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Os sentidos da perda de voz

2006, Distúrbios da Comunicação. ISSN 2176-2724

* Roberta T. Petroucic** Silvia Friedman*** ARTIGOS Os sentidos da perda de voz Resumo Pesquisamos a relação entre subjetividade e perda de voz, pressupondo que a vivência de problemas vocais, que envolve a possibilidade da perda de voz, marca a subjetividade, e que a voz, para pessoas que a usam profissionalmente, pode ter um valor e um significado diferenciados em relação àquelas que não a usam. Objetivo: investigar os sentidos da perda de voz para profissionais e não-profissionais da voz, com e sem queixa vocal. Métodos: entrevistamos 12 pessoas a partir da pergunta-chave "O que vem na sua cabeça quando falo perda de voz?". A análise do discurso transcrito dos entrevistados foi baseada na proposta de Spink (2000), que trata de práticas discursivas e produção de sentidos. Resultados: quatro categorias emergiram da análise das práticas discursivas: afeto, ação, estado físico e dimensão social. Os participantes com queixa vocal deram sentido afetivo mais negativo à perda de voz e citaram mais fatores de prejuízo vocal, incluindo seus próprios estados afetivos e várias doenças. Os participantes profissionais da voz deram sentido à necessidade da voz para seus trabalhos como instrumento imprescindível e foram os que mais abordaram cuidados vocais. Os participantes não-profissionais da voz deram forte sentido à necessidade da voz para a comunicação e, destes, somente aqueles com queixa citaram cuidados vocais. Considerações finais: o fator "queixa vocal" foi mais relevante em relação à presença de marcas na subjetividade do que o fator "profissional da voz". Fizemos considerações sobre a importância de o fonoaudiólogo valorizar o estado afetivo e estar atento para questões subjetivas no tratamento de pessoas com queixa vocal. Palavras-chave: voz; distúrbios da voz; transtornos da comunicação; individualidade; Fonoaudiologia. Abstract We researched the relation between subjectivity and voice loss. We conjecture that the existence of vocal problems, involving the possibility of voice loss, determines the subjectivity in a way that the voice, to the people that use it professionally, may have different value and meaning from those who do not use it. Objective: investigate the senses of the voice loss for voice professionals and voice non-professionals, with and without vocal complaint. Methods: twelve people were interviewed from the key-question: "what does it come to your mind when I speak about voice loss?" these interviews were analyzed according to Spink (2000) proposal that treats about discursive practices and production of senses. Results: Four categories emerged from the analysis: affection, action, physical state and social dimension. The participants with vocal complaint gave more negative affective sense to the voice loss and mentioned more factors of vocal harm, including their own affective states and several diseases. The voice * Dados da dissertação apresentada por Roberta T. Petroucic como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Fonoaudiologia, no Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Silvia Friedman. Trabalho apresentado como Tema Livre no XII Congresso Brasileiro de Fonoaudiologia – Foz do Iguaçu – PR, 6 a 9 de outubro de 2004. Financiamento: Bolsa CAPES flex. ** Fonoaudióloga, especialista em Voz, mestre em Fonoaudiologia pela PUC-SP. *** Fonoaudióloga, mestre e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, professora titular da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 39 ARTIGOS Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman professionals gave sense to the necessity of voice to their jobs as a vital tool and they were the ones who mostly approached vocal care. The voice non-professionals gave a strong sense to the necessity of voice for communication and from these, only the ones with complaint mentioned vocal cares. Final considerations: the factor "vocal complaint" was more relevant concerning the presence of marks on the subjectivity than the factor "voice professional". We have made considerations upon the importance of the speech and language therapist to value the affective state and to be aware of the subjective issues in the treatment of people with vocal complaint. Key-words: voice; voice disorders; communication disorders; individuality; Speech, Language and Hearing Sciences. Resumen Investigamos la relación entre subjetividad y perdida de voz teniendo como suposición que la vivencia de problemas vocales que envuelve la posibilidad de perdida de voz marca la subjetividad y que la voz, para personas que la usan profesionalmente, puede tener un valor y un significado diferenciados en relación a aquellos que no usan. Objetivo: investigar los sentidos de la pérdida de voz para profesionales y no profesionales de la voz, con y sin queja vocal. Métodos: entrevistamos 12 personas a partir de la pregunta llave "Que le viene a la cabeza cuando digo perdida de voz?" El análisis del discurso trascrito de los entrevistados se apoyó en la propuesta de Spink (2000), que trata de practicas discursivas y producción de sentido. Resultados: del análisis de las prácticas discursivas, se mostraron cuatro categorías: afecto, acción, estado físico y dimensión social. Los participantes con queja vocal dieron sentido afectivo más negativo a la perdida de voz y enumeraron mas factores de perjuicio