Fazenda Modelo Leme

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Literatura

Fazenda Modelo
Chico Buarque
(Acafe)

Jow Jow
O Autor
➢ Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque (Rio
de Janeiro, 19 de junho de 1944), é um músico, dramaturgo, escritor e ator
brasileiro. É conhecido por ser um dos maiores nomes da música popular
brasileira (MPB). Sua discografia conta com aproximadamente oitenta
discos, entre eles discos-solo, em parceria com outros músicos e compactos.
➢ Escreveu seu primeiro conto aos 18 anos, ganhando destaque como cantor a
partir de 1966, quando lançou seu primeiro álbum, Chico Buarque de
Hollanda, e venceu o Festival de Música Popular Brasileira com a música A
Banda.
➢ Autoexilou-se na Itália em 1969, devido à crescente repressão do regime
militar do Brasil nos chamados "anos de chumbo", tornando-se, ao retornar,
em 1970, um dos artistas mais ativos na crítica política e na luta pela
democratização no país. Em 1971, foi lançado Construção, tido pela crítica
como um de seus melhores trabalhos, e em 1976, Meus Caros Amigos -
ambos os discos figuram, por exemplo, na lista dos 100 maiores discos da
música brasileira organizada pela revista Rolling Stone Brasil.
➢ Além da notabilidade como músico, desenvolveu ao longo dos anos uma
carreira literária, sendo autor de peças teatrais e romances. Foi vencedor de
três Prêmios Jabuti: o de melhor romance em 1992 com Estorvo e o de Livro
do Ano, tanto pelo livro Budapeste, lançado em 2004, como por Leite
Derramado, em 2010. Em 2019, foi distinguido com o Prémio Camões, o
principal troféu literário da língua portuguesa, pelo conjunto da obra.
PRINCIPAIS OBRAS
Livros:
➢ 1974: Fazenda Modelo
➢ 1979: Chapeuzinho Amarelo
➢ 1981: A Bordo do Rui Barbosa (ilustrações de Vallandro Keating)
➢ 1991: Estorvo (primeiro romance)
➢ 1995: Benjamim
➢ 2003: Budapeste
➢ 2009: Leite Derramado
➢ 2014: O Irmão Alemão
➢ 2019: Essa Gente (romance)

Peças:
➢ 1967/8: Roda Viva
➢ 1973: Calabar (co-escrita com Ruy Guerra)
➢ 1975: Gota d'Água
➢ 1978: Ópera do Malandro
➢ 1983: O Grande Circo Místico

Filmes:
➢ 1972: Quando o carnaval chegar (coautor)
➢ 1980: Certas Palavras
➢ 1983: Para Viver um Grande Amor (coautor)
➢ 1985: Ópera do Malandro
➢ 1995: O Mandarim (ator)
Comentário:

➢Ano de publicação: 1974 (durante o Regime Militar)


➢Gênero: novela
➢Trata-se de uma ALEGORIA: a fazenda representa o país, o boi
governante (Juvenal) a junta militar e técnica, os bois
trabalhadores (Aurora, Abá, Baixinha, Baronesa, Dama...) os
brasileiros alienados pelo regime.
➢Ressalta-se a PROSOPOPEIA, pois são dadas características
humanas a animais.
➢Intertexto com A REVOLUÇÃO DOS BICHOS, de George
Orwell, por sua vez também uma alegoria.
➢Embora seja uma novela, ao longo da obra são apresentados
outros gêneros textuais: carta, diário, jornal, mapa, música,
bíblia e ato institucional.
Comentário II:
➢ Chico escreveu a "novela pecuária" Fazenda modelo em 1974, quando
rompeu por um período seus contratos musicais e se trancou durante nove
meses para compilar o livro. Os bois e outros animais compõem uma
alegoria do Brasil da censura, da ditadura, das maravilhas e mazelas do
milagre econômico.
