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Continuidades entre as políticas externas de Biden e Trump para Palestina

2023, Conjuntura Internacional

RESUMO Biden tem reduzido a importância de Palestina/Israel aos EUA. O governo manteve as políticas favoráveis aos israelenses promovidas por Trump que alteraram a geopolítica do Oriente Médio sob a pressão do lobby e do governo israelenses. As medidas aos palestinos têm contribuído para pacificar as suas reivindicações de libertação nacional. ABSTRACT Biden has reduced the importance of Palestine/Israel to the US. The administration maintained the pro-Israeli policies promoted by Trump that altered the geopolitics of the Middle East under pressure from the Israeli lobby and government. The measures to the Palestinians have contributed to pacify their demands for national liberation. RESUMEN Biden ha reducido la importancia de Palestina/Israel para Estados Unidos. La administración mantuvo las políticas pro-israelíes promovidas por Trump que alteraron la geopolítica de Medio Oriente bajo la presión del lobby y el gobierno israelí. Las medidas a los palestinos han contribuido a pacificar sus demandas de liberación nacional.

2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 Artigo Continuidades entre as políticas externas de Biden e Trump para Palestina/Israel Continuities between Biden and Trump’s foreign policies for Palestine/Israel Continuidades entre las políticas exteriores de Biden y Trump para Palestina/Israel Bruno Huberman1 Reginaldo Nasser2 RESUMO Biden tem reduzido a importância de Palestina/Israel aos EUA. O governo manteve as políticas favoráveis aos israelenses promovidas por Trump que alteraram a geopolítica do Oriente Médio sob a pressão do lobby e do governo israelenses. As medidas aos palestinos têm contribuído para pacificar as suas reivindicações de libertação nacional. Palavras-chave: Governo Biden; Palestina/Israel; Oriente Médio. ABSTRACT Biden has reduced the importance of Palestine/Israel to the US. The administration maintained the pro-Israeli policies promoted by Trump that altered the geopolitics of the Middle East under pressure from the Israeli lobby and government. The measures to the Palestinians have contributed to pacify their demands for national liberation. Keywords: Biden administration; Palestine/Israel; Middle East. RESUMEN Biden ha reducido la importancia de Palestina/Israel para Estados Unidos. La administración mantuvo las políticas pro-israelíes promovidas por Trump que alteraron la geopolítica de Medio Oriente bajo la presión del lobby y el gobierno israelí. Las medidas a los palestinos han contribuido a pacificar sus demandas de liberación nacional. Palabras clave: Administración Biden; Palestina/Israel; Oriente Medio. INTRODUÇÃO Durante o governo Donald Trump (2016-2020), as relações entre Israel e EUA possivelmente passaram pela maior transformação desde que a “amizade especial” entre os países foi selada pelo estadunidense Lyndon Johnson e o israelense Levi Eshkol após a vitória de Israel na Guerra 1 Prof do curso de Relações Internacionais da PUC (SP). Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós- -Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e Puc-SP). Vice-Coordenador do GECI (Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais) e pesquisador do INEU (Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA). bhuberman@pucsp.br 2 Prof Livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC (SP) e do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e Puc-SP). Coordenador do GECI (Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais) e pesquisador do INEU (Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA). regnasser@pucsp.br 3 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 dos Seis Dias, em 1967, contra Egito, Síria e Jordânia. Contudo, até 2016, os EUA sempre buscaram fazer um contrapeso em relação aos palestinos e às suas reivindicações de libertação nacional. Os EUA têm sido críticos da ocupação israelense dos territórios palestinos da Cisjordânia e Gaza, que viola a lei internacional, e defensores ativos de uma solução de dois Estados. Trump foi o primeiro líder a acabar com qualquer forma de mediação com os palestinos e assumir uma posição