la
sair em minha defesa—. Não percebe que agora ela vai andar com as
clônicas?
«O quê?!?»
—Isso é uma piada, não é? —pergunto, magoada e surpresa.
«Minha melhor amiga também vai entrar na onda de “Tory roubou
minha bolsa”?»
—Claro que é, boba. —Ela pega minha mão e me dá um aperto
amigável. —E um aviso: proibido mudar de lado.
Bom, pelo menos ela sorri para mim.
—Por um momento, vocês me assustaram. —Olho para Maria, mas
ela desvia o olhar—. Maria?
—Sim, claro. —Não parece muito convencida.
—Olha, querida —tento brincar—, somos amigas desde a creche.
Não vai ficar brava comigo agora, né? Eu nem tenho certeza se quero ir.
—Então me dá a bolsa! —explode, veemente.
—Ehh... —Dou um passo para trás—. Bom, não acho que seja
possível.
—Pelo menos, não jogue isso na nossa cara —diz ela, arregalando
os olhos como se reforçasse as palavras.
E vai embora, girando com toda a teatralidade que sua indignação
permite, me deixando completamente atônita.
—Ah, Tory, não leve a mal. Parece que ela desejava mais essa bolsa
do que nos contou. Culpa da mãe dela, que exagera demais, você sabe. Eu...
—Ela me olha, indecisa—. Melhor eu ir atrás dela, tá bom? Me espera, eu
já volto.
—Tudo bem, Ana.
Mas não está tudo bem. Em poucos dias, terei que ir para um
internato onde não conheço ninguém (porque, se penso nas duas que
conheço, fico doente), e uma das minhas amigas, uma das inseparáveis,
decide ficar com ciúmes e me ignorar. Como se fosse minha culpa ter sido
escolhida, se nem eu esperava por isso... Definitivamente, é coisa demais
para um só dia.
Afasto-me do canto do ginásio onde estávamos conversando e tento
passar despercebida. Não consigo. Já chegou mais gente, e eu sou o assunto
da noite. A música começa a tocar, mas a última coisa que quero é dançar,
ainda mais sozinha. Decido esperar vinte minutos e, se Ana não voltar, vou
para casa.
Algumas pessoas se aproximam para me parabenizar, mas a maioria
apenas olha como se eu estivesse escondendo algo todos esses anos. Algo
(ou «alguém», considerando o que a diretora insinuou sobre eu ter um
padrinho poderoso) que me permitiu conseguir a cobiçada bolsa integral.
Fantástico.
E, quando penso que o dia não pode piorar, vejo Maria e Ana
conversando em um canto. Faço menção de me aproximar, mas Maria
desvia o olhar e Ana balança a cabeça em sinal de «não». Mais fantástico
ainda.
Então Paula se aproxima, seguida por seu grupo de «garças» (estou
considerando mudar o apelido delas), bem no meio de uma balada lenta que
toca em volume mais baixo do que as outras músicas.
—Olha só, parece que suas amigas não eram tão amigas assim —
comenta, com um leve sorriso nos lábios pintados de marrom chocolate.
—Oi, Paula.
—Bom, nem pense que só porque vamos para o mesmo colégio
vamos ser amigas —esclarece Gema, desnecessariamente—. Você e eu —
ela estremece— somos totalmente incompatíveis.
Olha, nisso concordamos. Abro a boca para dizer isso, mas Paula se
adianta.
—Gema, querida... deixa que eu falo. —Seu tom aveludado parece
coberto de agulhas de gelo. É assim que ela mantém todas sob controle?
Com ameaças veladas?— Veja bem, Victoria, até agora nossos caminhos
não se cruzaram, mas, se vamos para o mesmo colégio, seria melhor que
isso acontecesse de forma cordial, não acha? E já que suas amigas estão te
ignorando —ela franze o belo cenho—, talvez seja melhor que você se junte
a nós.
Fico atônita. Já são duas vezes. Se não contar os garotos, claro. Miss
Popularidade me convidando para fazer parte do grupo dela? Eu, que para
ela não sou ninguém? Então lembro da insinuação nada sutil da diretora
sobre eu ter um padrinho poderoso. Elas acreditaram nisso?
