Amaya Felices - Sexto Inferno 04 - Sétimo Inferno (oficial) R&A
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ÍNDICE
UM. MARTA
DOIS
TRÊS
QUATRO. MARTA
CINCO. MARTA
DEIS
SETE. MARTA
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS. AS TRÊS IRMÃS CEGAS.
DEZESSETE
DEZOITO. MARTA
DEZENOVE
VEINTE
VINTE E UM
VINE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS. ATZIR'ITZ
VINTE E SETE
VINTE E OITO. 6 ANOS DEPOIS.
SOBRE LA AUTORA
PRIMEROS CAPÍTULOS DE PURO GLAMOUR
EXTRA: RELATO SIEMPRE VIOLETA
UM. Marta
Marta era uma índigo. Não só se tratava da descendente de Kendria,
uma índigo do século XIII, mas ela mesma era um novo ressurgimento da
linhagem do poder daquelas bruxas que adoravam Diana. No entanto, ela
ainda não sabia disso e estava sozinha, isolada e presa.
Já fazia mais de uma semana assim, embora não houvesse mudanças
nesse minúsculo plano prisão que a deixassem sentir a passagem do tempo.
Dez passos para cima, dez passos para baixo... se isso continuasse
assim, acabaria enlouquecendo pelo confinamento, a falta de espaço e a
solidão. Até as vozes em sua cabeça, as de outras matronas moon-wolf,
haviam cessado. A única saída que parecia haver ali era uma janela para o
plano de Shanetta, a deusa serpente, aquele templo onde haviam querido
assassiná-la no que tinha sido seu futuro mais provável. Claro, nem se
aproximava: estaria cheio de inimigas e suspeitava que se entrasse nesse
plano era muito provável que suas visões se cumprissem e se dirigisse para
sua morte.
Ou talvez não, talvez isso fosse algo que haviam planejado fazer
para levar seus deuses à Terra, algo que já não lhes era necessário após a
ruptura da prisão do dragão.
Não sabia. De fato, a única vez que tinha olhado pela janela havia
visto diretamente o templo, não as escadas como em sua visão. Mas era
arriscado demais. No entanto, o bom senso que lhe dizia para nem se
aproximar dessa janela, que esperasse que os seus fossem resgatá-la, cada
vez protestava menos quando as horas e os dias aprisionada lhe
sussurravam que, por se aproximar para dar uma olhadinha, talvez não
acontecesse nada.
DOIS
O sétimo inferno.
Meu avô nos havia convocado, a mim e sua guarda. Ainda estavam
construindo o castelo, então nos havia citado embaixo dele, na encosta do
vulcão e no meio dos rios de lava. O calor era excessivo inclusive para
minha parte demoníaca, mas não insuportável. Eu e Atzir'itz voamos em
silêncio montados em nossos wyverns e descemos ao alcançar nosso
destino. Nosso rei ainda não havia chegado, mas, assim que pisamos na
rocha do solo com nossas botas, apareceu na frente em meio a um estouro
de enxofre.
—Meu senhor —dissemos ambos em uníssono enquanto nos
ajoelhávamos.
Porque eu não esperava nada de bom desta reunião. Estava
plenamente consciente de que havia ocultado do meu senhor, um poderoso
demônio ancestral com pouca paciência e com tendência à tortura eterna, a
traição do triunvirato. Pior ainda, tinha me aproveitado dos sentimentos de
sua guarda por mim, para que este tampouco cumprisse com seu dever de
informá-lo. Após a batalha do dia do juízo final, tinha se limitado a me
repreender, mas seu tom havia deixado claro que, quando deixasse de ter
assuntos urgentes para atender, falaríamos das consequências. Agora,
olhando-o desde minha postura inclinada, podia ver seu cenho franzido e a
aura de poder que o rodeava, tão imensa que poderíamos nos afogar nela.
Sim... isso que eu estava sentindo, esse sabor acre em minha boca, era, sem
dúvida, medo. Pff... um velho conhecido; como ultimamente tinha subido
muito à minha cabeça ser uma princesa demônio, lhe agradeci por me
lembrar o que eu era ao lado da vontade do meu avô: nada.
Os segundos passavam e nosso senhor se mantinha em silêncio.
Desviei rapidamente o olhar (tampouco era confortável elevar os olhos
desde minha cabeça abaixada), não queria incomodá-lo mais do que já
devia estar. Ia nos matar sem nos dizer nada ou primeiro daria sua sentença?
Essas e outras dúvidas passavam velozes por minha cabeça a cada instante a
mais que nos tinha ali, ajoelhados e sentindo como a areia da ampulheta de
nossas vidas deslizava entre seus dedos. Sem dúvida, estava assustada: não
queria morrer, não ainda. Tinha provado o êxtase de combater em guerras
montada em minha montaria, a felicidade de ter família e uma boa amiga.
Então não, não estava preparada. Poderia dizer a mim mesma o contrário no
meio do fragor de uma boa batalha, mas a verdade era que estava mentindo.
E enquanto aguardava que nosso rei fizesse ou dissesse algo, senti
outro sabor amargo, como a bílis, neste caso a percepção de que tinha
arriscado tudo por um vampiro que jamais havia merecido, que tinha sido
apenas um manipulador sujo e traidor.
Meu rosto, apesar de olhar para o chão, deve ter mostrado algo, pois
meu avô contraiu sua aura de volta e nos falou.
—Levantem-se —ordenou. Quando o fizemos e o olhamos,
continuou—. Vocês me decepcionaram muito.
Sua voz caiu sobre nós como uma pesada laje, como uma sentença.
Pude sentir como Atzir'itz se encolhia ao meu lado sem mal se mover, do
mesmo modo que eu estava fazendo. Maldição, não estava pronta. Mas,
como sempre, aceitaria o preço dos meus erros e a vontade do meu senhor.
—Não parei Casio porque estava esperando que me contassem,
qualquer um dos dois—. Sua voz, potente, retumbava pela encosta do
vulcão como um trovão. A decepção era tão palpável que se sentia como
quilos de pedras sobre meus ombros—. E não o fizeram. Apesar de tudo, a
matriarca bruxa teria parado seus pés no momento em que ele e os seus nos
atacaram; mas o que nem ela nem eu vimos foi a traição de sua filha.
Agora, não é que esse vampiro tenha ganhado, mas ele destroçou muitos
países humanos. Não os ocupou, pois não tem tropas suficientes para isso.
Os cidadãos sobreviventes estão escondidos e buscando se organizar.
Klynth'Atz, Atzir'itz, o que devo fazer com vocês?
Por um breve momento me senti aliviada. Não tinha dito nossos
nomes completos, isso significava que ia nos perdoar?
—Não era uma pergunta retórica, digam-me —repetiu após um par
de segundos de silêncio.
Minha cabeça pensava a toda velocidade. Tratava-se de uma
pergunta armadilha com certeza e nem ideia de qual era a resposta correta.
—Minha vida já não é digna de servi-lo, nem eu de chamá-lo de
meu rei. —O íncubo não teve dúvidas.
Puta merda! Ele não podia dizer algo como que não voltaríamos a
fazer isso e que o serviríamos bem? Maldito soldadinho...
Tudo bem, não estava sendo justa com Atzir'itz: ele era um soldado
leal e é claro que tinha cérebro. Mas levava longe demais o senso de dever.
Longe demais, sim... e, no entanto, o ignorou por mim.
Sim, de repente me sentia muito culpada. Tive que intervir.
—Ele não fez nada, meu senhor. Fui eu quem lhe ordenou que
guardasse esse conhecimento uns dias com a esperança de provar que o
Triunvirato não era um traidor. Minhas emoções falharam com o senhor.
Falhei como arma e como herdeira da linha real. Castigue-me como
considerar.
Porque era a pura verdade.
Atzir'itz começou a dizer algo, mas meu rei o fez calar.
—Eu sou o único responsável pelas minhas decisõ...
—Silêncio. É certo que estou decepcionado. Também que ambos
agiram movidos não pelo cérebro, mas por suas emoções, essas que os
fazem se destacar entre os meus, as que sem dúvida foram um sucesso no
meu experimento. De todas as minhas tentativas —todas as suas tentativas?,
o que estava dizendo? Havia mais?—, apenas três têm potencial e, sem
dúvida, vocês são os dois melhores. Entendo que essa facilidade de vocês
para tomar almas sem que suas impressões os enlouqueçam é o que fez com
que me desafiassem. Deixaram que o coração os fizesse correr o risco
diante daqueles a quem amam —Nem me atrevi a olhar para o íncubo, mas
com certeza ele devia estar desconfortável com meu avô ressaltando que ele
me amava e eu a Casio. Só que esse amor agora era ódio, contra ele e contra
mim mesma por ser tão idiota. Amor verdadeiro... por favor, eu era um
demônio, como tinha podido cair em um engano tão tolo?—. Meu
julgamento acabou e meu veredito está tomado —Estalou os dedos e
começaram a aparecer ao seu redor demônios da corte, se teletransportando.
Parecia que a atmosfera tão rica deste plano estava aumentando a magia dos
nossos—. Klynth'Atz, você foi considerada culpada de ocultar informação
do seu rei. A boa fé dos seus atos, o acreditar que essa informação era falsa,
não a isenta de sua culpa. Sua vida lhe é perdoada por sua utilidade na
guerra pelo controle dos sete planos. Parte de seu castigo é que você já não
é minha vontade no mundo humano, já não é quem vai mandar em meu
nome. Sylth'Atz, dê um passo à frente.
Um íncubo, eu diria que tão bonito quanto Atzir'itz e sem dúvida
mais alto, o deu, se destacando da corte que nos rodeava. Seus olhos eram
de um tom verde azulado, muito claro, e seu cabelo de um vermelho tão
escuro quanto o de Lucas.
—Meu senhor —se inclinou com respeito.
—A partir de agora você se encarregará das negociações na Terra.
Ouvirá o conselho do líder alfa da Europa e do vampiro Lucas, mas não o
seguirá se não o considerar adequado. Eles são sábios e levam décadas,
séculos no caso do vampiro, comandando exércitos. Saberão lhe dar uma
boa perspectiva onde sua juventude possa fazer com que lhe falte
experiência.
—Às suas ordens, meu rei. Não o decepcionarei.
—Eu sei. Retire-se.
O demônio voltou a seu posto entre a corte e meu avô se virou para
mim. Mas eu já não tinha medo. Nos havia perdoado. Fosse porque ele
também tinha seu coraçãozinho bem escondido e formado por eras
devorando almas hominídeas ou humanas, ou fosse porque de verdade
éramos suas melhores armas, não ia nos matar. Por enquanto, seu castigo
era quase um prêmio. Isso de estar no comando de politicagens não me
agradava nada. Mais ainda era um alívio que passasse o problema para
outro.
—Klynth'Atz, lhe dou a missão de localizar e me entregar vivo
Casio. O estado não me importa desde que continue com vida. Quantos
mais dos seus caiam, antes reconsiderarei seu valor. Se fracassar, deixará de
me ser útil. Se triunfar, receberá a outra parte de seu castigo: vinte
chicotadas.
Tááá bom, se eu fracassasse me matava ou algo pior: decorar seu
salão do trono. Se tivesse sucesso me perdoava com... vinte chicotadas? Só
isso?
Algo deve ter visto em meu rosto porque por um momento seus
belos e temíveis lábios se curvaram em uma careta cruel.
—Atzir'itz. —olhou para ele—. Seu castigo vai ser lhe dar essas
vinte chicotadas em público. Claro que se ela não conseguir me entregar o
traidor com vida em um prazo de quinze dias, compartilhará seu destino.
—Sim, meu senhor.
—Como desejar —acrescentei eu.
E nem uma palavra de que tinha sido benevolente. Fazê-lo poderia
obrigá-lo a nos dar um castigo físico exemplar ali mesmo, do tipo agora
faça sua missão com uma perna a menos. Porque tinha fama de justo, mas
duro, e a fama tinha que ser mantida.
Sua corte aceitava sua sentença. Estavam cientes de nosso valor
como armas e, certamente, sabiam que nos perdoar não tornava fraco meu
avô. Alguém como ele podia se permitir ser um pouco prático, senão
clemente, de vez em quando.
Eu e o íncubo voltamos a nos ajoelhar, a corte se foi e meu avô ficou
nos olhando uns segundos. Sua expressão continuava imperturbável.
—Não me decepcionem —retumbou sua voz—. Seria um retrocesso
ter que voltar a começar com os experimentos.
E se foi, em meio a um estalido de enxofre. Me senti tão aliviada
que se o íncubo não estivesse ali sem dúvida teria me deixado cair de bunda
no chão.
Continuava viva!
E, ainda por cima, tinham me dado o presente da vingança.
Sorri.
Atzir'itz me olhou estranhado, talvez questionando minha sanidade
mental, mas, assim que se deu conta do motivo, formou em sua boca uma
careta sádica.
Sim... querido Atzir'itz, meu avô nos tinha dado via livre para
quebrá-lo, podia estar em qualquer estado desde que continuasse com vida.
Imaginei que, morto, não lhe serviria para sua decoração do trono.
TRÊS
—Não podemos enfrentar um deus, menos sete —estava dizendo
Ainhoa, a nova presidente da Espanha e com quem eu e Atzir'itz nos
reunimos para almoçar.
O que por que continuava querendo nos meter em assuntos que já
eram de Sylth'Atz? Nem ideia. Que me revistassem, porque certamente a
última coisa que queria era continuar com essas dores de cabeça que meu
sábio avô tinha delegado a outro. Suspirei e lhe respondi:
—O dragão está solto pela Terra e os outros seis deuses já não estão
proibidos, logo essas bruxas, em teoria, poderiam invocá-los. Por sorte,
como o dragão foi trazido para nosso plano, tem os poderes limitados. E
invocar um deus é complexo, requer uma grande quantidade de poder
mágico, como o que se desatou no Samhain no dia do juízo final. Não é
algo fácil de conseguir ou Morrigan e outros deuses já estariam andando
por aqui há anos.
—Ok, tudo bem; mas mesmo com tudo isso continua sendo um
deus. Você poderia com ele?
Bem, imaginei que dependeria se meu avô me faria um canal mais
largo até o poço de todas as almas. Agora mesmo, que voltava a ter o da
minha maioridade, não poderia nem com a freira fanática que tinha me
perseguido. (Como tinha feito bem em não deixá-la escapar!) E o poço...
digamos que a conquista do sétimo plano o tinha drenado um pouquinho
bastante. Passariam milênios até que voltasse a ser o que era. Para meu avô
não importava muito porque tinham se apoderado do enxofre do sétimo
inferno, o que permitia aos meus possuírem a magia demoníaca mais
poderosa. Só que eu não podia fazer magia. Todos esses compostos
químicos do plano não reagiam com a biologia do meu estômago como
faziam com a de uma súcubo que não fosse mestiça. Então, resignada,
neguei com a cabeça.
Não, eu agora mesmo não podia vencer um deus por muito limitado
que este estivesse.
Ainhoa me olhou como se estivesse satisfeita que eu tivesse lhe
dado a triste razão.
—Pois isso. Certamente não me agrada colocar meu país dentro do
Império Vaticano; mas, se for necessário, farei isso antes de permitir que
esses monstros nos aniquilem ou escravizem.
Sim, Império Vaticano, como se chamava agora a nova nação que
aglomerava o Vaticano, Roma, grande parte da Itália, Japão, Alemanha,
Polônia e Rússia. O Papa tinha deixado claro: se os governos que ainda
estavam sob controle humano quisessem sua ajuda, deveriam se colocar sob
seu comando. Que a Rússia, que sempre tinha se defendido sozinha, tivesse
cedido e chegado a um acordo com a Igreja, era mais que preocupante. Mas
claro, eles não me tinham a mim e o bisneto do meu avô para lutar ao seu
lado.
Voltei a suspirar, de cansaço por essa conversa. Todo mundo dizia
que Ainhoa era uma mulher doce e calma, ao mesmo tempo que forte; no
entanto, eu a estava vendo bastante melodramática.
—Veja, Ainhoa, os mutados e os vampiros não são nenhum
problema graças aos lobisomens e a Lucas e seus filhos. Os satanistas
também ajudam bastante. E você tem bruxas, porra, algo que nenhum outro
país pode dizer.
—Sim, uma matriarca sem matriarcado e todas as demais bruxas
mortas ou fugidas.
—Estamos nisso. Arianhrod duvida muito que todas as casas de
bruxas possam ter caído na sedução da magia proibida. Por exemplo, as
gilean, as curandeiras, não combina nada com elas. Por isso, só temos que
encontrá-las e dar-lhes uma opção diferente de serem controladas pelas
snake.
—A matriarca duvida, sério? —Ergueu uma sobrancelha com ironia
—. Igual a que aguentou a tentação sua própria filha?