➢ A Fazenda modelo é uma comunidade bovina que começa a crescer e que
se vê - através da liderança mansa do boi Juvenal, o bom - submetida a um
processo radical de transformação, de "progresso": em que tudo que era
natural é considerado "atrasado" ou "pecado" e passa a ser cientificamente
regulado. Destroem-se todas as formas de auto-regulação do indivíduo,
desde as alimentares até as sexuais: a procriação na Fazenda Modelo
estava garantida através da inseminação artificial - do banco de espermas do
touro Abá, o Grande Reprodutor. Juvenal abolira o relacionamento sexual do
rebanho, totalmente voltado à reprodução. E o filho de Abá, Lubino, deveria
suceder o pai nessa gloriosa tarefa de "rapador" da Fazenda Modelo.
(Adélia Bezerra de Meneses, Literatura Comentada.)
Resumo do resumo
➢A Fazenda Modelo é o Brasil durante a ditadura militar.
➢Juvenal é a junta militar que governou o país e engendrou o
“milagre econômico”.
➢Os clientes/investidores/invisíveis são o capital externo, que
secou depois da crise do petróleo de 74 (ano da publicação do
livro).
➢Abá, Aurora, demais vacas, bezerros e vitelos são a classe
produtora. Em certa medida, são classe média alta, com mais
benefícios e que ascendeu economicamente.
➢Do-patrão, Anaía e os outros Joões são a classe operária.
Alguns se conformaram com o sistema, outros se rebelaram. A
desigualdade econômica agravou-se ainda mais após 74.
Elementos pré-textuais:
Dedicatória, Agradecimentos,
Prefácio e Epígrafe:
➢A dedicatória é à Latucha, uma personagem da história.
Ou seja, o autor do livro também é um “boi” da Fazenda
Modelo.
➢Os agradecimentos são a personagens do livro, todos
partidários de Juvenal, o governante. Ou seja, é um livro
sancionado pelo governo.
➢Da mesma forma o prefácio elogioso foi escrito em F.M.
(Fazenda Modelo) por um membro da AFML, uma paródia
da ABL (Academia Brasileira de Letras).
➢A epígrafe é uma citação de Bíblia, mais precisamente dos
direitos acerca dos frutos do trabalho... Justamente o
oposto do que acontece com os “bois” habitantes da
Fazenda Modelo.
Dedicatória
A Latucha minha estimada esposa cuja candura compreensão tornaram possível a
realização deste livro.

Agradecimentos
Ao inspetor Klaus, pelo estímulo a realização deste livro, demonstrando mais uma vez
seu elevado espírito de ruralista esclarecido.
Ao Dr. Kapp pelo apoio e pelas sugestões apresentadas, ao fazer, bondosamente, a
leitura prévia do presente trabalho.
Ao prof. Kazuki, meu conselheiro e mestre, pelos constantes incentivos a edição desta
obra.

Prefácio
Como veteranos pecuaristas, sentimo-nos, ao mesmo tempo, assustados e
contemplados com encargo que nos foi confiado.
A tarefa que cabe ao leitor jovem que, a exemplo do autor, povoa e enriquece a
realidade que é, hoje, a nossa Fazenda Modelo.
F. M. , maio de 1974
K. Kleber
(da A.F.M.L.)

Epígrafe
Não porás mordaça ao boi enquanto debulha.
(Deuteronômio)
I - De como era a fazenda
➢Era assim: o que quiser que tenha, tinha. Luar do sertão, girassol,
temporal, lamaçal, urubu = tudo de bom e de ruim.
➢Bois e vacas andavam misturados, sem cerca, sem saber a
quantidade exata. Algumas leis havia: não apontar para estrela que
dá verruga, não olhar mulher nua que dá terçol (crendices). O mato
era irregular, com estações de chuvas ou secas, vida difícil.
