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O ódio à poesia, ou o “poema inecessário”

2023, Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição

https://doi.org/10.23899/9786589284482

O presente artigo explora o discurso acerca do “fim da literatura” ou da “morte da literatura”, com seus desdobramentos nas composições poéticas, como estratégia de renovação literária. Por meio de pesquisa bibliográfica voltada para as publicações mais recentes relacionadas à temática, como os ensaios de Giorgio Agamben, Leyla Perrone-Moisés, Antoine Compagnon e Bem Lerner, esboça-se as principais diretrizes de uma nova postura crítica de poetas e escritores diante das narrativas de “desvalorização” da literatura desde fins do século XX e primeiras décadas do século XXI.

Organizador: Edimilson Rodrigues Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição Organizador Edimilson Rodrigues Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição 1ª Edição Foz do Iguaçu 2023 © 2023, CLAEC Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida para fins comerciais, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Aplica-se subsidiariamente a licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0). Diagramação: Lucas da Silva Martinez Capa: Gloriana Solís Alpízar Revisão: O organizador ISBN 978-65-89284-48-2 DOI: 10.23899/9786589284482 Disponível em: https://publicar.claec.org/index.php/editora/catalog/book/106 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Literatura e políticas [livro eletrônico]: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição / organização Edimilson Rodrigues. - Foz do Iguaçu, PR: CLAEC e-Books, 2023. PDF. Vários colaboradores. Bibliografia. ISBN 978-65-89284-48-2 1. Rebeldia. 2. Libertação. 3. Criação. I. Rodrigues, Edimilson. CDD: 800 Os textos contidos neste e-book são de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores e autoras, incluindo a adequação técnica e linguística. Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura – CLAEC Diretoria Executiva Dra. Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo Me. Bruno César Alves Marcelino Diretor-Presidente Diretora Vice-Presidente Dra. Cristiane Dambrós Dr. Lucas da Silva Martinez Diretora Vice-Presidente Diretor Vice-Presidente Editora CLAEC Dra. Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo Me. Bruno César Alves Marcelino Editor-Chefe Editora-Assistente Dr. Lucas da Silva Martinez Editor-Chefe Adjunto Bela. Valéria Lago Luzardo Editora-Assistente Conselho Editorial Dra. Ahtziri Erendira Molina Roldán Universidad Veracruzana, México Dra. Marie Laure Geoffray Université Sorbonne Nouvelle – Paris III, França Dra. Denise Rosana da Silva Moraes Dra. Ludmila de Lima Brandão Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Universidade Federal do Mato Grosso, Brasil Dr. Djalma Thürler Dr. Marco Antonio Chávez Aguayo Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidad de Guadalajara, México Dr. Daniel Levine Dr. Marcus Fernando da Silva Praxedes University of Michigan, Estados Unidos Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil Dr. Fabricio Pereira da Silva Dra. Sandra Catalina Valdettaro Universidade Federal Fluminense, Brasil Universidad Nacional de Rosário, Argentina Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues Dra. Susana Dominzaín Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidad de la República, Uruguai Dra. Isabel Cristina Chaves Lopes Dra. Suzana Ferreira Paulino Universidade Federal Fluminense, Brasil Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil Dr. José Serafim Bertoloto Dr. Wilson Enrique Araque Jaramillo Universidade de Cuiabá, Brasil Universidad Andina Simón Bolivar, Equador Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” Fabrício Tavares de Moraes* Introdução Em meados da década de 2000, certos meios literários e acadêmicos ocidentais foram perpassados por um tremor ocasionado por declarações entre poéticas e proféticas acerca da morte da literatura. A intensidade apocalíptica da mensagem talvez só seja comparável à celeridade de seu desaparecimento ou, mais