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A Criação da Detective Fiction e a Conspiração Clássica

Neste capítulo, entre outras coisas, se revela como as principais histórias de detectives de Poe, contribuíram para a génese de um novo género de literatura - a literatura de detecção - cujos principais seguidores fizeram história, como é o caso de Sherlock Holmes, de Conan Doyle, porventura a figura mais mediática do género detectivesco. (MA 150 pp)

3. A criação da detective fiction e a sua relação com a conspiração clássica Neste capítulo veremos como as principais histórias de detectives de Poe (ou Tales of Ratiocination, de acordo com o autor) contribuíram para a génese de um novo género de literatura – a literatura de detecção – cujos principais seguidores fizeram história, como é o caso de Sherlock Holmes, de Conan Doyle, porventura a figura mais mediática do género detectivesco. Da trilogia poeiana fazem parte, como é do conhecimento geral, os contos “Murder in The Rue Morgue”, “The Mystery of Marie Roget” e “The Purloined Letter”, a que ainda se poderia acrescentar como exemplos de Tales of Ratiocination, “The Gold-Bug” ou “Thou Art the Man”. Veremos ainda como a criação da detective fiction de Poe, ainda em embrião (na evolução do género) mas já de si plenamente acabada pela finura e recorte estilístico de cada história, vai contribuir para a definição de um tipo de conspiração de carácter urbano cujas raízes assentam em arquétipos culturais, desde a figura do xamã com a sua panóplia de técnicas de expurgação do mal social, aos famosos eventos bíblicos onde guerra e poder se encontram intimamente ligados a uma visão religiosa e conspirativa do mundo. No decorrer da análise, veremos como a trilogia de Auguste Dupin, célebre herói das histórias de detectives de Poe e que iniciou uma saga de escritos e escritores dedicados a seguir e a desenvolver a fórmula narrativa poeiana de cariz detectivesco, explicita as ligações de Poe e da detective fiction a Paul Auster e a The New York Trilogy. De seguida, relacionaremos a detective fiction com a conspiração clássica e as suas ligações à hard-boiled novel bem como ao negative thriller, e analisaremos os pontos de contacto com a trilogia de Auster. Do consenso geral já faz parte o reconhecimento de Edgar Allan Poe como autor indiscutível da primeira história de detectives (“Murder in the Rue Morgue”) e do género policial, por excelência. O escritor, entretanto, inspirou-se na literatura e na sociedade francesas da época, especialmente na figura de Eugene Vidocq, cujas Mémoires (1828-9) constituem uma fonte de conhecimento imprescindível sobre o sub-mundo do crime dos inícios do séc. XIX. Vidocq, mestre da arte do disfarce, era um criminoso que chegou a detective e a chefe principal da Paris Sûreté, Uma importante medida política do séc. XIX diz respeito à emergência da tomada de consciência do trabalho de detecção como uma actividade respeitável e não raro era aproveitar-se o conhecimento dos criminosos e do seu mundo (como aconteceu com Vidocq) para os detectar com mais facilidade. Daí a criação da Sûreté, por Napoleão, em 1812. A investigação criminal ganhou um novo impulso, seguindo-se-lhe a criação da Metropolitan Police, em Londes. associação policial dedicada à investigação criminosa, em 1812. As suas memórias pertencem a uma tradição do romance policial, por elas iniciada, constituída pela literatura popular (“low-life literature”) e, sobretudo, pelas autobiografias de detectives. Ver Jerry Palmer, Thrillers 128-135. A tradição com base na literatura popular descreve-a como uma literatura do crime ligada ao exótico, à irrupção do patológico na ordem geral da sociedade e reflecte uma grande simpatia pela figura do herói fora-da-lei, dado que as desigualdades socio-económicas atravessavam toda a estrutura social, sendo o criminoso (especialmente o ladrão, pois o assassínio brutal não captava a simpatia do povo) tratado com compaixão e, não raras vezes, admiração. A tradição com base nas autobiografias de detectives, como a própria denominação sugere, descreve as peripécias do herói detective, inscrevendo-as num clima de suspense e de “realismo”, como salienta F.W.Chandler no prefácio à edição inglesa de Vidocq: That his skill lay rather in plain, common-sense observation and utter fearlessness than in the fantastic piecing together of apparently contradictory clues is merely because he was dealing with actual fact and not sensational fiction. Ibidem 135. Poe, na continuidade destas referências, criou aquele a que poderíamos chamar o herói hermeneuta, cuja missão seria a de bem interpretar e deduzir, Ao contrário de Vidocq que o próprio autor critica por não ter uma visão panorâmica dos acontecimentos, distanciação imprescindível a uma análise objectiva dos mesmos. Ver nota 22 deste capítulo. iniciando o que se passou a chamar literatura de detecção, e dando assim início ao romance policial moderno. Na mesma linha, foi precursor do desenvolvimento de um método eficaz para a descoberta do crime/solução da conspiração, o que contribuiu também para uma nova formulação científica da trama conspirativa. Até aí a conspiração desenvolvera-se de acordo com as intrigas de corte, nos bastidores, e agia como um escape aos conflitos amorosos e sociais, ou de poder, que eram solucionados sem método concreto, mas ao sabor das tendências político-sociais do momento. Poe, através das primeiras histórias de detectives, cria uma epistemologia da conspiração, uma teoria científica cujo método hipotético-dedutivo fornece uma maior qualidade interpretativa para a solução do crime. Raymond Chandler, no trecho anteriormente citado, critica precisamente esta postura e este método hermenêutico e procede à apologia do herói da acção, ao invés do herói hermeneuta. Todavia, a hard-boiled novel, como veremos mais adiante, não descura uma componente intelectual forte a par da sua dilecta componente física que confere um estilo peculiar a este tipo de literatura. Assim, o método de Poe sobrevive nestas histórias, embora nem sempre encontre a desejada solução, como invariavelmente acontece nas histórias de Dupin. Auguste Dupin, o herói detective das histórias de Poe, é um excêntrico solitário, cujo poder de dedução o leva sempre a descortinar o momento azado da conspiração e do crime para, finalmente, encontrar a solução do mistério e o culpado do crime que responde à questão essencial do whodunit. Designação emblemática da literatura de detecção clássica: “The basic formula is this: a murder occurs; many are suspected; all but one suspect, who is the murderer, are eliminated; the murderer is arrested or dies.” Winks, Detective Fiction 15. Assim, o essencial é encontrar o criminoso, o autor do crime que gerou, em primeiro lugar, o início da demanda de detecção. Para isso, é utilizado, sobretudo, um conjunto de ferramentas intelectuais, verdadeiros puzzles mentais, bem como uma série de deduções engenhosas e uma linguagem, no caso de Poe, de cariz literário. Fundamental é, também, o interesse na reconstrução do crime através do pormenor e não do quadro geral dos eventos, pois o detalhe mais insignificante pode conter significações profundas (uma pista, uma armadilha, etc.). Em “The Murders of the Rue Morgue”, por exemplo, Poe explicita a importância dos detalhes e da análise minuciosa dos acontecimentos, dando como exemplo uma partida de xadrez: He notes [the player] every variation of face as the play progresses, gathering a fund of thought from the differences in the expression of certainty, of surprise, of triumph, or chagrin. (...) A casual or inadvertent word; (...) embarassment, hesitation, eagerness, or trepidation – all afford (...) indications of