➢Ninguém era de ninguém. Famílias se faziam e se desfaziam, o gado
copulava sem regras. Um casal de bezerros, Abá e Aurora,
conheceram-se e amaram-se, gerando muitos filhos a cada ano, cada
um com uma letra do alfabeto. Nas entressafras, ruminavam coisas
como justiça, abundância, mundo melhor, essas coisas que a gente
só imagina quando não tem que furar poço.
➢Sarna, piolho, toda espécie de parasitas, teoricamente mortais,
pareciam viver em simbiose com o rebanho. Os bezerros berravam
tanto que, tudo somado, era uma vida boa.
➢Mas dava prejuízo, reinava a indisciplina, campeava a libertinagem.
Portanto, já era tempo de impor a ordem à comunidade vacum.
II – Ato (institucional?)
➢Por meio de um documento que não cabe reproduzir
aqui, muito extenso, insosso, cheio de vírgulas,
redundante, truculento e quase incompreensível,
Juvenal, o Bom Boi, ficou nomeado conselheiro-mor. A
ele todas as reses devem obediência.
III - Juvenal
➢ Uma série de incidentes desagradáveis, atrocidades, passou a ocorrer com frequência,
mas Juvenal esteve sempre alheio. Foram seus subordinados que cometeram alguns
desmandos. A História há de isentar Juvenal, que sempre cumpriu ordens superiores,
divinas.
➢ Agentes de confiança de Juvenal:
Klaus, encarregado de aparar os chifres, cortava também beiços, orelhas, unhas e até
é de quem protestava.
Karim, o ferrador, tatuava as letras no lombo inteiro das reses.
Kamorra e Katazan, encarregados da castração, salivavam de satisfação, degustando
os guisados de logo mais.
➢ No churrasco de posse, carnes dos mais variados tipos. Juvenal faz discurso de frases
feitas: “Quem semeia vento colhe tempestade. Depois da tempestade vem a bonança.”
Aplausos.
➢ Agradece a confiança e dirige-se aos que não foram convidados para o banquete, as
classes produtoras, ligadas ao sucesso da Fazenda. Fazia-se imprescindível o apoio de
tais classes, ainda que sacrifícios fossem necessários.
➢ Como não existe suserano sem vassalagem, também se dirigiu às classes menos
favorecidas, que um dia haveriam de lucrar com o desenvolvimento da Fazenda. Por ora,
pedia paciência. As riquezas, é importante concentrá-las antes de pensar em distribuição.
A situação dos menos favorecidos era culpa de erros atávicos, antigos, repetidos. Os
menos qualificados devem morar no descampado, para não contaminar os bons.
➢ Esses vassalos se orgulharão de servir a seus senhores e, num futuro remoto, podem
resultar em algo bom. Poderão acompanhar a distância os progressos da Fazenda
Modelo. Aplausos.
IV - Canção descampada
CANÇÃO DESCAMPADA
Lá todo mundo é José
Lá todo mundo é João
Todo mundo se conhece
Não pelo nome
Mas pelo aleijão
— Ei, cotó
— Ei, corno
— Ei, coxo
— Ei, culatrão
IV - Canção descampada
➢Pessoal do descampado se assustou com o serviço bruto
de identificação. Além de ignorantes, são novidadeiros,
esquecem fácil. A novidade das oito é a tela mágica ligada
na praça do coreto. Todos foram ver o pronunciamento do
chefe.
➢Tempo de olhar para frente e esquecer as desavenças. Os
menos qualificados devem esperar no descampado que
eles mesmos pisotearam. Se caminhassem com atenção e
sensatez, seria verdura que cresceria.
➢Depois do pronunciamento a tela mágica fica ligada, para
fazer propaganda de como vivem as classes abastadas.
Dá inveja sadia de querer as coisas boas também, dá
orgulho de ser vizinho de quem tem essas coisas boas,
quem viram figurinhas e pôsteres.
➢Dá um cuidado louco de não se intrometer no sonho, para
não quebrar e sujar esse sonho.
