Organizador: Edimilson Rodrigues
Literatura
e políticas:
energias libertárias à serviço da
criação em tempos de transição
Organizador
Edimilson Rodrigues
Literatura e políticas:
energias libertárias à serviço da criação
em tempos de transição
1ª Edição
Foz do Iguaçu
2023
© 2023, CLAEC
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licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).
Diagramação: Lucas da Silva Martinez
Capa: Gloriana Solís Alpízar
Revisão: O organizador
ISBN 978-65-89284-48-2
DOI: 10.23899/9786589284482
Disponível em: https://publicar.claec.org/index.php/editora/catalog/book/106
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Literatura e políticas [livro eletrônico]: energias libertárias
à serviço da criação em tempos de transição /
organização Edimilson Rodrigues. - Foz do Iguaçu, PR:
CLAEC e-Books, 2023. PDF.
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Bibliografia.
ISBN 978-65-89284-48-2
1. Rebeldia. 2. Libertação. 3. Criação. I. Rodrigues,
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CDD: 800
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O ódio à poesia, ou o “poema inecessário”
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O ódio à poesia, ou o “poema inecessário”
Fabrício Tavares de Moraes*
Introdução
Em meados da década de 2000, certos meios literários e acadêmicos ocidentais
foram perpassados por um tremor ocasionado por declarações entre poéticas e
proféticas acerca da morte da literatura. A intensidade apocalíptica da mensagem talvez
só seja comparável à celeridade de seu desaparecimento ou, mais exatamente, de seu
arrefecimento, que a alocou no arsenal de teorias que se configuram antes como
“sintomas” do espírito da época do que como sistemas explicativos que oferecem um
panorama para além das contingências materiais imediatas.
Certamente o discurso acerca do fim da literatura constitui, por si só, uma das
temáticas da própria literatura, especialmente nas composições romanescas e poéticas
da alta modernidade; afinal, se os dadaístas buscavam uma transfiguração da arte em
dispositivo de implosão histórica, um Rimbaud, ou um George Oppen, tendo levado a
cabo seus respectivos projetos literários, alcançaram o silêncio “pós-literário”, que é
talvez a única redenção ou nirvana de uma literatura extremamente autoconsciente.
Assim, a bem da verdade, como nos diz Leyla Perrone-Moisés em sua obra Mutações
da literatura no século XXI, publicada originalmente em 2016:
O fim da literatura foi tão anunciado e comentado que se transformou num
tópos ensaístico, já fatigado e fatigante. Como os escritores parecem não ter
tomado conhecimento dessa discussão, e continuam escrevendo
abundantemente, teóricos mais recentes têm proposto que se pense “a
literatura depois de seu fim” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 255).
Com efeito, se julgarmos pelos recentes debates e títulos das obras de
determinados teóricos e filósofos – por exemplo, L'après littérature [A pós-literatura],
de Alain Finkielkraut, publicado em 2021, e Après la littérature: écrire le contemporain
Doutor pelo programa de pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Universidade Federal de Juiz
de Fora, com estágio de doutorado sanduíche em Queen Mary University of London, Londres, Inglaterra.
Professor Adjunto do curso de Linguagens e Códigos, da Universidade Federal do Maranhão, campus São
Bernardo.
E-mail: fabricio.tavares@ufma.br
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[Após a literatura: escrever o contemporâneo], de Johan Faerber, publicado em 2018 –
aparentemente já adentramos numa era “pós-literária”.
No caso, embora esses dois autores, a título de exemplo, partam de linhas
interpretativas distintas e se refiram a dinâmicas muito diferentes entre si, a ideia
subjacente às suas obras é que os modelos e ideais que conduziram a instituição
literária ao longo dos últimos dois séculos se encontram, hoje, exauridos e,
convulsamente, dão lugar a formulações e paradigmas ainda indistintos. Finkielkraut
parte de uma visão mais clássica acerca do papel da literatura na sociedade. Desse
modo, afirma que a produção literária (mesmo a de maior qualidade estética)
obviamente continua existindo, porém não ocupa mais os lugares e funções que lhes
haviam sido designados anteriormente, digamos, nos séculos XIX e XX. Isto é, a
literatura, como instituição, não mais modela o imaginário, nem os comportamentos e
virtudes humanistas que supostamente concederiam uma maior capacidade de aferição
moral das experiências e um entendimento das distintas arquiteturas sociais e das
forças intra-históricas.