the true state of affairs.” Poetry and Tales 399. Ainda em The New York Trilogy, Quinn, por exemplo, utiliza abundantemente estes procedimentos próprios do detective clássico: “in the good mystery there is nothing wasted, no sentence, no word that is not significant.” NYT 9. Mas a Auster voltaremos mais adiante. Esta importância atribuída ao detalhe e ao infinitely little Expressão de Joseph Bell, médico eminente, mentor e fonte de inspiração de Conan Doyle. Ver The Sign of the Three 35. aponta para uma distinção fundamental no tipo de racionalidade típica do romance policial clássico. Trata-se da dualidade entre razão sintética e razão analítica, ou logica utens e logica docens, Categorias da lógica de Peirce utilizadas por Thomas Sebeok e Jean Sebeok a propósito do romance policial e de Sherlock Holmes, mais especificamente, e citadas na obra The Sign of The Three: Dupin, Holmes, Peirce 40. se quisermos. A primeira exemplifica um tipo de lógica usado no dia a dia, de carácter geral e rudimentar, de efeitos práticos e imediatos na busca de uma verdade útil, ao invés do segundo tipo de lógica, de carácter mais sofisticado, que constitui no essencial um método de reflexão e descoberta científica da verdade (ou de uma verdade). Contudo, a lógica do quotidiano, a lógica comum, não é posta completamente de parte, já que vai servir de alimento à depuração da lógica analítica. O próprio e celebérrimo Holmes assegura que os seus métodos não são nada mais do que systematized common sense Umberto Eco and Thomas A. Sebeok, ed. The Sign of Three : Dupin, Holmes, Pierce 41. mas, a meu ver, talvez esteja a ser demasiado modesto, tendo em conta a sua pose aristocrática e os inúmeros conhecimentos sobre variadíssimas matérias com que deleita o leitor mais ou menos prevenido. A tónica no raciocínio e no processo de descoberta da verdade através do método hipotético-dedutivo é, no entanto, um factor essencial no romance policial clássico e, em Poe, isso é evidente nas três histórias de Dupin, bem como noutras, em que a capacidade de raciocínio toma um cunho particular, uma espécie de estado de espírito do narrador, que não detecta nem deduz mas que, de certa maneira dominado por um transe racional, realiza a mediação entre a própria experiência do real e o seu estado de espírito muito particular. Em “The Black Cat”, por exemplo, é curioso constatar como o narrador realiza o diagnóstico e procede à análise da experiência à medida que o seu comportamento se transforma radicalmente, culminando no assassínio da esposa e do gato preferido e, por fim, na astuta preparação da sua inocência, que acaba por ser impressionantemente gorada. Ele próprio afirma: This spirit of perverseness, I say, came to my final overthrow. It was this unfathomable longing of the soul to vex itself – to offer violence to its own nature – to do wrong for the wrong’s sake only – that urged me to continue and finally to consumate the injury I had inflicted upon the unoffending brute. Poetry and Tales 599. Assim, o narrador está consciente da sua ligação com o real e do mal que perpetua mas, ao mesmo tempo, não consegue mudar de rumo e vê-se impelido para a sua própria desgraça, analisando a posteriori cada pormenor do seu comportamento, do seu pathos, como se essa análise estivesse desde já implícita no próprio momento da acção. Em Poe, é sempre interessante salientar esta oscilação entre uma capacidade de raciocínio extremamente aguda e objectiva e o carácter pró-fantasmático dos acontecimentos que tornam a aliança entre lógica e imaginação numa peça fundamental da arte de narrar poeiana, quer nas peças de análise introspectiva e dramática, como a que acabámos de mencionar em “The Black Cat”, quer nas de carácter detectivesco, em que é o próprio narrador que sugere essa dicotomia/oscilação do carácter de Dupin que, no fundo, se projecta no tipo de racionalidade e imaginação da pesquisa detectivesca: (...) I often dwelt meditatively upon the old philosophy of the Bi-Part Soul, and amused myself with the fancy of a double Dupin – the creative and the resolvent. “The Murders in the Rue Morgue”, Poetry and Tales 402. A filosofia da alma bipartida projecta, assim, uma dualidade peculiar em Poe e no seu personagem Dupin. No livro, Poe Poe Poe Poe Poe Poe Poe, Daniel Hoffman afirma igualmente: “His mind (Dupin’s), working by metaphoric analogies, combines poetic intuition with mathematical exactitude”. Daniel Hoffman, ed. “Disentanglements”, Poe Poe Poe Poe Poe Poe Poe 107-108. Esta conjugação entre o tom racional e o tom poético na abordagem à solução do mistério e do crime confere ao tipo de racionalização de Poe uma espécie de sentido onírico que transcende a mera razão positivista, levando essa razão mais longe e a vários níveis da realidade, através da associação de ideias que aponta para aquilo que hoje em dia se designa por nível inconsciente da mente, do eu. A dupla face do método detectivesco em Poe pode ainda remeter-nos para a noção de Play of Musement do filósofo americano Peirce, o qual chega a citar em obra própria “The Murders of the Rue Morgue” de Poe, como um caso exemplar do pensamento analítico. É o que afirmam os Sebeok e passo a transcrever a citação peirceana: “Citing Dupin’s remarks in Poe’s “The Murders in the Rue Morgue” (to wit: “It appears to me that this mystery is considered insoluble for the very reason which should cause it to be regarded as easy of solution. I mean the outré character of its features”), Peirce remarks that “those problems that at first blush appear utterly insoluble receive, in that very circumstance...[t]heir smoothly-fitting keys. This particularly adapts them to the Play of Musement”. Cit. em “You Know my Method: a juxtaposition of Charles S. Peirce and Sherlock Holmes”, Thomas A. Sebeok and Jean U. Sebeok, The Sign of The Three 28. A Play of Musement constitui, precisamente, um conceito que sugere a alegria da meditação e da duplicidade que a rege, isto é, o próprio conceito encerra dois vocábulos aparentemente opostos (jogo e meditação/imaginação e lógica), transformando-os numa noção que funciona como uma apologia do pensamento lúdico. O conceito de play of musement partilha, de facto, muitas analogias com a fonte poeiana, pois como afirma Dupin em “The Murders of the Rue Morgue”: As for the murders, let us enter into some examinations for ourselves, before we make up an opinion respecting them. An inquiry will afford us amusement,” (I thought this an odd term, so applied, but said nothing)... Poetry and Tales 412. Itálico meu. Desta passagem sobressai exactamente a duplicidade do conceito de Peirce, que oscila entre a lógica e a imaginação, sendo de destacar a importância da investigação (musement) a par do divertimento e do prazer causado pelo próprio exercício intelectual (play). O narrador acha o termo “amusement” empregue por Dupin um pouco estranho, dadas as circunstâncias de carácter tão dramático, mas Dupin sabe de antemão que é essa capacidade de jogo e de divertimento intelectual que levará à solução do mistério. Podemos verificar, igualmente, em Poe, como os acontecimentos mais imprevisíveis e fantásticos são reduzidos, como o próprio afirma: “ (to) nothing more than an ordinary sucession of very natural causes and effects”. “The Black Cat”, Poetry and Tales 597. E por outro lado, como muitas vezes os factos tão aparentemente banais escondem a solução dos maiores enigmas e mistérios. Do primeiro caso poder-se-á tomar como exemplo “The Black Cat”, cujos acontecimentos extraordinários são reduzidos logo no início do texto a um desvario da personalidade do narrador, não constituindo, por isso, nada de transcendente mas apenas e só uma sucessão natural de causas e efeitos. “My