Não consigo evitar, começo a rir. Isso é o pior que poderia fazer: rir
de Paula na frente de todo o colégio. Por muito menos, ela já tornou a vida
de outras um inferno. Ao perceber o que fiz, congelo, mas já é tarde: todos
estão olhando.
Deveria me explicar imediatamente, dizer que estava rindo de outra
coisa e que ficaria encantada em ser amiga dela (ou tão amiga quanto
alguém pode ser das clônicas). Mas não faço isso. Também não estou
interessada em me aproximar dela. Somos muito diferentes, e ela não me
agrada nem um pouco.
—Muito bem, querida —cospe Paula—, vejo que você não sabe
jogar na liga nova. Então continue sozinha, tanto aqui quanto em Broto.
A música muda para algo mais animado, como se estivesse a favor
de Paula. A «garça» faz um gesto para as outras clônicas e se vira
dramaticamente, com um movimento teatral de seus longos cabelos loiros.
Claro, todos estão olhando para ela. E, claro, também estão olhando
para mim.
«Ótimo… —penso—, parece que acabei de passar de “garota
normal e sensata, meio invisível, mas legal” para “pária social”.»
Melhor encarar o lado bom: em poucos dias, estarei estudando em
outro lugar.
Com toda a dignidade que consigo reunir, pego meu casaco e me
dirijo para a saída, sentindo-me desconfortável com tantos olhares nas
minhas costas, usando roupas que nem são minhas (e, se Maria não falar
mais comigo, como vou devolvê-las?).
De alguma forma, saio do ginásio e do prédio. Paro na rua deserta,
bem ao lado da entrada do colégio, para recuperar o fôlego. Ou melhor, os
nervos, pois estou prestes a gritar a plenos pulmões. O contraste do silêncio
com o barulho do ginásio me ajuda a me controlar. Começa a anoitecer. É
vinte e sete de outubro, ainda está calor. Este outono é um dos mais quentes
de que me lembro. Embora minha avó, a única ainda viva, tenha me dito
que, quando o inverno chegar, será especialmente rigoroso.
De qualquer forma, visto o casaco. É fino, mas serve tanto para
barrar o ar fresco quanto para esconder as roupas de Maria. Depois, sento-
me em um dos degraus da entrada. Preciso de alguns minutos para me
recompor, não quero chegar em casa soltando fumaça.
Definitivamente, melhor não pensar na reação de Maria, que me
atinge como uma traição. Amanhã isso já terá passado e ela me pedirá
desculpas, certo? Ainda bem que Ana está como sempre. Pena que não
tenha percebido que eu preciso mais do apoio dela do que Maria. E, para
completar, ganhei a inimizade de Paula. Maravilha.
—Se você usa roupas tão provocantes, deveria saber como carregá-
las. Esse recato todo não combina com você —uma voz zombeteira me
surpreende por trás, masculina, percorrendo como um arrepio cada vértebra
da minha coluna.
Está claro que só pode ser ele; assim como está claro que ele me deu
uma boa olhada antes que eu colocasse o casaco.
—Que ótimo, você é a última pessoa que eu queria encontrar. Não
tem mais ninguém para incomodar? —respondo sem me virar.
Não estou disposta a voltar ao estado de enlevo em que entro toda
vez que olho para ele.
—Eu teria, querida. —Deve ter ouvido Paula me chamando assim,
mas em sua voz não soa depreciativo e sim provocador, quase possessivo—.
Mas estou esperando você me agradecer.
—Agradecer?
Começo a juntar as peças. Não pode ser. Isso me faz sentir mal; não
quero dever nada a um cara tão insuportável.
—Pela bolsa. Não é isso que todas vocês querem? —Suas palavras
agora estão carregadas de desprezo.
—Seu idiota! —Giro rapidamente, e minha raiva me impede de cair
naquele estado de transe novamente. —Eu não pedi isso! E quem diabos é
você para me recomendar?
—Essa boca, querida, não é bom ser tão mal-educada. —A verdade
é que eu geralmente não sou, mas agora estou furiosa—. Você realmente
não quer ir?
Congelo, minha raiva desaparecendo como mágica. Não tenho a
menor vontade de ir, mas o fato é que estudar lá me abrirá portas para um
bom trabalho no futuro. Engulo o “não” que ia jogar na cara dele como um
obsoleto desafio medieval e recupero o controle das minhas emoções, como
a garota sensata que meus pais acreditam que sou. Ha! Mais realista, talvez.