—Isso foi cruel e desnecessário. —Franzi o cenho—. Em todo caso,
se nos colocar no império Vaticano, iremos embora eu e os meus, os
lobisomens, os satanistas, as bruxas que se mantêm fortes a seus deuses e
princípios e Lucas e os seus. Se a Espanha passar a estar sob o controle da
Igreja, não ficaremos para lutar contra a Inquisição.
Ainhoa percebeu que assim não chegava a lugar nenhum. Passou a
mão pelo rosto, pela testa e os olhos, e se desculpou.
—Você tem razão, sinto muito. Escuto vocês falarem de deuses e
não posso evitar buscar ajuda no meu, que por enquanto parece fazer caso
apenas ao Vaticano. Todos os padres daqui se retiraram; acho que Bruno,
que já não pode nem fazer exorcismos, é o único que fica na Espanha. Se
queremos eles de volta, assim como o apoio de suas tropas, temos que nos
subjugar a seu império. Isto é como um beco sem saída. Você acha que seu
avô e seu pai nos ajudariam? Sem dúvida teriam que poder com eles.
—Com um desses deuses pagãos e proibidos? Meu avô sem dúvida
e meu pai é bastante provável. —Dei de ombros.
Não ia revelar a ela o quão minguado estava o poço. Para mim, me
servia de sobra. Mas para uma drenagem como a que usou meu avô na
conquista do sétimo inferno, nem de brincadeira. Para isso se necessitariam
de novo milhares de anos de laborioso dízimo—. Em todo caso —continuei
dizendo a ela—, não sei o que está fazendo me perguntando isso quando já
sabe que eu já não me encarrego, que você tem Sylth'Atz para lhe
esclarecer.
Sem dúvida era maravilhoso que meu avô tivesse passado o
problema para outro; não tanto que a presidente humana parecesse se dar
melhor comigo do que com ele e que, por isso, fizesse coisas como nos
convidar para almoçar, a mim e Atzir'itz, quando a comida acabava sendo
uma emboscada.
—Sim, bem, é ótimo que seu avô e senhor tenha claro a quem quer
colocar no comando para nos ajudar a recuperar nosso mundo, mas eu estou
mais confortável com você.
Olhei meu prato, massa à carbonara que eu estava mais tempo
mexendo com o garfo do que qualquer outra coisa. Suspirei e decidi comer
um pouco. Eu tinha trabalho a fazer, um vampiro traidor para encontrar, não
podia perder tempo assim e, no entanto, tanto ela quanto Lucas
continuavam me chamando. Falando em chamadas, foi uma que me salvou
de continuar enrolando Ainhoa. Só que o que soou não foi meu celular, mas
sim meu nome gritado em meu interior através desse cordão palpitante e
escuro que me unia com minha irmã de magia negra.
QUATRO. Marta
Em algum momento perdido nesse transcorrer de tempo sem
sentido, a moon-wolf se aproximou da janela. Com cuidado, tentando não
se colocar bem na frente, deu uma olhada. Era o plano da deusa serpente.
Não as escadas pelas quais ela tinha subido, mas sim diretamente o círculo
do altar onde em sua visão a tinham sacrificado. Lembrou das bruxas, seu
cântico ritual, os golpes das palmas de suas mãos contra o chão, seus
cabelos girando ao som tribal dos tambores. Também dessas aberrações de
escuridão, os senhores demoníacos do sétimo plano, e da laje de sacrifício
na qual a tinham imobilizado. E a serpente.... Shanetta. Só que agora só via
silêncio e um espaço vazio.
Sabia que o lugar no qual se encontrava, a prisão do deus proibido
dragão, já não era mais. Os selos tinham se rompido, por isso a divindade
tinha podido escapar. Ela, no entanto, nem tinha sido convocada à Terra
como ele nem tinha nenhum poder ou feitiço que lhe permitisse sair dessa
dimensão. Estava presa e, no entanto, tinha que se sentir agradecida pois,
por algum motivo que desconhecia, ali não sentia nem fome nem sede; caso
contrário, possivelmente já teria morrido desidratada. Assim, essa janela
que as snake tinham aberto para debilitar a prisão do deus, para falar com
ele, era o único caminho que parecia ter. Claro, podia continuar esperando
que sua senhora a libertasse. Arianhrod continuava sendo sua senhora, tinha
que ser assim porque sua terceira prova tinha ficado interrompida. Se
tivesse fracassado, agora estaria morta por causa do contrato de vassalagem.
Por isso, sabia que tinha sido interrompida, o que queria dizer que, embora
não tivesse conseguido ajudar sua senhora no ritual como supostamente
deveria ter feito, sua ajuda tinha lhe servido o suficiente para que a terceira
e última missão de vassalagem ficasse em espera. E a sentia, sentia sua
senhora viva, mas fraca; embora não pudesse se comunicar com ela e, pelo
que parecia, o canal estava também bloqueado no sentido contrário.
Esperava que fosse pelo plano, porque até então sua senhora lhe tinha
mandado instruções claras via vínculo de vassalagem, como quando no
Vaticano lhe pediu a taça.
Como cada vez tinha menos claro que esperar fosse o correto, em
algum momento de seu encarceramento, dessas horas que se encadeavam
em dias sem que ela soubesse contá-las, tinha se aproximado para olhar o
plano da serpente. Só um instante. Em sua mente as perguntas davam voltas
uma e outra vez: Será que iam resgatá-la mesmo? Se pudessem, não o
teriam feito já? Não sabia quanto tempo estava ali, presa, mas sentia como
se fossem semanas.
Indecisa, um pouco nervosa pela emoção de deixar de estar
esperando, se afastou da janela e começou a percorrer a passos rápidos sua
minúscula cela.
—Porra! —exclamou— Isso acabei de copiar da Violeta.
E começou a rir, com uma risada breve e um pouco histérica.
O fato de se atrever a elevar a voz pela primeira vez em tanto tempo
e que não acontecesse nada (não soou nenhum alarme nem nenhum inimigo
entrou pela janela para matá-la), a fez soltar outra gargalhada.
Não, não estava ficando louca; pelo menos não ainda. Mas sem
dúvida acabaria pirada se continuasse ali presa. Anos, décadas, séculos... ou
até que seu corpo caísse velho e murcho se é que nessa dimensão se
envelhecesse, porque certamente suas funções biológicas de comer e
evacuar restos de alimentos pareciam ter parado.
O que Violeta faria no meu lugar?, pensou. Dizer algo do tipo ainda
bem sobre não ir ao banheiro, porque aqui não tem. E além disso, o que
faria?
Parou. Diferente de sua amiga, ela não refletia melhor ao caminhar
com energia. Não... Se apoiou contra o muro de sua cela e se deixou
deslizar até ficar sentada.
O que faria? Estava claro: teria coragem. Violeta não pensaria em
sua segurança se tentasse sair, mas sim na de todos os que teria deixado na
Terra e poderiam estar precisando de sua ajuda. Para ser uma princesa
demônio, sua amiga era das mais leais com as pessoas que lhe importavam
e as colocava na frente dela. Bom, talvez na frente da vingança a sua mãe
não, mas quanto ao resto...
—Muito bem, Violeta, que não se diga que não me ensinou bem —
murmurou—. Daniel, espero que esteja a salvo, com minha senhora, minhas
discípulas ou com minha amiga. Em todo caso, aguente, meu amor. Vou te
procurar.
Ali, nesse plano, soou um pouco estranho o "meu amor". Mas era o
que sempre tinha sido e, até que Arianhrod lhe tinha aconselhado deixá-lo
para seu bem, o que lhe chamava um dia sim e outro também. Bom, pois o
garoto estava metido nisso até o fundo. Tinha escolhido e já não havia
volta. O mínimo que podia fazer ela era ajudá-lo, não deixá-lo abandonado
em uma Terra onde não sabia se o padre Bruno teria conseguido impedir o
apocalipse sem a ajuda das bruxas.
Pelo que sua senhora e matriarca suprema lhe tinha contado, tinha
visto os possíveis futuros e com seu ritual iam ajudá-lo para evitar uma
crise de fé. E se por causa das traidoras o ritual tinha fracassado...
Não queria nem pensar, mas tinha que fazê-lo.
Como era bom ficar esperando que a salvassem, não é? Mas... e se
fossem eles que precisavam de sua ajuda? E se Daniel, suas novas acólitas,
sua senhora e Violeta precisassem dela?
Uma nova urgência se instalou em seu peito.
E se por esperar a ajuda estivesse condenando os seus?
—Merda! —exclamou e se dirigiu à janela.
Sem se agachar, sem meias medidas. Tão bruta como quando fez
aquele talho na palma em vez de uma mínima linha de sangue. Não tinha
nenhum feitiço na manga. Nesse plano não podia fazer magia. Tinha
tentado. Tanto fazia. Aproximou os dedos da janela para ver o que acontecia
e a atravessou com eles.
Perfeito.
Dava para notar que os selos da prisão estavam quebrados.
Esticou uma perna para passá-la, pôde se apoiar no marco do portal,
e passou depois a outra. Quase perdeu o equilíbrio e o resolveu com um
salto.
Bem, pois ali estava, na parte externa do círculo de ladrilhos de
pedra. Se virou. A janela para o plano prisão continuava ali, embora não se
pudesse ver o que havia do outro lado pois estava cheio de névoa.
Perfeito.
Antes que perdesse a coragem, começou a caminhar para as escadas
pelas quais tinha subido em sua visão. Agora percebia que essa visão era
um aviso de algo que já teria acontecido. Ou seja, de que iam prendê-la e
sacrificá-la antes do dia do fim do mundo. Ou talvez justo nesse dia, sabe-se
lá. Agora mesmo não fazia sentido que a necessitassem para um ritual;
menos ainda com o templo vazio. E se em sua visão a tinham trazido de
algum modo ao início das escadas, suspeitava que ali poderia haver um
portal para a Terra.
Bem.
Só que o templo não estava vazio.
CINCO. Marta
O templo não estava vazio. Havia uma estátua, a da deusa serpente, uma criatura esculpida
em pedra três vezes mais alta que Marta, tanto que ultrapassava as alongadas colunas que bordeavam
o círculo. Seu corpo era o de uma serpente enrolada sobre si mesma, tensa e meio erguida, como se
estivesse a ponto de atacar. Sua cabeça, similar à de uma cobra, era muito maior que a da bruxa e
mostrava uns agudos colmilhos. Estava colocada na parte oposta à janela da dimensão prisão. As
escadas, se avançasse pela borda do círculo, se encontravam a meio caminho entre esta e a estátua.
No centro, claro, estava o altar.
Com cuidado para não fazer barulho e evitando se aproximar desse
altar que lhe dava tão má impressão, Marta tirou os sapatos e começou a
caminhar descalça pela borda, colada às colunas. A pedra se sentia em suas
solas estranhamente cálida e suave. Seus passos, ao caminhar, não
arrancavam nem o mais mínimo som. O silêncio era tão absoluto que quase
lhe parecia escutar seu coração, batendo rápido, por baixo do suave som de
sua respiração e do tecido da saia de seu vestido.
O vestido...
Um calafrio a percorreu. Porque se tratava do cerimonial que a
matrona da lua cheia usava nos rituais e nas ocasiões importantes. Tinha
adaptado para si dos que Sonia guardava, todos herdados. E era exatamente
a saia gótica e o corpete com os quais tinha se visto em sua visão.
Mas não havia bruxas nem ela tinha entrado ali pelas escadas, então
não. Disse a si mesma que não acontecia nada, que essa visão era algo que,
por toda lógica, já tinha evitado.
Estava tão centrada em seus pensamentos que não percebeu; mas a
estátua de pedra, a serpente, abriu os olhos e ficou olhando para ela com
uma malícia infinita. Isso sim, no momento em que a pedra que recobria a
deusa serpente começou a cair no chão, deixando livre seu corpo serpentino
de mais de quinze metros de comprimento, Marta deu um sobressalto e
ficou congelada no lugar, a meio caminho das escadas, vendo como
Shanetta acabava a careta que tinha estado congelada em rocha, essa que
puxava para trás a pele de suas mandíbulas e mostrava seus colmilhos,
prontos para atacar. Duas gotas de veneno deslizaram desde suas pontas até
o chão. A bruxa reagiu e saiu correndo a toda velocidade até as escadas. A
serpente se lançou atrás dela. As duas gotas esverdeadas tocaram o chão e,
ácidas, furaram um pequeno buraco circular no ladrilho.
A moon-wolf estava mais perto e, apesar disso, quase não consegue
chegar ao primeiro degrau antes que a gigantesca serpente. Sem pensar,
com seu coração desatado e a adrenalina gritando para que corresse por sua
vida, se lançou degraus abaixo. Shanetta chegou instantes depois e começou
a deslizar até sua presa, golpeando o balaústre com sua longa cauda. Este
tremeu pelo impacto, mas se manteve intacto. Marta percebeu que não ia
chegar. Começou a sussurrar a ladainha de um feitiço enquanto movia suas
mãos. Mas um golpe, o da cabeça da deusa contra suas costas, a fez rolar
escadas abaixo, interrompendo sua magia. Passaram uns segundos que lhe
pareceram eternos, onde a dor de seu corpo batendo nos degraus se igualava
com a certeza de que se não fizesse algo essa deusa ia devorá-la. Ou algo
pior. Quando acabou a queda, estava muito machucada e dolorida, mas pelo
menos tinha conseguido proteger a cabeça com as mãos. Tentou se levantar.
Falhou uma perna. O tornozelo... estaria torcido ou quebrado e a serpente se
erguia sobre ela, majestosa, maligna, mortal. Não a estava atacando, era
como se desfrutasse de seu medo, de sua percepção de que tudo tinha
acabado. Curiosamente, sua mente parecia ter se dissociado em duas. Uma
parte estava dentro dela, gritando que ia morrer, aterrorizada. A outra, a
instava a fazer algo. Aproveitando que Shanetta ainda não a rematava,
olhou ao seu redor. Era uma planície que flutuava no vazio, como um
campo de futebol ladrilhado e rodeado por uma negritude absoluta. Isso
precisamente não ajudava. Além disso, nem sinal de nenhum vórtice ou
portal de saída.
—Nem tente, bruxa, você essstá presa —se regozijou a serpente—.
Essta zona é parte do meu plano, meu lar. Aqui só entram as sssnake e
porque eu as ajudo.
Marta não respondeu, mas também não quis abaixar a cabeça.
Estava cansada, cansada demais de que todo mundo a tratasse como um
zero à esquerda. Talvez em outro momento teria se resignado com seu
destino, mas agora mesmo não pensava se deixar pisar. Bom, o de pisar
talvez tivesse pensado pelo seu passado, neste caso era mais esmagar,
morder e devorar.
—Você ia sser o sacrifício para me dar acessso à Terra, mas não se
deixou capturar. E, agora que o dragão essstá livre, já não precisa matar
uma matrona para me libertar. Além disso, a última cassa, que
pateticamente inapropriado. Eu quero algo maiss poderosso, como sua
amiga ssúcubo.
Enquanto a serpente falava, essa parte de Marta que continuava fria
não parava de pensar. E percebeu algo. No ritual tinha gasto seu feitiço mais
poderoso, que tinha na manga, mas não o que guardava em seu bracelete de
matrona. No plano prisão não tinha podido fazer magia e seu bracelete tinha
se sentido vazio. No entanto aqui, antes que o golpe da deusa o cortasse,
tinha sentido como sua magia se acumulava nas palavras e gestos de seu
feitiço. Tentou sondar mentalmente seu bracelete. Sim! Estava ali. Só com
um feitiço não a venceria, nem lhe daria tempo suficiente para lançar outro.
Mas pelo menos morreria lutando. Do chão, onde estava sentada, ergueu
mais a cabeça, olhando desafiante nos olhos a criatura que se erguia um par
de metros acima dela.
—Más notícias, serpente, duvido muito que possam com ela.
Iomadh saighead!
E de seus dedos saíram as setas da lua, cinco projéteis de cor osso
que iam direto para a cabeça da serpente. Esta, que não esperava isso, que
sua presa se defendesse, reagiu tarde. Duas se cravaram em sua carne para
além de suas escamas e, a terceira, em um de seus olhos, cegando-o.
Furiosa, a deusa arremeteu contra Marta, qual cobra que se lançava
para dar o golpe mortal. A moon-wolf, ferida, rolou para se afastar já que
não podia ficar de pé. Conseguiu por pouco. Se a criatura tivesse mordido
essa perna que foi a última que tirou do meio, a teria arrancado. Tanto fazia.
Era o final. Marta sabia. Nos breves segundos que lhe restavam tentou
sentir paz, saber que tinha feito o que tinha podido, lutado até o final.