immediate purpose is to place before the world, plainly, succintly, and without comment a series of mere household events. In their consequences, these events have terrified-have tortured-have destroyed me. (...) Hereafter, perhaps, some intellect may be found which will reduce my fantasm to the commonplace – some intellect more calm, more logical, and far less excitable than my own, which will perceive, in the circumstances I detail with awe, nothing more than an ordinary sucession of very natural causes and effects.” Ibidem.Na mesma linha de pensamento, poderíamos citar Dupin em “The Murders of The Rue Morgue”: It appears to me that this mystery is considered insoluble, for the very reason which should cause it to be regarded as easy of solution – I mean for the outré character of its features. Poetry and Tales 414. Um crime tão insólito quanto o da Rue Morgue, de acordo com Dupin, será mais fácil de solucionar devido, precisamente, ao carácter excessivamente insólito dos acontecimentos. O insólito, neste caso, constitui o próprio indicador daquela “sucessão natural de causas e efeitos” atrás mencionada, na medida em que Dupin consegue deduzir, do quadro geral dos acontecimentos, que tal crime não poderia ter sido cometido por um ser humano, facto que não havia sequer sido ponderado pela polícia local. Pelo contrário, aquando do assassinato de Marie Roget, por exemplo, Dupin afirma, depois de analisar minuciosamente os factos e as testemunhas através dos jornais diários da época, tratar-se de um caso de mais difícil solução, devido exactamente à sua qualidade menos peculiar: This is an ordinary, although an atrocious, instance of crime. There is nothing peculiarly outré about it. You will observe that, for this reason, the mystery has been considered easy, when, for this reason, it should have been considered difficult, of solution. “The Mystery of Marie Roget”, Poetry and Tales 519. Esta passagem remete-nos, assim, para o segundo caso característico da narrativa poeiana, como atrás mencionámos, em que não raras vezes os factos aparentemente mais banais revelam, na realidade, os crimes mais hediondos e encerram em si mesmos a chave da sua própria solução. A questão do método detectivesco na análise dos factos e do crime é, de facto, essencial em Poe e no romance policial clássico que o autor inaugurou. Em The Murders of the Rue Morgue, a primeira história do detective Dupin, são lançadas as bases daquilo que viria a ser a literatura de detecção e o romance policial moderno, com base num método extremamente convincente: As the strong man exults in his physical ability, delighting in such exercises as call his muscles into action, so glories the analyst in that moral activity which disentangles. He derives pleasure from even the most trivial occupations bringing his talent into play. He is fond of enigmas, of connundrums, hieroglyphics; exhibiting in his solutions of each a degree of acumen which appears to the ordinary apprehension praeternatural. His results, brought about by the very soul and essense of method, have, in truth, the whole air of intuition. Poetry and Tales 397. Os resultados, isto é, a solução do mistério e do crime, só alcançam sucesso graças à aplicação do método detectivesco elaborado por Dupin. Frequentes vezes é a falta de método que Dupin critica na actuação da polícia local: “There is no method in their proceedings, beyond the method of the moment”. Ibidem 411. O método detectivesco consiste, então, numa actividade mental superior (superior acumen) que utiliza a análise através dos processos de indução e dedução de modo a desembaraçar os nós dos acontecimentos (to disentangle) e a produzir uma explicação e uma solução final dos factos que até aí constituíam um problema insolúvel. O investigador/detective retira desta poderosa actividade analítica, grande prazer, como sublinhámos anteriormente com a expressão de Peirce Play of Musement, isto é, o analista deleita-se com o amusement do musement- o prazer do raciocínio. É esta capacidade de retirar prazer da actividade intelectual o resultado, como vimos, da associação entre poesia (imaginação) e lógica, dado tratar-se duma razão intuitiva. Na tentativa de enaltecer o seu método, o detective Dupin selecciona como exemplo e, por contraponto, o famoso detective e criminoso Vidocq: Vidocq, for example, was a good guesser and a persevering man. But, without educated thought, he erred continually by the very intensity of his investigations. He impaired his vision by holding the object too close. He might see, perhaps, one or two points with unusual clearness, but in so doing he, necessarily, lost sight of the matter as a whole. (...) Truth is not always in a well. In fact, as regards the more important knowledge, I do believe that she is invariably superficial. Ibidem 412. Assim, um dos elementos importantes da análise e do método é a visão topográfica, isto é, a visão minuciosa e abrangente do crime e não apenas a visão e a análise dos factos per se. O distanciamento em relação ao objecto de análise torna-se necessário para se poder usufruir dos variados planos e nuances da acção, que não têm forçosamente de encontrar-se junto ao objecto. A procura da verdade é um factor fundamental porque se torna premente achar um fechamento da acção e do crime. Mas a verdade pode encontrar-se a um nível muito superficial e cabe ao investigador, através dos seus superiores poderes de observação e inferência, discernir quais os factos a observar e que, de acordo com Dupin, nem sempre são os mais profundos. A qualidade da observação impõe-se para além daquilo que os manuais podem prescrever sendo, por isso, necessário encontrar a própria medida e o próprio ethos da investigação: Thus to have a retentive memory and proceed by “the book” are points commonly regarded as the sum total of good playing. But it is in matters beyond the limits of mere rule that the skill of the analyst is evinced. He makes, in silence, a host of observations and inferences. (...) and the difference in the extent of the information obtained, lies not so much in the validity of the inferences as in the quality of the observation. Ibidem 398-399. Aparte o prestígio do método e dos pormenores, da qualidade da observação e da duplicidade do raciocínio, do fechamento e da busca da totalidade na narrativa policial e da importância das técnicas autodiegéticas (sobretudo na ficção poeiana), é também importante a narração na terceira pessoa (sobretudo nos contos de carácter detectivesco), quer em Poe, quer nos seus mais directos seguidores como Conan Doyle ou mesmo o próprio Auster, cuja trilogia utiliza abundantemente muitas das características do romance policial clássico e de Poe, em geral. A trilogia de Poe composta pelas short stories de Auguste Dupin é de carácter homodiegético, em que a existência de um narrador privilegiado com acesso directo à acção favorece bastante o sucesso da fórmula de detecção elaborada por Poe e desenvolvida pelos seus seguidores: Sherlock Holmes e o seu Watson, Poirot e o seu Capitão Hastings, Philo Vance e o seu Van Dine, etc. A existência destes “pares de eleição” caracteriza precisamente a narração em 3ª pessoa, dado que em cada um deles existe um narrador através do qual temos acesso directo à acção: Watson é o narrador privilegiado de Conan Doyle, o Capitão Hastings é o de Agatha Christie e Van Dine é o de S.S. Van Dine. De acordo com Dorothy L. Sayers, esta fórmula de narração na terceira pessoa e de criação de uma entidade narrativa que se situa simultaneamente dentro e fora da acção, facilita também uma certa expressividade panegírica do autor em relação ao personagem central. Ao mesmo tempo, distanciando-se do personagem