vocal, incluyendo sus propios estados afectivos y varias enfermedades. Los participantes profesionales de la voz dieron sentido a la necesidad de la voz para su trabajo como un instrumento imprescindible y fueron los que mas abordaron cuidados vocales. Los participantes no profesionales de la voz dieron fuerte sentido a la necesidad de la voz para la comunicación. Entre ellos, solamente los con queja hicieron referencia a cuidados vocales. Consideraciones finales: el factor "queja vocal" fue más relevante en relación a la presencia de marcas en la subjetividad que el factor "profesional de la voz". Hicimos consideraciones sobre lo importante que es para el fonoaudiólogo valorizar el estado afectivo e estar atento a las cuestiones subjetivas en el tratamiento de personas con queja vocal. Palabras clave: voz; trastornos de la voz; trastornos de la comunicación, individualidad, Fonoaudiologia. Introdução As pesquisas publicadas sobre a atuação clínica fonoaudiológica na área de voz apresentam um conhecimento pautado, principalmente, na vertente positivista, com ênfase na dimensão orgânica dos sintomas vocais. Ferreira et al. (2000), que analisou os trabalhos fonoaudiológicos publicados sobre voz, e Pinheiro e Cunha (2004), que analisaram as produções científicas de mestrado e doutorado no campo fonoaudiológico das disfonias, constataram que existiam poucos trabalhos sobre a relação entre voz e aspectos psicossociais, bem como sobre voz e aspectos psíquicos, respectivamente. 40 Pinheiro e Cunha (2004) comentaram que a dicotomia entre as dimensões psíquica e orgânica inspira uma clínica fonoaudiológica centrada exclusivamente na eliminação do sintoma corporal observável, e isso, acreditamos, pode se constituir numa simplificação excessiva do sintoma vocal. Louro (2001) também apontou a necessidade de se considerar a dimensão subjetiva na atuação fonoaudiológica na área de voz, ao pesquisar o caso de uma mulher adulta em terapia. Nessa medida, assumimos que compreender plenamente a voz, bem como os problemas vocais, implica encará-los como acontecimentos complexos que envolvem no mínimo as dimensões subje- Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 tiva, orgânica e sociocultural. Apoiada nessa compreensão, esta pesquisa busca explorar questões subjetivas ligadas à voz em sua articulação com questões orgânicas e socioculturais, por entender que essa compreensão pode trazer dados importantes para a atuação fonoaudiológica, tanto no âmbito clínico, no que se refere à constituição do sintoma e ao seu tratamento, como no âmbito da promoção da saúde vocal. A opção por considerar que a subjetividade enriquece o trabalho do fonoaudiólogo implica que ele esteja aberto para lidar com o inédito, o singular. A questão da singularidade na clínica fonoaudiológica é abordada por Palladino (2000), que considera ser a natureza relacional do processo terapêutico o que o coloca no campo da subjetividade. Argumenta que terapeuta e paciente criam uma “intermitência discursiva” na qual são exibidas as marcas da subjetividade, revelando a experiência singular que cada paciente tem em relação ao sofrimento que experimenta. Em nosso relacionamento com pessoas com queixas vocais, vemos as marcas da subjetividade surgirem nos diferentes sentidos que elas produzem ao falar de perda de voz. Dizem, por exemplo, que a voz não parece ser delas; que a voz lhes causa sofrimento por ser diferente, estranha. Isso inspirou o objetivo desta pesquisa: contemplar a dimensão da singularidade em relação à voz, investigando os sentidos de perda de voz para pessoas profissionais e não-profissionais da voz, com e sem queixa vocal. Partimos do pressuposto de que a vivência de problemas vocais, envolvendo a possibilidade da perda de voz, marca a subjetividade dessas pessoas e que a voz, para pessoas que a usam profissionalmente, pode ter um valor e um significado diferenciados em relação àquelas que não a usam. Garcia (2000), Gobbi (2004) e Machado et al. (2005), por meio de entrevistas, encontraram acesso à dimensão subjetiva da voz e investigaram os seus sentidos para diferentes grupos de pessoas: operadores de telemarketing, pessoas sem conhecimento técnico-específico sobre voz e mulheres após a menopausa, respectivamente. Nossa hipótese de que a vivência de problemas vocais, que envolvem a possibilidade de perda de voz, marca a subjetividade das pessoas foi confirmada na pesquisa de Darghan (2000), que aplicou um questionário a sujeitos disfônicos e comparou seus achados com os da pesquisa de Cariola e Behlau (2001), realizada com sujeitos sem disfonia. Sua conclusão foi de que os sujeitos disfônicos possuem maior sensibilidade quanto a uma possível falta de voz. Nossa hipótese de que a voz, para pessoas que a usam profissionalmente, pode ter um valor e um significado diferenciados em relação àquelas que não a usam também foi confirmada por Darghan (2000), que mostrou que sujeitos disfônicos considerados profissionais da voz a valorizam mais que os não profissionais da voz. A hipótese foi confirmada também pelos dados de Garcia (2000), que, ao entrevistar operadores de telemarketing, recolheu relatos com maior sensibilidade para a importância da voz após o uso profissional. É importante expor ainda que não consideramos o estudo das questões subjetivas da voz antagônico aos estudos e avanços sobre a materialidade da voz; ao contrário, pensamos que são conhecimentos que podem se articular para enriquecer o atendimento de