V - Abá
➢ Juvenal recebeu com encanto a adesão de Abá, instalado no planalto central, em
touril seco e bem construído, a milhas de distância de todas as vacas e tentações.
➢ Abá é touro de reprodução e assume o posto com altruísmo, não como cúmplice da
ordem reinante. Quer explicar isso a Aurora, mas Juvenal não deixa. É preciso
obedecer o calendário da estação de monta, para ganhar peso e produzir sêmen com
qualidade.
➢ A saudade faz Abá exasperar-se, em crise sexual e existencial. Mas Juvenal quer
nascimentos programados, e engana Abá com calendários adulterados e
tranquilizantes. Em abril, finalmente, quando Abá encontra Aurora, fez um estrago
nela (e em Juvenal, que tentou apartá-los depois da terceira ejaculação).
➢ Juvenal queria que Abá usasse um pedestal (“cópula mais científica”) mas a libido era
tanta que Abá se entregou por completo em “sessenta e quatro poses diferentes”.
Depois de Aurora, Abá inseminou mais treze vacas, ainda pensando em Aurora
(“união sexual de amor transferido”).
➢ No mês seguinte Abá já estava irrequieto de novo, e Juvenal não sabia como contê-
lo. Nenhum dos livros técnicos que comprara tinha remédio para isso, então levou
sete vaquinhas virgens do descampado, material de péssima qualidade, para
sossegar Abá. Para Juvenal era desperdício, o que o fazia pensar em inseminação
artificial.
➢ Juvenal olhava os espécimes doadores de sêmen, boa raça holandesa, mas perto de
Abá era como mulas.
VI - Aurora (em forma de diário)
➢ As vacas de raça pura foram confinadas para preservar suas gestações. Por amor
aos filhos, não protestaram.
➢ 1º de abril: (dia do encontro com Abá): Abá numa rampa (o pedestal) ridícula, mas o
ardor do momento não me deixou criticar. Diz Juvenal que é para me preservar do
peso, mas é um prazer padecer sob aquele peso. Desejava ser maltratada assim de
novo, sem rampa, sem vergonha, sem programação. Como antigamente.
➢ 1º de maio: sabor horrível o do melengestrol e todos os outros remédios. Só por
amor a um filho. Eu estou anêmica de Abá, saudade dos tempos que comíamos
todos os matos, até os podres.
➢ 10 de maio: a regra está atrasada. Juvenal garante que estamos grávidas e policia a
dieta. Passa seu nervosismo para nós.
➢ 21 de maio: Juvenal nos levou para um excursão em Juvenópolis, a capital. Tem
ponte, túneis e elevadores. Tem até laboratório no oitavo andar. As colegas voltaram
falando maravilhas no ônibus de luxo. A mim me falta alguma coisa.
➢ 10 de junho: Ainda saudades de Abá, acompanho sonolenta as consultas
ginecológicas de praxe. Os médicos perguntam se não me falta nada. Não falta:
música ambiental, ar condicionado, edifício alto... Mas falta pouco para eu soltar um
grito.
➢ 29 de junho: Por amor do filho, engulo os remédios, as dietas e a saudade de Abá.
Cumpro o programa completo, senão Juvenal diz que sou velha ranzinza, egoísta e
reacionária. As incomodadas que se retirem.
➢ 15 de julho: Ariadna era uma que não andava satisfeita. Era do contra e reclamava.
Foi examinada pela junta médica. Estava passando mensagens deturpadas do
mundo exterior ao feto. Ontem não voltou com o ônibus.
➢ 12 de agosto: Tenho me esforçado, me violentado para expressar
naturalidade. Converso amenidade com Kebab da junta médica. Ele me
conta que, quando há sintomas de doenças incuráveis e danosas à
sociedade, a junta se transforma em Comissão de Eutanásia. Cuspo no chão
para afastar feitiço.