Mas enquanto a cabeça de Shanetta se lançava de novo contra ela
algo lhe gritou para lutar! Era absurdo, pois não lhe restavam mais feitiços
na manga e a deusa não ia lhe dar o tempo que precisaria para lançar sua
magia do zero. No entanto, ignorando os fatos, a voz de Kendria voltou a
gritar em sua cabeça: lute! Foi estranho, se sentiu estranho, como se o
espírito de sua antepassada tivesse conseguido romper a distância e a
lonjura para lhe dar o conselho. E Marta, instintivamente, obedeceu. Ergueu
a palma de sua mão contra a cabeça do monstro que se aproximava e, sem
duvidar, exclamou as palavras do feitiço de cegueira, gainne gealaich. Não
o tinha na manga, não o tinha preparado. Esse feitiço precisava de minutos
de minucioso recitar acompanhado de gestos e contorções de seu corpo. E,
no entanto, os colmilhos da besta ficaram congelados a poucos centímetros
de seus dedos.
Marta também, por uns instantes, ficou boquiaberta. Mas não
pensava desperdiçar o presente que sem dúvida Kendria acabava de lhe dar.
Tinha segundos antes que a deusa deixasse de estar imobilizada, isso se não
fosse menos. Não tinha armas, mas havia um feitiço, outro dos de mais
poder do grimório, que tinha estudado. Confiando que Kendria continuasse
ajudando-a, ergueu ambas as palmas ao céu e sussurrou:
—Paca mhadadh-allaidh làn ghealach.
Matilha da lua cheia.
Desse céu estranho e alienígena que havia sobre sua cabeça
começaram a descer uns espíritos cuja forma era a de lobos brancos que
pareciam estar feitos de retalhos de alma e de névoa. Quando suas patas
tocaram o chão, sua forma se solidificou, sem deixar de ser de um branco
fantasmagórico. Rápidos, se lançaram contra os olhos e o corpo da serpente.
Lhe cegaram o segundo olho e arrancaram pedaços de sua carne resistente
antes que esta deixasse de estar sob o feitiço que a tinha imobilizado.
Depois, a deusa sibilou de dor e raiva e lutou contra as criaturas. Mas estava
claro que estava perdendo. Com a mordida de seus colmilhos e seu veneno,
tinha conseguido acabar com um dos lobos, o qual desapareceu se
dispersando na mesma névoa que o tinha formado. Mas havia cinco mais e
ela estava cada vez mais ferida. Diante dos olhos da matriarca da lua cheia,
que estava sendo testemunha do poder que tinha tido sua casa, de um feitiço
capaz de convocar a própria matilha de caça de sua deusa Diana, a criatura
começou a serpentear escadas acima, com dois lobos agarrados a sua cauda
com suas mandíbulas fechadas e o resto seguindo-a entre dentadas e
arranhões. Shanetta, cada vez mais devagar por suas feridas, conseguiu
subir as escadas e voltar a sua posição original, a da estátua, onde
imediatamente se converteu em pedra. O chão estava cheio de um rastro de
sangue esverdeada e enegrecida, que devia ser ácida por como tinha
corroído o chão. Os lobos soltaram a carne resistente antes que a pedra os
recobrisse também e, orgulhosos inclusive os que estavam feridos,
desceram as escadas até a bruxa que os tinha chamado. Um deles, o maior,
lambeu o sangue de seu rosto e ficou olhando para ela. Por um momento
Marta pensou se essa saliva poderia conter magia curativa e sarar as feridas
que ali tinha feito apesar de ter se coberto com os braços. Mas não, tinha
sido apenas um gesto amável. Se perdeu em seus olhos de névoa e, então,
sentiu uma voz em sua cabeça, estranha e lupina.
—Innnnnndigooooo —uivou a voz—. Respeeeeeitooooo.
E imediatamente os lobos elevaram os focinhos ao céu, em um uivo
conjunto, e desapareceram para cima em forma de retalhos de névoa.
Marta estava boquiaberta, totalmente pasma. Tinha convocado os
lobos que acompanhavam sua deusa na caça e estes acabavam de chamá-la
de índigo. Acaso tinham podido se comunicar com Kendria através de sua
mente? Mas sabia que não, que tinham chamado isso a ela.
Arianhrod lhe tinha contado que umas poucas bruxas de grande
poder, ao longo da história, tinham sido capazes de fazer feitiços como se
estivessem na manga, sem ter que fazer primeiro os longos gestos e recitar a
ladainha mágica.
Índigo...
Não, não podia ser. Tomara! Como todas as garotas das quais
tinham abusado, tinha uma parte de si que sonhava em ser especial e super
poderosa, o suficiente para se livrar da dor. Mas tinha aprendido que a dor
psicológica dependia do que uma deixava que lhe afetasse as coisas e, a
física, era algo que se tinha que superar. Daí que tivesse dado um passo à
frente para tomar o controle de sua casa, em vez de entregar o grimório a
Sonia. Conseguir o grimório tinha sido arriscado, tinha colocado sua vida e
a de sua amiga em perigo. Isso... ter de repente esse poder, se sentia como
trapacear.
Será que ela ia ser mesmo tão especial?
Ora, vamos!
Essas coisas aconteciam a uma entre um milhão, não a ela.
Embora, uma voz animada em sua cabeça, sua própria voz, lhe
dizia:
E por que você não pode ser essa uma? Alguém tem que ser.
Sacudiu a cabeça. Estava perdendo um tempo valioso. Se tinha
disparado algum alarme, as snake poderiam estar vindo. Ou talvez a deusa,
na forma de pedra, se regenerasse de suas feridas e em breve voltasse atrás
dela.
Como tentou outra vez se colocar de pé e lhe doeu demais,
engatinhou com dois braços e uma perna buscando onde podia estar a saída.
Passaram minutos que lhe pareceram eternos. Não encontrou nada. Mas
todas as bruxas, inclusive as das casas menores, tinham um repertório de
feitiços comum e básico. Um destes era o de sentir a magia. Começou a se
mover e a sussurrar a ladainha do feitiço, mas se interrompeu, dizendo a si
mesma:
—Tonta, tente.
E o fez, tentou sussurrar apenas as palavras finais. Funcionou.
Detectou que havia muita magia escadas acima e bem na sua base. Se
aproximou dali. Era sem dúvida uma porta, não fechada de todo. Alongou
os dedos, para ver se podia interagir com os fluxos de energia mágica que
lhe mostrava o feitiço. Só tinha que forçá-la a se abrir. Sim... um pouco
mais... Sim, consegui!
Sorrindo, entrou no portal.
E apareceu no sancta sanctorum do porão da casa snake mais
poderosa, a câmara onde realizavam os rituais.
Mais uma vez, não estava sozinha.
DEIS
—Violeta, venha me ver já.
Benditas palavras da minha irmã de magia negra que me salvaram
do incômodo almoço com Ainhoa. Senti um puxão no meu peito e sua voz
soou forte e clara na minha cabeça. De fato, como não esperava (nem sabia
que podia fazer algo assim), não pude evitar soltar meu garfo, que deslizou
entre meus dedos e começou a cair em direção ao prato de macarrão.
Recuperei-o quase no ato ao mesmo tempo em que franzia o cenho. Atzir'itz
tinha acabado de ficar me olhando.
—Sinto muito, tenho que ir. É urgente —disse a eles enquanto me
levantava.
—Aconteceu algo ruim? —preocupou-se a presidente.
—Não, não se preocupe. Urgência familiar.
Me despedi rapidamente e saí da sala taqueando com minhas botas,
a passo ligeiro, enquanto Atzir'itz me seguia.
—O que aconteceu? —me perguntou uma vez fora do edifício.
—É Arianhrod. Acabei de escutá-la em minha mente, algo novo, e
parece que é urgente.
Porque eu, até agora, puxões desse vínculo que nos unia, falar com
ela confiando que me ouviria... sim. Palavras tão clarinhas, não.
—Vou com você.
Montamos os dois no meu Lamborghini vermelho e acelerei tudo o
que o trânsito me permitia até o apartamento que tinha alugado para minha
irmã de magia e o namorado de Marta.
Veja, não era que a bruxa não tivesse dinheiro, que pelo visto tinha e
muito, mas sim que queríamos evitar que pudessem averiguar onde estava
pelos movimentos de sua conta. Moradia própria em algum lugar secreto,
certamente não tinha, porque quando se tornou a matriarca suprema sua
casa passou a ser o Samhain. Quando as bruxas deram tanto ela quanto
Daniel como mortos, o melhor tinha sido procurar um lugar discreto para
que se escondessem, com o que o apartamento de Daniel ficava descartado.
Por isso o de alugar um apartamento para eles em um dos bairros
periféricos e, quando saíam, o faziam mudando seu aspecto à maneira
humana: perucas, roupas, maquiagem... Se usassem magia, um simples
feitiço de detectar a magia realizado por alguém com mais poder que
Arianhrod os delataria. Alguém com mais poder que a matriarca suprema?
Bem... há uns dias eu teria rido disso, mas desde o juízo final tudo tinha ido
por água abaixo. Suas inimigas a tinham dado por morta e possivelmente
uma das matronas snake teria tentado se coroar como a nova líder do
matriarcado. Somando os rituais realizados aos deuses proibidos e esse deus
dragão que tinham invocado, era possível que alguma de suas inimigas
pudesse superar Arianhrod. Isso que, sua deusa Morrigan de jeito nenhum a
tinha deixado de lado.
Enfim... As bruxas tinham um grande poder mas dependiam de seus
deuses. Os demônios da qualidade do enxofre de seu plano e eu, uma
súcubo mestiça, da boa vontade do meu avô na hora de abrir para mim a
comporta ao poço de todas as almas. Sinceramente, não saberia dizer o que
era melhor.
Quando chegamos a nosso destino, em pouco mais de doze minutos,
deixei meu carro estacionado na rua em frente ao bloco de apartamentos,
toquei a campainha e nos abriram no ato. Após subir pelas escadas (em
nossa velocidade, era mais rápido que esperar o elevador), a anciã estava
nos aguardando com a porta aberta.
—Rápido, entrem —nos urgiu.
—O que aconteceu? —perguntei a ela enquanto Atzir'itz fechava a
porta atrás de si.
A antiga matrona parecia ter envelhecido uma década desde a
traição de sua filha. Suas rugas tinham se acentuado, gravando sulcos mais
profundos; no entanto, eu sabia que continuava sendo forte e poderosa.
—É Marta, ela voltou. Posso senti-la. Chamei você assim que ela
apareceu no plano da Terra. Está ferida, lutou e, após me comunicar com
ela, sei que se encontra dentro da casa Esteno.
Esteno, a que possivelmente fosse a nova líder das bruxas traidoras.
—Ela precisa de nós? —me tensei.
Sim! Está viva, eu sabia! Minha Marta é dura demais para se deixar
matar facilmente.
—Sim.
—Vamos.
A morrigan moveu sua mão e, em meio ao ondular da manga de seu
vestido, nós três nos teletransportamos.
SETE. Marta
Marta não estava sozinha. Havia duas bruxas, duas servas da
matrona snake, na câmara.
Assim que apareceu pelo portal, ambas a olharam sobressaltadas.
Primeiro, porque quando sua senhora as tinha mandado limpar os restos do
último ritual não lhes tinha dito que estivessem esperando visita. Depois,
porque a que estava diante delas não era uma snake e sim a desaparecida
matrona da casa da lua cheia.
Marta, por um momento, ficou como elas, incapaz de reagir. Mas de
imediato se recuperou e ergueu uma mão em direção às servas.
—Iomadh saighead —pronunciou e as pequenas setas saíram de
seus cinco dedos para ir direto atrás de suas inimigas.
Três se cravaram no pescoço de uma delas, fazendo-a gritar de dor e
rompendo sua congelada surpresa. As outras buscaram também a garganta
da segunda bruxa, mas esta conseguiu se virar a tempo e, embora ambos os
projéteis tenham se curvado para alcançá-la, foi contra seu ombro que
impactaram.
De imediato, as serpentes de ambas as snake começaram a ganhar
vida enquanto um forte golpe de telecinese moveu uma cadeira que
impactou contra Marta e a impulsionou para trás. Por sorte para ela, o portal
tinha se fechado à sua passagem e atravessou o espaço inócuo onde a porta
dimensional tinha estado.
—Gainne gealaich! —nem pensou, ignorando a dor de sua barriga e
quadril direito pelo golpe.
Se de verdade podia usar seus feitiços como se estivessem na
manga, pensava continuar abusando enquanto funcionasse. De imediato,
ambas as inimigas ficaram imobilizadas, serpentes de suas tatuagens
incluídas. Marta deu uma olhada ao seu redor e observou que sobre a mesa
que fazia de altar, junto com umas velas e essências, estava a faca ritual.
Pegou-a. Se aproximou então da primeira das duas, a que não estava ferida,
e a apoiou contra sua garganta.
Hesitou.
Ela não era uma assassina a sangue frio. Mas se não o fizesse a
matariam. Sem dúvida, Violeta já teria cortado o pescoço das duas.
Apertou um pouco contra a pálida pele. Começou a se formar um
fiozinho de sangue.
—Maldição —xingou entre dentes. Não podia fazê-lo, não assim.
O feitiço não tinha muito tempo restante. Lançou-o de novo.
Funcionou. Percorreu com a vista a sala buscando algo pesado mas
manejável. O atril onde colocavam o grimório snake durante os rituais
serviria. Agarrou-o e o estampou contra a cabeça das duas. Em seguida,
aguardou que passasse seu feitiço e observou que estavam inconscientes.
Deixou escapar o ar que tinha estado contendo e buscou um modo de sair
dali.
Quanto às bruxas, seriam castigadas por seu fracasso. Esperava que
não com a morte ou a servidão eterna como fantasmas, mas, se fosse o caso,
já não seria por sua mão.
Saindo pela porta dessa câmara, entrou em um corredor estreito.
Percorreu-o e chegou a uma porta fechada e a umas escadas que iam para
cima. Essas escadas a levariam à rua, mas passando primeiro pelo resto de
uma casa que, possivelmente, estava cheia de snakes. Por enquanto, parecia
que podia fazer feitiços sem tê-los na manga, mas não confiava. Não tinha
claro se era um favor pontual de sua deusa ou se de verdade ela tinha esse
nível de poder. Tampouco sabia se poderia fazê-lo com qualquer tipo de
feitiço (ritual imaginava que não, pois as bruxas que ao longo da história
tinham podido fazê-lo, nunca tinha sido com rituais) ou havia um limite. O
limite poderia estar no poder do feitiço ou na energia própria que ela ia
gastando. Por isso, decidiu não se arriscar com as escadas e tentou com a
porta fechada. Esta dava para outras escadas, que neste caso desciam.
Seguiu-as, curiosa do que podiam guardar em um porão inferior ao de sua
câmara de rituais. A resposta foi simples: celas. Uma sala ampla com zonas
limitadas com grades onde havia múltiplas bruxas apertadas. Claramente,
essas celas não estavam projetadas para abrigar tantas. Ao descer ali, ao
encontrá-las, aconteceram duas coisas. A primeira, que muitas delas a
reconheceram, surpresas, e a esperança se avivou em seus olhos quando lhe
pediram ajuda. A segunda, que embora não houvesse carcereiro sim havia
câmeras e feitiços e pela casa começou a soar tanto um alarme humano
como um mágico, ativado pela presença nesse andar de alguém que não
levava em suas roupas o selo que impediria que se ativasse.
De imediato, Marta correu até a porta, para bloqueá-la de algum
modo. Mas nem tinha chave nem algum ferrolho que pudesse colocar.
Tampouco havia nenhum móvel que pudesse arrastar e colocar na frente.
Nem nada nos feitiços que tinha estudado do grimório que pudesse lhe
servir como barreira. Então fez o que lhe saiu de maneira instintiva: pedir
ajuda. O qual foi fazer caso por fim a Arianhrod, que desde que a tinha
sentido de volta estava tentando em vão se comunicar com ela. Não tinha
querido incapacitá-la para isso, como tinha feito no Vaticano para pedir-lhe
a taça, já que imaginava que a moon-wolf não estava a salvo.
—Senhora? —perguntou-lhe Marta mentalmente.
—Finalmente! —soaram aliviadas as palavras em sua mente—.
Posso sentir sua urgência. Descreva onde está.
—No porão de uma casa snake, a que tem um portal para o plano de
Shanetta. Desci abaixo, para umas celas que têm cheias de bruxas. Acabam
de me pegar, estão vindo atrás de mim.
—Aguente, Violeta está chegando. Em breve ajudaremos você. Não
bloqueie este vínculo, vou precisar dele para o feitiço de teletransporte.
Esse feitiço era coisa de morrigans, igual a telecinese era o presente
da deusa serpente às snake.
Marta assentiu, embora Arianhrod não pudesse vê-la, e buscou o
modo de abrir as celas. Não havia chaves, nem buraco para esta nas
fechaduras.
—É eletrônico —disse-lhe uma das bruxas presas, uma gilean.
—Não tenho nenhum feitiço elétrico que possa abri-las —
murmurou Marta mais para si que para elas—. A cavalaria está a caminho.
Aguentem.
—Aguentar? —ironizou uma das presas—. Estas celas estão seladas
para que não possamos usar magia. É você sozinha contra elas.
—Bem, pois eu sozinha.
