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Navilouca: poética revista

Isis Diana Rost*

As revistas de invenção da década


Resumo
de 1970 nos oferecem um ótimo campo
Apresentação da Navilouca, revista para a pesquisa, fato marcante em es-
experimental em edição única pro-
pecial nas revistas experimentais, como
gramada por Torquato Neto e Waly
Salomão, entre 1971 e 1972, mas a Navilouca. Organizada por Torquato
lançada somente em 1974. Destacan- Neto em parceria com Waly Sailormoon,
do-se das revistas de invenção do pe- a Revista Navilouca foi planejada entre
ríodo pelo seu caráter de verdadeiro
almanaque das artes experimentais fins de 1971 e 1972. Porém, só seria im-
e da contracultura, englobando poe- pressa dois anos mais tarde, com o lan-
sia concreta, ensaios críticos, artes çamento de 100 exemplares, em julho de
plásticas, design gráfico, fotomonta-
gem e cinema marginal, os ensaios 1974, quando Waly consegue o apoio de
escritos para a revista estão numa André Midani, executivo da Polygram,
linguagem totalmente subversiva às e a Navilouca é finalmente impressa e
normas gramaticais, e existe uma
tendência construtiva fundindo-se a
distribuída como brinde de natal a clien-
uma estética subjetiva, capaz de cap- tes da gravadora e aos mais próximos.
tar as impressões / sensações daquele Com projeto gráfico de Óscar Ramos e
momento, numa espécie de liberdade
Luciano Figueiredo, tinha um formato
anárquica, uma anti-arte oriunda de
rigorosos processos de composição com
a proposta de uma participação coleti-
va planejada, na qual os participantes *
Formada em ciências sociais - bacharelado pela Univer-
não ‘criam’, ‘experimentam a criação’. sidade Federal do Maranhão. Publicou o livro O RISCO
Torquato Neto não teve nenhum livro do BERRO - Torquato, neto Morte e Loucura, lançado
publicado, sua obra espalha-se em vá- em nov/17 na 12ª Balada Literária - SP. Organizou o
rios nichos. Navilouca representa um livro Dossiê Navilouca, com artigos e matérias sobre
a revista. Tem contribuições sobre Torquato Neto na
verdadeiro epitáfio a quem levou às revista Revestrés, na revista on-line Agulha, e no site
últimas consequências a proposta de Lume Scope. Desenvolve, no momento, trabalhos na
fusão entre arte e vida. área de pesquisa literária, atuando como editora de
textos e publicações na área de não ficção, sobre projetos
culturais e registros históricos e literários; cursando
Palavras-chave: Contracultura. Im- mestrado acadêmico em letras, pela Universidade Es-
prensa alternativa. Torquato Neto. tadual do Piaui. Tem experiência principalmente nos
seguintes temas: contracultura e Imprensa alternativa.
E-mail: idrost55@gmail.com

Data de submissão: 09 dez. 2019 – Data de aceite: 03 jan. 2020


http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v16i1.10346

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grande, de 36 x 27 cm, com 92 páginas Luis Otávio Pimentel, Caetano Veloso,
impressas. Navilouca é nossa mais im- Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de
portante revista experimental, em edição Campos, Lygia Clark, além de referên-
única programada por Torquato Neto e cias a alguns artistas não tão conhecidos
Waly Salomão, entre 1971 e 1972, mas na época, como o poeta Chacal e o artista
lançada somente em 1974. Como o ar- plástico Colares.
tista plástico neoconcreto Hélio Oiticica
explica, não existe “arte experimental”, Figura 1 – Capa da Navilouca.
existe O EXPERIMENTAL. Torquato
Neto não teve nenhum livro publicado
em vida, sua obra espalha-se em vários
nichos e a Navilouca representa um ver-
dadeiro epitáfio a quem levou às últimas
consequências a proposta de fusão entre
arte e vida. Navilouca já apresenta na
capa a condição de “Edição única”, e
hoje é vista como (a) antologia de poetas
experimentais. Infelizmente o acervo de
revistas experimentais continua escasso
nas bibliotecas, resumindo-se a alguns
exemplares (quando existem) em cole-
ções particulares. Com uma produção
gráfica sofisticada, a capa policrômica
e plastificada da revista Navilouca
mostrava ‘signos da loucura’ como ma-
nifestações artísticas, construindo um Fonte: Isis Rost, foto retratada em 10/10/19, no acervo de
mosaico composto das imagens dos Torquato em Teresina.

artistas. Reunindo trabalhos da nata


da contracultura artística brasileira, Em determinada época da nossa his-
Torquato idealizou a revista reunindo tória, estar à margem significou uma
os principais artistas e agitadores cul- tomada de decisão: a oposição. Surgem o
turais da época, com contribuições de cinema marginal, a literatura marginal,
Torquato Neto, Waly Salomão, Hélio a música e a poesia, todos na margem
Oiticica, Rogério Duarte, Jorge Salomão, da margem. O “excesso de marginalida-
Luciano Figueiredo, Óscar Ramos, Ivan de” deixa algo em evidência, sendo este
Cardoso, Duda Machado, Sthefen Berg, ponto bastante debatido. A controvérsia