➢ 6 de setembro: Juvenal, sempre científico, reabilita uma crendice: “gestante
não deve passar por baixo da cerca, para não enforcar o feto com o cordão
umbilical”. Ele sabia que eu gostava de errar por aí. Amor e liberdade são
palavras bonitas quando não estão em jogo valores maiores, o futuro dos
filhos. É para isso que existe a estabilidade.
➢ 8 e 9 de outubro: 1ª ExpoInter de Juvenópolis. Abá é o campeão mundial
dos reprodutores. Nós de batas de lamê. Abá passa longe e nem olha.
➢ 15 de novembro: não precisa mais simpatia para saber o sexo do feto.
Retiram líquido da gente e dão o resultado em dois dias.
➢ 17 de novembro: espero gêmeos!
➢ 8 de janeiro: Lubino e Latucha com volúpia negociam minhas tetas, que
jorram leite em um volume absurdo. Engasgaram com o primeiro colostro e
me foram desmamados para sempre.
➢ Juvenal custou a convencer as mães que aquela abundância de leite não
convinha às crianças, era artigo de exportação. As crianças foram internadas
em boxes asseados, Juvenal mesmo velará por elas.
VII - Da tela mágica
➢Na tela mágica, outro pronunciamento de Juvenal. Ele usa muito a
palavra quaisquer, que ninguém conhecia, mas que todo mundo
imitou no mercado e em casa.
➢Anaía e o marido João assistem à demonstração da primeira geração
programada. Já tem setes filhos, não tão bonitos, pois faltou
planejamento, até ordem alfabética. Anaía está grávida do oitavo.
➢Novos projetos de Juvenal: moradia própria, rede de esgoto, parcelas
cabíveis em qualquer orçamento. Interesse em incentivar quaisquer
investimentos industriais. Quem mais lucra é o descampado, este
solo ácido onde é plantar só chaminé.
➢A olaria ficava fechada a maior parte do tempo, pois o sindicato ficava
na porta, fazendo greve. João queria furar o portão e trabalhar
sozinho, mas Juvenal garantiu que esses empecilhos não ocorrerão
mais.
➢Ninguém mais cruzaria os braços para discutir aumento do salário. Se
ele aumenta, aumenta a prestação, a gasolina, tudo. Depois, se você
trabalhar nas horas extras que passa reclamando, é lógico que
aumenta seu salário sem inflação, sem piquete no portão.
VIII - Ouro branco
➢ Juvenal quer implantar o programa Esperma Export. Discutia-se a validade dos quatro
processos de coleta:
➢ Primeiro processo: coleta do sêmen na vagina. Muito imoral para a formação religiosa de
Juvenal, mas os clientes tinham pressa. Levaram Aurora até Abá, eles tentaram variar as
sessenta e quatro posições (só conseguiram trinta e duas). Separaram a custo os dois,
aspirando o quentinho das pregas de Aurora. Não é um sistema muito recomendado, pois o
esperma sai contaminado pelas secreções vaginais.
➢ Segundo processo: vagina artificial. Uma bolsa ortopédica fixada nas virilhas da fêmea.
Aurora não topou, então levaram sete novilhas desconhecidas. Abá chutou o coletor de
espermas longe e deflorou as sete.
➢ Terceiro processo: coleta por massagem retal. Pouco prática em touro ainda capazes de
monta. Abá reclamou da massagem no local. Além disso, a imagem da Fazenda Modelo
estava denegrida, com sua virilidade em cheque.
➢ Quarto processo: eletroejaculação (proposta pelos próprios clientes, com maquinário
vendido por eles também). Abá aceitou, não pelas honrarias que recebeu, mas para entender
os meandros do poder. Eletrodos afixados, sucesso: o ouro branco jorrou em jatos. Os
clientes reconheceram a excelência do material.
➢ Juvenal estava radiante. Isto aqui deixou de ser um ninho de sucuris e sacis, somos uma
Fazenda em vias de industrialização. Nossa imagem se assemelha a dos grandes.
➢ Abá, estirado, entorpecido, pediu mais eletro ejaculação. Estava viciado.