pacientes que manifestam disfonia. ARTIGOS Os sentidos da perda de voz Métodos Antes da coleta de dados, esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética do Programa de Estudos Pós-graduados em Fonoaudiologia da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, e aprovado sob número 0138/2003. Investigar os sentidos da perda de voz alinhase à vertente qualitativa de pesquisa conforme descrita por Spink (2000). Essa proposta adota uma perspectiva construcionista de produção de conhecimento, a partir do qual o conhecimento não é visto como representação da realidade, mas como construção humana, elaborada dentro de seus limites biológicos, sociais e históricos. Nessa perspectiva, Spink (2000) propõe uma abordagem teórica e metodológica de análise de práticas discursivas, que permite a compreensão da produção de sentidos no cotidiano a partir de três dimensões básicas: linguagem, história e pessoa. A linguagem deixa de ser um mero instrumento de descrição da realidade e passa a ser focalizada “em uso”. As práticas discursivas constituem a linguagem em ação e é a partir delas que as pessoas produzem sentidos. A história leva a ver a produção de sentidos a partir de três tempos justapostos. O tempo longo é relativo às construções dos conteúdos culturais que formam as práticas discursivas de uma sociedade, Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 41 ARTIGOS Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman 42 em uma dada época, e a conhecimentos que antecedem a vida atual das pessoas. O vivido é relativo ao tempo de vida de uma pessoa, durante o qual ela aprende as linguagens sociais que marcam as possibilidades de sentidos, constrói as referências afetivas e as narrativas pessoais que configuram sua própria identidade. O tempo curto é relativo à interanimação dialógica que ocorre nas relações face a face, pautado pela concorrência entre os vários repertórios usados para dar sentido às experiências das pessoas. Nesse tempo, estão presentes combinações dos enunciados do tempo longo e do tempo vivido, recriando-se na polissemia da interação social; nele é que se produzem os sentidos. Os repertórios são os termos, os conceitos, os lugares comuns e as figuras de linguagem que delimitam as possibilidades de construções de sentidos e podem associar-se de diferentes formas, dependendo do contexto. A dimensão da pessoa leva a enfatizar a questão da dialogia e do caráter relacional. Considerase que as pessoas em interação estão em processo de negociação, desenvolvendo trocas simbólicas, em constante interanimação dialógica. Com base nesses pressupostos, a entrevista foi tomada como instrumento para coleta de dados colocando-nos na escala da interação face a face. Participaram do estudo 12 pessoas, sendo: três profissionais da voz sem queixa vocal (PS); três profissionais da voz com queixa vocal (PC); três não profissionais da voz sem queixa vocal (NPS) e três não profissionais da voz com queixa vocal (NPC). Dados sobre idade, sexo, escolaridade, profissão e queixa de alteração vocal foram levantados para caracterizar os participantes, conforme mostra o Quadro 1, em que também se vê que as siglas criadas para distinguir os participantes são numeradas de 1 a 12 para identificá-los na análise e discussão. A escolha dos participantes deu-se por meio das relações de conhecimento de uma das pesquisadoras, e o acaso dos contatos nos levou à configuração explicitada no Quadro 1. Uma vez que a pesquisa é de cunho qualitativo, não há intenção de controlar variáveis ou equiparar pessoas por profissões. Entendemos que a vivência de voz de cada participante é singular, vale por si e nos ajuda na busca pela diversidade de sentidos a ela atribuída. Inspirados na proposta de Spink (2000), uma pergunta-chave marcou o início da entrevista: “O que vem na sua cabeça quando eu falo perda de voz?”. A pesquisadora, quando julgou necessário, encorajou o entrevistado a aprofundar seu dizer em relação ao tema investigado com frases como: “o que mais?”, “queria que você explicasse mais” ou retomando o dito pela pessoa na forma interrogativa. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas em ortografia regular, compondo o material empírico da pesquisa. A análise, também realizada de acordo com Spink (2000), partiu de leituras sucessivas do material para visualizar os temas subjacentes. Dos temas que emergiram, criamos categorias que refletem o objetivo da pesquisa. A partir da definição das categorias, construímos mapas dialógicos conforme exemplificado no Quadro 2. Neles, as categorias são colocadas na linha horizontal, e os discursos relativos a cada categoria, na linha vertical correspondente. Tais mapas permitem que o discurso transcrito não seja fragmentado, na medida em que cada trecho subseqüente aparece na categoria a que pertence, sempre uma linha abaixo do que lhe antecede, respeitando a seqüência discursiva original. Assim, na leitura vertical temos os repertórios e na leitura horizontal compreendemos a dialogia. A partir dos mapas, pudemos compreender tanto os sentidos expressos em cada categoria como as relações de sentido entre as quatro categorias, a saber: afeto (sentimentos, emoções, impressões e julgamentos de valor em relação à voz), ação (os usos da voz), estado físico (estados ou sensações relativos ao corpo), dimensão social (referências que os participantes faziam a outras pessoas que opinavam ou agiam de determinada forma em relação à voz deles). Interpretamos o uso