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apontada é sintetizada na oposição entre Durante todo o século XX, as revistas
duas posições: considerar as atitudes atuam de maneira profícua na produ-
alternativas do período do “desbunde” ção do campo literário, constituindo-se
como fuga, reação defensiva da violên- o principal veículo das poéticas, ideias
cia exercida pelo Estado e, portanto, e propostas / princípios estéticos dos
expressão de alienação, ou ao contrário; grupos de artistas e intelectuais, reu-
destacar o aspecto crítico e criativo e a nidos em torno destas revistas. Porém,
utilização da marginalidade e do signo em virtude da promulgação do AI-5, o
da loucura para combater a racionali- processo artístico-cultural que vinha se
dade que o regime autoritário pretendia fortalecendo nas décadas anteriores no
encarnar. Na orientação da Escola de Brasil foi amplamente dificultado. Gran-
Frankfurt, Theodor Adorno (1980) apon- de parte da intelectualidade da época,
ta a noção de alienação provocada pela como Zuenir Ventura e Luciano Martins
indústria cultural. A contracultura se reclamam a existência de certo “vazio
apresentaria como a negação deste mer- cultural”, por conta das prisões, o exílio
cado (mesmo utilizando as ferramentas (voluntário ou não) de grande parte dos
deste mecanismo) movimentando-se fora artistas e intelectuais e a forte ação da
do sistema e, portanto, como sinônimo censura. Este duro golpe acaba marcan-
de alternativa à cultura oficial. A frag- do a época, cujo “vazio” era literalmente
mentação dos textos e a arte fundida aos sentido por todos os lados. Sob este signo,
novos comportamentos e às tecnologias a década de 1970 já nasce fracassada.
são apontadas nas pesquisas sobre a Porém, é preciso rever esta afirmação,
época. O que temos aqui é certa preo- pois apenas alcança uma parte da
cupação com a técnica reduzida pelas realidade. Por outro viés, algo ‘diferen-
óticas da marginalidade ou até mesmo ciado’ acontecia, surgiam novas formas
na experiência com entorpecentes. A de expressão artística e social, “pondo
Navilouca era uma declaração de princí- em destaque as virtudes” da própria
pios não apenas estéticos, como também invenção. Este suposto esvaziamento
comportamentais, trazendo no titulo re- estaria preenchido por algo novo e inde-
ferência à Stultifera Navis – a nau onde cifrado: a contracultura. Com dezenas
embarcavam os “insensatos” durante a de publicações na imprensa alternativa
Idade Média – e com temas e referências (Navilouca, Flor do Mal, Presença, etc.),
do momento, como as políticas do corpo, o desbunde se estabelece como o modus
o homossexualismo, a poética da vida operandi de muitas expressões artísticas
cotidiana e a libertação do corpo. e intelectuais do momento. Na contra-
cultura a revista se difere, contudo,

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num aspecto essencial: ela é concebida provocando significados, ideias e afetos.
como obra de arte coletiva, na qual a voz Estes teriam o poder transformador. A
do autor individual dá lugar ao coro do primeira revista do Brasil “As variedades
grupo, no caso um coro de descontentes, ou Ensaios de Literatura” (1812), já serve
não obstante o caráter recorrentemente de espaço para a poesia (e as experimen-
efêmero, comportando, ao mesmo tempo, tações relacionadas). As revistas literá-
uma constituição individual e coletiva. rias sempre foram importantes veículos
Apesar da contracultura não ter surgido para a difusão de uma poética livre das
em decorrência do autoritarismo, ela intenções de lucro. Com a antropofagia,
teria se potencializado na luta contra a cultura estrangeira é “digerida”, para
uma imposta racionalidade, invocando a fomentação de um repertório propi-
as figuras do louco e do bandido. O dis- ciador da criação, passando por toda a
curso de esvaziamento cultural defendi- era modernista e a profícua produção de
do pela intelectualidade da época pode revistas de cultura / arte / política. As
ter fundamentos mais numa sensação revistas do movimento modernista as-
de perda, de pressentir o inevitável fim sumem a tarefa de transmissão cultural,
de um modo de estar no mundo, do que por meio de discussões estéticas e aper-
uma ausência de produção cultural de feiçoando ideias. Logo, estas revistas
fato. Na contracultura, o “desbunde” se possuíam um amplo leque de atividades
confunde com a resistência. experimentais. Tais características são
Do ponto de vista histórico, a impren- semelhantes às encontradas nas revistas
sa alternativa surge junto com movimen- de invenção entre as décadas de 1950 e
tos de oposição, criados pela esquerda, 1970. Com a NOIGANDRES, inaugu-
com propostas editoriais alternativas ra-se um período estético na poesia, no
aos veículos da grande imprensa. O qual experimentação e invenção tinham
impacto da imprensa alternativa como vez e voz. Foi uma legítima revista de
fenômeno social e histórico é indubitável. invenção, poesia concreta. Teve cinco
É possível aplicar o termo poética a todos números entre 1952 e 1962. Aspectos vi-
os ramos da arte, ao estudo do “fazer suais foram incorporados no Movimento
artístico”. Segundo Roman Jakobson, da Poesia Concreta, sendo que aspectos
a função poética não deve se limitar sonoros e visuais, além dos outros sen-
apenas à arte verbal, mas engloba vá- tidos, foram privilegiados. No início dos
rias linguagens. Na poética, o aspecto anos 1970 começam a aparecer poéticas
sensível da mensagem é predominante, intersemióticas como derivações da poe-
pois carregaria em si significantes para sia concreta, se utilizando da imagem e
os sentidos, por meio de certa empatia, de outros signos analógicos. A tipografia