IX - Os predestinados
➢ Com muito zelo Juvenal cuida dos novos bezerros em seus boxes: Lubino, Latucha,
Lactâncio, Lia, Lin, Lucrécia... Todos perfeitos até nascerem os dentes.
➢ Por conta própria, Juvenal receita mingau, na tentativa de não incentivar os dentes,
mas esse cresciam, reclamando fibras. Os vitelos reclamaram, amuaram, rejeitaram o
mingau. Quanto mais reclamavam, mais mingau ganhavam, para ver quem mandava.
Tempos depois, quando receberam favas, não sabiam o que fazer, preferindo o
mingau e mastigando vento.
➢ Os mais rebeldes foram entregues à tutela de educadores. Usavam de canga,
atrelavam um xucro a dois mansos para quebrar-lhe o espírito. Quase sempre
funciona, mas há os muito rebeldes, como Ladislau.
➢ Era um subversivo, contrariava tudo. Acabou cativo em local distante, onde tempos
permaneceu, morto ou vivo (Ladislau foi torturado). Como a mãe morreu, ganhou
liberdade condicional, mas já não presta mais, tem mania de perseguição.
➢ Reconhece-se que há métodos condenáveis, talvez algumas injustiças. Mas o
sistema é como um sapato novo, que aperta no começo até se acostumar. Melhor
que sapato folgado, que vira chinelo e não presta mais.
➢ Os bezerros e as novilhas começaram a se engraçar uns com os outros. Juvenal
aprendeu que o instinto tende ao mal desde a juventude. Para as novilhas, construiu
um claustro. Os novilhos, com exceção do sucessor de Abá, mandou castrar. Assim
salvou a todos.
X - Povo na praça
➢Há críticos dizendo que o surto de riqueza da Fazenda
Modelo só interessa a poucos. Mas Juvenal se dirige ao
povo do descampado, dizendo que são merecedores.
Talvez o único gado do mundo criado com o objetivo
principal do trabalho. Quando não podem mais com a
canga, engordam na previdência, fornecendo carne de
terceira ou quarta.
➢De sábado para domingo houve aglomeração ao pé da
estátua. Enquanto espera, tumultos, batucada. Às seis
chega um helicóptero, um assombro geral. Chega Juvenal,
elogiando o brio de nossa raça indígena. Inaugura uma
estátua em homenagem ao boi trabalhador.
➢João pensa em Anaía e acha que ele próprio é a cara do
boi da estátua. Juvenal lembra do ditado: “Do boi só se
perde o berro.” Completa: “Por isso mesmo é que nesta
profícua fazenda” – sorriu – “ninguém mais berra”.
XI - Kumalco Ltda
➢João Adão, esposo de Anaía (Ana Maria), trabalha na Kumalko (Kulak
Materiais de Construção). Anaía está grávida pela oitava vez (talvez
gêmeos), e parece doente.
➢Adão é funcionário modelo, não se mete em política. Enfeitou a casa
com rejeitos da fábrica. Qualquer um poderia, se se preocupassem
com isso no lugar de mulher, futebol e política.
➢Quando nasce filho novo, pede rejeitos da fábrica, pregos e Eucatex.
Dessa vez ganhou um pouco mais (são trigêmeos), e conseguiu a
kombi emprestada. Ganhou a inimizade dos colegas e o apelido de
João-do-Patrão.
➢Do patrão ele não é nada, mas talvez o patrão o chamasse e
oferecesse um cargo. Hipótese absurda. Ele podia batizar um dos
filhos. Não. Os outros talvez até o matassem, como fazem os
sindicatos aí fora.
➢Em casa, pensava porque noventa em cada cem modinhas falavam
de solidão. Com a mulher e os filhos, sentia-se só. Afogava as
mágoas na reforma, martelando. A casa sufocava, a doença de Anaía,
o choro dos sete filhos, o esgoto que ainda não ligaram. Dormia na
calçada, beijando o muro que reformara.