exatamente, de seu arrefecimento, que a alocou no arsenal de teorias que se configuram antes como “sintomas” do espírito da época do que como sistemas explicativos que oferecem um panorama para além das contingências materiais imediatas. Certamente o discurso acerca do fim da literatura constitui, por si só, uma das temáticas da própria literatura, especialmente nas composições romanescas e poéticas da alta modernidade; afinal, se os dadaístas buscavam uma transfiguração da arte em dispositivo de implosão histórica, um Rimbaud, ou um George Oppen, tendo levado a cabo seus respectivos projetos literários, alcançaram o silêncio “pós-literário”, que é talvez a única redenção ou nirvana de uma literatura extremamente autoconsciente. Assim, a bem da verdade, como nos diz Leyla Perrone-Moisés em sua obra Mutações da literatura no século XXI, publicada originalmente em 2016: O fim da literatura foi tão anunciado e comentado que se transformou num tópos ensaístico, já fatigado e fatigante. Como os escritores parecem não ter tomado conhecimento dessa discussão, e continuam escrevendo abundantemente, teóricos mais recentes têm proposto que se pense “a literatura depois de seu fim” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 255). Com efeito, se julgarmos pelos recentes debates e títulos das obras de determinados teóricos e filósofos – por exemplo, L'après littérature [A pós-literatura], de Alain Finkielkraut, publicado em 2021, e Après la littérature: écrire le contemporain Doutor pelo programa de pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Juiz de Fora, com estágio de doutorado sanduíche em Queen Mary University of London, Londres, Inglaterra. Professor Adjunto do curso de Linguagens e Códigos, da Universidade Federal do Maranhão, campus São Bernardo. E-mail: fabricio.tavares@ufma.br * 78 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 [Após a literatura: escrever o contemporâneo], de Johan Faerber, publicado em 2018 – aparentemente já adentramos numa era “pós-literária”. No caso, embora esses dois autores, a título de exemplo, partam de linhas interpretativas distintas e se refiram a dinâmicas muito diferentes entre si, a ideia subjacente às suas obras é que os modelos e ideais que conduziram a instituição literária ao longo dos últimos dois séculos se encontram, hoje, exauridos e, convulsamente, dão lugar a formulações e paradigmas ainda indistintos. Finkielkraut parte de uma visão mais clássica acerca do papel da literatura na sociedade. Desse modo, afirma que a produção literária (mesmo a de maior qualidade estética) obviamente continua existindo, porém não ocupa mais os lugares e funções que lhes haviam sido designados anteriormente, digamos, nos séculos XIX e XX. Isto é, a literatura, como instituição, não mais modela o imaginário, nem os comportamentos e virtudes humanistas que supostamente concederiam uma maior capacidade de aferição moral das experiências e um entendimento das distintas arquiteturas sociais e das forças intra-históricas. Faerber, porém, mais otimista, propõe, a partir de outros escritores contemporâneos, uma refundação da literatura, que, com o discurso de sua morte, “abriu um espaço para os vivos” (FAERBER, 2018, p. 37), nas palavras do autor. Dito de outro modo, há uma distensão dos programas estéticos que permite (ou mesmo exige) uma recepção a novas fórmulas de escrita do mundo contemporâneo (este mundo de precariedade social, mercantilização de todas as esferas da vida e terrorismo global), de maneira que, diferentemente do alto modernismo, essa “re-literatura” (neologismo de Faerber), essa escrita após a literatura, não consiste numa angústia perante as vastas plagas da página em branco, como se dava na obra de um Mallarmé, mas numa ansiedade estética perante a “página negra”, conspurcada e sobrecarregada não só dos eventos catastróficos do último século, mas também de toda a literatura autoconsciente que nos precede. A adinamia do verbo Para além dessas formulações teóricas que pressupõem uma continuidade histórica e estética na produção literária, subsiste ainda, tanto no senso comum quanto (transfiguradamente) no debate acadêmico, a discussão acerca da suposta anemia poética ou como a diminuição dos poderes criativos na contemporaneidade. Essa interpretação se centra, em geral, em três possíveis (e talvez imaginadas) formas de exaustão: a do conteúdo, isto é, o sentimento de que já se narrou todas as aventuras, possibilidades e ações humanas dignas de serem transmutadas para a ficção; a da forma, 79 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 ou o entendimento de que já se encerrou a era dos experimentos literários, muitas vezes encabeçados por vanguardas que, além de sua audácia estética, traziam em seu bojo ideais políticos ou projetos ideológicos de transformação da sociedade; e a do público, que possuindo agora outros meios de entretenimento (e sendo eles narcotizados), e em razão do surgimento do “homem pós-histórico” prefigurado na obra de Nietzsche, não mais concebe a literatura como uma modalidade legítima (ou confiável) de interpretação do ser humano e suas relações com o mundo, nem como instituição ou mecanismo de renovação (ou desalienação) da comunidade. Essas três “interpretações” da suposta adinamia estética não são mutuamente excludentes, nem estão restritas a um só grupo social, ideológico ou político. A ideia de que a literatura não tem mais à disposição suficiente material humano (ou substância dramática) suscetível de converter-se em ficção ou poesia perde-se na memória histórica, e é uma experiência humana recorrente, como se testemunha, por exemplo, no livro bíblico de Eclesiastes, em que o autor, há cerca de 3000 anos, dizia que “não há nada de novo debaixo do sol”, mas que, ao mesmo tempo, “não haveria limites para a produção de livros”. O segundo entendimento acerca da exaustão é mais sofisticado, mas, em última instância, é intrínseco à própria natureza da arte, cuja expressividade impõe uma ruptura ou transfiguração de formas precedentes (as quais, por mais inovadoras que a princípio sejam, terminam por “automatizar-se”, como diria Iouri Tynianov). Afinal, uma vez que se pauta nessa desautomatização da linguagem, a literatura se apresenta como uma distinta frequência de onda em meio ao ruído do mundo. A terceira e última interpretação nos parece, se não mais sólida, ao menos mais premente, em razão da quase onipresença das mídias interativas, da difusão de formas acessíveis de entretenimento e mesmo de êxtase (Giuliano da Empoli chama esta condição de “democratização da orgia”) e das concomitantes mudanças que as novas relações e o surgimento de agentes não humanos (inteligência artificial) promovem no uso cotidiano da linguagem. Numa interpretação superficial, a percepção desse “desaparecimento” do público leitor levaria à concepção de que, com a expansão desses dispositivos, a leitura, com outras práticas e rituais humanos, seria vítima da obsolescência, tornando-se uma prática que, embora humanizadora, se restringiria a um grupo seleto de adeptos e curadores. Essa visão entre humanista e apocalíptica, que tem o mérito de apresentarnos uma faceta da literatura que é irredutível à lógica de consumo e às forças utilitaristas do capitalismo da modernidade tardia, é hoje representada pelas obras de Martha Nussbaum e de Nuccio Ordine, recentemente falecido. 80 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 De certo modo, há, nessa postura, uma grande zona de ambiguidade, produzida talvez pelas indecisões do próprio momento histórico. No caso, o discurso acerca da decadência da literatura (ou de qualquer outra arte) por óbvio não é recente (aliás, é usada, criticamente ou não, como pano de fundo ou campo de ação para vários projetos poéticos do século XIX), e necessariamente implica, ainda que de forma tácita, uma integração a uma “filosofia da história”, com seus parâmetros e teleologia. Conforme diz o crítico Mariano Sverdloff (2015, p. 12), “toda teoria acerca da decadência supõe um pensamento sobre a relação que existe entre a temporalidade e a multiplicidade” 1, e, desse modo, inaugura ou retoma uma metafísica ou, ao menos, um horizonte transcendente para a história. No entanto, como