Olho para ele, fixamente. Seus olhos ainda parecem ter a capacidade
de ler minha alma, com aquele azul que, se eu não tomar cuidado, vai
começar a habitar meus sonhos. Seus lábios, orgulhosos, estão ligeiramente
curvados em um sorriso divertido.
—Desculpe, a verdade é que sim, me interessa a oportunidade
acadêmica —forço-me a dizer—. Mas quem é você, e por que eu?
—À primeira pergunta, eu respondo outro dia. E, quanto à
segunda... —Ele sorri, desdenhoso—. Digamos que você me deve uma. Eu
vou cobrar. Até mais, querida.
Há algo nesse “vou cobrar” que me arrepia. Adoraria saber em que
sentido ele disse isso. Enquanto tento descobrir, ele se inclina em minha
direção, roça meu nariz com um dedo, me dá um beijo na bochecha e vai
embora.
—Aclarando: suas mãos cheiram a aço. Sim, a metal, a aço. Seu
toque me surpreendeu, parecia até doce. Algo fora de lugar vindo de
alguém tão arrogante. E seu beijo… seu beijo apagou minha raiva, como a
falta de oxigênio extingue um fogo. Notei a leve aspereza de seus lábios e
uma pressão suave, formigante; cada nervo da minha pele pareceu entrar
em guerra. Suspiro e começo a me resignar. Sua figura desaparece à
distância, subindo a rua. Fico sentada por mais um tempo, antes de voltar
para casa. Permaneço imóvel, com uma mão na bochecha, meus dedos
repousando exatamente onde ele me beijou. Agora sim, eu não entendo
mais nada.
Eu não escrevo diário. Em vez disso, uso a janela. É mais discreta
e ninguém pode lê-la sem minha permissão. Por isso, uma vez sozinha no
meu quarto e vestida com o pijama, em vez de ir para a cama, me aproximo
dela. É uma daquelas janelas com um aquecedor embaixo, uma persiana
branca e uma cortina simples da mesma cor. Eu adoro. No verão, eu a abro
e respiro o ar fresco da noite. No inverno, me encolho junto a ela, deixando
que o calor do aquecedor se espalhe pelo meu corpo. E penso... Às vezes
parece que as ideias se esclarecem de forma tão simples que é como se as
estrelas sussurrassem para mim (eu sei, no fundo sou uma romântica
incurável).
Hoje meus pais não ligaram o aquecedor, mas a noite também não
convida a abrir a janela. Assim, aproximo meu rosto do vidro, sentada em
uma cadeira, deixando minha mente divagar sobre o dia que acabei de
viver. Que dia...
Ganhei a bolsa completa, e eu sou a primeira surpresa. Meus pais
reagiram com bastante calma; embora minha mãe tenha tentado, sem
sucesso, esconder uma lagrimazinha. Eles estão tristes porque vou embora.
Mas, apesar disso, me encorajam, já que é uma oportunidade que eles não
poderiam me pagar, mesmo que fosse possível entrar sem ser "escolhida"
por uma bolsa. Escolhida... é surreal. Que conceito de marketing mais
estranho o de Eloísa. Embora, com a divulgação que isso teve nos jornais e
na internet, não me surpreenderia nada se no próximo ano, quando não
oferecerem bolsas, sobrar alunas querendo entrar.
Eu, por outro lado, não entendo nada. Meu histórico acadêmico não
é tão bom. E, claro, se o rapaz dos cabelos castanhos realmente teve algo a
ver, duvido muito que seja porque ele gosta de mim. Os bonitos e perigosos
não são atraídos por garotas normais. Mais provável que sejam sofisticadas
como Paula ou exuberantes como aquela do 4º C, do time de basquete. De
qualquer forma, não consigo parar de pensar nele sem corar pelo quase-
beijo ou me irritar pelo comportamento arrogante posterior.
E o outro... O pingente ainda está no bolso do meu casaco. Não sei
por que ele me deu isso. Nem de que pode me servir. Se não fosse porque
ele parecia tão normal, pensaria que o rapaz é louco ou algo assim. Mas
duvido que os mentalmente instáveis tenham permissão para dirigir carros
tão caros. E, se era uma pegadinha com câmera escondida, eu não a vi.