Faerber, porém, mais otimista, propõe, a partir de outros escritores
contemporâneos, uma refundação da literatura, que, com o discurso de sua morte,
“abriu um espaço para os vivos” (FAERBER, 2018, p. 37), nas palavras do autor. Dito de
outro modo, há uma distensão dos programas estéticos que permite (ou mesmo exige)
uma recepção a novas fórmulas de escrita do mundo contemporâneo (este mundo de
precariedade social, mercantilização de todas as esferas da vida e terrorismo global), de
maneira que, diferentemente do alto modernismo, essa “re-literatura” (neologismo de
Faerber), essa escrita após a literatura, não consiste numa angústia perante as vastas
plagas da página em branco, como se dava na obra de um Mallarmé, mas numa
ansiedade estética perante a “página negra”, conspurcada e sobrecarregada não só dos
eventos catastróficos do último século, mas também de toda a literatura
autoconsciente que nos precede.
A adinamia do verbo
Para além dessas formulações teóricas que pressupõem uma continuidade
histórica e estética na produção literária, subsiste ainda, tanto no senso comum quanto
(transfiguradamente) no debate acadêmico, a discussão acerca da suposta anemia
poética ou como a diminuição dos poderes criativos na contemporaneidade. Essa
interpretação se centra, em geral, em três possíveis (e talvez imaginadas) formas de
exaustão: a do conteúdo, isto é, o sentimento de que já se narrou todas as aventuras,
possibilidades e ações humanas dignas de serem transmutadas para a ficção; a da forma,
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ou o entendimento de que já se encerrou a era dos experimentos literários, muitas
vezes encabeçados por vanguardas que, além de sua audácia estética, traziam em seu
bojo ideais políticos ou projetos ideológicos de transformação da sociedade; e a do
público, que possuindo agora outros meios de entretenimento (e sendo eles
narcotizados), e em razão do surgimento do “homem pós-histórico” prefigurado na
obra de Nietzsche, não mais concebe a literatura como uma modalidade legítima (ou
confiável) de interpretação do ser humano e suas relações com o mundo, nem como
instituição ou mecanismo de renovação (ou desalienação) da comunidade. Essas três
“interpretações” da suposta adinamia estética não são mutuamente excludentes, nem
estão restritas a um só grupo social, ideológico ou político.
A ideia de que a literatura não tem mais à disposição suficiente material humano
(ou substância dramática) suscetível de converter-se em ficção ou poesia perde-se na
memória histórica, e é uma experiência humana recorrente, como se testemunha, por
exemplo, no livro bíblico de Eclesiastes, em que o autor, há cerca de 3000 anos, dizia
que “não há nada de novo debaixo do sol”, mas que, ao mesmo tempo, “não haveria
limites para a produção de livros”.
O segundo entendimento acerca da exaustão é mais sofisticado, mas, em última
instância, é intrínseco à própria natureza da arte, cuja expressividade impõe uma
ruptura ou transfiguração de formas precedentes (as quais, por mais inovadoras que a
princípio sejam, terminam por “automatizar-se”, como diria Iouri Tynianov). Afinal, uma
vez que se pauta nessa desautomatização da linguagem, a literatura se apresenta como
uma distinta frequência de onda em meio ao ruído do mundo.
A terceira e última interpretação nos parece, se não mais sólida, ao menos mais
premente, em razão da quase onipresença das mídias interativas, da difusão de formas
acessíveis de entretenimento e mesmo de êxtase (Giuliano da Empoli chama esta
condição de “democratização da orgia”) e das concomitantes mudanças que as novas
relações e o surgimento de agentes não humanos (inteligência artificial) promovem no
uso cotidiano da linguagem.
Numa interpretação superficial, a percepção desse “desaparecimento” do público
leitor levaria à concepção de que, com a expansão desses dispositivos, a leitura, com
outras práticas e rituais humanos, seria vítima da obsolescência, tornando-se uma
prática que, embora humanizadora, se restringiria a um grupo seleto de adeptos e
curadores. Essa visão entre humanista e apocalíptica, que tem o mérito de apresentarnos uma faceta da literatura que é irredutível à lógica de consumo e às forças
utilitaristas do capitalismo da modernidade tardia, é hoje representada pelas obras de
Martha Nussbaum e de Nuccio Ordine, recentemente falecido.