principal através da mediação do narrador/actor secundário, o autor/narrador ganha maior verosimilhança aos olhos do leitor (como entidade imparcial) e o herói maior consistência diegética e dramática. É o que afirma Dorothy L. Sayers no artigo “The omnibus of crime”: “In the three Dupin stories, we have the formula of the eccentric and brilliant private detective whose doings are chronicled by na admiring and thick-headed friend. (...) It’s not surprising that this formule should have been used so largely, for it is obviously a very convenient one for the writer. (...) the admiring satellite may utter expressions of eulogy which would be unbecoming in the mouth of the author, gaping at his own colossal intellect. (...) by describing the clues as presented to the dim eyes and bemused mind of Watson, the author is enabled to preserve a spurious appearence of frankness, while keeping to himself the special knowledge on which the interpretation of those clues depends. This is a question of paramount importance, involving the whole artistic ethic of the detective story.”Winks, Detective Fiction 57. De igual modo, segundo Hoffman, ao caracterizar-se o narrador como um indivíduo um pouco ingénuo e que permanece frequentemente estupefacto pela superior inteligência do detective, o autor/narrador confere ao leitor o poder de antecipar e de criticar a própria inaptidão do narrador no processo de solução do enigma e ainda de garantir uma atmosfera de autenticidade através do questionamento aparentemente sincero do narrador ao detective, garantindo este um discurso eloquente e resposta sempre pronta. Em Poe, Poe, Poe Poe, Poe, Poe, Poe, Hoffman sublinha: “ (...) by introducing an intermediary as narrator who seems as mystified as is the reader by the inricacies of the plot, Poe freed his plot from the appearance of imposition. (115) Assim, a narração de terceira pessoa trata também de criar um efeito de maior verosimilhança na narrativa, sugerindo uma ética de tipo moralizante na descoberta da verdade. Tudo tem de acabar bem e de acordo com os códigos sociais vigentes, onde supostamente reside a normalidade. Tal como nos diz Todorov na sua “Introdução ao Verosímil”: “fala-se de verosimilhança de uma obra, na medida em que ela tenta fazer-nos crer que se submete ao real e não às suas próprias leis”, Tzvetan Todorov, Poética da Prosa 97. quando na verdade são as próprias leis da arquitectura da obra que criam o real, tal como acontece em Poe. Em “The Purloined Letter”, por exemplo, pretende-se descobrir um documento que fora roubado e devolvê-lo a determinada pessoa cuja honra se encontra em causa.Toda a história é composta de modo a ser possível e inverosímil, isto é, “a revelação, quer dizer, a verdade, é incompatível com a verosimilhança”. Ibidem 100. Deste modo, Dupin solucionará o caso graças a um golpe de génio ou daquilo a que se costuma chamar, na literatura de detecção, o método de the most unlikely person ou, neste caso, the most unlikely place – sendo o documento encontrado, muito naturalmente e depois de pesquisas policiais intensas, num porta-cartas “escondido” à vista de todos. João Ferreira Duarte, “Introdução”, O Espelho Diabólico: Construção do Objecto da Teoria Literária 14. É reposta, então, a verdade e a sua compatibilidade com a verosimilhança. Poderíamos citar ainda “The Gold-Bug” ou “Thou Art the Man”, histórias de detecção muito interessantes que, embora não façam parte da trilogia do detective aristocrata, partilham, todavia, as mesmas características narrativas (análise e método) e a mesma qualidade do verosímil. Uma outra característica a salientar diz respeito à representação da ficção policial (e respectiva trama conspirativa, que analisaremos mais adiante) como um espelho da sociedade, reflectindo os seus medos e ansiedades mais profundos, como se poderá verificar pelos resultados do diagnóstico elaborado aos leitores da época de Sherlock Holmes: um receio profundo da complexidade das organizações criminosas; o comércio crescente que apelava à cobiça alheia; a suspeição em relação às antigas ordens do poder, rurais e aristocráticas, em contraste com a classe média urbana; e o medo dos direitos da mulher, que começavam a abalar a estrutura familiar tradicional. M. Priestman, Crime Fiction: From Poe to the Present 17. A criação e a representação do romance policial clássico reveste, assim, uma função catártica de libertação das emoções ao nível individual e social, constituindo uma espécie de literatura de escape com que os leitores se identificam e confirmam, ou não, as suas suspeitas em relação ao mundo que os rodeia. Robin W.Wink em Detective Fiction assim o afirma: “Detective fiction thus becomes a mirror to society. Through it we may see society’s fears made most explicit; for some, those fears are exorcised by the fiction.” Em relação à hard-boiled novel afirma ainda o seguinte: “Paranoia has replaced the catharsis of placing guilt clearly just there, where it belongs.” (7) O caso de Poe é também por si só sintomático chegando, por vezes, a considerar-se Dupin uma espécie de alter-ego de Poe, devido à natureza aristocrática de Dupin que, tal como Poe, viveu à margem da sociedade. Como quase todos os seus heróis, aliás, destituído de amigos e vida social, Poe, génio criador de superioridade intelectual, é assim descrito por Ross MacDonald: In his creation of Dupin, Poe was surely compensating for his failure to become what his extraordinary mental powers seemed to fit him for. He had dreamed of an intellectual hierarchy governing the cultural life of the nation, himself at his head. Dupin’s outwitting of an unscrupulous politician in “The Purloined Letter”, his “solution” of an actual New York case in “Marie Roget”, his repeated trumping of the cards held by the Prefect of Police, are Poe’s vicarious demonstrations of superiority to an indifferent society and its officials. Ross MacDonald, “The Writer as Detective Hero”, Detective Fiction: A Collection of Critical Essays, ed. Robin W. Winks 179. A uma sociedade indiferente ao génio criador responde Poe com a criação sistemática de histórias magníficas, ricas em imaginação e engenho. Mas, de algum modo, a sua sede de racionalidade parece constituir um pretexto, um refúgio, para se esconder dos demónios interiores que o atormentam devido a uma consciência demasiado lúcida e superiormente crítica em relação a uma sociedade superficial e anódina. Num ensaio do poeta americano William Carlos Williams sobre Poe, afigura-se-nos aquilo que poderia ser a imagem perfeita do escritor: About Poe there is – No supernatural mystery – No eccentricity of fate – He is American, understandable by a simple exercise of reason; a light in the morass – which must appear eerie, even to himself, by force of terrific contrast, an isolation that would naturally lead to drunkenness and death, logically and simply – by despair, as the very final evidence of a too fine seriousness and devotion. William Carlos Williams, In the American Grain: Essays by Wlilliam Carlos Williams 222. Delineado, deste modo, o romance policial clássico de tradição poeiana, seguimos a sua evolução até ao romance policial americano, denominado hard-boiled novel, e que coloca a tónica dos eventos na acção ao invés de no raciocínio. A questão coloca-se aqui ao nível do whydunit e já não do whodunit, e traz ainda diferenças fundamentais, sobretudo ao nível da linguagem de carácter mais coloquial, com o objectivo de reproduzir com grande acuidade as instâncias e problemas da sociedade envolvente, em que a paranóia substitui, como veremos, a catarse típica do policial clássico. Ver Robin W. Winks, ed. Detective Fiction 8. Existem dois elementos indispensáveis à hard-boiled