*
Roberta T. Petroucic**
Silvia Friedman***
ARTIGOS
Os sentidos da perda de voz
Resumo
Pesquisamos a relação entre subjetividade e perda de voz, pressupondo que a vivência de problemas
vocais, que envolve a possibilidade da perda de voz, marca a subjetividade, e que a voz, para pessoas
que a usam profissionalmente, pode ter um valor e um significado diferenciados em relação àquelas que
não a usam. Objetivo: investigar os sentidos da perda de voz para profissionais e não-profissionais da
voz, com e sem queixa vocal. Métodos: entrevistamos 12 pessoas a partir da pergunta-chave "O que vem
na sua cabeça quando falo perda de voz?". A análise do discurso transcrito dos entrevistados foi baseada
na proposta de Spink (2000), que trata de práticas discursivas e produção de sentidos. Resultados:
quatro categorias emergiram da análise das práticas discursivas: afeto, ação, estado físico e dimensão
social. Os participantes com queixa vocal deram sentido afetivo mais negativo à perda de voz e citaram
mais fatores de prejuízo vocal, incluindo seus próprios estados afetivos e várias doenças. Os participantes
profissionais da voz deram sentido à necessidade da voz para seus trabalhos como instrumento
imprescindível e foram os que mais abordaram cuidados vocais. Os participantes não-profissionais da
voz deram forte sentido à necessidade da voz para a comunicação e, destes, somente aqueles com queixa
citaram cuidados vocais. Considerações finais: o fator "queixa vocal" foi mais relevante em relação à
presença de marcas na subjetividade do que o fator "profissional da voz". Fizemos considerações sobre
a importância de o fonoaudiólogo valorizar o estado afetivo e estar atento para questões subjetivas no
tratamento de pessoas com queixa vocal.
Palavras-chave: voz; distúrbios da voz; transtornos da comunicação; individualidade;
Fonoaudiologia.
Abstract
We researched the relation between subjectivity and voice loss. We conjecture that the existence of
vocal problems, involving the possibility of voice loss, determines the subjectivity in a way that the voice,
to the people that use it professionally, may have different value and meaning from those who do not use
it. Objective: investigate the senses of the voice loss for voice professionals and voice non-professionals,
with and without vocal complaint. Methods: twelve people were interviewed from the key-question: "what
does it come to your mind when I speak about voice loss?" these interviews were analyzed according to
Spink (2000) proposal that treats about discursive practices and production of senses. Results: Four
categories emerged from the analysis: affection, action, physical state and social dimension. The
participants with vocal complaint gave more negative affective sense to the voice loss and mentioned
more factors of vocal harm, including their own affective states and several diseases. The voice
*
Dados da dissertação apresentada por Roberta T. Petroucic como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Fonoaudiologia, no Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Silvia Friedman. Trabalho apresentado como Tema Livre no XII Congresso Brasileiro de Fonoaudiologia – Foz do Iguaçu – PR, 6 a 9 de outubro de 2004. Financiamento: Bolsa CAPES flex. ** Fonoaudióloga, especialista em Voz, mestre em Fonoaudiologia pela PUC-SP. *** Fonoaudióloga,
mestre e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, professora titular da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP.
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
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ARTIGOS
Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman
professionals gave sense to the necessity of voice to their jobs as a vital tool and they were the ones who
mostly approached vocal care. The voice non-professionals gave a strong sense to the necessity of voice
for communication and from these, only the ones with complaint mentioned vocal cares. Final
considerations: the factor "vocal complaint" was more relevant concerning the presence of marks on the
subjectivity than the factor "voice professional". We have made considerations upon the importance of
the speech and language therapist to value the affective state and to be aware of the subjective issues in
the treatment of people with vocal complaint.
Key-words: voice; voice disorders; communication disorders; individuality; Speech, Language
and Hearing Sciences.
Resumen
Investigamos la relación entre subjetividad y perdida de voz teniendo como suposición que la vivencia
de problemas vocales que envuelve la posibilidad de perdida de voz marca la subjetividad y que la voz,
para personas que la usan profesionalmente, puede tener un valor y un significado diferenciados en
relación a aquellos que no usan. Objetivo: investigar los sentidos de la pérdida de voz para profesionales
y no profesionales de la voz, con y sin queja vocal. Métodos: entrevistamos 12 personas a partir de la
pregunta llave "Que le viene a la cabeza cuando digo perdida de voz?" El análisis del discurso trascrito
de los entrevistados se apoyó en la propuesta de Spink (2000), que trata de practicas discursivas y
producción de sentido. Resultados: del análisis de las prácticas discursivas, se mostraron cuatro
categorías: afecto, acción, estado físico y dimensión social. Los participantes con queja vocal dieron
sentido afectivo más negativo a la perdida de voz y enumeraron mas factores de perjuicio vocal, incluyendo
sus propios estados afectivos y varias enfermedades. Los participantes profesionales de la voz dieron
sentido a la necesidad de la voz para su trabajo como un instrumento imprescindible y fueron los que
mas abordaron cuidados vocales. Los participantes no profesionales de la voz dieron fuerte sentido a la
necesidad de la voz para la comunicación. Entre ellos, solamente los con queja hicieron referencia a
cuidados vocales. Consideraciones finales: el factor "queja vocal" fue más relevante en relación a la
presencia de marcas en la subjetividad que el factor "profesional de la voz". Hicimos consideraciones
sobre lo importante que es para el fonoaudiólogo valorizar el estado afectivo e estar atento a las cuestiones
subjetivas en el tratamiento de personas con queja vocal.
