AUTISMOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA SE PENSAR
O SUJEITO EM PSICANÁLISE*
Nina Virginia de Araújo Leite**
RESUMO
A partir de algumas observações clínicas a respeito de crianças autistas, o
presente artigo busca identificar aspectos relevantes para avançar na abordagem
psicanalítica da subjetividade, especialmente no que respeita à importância da
consideração do campo da linguagem e da função da fala no processo de
estruturação. Ressalta-se a condição fundamental do gesto simbólico inaugural
do nascimento do sujeito, enlaçando o real do organismo na rede discursiva que
implica não apenas os ideais sociais, mas principalmente a incidência de um
desejo que não seja anônimo.
Palavras-chave: autismos; psicanálise; linguagem; subjetividade.
A primeira observação que o tema desperta é a seguinte: temos
verificado um desequilíbrio entre a raridade dos casos de autismos na
população e o volume da produção teórica que tem sido escrito a respeito,
desde a nomeação da síndrome de Autismo Infantil Precoce por Kanner
em 1943. O que esse interesse estaria denotando com relação à condição
subjetiva posta em cena nesses casos?
Para indicar uma possível resposta a essa questão, gostaria de
partir de uma afirmação que suponho produtiva porque, além de ser
também a de alguns autores respeitáveis no campo da psicanálise, é
derivada de uma experiência clínica: não há um autismo puro, encontramos
sempre singularidades clínicas que estão em desacordo com a clareza
das elaborações teóricas isoladas por categorias puras. Esta é uma expli* Artigo recebido em 16/5/2005 e aprovado em 25/7/2005.
** Professora (Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp) e Psicanalista (Escola de
Psicanálise de Campinas). E-mail: nleite@iel.unicamp.br
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cação primeira para o plural que está marcado no título: autismos. Portanto,
vamos começar afirmando uma dificuldade (o que não quer dizer
impossibilidade) para isolar uma categoria que se denominaria “criança
autista”. O objetivo da nossa reflexão será então poder retirar conseqüências deste ponto de partida e ver o quanto é possível avançar, pois
se é fato que a diversidade é a regra, isto não impossibilita, como disse,
que se busque construir o que responde estruturalmente pela riqueza
clínica dos casos. Nesse sentido, concordamos com Colette Soler, quando
afirma que os autismos constituem um pólo, e não uma categoria pura.
Um ponto importante que quero destacar, a partir desse comentário,
é a diferença de abordagens que resulta da forma diversa de se tratar os
fenômenos clínicos. Ou seja, dependendo da relação que se estabelece
com o campo dos fenômenos, tomando-os como transparentes em si
mesmos ou como opacidade que deve ser lida em um processo de decifração, teremos formas diferenciadas de abordar o tema em questão. Estou
aqui pensando nas diferenças de abordagens que encontramos relacionadas aos autismos, dependendo se estamos nos referenciando no campo
da psiquiatria, da psicologia ou da psicanálise. Indico apenas brevemente
(seguindo os apontamentos do trabalho de Ângela Vorcaro) que, se na
psiquiatria as manifestações da criança são tomadas a partir de um ideal
de transcrição e categorização, e se na psicologia o olhar clínico busca
realizar uma tradução das manifestações da criança para sentidos previamente dados, a clínica psicanalítica, para a qual o que define a condição
da criança é a constituição subjetiva, a formação do inconsciente, as
manifestações da criança serão marcadas por uma opacidade que resiste
a um código e a sentidos prévios. Essa forma de abordar a criança exige
que o clínico realize uma operação de deciframento das manifestações
da criança na sua relação com o Outro. Portanto, aquilo que se diz e
como se diz sobre a criança fazem parte do texto que deverá ser decifrado.
Mas a pluralidade marcada no título também quer indicar que desde
a criação de Kanner o modo de apreender a clínica dos autismos
enriqueceu-se consideravelmente pelo viés de numerosas correntes
teóricas, às vezes contraditórias, mas fecundas. Podemos citar aqui as
diversas metáforas que são utilizadas na descrição dos casos: o buraco
negro, a fortaleza vazia, a agonia primitiva, a queda infinita no abismo do
não-ser, o grau zero de subjetividade, entre outras.