Portanto, suponho que o mais óbvio é que as duas situações estejam
relacionadas com a bolsa. Não se passa a vida inteira na sombra para, de
repente, ser notada três vezes no mesmo dia sem que haja um motivo
comum por trás.
Estou começando a pensar se passei o dia com um "me surpreenda"
escrito em um bilhete e colado nas costas, quando meu celular vibra. Um
WhatsApp. Supostamente, quando vou dormir, os celulares ficam
desligados (são as regras). Além disso, o computador com internet está em
outra sala. Mas, caso minhas amigas precisem me dizer algo, sempre deixo
meu celular no modo vibração ou silencioso.
Me levanto e me aproximo ao criado-mudo, onde deixei o celular
carregando. É Ana. Ainda bem. Estou bastante preocupada com o que
aconteceu com Maria, embora em casa eu tenha mantido sorrisos falsos,
como se a bolsa fosse a melhor notícia que poderiam ter me dado. E sobre
os garotos? Nem uma palavra. Se meus pais descobrissem, eu estaria de
castigo por uma semana e levando o pingente para os achados e perdidos.
Eles acreditam que sou estudiosa e uma boa garota. Em certo sentido, sou
mesmo, principalmente se conto apenas o que eles querem ouvir: coisas
boas.

—OI, É AQUI! —leio no meu Nokia.


—AINDA BEM :) —escrevo com os polegares e envio.
Depois de alguns segundos, ouço o zumbido da resposta.
—MARIA TÁ MELHOR. NÃO ESQUENTA, DÁ UM TEMPO
PRA ELA.
—FALAMOS AMANHÃ?
—BLZ, NO INTERVALO.
—MELHOR A SÓS.
—SUAVE, MAIS TARDE NA SUA CASA. FUI^^
—*.
Me sinto um pouco mais tranquila. Talvez nem tudo esteja perdido.
Me deito na cama, me cubro com o lençol, apago a luz e fecho os olhos,
mas não consigo dormir. Os traços do garoto de olhos azul-gelo e o tom
zombeteiro de sua voz aparecem repetidamente, misturados aos simpáticos
do loiro com o pingente. Vou silenciosamente até a cozinha pegar um copo
de leite frio. Ao voltar, noto uma fresta de luz na porta do quarto dos meus
pais. Ao escutar, percebo que estão conversando em tom preocupado,
provavelmente sobre a bolsa.
Com cuidado redobrado, volto para o meu quarto e me enfio na
cama. Só me faltava que descobrissem que eu não estou nada empolgada
com a ideia e que acabem ficando ainda mais preocupados. Sem falar do
garoto, seja lá quem for, que aparentemente me recomendou. Como sei que
essa linha de pensamentos não vai me levar a nada bom, tento pensar em
qualquer outra coisa. Por exemplo, em problemas de matemática. Nada. A
última coisa que lembro antes de adormecer, além daqueles dois olhos azuis
enigmáticos, são os dígitos luminosos do meu despertador mudando para 3
a.m. Suponho que seja por isso que acordo tão acabada quando o alarme
toca quatro horas depois.
É sexta-feira. Depois de dois cafés e um café da manhã reforçado,
troco o pijama por um jeans cinza desbotado e uma blusa leve. Prendo o
cabelo em um rabo de cavalo, pego o casaco e me dirijo ao colégio. As
manhãs estão começando a ficar mais frescas. Talvez devesse ter colocado
meias. Apesar disso, eu poderia ter ficado em casa. Como domingo vou
para a outra escola e a diretora disse ontem que o programa de estudos é um
pouco diferente, acho que não faria mal faltar às aulas hoje. Mas minha mãe
insistiu. Segundo ela, todas as escolas têm que seguir o currículo oficial (o
aragonês, no caso), independentemente do centro. E como não quero causar
mais mudanças na "normalidade", obedeço. O problema é que, ao ir para a
aula, terei que enfrentar todo o colégio, algo que não me anima nada após
minha saída abrupta do baile de ontem. Enfim, o jeito é agir como se nada
tivesse acontecido. Isso deve desestimular qualquer fofoca.