Palabras clave: voz; trastornos de la voz; trastornos de la comunicación, individualidad,
Fonoaudiologia.
Introdução
As pesquisas publicadas sobre a atuação clínica fonoaudiológica na área de voz apresentam um
conhecimento pautado, principalmente, na vertente positivista, com ênfase na dimensão orgânica dos
sintomas vocais. Ferreira et al. (2000), que analisou os trabalhos fonoaudiológicos publicados sobre voz, e Pinheiro e Cunha (2004), que analisaram as produções científicas de mestrado e doutorado no campo fonoaudiológico das disfonias, constataram que existiam poucos trabalhos sobre a relação entre voz e aspectos psicossociais, bem como
sobre voz e aspectos psíquicos, respectivamente.
40
Pinheiro e Cunha (2004) comentaram que a dicotomia entre as dimensões psíquica e orgânica inspira uma clínica fonoaudiológica centrada exclusivamente na eliminação do sintoma corporal observável, e isso, acreditamos, pode se constituir numa
simplificação excessiva do sintoma vocal. Louro
(2001) também apontou a necessidade de se considerar a dimensão subjetiva na atuação fonoaudiológica na área de voz, ao pesquisar o caso de uma
mulher adulta em terapia.
Nessa medida, assumimos que compreender
plenamente a voz, bem como os problemas vocais,
implica encará-los como acontecimentos complexos que envolvem no mínimo as dimensões subje-
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
tiva, orgânica e sociocultural. Apoiada nessa compreensão, esta pesquisa busca explorar questões
subjetivas ligadas à voz em sua articulação com
questões orgânicas e socioculturais, por entender
que essa compreensão pode trazer dados importantes para a atuação fonoaudiológica, tanto no âmbito clínico, no que se refere à constituição do sintoma e ao seu tratamento, como no âmbito da promoção da saúde vocal.
A opção por considerar que a subjetividade
enriquece o trabalho do fonoaudiólogo implica que
ele esteja aberto para lidar com o inédito, o singular. A questão da singularidade na clínica fonoaudiológica é abordada por Palladino (2000), que
considera ser a natureza relacional do processo terapêutico o que o coloca no campo da subjetividade. Argumenta que terapeuta e paciente criam uma
“intermitência discursiva” na qual são exibidas as
marcas da subjetividade, revelando a experiência
singular que cada paciente tem em relação ao sofrimento que experimenta.
Em nosso relacionamento com pessoas com
queixas vocais, vemos as marcas da subjetividade
surgirem nos diferentes sentidos que elas produzem ao falar de perda de voz. Dizem, por exemplo,
que a voz não parece ser delas; que a voz lhes causa sofrimento por ser diferente, estranha. Isso inspirou o objetivo desta pesquisa: contemplar a dimensão da singularidade em relação à voz, investigando os sentidos de perda de voz para pessoas
profissionais e não-profissionais da voz, com e sem
queixa vocal. Partimos do pressuposto de que a vivência de problemas vocais, envolvendo a possibilidade da perda de voz, marca a subjetividade dessas pessoas e que a voz, para pessoas que a usam
profissionalmente, pode ter um valor e um significado diferenciados em relação àquelas que não a
usam.
Garcia (2000), Gobbi (2004) e Machado et al.
(2005), por meio de entrevistas, encontraram acesso à dimensão subjetiva da voz e investigaram os
seus sentidos para diferentes grupos de pessoas:
operadores de telemarketing, pessoas sem conhecimento técnico-específico sobre voz e mulheres
após a menopausa, respectivamente.
Nossa hipótese de que a vivência de problemas vocais, que envolvem a possibilidade de perda de voz, marca a subjetividade das pessoas foi
confirmada na pesquisa de Darghan (2000), que
aplicou um questionário a sujeitos disfônicos e comparou seus achados com os da pesquisa de Cariola
e Behlau (2001), realizada com sujeitos sem disfonia. Sua conclusão foi de que os sujeitos disfônicos possuem maior sensibilidade quanto a uma
possível falta de voz.
Nossa hipótese de que a voz, para pessoas que
a usam profissionalmente, pode ter um valor e um
significado diferenciados em relação àquelas que
não a usam também foi confirmada por Darghan
(2000), que mostrou que sujeitos disfônicos considerados profissionais da voz a valorizam mais que
os não profissionais da voz. A hipótese foi confirmada também pelos dados de Garcia (2000), que,
ao entrevistar operadores de telemarketing, recolheu relatos com maior sensibilidade para a importância da voz após o uso profissional.
É importante expor ainda que não consideramos o estudo das questões subjetivas da voz antagônico aos estudos e avanços sobre a materialidade da
voz; ao contrário, pensamos que são conhecimentos
que podem se articular para enriquecer o atendimento
de pacientes que manifestam disfonia.
