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Traduções8 Qorpus-V9-n2 Valdez Moura

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A galinha degolada, de Horacio Quiroga1

Tradução de Maria Barbara Florez Valdez2


Universidade Federal de Santa Catarina

Willian Henrique Cândido Moura3


Universidade Federal de Santa Catarina

Representação do conto La gallina degolada. Fonte: Fundación Horacio Quiroga.

Todos os dias, sentados em um banco no pátio, ficavam os quatro filhos idiotas do


casamento Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos bobos e erguiam a
cabeça com a boca aberta.
O pátio era de terra, cercado a oeste por um muro de tijolos. O banco ficava
paralelo ao muro, a cinco metros, e ali eles se mantinham imóveis, com os olhos fixos nos
tijolos. Como o sol se escondia por trás do muro, ao se pôr, os idiotas faziam festa. No
começo, a luz ofuscante chamava sua atenção e pouco a pouco seus olhos se animavam; ao
final, riam estrondosamente, contagiados pela mesma hilaridade ansiosa, olhando o sol
com uma alegria bestial, como se fosse comida.

1
Realizamos a tradução para o português brasileiro do conto La gallina degollada, do escritor uruguaio
Horacio Quiroga. O texto original encontra-se disponível no endereço eletrônico da Fundação Horacio
Quiroga: https://horacioquiroga.org/cuentos/cuentos-de-amor-de-locura-y-de-muerte/7/ [N. do T.]
2
Mestranda da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, Brasil. E-mail: mariabarbaraflorez@gmail.com
3
Mestrando da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, Brasil. E-mail willianhenry_@hotmail.com

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Outras vezes, alinhados no banco, zumbiam horas inteiras imitando o bonde
elétrico. Os ruídos fortes sacudiam também sua inércia e, então, corriam mordendo a
língua e mugindo ao redor do pátio. Mas quase sempre estavam apagados em uma letargia
sombria de idiotismo, e passavam o dia todo sentados em seu banco, com as pernas
penduradas e quietas, encharcando suas calças de saliva pegajosa.
O maior tinha doze anos e o menor, oito. Em toda sua aparência suja e indefesa,
notava-se a falta absoluta de um pouco de cuidado materno.
Esses quatro idiotas, no entanto, um dia tinham sido o encanto de seus pais. Com
três meses de casados, Mazzini e Berta estreitaram seus laços amorosos de marido e
mulher, mulher e marido, até surgir um laço mais vital: um filho. Pode haver maior alegria
para dois apaixonados do que a consagração de seu carinho? Um amor mútuo sem fim
algum, sem esperanças possíveis de renovação, agora liberto desse egoísmo vil.
Assim se sentiram Mazzini e Berta, e quando o filho chegou, com quatorze meses
de casados, acreditaram já ter cumprido sua felicidade. O bebê cresceu belo e radiante, até
completar um ano e meio. Mas, uma noite, no vigésimo mês, foi sacudido por convulsões
terríveis, e na manhã seguinte não reconhecia mais seus pais. O médico o examinou com
essa atenção profissional de quem está visivelmente procurando as causas do mal nas
doenças dos pais.
Depois de alguns dias, os membros paralisados recuperaram o movimento; mas a
inteligência, a alma, e até o instinto, tinham desaparecido totalmente; tinha ficado
profundamente idiota, babão, molenga, morto para sempre sobre os joelhos de sua mãe.
Ŕ Filho, meu filho querido! Ŕ soluçava a mãe, sobre aquela terrível desgraça de seu
primogênito.
O pai, desolado, acompanhou o médico até a porta.
Ŕ Ao senhor posso dizer: creio que seja um caso perdido. Poderá melhorar,
aprender tudo o que seu idiotismo permitir, mas não mais que isso.
Ŕ Sim… sim… Ŕ assentia Mazzini Ŕ. Mas me diga: O senhor acredita que é
hereditário, que…?
Ŕ Em relação à herança paterna, já lhe disse o que eu acreditava quando vi seu
filho. Sobre a mãe, há ali um pulmão que não sopra bem. Não vejo mais nada, mas há um
sopro um pouco áspero. Recomendo um exame detalhado.
Com a alma destruída de remorso, Mazzini redobrou o amor para com seu filho, o
pequeno idiota que pagava pelos excessos do avô. Mesmo assim teve que consolar e
sustentar Berta sem trégua, ferida profundamente pelo fracasso de sua jovem maternidade.

