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O QUE É UM OBJETO PARA UM LÓGICO?1
André Porto
Em uma curiosa passagem, no início de seu livro A sintaxe lógica da linguagem, Carnap
(1971) lista dois tipos fundamentais de nomes: coordenadas, (como a latitude 15°47' ou a
longitude 47°56′, as duas coordenadas da cidade de Brasília), e nomes próprios (como
“Maria das Dores”, “Paulo Ferreira da Silva”, ou mesmo “Londres”). Ainda a respeito a esses
dois tipos de “nomes”, ele acrescenta que as coordenadas seriam um método de nomeação
superior aquele dos nomes próprios:
O método de nomeação por nomes próprios é o mais primitivo; aquele da
designação posicional [por coordenadas] corresponde a um estágio mais
avançado da ciência e tem consideráveis vantagens metodológicas sobre
o primeiro. (CARNAP, 1971, p. 12, I §3).
Para alguém que não esteja familiarizado com a literatura de lógica contemporânea e
tampouco esteja acostumado com uso alargado de “nome” dos lógicos poderia surgir, de
repente, a seguinte questão. A quem (salvo talvez a um lógico, como Carnap) poderia
ocorrer responder, a um pedido de exemplo do que seja um nome, mencionando uma
longitude, por exemplo, a longitude “47°56′”, mencionada? O que uma coordenada como
aquela poderia ter em comum com os nossos conhecidos nomes (de pessoas, cidades,
países), como nos exemplos que demos: “Maria das Dores” ou “Londres”?
O presente capítulo tem por objetivo contar uma história. Nossa história é uma
narração, um tanto sumária, é verdade, de como ao longo do século XX coordenadas como
“15°47'” foram paulatinamente se “transmutando”, primeiramente em nomes, depois em
nomes de um tipo ainda mais fundamental do que os nossos tradicionais nomes ordinários
(como “Maria das Dores” e “Londres”) e, por fim, acabaram mesmo por excluir aqueles
nomes comuns como sendo, de uma certa forma, pseudonomes, ou pelo menos, “nomes
derivados”.
Essa estranha saga envolvendo a trajetória dos “nomes”, ao longo da lógica e da
filosofia analítica do século XX, é apenas metade da narrativa que pretendemos contar, no
1
Esse trabalho contou com apoio do programa PQ/CNPq.
495
entanto. Além da crônica envolvendo os nomes, pretendemos narrar também o curioso
destino de uma noção intimamente conectada à noção de lógica de “nome”, a saber, aquilo
a que os nomes se nomeiam, os “objetos” dos lógicos. Em um percurso que ocorre em
grande parte em paralelo aquele dos nomes, pretendemos narrar também (ainda que
novamente, de forma sumária) a história de como certos estranhos “objetos”, muitas vezes
chamados de “atômicos” ou “primários”, foram paulatinamente se infiltrando entre os nossos
antigos objetos ordinários (como copos e mesas, por exemplo) e acabaram por tomar-lhes
completamente a cena, excluindo-os do rol dos “objetos genuínos”.
Antes de iniciarmos nossa narrativa, um ponto metodológico importante. Nossa
exposição será fundamentalmente conceitual. Procuraremos o mais possível evitar de nos
envolver excessivamente com detalhes exegéticos dos vários filósofos elencados. Nos
interessa antes de tudo indicar certos movimentos argumentativos mais amplos, em
diferentes filósofos, sem procurarmos um detalhamento maior que nos enredaria em
detalhes mais idiossincráticos de cada um desses pensadores e nos faria exceder em muito
o escopo de nossa apresentação.
DANDO INÍCIO À NOSSA HISTÓRIA COM FREGE
Se vamos falar sobre as estranhas metamorfoses por que passa o conceito de “nome” e de
“objeto” na literatura de lógica dos séculos XIX e XX, nada mais natural do que tomar como
partida os trabalhos de Frege. Afinal, foi exatamente Frege quem, por primeira vez, propôs
alargar certos conceitos, até então estritamente matemáticos (como os conceitos de
“função” e de “expressão analítica”), de forma que eles pudessem incluir, além dos usuais
números, também nomes de indivíduos como argumentos.
A analogia explorada por Frege era a de aproximar a relação que o número 4 tem
com o resultado de se aplicar a função matemática “elevar ao quadrado” (“𝑥 2 ”) ao número
2, com o resultado de se aplicar a função “mãe de”, digamos, à Ana e encontrarmos aquela
que seria sua mãe, a Maria. Em forma diagramática, a proposta de Frege seria: ]
4
Maria
x2
Mãe
2
Ana
496
Ainda seguindo os passos de Frege, se introduzirmos em seguida os valores de
verdade “verdadeiro” e “falso”, podemos tratar todas as proposições (i.e., todas as
sentenças declarativas) de uma forma análoga. Suponha que uma pessoa, por exemplo, o
José, seja careca. Usando nossos diagramas, poderíamos representar a frase “José é
careca” da seguinte forma:
Verdadeiro
Careca
José
Empregando uma terminologia sugerida pelo próprio Frege, poderíamos dizer
alternativamente então que a mesma função “ser careca”, caso tivesse sido “saturada” por
um nome de uma mulher (como, por exemplo, “Maria”) resultaria (presumivelmente) no
valor “falso”.
O ponto importante que devemos enfatizar aqui é o de que o campo de aplicação de
certos conceitos (como o conceito de “função”), cujo emprego era antes restrito à
matemática e aos números, fora subitamente alargado e, de uma tacada só, passara a
englobar nossa linguagem inteira! Sobre essa proposta de ampliar enormemente o conceito
de “função matemática”, é o próprio Frege quem escreve:
Podemos nos propor a analisar as sentenças assertivas, tal como é feito com
as equações e expressões analíticas, em duas partes, uma completa em si
mesma e a outra insaturada e carente de complementação. Assim, pode-se
decompor a sentença
“César conquistou as Gálias”
em “César” e “conquistou as Gálias”. A segunda parte é insaturada, ela
contém um lugar vazio, e somente quando esse lugar é preenchido com um
nome próprio, ou de uma expressão que represente um nome próprio, o
sentido completo aparecerá. Aqui, também, denomino de função a referência
dessa parte insaturada. Neste caso, o argumento é César. (FREGE, 2009, p.