radicalmente favorável aos israelenses. O que o presidente Joe Biden (2021- ) tem feito em seu governo é manter o status quo estabelecido pelo seu antecessor sem qualquer tipo de contrapeso relevante em relação aos palestinos. As ações estadunidenses têm se caracterizado por simbolismos que são incapazes de alterar a balança de poder na direção do respeito dos direitos humanos dos palestinos. Isto é, na relação EUA-Palestina/Israel, entendemos que há mais continuidades do que descontinuidades na mudança de governo, apesar de Biden ter se apresentado como o anti-Trump durante a campanha eleitoral. O fim do governo Benjamin Netanyahu (2009-2021) em Israel, substituído por uma coalizão liderada pelo direitista Naftali Bennett (2021-2022), tampouco significou qualquer mudança relevante. O retorno de Netanyahu em 2022, na liderança de uma coalizão com partidos de extrema-direita, consolidou o projeto ultranacionalista de colonização dos territórios palestinos. Entre as razões para a continuidade do status quo, destacamos: i – pela primeira vez, no pós-Guerra Fria, ocorre a perda relativa de importância do Oriente Médio na política externa dos EUA, em que se prioriza o Leste Asiático, particularmente a China, e o Leste Europeu, onde ocorre a Guerra Rússia-Ucrânia; ii – as al- terações na geopolítica do Oriente Médio promovidas por Trump, que aproximaram Israel de alguns países árabes, e isolaram ainda mais os palestinos; e iii – a força do lobby israelense nos EUA, que contém o impacto de forças progressistas favoráveis aos palestinos que ajudaram a eleger Biden. Neste artigo iremos analisar cada uma dessas razões com o objetivo de compreender a transição promovida pelo governo Biden nas relações dos EUA com Palestina/Israel. Entendemos que a gestão do democrata revela a semelhança com os republicanos quando o assunto é a Questão Palestina e contribui para derrubar o véu progressista que caracterizou as gestões democratas de Bill Clinton (19932000) e Barack Obama (2009-2016), responsáveis por alimentar ilusões de que os EUA poderiam ser verdadeiramente comprometidos com a independência da Palestina. Quando vice-presidente de Obama, Biden afirmou que “[s]e não houvesse um Israel, teríamos que inventar um para garantir que nossos interesses fossem preservados. [...] O apoio da América para a segurança de Israel é inabalável» (Daily News, 2013). Um declarado apoiador de Israel, Biden visitou o país mais de dez vezes em suas cinco décadas como político (Sommer, 2022). A POLÍTICA EXTERNA DE BIDEN PARA PALESTINA/ISRAEL A administração Biden tem se caracterizado pela grande atenção às questões de política doméstica, como o combate à pandemia de Covid-19 e investimentos em infraestrutura para aquecer a economia. No plano externo, a agenda ambiental tem ganhado destaque, enquanto as preocupações de segurança se trans- 4 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 feriram para China e Rússia — os embates com os russos mudaram de teatro de operações: da Síria para a Ucrânia. No Grande Oriente Médio (Amineh, 2007), Biden tem mantido a estratégia de Trump de diminuir a presença militar dos EUA. A ação mais notável foi a apressada retirada das tropas do Afeganistão em 30 de agosto de 2021, mas que na verdade já estava estabelecida desde o governo anterior. A desocupação estadunidense depois de vinte anos ocorreu diante do avanço das forças do Taleban, que tomou Cabul e instalou um novo governo sob o apoio de Irã, China e Rússia. Biden mantém ainda unidades militares de treinamento no Iraque para combater o Isis (Estado Islâmico do Iraque e da Síria).3 Na Síria, um número similar de tropas também atua contra o Isis, apoia as forças aliadas curdas, defende campos de petróleo e contribui para a defesa da fronteira com Israel (Rudaw, 2022).4 Uma série de ataques aéreos por EUA e Israel também são constantemente realizados na região. O boicote econômico imposto pelos EUA e aliados à Rússia têm provocado importantes desdobramentos na economia política internacional. A queda na circulação de mercadorias russas nos circuitos ocidentais, particularmente do petróleo, é uma das razões pelas quais a inflação global cresceu em 2022, obrigando o Fed (Banco Central dos EUA) a aumentar os juros e esfriar a economia estadunidense (Reuters, 2022). A primeira medida de Biden foi suspender as sanções à Venezuela e permitir que empresas europeias voltassem a comercializar 3  Os EUA já haviam desocupado o Iraque em 2011 depois da invasão de 2003 e retornaram em 2015. 