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De certo modo, há, nessa postura, uma grande zona de ambiguidade, produzida
talvez pelas indecisões do próprio momento histórico. No caso, o discurso acerca da
decadência da literatura (ou de qualquer outra arte) por óbvio não é recente (aliás, é
usada, criticamente ou não, como pano de fundo ou campo de ação para vários projetos
poéticos do século XIX), e necessariamente implica, ainda que de forma tácita, uma
integração a uma “filosofia da história”, com seus parâmetros e teleologia. Conforme
diz o crítico Mariano Sverdloff (2015, p. 12), “toda teoria acerca da decadência supõe um
pensamento sobre a relação que existe entre a temporalidade e a multiplicidade” 1, e,
desse modo, inaugura ou retoma uma metafísica ou, ao menos, um horizonte
transcendente para a história.
No entanto, como nos lembra Neville Morley, há uma diferença teórica e
pragmática entre “decadência” e “declínio”; afinal, este último “pode aparentemente ser
mensurado, demonstrado, expresso em gráficos e na linguagem autorizada da ciência
física”, ao passo que a noção de decadência “parece mais elusiva e subjetiva [e] depende
de um modelo diferente de conhecimento, isto é, o diagnóstico médico de sintomas
tópicos que são analisados conjuntamente a fim de indicar uma condição subjacente”
(MORLEY, 2004, p. 576). Nesse caso, o “declínio” é, dentre as duas, a única categoria
aceitável para uma historiografia que não visa a uma construção de uma filosofia ou
teoria da história, pois fatores como escassez de alimentos, queda na taxa de
fecundidade, níveis de literacia, coesão territorial e níveis de trocas comerciais são
“objetivamente” aferidos e comparados e oferecem, assim, uma radiografia da condição
de prosperidade e coesão de determinada sociedade.
À vista disso, os que afirmam o desaparecimento do público leitor (e uma
consequente crise da literatura) argumentariam legitimamente que, se recorrermos a
elementos mensuráveis e a estatísticas, perceberemos, em determinadas instâncias,
uma real diminuição do número de leitores. Embora, idealmente, a dimensão estética
não seja redutível ou passível de quantificação, a materialidade do mundo literário
(editoras, obras e eventos de publicação) só subsiste com a confluência dessas duas
modalidades que, embora distintas, constituem-se como estratos de uma mesma
realidade.
O ódio à Literatura
Talvez a faceta mais vulnerável dessa visão do deperecimento da literatura por
indiferença ou abandono por parte do público leitor seja sua voluntária displicência em
Mariano Sverdloff, “Retóricas de la decadência: los tópicos de los discursos sobre la declinación desde
la Antigüedad hasta la Modernidad”, Nova Tellvs, v. 32, n. 2, 2015, p. 12.
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relação àquilo que William Marx, em sua obra La haine de la littérature [O ódio à
literatura] (2015), denomina a “antiliteratura”. Dito de outro modo, todo e qualquer
ensaio de história da literatura, se conduzido pelas diretrizes de uma “descrição densa”
(Clifford Geertz), depara-se com outras forças e instituições que, em maior ou menor
grau, confrontam (e, desse modo, delineiam negativamente) a literatura.
Nesse caso, ainda que se afirme, presentemente, que o desinteresse pela
literatura – ocasionado pelos mais diversos fatores – é um páthos que, na
contemporaneidade, periga tornar-se um éthos, é certo, porém, que, ao longo de sua
história, a literatura testemunhou um “ódio” sistemático contra si, já que discursos das
mais diversas matrizes que se opunham e condenavam (pelas razões as mais diferentes)
esse “devaneio estruturado” que são as produções literárias. Nas palavras de William
Marx (2015):
Todos os discursos antiliterários não visam à morte de seu adversário [a
literatura]: eles frequentemente se contentam em esmagá-lo, para desfrutarem,
por seu turno, da existência. Se a literatura não existisse, a antiliteratura
acabaria por inventá-la (MARX, 2015, p. 7).