nos lembra Neville Morley, há uma diferença teórica e pragmática entre “decadência” e “declínio”; afinal, este último “pode aparentemente ser mensurado, demonstrado, expresso em gráficos e na linguagem autorizada da ciência física”, ao passo que a noção de decadência “parece mais elusiva e subjetiva [e] depende de um modelo diferente de conhecimento, isto é, o diagnóstico médico de sintomas tópicos que são analisados conjuntamente a fim de indicar uma condição subjacente” (MORLEY, 2004, p. 576). Nesse caso, o “declínio” é, dentre as duas, a única categoria aceitável para uma historiografia que não visa a uma construção de uma filosofia ou teoria da história, pois fatores como escassez de alimentos, queda na taxa de fecundidade, níveis de literacia, coesão territorial e níveis de trocas comerciais são “objetivamente” aferidos e comparados e oferecem, assim, uma radiografia da condição de prosperidade e coesão de determinada sociedade. À vista disso, os que afirmam o desaparecimento do público leitor (e uma consequente crise da literatura) argumentariam legitimamente que, se recorrermos a elementos mensuráveis e a estatísticas, perceberemos, em determinadas instâncias, uma real diminuição do número de leitores. Embora, idealmente, a dimensão estética não seja redutível ou passível de quantificação, a materialidade do mundo literário (editoras, obras e eventos de publicação) só subsiste com a confluência dessas duas modalidades que, embora distintas, constituem-se como estratos de uma mesma realidade. O ódio à Literatura Talvez a faceta mais vulnerável dessa visão do deperecimento da literatura por indiferença ou abandono por parte do público leitor seja sua voluntária displicência em Mariano Sverdloff, “Retóricas de la decadência: los tópicos de los discursos sobre la declinación desde la Antigüedad hasta la Modernidad”, Nova Tellvs, v. 32, n. 2, 2015, p. 12. 1 81 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 relação àquilo que William Marx, em sua obra La haine de la littérature [O ódio à literatura] (2015), denomina a “antiliteratura”. Dito de outro modo, todo e qualquer ensaio de história da literatura, se conduzido pelas diretrizes de uma “descrição densa” (Clifford Geertz), depara-se com outras forças e instituições que, em maior ou menor grau, confrontam (e, desse modo, delineiam negativamente) a literatura. Nesse caso, ainda que se afirme, presentemente, que o desinteresse pela literatura – ocasionado pelos mais diversos fatores – é um páthos que, na contemporaneidade, periga tornar-se um éthos, é certo, porém, que, ao longo de sua história, a literatura testemunhou um “ódio” sistemático contra si, já que discursos das mais diversas matrizes que se opunham e condenavam (pelas razões as mais diferentes) esse “devaneio estruturado” que são as produções literárias. Nas palavras de William Marx (2015): Todos os discursos antiliterários não visam à morte de seu adversário [a literatura]: eles frequentemente se contentam em esmagá-lo, para desfrutarem, por seu turno, da existência. Se a literatura não existisse, a antiliteratura acabaria por inventá-la (MARX, 2015, p. 7). Marx (2015, p. 8) evoca os quatro principais “processos” contra a literatura, que se falam em nome de distintas formas de autoridade: “em nome da autoridade (porque [a literatura] se investe da autoridade de outras instâncias)”; “em nome da verdade (a literatura não tem valor, se comparada à ciência)”; “em nome da moralidade (a literatura desafia todas as normas)”; e “em nome da sociedade (proíbe-se os escritores de se apresentarem como seus porta-vozes ou de postularem essa posição)”. Essas acusações que surgem (e em maior ou menor grau permanecem) ao longo da história são levantadas por instituições como o Estado ou o partido, a ciência e mesmo a academia, a Igreja ou grupos reformistas, agremiações e as mídias. Há, portanto, um aparente paradoxo em toda essa discussão, pois se a literatura, como querem muitos, é menos relevante ou menos “eloquente” que esses outros discursos – se, em suma, não tem realmente a “pregnância” que lhe atribuem –, por que