95).
497
E, como já havíamos antecipado na introdução desse capítulo, o alargamento
proposto para a noção de “função matemática” e de “nome” (nomes próprios, numerais,
expressões analíticas, etc.), não poderia não ser acompanhado de uma ampliação paralela
daquilo que entendemos como sendo os “objetos”, isso é, aquelas entidades que seriam
designadas por nossos novos “nomes”. Novamente, é o próprio Frege quem escreve:
Não apenas números, mas objetos em geral, são agora admissíveis, e aqui
também pessoas devem ser contadas entre os objetos. Os dois valores de
verdade já introduzidos são também possíveis valores de uma função.
Devemos ir ainda mais adiante e admitir [quaisquer] objetos, sem restrição,
como valores de função. (FREGE, 2009, p. 95-6).
LEIBNIZ ENTRA EM CENA
O próximo capítulo de nossa história envolve um par de novos personagens, dois princípios
propostos pela primeira vez por Leibniz, os princípios da “Identidade dos indiscerníveis” e
da “Indiscernibilidade dos idênticos”.2 Na literatura contemporânea de lógica, esses
princípios são normalmente encarados como sendo apenas duas metades complementares
do que seria uma única definição da própria noção de “identidade”. Dois objetos são
idênticos se, e somente se, eles compartilharem de todas as suas propriedades. Em
símbolos:
∀𝑎𝑏 (𝑎 = 𝑏 ↔ ∀𝑃 (𝑃(𝑎) ↔ 𝑃(𝑏))) 3
O emprego dos princípios de Leibniz que pretenderemos fazer ao longo deste
capítulo, no entanto, não será aquele de nos fornecer uma caracterização da noção de
“identidade”. Na verdade, sequer estaremos muito interessados em ambos os princípios
formulados por Leibniz. Nossa atenção recairá fundamentalmente sobre o “Princípio da
indiscernibilidade dos idênticos):
∀𝑥𝑦 (𝑥 = 𝑦 → ∀𝑃 (𝑃(𝑥) ↔ 𝑃(𝑦)))
Ver, por exemplo, Mates (1986, p. 3, cap. VII).
Os dois princípios de Leibniz corresponderiam então às duas direções do bicondicional principal,
isto é, o “Princípio da indiscernibilidade dos idênticos” seria então “∀𝑥𝑦 (𝑥 = 𝑦 → ∀𝑃 (𝑃(𝑥) ↔
2
3
𝑃(𝑦)))” e o “Princípio da identidade dos indiscerníveis” seria, por sua vez, “∀𝑥𝑦 (𝑥 = 𝑦 ←
∀𝑃 (𝑃(𝑥) ↔ 𝑃(𝑦))).
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Na verdade, tampouco a formulação “direta”, mais comum, será aquela que iremos
empregar em nossa argumentação. Usaremos, não a formulação em modus ponens (mais
usual), mas, sim, a formulação contrapositiva em modus tollens daquele princípio, isto é:
∀𝑥𝑦 (¬∀𝑃 (𝑃(𝑥) ↔ 𝑃(𝑦)) → 𝑥 ≠ 𝑦)
Tomando por sua vez o antecedente da forma contrapositiva e internalizando
completamente a negação, obtemos o novo antecedente:
∃𝑃(𝑃(𝑥) ∧ ¬𝑃(𝑦))
Por fim, instanciando aquele existencial com parâmetros “𝑎” e “𝑏” e substituindo na
formulação completa no antecedente do Princípio de Leibniz (em sua forma contrapositiva),
obteremos por fim:
∃𝑃(𝑃(𝑎) ∧ ¬𝑃(𝑏)) → 𝑎 ≠ 𝑏
Formulado dessa maneira, o que o “Princípio da identidade dos indiscerníveis” de
Leibniz parece nos dizer é que, se por ventura houver pelo menos uma propriedade 𝑃 que
distinga o objeto 𝑎 (i.e., o objeto nomeado pelo nome “𝑎”), de um objeto 𝑏 (i.e., o objeto
nomeado pelo nome “𝑏”) – ou seja, se houver uma propriedade 𝑃 tal que 𝑃(𝑎) e ¬𝑃(𝑏)
– então não haverá como escaparmos a conclusão: o objeto nomeado pelo nome “𝑎” jamais
poderia ser o mesmo objeto nomeado pelo nome “𝑏”. Isto é, o objeto 𝑎 jamais poderia ser
idêntico ao objeto 𝑏: 𝑎 ≠ 𝑏!
Nessa formulação contrapositiva, o “Princípio da identidade dos indiscerníveis” de
Leibniz parece nos oferecer, não uma caracterização da noção de “identidade”, mas, sim,
um critério geral que balizaria qualquer proposta envolvendo, nada mais, nada menos, do
que os dois personagens conceituais principais (de nosso enredo inteiro), a saber, as
noções de “nome” e de “objeto”. Se dois objetos não compartilharem todas e quaisquer
propriedades, então eles jamais poderiam ser idênticos. Qualquer propriedade distinguidora
𝑃 como que “se transfere imediatamente para o plano ontológico”. Isso é, ela nos obriga a
distinguir também os objetos que aquela propriedade logrou segregar conceitualmente.