Começou a gesticular e sussurrar as palavras de seu feitiço de
cegueira, por via das dúvidas. Não lhe deu tempo de terminá-las. Os passos
que se escutavam cada vez mais fortes chegaram ao outro lado da porta.
Um golpe de telecinese a abriu, arrancando-a de suas dobradiças e
lançando-a para frente. Marta interrompeu seu feitiço para saltar para um
lado, esquivando-a por pouco. A porta perdeu momento e acabou caindo
contra o chão, sem chegar a bater nas celas da parede oposta.
Múltiplos golpes de telecinese tentaram em vão arremessar Marta
contra o chão. Ela tinha mais poder e, por isso, essa magia não a afetava de
um modo direto.
—Corpo a corpo! —gritou a líder das bruxas snake que estavam de
guarda em sua casa, convocando suas serpentes e entrando a toda
velocidade na sala, faca na mão.
Marta se recuperou de sua surpresa e nem pensou. Estendeu as mãos
diante de si e pronunciou as palavras finais do feitiço que as imobilizaria.
Funcionou.
Com todas.
Foi alucinante, era como trapacear.
Normalmente, esse feitiço você podia ter uma vez na manga e,
passado o tempo do atordoamento, seus inimigos continuavam lutando. Se
podia estar lançando-o o tempo todo, aguentaria sem problemas até que
viesse a ajuda. Se preparou para quando despertassem. Restavam segundos.
Alongou as mãos. Pronunciou as palavras.
Não funcionou.
Tentou com as lobas, com as setas, nada.
Onze snakes muito zangadas estavam entrando na sala. Três delas
muito perto, com suas serpentes ondulantes praticamente a ponto de mordê-
la.
Além disso, desde que tinha lançado o último feitiço se sentia muito
fraca, como se tivesse abusado demais da magia.
Preço?
Seus feitiços tinham preço?
Sua deusa Diana era benevolente, só cobrava preço nos rituais. No
entanto, sentia que não aguentava mais, que ia desmaiar.
Justo nesse momento escutou uma súbita urgência em sua cabeça,
para que aguentasse, e segundos depois ao seu lado apareciam sua senhora,
sua melhor amiga e o bonito íncubo que lhe tinha designado seu avô.
Perdeu a consciência.
O chão a recebeu, frio e hostil.
OITO
Bruxas snake. Treze.
—Vá pegar as do fundo —indiquei a Atzir'itz enquanto sacava
minha adaga e me lançava atrás das três que estavam cravando as serpentes
de suas tatuagens na carne de Marta.
Tínhamos acabado de aparecer a menos de meio metro dela e eu
tinha acabado de vê-la cair no chão. Mostrava alguma contusão, mas nada
que parecesse ser grave. Sem perder um instante, dei rápidos talhos com
minha arma às serpentes, cortando suas cabeças, as quais se dissolveram
sobre a pele da minha amiga, deixando abertas as feridas de suas mordidas.
Os corpos se retraíram até as tatuagens das bruxas, onde se recuperariam
enquanto eu não rasgasse esses desenhos. Uma delas gritou pedindo ajuda
às suas. Três mais se viraram para mim.
O de rasgar tatuagens, já tinha feito uma vez. Não gostavam das
cicatrizes? Sorri e me lancei, não atrás das tatuagens da mais próxima, mas
sim de seu corpo. Para drenà-la com minha adaga. Um golpe forte me
arremessou para a direita, batendo-me contra as grades de uma das celas.
Eu costumava levar minha adaga antimagia sempre comigo, então estava
claro que a da telecinese era mais forte que a bruxa que a tinha encantado.
Sem problemas, a contusão no meu ombro se curaria rápido e as seis snakes
que estavam se lançando contra mim, facas na mão, não eram nenhuma
ameaça desde minha maioridade. Com meu acesso ao poço aberto de par
em par, dancei entre elas. Parei seus golpes, lancei os meus que, em maior
velocidade que os seus, sim acertavam. Em pouco mais de um minuto
estavam as quatro mortas no chão. Um par delas tinha me lançado seus
feitiços na manga. Ou talvez as seis, porque se tinham guardado o de
veneno nem tinha percebido. Por ser meio demônio, era imune. Em algum
momento da luta, da terra saíram raízes fantasmagóricas prontas para me
imobilizar. Foi fácil esquivá-las. Ao mesmo tempo, uma delas mudou suas
mãos para garras e ficou mais rápida. Não o suficiente. Uma vez que as
tinha derrotado, busquei mais inimigas mas não as havia. Atzir'itz tinha
acabado com cinco e minha irmã de magia, após ir proteger Marta, com as
duas que a tinham ameaçado. Embora estas últimas continuassem com vida;
inconscientes, isso sim.
—Você as deixa com vida? —estranhei.
—Não são demônios.
—Não, são piores. São traidoras.
—Na minha cultura todas somos em algum momento.
—Talvez às suas superiores para conquistar seu posto, mas não à sua
magia. Abriram selos e chamaram quem estava proibido.
Arianhrod me olhou muito séria, parecia cansada, quase anciã; um
aspecto dela que tinha se cuidado muito bem de não me mostrar ou ao
mundo até agora.
—Servimos a quarenta e nove deuses. Eu entendo que há sete que
não devem ser incomodados, mas não posso julgá-las por acreditar o
contrário. Em todo caso, Violeta, é muito provável que as suas as castiguem
com a morte.
—Isso é verdade —assenti—. Mas não antes que digam a sua
matrona que você está viva.
Voltou a camada de poder venerável que costumava recobrir minha
irmã, dando solenidade às suas palavras.
—Que assim seja. Que as que não estão de acordo com a nova
ordem que pretendem ter implantado saibam que continuo lutando.
Então, das celas que nos rodeavam, as demais bruxas começaram a
chamá-la, a pedir-lhe ajuda, a dizer-lhe que tinham se negado a jurar
obediência às snake, que sua deusa lhes tinha dito que a autêntica matrona
continuava com vida. Claro, tinham guardado o segredo apesar de que
várias tinham morrido torturadas.
Arianhrod, majestosa, se aproximou das celas e começou a sussurrar
as palavras de um feitiço. Enquanto o fazia e as rendas de suas mangas se
moviam varrendo o espaço ao seu redor com uma graça que nada tinha a
ver com sua idade, eu fiz um gesto com a cabeça a Atzir'itz. Que vigiasse a
entrada, não fossem vir mais bruxas. E, agora que pensava, se tinham
câmeras não precisavam desse par de snakes inconscientes para que lhes
contassem nada. Depois, me aproximei da minha amiga. Estava deitada no
chão. Me agachei e a meio incorporei, elevando sua cabeça e seus ombros:
não reagia. Por sorte, vi que sua respiração era pausada e que seu peito batia
com normalidade. Então, Arianhrod acabou seu feitiço e um arco de
eletricidade saltou de seus dedos a todas as celas, atacando a eletrônica que
as mantinha fechadas. Como se fossem uma, todas elas se abriram de golpe.
Mais de duas dúzias de bruxas saíram e se inclinaram respeitosas diante de
sua matriarca.
—Mmm... sinto interromper, mas temos que ir —intervim—. Estas
snake, o que seriam, as que estavam de guarda na casa? Não tinham magia
poderosa e proibida e eram duras, então não quero dar tempo para que
venha quem sim a tenha. Vamos? —Fiz um estalo com os dedos, me
referindo a que minha irmã nos tirasse como tínhamos entrado.
Ela me olhou e negou com a cabeça.
—A deusa me presenteia o poder do teletransporte, igual Shanetta
faz com a telecinese com suas acólitas. Mas somos muitos. Ou elas me
ajudam a fazer um ritual, coisa que não temos tempo, ou seu guarda-costas
nos abre um vórtice para o sexto inferno.
O aludido me olhou divertido. Sua expressão parecia dizer "guarda-
costas?". Sorri para ele. Claro, como meu avô o tinha mandado comigo,
fazia sentido que o associassem com esse papel. Era... complicado.
Sobretudo agora que sabia que tinha parte humana.
—As cativas podem lançar um feitiço para aguentar a respiração no
meu plano paterno? —perguntou ele.
—Sim. Uma vez fora das celas já podem fazer magia.
—E podem lançar também um para Marta?
—Claro.
—Muito bem então. Você faz as honras, guarda-costas? —
provoquei.
Pode ser que não tivéssemos dormido juntos, mas já não era meu
subordinado e tinha surgido certa camaradagem entre nós.
—Sempre como desejar.
Seus olhos se cravaram nos meus, insinuantes, e me estremeci.
Observei como tomava enxofre de um frasquinho e cuspia no chão. Se
havia alguma proteção na casa contra isso não funcionou, pois o vórtice
dimensional apareceu diante de nós. Peguei minha amiga nos braços e me
enfiei no lago do sexto plano. Minha irmã e as bruxas nos seguiram, o
íncubo por último. Uma vez no ilhote, ao vórtice da árvore. Ah... que pena
não ter meu Lamborghini estacionado perto. Certamente, com meu celular
encharcado, impossível chamar um táxi. Tivemos que andar um bom
pedaço por caminhos e campos.
—Estarão a salvo em suas casas? —perguntei a Arianhrod, me
referindo às cativas.
Estava ficando um pouco confusa com as bruxas. Minha irmã
percebeu e me esclareceu:
—A maioria das localizações das quarenta e nove casas são secretas,
por aquilo de que senão seria fácil demais para suas rivais atacá-las. Agora
mesmo, a Espanha está sob nosso controle, o do seu avô e Ainhoa. Por isso,
várias das que me atacaram abandonaram o país, para fundarem novas
sedes na França pelo que pude averiguar. No entanto, como de muitas de
suas casas não sabemos onde estão, não foram todas embora. Daí que eu
não soubesse onde estava a casa snake com as celas até que Marta me disse
que era onde ela se encontrava e me iluminou o caminho para poder nos
teletransportar através de nosso vínculo.
—E o de você e Daniel estarem em um apartamento anônimo? —
franzi o cenho, não me encaixava direito.
—Quando vocês nos encontraram, em pleno apocalipse, ainda não
estava muito claro o equilíbrio de poder e se por mostrar onde estávamos
poderiam nos atacar. Mas já se passaram quinze dias e agora mesmo
acabamos de resgatar várias das nossas. Já podemos nos defender. De fato,
vou voltar ao Samhain, para consertar os estragos e reconstruir o
matriarcado.
—As traidoras não fizeram o mesmo? Por acaso Esteno, a matrona
snake, não se declarou a nova matrona suprema?
Arianhrod me olhou e sorriu. Pude ver orgulho e sabedoria através
do cansaço que tornava mais lentos seus passos.
—Eu sou a matriarca suprema, enquanto não morrer, não podem me
substituir. Quando perceberam que tinham me dado por morta mas não
estava, você já tinha chegado e me ajudado a me esconder. Claro, sou o
primeiro objetivo delas. Mas agora que tenho apoios, que posso renovar
meu círculo de poder, posso enfim dar a cara e me defender.
—Conte comigo, beolach —interveio Marta que, em teoria
inconsciente em meus ombros, tinha acabado de despertar e estava seguindo
algo da conversa.
—Olá —cumprimentei com um sorriso enquanto parávamos e a
deixava com cuidado no chão—. Você está bem?
—Sim. Eu... desmaiei; mas vejo que a cavalaria veio ao resgate —
sorriu para mim.
—Sempre.
Nos olhamos nos olhos e separei minhas mãos de seus ombros.
Queria saber se podia caminhar.
—Você se vê com forças? Estamos a caminho de casa.
—Sim, acho que sim. E as minhas?
Meu rosto se nublou e ela notou.
—Suas melhores bruxas, aquelas que você levou ao Samhain, todas
morreram, sinto muito. —Vi a tristeza em seu rosto mas, de algum modo,
parecia que esperava—. Às demais moon-wolf encontramos escondidas e
dispersas por Zaragoza. Eram bruxas que, ou não tinham muito poder, ou
tinham sido velhas demais para serem treinadas com o novo grimório, além
de várias meninas e uma adolescente. Nove no total. As demais, ou não
tinham querido abandonar sua casa da lua cheia que tinha sido arrasada
também, ou as tinham encontrado e eliminado. O grimório, por sorte, estava
a salvo. Eu me encarreguei de reuni-las e lhes pôr custódia demoníaca.
—Não... —notei a dor em sua voz. Eu a entendia. Apesar de que
nunca a tinham aceitado muito como acólita, eram sua responsabilidade
desde que se fez sua matriarca—. Eu... falhei com elas.
—Não, Marta. —Arianhrod pôs uma mão sobre seu braço—. Não é
assim. Se alguém falhou com vocês esse alguém sou eu, e com todas; mas
não faz sentido se recriminar pelo que foi ou o que pôde ter sido, já que o
dragão moveu os fios do destino de tal modo que qualquer coisa
relacionada com nossas inimigas não aparece nas vidências. Essa magia...
foi proibida por algo. Então alegre-se pelas que restam vivas e proteja-as até
que possam lutar a seu lado. Quanto a seu oferecimento, Marta, me honra.
Não deveria continuar sendo minha serva, não com os poderes de sua
linhagem de sangue reavivados em você. Mas até que não cumpra com o
terceiro trabalho não posso liberá-la. Tampouco posso encarregá-la de um
simples, a magia de servidão não funciona assim.
Eu tinha acabado de me perder. Poderes reavivados? O que tinha
acontecido no sanctasanctórum das bruxas no dia do juízo final? Tinha
perdido mais do que achava.
—Você realmente quer me ajudar a restabelecer a ordem? —estava
dizendo minha irmã de magia, muito séria.
—Sim —nem hesitou. Essa era minha bruxa!
A julgar pela carnificina que tinha se montado ela sozinha antes que
chegássemos, tinha mudado e muito. Que era mais forte, eu esperava. O da
magia... que diabos tinha escrito nesse grimório da lua cheia? Porque fosse
o que fosse a tinha feito capaz de poder ela só contra muitas.
—Então, seu terceiro trabalho é acabar com a nova líder inimiga, a
que pretende se erigir em matriarca suprema —se referiu a Esteno—. Você
a mate ou pereça em outras mãos, tem sete semanas para acabar com sua
vida. Toda ajuda que eu possa proporcionar, só tem que pedir.
Notei como as matronas das celas, que tinham estado falando entre
elas enquanto caminhavam por trás, tinham ficado totalmente expectantes e
em silêncio ao escutar o do terceiro trabalho. Me virei e lhes dei uma olhada
rápida. Pareciam surpresas. Normal... não todos os dias, no meio de um
passeio por uma estrada rural, se fechava algo tão sério como se nada. A
vida de Marta e sua liberdade estavam em jogo. Não perguntou o porquê
das sete semanas e, como todos tinham ficado em silêncio, eu sim intervim:
—O que é isso do novo poder de Marta?
A aludida, que tinha se posto ao nosso lado enquanto falava com sua
senhora, enrubesceu e não disse nada. Lhe dava vergonha?
—Se trata de um ressurgimento de poder na linhagem das que
adoram a deusa Diana —me respondeu Arianhrod—. Uma índigo, como as
bruxas originais de milhares de anos atrás.
A matriarca gilean, que tinha visto a batalha, assentiu com respeito.
—E desde quando você sabe? —Me virei para minha amiga.
—Eu... desde agora pouco, desde que escapei do plano prisão do
deus dragão, embora soubesse que algo estranho acontecia pelas palavras de
minhas antepassadas e por frases que às vezes escapavam da minha
senhora.
—Eu sabia —confirmou esta—, mas não podia lhe dizer. Minhas
visões do futuro onde lhe contava se somavam a todas aquelas que
acabavam com nossa morte no dia do juízo final. Muitas delas com a sua
antes, sacrificada como oferenda pelas snake às quais enfrentava ao se
inteirar de quem era.
—Como em minhas visões no plano de Shanetta? —perguntou
Marta.
—Sim. —Isso pareceu lhe tirar um peso de cima à minha amiga.
—Minha senhora, todo meu novo poder está a seu serviço. Lhe
entregarei a morte de Esteno.
—E enquanto isso, vamos refazer o matriarcado, onde você vai estar
como uma das matriarcas. Katrina das gilean e Ana das taalam, seus postos
ali, evidentemente, nunca deixaram de ser seus. Então três novas
matriarcas, além de Marta, têm que ser nomeadas como membros do
matriarcado.
Ana era a matriarca de uma casa que se formou séculos atrás quando
a filha segunda de uma matriarca morrigan conquistou outra casa menor e a
usou como trampolim para subir na hierarquia. Passaram a adorar o
elemento terra, ou à deusa mãe como elas diziam.
—Uma pergunta. As morrigan... —duvidei por um momento, não
quis mencionar sua filha para não ser muito doloroso—, a matrona Lídia,
também está com as snake?
—Sim —foi a escassa resposta de Arianhrod.
Então ficávamos só com as gilean, as taalam e um par de casas
menores cujos componentes também tinham sido encarcerados.