então se vê na história a perseguição reiterada não só a escritores e poetas, mas à instituição da literatura como um todo (inclusive desautorizando teoricamente o instinto que lhe impulsiona, isto é, a vontade de ficção)? Com efeito, se, conforme nos diz Compagnon (2009, p. 50), “a literatura nos liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida – a nossa e a dos outros”, arruinando “a consciência limpa e a má-fé” (as quais se expressam, muitas vezes, pelo 82 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 discurso artificial, pelo conformismo e pelas idées reçues), ela o faz porque, diferentemente da filosofia, por exemplo, que busca sobretudo a dimensão da “necessidade” (Notwendigkeit) do ser, a literatura se debruça sobre a contingência, o fortuito (alea), mostrando-nos o que não conhecemos por meio daquilo que não acontece. E, em contraposição à sociologia que se interessa (legitimamente) pelas regularidades dos agregados humanos, a literatura não se vexa de seus excursos pelas regiões inóspitas da alma humana, precisamente através daqueles recônditos dos quais os demais saberes – seja por horror, seja por menosprezo – se afastam, conforme vemos no canto de Carlos Machado: Acende a lanterna e ilumina esse canto ermo que todos fingem esquecer. Ilumina, e surpreende a ti mesmo: revela os bichos peçonhentos que talvez carregues no escuro. Acende a lanterna e põe o foco nesse canto enfermo. Pensando bem, é melhor que passes rápido e de luz apagada (MACHADO, 2020). A bem da verdade, a ideia de “vulnerabilidade da literatura”, ainda que legítima e em parte verdadeira, só é compreensível se acompanhada da percepção da “força terrível que há na humildade” (como diria Dostoiévski); em outras palavras, a frágil impertinência do discurso literário literatura torna-a, muitas vezes, se não um domínio antagônico, ao menos uma matriz de posturas dissidentes. No entanto, a condição real da literatura é mais complexa do que por vezes as visões humanistas descrevem, pois sua ambivalência é precisamente o que frustra qualquer noção de previsibilidade. Em outras palavras, a literatura, percorrendo “regiões da experiência que os outros discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes” (COMPAGNON, 2009, p. 50), é não raro aliciada ora por projetos benignos, ora por agendas hediondas; ora por gestos humanistas, ora por frenesis bestiais. Afinal, como nos diz o crítico George Steiner: 83 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem. Seu poder é incalculável. Precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores. Podem exaltar ou aviltar; seduzir ou enojar; estimular à virtude ou à barbárie, acentuar a sensibilidade ou banalizá-la. De uma maneira verdadeiramente desconcertante, podem fazer as duas coisas, praticamente ao mesmo tempo, em um impulso tão complexo, tão híbrido e tão rápido em sua alternância que nenhuma hermenêutica, nenhuma psicologia podem predizer nem calcular sua força (STEINER, 2020, p. 9-10). Porém, estamos cientes de que, numa perspectiva mais rigorosa, o leitor mais atento diria – corretamente – que não nos cabe uma generalização, ou mais precisamente uma identificação entre “literatura” e “poesia”, de modo que, ainda que houvesse de fato um ódio à literatura, deste não decorreria um ódio à poesia ou, se tanto, ao poema. Realmente, sob a platina da história da literatura, há o tumulto dessas rivalidades internas à própria arte, com suas trincheiras e demarcações que se ampliam ou se retraem de acordo com os tempos. E arriscando uma perspectiva que não raro se degenera em caricatura, diz-se que, por vezes, os poetas olham com certa suspeita para a prosa, considerando-a como cúmplice ou ao menos conformista das linguagens exauridas de uma sociedade; ao passo que os grandes romancistas, por seu turno, em sua vertiginosa pletora, e preocupados com a envergadura histórica e social de seu projeto, complacentemente veem nos poemas apenas focos bruxuleantes. O crítico Domingos Carvalho da Silva (1989), por exemplo, afirma que a modernidade testemunha diversas tentativas de incursão (ou invasão) da prosa