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e a geometria não constituem mais o das imagens. Porém, agora as revistas
centro da poética concreta. São poéticas já não possuíam a função de divulgar
localizadas no terreno da experimen- movimentos e manifestos. Navilouca se
tação, buscando na tradição o impulso diferencia das revistas literárias, pois
para a criação de novas formas. O poema possui o caráter mais extensivo e interse-
ultrapassa a subordinação à palavra, o miótico, abrindo espaço para as poéticas
verso é banido e a página em branco fala. visuais. É considerada a primeira revista
Diversidade de leituras embaladas por experimental dos anos 1970, apontando
cores. É possível afirmar a existência de a vivência existente entre os poetas con-
uma linguagem totalmente experimental cretos e os jovens marginais.
se produzindo desde meados dos anos A democratização dos meios de produ-
1960, com o Poema-código, de Pignatari, ção favorece o surgimento da imprensa
ou a Revista Invenção, com cinco volumes alternativa, comprometida com o expe-
entre 1962 e 1967. Nos anos concretos, rimental. Após os anos de 1970, as cha-
a poética volta a ocupar espaços conhe- madas poéticas visuais invadem a praia
cidos como “revistas”. Dentro deste novo da poesia bem comportada. A poiesis
conceito, surgem poéticas se utilizando da Navilouca tenta ser, neste contexto,
de aspectos figurativos, como a imagem um campo de exercício de liberdade e
sensorial, a tipografia, as cores, a forma veículo de privilégio da poesia, sem a
do texto, a exploração linguística, etc. exclusão de outras formas de expressão
Marginais ou não, a voz dos jovens da- artísticas. Uma verdadeira compilação,
queles anos sufocados ansiava expressar obra coletiva, na qual existe a “renúncia
toda a perplexidade frente aos avanços em termos de veiculação de obra própria,
industriais e tecnológicos e o recru- individual, em prol da publicação de
descimento da ditadura militar (1964- vários.” Navilouca representa a fusão
1985). Tanto o questionamento quanto entre os artistas subterrâneos e a poe-
a exploração das fronteiras poéticas são sia concreta, abrindo espaço para novos
totalmente expostos. A experimentação experimentos e expõe o papel do artista
é preferência da garotada, dividida en- como curador, possibilitando maior liber-
tre a produção de algo novo, inédito, e a dade para manifestações artísticas, com
antiga vontade de descobrir. A geração importância crucial no aspecto gráfico.
dos anos 1970 encontra nas revistas a Navilouca registra toda uma poiesis
liberdade de criação. Muitas possuíam característica daquela época, servindo
o caráter interartístico e desenvolvem como espaço para a metalinguagem, na
poéticas experimentais, incorporando qual artistas dialogam com o movimen-
o design gráfico e o signo das letras e to antropofágico, os dadaístas, a poesia

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expressionista alemã, o construtivismo para ter condições de apreciar a revista.
russo, a POP-art, enfim, todas estas Engana-se quem pensa bastar apenas
experiências podem ser vislumbradas ver ou ler as páginas da Navilouca... É
na poética da Navilouca. Ali, o leitor criada uma complexidade de significados
encontra poemas intersemióticos, foto- por meio de diversos códigos, como a fo-
montagens, experimentação literária tografia e a poesia, estabelecendo uma
e visual, além de forte influência do dialética entre o figurativo e o abstrato,
cinema marginal. Vemos como a revista por meio de uma síntese harmônica en-
colabora com a forma experimental da tre múltiplas correntes. Na Navilouca
linguagem gráfica. Os poemas passam temos a impressão de que todo objeto
o máximo de informação, com o mínimo poético pode ser verbivocovisual, ou
de elementos. O ritmo dos textos, cons- seja, a poesia, por mais visual, deve ter
truídos por meio das similaridades entre uma contrapartida sonora ou verbal,
os sons e os sentidos, acaba envolvendo no sentido da fala, da voz, na imagem.
o (in) consciente do leitor, arrastado pe- Grande sensação do início da década de
las torrentes de imagens. A fotografia é 1970, a Navilouca tinha colaboradores
elevada a representante de um recurso desbundados, porém letrados, parafra-
fundamental para os artistas conceituais seando Ana Cristina César. Além de
da época, preocupados com uma “arte-i- ser um trabalho de junção dos vários
deia”, em detrimento inclusive da arte artistas, Navilouca é diferente pela ma-
‘simplesmente visual’, sendo a “lingua- neira como fez esta junção. Os trabalhos
gem e a imagem” os principais materiais expostos não se resumem a relatar por
para a arte conceitual. Diante disto, os intermédio de imagens e textos expli-
artistas buscavam criar reflexões visuais cativos. Os artistas viam a Navilouca
para os observadores e eram estabeleci- como um espaço para a arte no formato
das certas dialéticas entre as imagens mais cru. Vemos trabalhos inéditos,
fotográficas. elaborados especialmente para aquela
Na Navilouca, várias vezes, o texto edição, propostas artísticas diferentes,
comparece apenas no título, caracteri- utilizando linguagens que igualmente se
zando uma obra conceitual. A função diferem, porém conseguem produzir uma
expressiva das imagens a serviço da unidade de pensamento num discurso
linguagem. Naqueles tempos sórdidos, articulado. A Navilouca expressaria uma
a própria circulação das informações coletânea de linguagens experimentais,
artísticas representava uma espécie de constituindo “um material valioso para
confiança na força subversiva da arte. a análise do período pós-tropicalista”
Era exigido dos leitores amplo repertório (ANDRADE, 2002). Vislumbramos um