4  Após aumentar o envolvimento estadunidense na Sí- ria no início de seu mandato, Trump ordenou uma retirada parcial das tropas no final de 2018, o que permitiu o avanço de forças russas, síria, iranianas e turcas sobre áreas antes controladas pelos EUA e seus aliados. petróleo com o país para compensar a ausência do óleo russo (Estanislau, 2022). Contudo, para influenciar no preço do barril de petróleo, os EUA precisam de uma ação mais robusta na política energética, o que passa pelas suas relações com o Oriente Médio, especialmente a Arábia Saudita. Na campanha de 2020, Biden afirmou que a Arábia Saudita deveria ser tratada como um Estado “pária” e que seria duro com o país diante do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi na embaixada saudita na Turquia, em 2018 (Baker; Hubbard, 2022). No início do mandato, Biden se afastou dos sauditas e não recebeu o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman. O presidente estadunidense buscou reconstruir a relação com os sauditas em sua primeira viagem ao Oriente Médio em julho de 2022, com paradas na Arábia Saudita, Israel e os Territórios Palestinos Ocupados (TPO). Contudo, Biden não conseguiu um compromisso dos sauditas e viu a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) diminuir a produção global de petróleo, jogando os preços dos combustíveis para cima (Aljazeera, 2022b). Apesar dos EUA terem desenvolvido novas fontes energéticas, os preços de petróleo e gás continuam a pressionar a inflação global e a estabilidade socioeconômica de suas alianças europeias na guerra contra a Rússia. É nesse contexto em que se situa as relações dos EUA com Palestina/Israel. Biden prometeu restabelecer as relações com Palestina/Israel dentro de uma suposta normalidade anterior a Trump. Contudo, os primeiros anos da sua administração se caracterizaram por ações meramente simbólicas em relação aos palestinos. Os EUA retomaram a contribuição, encerrada por Trump, à UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina) no valor de US$ 150 5 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 milhões — metade do que destinava até 2018 —, essencial ao auxílio dos refugiados palestinos no combate à pandemia de COVID-19 (Jansen, 2021). No entanto, silenciaram sobre as restrições impostas pelos israelenses à vacinação nos TPO, o que prejudicou o combate à pandemia (Agostinelli, 2021). Além disso, os democratas restabeleceram as relações com a OLP (Organização pela Libertação da Palestina) cortada pelo ex-presidente republicano, reservaram US$ 75 milhões para projetos humanitários em 2021, e deram início, em 2022, ao Middle East Partnership for Peace Act, projeto de 2020 que destina à USAID US$ 250 milhões durante cinco anos para iniciativas de coexistência entre israelenses e palestinos (USAID, 2022). Contudo, Biden não reabriu a representação da OLP em Washington e tampouco o Consulado dos EUA em Jerusalém para tratar com a AP (Autoridade Palestina), ambos fechados por Trump, por causa da pressão exercida por Bennett. Com exceção da permissão de reunião familiar entre palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e da expansão da rede de telefonia móvel nos TPO, que somente em 2021 passou a contar com rede 4g após anos bloqueada pelos israelenses, os demais pedidos palestinos têm sido negados: medidas mais efetivas para impedir a presença militar israelense em áreas A da Cisjordânia, onde está presente a autoridade civil e militar da AP; a paralisação da construção de assentamentos israelenses; a soltura de prisioneiros políticos palestinos; e acesso da AP a Allenby Bridge, que conecta Cisjordânia a Jordânia, única via de saída dos palestinos ao exterior. O presidente da AP, Mahmoud Abbas, teve que esperar quatro meses para conseguir um telefonema com Biden após a sua posse (Khoury, 2022). Biden manteve o reconhecimento por Trump da soberania israelense sobre a Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã em contrariedade à lei internacional (Falk, 2021), e a adoção dos EUA da