Resenha da obra “A Ditadura Envergonhada” do Elio Gaspari ; 2º
edição, 2014, Editora Intrínseca; Leitura finalizada em 15 de Março de 2024
Resenha escrita por Amós Gonzaga
O livro A Ditadura Envergonhada é o primeiro livro de uma série que trata sobre o
Regime Militar Brasileiro (1964-1985) escrita pelo autor ítalo-brasileiro Elio Gaspari. Gaspari
não tem formação de historiador, sendo na verdade um jornalista que se dedicou a estudar
e pesquisar o tema a partir, principalmente, de arquivos das Forças Armadas e de
diários/entrevistas com figuras envolvidas no governo militar. A série inicialmente iria contar
com apenas quatro livros e falaria com mais profundidade sobre atuação de Golbery do
Couto e Silva e Ernesto Geisel nos bastidores dos governos militares, porém após mais de
uma década de sua conclusão o autor lançou um quinto livro que aborda a descompressão
e fim do regime militar. Sua produção é muito criticada por historiadores que se dedicam ao
estudo do Regime Militar devido a sua parcialidade na análise da deflagração do Golpe; da
luta armada das esquerdas; e da visão elogiosa aos ditos “moderados” das Forças
Armadas; e pela falta de um método historiográfico criterioso na escrita do texto, que por
vezes divaga entre a análise estrutural do assunto; abordagens rasas de temas paralelos e
o relato de causos e anedotas do período. Crítica essa que é válida, mas que não tira o
valor da obra, que segue sendo uma das principais referências para o estudo do tema.
O primeiro livro, A Ditadura Envergonhada, aborda com uma análise pormenorizada
sobre os meses anteriores à conflagração do Golpe e os primeiros anos do Regime Militar,
que serviram principalmente à sua própria estabilização e institucionalização. A compressão
do início da Ditadura passa necessariamente pelo entendimento de como a falta de
estabilidade na política e economia nacional; o profundo envolvimento dos militares na
política (tanto a esquerda quanto a direita); a interferência dos Estados Unidos da América,
que inflama e patrocina movimentos anti-esquerda; e a total falta de união entre as
esquerdas são pontos chave a derrubada de João Goulart. Apesar do esforço do presidente
de preencher postos chaves da hierarquia militar com pessoas de confiança, o chamado
“dispositivo militar”, não bastou para impedir o avanço da ala golpista quando chegou a
hora. Cabe lembrar também que já haviam ocorrido outras tentativas de golpe nos anos
anteriores e como manda a tradição política/militar brasileira, ninguém foi punido por isso e
tudo foi varrido para debaixo do tapete. Esse costume de impunidade é muito importante de
ser percebido pois será ponto chave do funcionamento do regime pelos próximos vinte
anos. O famoso discurso de Jango na Central do Brasil e a promessa da Reforma de Bases
são o ponto de virada que inicia a movimentação golpista dentro dos quartéis brasileiros. No
evento em que ocorre esse discurso participam diversos militares reconhecidamente de
esquerda e há nas palavras um comprometimento com o ideal de pegar em armas para
defender as reformas e as possíveis tentativas de golpe. Isso porém ficou somente no
discurso.
Liderados por militares que anteriormente já haviam se envolvido em tentativas
golpistas, o golpe se inicia com uma coluna de tanques que parte de Juiz de Fora, cidade
mineira fronteiriça ao estado carioca, em direção à capital do país, que à época ainda era o
Rio de Janeiro. As semanas anteriores ao golpe foram dedicadas à costura de alianças e
acordos entre militares e civis que desejam o fim do governo trabalhista, tudo isso com
muito apoio da embaixada dos Estados Unidos da América e de setores das elites
econômicas brasileiras. Através do diplomata Lincoln Gordon, os americanos prometeram
um amplo apoio na luta contra uma possível reação e o reconhecimento imediato ao futuro
governo militar que seria criado com o golpe. O presidente João Goulart era visto com muita
desconfiança pelo Departamento de Estado dos E.U.A, à época liderado pelo infame Henry
Kissinger, e havia ainda um clima de medo e histeria anti-comunista devido à recente
Revolução Cubana, que havia expulsado o ditador-fantoche Fulgência Batista e
estabelecido um governo socialista na ilha do Caribe. Lyndon Johnson, presidente
norte-americano à época, temia que Jango pudesse se tornar um novo Fidel Castro,
liderando um governo nacionalista pautado pelo desenvolvimento nacional e na luta contra
interesses imperiais americanos e estrangeiros.