Marx (2015, p. 8) evoca os quatro principais “processos” contra a literatura, que
se falam em nome de distintas formas de autoridade: “em nome da autoridade (porque
[a literatura] se investe da autoridade de outras instâncias)”; “em nome da verdade (a
literatura não tem valor, se comparada à ciência)”; “em nome da moralidade (a literatura
desafia todas as normas)”; e “em nome da sociedade (proíbe-se os escritores de se
apresentarem como seus porta-vozes ou de postularem essa posição)”. Essas acusações
que surgem (e em maior ou menor grau permanecem) ao longo da história são
levantadas por instituições como o Estado ou o partido, a ciência e mesmo a academia,
a Igreja ou grupos reformistas, agremiações e as mídias.
Há, portanto, um aparente paradoxo em toda essa discussão, pois se a literatura,
como querem muitos, é menos relevante ou menos “eloquente” que esses outros
discursos – se, em suma, não tem realmente a “pregnância” que lhe atribuem –, por que
então se vê na história a perseguição reiterada não só a escritores e poetas, mas à
instituição da literatura como um todo (inclusive desautorizando teoricamente o
instinto que lhe impulsiona, isto é, a vontade de ficção)?
Com efeito, se, conforme nos diz Compagnon (2009, p. 50), “a literatura nos
liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida – a nossa e a dos outros”,
arruinando “a consciência limpa e a má-fé” (as quais se expressam, muitas vezes, pelo
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discurso artificial, pelo conformismo e pelas idées reçues), ela o faz porque,
diferentemente da filosofia, por exemplo, que busca sobretudo a dimensão da
“necessidade” (Notwendigkeit) do ser, a literatura se debruça sobre a contingência, o
fortuito (alea), mostrando-nos o que não conhecemos por meio daquilo que não
acontece. E, em contraposição à sociologia que se interessa (legitimamente) pelas
regularidades dos agregados humanos, a literatura não se vexa de seus excursos pelas
regiões inóspitas da alma humana, precisamente através daqueles recônditos dos quais
os demais saberes – seja por horror, seja por menosprezo – se afastam, conforme vemos
no canto de Carlos Machado:
Acende a lanterna e ilumina
esse canto ermo
que todos fingem esquecer.
Ilumina, e surpreende
a ti mesmo:
revela os bichos peçonhentos
que talvez carregues no escuro.
Acende a lanterna e põe o foco
nesse canto enfermo.
Pensando bem,
é melhor que passes rápido
e de luz apagada (MACHADO, 2020).
A bem da verdade, a ideia de “vulnerabilidade da literatura”, ainda que legítima e
em parte verdadeira, só é compreensível se acompanhada da percepção da “força
terrível que há na humildade” (como diria Dostoiévski); em outras palavras, a frágil
impertinência do discurso literário literatura torna-a, muitas vezes, se não um domínio
antagônico, ao menos uma matriz de posturas dissidentes. No entanto, a condição real
da literatura é mais complexa do que por vezes as visões humanistas descrevem, pois
sua ambivalência é precisamente o que frustra qualquer noção de previsibilidade. Em
outras palavras, a literatura, percorrendo “regiões da experiência que os outros
discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes” (COMPAGNON,
2009, p. 50), é não raro aliciada ora por projetos benignos, ora por agendas hediondas;
ora por gestos humanistas, ora por frenesis bestiais. Afinal, como nos diz o crítico
George Steiner:
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Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o
que fazem. Seu poder é incalculável. Precisamente porque o mesmo livro e a
mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores.
Podem exaltar ou aviltar; seduzir ou enojar; estimular à virtude ou à barbárie,
acentuar a sensibilidade ou banalizá-la. De uma maneira verdadeiramente
desconcertante, podem fazer as duas coisas, praticamente ao mesmo tempo, em
um impulso tão complexo, tão híbrido e tão rápido em sua alternância que
nenhuma hermenêutica, nenhuma psicologia podem predizer nem calcular sua
força (STEINER, 2020, p. 9-10).