A IDENTIDADE DOS INDISCERNÍVEIS NO SISTEMA DE FREGE
Retornemos agora ao sistema de Frege. Comecemos pela pergunta: Qual é o tratamento
da noção de “identidade” que encontramos em Frege? Mais especificamente, qual é a
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opinião de Frege sobre a caracterização da identidade que encontramos anteriormente,
aquela proposta por Leibniz? Essas perguntas não parecem dar margens a muita discussão
e polêmica. Frege é bem explícito em relação à sua opinião sobre a conceituação da
“identidade” sugerida por Leibniz. Em seus Fundamentos da aritmética, ele escreve:
... Leibniz define:
Eadem sunt quorum unum potest substitui alteri salva veritate.
(São iguais as coisas que, salvo a verdade, podem ser substituídas uma pela
outra.)
Aproprio-me desta definição para a igualdade. (FREGE, 1974, p. 251, §65).
Como dissemos antes, não parece haver espaço para dúvida de que Frege adotava,
sim, a caracterização da “identidade” proposta por Leibniz. Mas, há uma outra pergunta,
bem mais interessante, a ser feita aqui. Como vimos anteriormente também, Frege
pretendia aproximar números, pessoas, e objetos em geral, em um único conceito
extremamente englobante que poderíamos chamar de “objetos fregianos”. É neste ponto
que surge nossa indagação. Tomemos um dos tipos de objetos aparentemente aceitos por
Frege, os corpos, isso é, objetos fregianos que ocupam lugar no espaço (aquilo que
normalmente chamamos de “objetos físicos”). Cabe aqui a seguinte pergunta: esses corpos,
que Frege aceitava como sendo objetos, satisfariam o “Princípio da identidade dos
indiscerníveis” de Leibniz tal como o formulamos antes? A curiosidade envolvida nessa
questão é, pelo menos de uma maneira imediata, “direta”, a nossa resposta não ser outra
do que: “não”!
Mas por que corpos, (objetos físicos em geral, aí incluídas as pessoas, os seres
humanos e mesmo os animais) não poderiam ser objetos fregianos? A resposta é simples
e imediata. Tomemos uma pessoa, como, por exemplo, nosso José-que-era-careca, lá do
início de nosso texto. Ora, mesmo sendo atualmente careca (pois foi assim que o
imaginamos), é de se pensar que José deva ter tido, em algum ponto de sua vida, cabelos.
Pelo menos normalmente, quando pessoas (geralmente do sexo masculino) perdem os
cabelos, isso ocorre apenas na maturidade. Quando jovens, mesmo os atuais carecas
normalmente foram, sim, possuidores de cabelos. Eles só vieram a perder os cabelos mais
tarde.
É neste ponto que surge o problema com o “Princípio da identidade dos
indiscerníveis”. Tomemos nossa versão contrapositiva:
∀𝑥𝑦 (∃𝑃(𝑃(𝑥) ∧ ¬𝑃(𝑦)) → 𝑥 ≠ 𝑦)
500
Ela nos afirma que, se houver (ainda que seja uma única propriedade) que logre
distinguir dois objetos “𝑥” e “𝑦” quaisqueres (ou seja, para a qual 𝑃(𝑥), mas ¬𝑃(𝑦)),
então, segundo aquele princípio, a conclusão seria inescapável: 𝑥 ≠ 𝑦! Ou seja, 𝑥 e 𝑦 não
poderia jamais ser um e o mesmo objeto! Voltemos agora ao nosso exemplo, aquele
envolvendo o José. Se tomarmos como nosso “objeto 𝑥” o “José-maduro” e como nosso
“objeto 𝑦” o “José-jovem”, então não poderíamos negar que haveria, sim, pelo menos uma
propriedade que distinguiria esses dois (estranhos) “objetos”, a saber, a propriedade de “ser
um careca”. Mas, nesse caso, como conseguiríamos escapar da implicação do “Princípio
da identidade dos indiscerníveis”, a conclusão de que:
José-jovem José-maduro?
Repassemos com cuidado nosso problema. Podemos dizer: corpos, objetos físicos
(aí incluídas as pessoas”) possuem biografias. Alguns corpos mudam de posição, eles se
quebram, outros ainda podem vir a acabar se esfarelando, etc. Ou seja, corpos costumam
ganhar e perder propriedades. E, mesmo que imaginássemos um corpo 𝑎 que, de alguma
forma, lograsse manter todas as suas propriedades perfeitamente estáveis ao longo do
tempo, haveria pelo menos uma propriedade que sempre distinguiria o objeto “𝑎-em-ummomento-𝑡1 ” do objeto “𝑎-em-um-momento-𝑡2 ” (digamos, dois minutos adiante). Sim, pois,
pelo menos, 𝑎-em-𝑡2 teria a propriedade de “ser dois minutos mais velho do que 𝑎-em-𝑡1 ”,
e isso o distinguiria, é claro, de 𝑎-em-𝑡1 .
De forma resumida, o que procuramos argumentar é que o tipo mais ordinário dos
objetos, os objetos físicos – os corpos – jamais poderia ser objetos fregianos (ou pelo
menos, não sem alguma formulação lógica ulterior e adicional). Isso porque os objetos
físicos seriam “temporalmente estendidos”, isso é, eles teriam biografias. Mas, a passagem
do tempo é completamente incompatível com o “Princípio da identidade dos indiscerníveis”,
pois o próprio envelhecimento de um corpo a cada instante funcionaria exatamente como
uma propriedade-distinguidora de Leibniz. E nesse caso, não teríamos como não
segmentar aquele antigo “objeto físico ordinário” em uma sequência (infinita!) de “objetofísico-no-instante-𝑡1 ”, “objeto-físico-no-instante-𝑡2 ”, etc.4
FREGE ESTARIA ERRADO?
A essa altura dessa exposição, nosso leitor talvez esteja se perguntando: estaríamos nós,
por acaso, dando a entender que Frege teria se enganado quanto a esse ponto? Estaríamos
Como veremos mais adiante, é exatamente essa a proposta de Quine: a segmentação de todos os
corpos em “estágios-temporais-de-corpos”.