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momento marcado pela descontinuidade As técnicas utilizadas na Navilouca
e isto acabou se refletindo na produção são as mais modernas da diagramação
artística da época, demarcada por certa e do design, sendo apropriados pela
ambiguidade. Podemos perceber esta marginalidade ‘navalha na mão’. Na
ambivalência na Navilouca, pois de um Navilouca, o tema da marginalidade é
lado existe o rigor técnico, a preocupação central, seja pelas imagens agressivas,
com o acabamento e a referência aos nas quais poetas são vistos como mar-
cânones consagrados da cultura oficial ginais, transvertidos, com tarjas nos
e, de outro, a revista é marco da margi- olhos, até mesmo nus, seja por menções
nalidade refletida no desbunde, no que à violência e outras subversões (i)morais.
a liberdade sexual / comportamental e a Na contracapa, a gilete ocupa o papel
experimentação das drogas alcançavam protagonista, por concentrar possibili-
o ápice. De alguma forma, Navilouca dades significantes da vida criminal. E o
consegue repassar certa ambiguidade sangue, outro elemento ambíguo, pode se
torquateana, e podemos sentir-intuir prestar tanto ao embelezamento quanto
uma mescla dos próprios sentidos, de à agressão. O resultado é
modo que se difere das outras publica- [...] um trabalho de invenção que contem-
ções da imprensa alternativa, geralmen- pla um campo intersemiótico, realizando
te, marcadas pelo improviso e pela pre- o encontro entre diferentes códigos como o
cinema, a poesia e as artes plásticas (AN-
cariedade. A Navilouca é elaborada com DRADE, 2002, p. 168).
alto grau técnico e gráfico, mesclando o
rigor construtivo ao experimentalismo e Para Torquato, que jamais teve em
às produções viscerais da época. Heloisa vida um livro lançado, Navilouca repre-
Buarque de Holanda foi a primeira a sentava um projeto gráfico/poético signi-
apontar a preocupação da Navilouca com ficativo, onde ele trabalhou bastante, e
a qualidade técnica: mesmo publicado quase dois anos após a
morte, sob a égide de Waly Sailormoon,
Navilouca evidencia a atitude básica pós-
-tropicalista de mexer, brincar e introduzir o projeto estava basicamente pronto. Ele
elementos de resistência e desorganização levou a ‘boneca’ da revista para Teresina
nos canais legitimados do sistema. Assim,
na última viagem à terra natal e ficava
o fator técnica é preservado, mas, simul-
taneamente, subvertido. A diagramação, a constantemente se comunicando com o
disposição das fotos, os tipos gráficos, a cor, Waly, sobre os acertos. Infelizmente a
o papel etc. são manipulados pelas técnicas
Navilouca não pode ser impressa em
mais modernas do design, contra a norma-
lização da leitura operada pelas revistas 1972, porque Midani se acidentou numa
conhecidas no circuito (HOLLANDA, 1981, moto, quebrou a perna e isto acabou
p. 73-74).