novel e ao thriller Jerry Palmer na sua obra Thrillers:Genesis and Structure of a Popular Genre, denomina o romance policial como thriller, não fazendo distinções entre os géneros e respectivos nomes. Para ele, o thriller na sua evolução – da história policial clássica à actualidade – engloba naturalmente essa diversidade. em geral. São eles o herói e a conspiração. Estes representam igualmente dois elementos cruciais na estrutura do policial clássico, como vimos, contribuindo um para a criação da instabilidade (mala in se -conspiração) Palmer,Thrillers 201. e o outro para a restauração da ordem (herói). Estas distinções (mala in se e mala prohibita) são constituídas pelo pensamento e discurso legal do séc. XVIII. Ao contrário dos mala prohibita (ofensas à ordem civil), os mala in se representavam as ofensas às leis naturais ou de ordem divina. Trata-se, no fundo, da distinção entre ofensas à propriedade privada e propriedade pública (valores, crenças, bem geral). No caso do policial clássico, esta distinção ainda é significativa, dando-se uma importância vital ao crime brutal sem explicação aparente, irracional, ou seja, a quebra de uma ordem imanente do mundo/espaço público (e.g., The Dog of the Baskervilles de Poe), ao passo que na hard-boiled novel atribui-se à conflação dos dois termos uma forma mais acentuada, tal como haviam sido elaborados no séc. XIX: (...) the old distinctions between mala in se and mala prohibita, and between public and private wrongs, declined in importance. Of course crimes we still distinguished according to degree of malignancy, but it was agreed that the prevention of crime in general was a matter of public concern and public money. Sobre estas noções ver Palmer, Thrillers 185. Assim, no romance policial moderno, tanto as ofensas à ordem natural ou divina como as ofensas à sociedade civil passam a ser encaradas sob o denominador comum do crime e da conspiração. A hard-boiled novel, no entanto, introduz diferenças significativas. O herói detective, de tipo hermenêutico, típico personagem da classe média alta, como Holmes ou Dupin, dá lugar ao herói maldito, de carácter violento, a uma linguagem coloquial e a um forte impacto emocional, representando um dos pólos da luta de titãs entre o Bem e o Mal do período do pós-guerra, onde imperam a alienação e a desordem. O herói hermeneuta é, desta maneira, substituído pelo private eye americano que, para além de ter de combater a incompetência da polícia, tem ainda de enfrentar a corrupção e a brutalidade desta, substituindo o método dedutivo por um conhecimento em primeira mão do mundo e sub-mundo urbano e por um forte sentido moral. A sua sensibilidade é mais física do que intelectual e obedece a um código moral muito próprio. Já não se trata de repor a ordem momentaneamente abalada, como no whodunit, onde a conspiração e o crime surgem como uma irrupção na ordem natural das coisas. A desordem e a corrupção são agora a ordem do novo dia, em que o Sonho Americano se transforma em Pesadelo Americano. O próprio detective destaca-se dos modelos de detecção clássicos e dedica-se mais ao progresso da demanda do que à sua solução. Ver Detective Fiction 106-113 e ainda Thrillers 3. Não segue as regras da sociedade e, muitas vezes, não partilha da admiração e satisfação que acompanhavam o detective tradicional. Raymond Chandler descreve-o assim: “I see him always in a lonely street, in lonely rooms, puzzled but never quite defeated.” In George Grella, “The Hard-Boiled Detective Novel”, Detective Fiction: A Collection of Critical Essays, ed., Robin W. Winks 115. A solidão é a sua marca, faz parte do próprio estatuto do herói: desconfiado, auto-confiante e carismático. Não existe ninguém em quem possa confiar senão nele próprio. Todos os outros são incompetentes ou traiçoeiros. Se bem que o objecto primeiro da demanda consista em salvar a sociedade da conspiração, o carácter ambíguo do herói, dividido entre o grupo e o isolamento (inside-outside), confere-lhe um estatuto muito particular, de outsider, levando-o, por vezes, a tomar a conspiração como uma demanda particular, incompatível com a regra da lei. A sua representação do mundo é uma representação paranóica, combinando uma “auto-asserção inequívoca” com um forte grau de desconfiança e estabelecendo, assim, a paranóia como ideologia. O mundo é visto através do olhar paranóico, sendo esta representação da sociedade perfeitamente racional, consistindo numa interpretação e sobre-interpretação constantes de factos e acontecimentos. O paranóico é então aquele que nunca se encontra satisfeito e que, como refere o psiquiatra Mounier: (...) [he] is constantly self-satisfied; any pretext will do to confirm his pride; he admits neither his wrongs nor his faults, failure has no effect on him. His distrust of everyone around him is a direct function of his touchy pride. The attention of the entire world appears to him to converge on his actions and gestures. He is on the look-out for plots, mockery, duplicity, interprets everything, sees connections that no one else would dream of, and is all the more triumphant the more his conclusion is paradoxical. Citado por Jerry Palmer em Thrillers 86. Mounier, como acabamos de ver, estabelece uma análise psiquiátrica do paranóico que nos é muito útil para podermos compreender a representação do mundo através do olhar paranóico que, neste caso, caracteriza profundamente o tipo de conspiração subjacente, tipicamente paranóica e patológica e vista como fonte primordial dos males do mundo. Aparte o carácter paranóico do tough detective e da representação da conspiração a ele subjacente, podemos concluir que na hard-boiled novel, embora o detective utilize a detecção como método, não é esse, no entanto, o seu posicionamento principal, mas sim o carácter físico e violento da acção, a sua competividade individual, a preocupação com uma forma de estar enérgica e actual repleta de personagens de resposta pronta e atitude cool e prática, como sublinha Raymond Chandler no ensaio The Simple Art of Murder: I suppose the principal dilemma of the traditional or classic or straight deductive or logic and deuction novel of detection is that for any approach to perfection it demands a combination of qualities not found in the same mind. (...) The master of rare knowledge is living psychologically in the age of the hoop skirt. If you know all you should know about ceramics and Egyptian needlework, you don’t know anything at all about the police. If you know that platinum won’t melt under about 3000’F. by itself, but will melt at the glance of a pair of deep blue eyes if you put it near a bar of lead, then you don’t know how men make love in the twentieth century. Raymond Chandler, The Simple Art of Murder 4. Chandler ataca com um certo humor os métodos do detective clássico e, por isso, sublinha o carácter urgente da actualização da narrativa policial em que a conspiração, fruto de uma sociedade corrupta, preenchida pelo falseamento e disfarce, é de natureza paranóica, fazendo parte da própria estrutura da sociedade a interpretação e suspeição sistemáticas dos acontecimentos mais banais. Torna-se pois necessário e indispensável que o investigador possua uma atitude mais activa e directa com o meio urbano e os meandros policiais. Por vezes, é o próprio detective a iniciar o processo conspirativo, na tentativa de mudar a ordem vigente, ao estilo romântico, ou para manter a ordem estabelecida, como acontece nas short-stories de Poe e no romance policial clássico. Mas o mais importante é que a conspiração nem sempre resulta num crime/morte, como no policial clássico, nem usufrui sempre de inequívoca solução, dada a ambiguidade do mundo envolvente e o questionamento