4
501
nós insinuando que o grande lógico alemão tivesse falhado em dar-se conta da
incompatibilidade que indicamos anteriormente, entre “Princípio da identidade dos
indiscerníveis” e sua nova proposta do que seja um “objeto”? A resposta dessa pergunta, é
claro, seria: “não”! Não cabe dúvidas de que Frege era perfeitamente consciente do
argumento que indicamos. Entre muitas outras passagens, o seguinte trecho de seus
Fundamentos da aritmética deixa muito claro sua total consciência do problema que
apontamos:
Pode-se objetar que um conceito como “habitante do império alemão”, por
exemplo, embora permanecendo inalteradas suas notas características, teria
uma propriedade variável de ano para ano, se a indicação numérica
enunciasse dele uma propriedade. Pode-se fazer valer contra isto que
também os objetos modificam suas propriedades, o que não impede de
serem reconhecidos como os mesmos. Cabe, porém, uma justificação mais
precisa. O conceito “habitante do império alemão” contém de fato o tempo
como elemento variável, ou, exprimindo-me matematicamente, é uma função
do tempo. ... Há pois já no próprio conceito algo fluido. Por outro lado, ao
conceito “habitante do império alemão no Ano Novo de 1883, hora de Berlim”
convirá o mesmo número por toda a eternidade. (FREGE, 1974, p. 245, §46).
A proposta de Frege era a de que quaisquer determinações temporais deveriam
fazer parte do que ele chamava de “pensamento expresso”, isso é, o que normalmente
chamamos de “proposição” (por oposição às noções de “sentença” e de “proferimento”).5 O
raciocínio de Frege é impecável. Todas as condições que influem na verdade de um
proferimento deveriam fazer parte do pensamento expresso (no sentido fregiano de
“pensamento”, é claro). Ora, as determinações temporais influenciam, sim, nas condições
de verdade de proferimentos empíricos (lembremos da frase “José é careca”, por exemplo).
Logo, as determinações temporais, todas elas, jamais poderiam deixar de constar da
estrutura interna lógica de qualquer proferimentos empíricos, temporalmente indexados.
Assim como o conceito “ser habitante do Império Alemão” teria de ser transmutado
em “ser habitante do império alemão no Ano Novo de 1883, hora de Berlim”. Da mesma
forma, a frase “José é careca” teria também de ser reformulada como, talvez, “José é careca
5
Para entendermos as diferenças entre esses três termos, basta lembrarmos:
Eu tenho um livro.
Eu tenho um livro.
I have a book.
No quadro há 3 proferimentos, 2 sentenças, mas 1 única proposição sendo expressa.
502
às 10:12 horas do dia 5 de março de 2021”. Em sua obra-mestra, As leis básicas da
aritmética, Frege é bem explícito quanto a importância das datações para a determinação
do pensamento expresso:
Todas as determinações de lugar, de tempo e assim por diante, pertencem
ao pensamento cuja verdade está em discussão; sua verdade, ela própria, é
independente de lugar ou tempo. (FREGE, 2016, p. xvii, v.I).
A esta altura de nossa exposição, é importante chamarmos atenção do leitor para o
aparecimento de uma personagem cuja presença já havia sido anunciada por nós, no início
desse capítulo: a dos “nomes-coordenadas”. Sim, porque a partir de agora, qualquer frase
empírica ordinária que fale sobre corpos (mesmo que sejam partículas subatômicas) teria
de ser sempre reescrita como envolvendo coordenadas temporais.6 Ainda usando nosso
exemplo, a frase:
José é careca
viraria
José foi7 careca às 10:12 horas do dia 5 de março de 2021
Mas ainda não temos resposta para nosso desafio principal, a questão do que
poderia ser então, para Frege, o “objeto-ordinário-José”? Sim, porque o José, ele próprio,
é uma entidade que se estende no tempo, isso é., o José “tem uma biografia”. Mas então,
como vimos, o “objeto-ordinário-José” jamais poderia ser um “objeto lógico” (i.e., um objeto
que diretamente satisfizesse o “Princípio da identidade dos indiscerníveis”). Isso porque,
como vimos, todo objeto empírico, ao ser “dotado de uma biografia”, passaria a poder perder
e a ganhar propriedades (o tempo passaria para ele...). Logo, um objeto físico ordinário, um
corpo, jamais poderia ser um “objeto no sentido lógico” (no sentido leibniziano). Na melhor
6
Por si só, essa já parece ser uma imensa modificação para a lógica. Todos aqueles tradicionais
exemplos de proposições que usamos em nossas aulas de introdução à lógica, estritamente falando,
teriam de ser reformulados. Assim, por exemplo, ao invés do (ubíquo) exemplo “Paulo foi ao cinema,
ou Maria foi ao teatro” (i.e., “(𝐶(𝑝) ∨ 𝑇(𝑚))”), teríamos agora de escrever: “Paulo foi ao cinema
às 20:00 do dia 5 de março de 2021, ou Maria foi ao teatro às 20:00 do dia 5 de março de 2021” (i.e.,
“(𝐶(𝑝, 20: 00/05.03.2021) ∨ 𝑇(𝑚, , 20: 00/05.03.2021))”). Ou seja, todas as nossas
asserções ordinárias sobre propriedades (“ir ao cinema”, “ir ao teatro”) virariam asserções
relacionais, entre uma pessoa (ou um objeto físico em geral) e uma data.
7 Aquele momento, 10:12 horas do dia 5 de março de 2021, agora já ficou para trás.
503
das hipóteses, ele teria de ser aquela sequência infinita de “estágios-temporais”: “aquele
corpo no momento 𝑡1 ”, “aquele corpo no momento 𝑡2 ”, etc.