que os participantes deram aos seus repertórios e fizemos relações com a literatura pesquisada. Resultados e discussão Afeto Todos os participantes pronunciaram discursos com sentidos afetivos relacionados à voz. Esses assumiram três direções: o sentido negativo da perda de voz, a importância da voz e a relação entre a qualidade da voz e o estado afetivo. Quanto ao sentido negativo da perda de voz, o fator ser ou não profissional da voz não foi um diferencial. O diferencial foi a vivência de problemas vocais, como no discurso: “perda total, né, Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 Quadro 1 – Caracterização dos participantes quanto à profissão, idade (em anos), sexo, escolaridade e queixa vocal Participante Profissão NPS1 Diarista (faxina) Idade Sexo 36 F Escolaridade Queixa vocal 5a série fundamental Não há NPS2 Médico radiologista 29 NPS3 Programador de informática 23 M superior completo Não há M superior completo Não há NPC4 Farmacêutica 30 F superior completo Queixa de rouquidão assistemática. Fez terapia fonoaudiológica devido a nódulo de prega vocal (sic) NPC5 Metroviário 45 M médio completo Queixa de falhas na voz após paralisia de prega vocal direita, adquirida em cirurgia no pulmão (sic). Faz terapia fonoaudiológica NPC6 Cabeleireira 38 F médio completo Queixa de rouquidão e quanto ao tom de voz. Nunca fez terapia fonoaudiológica PS7 Radialista e professor de radialismo 28 M médio completo Não há PS8 Cantor de banda de rock e professor de teclados. Faz aulas de canto coral 27 M superior completo Não há PS9 Professora de Português 36 F superior completo Não há PC10 Professora de ciclo básico do ensino fundamental e agente cultural municipal 32 F superior completo Queixa de rouquidão. Tem nódulo de prega vocal (sic). Fez terapia fonoaudiológica PC11 Cantor e compositor de música popular. Faz aulas de canto 23 M médio completo Queixa de desgaste vocal. Nunca fez terapia fonoaudiológica PC12 Radialista 42 M médio completo Queixa de períodos de pigarro na voz e “secura” para falar ARTIGOS Os sentidos da perda de voz Legenda NPS: não profissional da voz sem queixa; NPC: não profissional da voz com queixa; PS: profissional da voz sem queixa; PC: profissional da voz com queixa. F : feminino; M: masculino. nossa, foi assim uma coisa terrível, uma experiência muito desagradável...” (NPC6). No discurso de participantes sem queixa (NPS3 e PS8) não houve atribuição de sentido negativo à perda de voz. Dessa forma, o fator queixa vocal teve relevância quanto à atribuição de maior ou menor negatividade à perda de voz. Esses dados concordam com os achados de Darghan (2000) e Cariola e Behlau (2001), que concluíram que os sujeitos disfônicos eram mais sensíveis ao impacto de uma possível perda de voz que os não disfônicos. Nossos participantes também se referiram muitas vezes ao medo de perder a voz, o que nos remeteu à pesquisa de Penteado et al. (2002), que consideram que o processo saúde-doença vocal é permeado pela representação da existência de uma alteração orgânica em estado avançado (nódulos, tumores e câncer de laringe), fato que se traduz em medo, em especial diante da idéia de uma indicação cirúrgica. Quanto à importância da voz, a maioria dos que atribuíram esse sentido não era profissional da voz. Dentre esses, os participantes com queixa Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 43 ARTIGOS Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman Quadro 2 – Exemplo de mapa dialógico num trecho da entrevista de PS7 Entrevistadora Afeto Ação Estado Dimensão social O que vem na sua cabeça quando eu falo perda de voz? Uma coisa terrível, ainda mais quando se trabalha com a voz e... você tem que usar ela pra você, enfim, tirar o teu sustento, é uma coisa que..., é preocupante... bastante. O que mais vem na sua cabeça? Ah, uma dor, não sei, porque eu penso em ficar rouco, penso logo numa dor, e... um descuido. Acho que é, que é isso. deram mais importância à voz referindo suas experiências pessoais em episódios com problema vocal: “eu valorizo três vezes mais minha voz, de quatro anos pra cá...” (NPC5). Nossos dados ainda condizem com os de Garcia (2000), que, ao realizar grupos focais com operadores de telemarketing, encontrou relatos de valorização da voz após a vivência de problemas de voz. Quanto à relação entre qualidade da voz e estado afetivo, os profissionais e os não profissionais da voz com queixa vocal produziram discursos com conotação afetiva negativa. Foi relatado principalmente como a emoção influi ou ocasiona problemas de voz: “[a voz era] o lugar onde eu descarregava meu nervoso. Então quanto mais nervosa eu ficava mais eu queria falar... e a longo prazo foi acabando mesmo com a minha voz” (NPC4). Os participantes sem queixa deram conotação positiva à relação entre qualidade da voz e estado afetivo, comentando a capacidade expressiva da voz e o fato de ela gerar emoções. Na pesquisa de Garcia (2000), os operadores de telemarketing comentam que reconhecem o estado emocional dos clientes pela voz e podem, inclusive, mudar suas próprias vozes em função disso. 