crescente da verdade e dos valores associados. Caminha-se, assim, para um tipo de contingência própria dos tempos modernos e pós-modernos, que começa a dar forma a um outro género policial designado Negative Thriller. Jerry Palmer, Thrillers 40. No Negative Thriller o tipo de sensibilidade, fruto da contingência e do desconforto causado por uma determinada ambiguidade no desfecho e sucesso das soluções, constitui uma característica muito própria. Isto mesmo é afirmado por Palmer: Here the distinguishing features are the reader’s sense that the evil the hero has dealt with will reappear without difficulty in another form, and that the hero hasn´t derived any personal satisfaction from fighting evil: he has done it because that is what he’s there for. Ibidem 43. Assim, o detective age por obrigação em relação ao bem-estar social, quando não por motivos pessoais, mas nunca para disso tirar prazer, pois sabe que não vale a pena; assim, ele não acredita em soluções finais mas provisórias, contingentes. Tudo o que resta é a possibilidade de começar de novo outra vez, mas mesmo isso não garante nenhuma melhoria futura. Não existe nenhum sentido de segurança e conforto que caracterizam os finais do policial clássico e alguma da ficção da hard-boiled novel, nem aquela sensibilidade do exorcista que, tal como o xamã, erradica o mal, porque não há catarse. E sublinhámos, anteriormente, quanto era importante a função catártica para a coesão social e individual no policial clássico, em Holmes e, sobretudo, em Poe. O Negative Thriller constitui, assim, uma espécie de embrião das futuras transformações da sociedade tecnológica ligadas a uma nova formação da identidade que apela, sobretudo, à contingência e às potencialidades do indivíduo “em aberto,” isto é, livre de resoluções definitivas mas atento a numerosas alternativas. Depois de analisarmos a criação da detective fiction em Poe e consequentes desenvolvimentos até épocas mais recentes, gostaríamos de relacionar a detective fiction, isto é, o policial clássico, com a conspiração clássica. No sentido clássico das teorias da conspiração estão implícitas as ideias de partilha e de comunidade e a questão da linguagem que visa, sobretudo, o plano pragmático e o mundo da acção, Informação referida no seminário “Teorias da Conspiração”, do Mestrado em Literature Comparada: Profª Doutora Helena Carvalhão Buescu. Ver da mesma autora “Forme di cospirazione: valore, etica, erotismo”, in Cospirazioni, Trame, Quaderni di Synapsis II 112. embora igualmente importantes sejam, como mais adiante veremos, a reflexão sobre a própria linguagem (a auto-reflexividade característica da metaficção) e o texto em geral. Trata-se de analisar a conspiração como “efeito de linguagem,” no sentido em que nos propomos  examinar e descodificar a produção discursiva sobra a conspiração que, na sua acepção mais geral, é concebida como paranóia ou, quando muito, como superstição destinada aos espíritos mais incrédulos e, por isso, destituída de qualquer valor sociocultural e político. Foucault, em A Vontade de Saber, exprime precisamente esta concepção de “efeito de linguagem” como descodificação das estratégias discursivas e comunicativas sobre o sexo (séc. XVII e XVIII) ao longo de uma iluminadora história da sexualidade: “Trata-se, em suma, de interrogar o caso de uma sociedade que há mais de um século se fustiga ruidosamente pela sua hipocrisia, fala prolixamente do seu próprio silêncio, se obstina em pormenorizar o que não diz, denuncia os poderes que exerce e promete libertar-se das leis que a fizeram funcionar.” (14) Conspirar é respirar em conjunto e, tradicionalmente, de modo secreto e/ou codificado. Informação referida no seminário “Teorias da Conspiração”, do Mestrado em Literatura Comparada pela docente Profª Doutora Helena Carvalhão Buescu. Ver ainda Djelal Kadir em Cospirazioni, Trame 21. No seu ensaio sobre as formas da conspiração Helena Buescu sublinha a estreita relação entre o drama pessoal e sentimental e aquele propriamente político no enquadramento da conspiração, conferindo-lhe assim uma dimensão afectiva, estética e ética. Quando a comunicação erótica e interpessoal se torna impossível a conspiração aparece, de acordo com a ensaísta, como um modo alternativo de conferir ordem ao universo e aos seus valores. Ver da autora “Forme di cospirazione: valore, etica, erotismo”, in Cospirazioni, Trame, Quaderni di Synapsis II 112. Desde tempos remotos que a conspiração, aliada aos mitos e às práticas mágico-religiosas, tem por objectivo aplacar a ansiedade e a tensão social, de modo a recuperar a totalidade perdida e a inserir o indivíduo no fluxo da ordem social. O xamã, “(De shaman, em tunguse, língua altaica, ‘aquele que é abalado, transportado’)” cit. em “Chamanismo,” Dicionário de Etnologia, 1979. O xamã inventa estratagemas para manter a coesão social através das práticas mágico-religiosas. Nesse sentido, ele é o herói hermeneuta da conspiração chamado a solucionar o enigma da ordem ameaçada da comunidade. por exemplo, mediador entre dois mundos, a comunidade e o mundo sobrenatural, através do êxtase e da possessão dos espíritos, empreende uma viagem ao mundo sobrenatural e luta com os espíritos malignos de modo a restituir a cura ao paciente. Trata-se duma performance, de uma manipulação conspiradora que, através da criação de técnicas de persuasão sui generis e secretas (como a extracção por sucção, do corpo do doente, de um seixo escondido na boca, apresentado como a causa da doença, o intruso maligno), opera a ab-reacção “Termo tomado da psicanálise que diz respeito ao momento decisivo da cura, quando o doente revive intensamente a situação inicial que está na origem da sua perturbação, antes de superá-la definitivamente.” Claude Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural 209. do paciente e o consensus social. Da mesma maneira, os cânticos e encantamentos, recorrendo ao inconsciente colectivo e, por isso, à mitologia da comunidade, ao serem activados pelo xamã induzem transformações orgânicas no paciente, constituindo uma mitologia psico-fisiológica e psico-social criadora do fenómeno a que Lévi-Strauss chamou eficácia simbólica. Tal eficácia garante um desfecho onde todos os protagonistas do complexo xamanístico Elementos que se articulam em torno de dois pólos: um formado pelo xamã e respectivas técnicas e outro formado pelo consenso colectivo e pelo público. reencontram o seu lugar e a reposição da ordem momentaneamente ameaçada. Trata-se, na realidade, de uma variação do efeito de linguagem atrás citado, na medida em que o xamã fornece uma linguagem (simbólica) ao paciente, com a qual este se identifica e exprime o seu estado não-formulado, reorganizando o processo fisiológico na sequência sugerida pelo xamã e os seus cantos. A conspiração engloba, deste modo, um carácter positivo de terapia individual e, simultaneamente, de grupo, devido à ab-reacção sofrida pela triangularidade xamã-paciente-comunidade/público. Devemos, no entanto, salientar que Lévi-Strauss também distingue o lado mais negro, por assim dizer, dessas práticas mágico-religiosas ligadas à conjura e ao enfeitiçamento, com o propósito de aniquilar ou anular o objecto do malefício (remetendo-o à troça social, no caso de a cura de um xamã ser ineficaz e outro rival ser bem sucedido, ou à exclusão social que, como sublinhámos anteriormente, conduz progressivamente à morte física do indivíduo). Outras vezes, o próprio indivíduo, consciente de ser vítima de um feitiço, somatiza o malefício e é intimamente persuadido, através do consenso social (incluindo parentes e amigos), de que está irremediavelmente perdido e condenado: “A integridade fisíca não resiste à dissolução da