Ao chegar ao colégio, claro, todos me olham. Alguns se aproximam
para me parabenizar, outros apenas para fofocar sobre por que não fiquei no
baile. Vamos combinar que agir normalmente parece ser a coisa mais difícil
do mundo… Refugio-me na sala de aula cruzando os dedos para não
encontrar Paula. Tenho sorte e, para não abusar dela, quando o sinal toca,
saio correndo e vou para casa sem esperar pelas minhas amigas. De
qualquer forma, uma está me evitando e a outra ficou muito estranha
durante o intervalo, limitando-se a fazer cara de "mais tarde conversamos".
Então, não acho que fiquem surpresas por eu não ter esperado. Nem por ser,
pela primeira vez na vida, a primeira a sair da aula.
O dia passa na velocidade de um caracol ferido. Principalmente
considerando que, pouco antes do horário em que combinamos, recebo uma
mensagem de Ana dizendo que não poderá vir. E ela não atende minhas
ligações. Para fechar com chave de ouro, meus pais estão muito insistentes
em dizer o quanto estão orgulhosos de mim. Como explicar que já me
cansei de ouvir isso sobre a bendita bolsa? Então... desculpa, mãe, mas vou
para o meu quarto. Já estou com dificuldade de manter um sorriso no rosto,
então não vou passar o dia inteiro falando sobre o quão maravilhoso isso é.
Se ao menos Ana atendesse o telefone…
Finalmente, decido tentar o telefone fixo e ligo para a casa dela.
Quem atende é a mãe de Ana, que me informa que ela está com Maria e
deixou um recado caso eu ligasse (que atenciosa). Parece que ela virá se
despedir no domingo.
No sábado, o caracol, além de ter a concha quebrada, parece
enfrentar obstáculos. Mas não pretendo ligar para Ana; tenho meu orgulho.
Pelo menos, arrumar as malas me mantém ocupada. Apesar disso, com a
maioria das alunas possivelmente tendo o nível financeiro de Paula, acho
que vou acabar sendo "a pobre" ou "a estranha". Se ao menos houvesse
uniforme, seria comprado no Corte Inglés, e todas usaríamos a mesma
roupa. Assim, é provável que, com tantas garças juntas, essa escola vire
uma competição para ver quem veste o conjunto mais caro.
Sim... não duvido que todas sejam idênticas a Paula. Sei que não
devo julgá-las sem conhecê-las, mas, por enquanto, chamá-las de garças
alivia um pouco meu desconforto com Ana e Maria. Essa maldita bolsa está
arruinando minha vida!
Na manhã de domingo, no entanto, é como se tivessem colocado o
caracol em cima de um galgo: de repente, tudo acontece rápido demais, e
minha mãe insiste em revisar as malas novamente.
Quando finalmente tenho um momento de folga, decido enviar uma
mensagem para Ana. Já que ela não vai vir, preciso deixar claro que estou
chateada. Não vou deixar isso passar como se não fosse nada. Enquanto
penso no que escrever, meus pais entram no quarto.
—Tory, posso entrar? —pergunta Ana, hesitante, parada na porta
aberta.
—Entra.
Estou sentada na cadeira do computador e giro 180° para encará-la,
cruzando os braços. Ela entra devagar e fecha a porta atrás de si, parecendo
nervosa.
—Sinto muito, Tory. —Ela torce as mãos, claramente
desconfortável—. Você precisa entender…
"Entender o quê?", penso. "Que você me deixou de lado para
agradar Maria? Que nem sequer teve a decência de responder minhas
mensagens ou atender minhas chamadas?"
Fico em silêncio por um momento, tentando conter minha irritação.
Quando finalmente falo, minha voz sai fria.
—Não tente amenizar as coisas. Diz logo.
Não costumo ser tão dura, mas depois de dois dias de rejeição, estou
muito aborrecida.
—Certo. Maria disse que achava que você era diferente. E que, de
qualquer forma, já que você não vai continuar estudando conosco nem
dividir a mesma residência na faculdade, essa coisa de amizade para sempre
não faz mais sentido. Então, ela não quer mais saber de você — diz tudo de
uma vez, como se cada palavra queimasse em sua boca. Só relaxa quando
termina.
—Entendi.
"Entendi?!", penso, surpresa com minha própria reação. Minha
melhor amiga acaba de me apunhalar pelas costas, e tudo o que consigo
dizer é "entendi"? Como se não fosse grande coisa? Se continuar assim, vou
acabar parecendo com Paula.
Ana respira fundo e continua. Seus olhos encontram os meus, com
um brilho de sinceridade.