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Como é natural, o casal pôs todo o seu amor na esperança de outro filho. Este
nasceu saudável, e seu riso cristalino resgatou o sonho perdido. Mas aos dezoito meses as
convulsões do primogênito se repetiram e, no dia seguinte, o segundo filho amanheceu
idiota.
Desta vez os pais caíram em um desespero profundo. Logo seu sangue e seu amor
estavam amaldiçoados! Seu amor, principalmente! Ele, vinte e oito anos. Ela, vinte e dois.
E toda a sua ternura apaixonada não era suficiente para gerar um átomo de vida normal. Já
sequer pediam beleza e inteligência como para o primogênito; apenas um filho, um filho
como qualquer outro!
Do novo desastre brotaram outras chamas desse amor doloroso, um louco desejo de
redimir de uma vez por todas a santidade de sua ternura. O desastre foi sucedido por
gêmeos, e passo a passo repetiu-se o processo dos mais velhos.
Além de sua imensa amargura, restava para Mazzini e Berta uma grande
compaixão por seus quatro filhos. Foi necessário arrancar do limbo da mais profunda
animalidade, não apenas suas almas, como também o próprio instinto abolido. Não sabiam
engolir, mudar de lugar, ou sequer se sentar. Por fim aprenderam a caminhar, mas
esbarravam em tudo, por não se dar conta dos obstáculos. Quando eram lavados, mugiam
até ficar com o rosto em chamas. Somente se animavam com comida, quando viam cores
brilhantes ou quando escutavam trovões. Então riam, pondo para fora a língua e rios de
baba, radiantes em um frenesi bestial. Por outro lado, tinham alguma habilidade imitativa.
E mais nada.
Com a chegada dos gêmeos, parecia que a aterrorizante descendência estava
concluída. Entretanto, passados três anos, desejaram ardentemente outro filho, apostando
que o longo tempo percorrido tivesse apagado a fatalidade.
Não satisfaziam suas esperanças. E nesse ardente desejo que se exasperava por
conta de sua infrutuosidade, tornaram-se amargos. Até então cada um havia tomado para si
a parte correspondente sobre a desgraça de seus filhos; mas a desesperança da redenção
diante das quatro bestas que haviam nascido de cada um pôs para fora essa necessidade
imperiosa de culpar os outros, característica específica dos corações inferiores.
Começaram com a troca de pronome: seus filhos. E como além do insulto havia a
insídia, a atmosfera ficava carregada.
Ŕ Acho Ŕ disse Mazzini uma noite, enquanto acabava de entrar e lavava suas mãos -
que você poderia manter os meninos mais limpos.
Berta continuou lendo como se não tivesse ouvido.

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Ŕ É a primeira vez Ŕ acrescentou em seguida Ŕ que te vejo inquieto pelo estado dos
seus filhos.
Mazzini virou um pouco o rosto, exibindo um sorriso forçado.
Ŕ Dos nossos filhos, não é?
Ŕ Certo, dos nossos filhos. Melhor assim? Ŕ disse ela e revirou os olhos.
Desta vez Mazzini se expressou claramente:
Ŕ Está insinuando que a culpa é minha, não é?
Ŕ Ah, não! Ŕ sorriu Berta, muito pálida Ŕ mas imagino que também não é minha!
Era só o que me faltava!… Ŕ murmurou.
Ŕ O que é que faltava?
Ŕ Que se alguém tem culpa, esse alguém não sou eu, que fique bem claro. É isso
que eu queria te dizer.
Seu marido a olhou por um momento com um desejo brutal de insultá-la.
Ŕ Deixa para lá - articulou, e secou por fim as mãos.
Ŕ Como quiser, mas se está insinuando que...
Ŕ Berta!
Ŕ Como quiser!
Esta foi a primeira briga e logo vieram outras. Mas em suas inevitáveis
reconciliações, suas almas se uniam em êxtase e loucura por outro filho.
E assim nasceu uma menina. Viveram dois anos com a angústia à flor da pele,
sempre esperando outro desastre. No entanto nada aconteceu, e os pais puseram nela toda
sua complacência, que a pequena levava aos limites mais extremos do mimo e da
malcriação.
Se nos últimos tempos Berta sempre cuidara de seus filhos, com o nascimento de
Bertinha, ela praticamente tinha se esquecido dos outros. A simples lembrança deles a
horrorizava, como uma atrocidade que a tivessem obrigado a cometer. O mesmo acontecia
com Mazzini, embora em menor grau. Nem por isso a paz havia chegado às suas almas. A
menor indisposição de sua filha fazia brotar o pavor de perdê-la e o rancor da sua
descendência podre. Tinham acumulado tanto fel que ao menor contato seus venenos
transbordavam. Desde o primeiro desgosto amargo tinham perdido o respeito entre si, e se
tem algo pelo qual o ser humano se sente atraído com cruel fruição é quando, uma vez que
começou, termina de humilhar completamente uma pessoa. Antes, se apoiavam pela mútua
falta de sucesso; agora que ele tinha chegado, cada um, atribuindo o sucesso a si mesmo,
sentia cada vez mais a infâmia das quatro anomalias que um tinha obrigado o outro a criar.