Frege não oferece, em sua obra, uma discussão mais pormenorizada do problema
envolvendo os objetos empíricos, os corpos. Como veremos na próxima seção, caberia a
Quine (entre outros) oferecer uma abordagem minuciosa dessa questão, isso muitos anos
depois da morte de Frege. Mas talvez seja importante frisarmos aqui: não se tratava de uma
omissão da parte do grande filósofo alemão. Frege sabia muito bem que, para oferecer um
tratamento lógico adequado para a noção de “corpo físico”, precisaríamos introduzir, além
das coordenadas temporais e espaciais, a noção de “conjunto”.
Sim, porque, mais do que ninguém em sua época (e mesmo depois), Frege era
consciente, de algo muito mais fundamental: o inegável custo lógico de aceitarmos a noção
clássica de “conjunto”. Na formulação dessa noção defendida pelo próprio filósofo alemão,
Frege estava completamente ciente de que a ideia de que atrelar uma “extensão” (uma
“entidade saturada”, i.e., um “objeto”) a cada propriedade (uma entidade insaturada) parecia
algo extremamente suspeito. Como sabemos, Frege hesitou durante muito tempo antes de
aceitar o conceito de “curso de valores” (correspondente à extensão tanto de propriedades
quanto de relações) em seu sistema.8 Mesmo quando, anos mais tarde, Frege era
informado por Russell sobre seu famoso paradoxo (paradoxo esse que determinaria o
colapso de seu sistema inteiro) ele não hesita em confessar:
Nunca escondi de mim mesmo que [minha Lei V] não era tão óbvia quanto
as outras, nem tão óbvia quanto deve ser exigido de uma lei propriamente
lógica. Na verdade, apontei essa mesma fraqueza no prefácio do primeiro
volume, pg. vii. Eu teria alegremente dispensado esse fundamento se
soubesse de algum substituto para ele. Mesmo agora, não vejo como a
aritmética possa ser cientificamente fundamentada, como os números
possam ser apreendidos como objetos lógicos e tomados em consideração,
se não for – pelo menos condicionalmente permissível, passar-se de um
conceito para sua extensão. (FREGE, 2016, P. 253, Appendix).
Claro, ainda hoje vivemos numa época em que há uma tendência generalizada a
aceitarmos sem nenhuma problematização os conceitos de “conjunto” e consequentemente
de tomar a noção de um “contínuo”, como uma linha reta, como sendo apenas um “mero
Ele escreve: “... esperar-se-ia encontrar o conceito como referência do sujeito gramatical. Mas o
conceito enquanto tal, por sua natureza predicativa, não pode desempenhar esse papel; para que
isto se dê, ele antes deve ser convertido num objeto ou, falando mais precisamente, deve ser
representado por um objeto [sua extensão]”. (FREGE, 2009, p. 116).
8
504
conjunto de pontos. Todas essas formulações e conceitos, tão característicos da lógica e
da matemática clássica, são normalmente tidas como sendo as únicas alternativas
possíveis, ou, pelo menos, as únicas viáveis.9 Mais do que todos os outros, Frege sabia,
no entanto, que para oferecermos um tratamento adequado da concepção ordinária de
“corpos” nesses moldes, precisaríamos aceitar a noção “extensão de propriedades”, o
famigerado conceito fregiano de “curso de valores”, responsável pela derrocada final de seu
sistema. Como veremos mais adiante, é exatamente isso que propõe Quine, em sua
reconstrução lógica do conceito de “corpo”.10
O RIO CAÍSTRO, NA LÍDIA
Como antecipamos no final da seção anterior, encontramos em Quine uma discussão
detalhada do problema que víamos tratando desde o início de nosso capítulo, o problema
do tratamento lógico da noção ordinária de “objeto físico”, de “corpo”, isso é, de “objetos
temporal e espacialmente extensos”. O artigo “Identidade, ostensão e hipóstase” (QUINE,
1975a) do filósofo norte-americano abre exatamente com o enfrentamento da nossa
questão central: como construir, segundo a lógica clássica contemporânea, a noção de um
“corpo específico”, digamos, “uma pessoa”. Em seu primeiro exemplo de “corpo”, Quine
elege a si mesmo como ilustração. Ele escreve:
Dadas as mudanças por que passo, como se pode dizer que continuo sendo
eu mesmo? Considerando que de tantos em tantos anos se dá uma
substituição completa de minha substância material, como se pode dizer que
continuo sendo eu próprio por mais do que esse período, na melhor das
hipóteses? (QUINE, 1975b, p. 255).
O problema de Quine é cristalino: corpos são tidos como mantendo sua identidade
através do tempo, mas essa identidade jamais poderia ser confundida com aquela de um
“agregado material”.11 Isso porque o conteúdo material não precisa, de maneira alguma, se
manter constante através do tempo. Como nos lembra Quine: “de tantos em tantos anos se
dá uma substituição completa de minha substância material”. A despeito de todas essas
Podemos afirmar com segurança, no entanto, que essa concepção tão arraigada do “contínuo” está
longe de ser a única disponível. Cf., por exemplo, Porto (2017).
10 Mesmo no caso de Quine, no entanto, a aceitação da ideia de “conjunto” está longe de ser isenta
de reservas. Cf. Quine (2010, p. 331, §55). (Quine, 2010, pp. 331, §55)
11 Estamos empregando aqui o termo “agregado” no sentido fregiano de “reunião vários corpos
físicos em um único corpo físico composto”. Cf. Araceli Velloso no capítulo 22, “Os números como
substância matemática em Frege”, neste livro.
9
505
mudanças, no entanto, o “objeto-ordinário-Quine” (aquela pessoa) “permaneceria
autoidêntica”, mesmo a despeito de todas essas alterações em sua massa corpórea.