ARTIGOS
Os sentidos da perda de voz
Métodos
Antes da coleta de dados, esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética do Programa de Estudos Pós-graduados em Fonoaudiologia da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, e aprovado sob número 0138/2003.
Investigar os sentidos da perda de voz alinhase à vertente qualitativa de pesquisa conforme descrita por Spink (2000). Essa proposta adota uma
perspectiva construcionista de produção de conhecimento, a partir do qual o conhecimento não é visto
como representação da realidade, mas como construção humana, elaborada dentro de seus limites
biológicos, sociais e históricos.
Nessa perspectiva, Spink (2000) propõe uma
abordagem teórica e metodológica de análise de
práticas discursivas, que permite a compreensão da
produção de sentidos no cotidiano a partir de três
dimensões básicas: linguagem, história e pessoa.
A linguagem deixa de ser um mero instrumento de descrição da realidade e passa a ser focalizada “em uso”. As práticas discursivas constituem a
linguagem em ação e é a partir delas que as pessoas produzem sentidos.
A história leva a ver a produção de sentidos a
partir de três tempos justapostos. O tempo longo é
relativo às construções dos conteúdos culturais que
formam as práticas discursivas de uma sociedade,
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
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ARTIGOS
Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman
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em uma dada época, e a conhecimentos que antecedem a vida atual das pessoas. O vivido é relativo
ao tempo de vida de uma pessoa, durante o qual
ela aprende as linguagens sociais que marcam as
possibilidades de sentidos, constrói as referências
afetivas e as narrativas pessoais que configuram
sua própria identidade. O tempo curto é relativo à
interanimação dialógica que ocorre nas relações
face a face, pautado pela concorrência entre os vários repertórios usados para dar sentido às experiências das pessoas. Nesse tempo, estão presentes
combinações dos enunciados do tempo longo e do
tempo vivido, recriando-se na polissemia da interação social; nele é que se produzem os sentidos.
Os repertórios são os termos, os conceitos, os
lugares comuns e as figuras de linguagem que delimitam as possibilidades de construções de sentidos e podem associar-se de diferentes formas, dependendo do contexto.
A dimensão da pessoa leva a enfatizar a questão da dialogia e do caráter relacional. Considerase que as pessoas em interação estão em processo
de negociação, desenvolvendo trocas simbólicas,
em constante interanimação dialógica.
Com base nesses pressupostos, a entrevista foi
tomada como instrumento para coleta de dados
colocando-nos na escala da interação face a face.
Participaram do estudo 12 pessoas, sendo: três
profissionais da voz sem queixa vocal (PS);
três profissionais da voz com queixa vocal (PC);
três não profissionais da voz sem queixa vocal
(NPS) e três não profissionais da voz com queixa
vocal (NPC).
Dados sobre idade, sexo, escolaridade, profissão e queixa de alteração vocal foram levantados
para caracterizar os participantes, conforme mostra o Quadro 1, em que também se vê que as siglas
criadas para distinguir os participantes são numeradas de 1 a 12 para identificá-los na análise e discussão.
A escolha dos participantes deu-se por meio
das relações de conhecimento de uma das pesquisadoras, e o acaso dos contatos nos levou à configuração explicitada no Quadro 1. Uma vez que a
pesquisa é de cunho qualitativo, não há intenção
de controlar variáveis ou equiparar pessoas por profissões. Entendemos que a vivência de voz de cada
participante é singular, vale por si e nos ajuda na
busca pela diversidade de sentidos a ela atribuída.
Inspirados na proposta de Spink (2000), uma
pergunta-chave marcou o início da entrevista: “O
que vem na sua cabeça quando eu falo perda de
voz?”. A pesquisadora, quando julgou necessário,
encorajou o entrevistado a aprofundar seu dizer em
relação ao tema investigado com frases como: “o
que mais?”, “queria que você explicasse mais” ou
retomando o dito pela pessoa na forma interrogativa.
As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas em ortografia regular, compondo o material
empírico da pesquisa. A análise, também realizada de acordo com Spink (2000), partiu de leituras
sucessivas do material para visualizar os temas subjacentes. Dos temas que emergiram, criamos categorias que refletem o objetivo da pesquisa.
A partir da definição das categorias, construímos mapas dialógicos conforme exemplificado no
Quadro 2. Neles, as categorias são colocadas na
linha horizontal, e os discursos relativos a cada
categoria, na linha vertical correspondente. Tais
mapas permitem que o discurso transcrito não seja
fragmentado, na medida em que cada trecho subseqüente aparece na categoria a que pertence, sempre uma linha abaixo do que lhe antecede, respeitando a seqüência discursiva original. Assim, na
leitura vertical temos os repertórios e na leitura
horizontal compreendemos a dialogia.
A partir dos mapas, pudemos compreender tanto os sentidos expressos em cada categoria como
as relações de sentido entre as quatro categorias, a
saber: afeto (sentimentos, emoções, impressões e
julgamentos de valor em relação à voz), ação (os
usos da voz), estado físico (estados ou sensações
relativos ao corpo), dimensão social (referências
que os participantes faziam a outras pessoas que
opinavam ou agiam de determinada forma em relação à voz deles). Interpretamos o uso que os participantes deram aos seus repertórios e fizemos relações com a literatura pesquisada.