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É amplamente aceito, atualmente, que a situação de objetificação
de uma criança, que pode advir de uma hospitalização longa, de uma
doença genética ou induzida por um prognóstico ou diagnóstico médicos,
não deixa muito espaço para uma subjetivação e pode produzir uma
retirada autista. Condutas autistas também podem aparecer igualmente
depois de um acidente neurológico grave ou no curso das transformações
da puberdade. Mas se a referência à melancolia materna também demarca uma condição na lista de determinações da condição autista é porque
podemos pensar que a clínica do autismo pode evocar uma situação de
hospitalismo em domicílio, na qual o impossível olhar do Outro real (a
mãe) produz uma falha na necessária constituição do sujeito no Outro.
Abordar os autismos com base nessa vertente é produtivo porque justamente nos confronta com questões fundamentais da teoria psicanalítica.
Por exemplo: o que preside e determina o processo de estruturação de
um sujeito, ou o que é condição necessária para que um sujeito se produza
(já que estamos trabalhando com a hipótese de que sujeito não é sinônimo
de uma condição dada)? Qual a contribuição que um déficit orgânico
tem no fracasso da estruturação subjetiva? Como tratar a importância
da presença materna e paterna no advento do sujeito e no fracasso de
sua constituição? Qual a incidência do discurso social na construção dos
casos de fracasso? Se um trabalho psicanalítico convoca o trabalho na
transferência, como sustentá-lo em situações em que a patologia caracteriza-se justamente pela recusa do outro? O autismo é um quadro típico
da infância? Há saída do autismo? Há uma fase autística primitiva pela
qual todos os sujeitos passariam? Que diferenças podemos indicar entre
o autismo e a psicose na infância? Etc...
A possibilidade de avançarmos respostas para essas e outras tantas
questões está na dependência de podermos construir uma inteligibilidade
quanto aos processos que presidem a articulação do real do organismo
com o lugar simbólico que preexiste ao sujeito, articulação esta sustentada
pela via do imaginário materno.
A ênfase posta no papel determinante do agente materno impõe
uma observação: desde o trabalho pioneiro de Kanner, estabeleceu-se
uma discussão quanto ao papel da mãe na produção dos casos de autismo,
embora o próprio Kanner tenha afirmado no seu primeiro trabalho que
“essas crianças vêm ao mundo com uma incapacidade inata de constituir
biologicamente o contato habitual com as pessoas, exatamente como as
outras crianças vêm ao mundo com deficiências físicas ou intelectuais”.
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Mas como ele tinha descrito as mães como “frias” e “pouco carinhosas”,
entendeu-se que ele estaria culpabilizando-as, o que provocou manifestações das mães de autistas que afirmavam que amavam seus filhos.
Esse episódio é importante porque nos força a distinguir entre a função
social de cuidados que as mães podem desempenhar melhor ou pior e
pela qual podem ser julgadas e uma função que em psicanálise chamamos
de “função materna”, que as mães desconhecem exercer, ou seja,
realizam com o não-saber que marca o inconsciente. Ou seja, a função
materna implica a estrutura psíquica inconsciente da mãe. E quanto a
essa, não há como culpabilizar um sujeito; no entanto, a psicanálise não
des-responsabiliza o sujeito quanto ao que o afeta e isto define uma posição
do analista no trabalho de escuta junto aos pais, promovendo a responsabilização destes no sintoma do filho. Pois o que se passa entre a mãe e
seu bebê implica não apenas os cuidados da sobrevivência, mas,
sobretudo, e sabemos disto justamente pelo que o fracasso da estruturação
subjetiva testemunha, o exercício de uma função que coloca em jogo o
campo da linguagem (a mãe fala com o seu bebê e as palavras atingem
o seu corpo) e o campo do gozo (para que as palavras possam de fato
atingir o corpo da criança é necessário que o bebê esteja investido
imaginariamente em um certo lugar simbólico na estrutura psíquica da
mãe).
Vemos, então, que longe da constituição psíquica de um sujeito
poder ser pensada como determinada pela integridade neurofisiológica
do organismo, é na sua dependência com relação ao campo do simbólico
e do imaginário materno que essa tarefa poderá ser realizada. O que fica
assim indicado, e que tem a maior importância para pensarmos a clínica
dos autismos, é que a referência estruturante para o surgimento do sujeito
não está no campo da satisfação ou da frustração das necessidades.