Em uma referência explícita à Heráclito, Quine elege então como seu segundo
exemplo ilustrativo de “corpo” um rio, mais precisamente, o Rio Caístro, na Lídia. A escolha
de Quine, de certa maneira, oferece uma redução inicial dos problemas de identificação
que teremos de enfrentar. Em contraste com uma pessoa (aquele filósofo norte-americano),
o leito de um rio teria a vantagem de se manter “relativamente estático” ao longo do tempo.
Leitos de rios, ainda que se alterem, fazem isso lentamente, principalmente quando os
comparamos com o comportamento “irrequieto” de pessoas humanas. Ainda assim, da
mesma maneira que no caso do “corpo-Quine”, as propriedades materiais do “corpoCaístro” tampouco permanece estáveis através do tempo. Portanto, da mesma forma que
no primeiro exemplo de Quine, não poderíamos atrelar a identidade do “corpo-Caístro” à
coisa material correspondente, pois ela se alteraria constantemente. Como escreve Quine:
Os estágios do rio são estágios de água, mas os rios não são águas.
Podemos banhar-nos no mesmo rio duas vezes sem nos banharmos na
mesma água duas vezes, e podemos também, nestes dias de transportes
rápidos, banhar-nos duas vezes na mesma água, banhando-nos em dois rios
diferentes. (QUINE, 1975b, p. 255).
Mas, se não podemos identificar a noção ordinária de “objetos físicos” a nenhum
agregado, ficaria então a pergunta: o que daria suporte à noção de “identidade” no caso de
pessoas e rios, em que o agregado material está em constante mudança? E nesse ponto
que os três personagens que apresentamos rapidamente no final da seção anterior
adentram explicitamente nossa história: as coordenadas espaciais, as coordenadas
temporais e mais importante do que tudo, a concepção de “extensão espaço-temporal”
como sendo um (mero) “conjuntos de pontos”. Mas vamos por partes.
O primeiro passo – a introdução das coordenadas temporais já havia sido indicada
por Frege e são explicitamente tematizadas por Quine na citação a seguir: nossos rios
ordinários virariam uma sequência de “estágios temporais de rio”. Nas palavras de Quine:
Uma destas coisas momentâneas, chamada 𝑎, é um estágio momentâneo
do rio Caístro, na Lídia, cerca de 400 anos a.C. Uma outra, chamada 𝑏, é um
estágio momentâneo do Caístro dois dias depois. Uma terceira, chamada 𝑐,
é um estágio momentâneo, neste mesmo dia posterior, da mesma
multiplicidade de moléculas de água que estava no rio no momento 𝑎.
Metade de 𝑐 está no vale do baixo Caístro, e a outra metade encontra-se em
diversos pontos espalhados pelo mar Egeu. Assim, 𝑎, 𝑏 e 𝑐 são três objetos
relacionados de várias maneiras. Podemos dizer que 𝑎 e 𝑏 se encontram
506
numa relação de parentesco fluvial, e que 𝑎 e 𝑐 se encontram numa relação
de parentesco aquático. (QUINE, 1975b, p. 255).
Como parte da montagem da estrutura lógica por trás de nossos familiares “objetosfísicos: Quine introduz então, explicitamente, além da coordenas temporais, também as
coordenadas espaciais. Ele escreve:
Na realidade, o caso do Caístro implica também o problema de sua extensão
no espaço, assim como no tempo. Temos que apontar nossas amostras não
apenas em várias datas, mas também em vários pontos rio acima e rio
abaixo, para que nosso ouvinte possa adquirir uma base representativa para
sua generalização indutiva quanto à pretendida amplitude espaço-temporal
do objeto tetradimensional Caístro. (QUINE, 1975b, p. 257).
E neste momento que, na construção oferecida por Quine, aparece o terceiro e
crucial personagem que elencamos anteriormente, a noção de “conjunto”. E, neste ponto
de nosso argumento, iremos nos distanciar um pouco de Quine e retornaremos às
formulações fregianas dos “conjuntos” como sendo “extensões de propriedades”.
Adotaremos também “Teoria simples dos tipos) de Frege, segundo a qual devemos
distinguir cuidadosamente propriedades e relações de 1ª ordem, de propriedades e
relações de 2ª ordem, e assim por diante. Faremos isso para evitarmos nos envolver aqui
na conhecida batalha levada a cabo por Quine em oposição a quaisquer entidades
intensionais, como “propriedades” (“atributos”, na nomenclatura dele), “relações”, etc.12
Lançando mão assim da terminologia proposta por Frege, poderíamos reformular o
argumento que encontramos em Quine da seguinte forma. Corpos, isso é, objetos físicos
(temporalmente extensos) jamais poderiam ser tomados diretamente como sendo “objetos”.
Isso porque, como vimos, corpos são “objetos com biografias”: eles são capazes de perder,
ou de ganhar propriedades. Mas, sendo assim, como já vimos, para que eles pudessem vir
a ser tratados como objetos, teríamos inevitavelmente de introduzir algum maquinário lógico
adequado à tarefa.
Assim, por exemplo, para reconstruirmos logicamente as entidades “pessoa-Quine”
e “Rio-Caístro”, teríamos de começar não pelo nível zero de nossa hierarquia – o nível dos
objetos lógicos, leibnizianos –, mas, sim, pelo primeiro nível da hierarquia: as propriedades
de 1ª ordem. O que Quine estaria nos dizendo então (na terminologia de Frege) é que
“objetos ordinários”, como “Quine” e “Rio Caístro”, jamais poderiam ser tratados como
12
Sobre esse tópico, cf. Quine (2010, p. 264, §43).
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“objetos lógicos” (por serem entidades temporalmente extensas). A solução de Quine
(apresentada ainda na terminologia de Frege) seria a de que “Quine” e o “Rio Caístro” teriam
de ser propriedades de 1ª ordem, as propriedades de “ser-Quine” e de “ser-Caístro”.