personalidade social”, como explica Lévi-Strauss. Claude Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural 194. A pouco e pouco o indivíduo, vítima da intriga geral, vai perdendo todos os laços que o uniam ao grupo e cede ao terror que experimenta, passando de sujeito de direitos e obrigações (vivo) a sujeito de ritos e interditos (morto). A título de curiosidade, faz-me lembrar o estribilho de Beaumarchais da famosa ópera de Rossini, Il Barbiere di Siviglia: “La calunnia è un venticello/un’auretta assai gentile/che insensibile e sottile/leggermente, dolcemente/incomincia a sussurrar (...) E il meschino caluniato/avvilito, calpestato/sotto il pubblico flagelo/per gran sorte va a crepar.” (121-28) Vimos, assim, como todas estas manipulações da linguagem simbólica, associadas, por sua vez, à eficácia simbólica e aos mitos fundadores da comunidade, constituem verdadeiras narrativas da coesão social, ligando causas e efeitos na criação de histórias míticas que contribuem fortemente para o desfecho final da experiência vivida. Neste sentido, correspondem à estrutura da conspiração clássica em que as ideias de partilha e de comunidade são fundamentais, dado que conspirar implica, como o sublinha o prefixo con, a ideia de um colectivo, de uma legitimidade garantida por meio de elos éticos e passionais, um ethos e um eros que, neste caso, subjazem à configuração mágico-religiosa do tecido social. Ver Sergio Givoni, Eros/Ethos, Einaudi. A conspiração reúne, assim, características de positividade efectiva no confronto solidário da praxis individual e social e, “Ogni congiura, vista da questa prospettiva, si propone allora come un ritorno a un ordine eticamente legittimo che il regime politico [práticas mágico-religiosas, neste caso] aveva sovvertito: cospirare, nel suo significato limite, non è più solo un diritto, ma anche un dovere.” Helena Buescu, “Forme di cospirazione” 121. por outro lado, assume aspectos de negatividade dessa mesma solidariedade, transportando os indivíduos para um patamar de suspeição e paranóia ao pôr em destaque os seus receios mais íntimos, ainda que providencie a capacidade para fabular e mentir, lugar de uma diferença fundamental, de acordo com Oscar Wilde. Diferença essa progressivamente anulada na sociedade moderna, ou seja, a sociedade homogeneizada e global. Ver Oscar Wilde, “The Decay of Lying”, Complete Works of Oscar Wilde. Na detective fiction a conspiração despoleta a acção com um crime ou uma irrupção extraordinária na ordem natural das coisas, como é, por exemplo, o caso, em “The Murders of the Rue Morgue”, “The Case of Marie Roget” e “The Purloined Letter”. E através do método hipotético-dedutivo cabe ao detective descortinar a trama dos acontecimentos, suas causas e consequências, de modo a estabelecer de novo a ordem social. O detective encarna, deste modo, metaforicamente, a figura do xamã dos tempos modernos, não usando, porém, uma linguagem simbólica mas uma linguagem altamente racional e lógica que implica, todavia, uma certa dose de intuição e imaginação, a razão intuitiva que anteriormente abordámos. Assim, o detective é chamado a resolver a conspiração, do mesmo modo que o xamã é chamado a resolver a desordem individual e social da comunidade, consequência da intriga e do segredo ritual a ela subjacente. Ao romance policial clássico corresponde, deste modo, a conspiração clássica. No entanto, poderá existir conspiração clássica sem policial clássico, visto que o fenómeno conspirativo antecede o género detectivesco e remonta a tempos ancestrais, desde as sociedades ditas “primitivas”, como vimos em Lévi-Strauss, passando pela Bíblia ou pela mitologia greco-romana. De igual modo, o facto de o detective descobrir e deslindar a trama de um crime não impede que novos crimes aconteçam. Aliás, a figura e a presença do detective pressupõem a existência de crimes cada vez mais complicados que, tal como afirma Dupin, constituem um desafio permanente às capacidades lógicas do investigador e da sociedade em geral. Em suma, tanto nas sociedades primitivas (lugar do xamã) que mencionámos, como nas mais modernas (lugar do detective), a vida e a morte, a riqueza, a guerra e o poder e a conquista social ou amorosa, são alguns dos ingredientes mais comuns da conspiração e do policial clássicos. As nuances da intriga, o segredo, o mistério, o desconhecido, as alianças, os jogos de bastidores, as paixões, a inveja e o ciúme, são outros tantos elementos que indicam o desfecho final. Todavia, a teoria da conspiração é, sobretudo, uma teoria do poder que, na sua acepção mais clássica, como a que estamos a analisar, tende a instaurar ou a restabelecer uma ordem e a eliminar o caos. E é ao nível da comunidade, precisamente, que ela vai fazer surgir um sentimento de partilha e de identidade comunal, na busca de uma verdade redentora e da coesão social. Esta estreita ligação entre cultura/comunidade e conspiração é igualmente sublinhada por Djelal Kadir: Come nel caso del “coltivare” comune e collettivo che produce la cultura, la cospirazione è anche filologicamente predicata su una solidarietà ansiosa, una comunanza invariabilmente segnalata dal prefisso lessicale sia in latino sia in greco: syn- in greco, con- in latino. Tale comunanza sopporta anche il relitto di un chiasmo, un doppio gioco che, ancora una volta, comunque trasforma la solidarietà in sospetto e la rende clandestina. Questo è lo scarto che si muove dal respiro all’atto clandestino, dalla preghiera comune alla non comune paranoia, dalla collusione alla delusione, dal consenso al dissenso e alla sfiducia. “La cospirazione della cultura e la cultura della cospirazione”, in Cospirazioni, Trame, Quaderni di Synapsis II 23. Configura-se, no entanto, como uma espécie de ligação pendular, que ora oscila para a completude, ora para o infinito, ou seja, trata-se de uma ambivalência própria à teoria conspirativa que pressupõe duas interpretações opostas e, muitas vezes, simultâneas da realidade, mas sempre com o intuito ou um desejo quase religioso de conferir uma ordem ao caos do mundo. Ver ainda Rasmus Kjaergaard Rasmussen, “Impigliato negli indizi. Thomas Pynchon e il detective paranoico”, Cospirazioni, Trame, Quaderni di Synapsis II 325. Em “The Purloined Letter”, por exemplo, trata-se de um crime de contornos políticos em que uma carta comprometedora é supostamente roubada à sua legítima proprietária, de modo a causar-lhe perda de reputação. Dupin, seguindo o percurso e os actores da intriga, consegue desvendar o mistério, acabando por encontrar o documento. A ordem é restabelecida e o poder continua intocável. Na hard-boiled novel, ao contrário, vimos como a conspiração se reveste de um carácter paranóico, onde nada é dado como certo e, muitas vezes, não existe um desfecho final, nem uma solução inequívoca. A conspiração ainda de traços clássicos na maioria dos policiais começa, no entanto, a caminhar para um tipo de sensibilidade própria dos tempos modernos e da contingência a eles subjacente. Deste modo, entramos no universo de Auster e em The New York Trilogy, onde os traços da conspiração clássica são nítidos mas onde, sobretudo, se evidenciam as pistas de um desenvolvimento que irá dar lugar à conspiração pós-moderna analisada em capítulos posteriores. Contudo, o que nos interessa salientar neste contexto, em particular, é a influência da detective fiction e da conspiração clássica nas três histórias da trilogia austeriana. Começando por City of Glass, vimos como o escritor de policiais, Quinn, se transforma em detective e como a sua demanda em busca de sentido e verdade constitui uma influência directa do policial clássico. O narrador de tipo autodiegético muito peculiar, oblíquo, se quisermos