Resultados e discussão
Afeto
Todos os participantes pronunciaram discursos com sentidos afetivos relacionados à voz. Esses assumiram três direções: o sentido negativo da
perda de voz, a importância da voz e a relação entre a qualidade da voz e o estado afetivo.
Quanto ao sentido negativo da perda de voz, o
fator ser ou não profissional da voz não foi um diferencial. O diferencial foi a vivência de problemas vocais, como no discurso: “perda total, né,
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Quadro 1 – Caracterização dos participantes quanto à profissão, idade (em anos), sexo,
escolaridade e queixa vocal
Participante
Profissão
NPS1
Diarista (faxina)
Idade
Sexo
36
F
Escolaridade
Queixa vocal
5a série
fundamental
Não há
NPS2
Médico radiologista
29
NPS3
Programador de
informática
23
M
superior completo
Não há
M
superior completo
Não há
NPC4
Farmacêutica
30
F
superior completo
Queixa de rouquidão
assistemática. Fez terapia
fonoaudiológica devido a nódulo
de prega vocal (sic)
NPC5
Metroviário
45
M
médio completo
Queixa de falhas na voz após
paralisia de prega vocal direita,
adquirida em cirurgia no
pulmão (sic). Faz terapia
fonoaudiológica
NPC6
Cabeleireira
38
F
médio completo
Queixa de rouquidão e quanto
ao tom de voz. Nunca fez
terapia fonoaudiológica
PS7
Radialista e
professor de
radialismo
28
M
médio completo
Não há
PS8
Cantor de banda de
rock e professor de
teclados. Faz aulas
de canto coral
27
M
superior completo
Não há
PS9
Professora de
Português
36
F
superior completo
Não há
PC10
Professora de ciclo
básico do ensino
fundamental e
agente cultural
municipal
32
F
superior completo
Queixa de rouquidão. Tem
nódulo de prega vocal (sic). Fez
terapia fonoaudiológica
PC11
Cantor e compositor
de música popular.
Faz aulas de canto
23
M
médio completo
Queixa de desgaste vocal.
Nunca fez terapia
fonoaudiológica
PC12
Radialista
42
M
médio completo
Queixa de períodos de pigarro
na voz e “secura” para falar
ARTIGOS
Os sentidos da perda de voz
Legenda
NPS: não profissional da voz sem queixa;
NPC: não profissional da voz com queixa;
PS: profissional da voz sem queixa;
PC: profissional da voz com queixa.
F : feminino; M: masculino.
nossa, foi assim uma coisa terrível, uma experiência muito desagradável...” (NPC6). No discurso
de participantes sem queixa (NPS3 e PS8) não houve atribuição de sentido negativo à perda de voz.
Dessa forma, o fator queixa vocal teve relevância
quanto à atribuição de maior ou menor negatividade à perda de voz.
Esses dados concordam com os achados de
Darghan (2000) e Cariola e Behlau (2001), que
concluíram que os sujeitos disfônicos eram mais
sensíveis ao impacto de uma possível perda de voz
que os não disfônicos.
Nossos participantes também se referiram
muitas vezes ao medo de perder a voz, o que nos
remeteu à pesquisa de Penteado et al. (2002), que
consideram que o processo saúde-doença vocal é
permeado pela representação da existência de uma
alteração orgânica em estado avançado (nódulos,
tumores e câncer de laringe), fato que se traduz em
medo, em especial diante da idéia de uma indicação cirúrgica.
Quanto à importância da voz, a maioria dos
que atribuíram esse sentido não era profissional da
voz. Dentre esses, os participantes com queixa
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
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ARTIGOS
Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman
Quadro 2 – Exemplo de mapa dialógico num trecho da entrevista de PS7
Entrevistadora
Afeto
Ação
Estado
Dimensão
social
O que vem na sua
cabeça quando eu
falo perda de voz?
Uma coisa terrível,
ainda mais
quando se
trabalha com a
voz e... você tem
que usar ela pra
você, enfim, tirar
o teu sustento,
é uma coisa que...,
é preocupante...
bastante.
O que mais vem na
sua cabeça?
Ah, uma dor, não
sei, porque eu
penso em ficar
rouco, penso logo
numa dor,
e... um descuido.
Acho que é, que é
isso.
deram mais importância à voz referindo suas experiências pessoais em episódios com problema
vocal: “eu valorizo três vezes mais minha voz, de
quatro anos pra cá...” (NPC5).
Nossos dados ainda condizem com os de Garcia (2000), que, ao realizar grupos focais com operadores de telemarketing, encontrou relatos de valorização da voz após a vivência de problemas de
voz.
Quanto à relação entre qualidade da voz e estado afetivo, os profissionais e os não profissionais
da voz com queixa vocal produziram discursos com
conotação afetiva negativa. Foi relatado principalmente como a emoção influi ou ocasiona problemas de voz: “[a voz era] o lugar onde eu descarregava meu nervoso. Então quanto mais nervosa eu
ficava mais eu queria falar... e a longo prazo foi
acabando mesmo com a minha voz” (NPC4).
Os participantes sem queixa deram conotação
positiva à relação entre qualidade da voz e estado
afetivo, comentando a capacidade expressiva da voz
e o fato de ela gerar emoções.