Porém, estamos cientes de que, numa perspectiva mais rigorosa, o leitor mais
atento diria – corretamente – que não nos cabe uma generalização, ou mais
precisamente uma identificação entre “literatura” e “poesia”, de modo que, ainda que
houvesse de fato um ódio à literatura, deste não decorreria um ódio à poesia ou, se
tanto, ao poema. Realmente, sob a platina da história da literatura, há o tumulto dessas
rivalidades internas à própria arte, com suas trincheiras e demarcações que se ampliam
ou se retraem de acordo com os tempos. E arriscando uma perspectiva que não raro se
degenera em caricatura, diz-se que, por vezes, os poetas olham com certa suspeita para
a prosa, considerando-a como cúmplice ou ao menos conformista das linguagens
exauridas de uma sociedade; ao passo que os grandes romancistas, por seu turno, em
sua vertiginosa pletora, e preocupados com a envergadura histórica e social de seu
projeto, complacentemente veem nos poemas apenas focos bruxuleantes.
O crítico Domingos Carvalho da Silva (1989), por exemplo, afirma que a
modernidade testemunha diversas tentativas de incursão (ou invasão) da prosa no
domínio da poesia, como se houvesse uma emulação atávica, possivelmente metafísica,
entre a linearidade e diretividade da prosa e as convoluções e obliquidade do verso.
Nesse sentido, a poesia não somente, nos dizeres de Otávio Paz, seria uma máquina de
anti-história, mas também estaria teoricamente em descompasso com a própria
história da literatura. Se a prosa acompanha as cadências do espírito da época, por
vezes servindo mesmo de seu arauto ou caixa de ressonância, a poesia, por sua vez,
numa disjunção que lhe é típica, está, como o tempo, “out of joint”2.
O ódio à poesia
No que diz respeito, pois, especificamente à poesia e ao “ódio” que lhe é
dedicado, há uma realidade singular que procede dos sentidos e intensidades que
apenas o poema suscita. Ora, essa linguagem que, como um uróboro, se volta,
ensimesmada e quase tautológica, para si mesma é fruto de um transbordamento de
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Ou, na tradução de Lawrence Flores Pereira, “o tempo está disjunto” (SHAKESPEARE, 2015, p. 82).
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sentido decalcado no arrocho da forma, de uma prodigalidade semântica vertida numa
exiguidade semiótica.
Segundo Giorgio Agamben (2002), em seu ensaio “O fim do poema”, a alta
voltagem de um poema pressupõe um funcionamento (em tese) ininterrupto das duas
forças que nele se consubstanciam: som e sentido; melopeia e logopeia; universalidade
das métricas e ritmos e particularidade da língua e léxico; comunidade e
individualidade. Essa tensão (ou ascensão), porém, é rompida pelo “fim do poema”, o
verso que arremata o poema alocando-o à beira do abismo do silêncio ou da prosa.3 Nas
palavras do filósofo italiano:
Se a poesia não vive senão na inexaurível tensão entre a série semiótica e a série
semântica, o que acontece no momento do fim, quando a oposição das duas
séries não é mais possível? Teríamos aí, finalmente, um ponto de coincidência,
no qual o poema, enquanto "seio de todo o sentido", ajusta as contas com seu
elemento métrico para transitar definitivamente para a prosa? As bodas místicas
do som e do sentido poderiam, então, ter lugar [...] Tudo se complica com o fato
de não haver no poema, a pretexto de exatidão, duas séries ou duas linhas de
fuga em paralelo, mas só uma, percorrida ao mesmo tempo pela corrente
semântica e pela corrente semiótica; e, entre os dois fluxos, a brusca parada que
a mechané poética se aplica tão obstinadamente a manter. (O som e o sentido
não são duas substâncias, mas duas intensidades, dois tónoi da única substância
linguística) (AGAMBEN, 2002, p. 146-147).
Numa de suas pitorescas imagens, Agamben (2002, p. 147) diz que o poema atua
como o kátechon (“o que detém”) da teologia paulina, o obscuro elemento que freia e
retarda o advento do fim, e que, “cumprindo o tempo da poesia”, unifica os dois éons
(isto é, a modalidade fonética e a semântica) e destrói “a máquina poética precipitandoa no silêncio”.
De fato, se comparada à prosa, que opera geralmente segundo a linearidade
histórica (buscando variações não no sentido da flecha do tempo, mas somente em suas
durações), o poema é regido por uma temporalidade distinta, entre mítica e
escatológica. De semelhante modo, se a prosa (ou mais especificamente o romance) é
uma narrativa que se organiza em mundo, isto é, uma transfiguração do real numa
organicidade simbólica, o poema, por sua vez, instaura, em si, uma ontologia
coalescente, pois, com a substancialidade das palavras, instaura pequenos mundos
Nesse sentido, segundo Agamben, esse verso final adentra numa esfera de suspensão que faz parte do
poema, porém não é mais apenas poema – mas algo como um vetor de implicação ou uma ponte
subitamente interrompida.