Retomamos o passo. Em breve chegaríamos a uma zona com
moradias rurais onde poderíamos pedir que nos deixassem chamar uns
táxis.
Minha amiga podia-se ver que estava ao mesmo tempo triste,
irritada e resoluta. Eu a entendia. E a matriarca snake poderia ter todo um
deus dragão ao seu lado, mas eu não pensava abandonar Marta. Na medida
em que minha nova missão me permitisse, claro.
Porque eu tinha estado pensando e possivelmente era eu a que tinha,
desta vez, que pedir ajuda a ela.
NOVE
Muitas das bruxas das três casas gilean que havia entre as quarenta e
nove, assim como das duas taalam, tinham conseguido se esconder e não
tinham sido encarceradas. Por isso, uma vez que as presas tiveram acesso a
um telefone, a primeira coisa que fizeram foi avisá-las de que fossem ao
Samhain, em cuja planta térrea, a do bar, se apertaram todas. Atzir'itz
convocou os íncubos que meu avô tinha posto a seu serviço e eu Lucas para
pedir-lhe toda a ajuda que pudesse me dar. Pelo que Arianhrod tinha
acabado de nos contar, até que não restabelecessem as quarenta e nove
casas, seriam vulneráveis.
E depois por que não? Porque com seu círculo de poder
restabelecido estariam em condições de lutar. Quanto a de onde iam tirar
quarenta e nove casas, estava claro: as bruxas que continuavam fiéis à
minha irmã, incluídas as moon-wolf sobreviventes, iam ter que fundar
casas, ainda que estas só contassem com duas ou três integrantes. As
traidoras, ou tinham fugido da Espanha ou tinham se escondido. Esta terra
estava carregada de poder, não iam querer abandoná-la tão facilmente. Eu
mesma, Atzir'itz e toda a ajuda que pudemos encontrar tanto entre os
íncubos como entre os lobisomens, guardamos o Samhain enquanto as
bruxas se reuniam e organizavam. Começaram também a realizar
cerimônias de investidura e rituais sem pausa. E as horas foram passando,
lentamente.
Vários íncubos e vampiros estavam apostados em pontos
estratégicos de entrada ao polígono industrial onde se encontrava o
Samhain, com Lucas em pessoa custodiando a porta que dava para a rua. Eu
e Atzir'itz estávamos em um telhado de um galpão próximo, com umas
vistas ótimas à entrada do bar e aos locais da mesma rua. Em uma noite
normal anterior ao dia do juízo final, conforme o tempo passasse e fosse
escurecendo, teriam começado a abrir os bares próximos e os humanos
teriam acudido à rua, ainda que nenhum tivesse podido acessar o Samhain
pelos dois lobisomens que não lhes teriam permitido a entrada. Agora, no
entanto, tinha se feito noite fechada e a rua estava silenciosa como um
túmulo. Já não havia nenhum pub aberto e os humanos tinham aprendido a
não abandonar a segurança de suas casas após o anoitecer. Cansada de levar
tantas horas sem me mover, decidi dar uma pequena volta de
reconhecimento pela zona, ainda que fosse saltando de telhado em telhado
com a ajuda de minhas asas.
—Te acompanho —sussurrou-me Atzir'itz.
—Vamos —indiquei a ele.
Me estiquei um pouco ao me levantar, levava tempo demais sentada.
Ele me olhou, como não, com um brilho âmbar em seus olhos. Eu o ignorei.
Sabia me esticar de modos muito mais insinuantes mas ao íncubo dava no
mesmo. Poderia ter tido na frente uma stripper dançando e teria continuado
me olhando enquanto me desentupia de um modo dos mais práticos e
normais. Talvez, só talvez, poderia me acostumar a isso. A esse nível de
interesse por parte do meu companheiro. Mas não era algo que quisesse
nem cogitar até passar página com esse traidor do Casio.
Me irritei só de pensar nele e notei o olhar estranhado de Atzir'itz.
Dei de ombros e caminhei até a borda do telhado plano do galpão no qual
nos encontrávamos. O próximo não estava muito longe, não precisava tirar
minhas asas: simplesmente abri o acesso ao poço e saltei. A partir dali, foi
um relaxante passeio de telhado em telhado, salto a salto, às vezes com
ajuda das asas se o espaço a cobrir era de metros demais. Em velocidade
cada vez mais elevada, com o guarda do meu avô grudado nas minhas
costas. Eu precisava disso, um pouco de exercício, de me desentumecer
depois de tanto tempo sentada. Ver, não vimos nada. Parecia que as bruxas
inimigas não estavam interessadas em impedir que Arianhrod restaurasse o
matriarcado ou, mais possivelmente, nem imaginavam. Quando voltei a
nosso ponto de partida, esse telhado onde meu traseiro embutido em jeans
tinha deixado uma marca no pó, Atzir'itz sentou-se ao meu lado e emitiu
algo tão estranho como um suspiro.
—Você suspira? Você? —Em parte estranhei e em parte zombei.
—Pensava no castigo de nosso rei.
Esse castigo... Franzi o cenho.
—Bem, isso para mim é um alívio, não nos esquarteja nem nos une
à sua decoração.
Mas uma coisa era que me aliviasse e outra que me fizesse graça
que fossem me dar uma humilhação pública. Porque não me fazia nem um
pouco.
—Para mim também, mas gostei de fazer algo tão humano, tão
normal, como saltar telhados com você.
Me virei para olhá-lo, deixando de observar a entrada do Samhain.
Podia-se ver um pouco nostálgico. Decididamente, era estranho isso de não
ser o único demônio da minha raça com emoções. Deveria esclarecer a ele
que os humanos não se dedicavam a ir saltando telhados? Porque estava
claro que não tinha passado sua infância na Terra como eu e não tinha muito
claro o que se fazia por aqui para passar o tempo.
—Eh... e o que tem a ver isso com o do castigo?
Melhor não, estava especialmente sexy quando mostrava sua parte
menos demoníaca.
—Que temo que depois de me ver obrigado a lhe dar as chicotadas
já não seja igual.
Abri os olhos de par em par, um pouco surpresa. Isso sim que não
esperava.
—Atzir'itz, sei bem que esse castigo tão ridículo e absurdo é coisa
do meu avô. Você não tem culpa que se aproveite de sua fraqueza por mim
para castigá-lo assim. E, de quebra, a mim me humilha diante de toda a
corte. Para ele é uma boa solução com a qual, de passagem, nos mantém
vivos para servi-lo já que somos suas duas melhores armas.
Quando disse o de "fraqueza por mim" crispou ligeiramente os
traços. Imaginei que não era agradável ter sido tão transparente com seus
sentimentos para comigo e que eu... bem... eu continuasse pendente de
Casio; ainda que neste caso fosse para capturá-lo.
—Você tem razão —voltou a me tratar de você, quando já me
tuteava há dias.
—Oh, pois claro que tenho razão! —me exasperei. O que me faltaria
já, que pensasse que por me dar umas chicotadas de nada eu ia olhar mal
para ele—. Isso é uma bobagem e é melhor que não dê a importância que
não tem. Meu avô é assim, adora brincar com seus brinquedos. Como me
deixou me comprometer com o chupa-sangue sem me avisar de que era um
traidor...
Eu queria continuar falando, censurar-lhe se pensava que eu era tão
picuinha como para guardar rancor por um pouco de dor, mas fiquei calada
de repente. Estava olhando para o íncubo em vez de para a rua e, no
entanto, me pareceu ver algo pelo canto do olho. Algo que cruzava com
rapidez pela frente do Samhain e de Lucas.
—Violeta? —sussurrou-me Atzir'itz enquanto levava a mão a sua
arma e olhava para a rua.
Lucas não parecia ter se dado conta, continuava ali apostado como
se nada.
—Acho que vi algo lá embaixo, mas foi muito rápido. Não parecia
tampouco ser humano, e tinha asas —respondi enquanto desembainhava
minha adaga favorita e olhava ao meu redor não fosse ser que tivesse
subido a algum dos telhados.
—Não vejo nada... —De repente sua mão agarrou meu braço e
puxou de mim para a direita enquanto me sussurrava: —Ali.
Não havia dúvida. Em outro dos telhados havia uma criatura que
olhava tanto para o Samhain como para nós dois. Sua silhueta se parecia
com a do meu wyvern, mas com quatro patas e o dobro de grande. Antes
que pudesse reagir e ir atrás dele, abriu duas enormes asas e desapareceu
em um borrão de velocidade, rápido demais para segui-lo até com meus
sentidos aumentados.
—Você pode ver para onde foi? —perguntei ao íncubo.
—Não. Foi embora rápido demais, para a esquerda, e não
conseguiria segui-lo.
—Você acha que era...? —fiquei calada, sem ter muito claro se
pronunciá-lo.
Afinal, eu era um demônio: os deuses eram como palavras maiores.
—O deus dragão? Possivelmente.
Me estremeci.
Se era assim, era mais rápido que eu com meu acesso normal ao
poço. Para ser um dragão, não era muito grande (os tinha visto muito mais
gigantescos no segundo plano) mas, se era um deus, talvez pudesse mudar
seu tamanho a seu bel-prazer, além de sabe-se quantos poderes
extraordinários.
—Pois continuemos vigiando. Chame os demais guardas para nos
assegurarmos de que não matou nenhum e se prepare caso saiba o que as
bruxas estão fazendo e tente impedi-lo.
Por uma vez, tivemos sorte: não tinha atacado ninguém e não
voltamos a vê-lo no que restava de guarda. Isso me fez pensar que talvez
não tivesse entrado na Terra com todo seu poder e que tinha mudado seus
planos de ataque ao ver que estávamos defendendo as bruxas. Em todo
caso, em umas poucas horas mais de vigia (um total de mais de dez desde
que começaram), Arianhrod e suas matriarcas acabaram os rituais e tanto as
casas como o matriarcado foram restaurados.
Solucionado o problema, eu tirei da cabeça a sensação ominosa que
tinha me dado essa criatura e Marta foi ao apartamento onde estava Daniel.
Ia reconstruir sua casa mas não na antiga localização: tinha ficado
destroçada e, além disso, suas inimigas sabiam onde estava. Sorri ao ver
Daniel correr até ela e Marta corresponder-lhe. Se fundiram em um abraço,
em um beijo de alívio ao se verem a salvo, de amor, de felicidade... que me
fez suspirar.
Sim, a mim, que princesa súcubo que eu era.
Me despedi deles e voltei à minha casa. Tinham sido uma noite e um
dia muito longos. Além disso, em breve ia ter que me reunir com os líderes
lobisomens e o dos satanistas, assim como com Lucas e Ainhoa. Eles já
sabiam que meu avô só via uma situação aceitável na Terra: que
exterminássemos o inimigo. Ou seja, nada de equilíbrios de poder ou de
tréguas. Por sorte, eu só ia como assistente, nada de coordenar e dirigir.
Felicidade! Recaía no outro guarda íncubo do meu avô com sangue humano
o de fazer as honras. Se faço memória com as datas, o dia do Armagedom
foi 21 de junho e hoje estávamos a 13 de agosto. Foi no mesmo 1 de agosto
quando meu avô me chamou a seu plano para me deixar as coisas claras e
nesse mesmo dia apresentei Sylth'Atz a nossos aliados. Lucas não gostou
muito de tratar com outro demônio que não fosse eu e Ainhoa menos. Aos
satanistas, enquanto fosse um demônio da família real lhes dava igual,
como aos lobos. Como Sylth'Atz tinha resultado assimilar os sentimentos
humanos pior que eu e que Atzir'itz, tendia a ser bastante seco e a cortar
tudo o que não gostasse, fosse um comentário ou um conselho. A verdade é
que tinha sido divertido apresentá-lo mas, mesmo assim, nem assim me
livrava de ir às reuniões... Nesta em concreto, Ainhoa e Lucas tinham
solicitado que assistisse, o que se ia fazer. Em todo caso, tinha claríssimo
que primeiro precisava de um bom banho e, já que estávamos, dormir um
pouco. Ah, descanso, doce descanso... é que ultimamente, entre que cada
vez parecia precisar menos e com o enrolada que estava, o tinha
subvalorizado.
DEZ
Sylth'Atz se levantou bruscamente da cadeira em que estava
sentado. Poderia ter o mesmo tom de cabelo que Lucas, mas aí acabava toda
sua semelhança. Um era sério e dedicado ao seu trabalho e eu adorava
provocá-lo. O outro era como um muro inamovível: seu rei lhe havia
ordenado recuperar a Terra para os humanos e não pensava permitir que
ninguém lhe pusesse obstáculos, nem sequer a presidente da Espanha.
—Não, isso é inaceitável —acabava de dizer enquanto, com seus
olhos agora muito mais elevados que os do resto, a olhava sem piscar.
E Ainhoa era capaz de não se encolher em sua cadeira, isso que
enfrentava nada menos que um íncubo de beleza sobrenatural. Diria que
ponto para ela, mas, na realidade, eu acho que seria para Lucas. A mulher
estava voltando a se apaixonar, embora não confessaria a si mesma estando
tão recente a morte de seu marido. Mas, tanto isso como seu senso de dever
lhe permitiam nesses momentos não estar dizendo sim a tudo o que
Sylth'Atz quisesse ordenar-lhe.
—O exército não vai te dar um batalhão para lutar na França —
negava-se Ainhoa—. Precisamos de todos os nossos homens para terminar
de limpar nosso país de bruxas, vampiros e mutados indesejados.
—É claro que você vai me dar se quiser que ajudemos a libertar a
Terra.
Não, outra vez não... pensei. Agora ela volta a ameaçar se unir ao
império Vaticano e ele a retirar nossas tropas demoníacas... Será que vou ter
que voltar a intervir para acalmar os ânimos?
—Ainhoa, calma, ele não está te pedindo nada que não seja
cooperação aliada —interveio Lucas e eu teria lhe dado um beijo. Sim, por
favor, escute-o, que você dá mais atenção a ele do que a mim.
A conversa continuou por um bom tempo e Ainhoa acabou cedendo.
Eu ali já não pintava nada, não desde que Sylth'Atz estava no comando.
Assim que acabou, me aproximei de Lucas. Pedi para falar com ele e fomos
embora juntos.
—Eu não volto para mais nenhuma reunião, deixe isso claro para
Ainhoa.
—Imagino, seu avô colocou um substituto implacável para você.
Dei de ombros.
—Bem, eu também tenho minha tarefa, você já sabe.
—Meu pai —assentiu, sério—. E como vai?
—Bom, por enquanto mal.
Tínhamos saído do edifício e estávamos caminhando pela rua,
pouco transitada desde o apocalipse.
—Continua sem ter nenhuma pista?
—Sim. O canalha se esconde bem, é como se a terra o tivesse
engolido.
—E no entanto continua movendo os fios da maioria dos vampiros.
Nos países sob seu controle, os vampiros que não querem ver nossa raça
como marionetes ou aliados dos alquimistas, estão escapando como podem.
Na América, Louisiana e outros estados resistiram. Os vampiros antigos
que ali residem se negaram a se unir a ele. Quase todos os vampiros
rebeldes desse lado do charco estão jurando lealdade ao que agora se
conhece como o rei da Louisiana. Aqui, na Europa, estão vindo a mim, me
pedindo ajuda e se unir aos meus.
—Você está se tornando todo um referente. —Sorri para ele—. Por
favor, não acabe como seu pai.
Ficou muito tenso ao escutar minhas palavras, apertando os dedos
em um punho que tentou me ocultar em vão sob a manga de sua jaqueta de
couro preto.
—Eu não sou um traidor. Eu sou leal aos meus princípios e fui tão
enganado quanto você. Não se atreva a voltar a me comparar.
—Desculpe. —Ele tinha toda a razão. Eu tinha passado dos limites e
não tinha sido justa. Era só que eu sempre os tinha visto muito parecidos e o
poder corrompe... Se não que o dissessem ao meu tio, o que eu mesma me
encarreguei de deixar bem morto.
—Além disso, você já sabe que, se precisar da minha ajuda para
capturá-lo, ficarei encantado.
—Claro. Agora o que eu queria te perguntar é se algum dos
vampiros que vieram de longe pedindo asilo a você sabe algo, qualquer
coisa que possa me ajudar a localizá-lo.
—Não. Os novos guardas de Casio, mutados, matam os que não se
unem a eles. Mas ninguém sabe onde ele está. Se proclamou Triunvirato
Único e líder absoluto da noite e da nossa raça. Mandei alguns dos meus, da
minha linhagem de sangue, se infiltrar, fazê-los acreditar que estavam com
Casio. Nenhum voltou e senti como se rompia meu vínculo com eles com
sua morte.
—Porra!, sinto muito.
Não me respondeu, mas vi por como se tensionava uma veia em sua
testa que lhe resultava doloroso. Continuamos em silêncio até que Lucas se
deteve diante de um semáforo que continuava funcionando, embora mal
houvesse veículos nesta Espanha pós-apocalíptica.