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jogando o projeto imediatamente na ga- arte? Ou arte em formato de revista?
veta, até Waly resgatá-lo em 1974. Arte poética e gráfica, a Navilouca
Na intervenção de Torquato, texto e explode em cores e imagens, e o leitor
imagem fundem-se enigmaticamente, vai sendo bombardeado de estímulos
num típico exemplo das preocupações artísticos e intelectuais. Assim como o
dele na época, misturando as reflexões parangolé de Hélio Oiticica, a Navilou-
sobre o cinema com alguns dos preceitos ca marca o registro de um momento no
fundamentais da poesia concreta, o ca- qual a poesia brasileira formava novos
samento entre a poesia e a imagem. Era rumos, sendo a principal poética daquele
o início de uma intensa vida artística instante. Edição rara, porém eterna. Em-
póstuma. Aqui é importante ressaltar o bora abarcando outras áreas artísticas,
fato da Navilouca carregar um caráter de a Navilouca é considerada um marco
tributo post mortem. Não foi à toa que a nas publicações literárias. O subtítulo,
revista foi pensada e editada em volume “almanaque dos aqualoucos”, chama
único. A estratégia era burlar/driblar a atenção para a diversidade do mate-
censura, que barrava as publicações após rial escolhido. Existe uma tendência
dois ou três números. Um único número. construtiva fundindo-se a uma estética
Além de burlar/driblar a censura, não subjetiva, capaz de captar as impressões
se torna algo padrão, nem se estabelece / sensações daquele momento, bem como
como tendência artística, muito menos uma espécie de liberdade anárquica,
é incorporada no sistema do mercado. uma anti-arte ambiental, oriunda de
Inspirados pelas publicações do Con- rigorosos processos de composição com
cretismo, como Noigandres e Invenção, a proposta de uma participação coletiva
bolaram o projeto de uma revista que re- planejada, em que os participantes não
velasse a produção poética experimental ‘criam’, ‘experimentam a criação’. Os
do Brasil da época, influenciada também ensaios escritos para a revista estão
pelo movimento Tropicália. Uma revista numa linguagem totalmente subversiva
correndo por dentro e por fora do circuito às normas gramaticais. Estão ausentes
da poesia-invenção, surgida em meados os sinais de pontuação, as vírgulas e,
dos anos 1960, promovendo um “novo inclusive, as próprias palavras estão
equilíbrio entre o visual e o sensorial” em desordem, separadas, jogando o lei-
no jornalismo alternativo. A edição conta tor numa postura de estranhamento, à
inclusive com a tríade concretista, os pa- primeira vista, quiçá incompreensão. É
drinhos da poesia marginal desbundada, como se fossem textos cifrados, onde é
Décio Pignatari e os irmãos Augusto necessária certa “arte-manha” do leitor
e Haroldo de Campos. Uma revista de

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para traduzi-los. Como aponta Paulo que o artista plástico precisa produzir o
Andrade, tais “novo pelo novo” é renegada. A alternati-
[...] recursos revelam a concepção estética va é “o experimental não tem fronteiras
assumida pelo grupo e traduzem, no corpo pra si mesmo é a metacrítica da ‘produ-
da escrita, o desejo de superar fronteiras [...] ção de obras dos artistas de produção’”.
e apreender globalmente todas as informa-
ções e a sua simultaneidade (ANDRADE, Existe a necessidade de desintegrar os
2002, p. 169). conceitos e entender que o campo aberto
de possibilidades “à margem das formas
Experimentar o Experimental já conhecidas” promove “o consumo sem
ser consumido indiferente competição
Navilouca carrega em si um simbolis- do eu-melhor-do-que-você das artes”.
mo evidente, ao encarnar o mito da revol- Experimentar o experimental é, antes de
ta. É válido dedicar atenção a um texto tudo, crítica violenta à diluição de uma
provocante figurando na Navilouca, arte nacional. HO chama as diversas
chamado Experimentar o Experimental, tendências artísticas que floresciam
de Hélio Oiticica (HO). Como o artista àquela época de ‘objeto de consumo rea-
explica, não existe “arte experimental”, cionário para consumo burguês’. Afirma
existe O EXPERIMENTAL. Isto assume a necessidade de uma obra de arte livre,
a noção de modernidade / vanguarda valorizando as experiências individuais
como também evidencia a transformação para a resistência à massificação vestida
radical no campo dos valores e dos con- de ‘novo’ e, neste instante, incorporado
ceitos. É o “comportamento – contexto, ao sistema de consumo e pelas indústrias
que deglute e dissolve a coni-conviven- de consumo. O experimental defendido
cia.” Oiticica já presume aqui a tendên- por HO não tem fronteiras, “os fios soltos
cia da arte experimental à estagnação, do experimental são energias que brotam
gradualmente transformada em “oficial” para um número aberto de possibilida-
e diluída pelos reaças. A única saída se- des” então “porque não explorá-los?”
ria a crítica permanente. A saturação de O texto de HO se apóia em alguns
determinadas formas e práticas estéticas artistas conceituais, como John Cage,
e literárias era óbvia, sendo necessário Yoko Ono, Marshall Mcluhan, Gertrude
o RE-FAZER / RE-INVENTAR. Além de Stein, Décio Pignatari, e sugere ao lei-
negar todo sistema de arte oficial, Oitici- tor um espaço aberto às possibilidades,
ca rejeita as novidades propostas pelas caminhando na marginal das formas
vanguardas: “Não me interessam talen- reconhecidas. De fato, Celso Favaretto
tos estou farto de querer achar o novo mostra como desde o “esquema geral
vestido de novo”. A lógica consumista de da Nova Objetividade”, HO já buscava