Na pesquisa de Garcia (2000), os operadores de
telemarketing comentam que reconhecem o estado
emocional dos clientes pela voz e podem, inclusive,
mudar suas próprias vozes em função disso.
44
Algumas das mulheres no período pós-menopausa entrevistadas por Machado et al. (2005) referiram (além da menopausa e outras condições de
saúde) os estados emocionais como fatores que interferem na qualidade vocal. Ainda, entre os termos que as participantes utilizaram, alguns se relacionavam ao estado afetivo da pessoa que a emitia,
como “alegre”, “triste”, “nervosa”; também relataram que a voz revela o caráter da pessoa que a emite
como “boa” ou “má”.
Gobbi (2004) a partir de entrevistas com pessoas
que não tinham conhecimentos técnicos específicos,
nem usavam profissionalmente a voz, criou a categoria “sensações provocadas pela voz” e discutiu o poder da voz para despertar sensações e sentimentos.
Ação
Todos os participantes produziram discursos
que relacionam voz a alguma ação. Esta se referiu
ao ato de comunicação, ao trabalho dos participantes e aos cuidados com a voz.
Quanto à necessidade da voz para a comunicação, mais participantes não profissionais da voz do
que profissionais da voz se manifestaram, o que incluiu tanto pessoas com queixa quanto sem queixa.
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
Assim, o fator queixa vocal não se mostrou
como diferencial relevante para a necessidade da
voz para a comunicação, e o fator profissional da
voz, sim.
Acreditamos que o fator que pode ter determinado que apenas não profissionais da voz valorizassem a necessidade da voz para a comunicação
está no processo de interanimação dialógica entrevistadora/entrevistado. Como os participantes tinham conhecimento de que a pesquisadora é fonoaudióloga, portanto, alguém com conhecimentos técnicos sobre voz, cremos que os profissionais
da voz sentiram-se mais motivados a falar de questões específicas e técnicas, referindo-se mais à necessidade e ao uso da voz no trabalho. Assim, o
diálogo com uma fonoaudióloga favoreceu alguns
conteúdos mais específicos e possivelmente camuflou outros, mais abrangentes para os profissionais
da voz. A respeito disso, Spink e Gimenes (1994)
comentam que o entrevistado interpreta as perguntas a partir de suas próprias hipóteses sobre as intenções do entrevistador.
Também Gobbi (2004) e Machado et al. (2005),
que pesquisaram pessoas sem conhecimento técnico-específico sobre voz e mulheres após a menopausa, encontraram associações entre voz e comunicação.
A propósito ainda da relação entre voz e comunicação, Martz (1987) problematizou a separação entre voz e fala. Ressaltou que a voz não é
uma parte, mas sim a própria pessoa, com seus valores e cultura. Para Martz (1999), somente ao assumirmos que voz é linguagem torna-se possível
entender a adaptação das funções de alimentação e
respiração para a produção vocal.
Quanto à necessidade da voz para o trabalho,
o fator relevante foi a queixa vocal, na medida em
que maior número de participantes com queixa do
que sem queixa a ela se referiu.
Quanto ao fator profissional da voz, o número
de não profissionais e de profissionais da voz que
abordaram a questão foi similar. Entretanto, se atentarmos para o fato de que não profissionais da voz
com queixa valorizaram a voz para o trabalho, como
NPC4, que disse: “eu trabalhava dentro de um hospital e não conseguia nem explicar pras pessoas o
que eu queria...”, enquanto profissionais da voz sem
queixa também a valorizaram como principal instrumento de trabalho, como PS7 que disse: “você
tem que usar ela [a voz] pra você, enfim, tirar o teu
sustento”, podemos considerar que o fator profis-
sional da voz foi relevante na valorização da necessidade da voz para o trabalho.
O sentido de que a voz é necessária para o
trabalho está marcado pelo tempo vivido, na medida em que profissionais e não profissionais da
voz sentiram a repercussão dos problemas de voz
em seus trabalhos.
A necessidade da voz para o trabalho também
apareceu valorizada pelos operadores de telemarketing pesquisados por Garcia (2000). Houve
sensibilização dos participantes para a importância da voz no exercício da profissão e, para muitos
deles, houve maior valorização da voz após seu uso
profissional.
A maioria de nossos participantes associou
perda de voz a problemas no trabalho. Vem ao encontro disso, o “trabalho/escola” como a situação
cotidiana mais assinalada como prejudicada diante
de uma eventual perda de voz, tanto pelas pessoas
sem distúrbios da voz pesquisadas por Cariola e
Behlau (2001), quanto pelos pacientes disfônicos
pesquisados por Darghan (2000).
Quanto aos cuidados com a voz, principalmente
os profissionais da voz citaram o “uso vocal” como
o fator que mais interfere na voz. Esse foi vinculado também às exigências da profissão: “quem em
especial usa em maior quantidade é quem trabalha
em veículos de comunicação... que o problema com
o mau uso da voz é a longo prazo...” (PS7).
Os participantes profissionais da voz mostraram um repertório maior sobre cuidados com a voz.