definição de antissemitismo da International Holocaust Remembrance Alliance na qual críticas a Israel são entendidas como formas de racismo anti-judeu (Arria, 2021). Sob críticas de setores progressistas do Partido Democrata, principalmente de parlamentares do DSA (Democratic Socialists of America), Biden culpou exclusivamente o Hamas pelos bombardeamentos israelenses a Faixa de Gaza em maio de 2021 e defendeu o direito de Israel se defender de forma assimétrica por meio de ataques aéreos (Weiss, 2021a); no mesmo mês, anunciou a venda de US$ 735 milhões em armas para Israel (Zengerle, 2021); doou US$ 1 bilhão para o Iron Dome, o sistema de defesa aéreo israelense, além dos US$ 38 bi anuais já destinados a Israel em ajuda militar (Weiss, 2021c); não contestou a decisão do governo israelense de enquadrar seis ONGs palestinas de direitos humanos envolvidas na luta anti-apartheid como organizações terroristas, o que tem dificultado o seu financiamento internacional (Arria, 2022); e não pressionou por uma investigação independente do assassinato da jornalista palestina-estadunidense Shireen Abu Akleh por um sniper israelense em maio de 2022 (Harb, 2022), isto é, não buscou punição pelo assassinato de uma cidadã dos EUA. Além disso, o presidente dos EUA tem encontrado resistência israelense para retomar as negociações de um acordo nuclear com o Irã abandonado por Trump. “Nós nos tornamos amigos próximos”, disse Biden durante a visita de Bennett aos EUA em 2021 (Weiss, 2021b). Segundo oficiais da AP, os EUA pediram aos palestinos que aguardassem um fortaleci- 6 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 mento do governo Bennett — que nunca veio — para retomar as negociações. O Conselho Nacional Palestino inclusive autorizou Abbas a pôr fim à cooperação de segurança com os israelenses e ao reconhecimento de Israel para pressionar por um avanço nas conversas, mas nada foi feito (Khoury, 2022). Em junho de 2022, a coalizão de Bennett ruiu para não suspender a lei que estende a legislação civil israelense aos colonos judeus nos TPO sem que nenhum passo fosse dado na direção da conciliação com os palestinos. Embora derrotado eleitoralmente, o projeto de Trump e Netanyahu tem se mostrado vitorioso ao estabelecer um novo parâmetro para um acordo político fundado sobre o reconhecimento da expansão das fronteiras coloniais israelenses ao custo de vidas e terras palestinas, isolando ainda mais os palestinos internacionalmente. Nesse sentido, julgamos que os Acordos de Abraão (2020), que normalizou as relações de Israel com EAU (Emirados Árabes Unidos), Bahrein, Sudão e Marrocos, são fundamentais para entender essa nova conjuntura. A normalização das relações de Israel com países da região, Egito, em 1979, e Jordânia, em 1994, ocorreram com contrapartidas aos palestinos, diferentemente dos acordos feitos por Trump e Netanyahu em 2020. Embora as elites árabes tenham reivindicado que a aproximação com Israel significaria um passo para a paz e de reconhecimento de um Estado palestino, o que tem se observado é o estreitamento das relações econômicas e militares com Israel em detrimento dos palestinos. Por exemplo, as relações Israel e Emirados Árabes Unidos (EAU) têm florescido nos últimos dois anos: empresas high-tech israelenses passaram a investir no país e milhares de turistas israelenses têm visitado Dubai (AFP, 2021); a realização de exercícios militares em Israel contou com a participação de jatos emiradenses (Aljazeera, 2021); e em 2022, EAU e Israel selaram um acordo de livre comércio (Aljazeera, 2022a). Em março de 2022, diplomatas do Egito, Marrocos, Bahrain, UAE, EUA e Israel se reuniram na Cúpula do Negev, em Israel, para discutir a possibilidade de uma aliança militar que poderia ainda contar com Jordânia, Arábia Saudita e Iraque. Apelidada de “Otan do Oriente Médio”, a aliança regional serviria para confrontar o “Irã e as suas milícias associadas”, afirmou o então ministro das Relações Exteriores, Yair Lapid (Smartencyclopedia, 2022). Apesar de ainda estar na agenda a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, não há qualquer tipo de tensionamento entre eles. Com uma aproximação dos aliados dos EUA no Oriente Médio a partir da expansão de projetos econômicos de inspiração neoliberal