no domínio da poesia, como se houvesse uma emulação atávica, possivelmente metafísica, entre a linearidade e diretividade da prosa e as convoluções e obliquidade do verso. Nesse sentido, a poesia não somente, nos dizeres de Otávio Paz, seria uma máquina de anti-história, mas também estaria teoricamente em descompasso com a própria história da literatura. Se a prosa acompanha as cadências do espírito da época, por vezes servindo mesmo de seu arauto ou caixa de ressonância, a poesia, por sua vez, numa disjunção que lhe é típica, está, como o tempo, “out of joint”2. O ódio à poesia No que diz respeito, pois, especificamente à poesia e ao “ódio” que lhe é dedicado, há uma realidade singular que procede dos sentidos e intensidades que apenas o poema suscita. Ora, essa linguagem que, como um uróboro, se volta, ensimesmada e quase tautológica, para si mesma é fruto de um transbordamento de 2 Ou, na tradução de Lawrence Flores Pereira, “o tempo está disjunto” (SHAKESPEARE, 2015, p. 82). 84 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 sentido decalcado no arrocho da forma, de uma prodigalidade semântica vertida numa exiguidade semiótica. Segundo Giorgio Agamben (2002), em seu ensaio “O fim do poema”, a alta voltagem de um poema pressupõe um funcionamento (em tese) ininterrupto das duas forças que nele se consubstanciam: som e sentido; melopeia e logopeia; universalidade das métricas e ritmos e particularidade da língua e léxico; comunidade e individualidade. Essa tensão (ou ascensão), porém, é rompida pelo “fim do poema”, o verso que arremata o poema alocando-o à beira do abismo do silêncio ou da prosa.3 Nas palavras do filósofo italiano: Se a poesia não vive senão na inexaurível tensão entre a série semiótica e a série semântica, o que acontece no momento do fim, quando a oposição das duas séries não é mais possível? Teríamos aí, finalmente, um ponto de coincidência, no qual o poema, enquanto "seio de todo o sentido", ajusta as contas com seu elemento métrico para transitar definitivamente para a prosa? As bodas místicas do som e do sentido poderiam, então, ter lugar [...] Tudo se complica com o fato de não haver no poema, a pretexto de exatidão, duas séries ou duas linhas de fuga em paralelo, mas só uma, percorrida ao mesmo tempo pela corrente semântica e pela corrente semiótica; e, entre os dois fluxos, a brusca parada que a mechané poética se aplica tão obstinadamente a manter. (O som e o sentido não são duas substâncias, mas duas intensidades, dois tónoi da única substância linguística) (AGAMBEN, 2002, p. 146-147). Numa de suas pitorescas imagens, Agamben (2002, p. 147) diz que o poema atua como o kátechon (“o que detém”) da teologia paulina, o obscuro elemento que freia e retarda o advento do fim, e que, “cumprindo o tempo da poesia”, unifica os dois éons (isto é, a modalidade fonética e a semântica) e destrói “a máquina poética precipitandoa no silêncio”. De fato, se comparada à prosa, que opera geralmente segundo a linearidade histórica (buscando variações não no sentido da flecha do tempo, mas somente em suas durações), o poema é regido por uma temporalidade distinta, entre mítica e escatológica. De semelhante modo, se a prosa (ou mais especificamente o romance) é uma narrativa que se organiza em mundo, isto é, uma transfiguração do real numa organicidade simbólica, o poema, por sua vez, instaura, em si, uma ontologia coalescente, pois, com a substancialidade das palavras, instaura pequenos mundos Nesse sentido, segundo Agamben, esse verso final adentra numa esfera de suspensão que faz parte do poema, porém não é mais apenas poema – mas algo como um vetor de implicação ou uma ponte subitamente interrompida. 