44 Algumas das mulheres no período pós-menopausa entrevistadas por Machado et al. (2005) referiram (além da menopausa e outras condições de saúde) os estados emocionais como fatores que interferem na qualidade vocal. Ainda, entre os termos que as participantes utilizaram, alguns se relacionavam ao estado afetivo da pessoa que a emitia, como “alegre”, “triste”, “nervosa”; também relataram que a voz revela o caráter da pessoa que a emite como “boa” ou “má”. Gobbi (2004) a partir de entrevistas com pessoas que não tinham conhecimentos técnicos específicos, nem usavam profissionalmente a voz, criou a categoria “sensações provocadas pela voz” e discutiu o poder da voz para despertar sensações e sentimentos. Ação Todos os participantes produziram discursos que relacionam voz a alguma ação. Esta se referiu ao ato de comunicação, ao trabalho dos participantes e aos cuidados com a voz. Quanto à necessidade da voz para a comunicação, mais participantes não profissionais da voz do que profissionais da voz se manifestaram, o que incluiu tanto pessoas com queixa quanto sem queixa. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 Assim, o fator queixa vocal não se mostrou como diferencial relevante para a necessidade da voz para a comunicação, e o fator profissional da voz, sim. Acreditamos que o fator que pode ter determinado que apenas não profissionais da voz valorizassem a necessidade da voz para a comunicação está no processo de interanimação dialógica entrevistadora/entrevistado. Como os participantes tinham conhecimento de que a pesquisadora é fonoaudióloga, portanto, alguém com conhecimentos técnicos sobre voz, cremos que os profissionais da voz sentiram-se mais motivados a falar de questões específicas e técnicas, referindo-se mais à necessidade e ao uso da voz no trabalho. Assim, o diálogo com uma fonoaudióloga favoreceu alguns conteúdos mais específicos e possivelmente camuflou outros, mais abrangentes para os profissionais da voz. A respeito disso, Spink e Gimenes (1994) comentam que o entrevistado interpreta as perguntas a partir de suas próprias hipóteses sobre as intenções do entrevistador. Também Gobbi (2004) e Machado et al. (2005), que pesquisaram pessoas sem conhecimento técnico-específico sobre voz e mulheres após a menopausa, encontraram associações entre voz e comunicação. A propósito ainda da relação entre voz e comunicação, Martz (1987) problematizou a separação entre voz e fala. Ressaltou que a voz não é uma parte, mas sim a própria pessoa, com seus valores e cultura. Para Martz (1999), somente ao assumirmos que voz é linguagem torna-se possível entender a adaptação das funções de alimentação e respiração para a produção vocal. Quanto à necessidade da voz para o trabalho, o fator relevante foi a queixa vocal, na medida em que maior número de participantes com queixa do que sem queixa a ela se referiu. Quanto ao fator profissional da voz, o número de não profissionais e de profissionais da voz que abordaram a questão foi similar. Entretanto, se atentarmos para o fato de que não profissionais da voz com queixa valorizaram a voz para o trabalho, como NPC4, que disse: “eu trabalhava dentro de um hospital e não conseguia nem explicar pras pessoas o que eu queria...”, enquanto profissionais da voz sem queixa também a valorizaram como principal instrumento de trabalho, como PS7 que disse: “você tem que usar ela [a voz] pra você, enfim, tirar o teu sustento”, podemos considerar que o fator profis- sional da voz foi relevante na valorização da necessidade da voz para o trabalho. O sentido de que a voz é necessária para o trabalho está marcado pelo tempo vivido, na medida em que profissionais e não profissionais da voz sentiram a repercussão dos problemas de voz em seus trabalhos. A necessidade da voz para o trabalho também apareceu valorizada pelos operadores de telemarketing pesquisados por Garcia (2000). Houve sensibilização dos participantes para a importância da voz no exercício da profissão e, para muitos deles, houve maior valorização da voz após seu uso profissional. A maioria de nossos participantes associou perda de voz a problemas no trabalho. Vem ao encontro disso, o “trabalho/escola” como a situação cotidiana mais assinalada como prejudicada diante de uma eventual perda de voz, tanto pelas pessoas sem distúrbios da voz pesquisadas por Cariola e Behlau (2001), quanto pelos pacientes disfônicos pesquisados por Darghan (2000). Quanto aos cuidados com a voz, principalmente os profissionais da voz citaram o “uso vocal” como o fator que mais interfere na voz. Esse foi vinculado também às exigências da profissão: “quem em especial usa em maior quantidade é quem trabalha em veículos de comunicação... que o problema com o mau uso da voz é a longo prazo...” (PS7). Os participantes profissionais da voz mostraram um repertório maior sobre cuidados com a voz. Também dois não profissionais da voz, ambos com queixa, abordaram outros fatores que interferiam com a voz. Como um todo, foram abordados como benefícios à voz: hidratação, respiração, aquecimento vocal e técnica de voz cantada; como malefícios: temperatura das bebidas ingeridas e do ambiente, competição sonora, álcool e fumo. Entre os não profissionais da voz sem queixa, não houve manifestação sobre esses aspectos. Assim, para os cuidados com a voz, o fator queixa foi relevante entre os não profissionais da voz. Cuidados com a hidratação e a respiração foram citados por participantes que fizeram terapia fonoaudiológica (NPC4 e PC10), aula de canto (PS8) ou receberam orientação vocal dirigida a profissionais da voz (PS9). Aquecimento vocal e técnicas de voz cantada foram citados somente por participantes cantores. Fumo e álcool foram abordados somente por um participante cantor (PS8). Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 ARTIGOS Os sentidos da perda de voz 45 ARTIGOS Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman Tratamentos fonoaudiológico, médico e psicológico para cuidar da voz foram citados somente por participantes com queixa vocal, fossem profissionais ou não profissionais da voz. O trabalho fonoaudiológico preventivo foi abordado somente pela participante sem queixa, professora (PS9). Os repertórios que encontramos sobre cuidados com a voz como o perigo de beber coisas geladas e a necessidade de evitar ambientes frios nos remeteram ao tempo longo, pois esses são conhecimentos tradicionais, anteriores à data de nascimento dos participantes. No tempo das nossas avós, eram comuns frases como “não beba gelado”, “não tome vento”, “não ande descalço”, etc. Os repertórios trazidos pelos profissionais da voz e participantes com queixa vocal estão claramente marcados pelo tempo vivido, visto que se referem às experiências de terapia fonoaudiológica, aula de canto e orientações dirigidas a profissionais da voz. Esse aspecto é corroborado pela pesquisa de Viola (1997) que, para descrever as crenças populares usadas no tratamento de alterações vocais, entrevistou 40 profissionais da voz (cantores, atores, radialistas e professores) e encontrou que as indicações para cuidar da voz, em 61,4% das entrevistas, foram dadas por colegas, familiares, em especial pela mãe. A autora comenta que o conteúdo de livros teve pouca influência sobre os entrevistados, havendo predomínio da “transmissão oral do grupo social mais próximo”. Em comum com nossos participantes, foram relatados os seguintes procedimentos: ingestão de água, ingestão de líquidos quentes; evitar gelado, não se expor ao frio, evitar cigarro e/ou álcool, não gritar, fazer exercícios respiratórios e fazer aquecimento. Souza (1998) revisou a bibliografia do século XX sobre os cuidados com a voz profissional falada e mostrou, ao longo dos anos, os fatores citados como intervenientes na voz, alguns mencionados desde o início do século (1901). A Fonoaudiologia, segundo Souza (1998), contribuiu com uma parcela das orientações sobre os cuidados com a voz e incorporou várias outras, retransmitindo-as a seus pacientes. Estado físico Nesta categoria, temos discursos sobre a qualidade vocal e discursos que fazem uma relação entre voz, doenças e/ou sensações corporais. 46 Todos os participantes se referiram a alguma qualidade de voz, em geral alterada e/ou à própria perda de voz. A rouquidão foi a qualidade vocal mais referida, algumas vezes tida como o início de uma possível perda de voz: “eu perdi a voz assim, eu ia ficando rouca, ficando rouca e perdia a voz totalmente” (NPC4). A metade dos participantes citou a rouquidão, sendo a maioria deles profissional da voz, com queixa e sem queixa vocal. Além da rouquidão, outras modificações da voz foram percebidas, algumas somente pelos não profissionais da voz com queixa (afonia, tom grave) e outras pelos profissionais da voz, tanto com queixa quanto sem queixa (voz desgastada, sem potência, sem coordenação). O que vem à cena é a polissemia, ou seja, o fato de que uma palavra pode ter diferentes sentidos dependendo do contexto. Para nossos entrevistados, no contexto da perda de voz, os termos “rouca” e “rouquidão” tiveram o sentido de alteração vocal; entretanto, a rouquidão pode também ser associada à sensualidade, como aponta Behlau (2001), ao observar as opções vocais em diferentes profissões. Também Gobbi (2004) encontrou repertórios bastante flexíveis para a classificação vocal, no contexto não-fonoaudiológico. Para a participante NPC6, o termo “grave” teve conotação negativa: “um tom de voz grave, porque eu não posso fazer uma voz diferente, porque se não, ela desaparece de vez...”. Do mesmo modo, a maior parte das mulheres entrevistadas por Machado et al. (2005), ao observarem mudanças na voz após a menopausa, apontaram vozes graves (grossas) como feias, porque se assemelham à voz masculina. Em sentido contrário, na pesquisa de Gobbi (2004), o termo “grave” surgiu associado a uma voz forte. Assumir a polissemia nas práticas discursivas pode contribuir para a atuação do fonoaudiólogo no sentido de compreender que para um paciente, a voz rouca ou grave pode ser uma queixa, para outro, uma qualidade apreciada. Entendemos que, ao invés de nos prendermos exclusivamente ao jargão fonoaudiológico de classificação vocal, é importante buscar os sentidos que as pessoas trazem e compreendê-los em seus contextos. Quanto à relação entre voz, doenças e sensações corporais, observamos que foi significativo o fator ter ou não queixa vocal no que se refere à percepção dessa relação. Exemplificamos com a fala de PC11: “é um desgaste assim, Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 hum, físico mesmo, da própria garganta, assim, das próprias cordas vocais”. A sensação corporal mais referida foi dor. Participantes sem queixa associaram voz à dor de garganta e infecção. Participantes com queixa associaram o problema de voz propriamente dito à dor. Outros fatores associados a problemas de voz foram: doença mais grave, nódulo, calo, câncer, problema auditivo, labirintite e derrame cerebral. A presença de queixa vocal foi o fator comum aos participantes, a maioria profissional da voz. NPS3 foi o único que relacionou perda de voz ao envelhecimento como processo natural. Tanto as referências à qualidade vocal quanto à relação estabelecida entre voz, doenças e sensações corporais tiveram repertórios mais moldados pelo tempo vivido, em especial pela presença de queixa vocal. Assim, os