—Me desculpe, Tory. Dá vontade de mandar Maria para o inferno,
mas então eu ficaria sozinha. E, sinceramente, sabemos que tudo isso é pura
inveja. Pelo que consegui descobrir, a mãe dela a pressionava muito para se
destacar nas notas, e é por isso que ela melhorou a média no ano passado.
Mas claro, isso não foi o suficiente... E a mãe dela a comparou com você o
tempo todo. Eu sei que isso não justifica o que ela fez, mas é a única
explicação que tenho. Afinal, você vai embora e me deixa aqui.
Eu fico olhando para Ana, incapaz de responder. Sei que, se abrir a
boca, vou acabar gritando ou dizendo algo que vou me arrepender. Ainda
assim, há algo na maneira como ela fala, na sinceridade de seu olhar, que
me desarma. Ela está realmente preocupada.
—Tory, diga algo. —Sua voz é quase um sussurro, cheia de
angústia. —Diga que não guarda rancor. Eu não quero deixar de ser sua
amiga, mesmo com você indo embora. Vamos conversar todos os dias pelo
Skype ou mensagens. Vai ser como se você ainda estivesse aqui, só que
com histórias novas para contar.
Seus olhos estão cheios de expectativa, e eu não consigo mais
segurar as lágrimas que ameaçam cair. Por mais chateada que eu esteja, ela
é minha melhor amiga desde sempre. Desde os dias em que me defendia
dos valentões na escola.
—Dói. Mas eu entendo. Só que não tente me convencer a fazer as
pazes com Maria. Nunca mais vou falar com ela.
Me levanto e fico de pé diante dela. Ana sorri hesitante, tentando
aliviar o clima.
—Está com raiva agora. É normal —diz, num tom conciliador.
—Prefiro não falar mais sobre isso. Me diga por que não me atendeu
antes.
—Porque sabia que, se eu atendesse, você ia até a casa de Maria
para dizer umas verdades. E eu não queria ter que aguentar a reação dela
depois.
Paro para pensar. Ela me conhece bem demais.
—Faz sentido. Agora que estou indo embora, não posso fazer nada
mesmo, né? —Sorrio, um pouco mais relaxada.
—Isso mesmo, sua boba.
—Tudo bem. Está perdoada.
—Sem ressentimentos?
—Sem ressentimentos.
Nos abraçamos demoradamente, aproveitando o momento para nos
despedirmos.
—Vai me visitar no Natal? Não posso voltar antes, por causa do
período de adaptação. Mas tenho certeza de que minha mãe pode levar você
se eu pedir.
—Claro, pode contar comigo.
É difícil dizer adeus, mesmo que seja um "até logo". Quando
saímos, Ana me acompanha junto com meus pais até o aeroporto, onde o
helicóptero do internato está estacionado. Não entendo muito bem por que o
internato tem um helicóptero. Com o preço que devem ter! Mas, pelo que
parece, ele é compartilhado com os outros colégios da família Niven, que
geralmente estão localizados em áreas remotas e de difícil acesso. A voz da
minha mãe treme ao se despedir. Mesmo um simples "até daqui a dois
meses" parece pesado. Um brinde à educação em meio à natureza. E outro
às mudanças de vida. Só espero estar à altura.
Extra: Conto Sempre Violeta
(Trata-se de um conto que escrevi há anos, para uma coletânea de São
Valentim, muito antes de O Grimório da Lua Cheia ver a luz. É anterior à
maioridade de Violeta em O Poço de Todas as Almas.)

Hmmm, o dia dos namorados...


Um dia para se sentir especial, não? Seria por isso que havia penteado com
esmero minha longa cabeleira loira, colocando-a sobre um dos meus
ombros desnudos. Meus olhos azuis, a combinando com o justo vestido
tomara que caia que usava, pareciam convidar meu acompanhante a se
afundar neles. E como eu tinha vontade que ele o fizesse... Diferentemente
do resto dos meus casos, este não passava dos quarenta. De fato, nem
sequer dos vinte, o que eram apenas uns dois anos a mais do que eu
aparentava. E sua alma era tão pura e cândida... nem sequer estava
pensando no que me faria uma vez que me despisse. Enfim, era São
Valentim, uma deveria poder se permitir um extra, não? Já que não podia ter
Casio, este rapaz com certeza me permitiria esquecê-lo durante um tempo.