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desenvolver alguns princípios, na nítida desbundada e marginal no Brasil dos
intenção de alterar as condições de pas- anos 1970. A proposta de vida atrelada
sividade e estagnação respiradas aqui à arte, além da ideia de experimentar o
do lado de dentro. A atividade criativa experimental, casava perfeitamente com
/ criadora é incentivada, porém nada as vanguardas e com a contracultura
que fosse institucionalizado, oficial. que fermentava desde o início da déca-
Aqui, HO já “insiste na necessidade de da de 1970. A atitude contracultural de
se criar uma ‘linguagem própria’, espe- renovação da vida e a experimentação
cificamente brasileira, mobilizada pelo já estavam implícitas desde os tempos
‘sentido de construção’ latente e/ou em do parangolé. A partir das experiências
desenvolvimento na produção cultural.” em Londres e NY, Oiticica reflete acer-
(FAVARETTO, 2015, p. 158). A “Nova ca do momento brasileiro, onde a arte
Objetividade” de HO volta-se para a experimental caminhava na marginali-
[...] criação de um ‘mundo experimental’, dade, formulando o conceito de Cultura
cuja objetividade está fundada na supera- Subterrânea. Afirma que no Brasil as
ção da individualidade da produção e das possibilidades de cri-ação – experimen-
representações que as tornam possíveis
(FAVARETTO, 2015, 162). tações estariam sufocadas. Desta forma,
o experimental realmente significati-
Oiticica foi um dos nomes mais in- vo só poderia se manifestar de forma
fluentes na Navilouca. Ao longo de treze subterrânea aqui do lado de dentro do
páginas da revista, suas contribuições país. Em NY, Oiticica leva ao extremo
formam o germe da Navilouca, com fo- a marginalidade e o experimental. Vive
tografias, textos, fotomontagem, referên- um puro estado de invenção, apostando
cias ao cinema marginal e super 8, enfim. numa espécie de recolhimento criativo.
A influência de HO é total, até porque Ao mesmo tempo em que trabalhava à
seu nome figurava com força, uma das noite, se virando como tradutor. Não faz
principais figuras do experimental na nenhuma exposição nesta época, mas es-
década de 1970: chega a redimensionar creve intensamente. Inclusive, mantêm
a casa, adaptando-a à própria arte. Em intensa correspondência com amigos,
busca de misturar a arte à vida, HO afir- como Lygia Clark e Torquato Neto. É
ma que começou a “transformar o lugar justamente por meio deste intercâmbio
onde eu moro, o ideal era esse, morar na de mensagens que as contribuições para
própria obra.” a revista são repassadas. Oiticica teceu
Favaretto (2015) afirma não ter sido uma obra contínua, um processo de
por acaso que HO se tornou uma espé- trans-criação vindo desde os meta-es-
cie de mito entre a galera da curtição quemas, influenciado na radicalidade do

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construtivismo e da arte concretista. Os louca aponta(m) justamente a proposta
neo-concretos valorizavam a dinâmica da revista: invenção espontânea. As
visual, na qual as cores apresentavam experiências de HO tornam-se inter-
significações existenciais. Esta propos- venções ativíssimas, com a exploração
ta pode ser observada na Navilouca, das relações de cor e estrutura pelo
traduzindo os pensamentos por meio corpo, provocando o efeito fundamental
das cores e das imagens. A revista seria de estímulos de novos comportamentos.
o objeto concreto, a imagem final. Um Navilouca pode ser observada como ob-
espaço ativo para experiências abertas, jeto, concebida com fragmentos de arte
ideal das vanguardas. A Navilouca se- (cinema, musica, poesia) compostos pela
ria a experiência de arte neo-concreta nata da marginalidade artística da épo-
por si? O resultado da imagem-objeto, ca, uma revista de Cri-AÇÃO, onde ‘não
recheado – lotado de significantes. Fu- se trata de ficar nas ideias. Não existe
são da imagem e da linguagem, onde ideia separada do objeto, nunca existiu.
os signos se confundem numa espécie O texto Experimentar o Experimental é
de transcendência da obra de arte, e a um exemplo de qual era a proposta, ou
experimentação é primordial. melhor, o posicionamento de todos ali,
A palavra, o gesto, o corpo, são ‘potenciais e este trabalho poderia ser uma chave
significantes’ mediadores da relação do para adentrar no universo da revista.
sujeito com o objeto. Mas a ação da lingua- HO é o artista que flerta com todas as
gem é sempre a distância, pois o processo
de significação só surge na intersecção de conexões da Este trabalho de HO na
significantes, num intervalo (FAVARETTO, Navilouca poderia ser uma chave para
2015, p. 44).
adentrar no universo da Navilouca, in-
Navilouca funcionaria como este corporando as artes plásticas, o cinema,
‘intervalo’, no qual as experiências da as imagens e a literatura. É ele o único
linguagem e da imagem se fundem e a transitar por todas estas ‘passagens’.
finalmente vem à tona o processo de As cartas entre HO e Torquato reforçam
significação da obra de arte neo-concreta esta ideia, e fica claro a relevância entre
/ construtivista. O trabalho de HO em- os diálogos de ambos e a Navilouca, fruto
barca progressivamente num processo de desta intensa amizade.