participantes falaram de vivências marcadas como a sensação de dor e a percepção de qualidade vocal alterada e relacionaram perda de voz a doenças. Isso nos remeteu a Dolto (2002), que diferencia o “esquema corporal” da “imagem do corpo”. O primeiro é comum à espécie humana, independe da época, do lugar e das condições em que a pessoa vive. O segundo é singular, está ligado à história da pessoa e assim carregado de experiências afetivas. Nessa direção, no imaginário de nossos participantes, entendemos que houve uma ligação entre voz alterada e corpo doente. Já os operadores de telemarketing participantes da pesquisa de Garcia (2000) nem sempre viram os problemas vocais como problemas de saúde, era “como se a voz estivesse separada do corpo”, segundo essa autora. Ambas as perspectivas – a associação entre voz alterada e corpo doente ou a dissociação entre voz e corpo – reforçam a importância de o fonoaudiólogo dar atenção à relação entre corpo e voz de forma não dicotomizada, colaborando na construção de uma imagem corporal/vocal que favoreça a saúde das pessoas. Dimensão social Práticas discursivas sobre a dimensão social foram as menos encontradas na presente análise. Um sentido encontrado foi o de avaliadores da voz, em que os outros são tomados como aqueles que julgam a qualidade vocal dos entrevistados. Participantes com queixa, profissionais da voz ou não, vêem, no dia-a-dia, que os outros perce- bem suas alterações de voz, fato que os constrange e incomoda: “eu acho muito inconveniente porque cada vez que eu vou falar com alguém e percebe que eu estou assim, pergunta que está acontecendo. E pergunta mesmo. Tem, né, ‘nossa você está tão rouca, o que está acontecendo?’ me pergunta se eu sou assim mesmo, se é só de vez em quando que isso acontece” (NPC6). Um dos participantes sem queixa, profissional da voz (PS8), mostra-se sensível à avaliação de sua voz cantada no âmbito profissional, feita pelo público. O mesmo participante também mostra sua sensibilidade em relação às vozes de outros cantores. Portanto, alguns de nossos participantes mostraram suas impressões singulares sobre como os outros avaliam suas vozes. Também na pesquisa sobre os sentidos atribuídos à voz por mulheres após a menopausa, Machado et al. (2005) comenta que as entrevistadas manifestaram preocupação com o fato de os outros valorarem a sua voz, elas ponderaram sobre sua percepção de reações positivas ou negativas nos interlocutores em relação à sua voz. Nessa mesma direção, na pesquisa de Cariola e Behlau (2001), realizada com sujeitos sem distúrbios vocais, 76,9% dos entrevistados assinalaram no questionário que uma das situações cotidianas prejudicadas por uma eventual perda de voz seria “o modo como as pessoas o tratam”. No Quadro 3 apresentamos um resumo dos dados. ARTIGOS Os sentidos da perda de voz Considerações finais Inicialmente, pressupusemos que a vivência de problemas vocais, envolvendo a possibilidade da perda de voz, marcaria a subjetividade e que a voz, para pessoas que a usam profissionalmente, poderia ter um valor e um significado diferenciados em relação àquelas que não a usam. Ao refletirmos sobre os dados da pesquisa, concluímos que, para nossos entrevistados, o fator com ou sem queixa vocal foi mais relevante do que o fator ser ou não profissional da voz. Efetivamente, a análise mostra que os participantes com queixa vocal foram os que deram maior sentido negativo à perda de voz; os que mais enfatizaram a relação de que o estado afetivo pode alterar a voz; os que mais se referiram ao uso da voz no trabalho; os que, dentre os cuidados com a voz, trouxeram maior elenco de fatores que podem ser prejudiciais à voz e de tratamentos para proble- Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 47 ARTIGOS Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman Quadro 3 – Relevância dos fatores queixa vocal e profissional da voz de acordo com as categorias analisadas. As células em destaque indicam qual(is) fator(es) foi(ram) mais relevante(s) Fatores Categorias Afeto C S NP P Sentido negativo da perda de voz Importância da voz Relação entre voz e estado afetivo Ação Necessidade da voz para comunicação Necessidade da voz para trabalho Cuidados com a voz Estado físico Dimensão social Qualidade vocal Relação voz/doenças/ sensações corpo Voz avaliada pelos outros Avalia voz dos outros Legenda C: com queixa; S: sem queixa. NP: não profissional da voz; P: profissional da voz. mas de voz; e os que mais se referiram à dor e a várias doenças relacionadas aos problemas de voz. Ao compararmos os profissionais e os não profissionais da voz, estes foram os que mais deram sentido à relação entre voz e comunicação e à importância da voz e, dentre eles, os com queixa vocal abordaram os cuidados com a voz, o que pareceu esperado, uma vez que eles, de fato, têm esses conhecimentos, porque fizeram tratamento vocal ou porque a necessidade os fez procurá-los. Os profissionais da voz, também como era de se esperar, foram os que deram maior ênfase à necessidade da voz para o trabalho, por entendê-la como principal instrumento, sem a qual não é possível trabalhar. Coerentemente, também, apresentaram maior repertório em torno dos cuidados com a voz, porque suas vivências favorecem isso. Entretanto, poucos deles abordaram a importância da voz e a necessidade da voz para comunicação, conforme discutimos anteriormente. Investigamos a perda de voz entendendo-a como algo complexo, por envolver, no mínimo, as dimensões