Uma vez de posse dessas propriedades, poderíamos então tomar suas extensões,
isso é, o conjunto dos pontos espaço-temporais correspondentes. Isso nos possibilitaria
identificar precisamente o volume (i.e., o lugar no espaço) ocupado por aqueles dois corpos
a cada instante:
{ (𝑥, 𝑦, 𝑧, 𝑡) | 𝑆𝑒𝑟 𝑄𝑢𝑖𝑛𝑒 𝑢𝑚𝑎 𝑐𝑜𝑜𝑟𝑑𝑒𝑛𝑎𝑑𝑎 𝑑𝑜 𝑣𝑜𝑙𝑢𝑚𝑒 "𝑄𝑢𝑖𝑛𝑒" (𝑥, 𝑦, 𝑧, 𝑡) }
e
{ (𝑥, 𝑦, 𝑧, 𝑡) | 𝑆𝑒𝑟 u𝑚𝑎 𝑐𝑜𝑜𝑟𝑑𝑒𝑛𝑎𝑑𝑎 𝑑𝑜 𝑣𝑜𝑙𝑢𝑚𝑒 "𝑅𝑖𝑜 𝐶𝑎í𝑠𝑡𝑟𝑜" (𝑥, 𝑦, 𝑧, 𝑡) }
No específico caso do Rio Caístro, o exemplo ilustrativo central no texto de Quine,
poderíamos pensar naquele conjunto como demarcando, ponto por ponto, o leito daquele
rio em um dado instante:
É preciso ficar claro, no entanto, que em nosso processo de reconstrução lógica do
Rio Caístro ainda não logramos chegar ao “corpo-Caístro”, no entanto, pois esse é um
objeto concreto, um certo agregado de água (que muda a cada instante). Ora, o volumeCaístro estava sendo pensado como sendo apenas um conjunto de coordenadas espaçotemporais, as coordenadas que identificariam o lugar do espaço-tempo ocupado (também
à cada instante) pelo Rio Caístro. Mas um conjunto assim é uma construção puramente
abstrata e deve ser cuidadosamente distinguido do agregado Caístro, isso é, aquele corpo
material. Para obtermos o rio concretamente dado, aquele na qual pudéssemos, por
exemplo, nos banhar, teríamos de considerar o conteúdo material correspondente àquele
conjunto. Isso é, teríamos de considerar o agregado espaço-temporal que ocupa o volumeCaístro mencionado.
Retornando mais uma vez às formulações do próprio Quine, teríamos que:
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“Este rio” significa “a somação fluvial de objetos momentâneos que contém
este objeto momentâneo”. (QUINE, 1975b, p. 256).
e
Podemos banhar-nos em dois estágios de rio que são estágios do mesmo
rio, e a isto chamamos banhar-se duas vezes no mesmo rio. (QUINE, 1975b,
p. 255).
“COMPLETA DETERMINAÇÃO DO SENTIDO”
Ao longo desse capítulo temos acompanhado o impacto que a concepção de identidade de
Leibniz sobre o tratamento oferecido pelos lógicos para o que deva ser um “objeto” (em seu
sentido lógico), bem como sobre sua contrapartida linguística, a noção de “nome” (também
em seu sentido lógico). Sob o pano de fundo do “Princípio da identidade dos indiscerníveis”,
o lógico se vê forçado a recorrer à noção de “conjunto de pontos” e a postular um nível
ontológico mais fundamental, onde todos os nossos objetos ordinários, os vários corpos
com os quais estamos acostumados a conviver, seriam repentinamente reduzidos a
especificações completamente exaustivas de cada uma de suas partículas mais ínfimas,
cuidadosamente mapeadas a cada instante do tempo.
Não poderemos nem de longe discutir aqui o formidável impacto que essas ideias
clássicas – a adoção da noção de “conjunto” e a concepção correlata do “contínuo” como
um “conjunto de pontos” – tiveram (e ainda têm) sobre a física, a matemática e a filosofia
do século XX e XXI. Teremos que nos contentar com muito menos. Registraremos tão
somente aqui uma outra proposta filosófica intimamente relacionada aos tópicos que
vínhamos repassando. Estamos nos referindo à concepção semântica que é normalmente
conhecida na literatura como a “Tese da completa determinação do sentido”, isso é, a ideia
de que todas as noções semânticas – propriedades, relações, proposições – deveriam ter
“limites absolutamente nítidos”, isso é, deveriam oferecer determinações completamente
exaustivas e precisas de suas extensões.
Comecemos, uma vez mais, pelo próprio Frege. Em sua obra mestra, As leis básicas
da aritmética, o filósofo alemão escreve:
Assim, após a definição não pode haver nenhum objeto para o qual
permaneça duvidoso se ele cai, ou não, sob esse conceito, embora nem
sempre seja possível, para nós, humanos, com nosso conhecimento limitado,
decidirmos essa questão. Figurativamente, também podemos expressar isso
da seguinte maneira: um conceito deve ter bordas nítidas. [...] um conceito
sem determinação precisa é erroneamente chamado de conceito. A lógica
509
não pode reconhecer tais construções assemelhadas a conceitos como
sendo conceitos; é impossível formular leis exatas a respeito deles. (FREGE,
2016, p. 69, v. II).
Essa imagem poderosa, de que os conceitos deveriam ter limites completamente
definidos, aparece também na obra de outro filósofo, o Wittgenstein do Tractatus logicophilosophicus. Mas, no caso de Wittgenstein, o “Princípio da completa determinação do
sentido” é aplicado, não diretamente às propriedades (i.e., aos conceitos), mas, sim, à
noção de “proposição” (os “pensamentos” de Frege). Nos cadernos preparatórios para
aquela obra, Wittgenstein escreve:
Se uma proposição nos diz algo, então ela deve ser uma figuração da
realidade exatamente como ela é, mas também deve ser uma figuração que
seja completa. Haverá, é claro, também coisas que ela não diz mas o
que ela efetivamente ela diz, ela o faz de maneira completa e deve ser
suscetível de uma definição NÍTIDA. (WITTGENSTEIN, 1961, p. 61).