e uma estratégia de confrontação ao Irã, tem se avançado os objetivos políticos e econômicos do início dos anos 1990, quando almejava-se construir uma área de livre comércio em todo o Grande Oriente Médio a partir dos Acordos de Oslo (1993-95). O comércio entre Israel e as nações árabes que firmaram os Acordos de Abrãao excederam US$ 2,8 bilhões de dólares em 2022, particularmente no setor militar e de cibersegurança (MEMO, 2023). E, nesse momento, sem qualquer tipo de resolução da Questão Palestina, como sempre desejaram os israelenses. Enquanto isso, os palestinos ficam presos aos mecanismos de statebuilding erguidos em Oslo e mantidos por doações internacionais, particularmente dos EUA (Haddad, 2016). Contudo, a normalização das relações entre Irã e Arábia Saudita, em acordo mediado pela China em fevereiro de 2023, mina as pretensões geopolíticas israelenses. Já as revoltas 7 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 sociais entre os israelenses judeus por causa da tentativa de Netanyahu reformar o Judiciário para ampliar os seus poderes mancha a reputação de Israel como supostamente a “única democracia do Oriente Médio”. Os ataques violentos por colonos ultranacionalistas contra palestinos, como no pogrom promovido no vilarejo de Huwara em fevereiro de 2023, aprofunda a crise de legitimidade do Estado e do governo israelenses. A QUESTÃO PALESTINA/ ISRAEL NA POLÍTICA INTERNA DOS EUA Biden foi eleito com um amplo apoio de integrantes dos movimentos palestino, negro, indígena e do DSA envolvidos na campanha por BDS (Boicote, Desinvestimentos e Sanções) a Israel, e que almejavam uma transformação nas relações dos EUA com o Oriente Médio. Os principais fatores internos para a frustração dos setores progressistas da base democrata são o lobby israelense e o eleitorado judeu. Mearsheimer e Waltz (2008) reivindicam que a razão fundamental para o apoio incondicional dos EUA a Israel seria o lobby israelense formado por grupos judeus, israelenses, evangélicos e neoconservadores que exercem influência nos corredores de Washington e na mídia estadunidense. Embora certamente este lobby tenha um papel fundamental para a forma como a aliança é construída, não é a única variável: as questões geopolíticas do Oriente Médio e a política energética dos EUA também possuem grande relevância, como notamos acima. Muitos relacionam o lobby israelense com grupos conservadores vinculados ao Partido Republicano, em particular o Aipac (American Israel Public Affairs Committee), que nos anos Obama e Trump assumiu uma posição mais ostensivamente favorável aos republicanos por causa das políticas divergentes destes presidentes ao programa nuclear iraniano. Contudo, o lobby é heterogêneo e historicamente tem uma ação bipartidária. Os judeus são, ao lado dos afro-estadunidenses, o grupo mais simpático aos democratas do país. Aproximadamente 75% da comunidade judaica se considera democrata. A aliança entre EUA e Israel foi historicamente defendida pelos democratas a partir da defesa de valores liberais, democráticos e o respeito às minorias. A aproximação dos republicanos com Israel ocorreu a partir da ascensão dos neoconservadores nos anos 1980, e do fortalecimento de grupos evangélicos (Beinin, 2021). No governo Biden, o Aipac perdeu espaço para o movimento sionista liberal JStreet como o principal lobby israelense nos corredores da Casa Branca (Plitnick, 2022). O JStreet sustenta a manutenção da “amizade especial” entre as nações, mas que passe a ser condicional, como almejam setores mais à esquerda do Partido Democrata. A organização defende que ao menos uma parcela da ajuda militar seja destinada para a construção da paz com os palestinos. A força do lobby israelense decorre da representação desproporcional dos judeus sionistas no financiamento de campanhas eleitorais. Um estudo de 2015 demonstrou que os judeus doaram 50% de todo o dinheiro do Partido Democrata e 25% do Partido Republicano. Sheldon Adelson, o maior doador republicano em 2012 e 2016, é proprietário do maior jornal de circulação de Israel e apoiador de Netanyahu. A família Clinton tem entre os seus principais financiadores um empresário judeu cujo objetivo é acabar com a campanha BDS (Beinin, 2021). O Aipac tem atuado no financiamento a candidatos