3
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autônomos; em outras palavras, todo poema é um artefato que primeiro interpreta a si
mesmo antes de qualquer referência ao mundo.
Ora, em 2016, Ben Lerner, poeta e romancista estadunidense, lançou seu sugestivo
ensaio The hatred of poetry [O ódio à poesia]. O título provocativo, porém, não resvala
em falsa polêmica; antes, partindo de uma noção obliquamente platônica, entende que
o hiato existente entre a Poesia lobrigada pela sensibilidade do poeta e a sua
transposição ou concretização no poema faz com que este “seja sempre o registro de
um fracasso” (LERNER, 2016, p. 6), pois
a Poesia surge do desejo de ir além do finito e do histórico – o mundo humano
da violência e diferença – e alcançar o transcendente ou divino [...] mas tão logo
tu passas desse impulso para o poema real, o cântico do infinito é comprometido
pela finitude de seus termos (LERNER, 2016, p. 6, tradução nossa).
Nesse diapasão, diz-nos ainda Lerner, “o célebre ataque de Platão aos poetas
pode ser interpretado, portanto, como uma defesa da Poesia em relação aos poemas”
(LERNER, 2016, p. 12, tradução nossa). No caso, tendo em vista suas concepções e
dinâmicas artísticas, o autor não está propondo, em última instância, uma repristinação
da concepção platônica, nem a existência domínio eidético no qual a Poesia jaz, alheia
à consciência humana; antes, está afirmando que, se o poeta genuinamente busca a
unidade pré-conceitual do mundo, a integridade e comunhão de todos os entes
anterior à divisão teórica e ao surgimento da consciência lógica, ele o faz
necessariamente pelas ferramentas “conspurcadas” da linguagem, que estão sempre
carregadas de história e tradições, e que, embora esse nosso aparato linguístico sature
o mundo de sentido, atua, ainda que involuntariamente, como anteparo ou membrana
reflexiva entre homem e mundo. Se traduzirmos nas categorias da poética clássica, o
argumento de Lerner é que o telos (o objeto, a finalidade) do poeta é deformado sempre
pelo seu medium (o meio ou suporte de que se vale). Ademais, se a linguagem é a
substância do social, a poesia é, por excelência, a expressão, na linguagem, de nossa
individualidade irredutível. Essa contradição, segundo o autor, implica “o ódio à Poesia”,
que é “intrínseco à arte, pois é tarefa do poeta e do leitor de poemas usar o fulgor desse
ódio para, incinerando, separar o real do virtual, como se fosse uma neblina” (LERNER,
2016, p. 24, tradução nossa).
Lerner repassa em seu texto certas apologias históricas à poesia, cada uma delas
com sua própria visão da função e natureza dos poemas. Para os românticos, a poesia
seria o refúgio contra o utilitarismo burguês e um verbo refratário aos lugares-comuns
do comércio e da indústria nascente. Já os vanguardistas modernos, no seu ataque à
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instituição da arte a fim de torná-la uma atitude integrada à vida, concebiam o poema
como “uma bomba imaginária com estilhaços reais: explode a categoria da poesia e
adentra na história” (LERNER, 2016, p. 25). Não obstante seus princípios e formas
divergentes, românticos e vanguardistas ainda atribuíam à poesia o poder de
transformação da realidade social ou de intervenção nas energias que a constituem.
Nos nossos dias, porém, muitos grupos acusam a poesia precisamente de “debilidade
política”, e preferem os gêneros prosaicos mais afeitos à gramática dos tempos. Tendo
isso em vista, o autor aprofunda seu argumento acerca da “necessidade” do ódio à
poesia:
“Poesia” é um termo para uma espécie de valor que nenhum poema particular
pode concretizar: o valor das pessoas, o valor de uma atividade humana para
além da divisão trabalho/ócio, um valor anterior e além da precificação. Desse
modo, o ódio a poemas pode ser ou um modo de referir-se negativamente à
poesia como um ideal – uma forma de expressar nosso desejo de exercer essas
capacidades imaginativas, de reconstituir o mundo social –, ou pode ser uma
fúria defensiva contra a simples sugestão de que outro mundo, outra medida de
valor, sejam possíveis. Neste último caso, o ódio à poesia é um tipo de formação
reativa: ataca-se o símbolo daquilo que se está reprimindo, i.e., criatividade,
comunidade, um desejo por uma medida de valor que não seja “calculista”
(LERNER, 2016, p. 32-33, tradução nossa).