XII - Inseminário
➢ As vacas invadem a Estância. Balbina morreu de desgosto. Querem os filhos.
Juvenal reclama, devem estar menstruadas, é a segunda inseminação que não pega,
não dão nem mais leite direito.
➢ Juvenal as leva em safaribus, para mostrar uma área que antes era mato e agora é
civilização. Asfaltada e urbanizada para vender e alugar aos de fora. Só tiveram de
exterminar os auroques (=índios). Os de fora acharam ouro e cobre nas terras.
Quando terminarem de achar coisas, ainda vai sobrar um descampado bom para o
povo pastar. Elas só perguntam pelos filhos.
➢ Juvenal perdeu a cabeça e contou a verdade: na fazenda sempre houve crimes e
sumiços, mas ninguém nunca se importou. Agora as vaquinhas estão chocadas
porque pode acontecer aos seus filhos o que antes só acontecia ao filho da
empregada.
➢ Foram ver Abá, que agora respondia por Incitatus. Estava comendo em manjedoura
de marfim e tentava convencer as vacas a não se revoltar, pois o sistema só se muda
por dentro. Foi tão vaiado que correu a pedir eletroejaculação.
➢ Juvenal tentou fazer inseminação em Aurora. Se ela entendesse, todas entenderiam.
Mas em Aurora parecia crescer em revolta.
➢ Enquanto isso, cresciam os filhos de Aurora. Lubino era a cara de Abá, mas se
incomodava com os próprios testículos. Nascera para ser boi, não touro. Para irritá-lo,
era só compará-lo com Abá.
➢ Latucha queria ser mãe todo ano, qual Aurora. Para agradá-la, era só compará-la
com a mãe.
XIII - Os formandos
➢ Os bois desfrutam da liberdade no pasto restrito. O que quer a mocidade?
➢ Lancelote experimentou uma salada de cogumelos. Alucinou tanto que se matou.
➢ Outros querem cooperar com o engrandecimento da Fazenda Modelo. Ser tudo,
executivo, industrial, testa de ferro, informante. Só não reprodutor, pois esse seria
Lubino, que andava de pernas fechadas com vergonha dos testículos.
➢ A mocidade não precisava querer mais nada. Juvenal tirou deles o menor capricho,
há raríssimos casos de indisciplina. Os próprios colegas os recriminam e condenam.
➢ Lin, por outro lado, era um alheio a tudo. Olhava para si, para dentro, a ponto de
aprender a controlar o próprio metabolismo. Mas não ensinou isso a ninguém,
apenas usava para ser feliz. Acabou por chamar a atenção de Katazan, uma
autoridade, que passou a perseguir Lin, sem nem saber direito por quê. Lin não
reclamava e Katazan tinha medo de, por dentro, Lin se achar superior a Katazan.
Acabou matando-o.
➢ Juvenal levou Lubino para o topo da colina. Lubino não queria aceitar que era um
touro. Juvenal precisou admitir que inveja os touros (meia mentira). Apontou os
pobres da Fazenda, de más tendências, sem cultura ou organização, por mais que
se fizessem campanhas. Mas Lubino não, ele em uma ejaculada (o esperma é mais
importante que o orgasmo) enprenharia trinta vitelas de uma vez, sem nem contato
físico. Pois se é pecaminoso o coito sem proliferação, santa deve ser a proliferação
sem coito.
➢ Lubino, curioso, vai até o curral das vitelas. Tem curiosidade e atração por Latucha,
que ele sentia ser sua irmã.
XIV - De como se comportam as
vitelas no curral
➢Juvenal visitava pouco o curral das vitelas, quando o fazia, era
acompanhado de clientes, que compravam uma ou duas.
Acompanhava os progressos pelos relatórios.
➢Há coisas que relatórios não mostram. Curiosidades,
puberdade... As carícias em partes indevidas aconteciam.