—Nossos caminhos se separam aqui —me disse.
Continuava com o cenho franzido, levava assim praticamente o
tempo todo.
—Lembre à sua mulher que tenho trabalho, que não posso continuar
assistindo às suas reuniões ou ficando com ela como se eu ainda estivesse
no comando dos desígnios do meu avô na Terra.
—Não é minha mulher —aprofundou as rugas do cenho.
Não me aguentei, dei uma cotovelada nele. Não me importava que
seu pai fosse escória: ele continuava sendo Lucas e não pensava em mudar
o modo de tratá-lo.
—Vamos... que não estou cega, é questão de tempo.
Ri e fui embora. Ele não levou nada bem, pior do que quando eu
flertava com ele. O que me confirmou o que suspeitava: a coragem e o
senso de dever da humana tinham lhe tocado fundo.
Escutei-o pisar na rua com força, irritado.
Sim, tocado muito fundo. Muito.
E para mim ótimo se estava zangado, porque continuávamos em
guerra e eu queria sangue. Além disso, odiaria ter que matá-lo se acabasse
se apiedando de seu pai e pretendesse perdoá-lo.
ONZE
—Eu posso te ajudar —Marta soltou para mim com um grande
sorriso.
Eu tinha ido vê-la. A mulher estava bastante ocupada, sobretudo
agora que era membro do matriarcado, mas tinha reservado um tempinho
para tomar uma cerveja comigo. Ei, e nada menos que no bar do Samhain.
A verdade é que era de manhã e estava sem música e meio vazio, mas já
que ela tinha estado há pouco reunida no porão com Arianhrod, me
aproximei para não fazê-la perder muito tempo.
—Não me fode, e me diz isso agora? —respondi a ela.
Porque sim, estávamos falando do ponto morto no qual eu me
encontrava com a investigação de onde diabos se escondia esse sugador
traidor. A verdade é que suspeitava que minha amiga poderia me ajudar,
que possivelmente a magia me iluminaria ali onde eu era incapaz de ver
como continuar avançando.
—Bem, há uma parte do grimório da lua cheia, a dos feitiços de
mais nível, que não é precisamente simples de decifrar e, além disso, até há
pouco não tinha me ocorrido que esse feitiço em concreto poderia servir a
você.
—Diga-me, qual é? —perguntei mais que interessada enquanto dava
um bom gole na minha cerveja.
—Mealladh na gealaich. Ilusão de lua. Parece que minha casa é uma
das poucas que podem fazer esse tipo de feitiços e, sem dúvida, a única que
os tem em alto nível.
—Uma ilusão? O quão boa?
—Segundo o que minhas antepassadas me confirmaram, o suficiente
para fazer você passar por uma vampira diante de um monte desses
nosferatus.
Sorri.
—Você sim que sabe como fazer feliz uma amiga.
—Bom, você já conhece minha tarifa, mas como vai me ajudar com
o meu, essa te deixo de graça.
Bufei. Ela tinha coragem...
—E considerando minha desinteressada ajuda no Vaticano e que
você já não tem problemas em ganhar a vida, eu acho que vai me deixar
todas as outras de graça.
—Certo. —Deu de ombros—. Não é questão de você começar a me
cobrar.
Começou a rir.
—Pois não tinha me ocorrido, mas tampouco é uma ideia tão ruim...
—brinquei—. Bom, e você tem alguma vampira em mente para me fazer
passar por ela ou vai inventá-la?
—Uf, poderia inventá-la mas, considerando que não sou muito boa
imaginando detalhes, ficaria péssimo. Comentei isso agora há pouco com
minha senhora e ela me sugeriu que fale com Lucas, que com certeza tem
fotos ou vídeos de alguma que podemos copiar. Que nos passe também
informação de como se comporta, e pronto!
Útil que o de que os vampiros não se refletissem em espelhos ou
saíssem em fotos não fosse mais que um mito.
—Hmm... e se me descobrem porque ela está em dois lugares ao
mesmo tempo?
—Homem, mulher, que Lucas nos passe alguma que tenha morrido
no apocalipse e seja algo que ninguém mais saiba. Por exemplo, que só
saibam seus próximos e que estes sejam família de Lucas. Ou que seja uma
rival que matamos e os de Casio não sabem se continua viva.
—Isto último eu gosto mais, mas seria mais difícil me fazer passar
por ela... Vou perguntar a Lucas. E como vai com o seu? —me referi a seu
último trabalho.
—Bom, Esteno está na França, confirmado. Continuamos tentando
localizar as casas que lhes restam na Espanha, para atacá-las, mas se
escondem bem. Aí estamos. —Voltou a dar de ombros—. A taça, o cálice
que Arianhrod me pediu no Vaticano, era um instrumento de sua casa que
também tinha roubado a Inquisição. Ela o usa em seus rituais, a ajuda a
aumentar suas vidências e a se comunicar com sua deusa.
—E você com a sua, Diana? —me interessei.
—Nada. Apesar do de ser índigo, não apareceu para mim como
Morrigan para minha senhora. Em todo caso, estamos nos preparando. Com
a ajuda do deus dragão, elas vão usar sacrifícios fortes demais para sua
magia, como sacrifícios de alma. Alguns animais têm alma, todos os seres
humanos a têm. Podem começar com cachorros ou gatos, que lhes resultará
mais simples, e passar a raptar pessoas para arrancá-la. Isso potencializará
seus feitiços muito mais do que nós possamos potencializar os nossos. Nem
te conto se sacrificam a alma de uma das suas ou da própria feiticeira.
—Dá para viver sem alma? —Franzi o cenho.
—Não. O dragão ou deus ao qual servem a devora e o corpo cai
morto.
—Má coisa.
—Com esses sacrifícios, podem fazer um ritual mais poderoso do
que possamos fazer nós; embora algo nos salvará o que eu seja índigo e
Arianhrod seja muito poderosa.
Assenti.
—Em todo caso, Marta, não estou muito a par da magia de vocês.
Por que a alma é tão forte?
—Ok. Vou te fazer um resumo rápido. Temos quarenta e nove
deuses, como você já deve saber. Estes se agrupam em sete famílias: os
corpos celestes, os animais ancestrais, os elementos, a dor, os sacrifícios, a
abundância e as artes. Diana, por exemplo, é a deusa da Lua, um corpo
celeste. A família da dor não tem deuses. Se refere apenas a que quanto
mais dói, mais poderosa é a magia. A dos sacrifícios sim os têm. Então,
menos a da dor todas as outras têm sete deuses, somando um total de
quarenta e dois. Assim por exemplo, você pode sacrificar um bem material,
um sentimento ou emoção, a memória, sangue, carne que seria mutilação,
saúde ou vida. Se por exemplo sacrifico uma emoção, dá pouco poder
sacrificar que adorei cheirar uma rosa esta manhã, mas muito se fosse meu
amor por Daniel. Se é saúde, tirar um percentual de visão em um olho me
daria muito mais poder do que sacrificar uma emoção pequena, mas menos
do que tirar trinta anos de vida. Como vê, o mais poderoso é sacrificar vida,
e seguindo a regra da dor, seria a vida própria ou a de um ser ao que ame
mais que a si mesma. No entanto, os deuses proibidos se enroscam sobre os
outros 42 de tal maneira que são um oitavo componente, mais poderoso.
Assim, se dos sete corpos celestes o mais poderoso é a Lua, há um oitavo,
Plutão, que lhe ganha em poder. E, seguindo este padrão, o dragão é o
oitavo animal, o mais poderoso, mais que o lobo. E a alma é o maior
sacrifício que se pode fazer, mais que a vida, já que, ainda que perca a vida,
pode conservar sua alma imortal, mas não se a sacrifica. Entende agora?
—Sim. Mas não vejo vocês tão mal. Quer dizer, não abundam as
bruxas sem braços ou velhíssimas.
—Claro, se quer sacrificar algo, é mais simples utilizar um animal
do que a si mesma para fazê-lo, ainda que seja menos poderoso. E o sangue
é muito poderoso e não há problema em derramar o nosso enquanto não
seja demais. Além disso, a maioria dos deuses só exigem sacrifícios nos
rituais. Pode-se dizer que os feitiços nos saem de graça, sem este tipo de
preço.
—Magia sem preço —sorri—. O preço será que sua deusa lhes
presenteia, pois sempre o tem.
—Sim, leis do universo —assentiu. Ia acrescentar algo, mas um
radiante sorriso iluminou seus olhos e saudou.
Me virei para ver quem se aproximava por trás de mim. Era Daniel.
Me resultava fascinante que Marta tivesse aproveitado estes tempos de crise
para deixar claro a qualquer bruxa: Ele era seu, não uma fraqueza. Não
pensava renunciar a ele por não poder garantir sua segurança. E todas o
tinham aceitado. Como não fazê-lo... se a própria matriarca suprema
aceitava o rapaz dentro do Samhain e Marta era agora a bruxa mais
poderosa.
—Olá, Violeta —me cumprimentou após dar um beijo em sua
namorada—. Como está?
—Bem, mas já estava indo —me levantei—. Tenho que ir ver
Lucas.
—Mande lembranças a Atzir'itz.
—Claro.
Tinham se tornado amigos. O íncubo o tinha ajudado quando Marta
quis deixá-lo. E eu demorando tanto para me dar conta de que tinha alma...
Inclinei a cabeça, em um gesto irônico comigo mesma, e acabei de
me despedir.
Falando de íncubos... devia a mim mesma uma conversa pendente
sobre quem ele era, só que eu continuava evitando todo contato que não
fosse estritamente profissional. Estava sendo estúpida, sabia. Mas assim ia
continuar sendo até que tivesse a cabeça de Casio.
DOZE
Nova Orleans. Berço do vodu e, se desse ouvidos aos rumores, sede
do recém-proclamado rei dos vampiros na América. Seu sangue de régio
abolengo não tinha nem a metade da antiguidade de muitos vampiros
europeus porque, para começar, o nosferatu tinha chegado ao outro lado do
charco vindo da Espanha, Inglaterra e França. No entanto, o ambiente de
decadência que envolvia a cidade, tão denso que se podia saborear se ao
mesmo tempo que respirava entreabria a boca, tão lânguido que parecia
mergulhar seus habitantes em um transe, ah... era delicioso. Nada a ver com
as urbes europeias.
Ao caminhar por suas ruas, me perguntei por que diabos não tinha
vindo antes.
Ah, sim, claro: supunha-se que sim tinha vindo antes; de fato, que
tinha nascido aqui como humana fazia quase trezentos anos. E o bonito
vampiro que me acompanhava, um loiro cinza de longos cabelos, era meu
consorte e filho de sangue ao mesmo tempo. Encantador, não é?
Pois era, de todas as opções que Lucas tinha me apresentado, a que
mais tínhamos nos convencido Atzir'itz e eu. Sim, o sexy guarda-costas
continuava comigo, me ajudando, e Marta nos tinha enfeitiçado para que
fôssemos exatamente iguais a ditos vampiros. Sua ilusão era tão poderosa
que nos variava tudo: aspecto, temperatura corporal, cheiro... inclusive
nossos gestos, esses que vêm tanto pela genética como pelo que vimos fazer
a nossos progenitores, se modificavam para ser os de Dennise Mathieu e
Dominique Lefebvre. Ambos tinham morrido durante as batalhas do dia do
juízo final, mas ninguém tinha sido testemunha. Residentes em Nova York,
mas ela nascida em Nova Orleans, estavam de viagem pelas Canárias
quando o apocalipse aconteceu. Tinham morrido nas mãos de um lobo que
não tinha sobrevivido e de um dos filhos de Lucas. Assim, este nos tinha
contado onde estavam seus restos e tínhamos podido pegar uma amostra
para que Marta fizesse a ilusão tão real. Cabelo e roupa, hein, nada de
pedaços podres de carne. Como fazia muito tempo que Dennise não pisava
em sua cidade natal e ele nunca tinha estado ali, o risco de sermos
reconhecidos por algum próximo não era muito grande. Ela nunca
converteu sua família humana e seu sire, o vampiro que a fez, era outra das
baixas na guerra. Menos mal, porque por muito boa que fosse a ilusão, não
podia fingir uma chamada dessas ameaçadoras que faziam os chupa-
sangues com sua linhagem de sangue.
—Curioso que tenham fama de ter bruxas quando todas as
autênticas estão na Espanha, não é? —comentei a Dominique enquanto
caminhávamos pela rua à noite.
Os edifícios eram preciosos, coloniais, e parecia que aqui não
tivesse chegado o fim do mundo. As pessoas caminhavam como se nada e
os vampiros vadiavam à vontade.
—Bom, de vodu sim há bruxos.
—Ahá, masculinos. O como os deuses e deusas outorgam o dom de
sua magia me parece dos mais curiosos —me referi a que não tinha visto
nem um varão com poderes entre as quarenta e nove casas.
Meu bonito loiro, nem a metade de sexy e arrebatador que o íncubo,
me acariciou o braço. O canalha estava levando a sério isso de se meter no
papel, pois se supunha que éramos um casal. E eu deveria fazer o mesmo,
então tentei pensar como ela e deixei que minha cabeça se apoiasse em seu
ombro por uns segundos, enquanto continuava caminhando agarrada pela
cintura. E o cheirei. E não cheirava ao íncubo. Genial. Sorri. O aroma e o
tato de Dominique não me provocavam nada: nem um calafrio, nem uma
carícia à minha alma, nem um desejo urgente de arrancar-lhe a roupa.
Genial.
Assim ia ser simples fingir ser Dennise. E não me importava que ele
aproveitasse para me apertar contra seu peito, afinal, eu tampouco cheirava
como Violeta.
Aproximei meus lábios de sua orelha, como se fosse sussurrar-lhe
palavras próprias de uma amante.
—Sério que você gosta de vampiras? Eu achava que as morenas não
eram sua praia —disse a ele em vez disso.
Ele riu e agarrou com mais força minha cintura enquanto
continuávamos passeando com languidez, seguindo a corrente de pessoas,
sem destacar.
—Não me importa que cor de cabelo ou forma você adote, eu sei
ver além.
Merda. Isso tinha sido um golpe que não esperava. Agora sim bateu
mais rápido meu coração e se acendeu meu sangue. E isso eu não queria. O
divertido era que, com esta maravilha de feitiço, quando meus olhos
brilhavam em âmbar se viam vermelhos. Então, apesar de tudo, a única
coisa que estava fazendo era tornar mais crível a ilusão.
E deve ter sido assim, pois havia olhos que nos vigiavam desde que
tínhamos posto o pé na cidade e, quando paramos em um pub para tomar
algo, sentados em uma mesinha discreta, um dos nosferatus se aproximou
de nós.
—Denisse Mathieu e consorte —nos disse enquanto nos fazia uma
reverência e se sentava ao nosso lado em uma cadeira vazia—. Vocês
tiveram sorte de poder escapar da Espanha. Como foi o voo?
—Bem —lhe respondi. Pois sim que tinham olhos, se nos tinham
seguido desde que iniciamos a charada nas Canárias ou desde que
aterrissamos nos Estados Unidos—. Com quem tenho o prazer de falar?
—Eu e Pierce —se referiu ao meu suposto sire morto— estávamos
na mesma linhagem de sangue. Conheci você uma vez, quando era uma
neófita, mas é provável que não se lembre de mim.
—Oh, sério? Meu senhor tinha muitos amigos, demais, e eu,
naquela época, era algo... incontrolável.
Sim, tinha feito o dever de casa. Nem fodendo ideia de quem era
este vampiro, mas a gente podia improvisar, imaginar o que Denisse teria
respondido sabendo que foi uma das neófitas mais difíceis de controlar que
seu sire tinha tido. Ou seja, um puto grão no cu.
E, por resposta, ele começou a rir. De algum modo, parecia que
tinha passado seu teste. (Bendita Marta, que poder você tinha agora).
—Desde a queda da Europa —era assim que chamavam?—, nos
tornamos um pouco mais cerimoniais por aqui. Se quer ficar na que é sua
casa, deve jurar lealdade ao rei.
—Claro —sorri a ele deixando brilhar em âmbar/vermelho meus
olhos como se apenas pensá-lo me produzisse prazer—, será uma honra,
mon ami.
—Então, querida, desfrutem da taça. Antes que acabe a noite
viremos buscá-los.
Se despediu e foi embora, me deixando me lambendo como uma
gata após encontrar o rastro de seu rato.
—Poderá nos descobrir? O que implica esse juramento? Sangue e
que possam ver que não somos vampiros?
—Bom —tirei importância com um dos gestos que imaginei que ela
faria (e se não desse igual, porque o feitiço de ilusão o mudaria)—, sangue
com certeza. Mas não nos descobrirão e, simplesmente, se o rei desejar nos
dar ordens baseadas nesse sangue, não acontecerá nada porque não somos
vampiros. Esse seria o momento no qual sim nos descobriria, então vamos
nos fazer suficientemente submissos para que não sinta a necessidade de
nos dar de verdade uma ordem.