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Com esses sentimentos, não sobrou o menor afeto possível para os quatro filhos
mais velhos. A empregada os vestia, os alimentava, os colocava para dormir, tudo isso com
visível brutalidade. Não os lavava quase nunca. Passavam o dia todo sentados diante do
muro, desprovidos de qualquer forma de carinho.
Desse modo, Bertinha completou quatro anos e, naquela noite, como resultado dos
doces que para os pais era absolutamente impossível negar-lhe, a criança teve calafrios e
febre. E o pavor de vê-la morrer ou tornar-se idiota voltou a reabrir a eterna ferida.
Fazia três horas que não conversavam e o motivo foi, como quase sempre, os
passos fortes de Mazzini.
Ŕ Meu Deus! Você não pode caminhar mais devagar? Quantas vezes…?
Ŕ Está bem, é que eu me esqueço; pronto! Não faço de propósito.
Ela sorriu, desdenhando:
Ŕ Não, não acredito muito!
Ŕ Nem eu deveria ter acreditado tanto em você… tísica!
Ŕ O quê? O que disse?...
Ŕ Nada!
Ŕ Sim, te ouvi dizer algo! Olha, não sei o que disse, mas te juro que prefiro
qualquer coisa a ter um pai como o que você teve.
Mazzini ficou pálido.
Ŕ Finalmente! Ŕ murmurou apertando os dentes Ŕ. Você finalmente disse o que
queria dizer, sua cobra!
Ŕ Sim, claro, cobra! Mas eu tive pais saudáveis, ouviu? Saudáveis! Meu pai não
morreu de loucura! E eu teria tido filhos normais como todo mundo! Esses filhos são seus,
todos os quatro!
Por sua vez, Mazzini explodiu.
Ŕ Cobra tísica! Isso é o que eu te disse, o que quero te dizer! Pergunte, pergunte ao
médico quem é que tem a maior culpa da meningite dos seus filhos: meu pai ou o seu
pulmão estragado, cobra!
Continuaram discutindo com cada vez mais violência, até que um gemido de
Bertinha calou instantaneamente suas bocas. À uma da manhã, a suave indigestão havia
desaparecido, e como fatalmente ocorre com todos os casamentos de jovens que se amaram
intensamente ao menos uma vez, a reconciliação chegou, tanto mais efusiva quanto
infames foram as agressões.