Não é o cuidado das necessidades per se que colocará o bebê inserido
no campo da linguagem. Não estamos trabalhando com uma hipótese
inatista que tomaria como natural a entrada do sujeito no campo que lhe
é próprio, ou seja, o campo da palavra. Estamos afirmando que é por um
gesto simbólico que essa inclusão da criança na linguagem se dará.
Sabemos que uma característica pregnante nas crianças autistas
refere-se ao domínio da linguagem e da fala. Desde a descrição de Kanner,
esse fato tem sido observado. Ele observou onze casos para descrever a
síndrome; destes, oito adquiriram a capacidade de falar, mas ele nota
que a linguagem não era utilizada para a comunicação com outras pessoas,
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consistindo principalmente na nomeação e na adjetivação de objetos
identificáveis. A linguagem dessas crianças se caracterizava por uma
repetição semelhante à dos papagaios (eram ecolálicas) e as frases eram
apenas a repetição, sem qualquer modificação, de combinações de
palavras ouvidas.
Kanner também observou que o sentido de uma palavra, uma vez
adquirida, tornava-se inflexível e só podia ser utilizado com a conotação
originalmente adquirida. Um recorte clínico ilustra tal ocorrência: um
menino autista fica muito agressivo e desolado quando a mãe lhe conta
que a sua analista foi para os Estados Unidos. Passa a pegar o telefone
diariamente e tentar ligar para ela, chamando-a. A mãe elabora a hipótese
que ele teria associado a situação da partida da analista com a única
significação que admite para pessoas que partem para os Estados Unidos:
no seu universo familiar, as pessoas que viajam para esse lugar nunca
mais retornam, uma vez que se trata de uma decisão de emigrar e abandonar definitivamente o país de origem. Tal situação só pode ser revertida
com a chegada da analista, a despeito dos esforços da mãe em explicar
ao filho que não se tratava de um abandono. Uma das particularidades
da linguagem dessas crianças, notada por Kanner, refere-se ao uso dos
pronomes: eles são repetidos como são escutados. Resulta daí que a
criança fala de si mesmo como TU, e a pessoa a quem dirige a frase
como EU. Kanner complementa a observação dizendo que inclusive a
entonação da fala original da mãe é repetida.
Quanto à observação da inflexibilidade do significado no uso de
uma palavra, é interessante nos reportarmos ao que Lacan afirma no
Seminário 3, sobre as psicoses: “a transferência do significado, tão essencial à vida humana, só é possível em virtude da estrutura do significante”.
Ele se pergunta o que é a comunicação e responde que o essencial da
comunicação enquanto tal é o registro da mensagem, é o certificado de
recepção enquanto significante, e não significativo. Diz ele:
há o uso próprio do significante a partir do momento em que, no nível
do receptor, o que importa não é o efeito do conteúdo da mensagem,
mas isto: que no ponto de chegada da mensagem, esta é registrada
para posterior utilização. Assim, a possibilidade de usar a linguagem
como comunicação está articulada à possibilidade de manejar o
significante com fins puramente significantes, ou seja, como um sinal
de ausência que remete a outro sinal.
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Nesse texto, Lacan vai ligar a definição de subjetividade à estrutura
do significante, ao afirmar que “o subjetivo aparece no real na medida
em que supõe que temos à nossa frente um sujeito capaz de se servir do
significante. E servir-se do significante não para significar algo, mas
precisamente para enganar sobre o que se tem a significar”. Vemos
então que o exercício da função da fala implica propriamente o campo
daquilo que o sujeito diz sem saber, diz no desconhecimento, diz enganandose.