3 85 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 autônomos; em outras palavras, todo poema é um artefato que primeiro interpreta a si mesmo antes de qualquer referência ao mundo. Ora, em 2016, Ben Lerner, poeta e romancista estadunidense, lançou seu sugestivo ensaio The hatred of poetry [O ódio à poesia]. O título provocativo, porém, não resvala em falsa polêmica; antes, partindo de uma noção obliquamente platônica, entende que o hiato existente entre a Poesia lobrigada pela sensibilidade do poeta e a sua transposição ou concretização no poema faz com que este “seja sempre o registro de um fracasso” (LERNER, 2016, p. 6), pois a Poesia surge do desejo de ir além do finito e do histórico – o mundo humano da violência e diferença – e alcançar o transcendente ou divino [...] mas tão logo tu passas desse impulso para o poema real, o cântico do infinito é comprometido pela finitude de seus termos (LERNER, 2016, p. 6, tradução nossa). Nesse diapasão, diz-nos ainda Lerner, “o célebre ataque de Platão aos poetas pode ser interpretado, portanto, como uma defesa da Poesia em relação aos poemas” (LERNER, 2016, p. 12, tradução nossa). No caso, tendo em vista suas concepções e dinâmicas artísticas, o autor não está propondo, em última instância, uma repristinação da concepção platônica, nem a existência domínio eidético no qual a Poesia jaz, alheia à consciência humana; antes, está afirmando que, se o poeta genuinamente busca a unidade pré-conceitual do mundo, a integridade e comunhão de todos os entes anterior à divisão teórica e ao surgimento da consciência lógica, ele o faz necessariamente pelas ferramentas “conspurcadas” da linguagem, que estão sempre carregadas de história e tradições, e que, embora esse nosso aparato linguístico sature o mundo de sentido, atua, ainda que involuntariamente, como anteparo ou membrana reflexiva entre homem e mundo. Se traduzirmos nas categorias da poética clássica, o argumento de Lerner é que o telos (o objeto, a finalidade) do poeta é deformado sempre pelo seu medium (o meio ou suporte de que se vale). Ademais, se a linguagem é a substância do social, a poesia é, por excelência, a expressão, na linguagem, de nossa individualidade irredutível. Essa contradição, segundo o autor, implica “o ódio à Poesia”, que é “intrínseco à arte, pois é tarefa do poeta e do leitor de poemas usar o fulgor desse ódio para, incinerando, separar o real do virtual, como se fosse uma neblina” (LERNER, 2016, p. 24, tradução nossa). Lerner repassa em seu texto certas apologias históricas à poesia, cada uma delas com sua própria visão da função e natureza dos poemas. Para os românticos, a poesia seria o refúgio contra o utilitarismo burguês e um verbo refratário aos lugares-comuns do comércio e da indústria nascente. Já os vanguardistas modernos, no seu ataque à 86 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 instituição da arte a fim de torná-la uma atitude integrada à vida, concebiam o poema como “uma bomba imaginária com estilhaços reais: explode a categoria da poesia e adentra na história” (LERNER, 2016, p. 25). Não obstante seus princípios e formas divergentes, românticos e vanguardistas ainda atribuíam à poesia o poder de transformação da realidade social ou de intervenção nas energias que a constituem. Nos nossos dias, porém, muitos grupos acusam a poesia precisamente de “debilidade política”, e preferem os gêneros prosaicos mais afeitos à gramática dos tempos. Tendo isso em vista, o autor aprofunda seu argumento acerca da “necessidade” do ódio à poesia: “Poesia” é um termo para uma espécie de valor que nenhum poema particular pode concretizar: o valor das pessoas, o valor de uma atividade humana para além da divisão trabalho/ócio, um valor anterior e além da precificação. Desse modo, o ódio a poemas pode ser ou um modo de referir-se negativamente à poesia como um ideal – uma forma de expressar nosso desejo de exercer essas capacidades imaginativas, de reconstituir o mundo social –, ou pode ser uma fúria defensiva contra a simples sugestão de que outro mundo, outra medida de valor, sejam possíveis. Neste último caso, o ódio à poesia é um tipo de formação reativa: ataca-se o símbolo daquilo que se está reprimindo, i.e., criatividade, comunidade, um desejo por uma medida de valor que não seja “calculista” (LERNER, 2016, p. 32-33, tradução nossa). A poesia é, na atualidade, a incômoda presença do espaço de liberdade do humano, num mundo regido por convenções e pela compulsão do consumo. E sendo uma forma na qual impera a concentração (meditação), obviamente se choca com a atmosfera cultural saturada de estímulos incessantes de baixa intensidade. Nesse sentido, atua, modesta e conscientemente, como centro de comunhão em meio aos crescentes polos de consumo. Portanto, se a poesia – e mesmo a “literatura” – contemporânea não é mais capaz de humanizar-nos, ao menos ainda está qualificada para expor-nos nossa desumanização. À luz dessa realidade, arremata Lerner: Logo, “Poesia” torna-se um termo para uma exterioridade que os poemas não podem suscitar, mas podem fazer-se sentir, ainda que como uma ausência, ainda que por meio do constrangimento. As recorrentes denúncias da poesia contemporânea deveriam, pois, ser compreendidas como parte da lógica amarga da poesia, não como seu repúdio (LERNER, 2016, p. 33, tradução nossa). Portanto, o “ódio à poesia” proposto provocadoramente por Lerner é, antes, uma corajosa resignação de um poeta: o reconhecimento humilde de que não se transpõe o 87 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 hiato ontológico entre o Objeto sonhado e as teias de símbolos que buscam capturá-lo – e, repetimos, não porque haja aí uma dualidade platônica, mas sim porque há um descompasso modal entre linguagem e Poesia. Considerações finais Num contexto de hiperinflação de vozes, a informação tem de restringir-se ou degenerar-se num compactado, numa compressão dos discursos humanos. Dessa maneira, a palavra, perdendo sua energia matricial, conforma-se antes aos poderes e promove, em seus receptores, a passividade. A poesia, porém, não é um “compensado” de palavras, mas, como dizia Pound, um condensado, pois, para além de sua fertilidade e sua criação superabundante, obriga seus leitores à meditação, à contração das forças que precede todo ato. Portanto, o poema é o dispositivo que, na sua procura inquieta, promove a extrusão da ordem em meio à cacofonia; e, diante da uniformidade e das dicções fossilizadas, desdobra a língua e revela, como num leque, sua polifonia, e especialmente as vozes antes abafadas. O poema, nesse aspecto, seria uma réstia que, por sua incisividade, perturba o sono. À vista disso, cabe por fim uma indagação: qual é o papel da poesia em meio às três “grandes linguagens” de nossa era, isto é, a linguagem corporativa/publicitária, a burocrática e a ideológica? A despeito de ocasionais alianças, cada um desses discursos não só se dirige especificamente a uma faceta da existência humana, mas apresenta uma visão distinta e reducionista do homem. Para a publicidade, com seu apelo sensorial (ou sensual), seu destinatário é só e sempre o homo economicus, o consumidor. Já a burocracia somente se comunica ao homem nas categorias de sua relação com a polis e com os poderes, no melhor dos casos, tratando-lhe como cidadão. E, por fim, a linguagem ideológica, por mais variados que sejam seus princípios diretrizes, fala ao ser humano apenas como agente histórico, produtivo e interpretativo, como parte de uma totalidade cujo sentido lhe esmaga ou anula. No entanto, quem ou o que fala ao homem como homem? Nas palavras de Dora Ferreira da Silva, unicamente o “poema inecessário”, que vem a nós “impreciso/inesperado como a rosa/ou como o riso”, uma força gloriosa que, adentrando em nosso mundo, [...] desperta para o rito da forma lúcida tranquila: senhor do duplo reino 88 Literatura e políticas: energias libertárias à serviço da criação em tempos de transição O ódio à poesia, ou o “poema inecessário” DOI: 10.23899/9786589284482.6 coroado de sóis e luas (SILVA, 1970, p. 37). Referências AGAMBEM, Giorgio. "O fim do poema". Revista Cacto, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 142-149, agosto de 2002. COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009. FAERBER, Johan. Après la littérature: écrire le contemporain. Paris: PUF, 2018. FINKIELKRAUT, Alain. L'après littérature. Paris: Stock, 2021. LERNER, Ben. The hatred of poetry. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 2016. MACHADO, Carlos. “Poemas de Carlos Machado”. Revista Rascunho, edição 248, dezembro de 2020. 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