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Amanheceu um dia esplêndido, e, enquanto Berta se levantava, tossiu sangue. As
emoções e a péssima noite anterior tiveram, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a conteve
abraçada por um longo tempo, e ela chorou desesperadamente, mas sem que nenhum dos
dois se atrevesse a dizer uma só palavra.
Às dez horas decidiram que sairiam depois de almoçar. Como não tinham muito
tempo, ordenaram à empregada que matasse uma galinha.
O dia radiante tinha tirado os idiotas de seu banco. De modo que enquanto a
empregada degolava o animal na cozinha, extraindo seu sangue com parcimônia (Berta
tinha aprendido com sua mãe este método para conservar a carne fresca), sentiu algo como
uma respiração atrás dela. Virou-se, e viu os quatro idiotas, com os ombros colados uns aos
outros, olhando estupefatos a operação. Vermelho… vermelho…
Ŕ Senhora! Os meninos estão aqui, na cozinha.
Berta chegou; queria que jamais tivessem pisado ali. Nem nessas horas de perdão
pleno, de esquecimento e felicidade reconquistada, podia evitar essa horrível visão!
Porque, naturalmente, quanto mais intensos eram os momentos de amor com seu marido e
filha, mais irritado ficava seu humor com os monstros.
Ŕ Que saiam, Maria! Tire-os daqui! Tire-os daqui agora, eu disse!
As quatro pobres bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, foram parar em seu
banco.
Depois de almoçar, todos saíram. A empregada foi a Buenos Aires e o casal foi
passear pelos sítios. Voltaram quando o sol se pôs; mas Berta quis cumprimentar suas
vizinhas da frente por um momento. Sua filha se escapou para sua casa.
Entretanto, os idiotas não haviam se movido do banco o dia todo. O sol já havia
transposto o muro, começava a desaparecer, e eles continuavam olhando os tijolos, mais
inertes do que nunca.
De repente algo se interpôs entre sua visão e o muro. Sua irmã, cansada de passar
cinco horas com seus pais, queria observar por conta própria. Parada no pé do muro,
olhava pensativa para o topo. Queria subir, não havia dúvidas. Por fim, optou por uma
cadeira sem encosto, mas ainda não alcançava. Recorreu então a uma lata de querosene, e
seu instinto topográfico a fez colocá-la na vertical, e com isso triunfou.
Os quatro idiotas, o olhar indiferente, viram como sua irmã conseguia,
pacientemente, dominar o equilíbrio e como, na ponta dos pés, apoiava a garganta sobre o
topo do muro, entre suas mãos resistentes. Viram-na olhar para todos os lados, e procurar
apoio com o pé para subir ainda mais.

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Mas o olhar dos idiotas havia se animado; um brilho insistente estava fixo em suas
pupilas. Não tiravam os olhos da irmã enquanto uma sensação crescente de gula bestial ia
transformando cada traço de suas faces. Lentamente avançaram até o muro. A pequena,
que havia conseguido apoiar o pé, já ia montar a cavalo e saltar para o outro lado, quando
se sentiu agarrada pela perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram
medo.
Ŕ Soltem-me! Deixem-me! Ŕ gritou ela sacudindo a perna. Mas foi puxada.
Ŕ Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai! Ŕ Chorou imperativamente. Ainda tentou se
segurar nas bordas do muro, mas sentiu-se arrancada e caiu.
Ŕ Ai, mamãe! Mam… Ŕ Não pôde mais gritar. Um deles lhe apertou o pescoço,
separando os cachinhos como se fossem plumas, e os outros arrastaram-na por uma perna
só até a cozinha, onde pela manhã se havia extraído o sangue da galinha, bem presa,
arrancando-lhe a vida segundo por segundo. Mazzini, na casa da frente, acreditou ter
ouvido a voz de sua filha.
Ŕ Acho que está te chamando Ŕ disse para Berta. Prestaram atenção, inquietos, mas
não escutaram mais. Um momento depois se despediram, e enquanto Berta ia deixar seu
chapéu, Mazzini avançou para o pátio.
Ŕ Bertinha!
Ninguém respondeu.
Ŕ Bertinha! Ŕ elevou a voz, já alterada.
E o silêncio foi tão fúnebre para seu coração sempre assustado, que sua espinha se
gelou com um horrível pressentimento.
Ŕ Minha filha, minha filha! Ŕ correu já desesperado até os fundos. Mas ao passar
pela cozinha, viu no piso um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta encostada, e
lançou um grito de horror.
Berta, que havia corrido desesperadamente ao ouvir o chamado angustiado do
marido, escutou o grito e respondeu com outro. Mas ao se aproximar da cozinha, Mazzini,
lívido como a morte, se interpôs, segurando-a:
Ŕ Não entre! Não entre!
Berta chegou a ver o piso inundado de sangue. Tentou abraçar Mazzini, mas só
conseguiu se afundar ao longo do corpo dele em um rouco suspiro.

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