—Lucas? —me perguntou pela fonte destes dados.
—Sim, seus informantes lhe disseram que é o modus operandi do
novo rei.
—Esperemos então, ma chérie. Outra taça?
—Não, com tomar uma de sangue como se fosse vinho, já tenho
mais que suficiente. Penso apreciá-la o quanto for preciso.
—Bom, então só outra para mim —apurou a sua e chamou uma
garçonete.
Maldito demônio. O nosso são as almas, mas não se importava de
beber sangue. Comecei a rir, decididamente se notava que o meu era meia
parte humana e o seu um quarto.
E assim, conversando como dois apaixonados, passamos as horas
até que vieram nos buscar.
TREZE
Por que íamos nos infiltrar na corte do rei nosferatu americano
quando estávamos procurando o europeu?
Porque nenhum dos vampiros que os nossos mataram da linha de
Casio me dava boa espinha. Ou eram próximos demais de alguém, com o
qual teriam nos pego, ou tinha havido testemunhas demais de sua morte.
Estes dois, Denisse e Dominique, eram perfeitos. Só tínhamos que ver se o
autoproclamado rei da Louisiana tinha contatos na Europa ou podíamos
convencê-lo de que nos mandasse para lá para iniciar umas conversas
diplomáticas com Casio. Tinha mostrado sua rejeição aos mutados, de
acordo, mas isso não queria dizer que ambos os líderes não pudessem estar
em contato ou negociar outros assuntos. Política... para mim não havia nada
mais amoral, sem dúvida fedia; por isso eu feliz de que a levasse toda meu
avô.
E ali estávamos, diante do rei, o qual tinha um trono que... bom... se
eu só tivesse visto o da TV em True Blood e o tivesse magnificado para
fazê-lo mais parecido ao da corte de Luís XIV na França, enchendo toda a
sala de quadros, suntuosas tapeçarias e estátuas... bom... não teria estado
mal. Inclusive melhor que o de Arianhrod. Mas claro, eu não era objetiva,
que tinha visto o do meu avô. Sugadores de sangue que queriam se fazer de
interessantes e poderosos para mim... Quando se rodeassem dos corpos
vivos e agonizantes de seus inimigos, falaríamos.
Dominique e eu fizemos ao rei uma colorida reverência. Claude I.
Um loiro com longo cabelo encaracolado e de rosto mais feio que um dos
extintos demônios do primeiro plano. Teria carisma, isso com certeza, já
que todos os vampiros o tinham, pelo menos com os humanos.
—Denisse Mathieu, filha de Nova Orleans, —estava me dizendo
enquanto me olhava com entediada indiferença. Aposto que estava ensaiada
—, lhe damos as boas-vindas à corte. Se aproxime com seu consorte e
jurem lealdade.
E agora era quando eu escolhia personalidade com as poucas
pinceladas que tinha desta vampira. Poderia me mostrar com certo medo
diante da majestade de Claude. Ou desafiante. Ou decidida. Escolhi o
último e com certa dose de independência. Queria chamar sua atenção, que
me valorizasse. Por isso esta chupa-sangue era tão perfeita: duvidava muito
que aqui a conhecesse alguém. Sua vida tinha acontecido em Nova York e
tinha sido do tipo eremita: reclusa em seu apartamento de luxo,
encomendando "comida" em domicílio de entre seu próprio rebanho e com
poucas saídas sociais. Com certeza, se tivesse nascido neste século, teria
desfrutado dos videogames.
Avancei, seguida pelo meu íncubo favorito, até chegar aos pés do
trono. Estava sobre uma plataforma elevada por causa da qual, quando me
ajoelhei, minha cabeça ficou um pouco abaixo dos joelhos do rei. Pelo
canto do olho, vi Dominique fazer o mesmo. Então, se aproximou outro
vampiro, um mais jovem, com uma pulseira de mão cobrindo de uma fina
rede de metal desde seu pulso até seu dedo indicador, no qual acabava em
uma falsa e afiada unha curva de ferro. Com decisão, me agarrou pelo pulso
e realizou uma incisão com dita unha. Evidentemente, a pequena ferida não
ia se curar assim como assim, mas o glamour da ilusão de Marta fez com
que parecesse. Bendita bruxa. De verdade que por um momento temi o pior.
Quanto ao corte, só me fez a mim. Como Dominique era filho de
sangue de seu sire Denisse, não era necessário que ele jurasse nada. Ou
seja, tipo feudal. Pirâmide de poder pura.
—Repita comigo —me indicou o mestre de cerimônias—. Eu,
Denisse Mathieu, juro lealdade e obediência ao meu rei Claude I. Lhe
ofereço meu sangue como tributo e laço. E minha vida será o preço se
romper meu juramento.
—Eu, Denisse Mathieu, juro lealdade e obediência ao meu rei
Claude I. Lhe ofereço meu sangue como tributo e laço. E minha vida será o
preço se romper meu juramento —repeti enquanto não separava meus olhos
dos do rei.
Queria que visse que o fazia livremente e que estava decidida a ser
um membro útil e valioso de sua corte.
O mestre de cerimônias se retirou após minha última palavra e meu
novo "senhor" me indicou que podíamos nos levantar. Assim o fizemos e
retrocedemos uns passos até nossa posição anterior. Então, sua majestade
nos dispensou com cara de tédio, mas eu pude ver certo interesse em seus
olhos. O tinha. Agora só devia me aproximar quando descesse do trono e se
misturasse com os seus como tinham me contado que costumava fazer ao
final da noite. Meu objetivo estava claro: ir como embaixadora à corte de
Casio. Bom, corte, conselho de um único conselheiro ou como diabos
quisesse chamá-lo.
Pois ia ser que não...
Tínhamos passado umas quantas horas fingindo ser esse par de
chupa-sangues apaixonados, eu acho que com Dominique se divertindo
demais, e por fim chegou o momento no qual o rei descia de seu trono e se
misturava com seus súditos, os quais estávamos tão lindamente bebendo nas
salas anexas à do monarca, decoradas com o mesmo toque de requintada
ostentação e decadência. Assim que vi a oportunidade, me aproximei dele.
Considerando que com minha atitude já tinha insinuado que buscava um
pouco de poder através de ser seu peão, me escutou com certo interesse.
Quando nomeei Casio, não pôde evitar me mostrar que era um assunto que
lhe preocupava. Mas, oh como o tinha julgado mal! Não queria negociar
com ele: queria matá-lo. Olha, se não fosse porque era uma maldita
sanguessuga, até me cairia bem. Mas, na minha experiência, só havia um
vampiro decente (Lucas) e apenas até que como seu pai me demonstrasse o
contrário.
—Deseja que o mate? —não precisei me fazer de surpresa—. Mas,
meu senhor, não me interprete mal, para mim é uma honra ser sua espada,
mas com meus escassos séculos de vida não sou páreo para um vampiro
bimilenar.
—Esquece que pode estar potencializando seus poderes com os
alquimistas.
Pois olha, sim, isso não tinha considerado... Por enquanto não tinha
precisado, mas como nos sete planos estavam perdendo, sabe-se lá.
—Com mais razão, então. Imagino que talvez tenha um plano ou
possa me dar ajuda. Não gostaria de manchar seu nome com uma tentativa
fracassada.
—Bem, a verdade é que já estava pensando em eliminar o assassino
de triunviratos, a escória que desprestigiou nossa raça ao misturá-la com
outras, que zombou de nossas leis e tradições. No entanto, não quero me
arriscar a perder meus homens de confiança e você, minha querida Denisse,
acaba de chegar e de se oferecer voluntária. Que tipo de monarca ruim eu
seria se me negasse a tão doce oferecimento? —sorriu ladino para mim.
Que canalha... Sou eu a pobre Denisse e já podia ir me despedindo
de ser uma não-morta. Imaginei que me queria para sondar o terreno e, se
saísse mal, negar que ele tinha estado por trás pois, afinal, eu não era mais
que uma recém-chegada a sua corte.
—Claro, meu rei —bordei a atuação de ter me visto sobrepassada,
de sentir o medo e saber que não podia fazer nada porque tinha jurado
lealdade a ele com sangue.
Senti como seus dedos acariciavam minha bochecha. Minha parte
humana sentiu nojo, a demônio vontade de arrancá-los com uma mordida e
a fingida... bom, deixei que Denisse se estremecesse como uma gatinha
extraviada à qual prometem um pratinho de leite. Os olhos do rei faiscaram
em vermelho.
—Não se preocupe, minha doce vassala —suavizou a voz—. Você é
linda, pode ser fácil para você seduzi-lo e assassiná-lo quando estiver mais
vulnerável —Este não conhecia Casio, não era vulnerável nem quando
estava transando com seu suposto amor—. Depois, volte para mim e a
recompensarei.
Assenti como se a promessa de um prêmio me satisfizesse e
afastasse um pouco o medo de saber que a missão era suicida.
—Um título? —ronronei.
Duvido muito que minha atuação resultasse crível se não tentasse. O
rei começou a rir.
—Claro, um título também.
Lhe dei as graças e ele se retirou, entabulando conversa com outros
de seus súditos. Atzir'itz, digo Dominique, tinha bordado os ciúmes. Me
aproximei dele com um sorriso.
—Vamos, bonitão, você sabe que não pode competir contra um rei.
Seu olhar foi todo um poema. Comecei a rir e lhe dei um beijo nos
lábios, metida em meu papel. Então nos retiramos. Aos olhos de todos, eu ia
consolar o pobre amante que sentia medo de me perder nas mãos de seu rei.
Na realidade, íamos falar de como, me fazendo passar pela
embaixadora de Claude I, ia pedir para me reunir com Casio e arrancar-lhe
o coração com minhas garras. Porra, isso não. Que meu avô o queria vivo.
Bom, pois os ovos; esses meu autêntico rei não precisava.
E falando de ovos... eu ia precisar de algo mais que um bom par
porque se pude com Casio no Apocalipse foi porque meu senhor tinha
triplicado o acesso ao poço. Se não repetisse, me anotei mentalmente que
tinha que interrogar Atzir'itz assim que chegássemos a nosso alojamento no
hotel. De verdade que precisava saber que tipo de poder ele tinha.
CATORZE
Uma vez fechada a porta do quarto de hotel, me separei dele como
se queimasse. Não estava gostando nada disso de fingir ser outra. Bastantes
décadas tinha me levado para me conhecer e me aceitar para agora tentar
pensar como uma sanguessuga.
—Ei, Denisse, olha que você é travessa —me disse enquanto me
agarrava por trás e colocava seus lábios em minha orelha. Ao mesmo
tempo em que fingia mordiscá-la, me sussurrou que podia haver câmeras.
Pois que puta merda. Me soltei com um golpe de quadril e apaguei a
luz.
—Assim melhor? —ronronei e soou falso demais.
—Microfones? —me sussurrou.
—Oh, sim, amor, um pornô para ambientar.
Me aproximei da televisão, busquei o canal de pagar e subi o
volume. Em seguida, o agarrei pelo braço e arrastei até a cama, onde lhe
indiquei que se sentasse ao meu lado.
—Já podemos falar, simplesmente não eleve demais a voz —lhe
disse.
—Minha senhora, você não está um pouco tensa? Para ser que acaba
de enganar o rei da Louisiana e é uma enviada de sua corte para matar o
traidor, deveria estar menos zangada.
—Certo, você tem razão. Talvez não devêssemos ter escolhido um
casal de amantes, não gosto de estar o dia todo tão melosa.
Tinha que reconhecer-lhe que quando queria era um encanto pois
tinha deixado no ponto para ele e não entrou no jogo. Nada de insinuar se
me deixava nervosa ou queria levar a brincadeira um passo adiante. Em vez
disso, ficou em silêncio. Estávamos no escuro mas pude ver seu rosto:
estava sério.
—Bom —continuei—, isto vai ficar melhor quando chegarmos
junto a esse bastardo e eu puder ser eu mesma para enchê-lo de porrada.
—Não duvido.
A ideia lhe agradava, disso não tinha dúvida. Suspirei. E deixei que
fosse embora este estado irritado no qual tinha mergulhado. Sinceramente, o
de ter que fingir tampouco era para tanto. O que sim me incomodava era tê-
lo tão perto, que me pegasse pela cintura, beijá-lo... Isso que meu coração
estava bastante insensível, como rasgado e congelado, desde que descobri a
traição de Casio.
—Bom, Atzir'itz, preciso saber quem você é. Essa puta sanguessuga
tem dois milênios de idade e não estará sozinho. Sem o acesso triplicado ao
poço, não posso vencê-lo. Quero saber do que você é capaz.
Oh, por um momento me olhou... demônios como me olhou. Só por
uns instantes, meu coração gelado deu uma forte batida, uma que fez
cócegas em meu corpo e que minha garganta conteve o fôlego como se
fosse uma adolescente a qual o garoto mais sexy e interessante do colégio
acabasse de reparar nela e parecesse querer devorá-la com os olhos.
Pfff...
Menos mal que só foi um instante, porque se meu coração e minha
mente tinham concordado em algo era em que nada de amor ou sexo até
que esse bastardo estivesse morto ou torturado para sempre na sala do trono
do meu avô.
—Sou bisneto do rei. Meu avô é irmão do seu pai, Vrsur'Mtz.
Assenti. Não era o sádico que assassinei, bom saber. Ainda que
tampouco teria mudado nada.
—Como já lhe confessei, um quarto do meu sangue é humano. Meu
avô, como seu pai, engravidou uma fêmea humana. Bom, uma... Todos os
filhos do rei estavam envolvidos no experimento e deixaram grávidas
bastantes mulheres. —A estas alturas, já não me surpreendia. Sabe-se lá se
teria algum meio-irmão entre os guardas do meu avô...—. Muito poucas das
crias sobreviveram o suficiente para chegar à maioridade. No meu caso,
diferente do seu, me criei em todo momento no plano demoníaco e, quando
viram que assim não aprendia a lidar com as emoções, me mandaram para a
Terra. Nunca me disseram onde estava minha família de sangue humana e
eu preferi assim. Só teria colocado eles em perigo e, além disso, tinham me
inculcado que os meus eram os demônios. Meus dois pais morreram em
uma das guerras entre planos. Após viver mais de cinquenta anos na Terra,
voltei ao sexto plano para me tornar um guarda do meu bisavô.
—Guerras entre planos? Quantos anos você tem?
—Cerca de quatrocentos.
Sério? Eu te fazia muito mais jovem, mas fazia sentido. Custava,
vixe se custava, lapidar um nome na corte demoníaca. Ser guarda de elite
do meu avô não era precisamente fácil.
—E você tem uma alma extra, não é?
Um íncubo normal, sem acesso ao poço, só podia recorrer ao poder
da alma com a qual tinha se alimentado. Normalmente uma, mas nossos
feiticeiros tinham criado modos para poder capturar almas adicionais.
—Tinha uma, em um cristal, uma gema demoníaca que tinha me
entregado nosso rei. Há pouco me honrou com outra.
—Duas gemas demoníacas e a devoradora de hostes —me referi a
essa espada que hipnotizava os demônios com a ânsia de possuí-la—. Além
de que, como tem mais sangue de demônio que eu, pode fazer magia e
espremer melhor as almas que eu.
Sim, eu perdia parte dessa energia ao utilizá-la. Um íncubo
completo não perderia nada. Ele, imaginei que uma quarta parte.
—Basicamente.
—Algo mais?
Deu de ombros.
—Lutei em numerosas batalhas, tanto na Terra como nos planos. Fui
formado em todo tipo de artes marciais e estratégia militar. Uma vez amei
uma súcubo, mas ela apenas brincava comigo.
—Não me referia a esse tipo de algo mais.
—Não deseja me conhecer?
Estava tão perto... apesar da TV, podia escutá-lo respirar pois meus
sentidos eram bons.
—Não preciso saber mais de você para conhecê-lo. Já me
demonstrou em combate que é honrado e digno de confiança.
Embora para mim, o de confiar, estava começando a resultar um
pouco difícil depois da punhalada de Casio.
—Ela não tinha alma, não tinha sentimentos. Só queria o prestígio
de estar com um guerreiro da linhagem de sangue real. Não pôde durar.
Imaginei que deveria haver tristeza em sua voz, mas não havia. O
que havia era uma fodida expectativa e me olhava com intensidade. Desviei
os olhos, centrando-os na televisão.
Uh, bom, com o que estava se mostrando ali melhor no armário.
—Entendo. —E te disse que não queria falar disso, não ainda...—
Você poderia com Casio se está com suas reservas de almas cheias?
—Sim.
—Perfeito. —Sorri pela primeira vez desde que estávamos ali e,
diferente de meus sorrisos da noite com os vampiros, este não era fingido
—. Porque vou precisar de você se meu avô não aumentar meu acesso ao
poço. Há outra coisa... queria perguntar a meu avô, mas com o do castigo
não tive a ocasião.
—Diga.