subjetiva, orgânica e sociocultural, e nossos participantes falaram sobre o tema envolvendo todas essas dimensões. Sendo assim, cremos que a Fonoaudiologia pode fazer uso dos conhecimentos do cotidiano das pessoas para abordar a voz de forma contextualizada, seja na clínica, seja na promoção da saúde vocal, seja no trabalho de assessoria aos profissionais da voz. 48 A partir da análise de nossos dados, uma questão sobre a qual nos parece pertinente refletir é a de que, quando o profissional da voz, na condição de paciente, está diante de um fonoaudiólogo, temos uma situação em que ambos são conhecedores de voz, cada qual na sua especificidade. Nessa medida, pelos sentidos que foram acessados em nossa pesquisa, entendemos que o trabalho terapêutico a ser construído entre estes dois tipos de profissionais corre o risco de ficar num âmbito muito tecnicista, favorecido e reforçado pelos conhecimentos singulares de ambas as partes, o que pode camuflar a dimensão afetiva do sintoma para o paciente. Nesse sentido, consideramos a necessidade de o terapeuta abrir espaço para que o paciente coloque seu sofrimento, aspecto extremamente relevante para o desenvolvimento satisfatório de um processo terapêutico centrado na queixa vocal. Esta pesquisa também nos fez pensar no quanto é importante para o fonoaudiólogo, no trabalho com pessoas disfônicas, valorizar a queixa e compreender o componente afetivo articulado à voz a partir da singularidade e da história de cada paciente. Nesse sentido, pode ser importante explorar com o paciente as relações que emergem entre a voz e a imagem do corpo, referido por Dolto (2002) como “a síntese viva de nossas experiências emocionais”, conforme discutimos anteriormente. A partir da noção de corpo simbólico, o terapeuta pode conhecer os sentidos ligados à dor e às associações que o Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006 paciente faz com doenças, que revelam seus medos e fantasias, não ficando assim na superficialidade do sintoma. Um outro aspecto, sobre o qual pudemos refletir a partir de nossos dados, refere-se ao fato de que, na clínica fonoaudiológica, a relação entre voz e estado afetivo pode estar carregada de muita negatividade. Nesse contexto, a terapia será um espaço para construir novos sentidos sobre a voz, de forma que a pessoa disfônica possa ter acesso a uma gama maior de relações entre voz e estado afetivo. Um último aspecto, decorrente da análise de nossos dados, ocorre em função do fato de que somente os participantes que tinham queixa abordaram os cuidados com a voz. Isso nos levou a pensar sobre qual o conhecimento que pessoas que não foram afetadas por problemas de voz e não são profissionais da voz têm sobre esses cuidados. Embora nossa pesquisa não tivesse por objetivo responder a esta pergunta, entendemos que a resposta pode ser importante para a Fonoaudiologia compreender o que a população de modo geral sabe sobre cuidados com a voz. Nesse sentido, acreditamos que seria interessante continuar a pesquisar, fazendo levantamento dessa natureza para compreender a necessidade e organizar campanhas de saúde vocal, entendendo que tipo de informações fornecer e em que profundidade. Louro CR, Maia SM. Considerações sobre a terapia vocal na clínica fonoaudiológica em uma mulher adulta. Pro Fono 2001;13(2):147-51. Machado MAMP, Aldrighi JM, Ferreira LP. Os sentidos atribuídos à voz por mulheres após a menopausa. Rev Saude Publ 2005;39(2):261-9. Martz MLW. Os usos sociais da voz. Disturb Comun 1987;2(3):173-6. Martz MLW. Os usos sociais da voz. Disturb Comun 1999;10(2):205-11. Palladino RRR. A objetividade e a subjetividade na fonoaudiologia. Disturb Comun 2000;12(1):61-73. Penteado RZ, Giannini SPP, Costa BCG. A campanha da voz em dois jornais brasileiros de grande circulação. Saude Soc 2002;11(2):49-64. Pinheiro MG, Cunha MC. Voz e psiquismo: diálogos entre fonoaudiologia e psicanálise. Disturb Comun 2004;16(1): 83-91. Souza, TMT. Um século de cuidados com a voz profissional falada: a contribuição da fonoaudiologia. Rev Soc Bras Fonoaudiol 1998;2(1):24-34. Spink MJ, Gimenes MGG. Práticas discursivas e produção de sentido: apontamentos metodológicos para a análise de discurso sobre a saúde e a doença. Saude Soc 1994:3(2):149-71. Spink MJ, organizadora. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. 2a ed. São Paulo: Cortez; 2000. Viola IC. Estudo descritivo das crenças populares no tratamento das alterações vocais em profissionais da voz [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1997. ARTIGOS Os sentidos da perda de voz Recebido em junho/05; aprovado em fevereiro/06. Endereço para correspondência Roberta T. Petroucic Avenida 31, n. 1006, Barretos, SP, CEP 14780-360 E-mails: robertapetro@yahoo.com.br Referências Behlau M. Vozes preferidas: considerações sobre opções vocais nas profissões. Fono Atual 2001;14(16):10-4. Cariola SG, Behlau M. O impacto de uma eventual perda de voz na vida diária de indivíduos normais. In: Behlau M, organizadora. A voz do especialista, II. São Paulo: Revinter; 2001. p.141-54. Darghan C. O impacto de uma eventual perda de voz em indivíduos com disfonia. [monografia de especialização]. São Paulo: Centro de Estudos da Voz; 2000. Dolto F. Esquema corporal e imagem do corpo. In: Dolto F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva; 2002. p.1-37. Ferreira LP, Marchesin VC, Calbo PG. Voz: monografias, dissertações e teses brasileiras. 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