Também dois não profissionais da voz, ambos com
queixa, abordaram outros fatores que interferiam
com a voz. Como um todo, foram abordados como
benefícios à voz: hidratação, respiração, aquecimento vocal e técnica de voz cantada; como malefícios: temperatura das bebidas ingeridas e do ambiente, competição sonora, álcool e fumo. Entre os
não profissionais da voz sem queixa, não houve
manifestação sobre esses aspectos. Assim, para os
cuidados com a voz, o fator queixa foi relevante
entre os não profissionais da voz.
Cuidados com a hidratação e a respiração foram citados por participantes que fizeram terapia fonoaudiológica (NPC4 e PC10), aula de canto (PS8) ou receberam orientação vocal dirigida
a profissionais da voz (PS9). Aquecimento vocal e técnicas de voz cantada foram citados somente por participantes cantores. Fumo e álcool
foram abordados somente por um participante
cantor (PS8).
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ARTIGOS
Os sentidos da perda de voz
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ARTIGOS
Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman
Tratamentos fonoaudiológico, médico e psicológico para cuidar da voz foram citados somente
por participantes com queixa vocal, fossem profissionais ou não profissionais da voz. O trabalho fonoaudiológico preventivo foi abordado somente
pela participante sem queixa, professora (PS9).
Os repertórios que encontramos sobre cuidados com a voz como o perigo de beber coisas geladas e a necessidade de evitar ambientes frios nos
remeteram ao tempo longo, pois esses são conhecimentos tradicionais, anteriores à data de nascimento dos participantes. No tempo das nossas avós,
eram comuns frases como “não beba gelado”, “não
tome vento”, “não ande descalço”, etc.
Os repertórios trazidos pelos profissionais da
voz e participantes com queixa vocal estão claramente marcados pelo tempo vivido, visto que se
referem às experiências de terapia fonoaudiológica, aula de canto e orientações dirigidas a profissionais da voz.
Esse aspecto é corroborado pela pesquisa de
Viola (1997) que, para descrever as crenças populares usadas no tratamento de alterações vocais,
entrevistou 40 profissionais da voz (cantores, atores, radialistas e professores) e encontrou que as
indicações para cuidar da voz, em 61,4% das entrevistas, foram dadas por colegas, familiares, em
especial pela mãe. A autora comenta que o conteúdo de livros teve pouca influência sobre os entrevistados, havendo predomínio da “transmissão oral
do grupo social mais próximo”. Em comum com
nossos participantes, foram relatados os seguintes
procedimentos: ingestão de água, ingestão de líquidos quentes; evitar gelado, não se expor ao frio,
evitar cigarro e/ou álcool, não gritar, fazer exercícios respiratórios e fazer aquecimento.
Souza (1998) revisou a bibliografia do século
XX sobre os cuidados com a voz profissional falada e mostrou, ao longo dos anos, os fatores citados
como intervenientes na voz, alguns mencionados
desde o início do século (1901). A Fonoaudiologia, segundo Souza (1998), contribuiu com uma
parcela das orientações sobre os cuidados com a
voz e incorporou várias outras, retransmitindo-as a
seus pacientes.
Estado físico
Nesta categoria, temos discursos sobre a qualidade vocal e discursos que fazem uma relação
entre voz, doenças e/ou sensações corporais.
46
Todos os participantes se referiram a alguma
qualidade de voz, em geral alterada e/ou à própria
perda de voz. A rouquidão foi a qualidade vocal
mais referida, algumas vezes tida como o início de
uma possível perda de voz: “eu perdi a voz assim,
eu ia ficando rouca, ficando rouca e perdia a voz
totalmente” (NPC4). A metade dos participantes
citou a rouquidão, sendo a maioria deles profissional da voz, com queixa e sem queixa vocal.
Além da rouquidão, outras modificações da voz
foram percebidas, algumas somente pelos não profissionais da voz com queixa (afonia, tom grave) e
outras pelos profissionais da voz, tanto com queixa quanto sem queixa (voz desgastada, sem potência, sem coordenação).
O que vem à cena é a polissemia, ou seja, o
fato de que uma palavra pode ter diferentes sentidos dependendo do contexto. Para nossos entrevistados, no contexto da perda de voz, os termos
“rouca” e “rouquidão” tiveram o sentido de alteração vocal; entretanto, a rouquidão pode também
ser associada à sensualidade, como aponta Behlau
(2001), ao observar as opções vocais em diferentes
profissões. Também Gobbi (2004) encontrou repertórios bastante flexíveis para a classificação
vocal, no contexto não-fonoaudiológico.
Para a participante NPC6, o termo “grave” teve
conotação negativa: “um tom de voz grave, porque eu não posso fazer uma voz diferente, porque
se não, ela desaparece de vez...”. Do mesmo modo,
a maior parte das mulheres entrevistadas por Machado et al. (2005), ao observarem mudanças na
voz após a menopausa, apontaram vozes graves
(grossas) como feias, porque se assemelham à voz
masculina. Em sentido contrário, na pesquisa de
Gobbi (2004), o termo “grave” surgiu associado a
uma voz forte.
Assumir a polissemia nas práticas discursivas
pode contribuir para a atuação do fonoaudiólogo
no sentido de compreender que para um paciente,
a voz rouca ou grave pode ser uma queixa, para
outro, uma qualidade apreciada. Entendemos que,
ao invés de nos prendermos exclusivamente ao jargão fonoaudiológico de classificação vocal, é importante buscar os sentidos que as pessoas trazem
e compreendê-los em seus contextos.