Se evocarmos mais uma vez o “Princípio da identidade dos indiscerníveis” de
Leibniz, não é muito difícil de se entender as motivações por detrás das exigências
encontradas nesses dois filósofos. Tomemos o exemplo do nosso rio, o Rio Caístro.
Imaginemos que uma única molécula de água que efetivamente faça parte daquele rio (em
um determinado momento de sua história), de repente tivesse estado ausente. Poderíamos
dizer que aquele Rio-Caístro-menos-aquela-molécula-de-água permaneceria sendo o
mesmo rio? Se empregarmos o princípio de Leibniz, claramente nossa resposta não poderia
ser outra que “não”! Claro, isso porque haveria então pelo menos uma propriedade que
distinguiria Rio-Caístro-menos-aquela-molécula-de-água do Rio-Caístro-propriamente-dito:
a de que esse último conteria uma molécula de água (aquela molécula de água) a mais do
que o outro. Sob o peso da exigência de identidade proposta por Leibniz, não teríamos
como evitar a conclusão: tratar-se-ia de um outro rio!
Assim, qualquer alteração, por mais ínfima que possa ser, na biografia de qualquer
objeto físico, não teria como não produzir um efeito imediato e incontornável: tratar-se-ia de
um... outro objeto. Por mais semelhante que aquele outro objeto imaginário pudesse ser do
primeiro, jamais poderia ser aquele primeiro: haveria pelo menos uma pequena
propriedade, talvez escondida nos recônditos internos daquele corpo, que os distinguiria.
Em uma imagem igualmente arrebatadora, Wittgenstein (1961, p. 61) escreve:
Quando digo que este relógio é reluzente, e o que quero dizer por “este
relógio“ se altera no mais ínfimo detalhe em sua composição, isso significa
não apenas que o sentido da frase é alterado, em seu conteúdo, mas também
510
diretamente o que estou dizendo sobre este relógio altera seu sentido. A
forma inteira da proposição é alterada.
Antes de terminarmos nossa exposição, cabe aqui uma tomada de posição explícita
de nossa parte (ainda que em uma formulação extremamente concisa) com respeito à
conexão de nossa discussão ao longo desse capítulo e personagem principal desta
coletânea inteira, nossa prima-dona: a noção de “substância”. Poderíamos então tentar
conectar a discussão contemporânea àquela grega sugerindo que o problema que vimos
discutindo – a questão de como fornecer um arcabouço lógico adequado para a noção de
“objeto-físico” – seria diretamente relacionado à formulação inicial da noção de “substância”
de Aristóteles, tal como a encontramos nas Categorias: a noção de “substância” como
sendo um “substrato para a mudança”. É precisamente esse traço dos corpos, o fato deles
serem “temporalmente extensos” e de “poderem perder e ganhar propriedades” que, como
vimos, os impede de serem tomados como sendo objetos lógicos (sob o peso do “Princípio
da identidade dos Indiscerníveis” de Leibniz). Já a distinção que traçamos anteriormente,
entre a noção de “agregado material” e a demarcação extensional de um objeto físico em
questão – a “extensão espaço-temporal” como um “conjunto de pontos” – seria talvez mais
avizinhada à versão tardia do conceito de “substância” que encontramos na Metafísica de
Aristóteles, a ideia de “substância” como uma união entre “forma” e “matéria”.13
REFERÊNCIAS
CARNAP, R. Logical syntax of language. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1971.
FREGE, G. Os fundamentos da aritmética. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os
Pensadores).
FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Edusp, 2009.
FREGE, G. Basic laws of arithmetic. Oxford: Oxford University Press, 2016.
MATES, B. The philosophy of Leibniz: metaphysics and language. Oxford: Oxford University Press,
1986.
PORTO, A. À maneira de um colar de pérolas? Revista Portuguesa de Filosofia, v. 73, n. 3-4, p.
1381-404, 2017.
QUINE, W. V. A relativadade ontológica. In: QUINE, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios.
São Paulo: Editora Abril, 1975b. p. 139-162. Coleção Os Pensadores.
Cf. Wellington Damasceno de Almeida no capítulo 3, “Aristóteles e o predicável próprio da
substância”, neste livro.
13
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QUINE, W. V. Identidade, Ostensão e Hipóstase. In: QUINE, W. V. Desde um ponto de vista lógico.
São Paulo: Editora Abril, 1975b. p. 255-264. Coleção Os Pensadores.
QUINE, W. V. Palavra e objeto. Petrópolis: Vozes, 2010.
WITTGENSTEIN, L. Notebooks 1914-1916. Oxford: Basil Blackwell, 1961.
SUGESTÕES DE LEITURA
O capítulo II inteiro de Frege (1974) é muito relevante para os tópicos aqui tratados: a noção
de “corpo”, de “agregado” e de “conjunto”. O problema da identificação de corpos (que
Wittgenstein chama de “complexos”) e a exigência da determinação completa do sentido
são longamente tratados em Wittgenstein (1961), nas páginas 60 (com a data 16.6.1915)
até a página 70 (com a data 22.6.1915). Existe uma tradução portuguesa dessa obra
(Cadernos 1914-16. Lisboa: Edições 70, 2004), mas, infelizmente há problemas sérios de
tradução envolvendo muitas passagens, por vezes dificultando até mesmo a compreensão
do sentido desses trechos. O artigo de Quine (1975b) é certamente a discussão mais clara
e alentada do problema da identificação de corpos, e representa um importante degrau para
a famosa tese da “Indeterminação da referência (QUINE, 1975b).
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