[...] abolição cada vez maior da estrutura dos “Vanguardas – Quem sairá
significados, até eu chegar ao que considero
a invenção pura... só existe o grande mundo vivo daqui!?”
da invenção (FAVARETTO, 2015, p. 34).
É possível sair vivo de uma das maio-
Entre o visual, o literário e o sen- res crises econômico-sociais/ políticas do
sorial, o(s) trabalho(s) de HO na Navi- século XX? Para os dadaístas, o humor

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ácido, além da ironia/ousadia era a saí- as fotografias às palavras. Folheando a
da. O dadaísmo berlinense foi o mais Navilouca, o leitor é bombardeado pelas
politizado e arrojado, desmontando a ideias centrais das vanguardas. A noção
República de Weimar como uma criança da prática artística como uma proposta
rindo ao desmontar um brinquedo. Era contingente especulativa é própria da
a ‘arte a serviço da política’. Aqui, cada vanguarda neoconcreta, sugerida por
forma nova surge do rompimento com Lygia Clark em Nós somos os proposito-
outras. Surgem cadeias de negação, res, texto de 1964, justamente o ano da
supressão da supressão, e através do intervenção autoritária militar. A ideia
ímpeto destrutivo vemos o relampejar de ‘enterrar a obra de arte’ não é nova, já
da história, implacável, destruindo para se apresenta no dadaísmo de Berlim e no
dar lugar ao novo. O dadaísmo é difun- construtivismo russo, ainda sob o impac-
dido e reforçado por meio da publicação to da I Guerra Mundial. Aqui já existia
de diversas revistas. Como o dadaísmo o ataque ao status institucional da obra
em Berlin, a Navilouca passa por uma de arte burguesa. A partir daí, é negada
gama de atividades, como a artística, toda obra de arte que esteja dissociada
política, jornalística, propagandística. da vida prática do homem. Navilouca
A fotomontagem como meio artístico seria espécie de resultado desta batalha
dadaísta é inventada no ano de 1918, de anos das vanguardas, na base da
com a combinação de imagens de origens afirmação da morte da arte tradicional.
diferentes. Em Berlim, é proclamada a Abaixo o cavalete! No texto de Oiticica,
morte da arte tradicional, expondo a rea- ‘Esquema geral da Nova Objetividade’,
lidade do caos na qual o mundo moderno vemos a vontade construtiva geral como
estava mergulhado. A experiência do o motor destas obras. E as proposições
choque foi bastante utilizada, daí brota coletivas têm ênfase, assim como a to-
uma nova forma de comunicação, através mada de posicionamento, com relação
de imagens, capaz de conferir um novo ao caos político-social. Na Navilouca, a
valor ao que antes era ignorado. grande tendência da primeira metade
Na fotomontagem, a colagem é um do século encontra-se com a radicalidade
processo de construção poética. Não é destruidora da marginália brasileira dos
algo planejado, mas uma contingência, anos 1960/1970. Navilouca incorpora os
revelada paulatinamente, como a mon- filmes marginais, evocando o cinema de
tagem de um mosaico. Navilouca seria Júlio Bressane (A família do barulho),
um trabalho pioneiro, espécie de foto- Rogério Sganzerla (Sem essa, aranha),
montagem construtivista, onde imagens Ivan Cardoso (Sentença de Deus; Amor e
são sobrepostas aos textos, incorporando tara e Chuva de Brotos – este último com

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participação de um ícone das chanchadas que sutilmente teria transformado a
do cinema nacional, Zé Trindade) além maneira de se fazer política, amplian-
de referências a filmes com o ator Wilson do as possibilidades. A contracultura
Grey. Além de Zé do Caixão, com Esta encontra neste ponto de vista a base de
noite encarnarei no teu cadáver e Night- seus comportamentos, resistindo contra
cats, o filme perdido de Neville D’almei- a opressão, que “no fundo, é política”,
da e Julio Bressane, filmado em Londres como analisa Foucault. Revistas como a
no ano de 1972. O cartaz de Sentença de Navilouca proporcionaram aos leitores
Deus, filme fortíssimo, é de Hélio Oitici- da época uma vivência contracultural,
ca. Isto sem citar o Nosferato no Brasil, por meio de experiências sociais e esté-
cujo texto de Oiticica, NOSFERATO, ticas. Nesse sentido, estas configuram
já é invocado m algumas pesquisas. As um espaço chamado por Foucault de
cenas do cinema marginal são expostas “heterotrópico”, para denominar algo so-
de forma crua, formando uma espécie de breposto à utopia: são espaços ou objetos
fotomontagem provocante e ao mesmo que, através da materialidade, propor-
tempo, angustiante. A fotomontagem é cionam outras ordens de experiências,
uma realidade na Navilouca, fato evi- outros lugares, uma espécie de alegoria
denciado no design gráfico de Luciano realizada na qual os espaços de deter-
Figueiredo e Oscar Ramos, presente em minada cultura podem ser encontrados.
toda a revista. A montagem das imagens Navilouca cumpre tal papel, pois num
entrelaçadas nas palavras vai tomando momento de repressão, consegue fazer
proporção cada vez mais violenta. As vislumbrar toda uma experiência huma-
fotografias são essenciais para fortalecer na diferenciada. Como Foucault indica,
as palavras, que vão ganhando novos o leitor destas revistas depara-se com
sentidos na medida em que se misturam. um espelho da própria realidade, porém
Ressaltando a importância da imagem, invertida. A produção das experiências
todos os trabalhos da Navilouca têm de loucura na contracultura marginal
fotomontagens. extraídas na Navilouca é considerada
Não é exagero indicar a impossibilida- além da estética, no sentido alegórico.
de de tecer qualquer comentário acerca O caráter alegórico e transgressor da
das relações de poder na contempora- Navilouca é reforçado quando anuncia,
neidade sem remeter aos anos de 1968- simultaneamente, o que se vê e o que
1974. Neste momento, Michel Foucault precisa ser decifrado. Não por acaso, a
reflete acerca das relações de poder reflexão levantada por Foucault nesta
na contemporaneidade, sendo possível mesma época situa a cultura (literatura)
traçar um diálogo com a contracultura, como espaços de experiências radicais