Quanto à relação entre voz, doenças e sensações corporais, observamos que foi significativo o fator ter ou não queixa vocal no que se
refere à percepção dessa relação. Exemplificamos com a fala de PC11: “é um desgaste assim,
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
hum, físico mesmo, da própria garganta, assim,
das próprias cordas vocais”.
A sensação corporal mais referida foi dor. Participantes sem queixa associaram voz à dor de garganta e infecção. Participantes com queixa associaram o problema de voz propriamente dito à dor.
Outros fatores associados a problemas de voz
foram: doença mais grave, nódulo, calo, câncer,
problema auditivo, labirintite e derrame cerebral.
A presença de queixa vocal foi o fator comum aos
participantes, a maioria profissional da voz. NPS3
foi o único que relacionou perda de voz ao envelhecimento como processo natural.
Tanto as referências à qualidade vocal quanto
à relação estabelecida entre voz, doenças e sensações corporais tiveram repertórios mais moldados
pelo tempo vivido, em especial pela presença de
queixa vocal. Assim, os participantes falaram de
vivências marcadas como a sensação de dor e a
percepção de qualidade vocal alterada e relacionaram perda de voz a doenças. Isso nos remeteu a
Dolto (2002), que diferencia o “esquema corporal” da “imagem do corpo”. O primeiro é comum à
espécie humana, independe da época, do lugar e
das condições em que a pessoa vive. O segundo é
singular, está ligado à história da pessoa e assim
carregado de experiências afetivas.
Nessa direção, no imaginário de nossos participantes, entendemos que houve uma ligação entre
voz alterada e corpo doente. Já os operadores de
telemarketing participantes da pesquisa de Garcia
(2000) nem sempre viram os problemas vocais
como problemas de saúde, era “como se a voz estivesse separada do corpo”, segundo essa autora.
Ambas as perspectivas – a associação entre voz alterada e corpo doente ou a dissociação entre voz e
corpo – reforçam a importância de o fonoaudiólogo dar atenção à relação entre corpo e voz de forma não dicotomizada, colaborando na construção
de uma imagem corporal/vocal que favoreça a saúde das pessoas.
Dimensão social
Práticas discursivas sobre a dimensão social
foram as menos encontradas na presente análise.
Um sentido encontrado foi o de avaliadores da voz,
em que os outros são tomados como aqueles que
julgam a qualidade vocal dos entrevistados.
Participantes com queixa, profissionais da voz
ou não, vêem, no dia-a-dia, que os outros perce-
bem suas alterações de voz, fato que os constrange
e incomoda: “eu acho muito inconveniente porque
cada vez que eu vou falar com alguém e percebe
que eu estou assim, pergunta que está acontecendo. E pergunta mesmo. Tem, né, ‘nossa você está
tão rouca, o que está acontecendo?’ me pergunta se
eu sou assim mesmo, se é só de vez em quando que
isso acontece” (NPC6).
Um dos participantes sem queixa, profissional
da voz (PS8), mostra-se sensível à avaliação de sua
voz cantada no âmbito profissional, feita pelo público. O mesmo participante também mostra sua sensibilidade em relação às vozes de outros cantores.
Portanto, alguns de nossos participantes mostraram suas impressões singulares sobre como os
outros avaliam suas vozes. Também na pesquisa
sobre os sentidos atribuídos à voz por mulheres após
a menopausa, Machado et al. (2005) comenta que
as entrevistadas manifestaram preocupação com o
fato de os outros valorarem a sua voz, elas ponderaram sobre sua percepção de reações positivas ou
negativas nos interlocutores em relação à sua voz.
Nessa mesma direção, na pesquisa de Cariola
e Behlau (2001), realizada com sujeitos sem distúrbios vocais, 76,9% dos entrevistados assinalaram no questionário que uma das situações cotidianas prejudicadas por uma eventual perda de voz
seria “o modo como as pessoas o tratam”.
No Quadro 3 apresentamos um resumo dos
dados.
ARTIGOS
Os sentidos da perda de voz
Considerações finais
Inicialmente, pressupusemos que a vivência de
problemas vocais, envolvendo a possibilidade da
perda de voz, marcaria a subjetividade e que a voz,
para pessoas que a usam profissionalmente, poderia ter um valor e um significado diferenciados em
relação àquelas que não a usam.
Ao refletirmos sobre os dados da pesquisa,
concluímos que, para nossos entrevistados, o fator
com ou sem queixa vocal foi mais relevante do que
o fator ser ou não profissional da voz.