—Você sabe quantas armas somos? Eu não tinha ideia de que tinha
sido concebida como uma até minha maioridade. E agora resulta que você
também é uma e que há ou houve muitas mais —perguntei por fim, pronta
para saciar minha curiosidade e, ei, que não acontecia nada por aquilo de
não ser única. Neste mundo, a gente acreditava descobrir que era alguém
especial para que depois lhe dessem com a realidade no nariz e lhe tirassem
essa estúpida ideia de princesa na base da porrada.
—Sim, nosso rei projetou algumas. Todos somos seus descendentes.
Também há filhos do príncipe herdeiro que você matou, seu tio. Embora,
como já comentei, a maioria morreu jovem. De fato, vivemos mais os que
somos uma quarta ou oitava parte humanos. Mas os da oitava parte não
servem a nosso senhor, sangue demoníaco demais. Aqui, o realmente difícil
é sobreviver como você fez: sendo metade e metade. Frágil demais para o
plano demoníaco e seus castigos, cheia demais de instintos ferais para a
Terra.
Bufei. Algo disso me soava.
—Não estará me chamando de fraquinha ou frágil?
—Você? Jamais. O fato de que tenha chegado até aqui mostra sem
dúvida sua força, tanto física como de vontade.
Como não gostava do caminho que tomava a admiração em seu tom
e em seus olhos, mudei um pouco de assunto.
—Uau. Se restam algumas armas e são em parte humanas, os que
descendem do meu tio, o que matei, não vão querer se vingar?
—Ou te agradecer, vai saber. Em todo caso, o que meu bisavô sim
me contou é que os três favoritos somos você, eu e Sylth'Atz. Também,
quando me mandou para te dar cobertura, que com você tinham provado um
enfoque especial, um mais agressivo.
Já... imagino. O de fazer passar meu pai por morto e afastá-lo da
minha parte da Terra tinha sido um pouquinho bastante extremo. Que ilusão
saber que em algo sim continuava sendo única...
—E você sabe qual é seu propósito? Que lutemos entre nós para ver
quem é o melhor?
Não era para ficar paranoica, mas... pelo visto éramos bastantes
experimentos.
—Não creio. Ele quer generais para seus exércitos. Não pode
colocar nessa posição qualquer um. A mim, por exemplo, como sou apenas
um quarto humano e estou mais afastado da linha sucessória, ainda não me
deu acesso ao poço. Que tenha me dado outra gema implica que por
enquanto administro as emoções como ele espera de mim. Também me
manteve muito perto dele e pude aprender muito sobre governo, política e
logística.
Assenti.
—Pois obrigada pela informação.
—Não busco ser declarado herdeiro ao trono —me esclareceu,
embora isso para mim desse igual; eu sim o era, mas duvidava muito que
algum dia meu avô deixasse de governar ou de existir.
—Mesmo que fosse, não compito para subir nessa linha de herdeiros
—fui sincera.
—Ter alma, ter sentimentos, às vezes torna as coisas complicadas,
faz você desejar o que nenhum íncubo puro tem.
Voltei a olhá-lo. A que se referia?
—Algum dia, gostaria de ter uma companheira que sentisse amor
por mim e eu por ela. Uma que estivesse ao meu lado o resto da minha vida.
Outra vez essa confissão não buscada e que não tinha nada a ver
com o de ser uma arma. Tinha baixado as defesas, sem dúvida o tinha feito,
porque fiquei olhando para ele, sentindo seu hálito se aproximar de meus
lábios, desejando que me beijasse. E aqui não havia luxúria como depois do
elevador no Vaticano. Não... isto era outra coisa e eu não queria voltar a
despertar meu coração: estava muito bem letárgico. Não enquanto Casio
continuasse impune.
—Atzir'itz, eu... Eu também desejo isso. Aliás, acreditei tê-lo
encontrado com esse traidor. Por isso preciso de tempo.
—Eu sei —me sussurrou a meros milímetros da minha boca—.
Tenho todo o do mundo para você.
Ficou ali me olhando, desnudando sua alma para mim outra vez e eu
o observei pega como uma tonta, como um passarinho que não se afasta da
serpente. Até que se levantou me deixando meu espaço. E fiquei com uma
sensação de perda.
A cama estava de repente muito vazia sem ele.
Porra!
Era hora de dormir um pouco. Total, ia amanhecer logo e Denisse
não tinha antiguidade suficiente para sair para saudar os raios do sol.
Atzir'itz tinha se sentado no sofá, com o controle da TV à qual tinha
baixado o volume, e estava procurando algum outro canal.
Então me dei conta. Isto não ia ser difícil, de jeito nenhum. O de
fingir ser sua amante. Não porque quando tudo isso acabasse só havia dois
seres no mundo que podiam me separar dele: meu pai e meu avô. E por
como o segundo o tinha me servido na bandeja, duvidava muito que isso
acontecesse.
QUINZE
Paris. Um puto palácio. O palácio real, construído no século XVII
para o cardeal Richelieu e que teve diferentes usos e remodelações ao longo
da história. Agora mesmo, como na França haviam feito um massacre com
a polícia e o exército, tudo estava sob controle vampiro-mutado e era a sede
do novo poder. Quer dizer, Casio havia escolhido o edifício que mais gostou
para estabelecer seu Univirato, por assim dizer.
E ali estava eu, sob minha ilusão de Denisse, atravessando uns
enormes e belos jardins, junto com uma série de luxuosas salas, até chegar
ao nosso destino: a câmara do Univirato. Só que para minha mais absoluta
decepção, o traidor não estava lá.
Tratava-se de uma sala ampla, retangular, com várias pinturas a óleo
decorando as paredes. Uma enorme mesa de madeira presidia o fundo e,
nela, estavam sentados vários vampiros, um humano e uma bruxa. O
humano seria alquimista, imaginei. A bruxa parecia uma snake, pelas
marcas de antigas lutas que ostentava orgulhosa em seu rosto. Enquanto me
aproximava sorridente e lhes fazia uma graciosa reverência, disse para mim
mesma que não era Esteno. Seria outra matriarca snake ou alguma de suas
subordinadas. Claro, agradeci que Marta fosse agora uma índigo, porque
nenhuma outra bruxa tinha mais poder que ela e, portanto, não podiam ver
minha imagem real além do feitiço. Quanto à reunião, um saco. Passada
minha decepção pela ausência de Casio, tive que mostrar minhas
credenciais e assegurar-lhes que tinha que me reunir com ele para iniciar as
relações diplomáticas, que a proposta do meu rei vampiro não podia dizer a
seu segundo, que era o duque sanguessuga que presidia a mesa. Além de
constatar que haviam colocado um mutado em seu novo Conselho, assim
como a bruxa e o alquimista, não tirei nada mais claro.
Onde estava Casio? Fora. Onde? Sorriso enigmático. Fora.
Por que eu não dava minha mensagem a eles e eles a transmitiriam?
Porque meu rei havia me dado ordens claras. Sorriso de circunstância. Não
pensava soltar nada.
E assim por um bom e entediante tempo, além de parecer que
Dominique e eu estávamos sendo submetidos a um interrogatório sobre nós
mesmos e sobre as intenções do rei da Louisiana. Enfim... A coisa acabou
empatada. Sim, iam me levar a Casio. Não, não podia ser agora. Que
deixássemos nosso telefone e o hotel onde estávamos hospedados e já
entrariam em contato.
Pois nada, com meu melhor sorriso diplomático de embaixadora nos
despedimos. E quando saímos do palácio e nos afastamos várias ruas, me
aproximei do meu suposto amante e o beijei para ficar bem perto dele e
poder sussurrar:
—Quero seguir essa bruxa. Esperemos que ela saia. Conheço uma
moonwolf que está louca para saber onde encontrar as serpentes.
—Vamos ao hotel e eu cuido disso. Nem vai notar que a sigo.
Me afastei de seus lábios e assenti. Ele tinha mais anos que eu e
mais treinamento. Além de sua magia demoníaca e do acesso a três almas.
Sem dúvida seria capaz de seguir uma bruxa.
Eu mal podia esperar para conseguir a localização da casa snake e
ligar para Marta para contar a ela.
DEZESSEIS. As três irmãs cegas.
As três irmãs cegas moravam em uma cordilheira montanhosa no
terceiro plano, protegidas por seu exército de harpias.
O plano não era delas, não mais; mas essa zona, a de maior altitude
no continente do oeste, conformava seu pequeno reino, com picos rochosos,
ar rarefeito e muito vento.
Como videntes que eram, conheciam os fios do destino. Muitas
vezes haviam tentado assassiná-las. Os motivos variavam, normalmente era
porque temiam seu poder. Todas essas tentativas haviam fracassado. Afinal,
como acabar com aquelas que, sem olhos, podem ver?
Arianhrod, a matriarca suprema das bruxas, poderia ter respondido a
essa pergunta dizendo que ocultando o destino com a magia proibida de um
deus dragão. Mas as três irmãs, que séculos atrás haviam se escondido na
Terra e eram conhecidas tanto como as graias quanto pelo apelido de as três
parcas, podiam ver além da magia dos deuses. Não moviam os fios do
destino, nem o teciam ou cortavam; isso eram lendas. Se pareciam mais
com as graias, anciãs e cegas. Não compartilhavam um olho, simplesmente
não tinham nenhum. E em seu caldeirão, esse que mexiam, podiam ver o
futuro.
Neste momento, os vampiros e mutados que formavam o pequeno
exército enviado para matá-las, se aproximavam de seu reino montanhoso.
Voando era fácil entrar. No entanto, a pé como iam, havia apenas quatro
estreitas passagens guardadas por harpias. Os assaltantes escolheram uma e
acabaram com as guerreiras aladas que, furiosas, desciam em direção a eles
das alturas, armadas com grandes rochas que seguravam nas garras de suas
patas de ave e lhes lançavam do alto. Uma chuva mortal que acabou com
vários dos vampiros mais jovens, de reflexos menores. E apesar de
portarem lanças em suas mãos, de serem suficientes para travar uma boa
batalha antes de serem derrotadas, as guardiãs não travaram combate corpo
a corpo. Deixaram que os intrusos não abatidos atravessassem o
desfiladeiro e entrassem em seu reino de cumes elevados.
A partir dali, os vampiros não encontraram resistência. Com sua
velocidade e resistência, não demoraram muito para subir pelos estreitos
caminhos, atravessar montanhas e, depois de mais de uma hora, chegar ao
pico central, o mais alto e escarpado, ao qual só se podia acessar voando.
Então os mutados tiraram asas de demônio, agarraram cada um deles um
vampiro e subiram em direção às alturas, para acabar pousando sobre a
plataforma de pedra onde as harpias costumavam guardar o acesso a suas
senhoras, bem aos pés de uma caverna escavada na rocha. Só que estava
deserta. Com cuidado, os atacantes entraram. Tratava-se de uma caverna
espaçosa, que pelos futons de palha e os baús de madeira, devia ser o lar das
três irmãs cegas. Um caldeirão, enorme, borbulhava no centro, mas
ninguém o mexia. Um dos vampiros, frustrado, deu um chute em um baú.
Este caiu de lado, abrindo-se e derramando seu conteúdo: roupa de mulher.
—Elas foram embora, alguém deve tê-las avisado —resmungou
irritado.
—São videntes, o mais simples é que soubessem que vínhamos
matá-las —lhe esclareceu um dos mutados.
De mãos vazias, tal como haviam chegado, foram embora.
Receberam outra leva de pedras ao voltarem a atravessar o desfiladeiro
inicial, que lhes deixou com algumas baixas. O que não viram foi que na
caverna, disfarçadas entre a rocha, havia pequenas câmaras com baterias e a
última tecnologia humana. Seu ataque, sua tentativa de assassinato, havia
sido gravada.
E as três irmãs tinham muito claro a que demônio entregar a prova
de que o terceiro plano, supostamente neutro na guerra, já não o era.
Porque elas não haviam notado nada estranho em seu plano, nenhum
tipo de ataque ou colonização por parte dos vampiros; no entanto, sim
haviam visto algo que as afetava diretamente: uma visão enquanto mexiam
seu caldeirão, que as havia avisado de que iriam atacá-las em sua própria
casa. E isso, como muito bem sabiam, só podia significar que o terceiro
plano havia sido ocupado.
DEZESSETE
—Não me fode que estão aqui —sussurrou-me Marta enquanto
observava a casa no interior da França, a alguns quilômetros de Paris, onde
Esteno havia se estabelecido.
Tratava-se de uma mansão de uns dois séculos de antiguidade,
rodeada de campos de videiras. Estávamos totalmente fora de suas terras,
para não fazer disparar nenhum alarme mágico que sem dúvida teriam.
Apesar disso, com a ajuda de uns binóculos, Marta não tinha nenhuma
dúvida de que a passageira do carro que acabávamos de ver passar há
alguns minutos era a matrona snake que pretendia roubar o matriarcado de
Arianhrod.
—Sim. Então já sabe onde encontrá-la para terminar seu terceiro
trabalho.
—Obrigada.
—De nada —lhe respondi—. Mas você tem que me fazer um favor.
—Claro.
—Antes de vir atacá-la, me acompanhe ao conselho de vampiros.
Me intimaram esta noite para me levar a Casio e eu gostaria de contar com
sua presença. Você pode se passar por alguma vampira que não seja daqui e
dizemos que vem comigo. Se as coisas ficassem difíceis, eu gostaria de
contar com sua magia.
Deitadas como estávamos na cobertura de uns arbustos, pude senti-
la se retesar. Eu a entendia. Desde que a telefonei, haviam passado quase
dois dias. Ela pegou uma brecha no primeiro trem com vagas que vinha até
Paris, após falar com sua senhora e preparar alguns truques. Com ela
haviam vindo suas duas novas discípulas. Eram muito jovens, quase umas
meninas (acho que tinham 13 e 15 anos), mas era o melhor que restava à
casa da lua cheia. Depois de chegar, tiveram que se alojar em um hotel,
ocultando quem eram. Agora mesmo era dia e eu ia totalmente coberta para
que não me reconhecessem, pois Denisse não podia suportar a luz solar sem
cair morta.
—Você me pede muito, mas também lhe devo. De acordo, irei com
você caso precise de ajuda com Casio e, no dia seguinte, atrás de Esteno.
Sim, agora já não era rentável para uma bruxa atacar uma casa rival
à noite, como sempre havia sido feito. Não desde que vampiros e mutados
eram seus aliados. Eu lhe diria o típico de que era uma pena que já não se
respeitassem as tradições, mas seria mentira, pois eu sempre havia gostado
de quebrá-las.
—Atzir'itz, quando seguiu a bruxa, me avisou que eles têm os
campos de uva repletos de câmeras e alarmes eletrônicos, que não só os
protegem com magia.
Segui seus olhos até as parreiras, com os pequenos grãos de uva
ainda se formando, pois ainda faltava ao menos um mês para que a fruta
estivesse madura. Não viu câmeras, eu tampouco. Mas o guarda do meu avô
sabia onde olhar. Indiquei-lhe um ponto no qual o íncubo havia me dito que
havia uma e, depois de um tempinho, minha amiga assentiu. Acabava de
distingui-la, finalmente.
—Vocês só localizaram esta casa, certo? Nada das outras snakes ou
das morrigan —me perguntou.
—Correto.
—Bom, então irei me preparando. Muito obrigada novamente.
Vamos?
—Claro.
Me retirei para trás dos arbustos e me pus de pé devagar. Fomos
embora como havíamos vindo, andando. O carro estava a uns dois
quilômetros, conveniente e casualmente estacionado onde ninguém
suspeitaria de nada. Marta já estava tramando como atacar a mansão. Com
sua magia de ilusões, lhe seria simples fazer um ritual para enganar as
câmeras. No caminho, me contou o que tinha pensado e lhe assegurei que,
se pudesse, lhe daria uma mão.
Para isso estavam as amigas.
FIM DA SAGA
O boca a boca é crucial para qualquer autor. Se você gostou deste
romance, por favor considere deixar uma resenha. Mesmo que seja de
apenas uma ou duas linhas, adorarei lê-la e será de grande ajuda.
ZERO
Não tenho muita certeza do motivo pelo qual estou correndo.
Apenas sei que estou arriscando muito mais do que uma nota. Talvez
minhas pernas tenham ganhado vida própria por causa dos gritos abafados
das minhas colegas ou, quem sabe, pela sensação de que não estamos
sozinhas neste corredor da ala proibida. Há algo no ar, algo que vem se
formando há semanas, que me faz sentir que o mal já não está de férias.
Não lembro das paredes serem tão estreitas, nem das sombras entre
as lâmpadas serem tão densas. Por sorte, Kate está correndo na minha
frente. Não nos damos muito bem, mas talvez juntas consigamos sair do
internato.
—Kate, me espera! —grito.
Não consigo evitar que o tom agudo da minha voz me assuste, como
se chamar a atenção fosse perigoso.
—Me esquece, perdedora —responde, tão odiosa como sempre,
minha colega de quarto. —Você não faz ideia do que é isso.