Para concluir, gostaria de trazer o recorte de um caso relatado na
literatura por Bernard Nominé e que pode nos ajudar a retomar essas
diferenciações que estão teorizadas por Lacan, especialmente o que está
implicado no uso da linguagem no seu estatuto de significante que faz
laço com um outro. Cito a apresentação que ele faz:
É uma criança que podemos seguramente qualificar de autista e que
tem um comportamento absolutamente estereotipado. A cada vez
que entra no consultório de sua psicóloga corre em direção do telefone,
digita algumas teclas e logo em seguida o telefone começa a tocar. Ele
consegue em suma chamar a si próprio, e jubila. Isto poderia durar
horas se ele não fosse detido. Isto cria embaraços, pois não é apenas
o telefone da psicóloga que toca, mas sim todos os ramais telefônicos
da instituição. É claro que se faz a psicóloga entender que ela precisa
deter a desordem. O único meio de fazê-lo cessar é desligando o fio
do telefone. O garoto continua a digitar e se irrita porque isso já não
funciona mais e ele não pode conceber que sua máquina não responde
mais porque foi desligada. De fato, se ele sabe, não sabemos como, o
que é preciso fazer para que o próprio telefone se chame, ele não tem,
por outro lado, a menor idéia do que seja uma ligação. Nós que não
somos autistas, temos a idéia do que significa estar ou não ligado,
porque é a relação com o Outro o princípio da ligação. Nós admitimos
que para satisfazer nossas necessidades e gozar um pouco da vida é
melhor estar conectado ao circuito dos significantes do Outro e lhe
endereçar nossas demandas. Pois bem, essa criança faz exatamente o
contrário: ela se serve do significante – o telefone, suas teclas, sua
campainha, é uma aparelhagem simbólica – mas ela não o utiliza para
se endereçar ao Outro, mas sim para alimentar o seu próprio novelo,
que funciona em circuito fechado. Nenhuma alteridade portanto na
maneira como ele utiliza o significante.
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Deste relato, podemos retirar o seguinte elemento importante que
pode servir como critério diagnóstico, a despeito da variabilidade das
manifestações das crianças autistas: a criança autista não utiliza o
significante para endereçar suas demandas ao Outro, ela não se serve
do significante para cifrar seu gozo, mas não se pode dizer que ela não
faça uso dele. Faz um uso solitário do significante que exclui qualquer
forma de ligação com o Outro. Poderíamos dizer que a posição da criança
autista na sua relação com o Outro pode ser definida através dos seguintes
traços destacados por Colette Soler:
– são crianças perseguidas pelos signos da presença do Outro,
especialmente a voz e o olhar do Outro;
– a anulação do Outro. Freqüentemente, acredita-se inicialmente
tratar-se de crianças surdas, quando de fato não o são. Também
apresentam distúrbios do olhar: ou não olham ou apresentam
estrabismo;
– recusa da intimação do Outro, ou seja, recusa do que o Outro,
pela sua palavra pode intimar, pode demandar. Este traço revela
uma característica freqüentemente observada: são crianças que
não demandam. A ausência de demanda é a contrapartida e o
complemento da recusa de ser chamado pelo Outro. A criança
autista recusa a voz e o olhar do Outro, e é através da voz e do
olhar que o Outro chama o sujeito. Este ponto é importante
porque sabemos que é pela demanda que o sujeito faz a sua
entrada no real.
Retomando então a questão do que se passa entre a mãe e seu
bebê, é preciso reconhecer que aí existe a linguagem e o gozo. E mais
ainda, que há uma intrínseca articulação entre gozo e linguagem. Isto
equivale a dizer que entre a mãe e a criança há uma adaptação imperfeita,
da qual pode testemunhar a perda inicial do objeto placentário, o envelope.
A criança não ocupa todo o espaço. Falar de fusão, de simbiose, de
díade pode fazer-nos acreditar em uma unidade que é apenas imaginária.
É a presença deste terceiro termo – a falta – entre a criança e a mãe
que vai permitir a circulação dos objetos que realizam as trocas entre
elas (o lugar vazio é fundamental para que a circulação das trocas se
dê). Acontece que, em certas condições, a criança pode ser solicitada a
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obturar essa falta, decorrendo daí patologias, dentre as quais o autismo
seria a condição mais radical.
Em função do que foi apresentado, podemos concluir dizendo que,
se a condição da criança autista se sustenta em uma objetificação do
sujeito, a única aposta possível, e que é aquela que a psicanálise faz, é
supor aí um sujeito e insistir no chamado.
ABSTRACT
Based on clinical observations of autistic children, this paper aims at identifying
certain relevant aspects in order to advance the psychoanalytical approach to
subjectivity, especially with regard to the importance of the consideration of the
language domain and the function of speech in the structuring process. The
fundamental condition of the symbolic gesture which happens at the subject’s
birth entwines the real organism with the discourse, implying not only social
ideals but principally the incidence of a desire not to be anonymous.
Key words: autism; psycho-analysis; language; subjectivity.
REFERÊNCIAS
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