A poesia é, na atualidade, a incômoda presença do espaço de liberdade do humano,
num mundo regido por convenções e pela compulsão do consumo. E sendo uma forma
na qual impera a concentração (meditação), obviamente se choca com a atmosfera
cultural saturada de estímulos incessantes de baixa intensidade. Nesse sentido, atua,
modesta e conscientemente, como centro de comunhão em meio aos crescentes polos
de consumo. Portanto, se a poesia – e mesmo a “literatura” – contemporânea não é mais
capaz de humanizar-nos, ao menos ainda está qualificada para expor-nos nossa
desumanização. À luz dessa realidade, arremata Lerner:
Logo, “Poesia” torna-se um termo para uma exterioridade que os poemas não
podem suscitar, mas podem fazer-se sentir, ainda que como uma ausência,
ainda que por meio do constrangimento. As recorrentes denúncias da poesia
contemporânea deveriam, pois, ser compreendidas como parte da lógica amarga
da poesia, não como seu repúdio (LERNER, 2016, p. 33, tradução nossa).
Portanto, o “ódio à poesia” proposto provocadoramente por Lerner é, antes, uma
corajosa resignação de um poeta: o reconhecimento humilde de que não se transpõe o
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O ódio à poesia, ou o “poema inecessário”
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hiato ontológico entre o Objeto sonhado e as teias de símbolos que buscam capturá-lo
– e, repetimos, não porque haja aí uma dualidade platônica, mas sim porque há um
descompasso modal entre linguagem e Poesia.
Considerações finais
Num contexto de hiperinflação de vozes, a informação tem de restringir-se ou
degenerar-se num compactado, numa compressão dos discursos humanos. Dessa
maneira, a palavra, perdendo sua energia matricial, conforma-se antes aos poderes e
promove, em seus receptores, a passividade. A poesia, porém, não é um “compensado”
de palavras, mas, como dizia Pound, um condensado, pois, para além de sua fertilidade
e sua criação superabundante, obriga seus leitores à meditação, à contração das forças
que precede todo ato.
Portanto, o poema é o dispositivo que, na sua procura inquieta, promove a
extrusão da ordem em meio à cacofonia; e, diante da uniformidade e das dicções
fossilizadas, desdobra a língua e revela, como num leque, sua polifonia, e especialmente
as vozes antes abafadas. O poema, nesse aspecto, seria uma réstia que, por sua
incisividade, perturba o sono.
À vista disso, cabe por fim uma indagação: qual é o papel da poesia em meio às três
“grandes linguagens” de nossa era, isto é, a linguagem corporativa/publicitária, a
burocrática e a ideológica? A despeito de ocasionais alianças, cada um desses discursos
não só se dirige especificamente a uma faceta da existência humana, mas apresenta
uma visão distinta e reducionista do homem. Para a publicidade, com seu apelo
sensorial (ou sensual), seu destinatário é só e sempre o homo economicus, o consumidor.
Já a burocracia somente se comunica ao homem nas categorias de sua relação com a
polis e com os poderes, no melhor dos casos, tratando-lhe como cidadão. E, por fim, a
linguagem ideológica, por mais variados que sejam seus princípios diretrizes, fala ao ser
humano apenas como agente histórico, produtivo e interpretativo, como parte de uma
totalidade cujo sentido lhe esmaga ou anula. No entanto, quem ou o que fala ao homem
como homem? Nas palavras de Dora Ferreira da Silva, unicamente o “poema
inecessário”, que vem a nós “impreciso/inesperado como a rosa/ou como o riso”, uma
força gloriosa que, adentrando em nosso mundo,
[...] desperta
para o rito da forma
lúcida
tranquila:
senhor do duplo reino
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coroado
de sóis e luas (SILVA, 1970, p. 37).
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