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em busca do limite da linguagem. Walter e rompendo com as normas estabeleci-
Benjamin percebe a arte como ruptura, das. Assim como a contracultura, o lugar
apontando a alegoria como recurso para social da loucura é certamente situado à
a crítica e compreensão da obra de arte margem da sociedade, daí a apropriação
na modernidade, cabendo ao pesquisador desta na cultura alternativa. Pela leitu-
desvendar os significados implícitos em ra das publicações, em especial a RN, é
forma de alegoria na obra. Nos escritos, evidente o propósito de ser desviante de
Benjamin revela a vontade de decifrar tudo aquilo soando como oficial.
o sentido da cultura como guardiã das A cultura marginal continua como
mais valorosas utopias históricas. uma referência histórica esmaecida,
Ao discutir o esgotamento dos mo- porém é produção pulsante e autônoma,
delos literários, Benjamin critica as resistindo num ambiente silenciado pelo
técnicas prontas de reprodução da obra autoritarismo. Na ditadura, jovens como
de arte e as formas impostas pela mo- Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Torquato
dernidade. Em “As afinidades eletivas”, Neto, incorporando o papel de marginal,
Benjamin fala pela primeira vez sobre absorvem as criações na fronteira entre a
a “estética da ruptura”. Este ensaio, arte e a experiência, estética e pessoal, e
publicado em 1922, já aponta a faísca estreitam os limites entre a vida e a arte.
da transformação que ultrapassa o Portanto, a Navilouca pode ser conside-
momento histórico: a noção de ruptura. rada forte representação da contracultu-
Para Benjamin, a arte e a crítica têm o ra no Brasil, marcando ao mesmo tempo
papel de violência: a violência do corte, seu epitáfio, em 1974. O mosaico artís-
da ruptura combustiva. A verdade seria tico ali composto une o concretismo, o
alcançada nestes momentos de ruptura. tropicalismo e a contracultura enquanto
Benjamin analisou o fenômeno do declí- expressões maiores da experimentação
nio da experiência autêntica, apontando estética, da transgressão da linguagem
os efeitos da escrita, da imprensa e da e da crítica cultural durante a ditadura.
indústria cultural. O resultado deste pro- Até onde é possível compreender, é falso
cesso de instauração da modernidade foi acusar de ‘vazio’ o período no qual a di-
a entronização de uma percepção frag- tadura promove o embrutecimento. Em
mentária, contracultural e descontínua. contrapartida, à censura e às agressões
As pesquisas indicam a contracultura cometidas pelos desvarios autoritários
apropriando-se das imagens da loucura dos generais, surge uma arte/cultura de
e do consumo das drogas numa versão invenção do lado de dentro, disposta a
radical da crítica ao consumismo exacer- reunir a criatividade e a arte na própria
bado, furtando-se de “servir ao sistema”, vida, numa fusão entre a criatura e a

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criação. Este suposto ‘vazio cultural’, es- ment, in a kind of anarchic freedom,
boçado por alguns nomes de intelectuais an anti-art derived from rigorous
processes of composition with the
na virada da década de 1970, é falso, pois proposal of a planned collective par-
seria um ‘vazio preenchido’ justamente ticipation, where participants do not
pela contracultura. De fato, após a dis- ‘create’, ‘experience creation’. Torquato
Neto did not have any books publi-
cussão proposta, temos a Navilouca como shed, his work spreads in several ni-
crucial para a compreensão dos anos de ches. Navilouca represents a true epi-
chumbo. É de suma importância voltar taph to whom the proposal of fusion
between art and life led to the final
o nosso olhar para as ‘revistas de inven- consequencesKeywords: Countercultu-
ção’ da década de 1970, em especial a re; Alternative Press; Torquato Neto.
Navilouca, que embora sempre apontada
Keywords: Counterculture. Alternative
como fundamental para a compreensão press. Torquato Neto.
das revistas marginais e do próprio pe-
ríodo, principalmente nos dias de hoje,
Referências
quando experimentamos um recrudesci-
mento da violência e do autoritarismo, ADORNO, Theodor W. Horkheimer Max.
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Salomão, between 1971 and 1972, BENJAMIN, Walter. Origem do drama trági-
but only launched in 1974. Standing co alemão. Edição e tradução de João Barren-
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marginal cinema, the essays written minha culpa e meu pecado, cultura marginal
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ge totally subversive to grammatical
norms, and there is a constructive FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio
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ve aesthetic capable of capturing the Edusp, 2015.
impressions / sensations of that mo-

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