➢Juvenal apareceu, sozinho e transtornado. Gritou “Pecado
mortal!” e advertiu que, a partir de agora, elas se submeteriam
aos flagelos e provações para fazer parte da sociedade.
➢Juvenal as levou a um ritual de purificação, rezando para que
permanecessem domésticas como gato de mobília e
sacrificassem suas formas pelas glórias maternais.
XV - Anaía, meu amor
➢João-do-patrão estava animado com o sucesso da Kumalco. Em
casa, Anaía ainda sofria com as dores. João trabalhava mais e
mais, sempre fazendo hora extra. Até se perdeu nas contas dos
meses de gestação. Queria guardar para um consórcio de uma
kombi.
➢Os outros Joões faziam músicas com palavrões sobre ele.
Coitados, não queriam trabalhar, só queriam saber de sindicato.
➢No fim, Do-patrão não conseguia ficar nem em casa, o fedor de
Anaía e do esgoto que ficaram de solucionar. Começou a dormir
na fábrica, sempre arranjando serviço, inclusive nos domingos. Na
hora do parto, não eram trigêmeos, era um janicéfalo, quase só
cabeça, com duas faces que não podiam se encarar.
XVI - Da noite para o dia
➢ Nuvens negras pairavam na Fazenda Modelo. Rumores de doenças e epidemias. As
tetas das vacas murchavam (“foi dando uma tristeza”), mas as notícias disso não foram
parar no jornal, para não alarmar.
➢ Quem tinha acesso às notícias reagia estranho. O inspetor Kurn, por exemplo, executou
o novilho Luar sem maiores explicações.
➢ Lubino parecia um alienado mental, vítima de mutismo involuntário.
➢ As vitelas também foram pegando a “tristeza das tetas”. Tomou conta da Fazenda um
surto de hipocondria. As fazendas vizinhas, em aviões, despejavam caixas. As pessoas
pensavam que eram vacinas, mas ao abrirem, depararam-se com devoluções do
esperma de Abá (que já havia morrido, de trombose).
➢ Juvenal pede a Aurora que convença Lubino a substituir Abá. Mas Aurora não consegue
nem se convencer, lembrando de um Abá já débil e viciado em eletroejaculação. Aurora
morre.
➢ Juvenal chama Aurora de mãe, o que causa estupefação em Lubino, que sai correndo.
➢ Em disparada, é alvejado pelas viaturas policiais, e percorre todos os cantos da
fazenda, correndo e dançando. A cada bala que recebe descobre um novo passo de
dança, e a multidão que acompanha o chama de “Obaluaiê”, o orixá de cura. Latucha
morre alvejada.
➢ Mesmo assim, ninguém viu quando, todo estropiado, foi capturado e levado ao touril,
para ser ligado à máquina de eletroejaculação. Lubino não ejaculou, mas morreu
carbonizado.
XVII - Aboio
➢Um aboio é um canto de chamar gado. Assim o rebanho
passa em direção à Estância, famintos da palavra de
Juvenal, ignorantes que desta vez não há nada a declarar.
➢Juvenal sobreviveu a hecatombe, e isso é pior do que ter
morrido. Alguns assessores e apoiadores abandonaram
Juvenal. Abaixo, os sobreviventes, os que Juvenal nunca
quis que sobrevivessem. Querem uma palavra de Juvenal.
➢Eles vêm em marcha caótica, de peito aberto, sem se
importar com fossos, tiros ou morteiros. Querem ouvir
Juvenal, querem que ele lhes diga o que fazer. Mas
Juvenal se esconde.
➢No lugar de ouvir um aboio que apascenta, ele ouve um
aboio que açula.
XVIII – Ato final

➢Por meio de um ofício bastante complicado, cheio de


crases, hifens e acidentes gramaticais, Juvenal
mandou liquidar o gado restante, decretando o fim da
experiência pecuária e destinando seus pastos à
plantação de soja, que é mais barata, mais tratável e
contém mais proteína.
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