Uma pena que às vezes fosse um saco ter princípios.
—Quer mais uma taça? —me ofereceu. Já levávamos duas depois de um
jantar copioso regado a vinho.
Neguei com a cabeça, não era questão de que se embebedasse.
—Não, vamos, eu te acompanho até em casa.
—À minha? —brilharam-lhe os olhos.
—Shh, não pense mal, que por uma vez que sou uma boa moça... Além do
mais, é só para me assegurar que não te aconteça nada pelo caminho.
—Não deveria ser ao contrário? —me perguntou ao mesmo tempo em que
ficava me olhando.
Era alto e forte, o típico rapaz esportista. Ademais, estava no apogeu da
juventude. Em contraste, eu tinha mais o aspecto de uma delicada e frágil
flor, a combinar com meu nome.
—Você tem razão —sorri para ele—, cada coisa que me ocorre...
—Vamos, Violeta, eu te acompanho à sua. Além disso, seus pais estarão te
esperando preocupados.
Meus pais?? Sim, claro. Tonta de mim, como não me lembrar. Total, só
tenho cerca de cinquenta anos... Teria preferido ir à sua porque o caminho à
minha casa era mais curto. Enfim. Vamos ver se havia sorte.
—O que te ocorre? —me perguntou ao ver que eu não parava de olhar ao
nosso redor pelo canto do olho. Estávamos no meio de um dos becos mal-
afamados que desembocavam no lugar onde eu morava. Era agora ou
nunca.
—Nada, estou um pouco nervosa —me apertei um pouco contra ele.
Melhor seria que fosse crível.
—Não tenha medo, eu estou aqui —tentou me beijar.
Bingo.
Me aferrei a ele abraçando-o enquanto com o pé direito lhe fazia uma
rasteira para que perdesse o equilíbrio. Rolamos sobre o chão. E não, não o
beijei. Haviam me contratado para acabar com os que pretendiam matá-lo,
não para comer. A bala roçou o espaço que havia ocupado sua cabeça. Tirei
duas adagas, uma de cada uma das minhas velhas botas altas e me
incorporei. Quanto ao rapaz, seguia no chão, o suficientemente atordoado
para nem se mover.
—Boa noite, eu que tu não voltava a disparar —me plantei diante do meu
protegido.
Para soar mais contundente, deixei que meus chifres crescessem, se
elevando por cima do meu cabelo.
—É a meio súcubo que costuma contratar o Conselho? —me perguntou um
dos dois vampiros que haviam estado escondidos nas sombras—. Não
deveria ter aceitado este trabalho. Não é tão fácil nos caçar quando sabemos
que existe.
—Poxa, caramba —protestei—. E eu que pensava que iam ficar alegres em
me ver.
Queimei energia para esquivar outro par de balas.
—Te peguei —afirmou um deles, que havia usado sua velocidade para me
agarrar por trás, imobilizar meus braços com os seus e me apertar contra
seu corpo. Hmmm... que pena que os sanguessugas não tenham uma alma
para me entregar após o sexo porque o que é este parecia ter um bom corpo.
—Não, não a tem —avisou uma voz às nossas costas e notei como me
soltavam de repente. Ao ficar livre lancei minhas facas e acertei no coração
do outro vampiro.
—Sempre tão extremamente pontual, Casio. —Me virei. Ali estava o ser
que me enlouquecia com tão somente arquear uma sobrancelha. Havia
decapitado o vampiro mau com seu sabre sem sequer me roçar. E era
também o que havia me contratado, por sinal—. Demora um pouco mais e
não conto a história.
—Vamos, querida —dulcificou sua voz—, eu jamais te falharia. —Olhou
com dupla intenção a veia que pulsava em meu pescoço.
—Então nos vemos amanhã. —Me virei e fui embora—. Não esqueça de
depositar o dinheiro na minha conta.
Sim... havia sentido meu corpo se estremecer ante sua insinuação, mas eu
tinha claro que não estava louca. Poderia ser São Valentim e nem ainda
assim funcionaria. O único ao qual eu poderia entregar meu coração e o que
faria com ele seria dessangrá-lo. Vampiros... Outro dia, Casio, talvez
quando eu completasse os cem e tivesse me cansado desta vida.

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