Efetivamente, a análise mostra que os participantes com queixa vocal foram os que deram
maior sentido negativo à perda de voz; os que mais
enfatizaram a relação de que o estado afetivo pode
alterar a voz; os que mais se referiram ao uso da
voz no trabalho; os que, dentre os cuidados com a
voz, trouxeram maior elenco de fatores que podem
ser prejudiciais à voz e de tratamentos para proble-
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
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ARTIGOS
Roberta T. Petroucic, Silvia Friedman
Quadro 3 – Relevância dos fatores queixa vocal e profissional da voz de acordo
com as categorias analisadas. As células em destaque indicam qual(is) fator(es)
foi(ram) mais relevante(s)
Fatores
Categorias
Afeto
C
S
NP
P
Sentido negativo da perda de voz
Importância da voz
Relação entre voz e estado afetivo
Ação
Necessidade da voz para comunicação
Necessidade da voz para trabalho
Cuidados com a voz
Estado
físico
Dimensão
social
Qualidade vocal
Relação voz/doenças/ sensações corpo
Voz avaliada pelos outros
Avalia voz dos outros
Legenda
C: com queixa; S: sem queixa.
NP: não profissional da voz; P: profissional da voz.
mas de voz; e os que mais se referiram à dor e a
várias doenças relacionadas aos problemas de voz.
Ao compararmos os profissionais e os não profissionais da voz, estes foram os que mais deram
sentido à relação entre voz e comunicação e à importância da voz e, dentre eles, os com queixa vocal abordaram os cuidados com a voz, o que pareceu esperado, uma vez que eles, de fato, têm esses
conhecimentos, porque fizeram tratamento vocal
ou porque a necessidade os fez procurá-los.
Os profissionais da voz, também como era de
se esperar, foram os que deram maior ênfase à necessidade da voz para o trabalho, por entendê-la
como principal instrumento, sem a qual não é possível trabalhar. Coerentemente, também, apresentaram maior repertório em torno dos cuidados com
a voz, porque suas vivências favorecem isso. Entretanto, poucos deles abordaram a importância da
voz e a necessidade da voz para comunicação, conforme discutimos anteriormente.
Investigamos a perda de voz entendendo-a
como algo complexo, por envolver, no mínimo, as
dimensões subjetiva, orgânica e sociocultural, e
nossos participantes falaram sobre o tema envolvendo todas essas dimensões. Sendo assim, cremos
que a Fonoaudiologia pode fazer uso dos conhecimentos do cotidiano das pessoas para abordar a voz
de forma contextualizada, seja na clínica, seja na
promoção da saúde vocal, seja no trabalho de assessoria aos profissionais da voz.
48
A partir da análise de nossos dados, uma questão sobre a qual nos parece pertinente refletir é a de
que, quando o profissional da voz, na condição de
paciente, está diante de um fonoaudiólogo, temos
uma situação em que ambos são conhecedores de
voz, cada qual na sua especificidade. Nessa medida, pelos sentidos que foram acessados em nossa
pesquisa, entendemos que o trabalho terapêutico a
ser construído entre estes dois tipos de profissionais corre o risco de ficar num âmbito muito tecnicista, favorecido e reforçado pelos conhecimentos
singulares de ambas as partes, o que pode camuflar a dimensão afetiva do sintoma para o paciente.
Nesse sentido, consideramos a necessidade de o
terapeuta abrir espaço para que o paciente coloque
seu sofrimento, aspecto extremamente relevante
para o desenvolvimento satisfatório de um processo terapêutico centrado na queixa vocal.
Esta pesquisa também nos fez pensar no quanto é importante para o fonoaudiólogo, no trabalho
com pessoas disfônicas, valorizar a queixa e compreender o componente afetivo articulado à voz a
partir da singularidade e da história de cada paciente. Nesse sentido, pode ser importante explorar com
o paciente as relações que emergem entre a voz e a
imagem do corpo, referido por Dolto (2002) como
“a síntese viva de nossas experiências emocionais”,
conforme discutimos anteriormente. A partir da
noção de corpo simbólico, o terapeuta pode conhecer os sentidos ligados à dor e às associações que o
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paciente faz com doenças, que revelam seus medos e fantasias, não ficando assim na superficialidade do sintoma.
Um outro aspecto, sobre o qual pudemos refletir a partir de nossos dados, refere-se ao fato de
que, na clínica fonoaudiológica, a relação entre
voz e estado afetivo pode estar carregada de muita negatividade. Nesse contexto, a terapia será um
espaço para construir novos sentidos sobre a voz,
de forma que a pessoa disfônica possa ter acesso
a uma gama maior de relações entre voz e estado
afetivo.
Um último aspecto, decorrente da análise de
nossos dados, ocorre em função do fato de que somente os participantes que tinham queixa abordaram os cuidados com a voz. Isso nos levou a pensar sobre qual o conhecimento que pessoas que não
foram afetadas por problemas de voz e não são profissionais da voz têm sobre esses cuidados. Embora nossa pesquisa não tivesse por objetivo responder a esta pergunta, entendemos que a resposta pode
ser importante para a Fonoaudiologia compreender o que a população de modo geral sabe sobre
cuidados com a voz. Nesse sentido, acreditamos
que seria interessante continuar a pesquisar, fazendo levantamento dessa natureza para compreender
a necessidade e organizar campanhas de saúde vocal, entendendo que tipo de informações fornecer
e em que profundidade.
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ARTIGOS
Os sentidos da perda de voz
Recebido em junho/05; aprovado em fevereiro/06.
Endereço para correspondência
Roberta T. Petroucic
Avenida 31, n. 1006, Barretos, SP, CEP 14780-360
E-mails: robertapetro@yahoo.com.br
Referências
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Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(1): 39-49, abril, 2006
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