usar uma expressão austeriana, assim o confirma: A narrativa principia na terceira pessoa, mas no final o narrador aparece na primeira pessoa, conferindo à narrativa, de certa maneira, um carácter oblíquo, como salienta o autor. “(...) in City of Glass you have a book written in the third person throughout, and then, right at the end, the narrator appears and announces himself in the first-person-which colours the book in retrospect somehow, turning the whole story into a kind of oblique, first-person narrative.” Art of Hunger 317. In the good mystery there is nothing wasted, no sentence, no word that is not significant. (...) the detective is one who looks, who listens, who moves through this morass of objects and events in search of the thought, the idea that will pull all these things together and make sense of them. NYT 9. Constatamos por este breve trecho a importância atribuída ao mínimo pormenor e à procura de padrões de sentido que preencham a sede de totalidade e unidade próprias ao policial clássico e à detective fiction. A própria conspiração em City of Glass começa com um sobressalto na ordem natural dos acontecimentos: um telefonema misterioso que confunde Quinn e que irá transformar radicalmente a sua vida. A partir daí, o processo conspirativo e de restabelecimento da ordem segue os passos da detecção clássica, embora vá servir propósitos diversos em Auster, como o mesmo reconhece em The Art of Hunger: [...] my work has very little to do with it [with detective fiction]. I refer to it in the three novels of the trilogy, of course, but only as a means to an end, as a way to get somewhere else entirely. (310) Quinn, ainda, através do personagem por si criado e que dá pelo nome de William Wilson, escritor de policiais, aponta, simultaneamente, para a tradição poeiana da narrativa com o mesmo nome, sugerindo intertextualmente a influência de Poe na sua obra e na textura do seu policial pós-moderno. William Wilson, que aparece como figura emblemática do tema do duplo romântico na obra de Poe, acaba por surgir transformado em temática detectivesca na obra de Auster, numa pirueta muito própria do conceito de metaficção historiográfica elaborado por Hutcheon. Isto é, ilustra perfeitamente as noções de “instalação” e “subversão” em que Hutcheon fundamenta a sua tese relativamente ao carácter duplo da estética pós-modernista. Assim, o duplo romântico é extraído do contexto narrativo original e instalado noutro contexto que, por sua vez, vai subverter o contexto inicial e o próprio motivo do duplo, dado que lhe é atribuído um outro significado e uma outra intenção. Auster acaba por prestar homenagem ao personagem de Poe (William Wilson), nomeando-o na sua obra e, simultaneamente, subverte-o, ao transformá-lo num escritor de policiais. Ver Linda Hutcheon, A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. Max Work, o detective das histórias de Quinn (ou William Wilson), assimila as qualidades dos detectives da hard-boiled novel, um género de narrativa, como tivemos ocasião de explicitar, ainda sob o domínio do enquadramento clássico do policial mas que aponta, desde já, para o policial pós-moderno. De acordo com o narrador: “Whereas Quinn tended to feel out of place in his own skin, Work was aggressive, quick-tongued, at home in whatever spot he happened to find himself”. NYT 10. Quinn é um sujeito à procura da sua identidade, em cisão interior, como os protagonistas de Poe, e projecta nos personagens que constrói a energia e o gosto pela vida que ele perdeu. A multiplicação das identidades constitui, no entanto, um sinal inconfundível da contingência dos tempos modernos. Logo no início da história, como vimos, começa a desenhar-se a conspiração através de sucessivos telefonemas anónimos que vão servir de mote a todo o desenvolvimento da trama conspirativa. A suspeita, a intriga e o presumível crime, ou seja, a libertação de Stillman que levaria ao assassinato de Peter Stillman, levam Quinn a investigar o caso à maneira do detective clássico. No entanto, ele não consegue solucionar a conspiração e devolver intacta a ordem ameaçada, como o fariam Dupin, o xamã de que falámos anteriormente, ou até o detective da hard-boiled novel. Esta falta de fechamento sistemático da conspiração nas três histórias de Auster, conduz à formulação de um novo tipo de conspiração que, por sua vez, implica também a criação de um novo tipo de detective, como veremos. Do mesmo modo, em Ghosts, Blue é contratado para seguir Black e descobrir o motivo do seu isolamento. Ao seguir os tradicionais métodos policiais constata que não são válidos para compreender claramente a situação em que se encontra e a trama conspirativa apresentada. A suspeita, a intriga e o segredo, fazem parte da dinâmica conspirativa da narrativa, mas o fim da mesma já não é descobrir a solução de um crime, pois não existe uma vítima. Mais uma vez, trata-se de outra coisa, de um outro tipo de conspiração incompatível com os métodos de detecção clássicos. Na realidade, Blue consciencializa o facto de que esses métodos detectivescos não se adaptam à nova situação da sua condição enquanto investigador, embora utilize os procedimentos da detecção clássica próprios da detective fiction, com base na racionalização dos acontecimentos, e ainda o método da hard-boiled novel com ênfase na acção:“In every report he [Blue] has written so far, action holds forth over interpretation” NTT 374.. Assim, acaba por chegar à conclusão de que nada disso se adapta à sua actual situação: “Clues, legwork, investigative routine-none of this is going to matter anymore. But then, when he tries to imagine what will replace these things, he gets nowhere”. NYT 175. Deste modo, a rotina profissional do investigador carece de eficácia nesta demanda particular de Blue mas, simultaneamente, ele não sabe como resolver o novo problema devido ao facto de ainda não existir um novo método de pesquisa que lhe permita descobrir o sentido da investigação. Ao tomar consciência da ineficácia do método policial clássico, Blue faz ainda ressaltar a percepção da importância do método tradicional nas suas pesquisas anteriores. Por último, em The Locked Room, a conspiração surge com o aparecimento de Fanshawe que tinha sido dado como desaparecido e a narrativa decorre praticamente em flashback, à maneira dos narradores (voice-over) do film-noir. Apesar de existir um detective de nome Quinn a soldo de Sophie, esposa do narrador, quem de facto retoma o processo da demanda detectivesca é o próprio narrador dramatizado que, através de pistas várias, vai reconstruindo a vida e os passos de Fanshawe até, finalmente, conseguir chegar à descoberta do seu paradeiro: I was a detective, after all, and my job was to hunt for clues. Faced with a million bits of random information, led down a million paths of fake inquiry, I had to find the one path that would take me where I wanted to go. NYT 332. Nesta procura da totalidade do sentido busca o detective a solução final do mistério e da conspiração. Contudo, embora a conspiração assuma as características e os métodos do policial clássico, são nítidos novos desenvolvimentos que sugerem já o perfil da conspiração pós-moderna e da anti-detective fiction, de que falaremos mais adiante. EXCERTO DA TESE DE MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA “A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A SUA RELAÇÃO COM A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA.” CEC – FLUL, Universidade de Lisboa, 2006 I Parte, “PROLEGÓMENOS À CONSPIRAÇÃO PÓS-MODERNA: PAUL AUSTER E A HERANÇA DE EDGAR ALLAN POE – TRADIÇÃO E MODERNIDADE.”  Anabela Duarte . PAGE 64 A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA PAGE 65 ANABELA DUARTE