democratas e republicanos que sejam concorrentes de 8 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 políticos defensores dos direitos dos palestinos. Consequentemente, se um candidato tem uma posição favorável a Israel, seja liberal ou conservador, tem maiores chances de conseguir financiamento com uma das organizações do lobby. Dessa forma, o lobby israelense distorce na esfera representativa as opiniões observadas nas bases democratas e na comunidade judaica. Enquanto nenhum dos 25 parlamentares judeus têm uma posição crítica a Israel, 20% da comunidade judaica defende uma solução que acabe com o caráter judaico de Israel e 9% são contra o direito de Israel existir, um número que cresce para 25% entre aqueles abaixo dos 40 anos. A pesquisa mostra uma crescente alienação dos judeus estadunidenses em relação a Israel, com 37% não se sentindo emocionalmente conectados ao país (Jewish Electorate Institute, 2021). Já aproximadamente 64% dos democratas têm visões mais favoráveis aos palestinos, enquanto 78% dos republicanos são mais favoráveis aos israelenses. Cerca de 61% dos jovens estadunidenses favorecem os palestinos sobre os israelenses (Pew, 2022). Contudo, a administração Biden não representa as posições do seu eleitorado democrata. CONSIDERAÇÕES FINAIS O governo Biden para Palestina/Israel não é, propriamente, uma antítese ao de Trump. O democrata mantém as alterações fundamentais na correlação de forças entre Israel e os palestinos feitas pelo republicano, e retoma, com um status inferior, uma moderação com os palestinos. De acordo com os parâmetros de análise de política externa elaborados por Hermann (1990), a política externa de Biden para Palestina/Israel pode ser entendida como uma mudança de programa na qual mantêm-se os objetivos, mas são utilizados outros meios. A retomada da ajuda humanitária fez o establishment palestino consentir às mudanças substanciais promovidas por Trump e que sofriam maior resistência no governo do ex-presidente republicano. O enfraquecimento da moderação externa liderada pelos EUA promove insatisfação e revolta entre os palestinos, empurrando-os na direção do abandono do caminho institucional defendido pelo consenso internacional. Setores crescentes da sociedade palestina têm reivindicado que o repúdio aos mecanismos de Oslo e o retorno a uma opção mais radical seria a única possibilidade real para a libertação nacional. Essa mudança na posição dos EUA decorre da orientação política de Biden e da síntese entre as posições contraditórias dos grupos mais favoráveis a Israel e daqueles que sustentam a ilusão da neutralidade entre israelenses e palestinos na sociedade estadunidense. Em menor medida, as mudanças geopolíticas recentes no Oriente Médio também desempenham um papel relevante. A alteração dos meios promovida por Biden é fundamental para restabelecer o papel dos EUA na manutenção da estabilidade da ocupação dos territórios palestinos que impede a sua autodeterminação através de doações que confinam o Movimento Nacional Palestino à estratégia de statebuilding neoliberal como caminho para a libertação (Haddad, 2016). Isto é, a administração do democrata é fundamental para manter o poder do establishment palestino que se beneficia política e economicamente com a manutenção do status quo. O real objetivo da ajuda humanitária estadunidense não é a produção da paz, mas contribuir para a pacificação da sociedade palestina diante do avanço das ambições coloniais israelenses. Contudo, a radicalização das ações coloniais pela nova coalização de extrema-direita israelense pode minar os esforços dos EUA de pacificar o conflito. 9 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.3, p.9 - 21, dez. 2021 REFERÊNCIAS AFP. Fintech and fighter jets: one year on, UAE-Israel ties bear fruit, 2021. Disponível em: <https://www.france24.com/ en/live-news/20210914-fintech-and-fighter-jets-one-year-on-uae-israel-ties-bear-fruit>. Acesso em: 18 jun. 2022. AGOSTINELLI, I. Israel avança na diplomacia e no apartheid de vacinas, 2021. Disponível em: <https://revistaforum. com.br/opiniao/2021/2/26/israel-avana-na-diplomacia-noapartheid-de-vacinas-por-isabela-agostinelli-92484.html>. Acesso em: 19 jun. 2022. ALJAZEERA. 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