O golpe foi iniciado na madrugada do dia 31 para o dia primeiro de abril e durante
um dia inteiro houve um total imobilismo das forças legalistas que apoiavam João Goulart,
que não queriam iniciar um conflito fratricida dentro do país por um presidente que também
não queria se comprometer com a luta armada. O discurso de defender as reformas de
base foi somente um discurso e nenhum setor da sociedade estava realmente
comprometido com esse plano. O que se viu de fato foi um presidente acovardado, que
vendo a movimentação golpista tomar o país, se recusou a reagir e proibiu aqueles que
desejam de o fazer. Nos dias seguintes à irônica data de 1º de Abril, Jango irá se refugiar
primeiro em sua fazenda no Rio Grande do Sul e posteriormente fugirá para o Uruguai e
depois para Argentina, onde irá morrer exilado de forma melancólica em 1976. Enquanto o
Golpe era concretizado, o que se viu dentro das esquerdas foi um total imobilismo.
A ala mais radical do PTB ( Partido Trabalhista Brasileiro, principal herdeiro do
legado varguista) será liderada por Leonel Brizola numa pífia tentativa de reação mas que
rapidamente será derrotada, com seu líder se auto exilando no Uruguai. Por outro lado, o
PCB (Partido Comunista Brasileiro), que à época era o maior partido da esquerda radical e
contava com centenas de milhares de militantes dentro das Forças Armadas, sindicatos e
movimentos sociais, não reage ao golpe de maneira alguma, acreditando na tese difundida
pelos militares que a governo militar seria breve e apenas faria uma transição até a próxima
eleição. Também havia um temor dos comunistas de que Jango seria um novo Getúlio
Vargas e que iria perseguir o Partido se continuasse na presidência. PCB e PTB nutriam
uma desconfiança mútua, em grande medida herdada do período do Estado Novo varguista
e lhes faltava a percepção, hoje óbvia, de que somente a criação de uma aliança tática
entre ambas as forças seria capaz de impedir o avanço golpista.
Logo nos primeiros meses do regime militar se organiza nas casernas brasileiras um
verdadeiro expurgo de todos os militares identificados com as esquerdas. Expulsões e
prisões sumárias, torturas e assassinato serão os métodos utilizados pelas Forças Armadas
para depurar qualquer voz contrária ao novo regime que se estabelecia As primeiras vítimas
foram os militares que eram reconhecidamente esquerdistas. Destaque aqui ao relato da
tortura e prisão do afamado militante comunista Gregório Bezerra, que foi preso nos
primeiros dias e torturado brutalmente num quartel de Recife, sendo arrastado por um jipe
pelas ruas da cidade. Junto a isso, centenas de militares irão sofrer destinos parecidos.
Existe uma curiosa diferenciação na repressão desses indivíduos, havendo um corte de
classe muito claro. De maneira geral, o que se viu foi que os oficiais das Forças Armadas
identificados com as esquerdas serão expulsos, enquanto praças na mesma situação, serão
torturados, presos ou mortos. Após esse surto inicial de violência e repressão dentro dos
quartéis as Armas irão se voltar contra o próprio povo, perseguindo políticos da oposição
que resistiam em reconhecer o novo governo e a figuras públicas que criticavam o golpe.
O primeiro presidente militar brasileiro será Humberto de Alencar Castelo Branco,
eleito de forma indireta pelo Congresso, é visto como o mais moderado de todos os
ditadores que passaram pela cadeira presidencial durante o Regime Militar. Consegue se
firmar como nome para governar após grande disputa interna dentro do Alto Comando das
Forças Armadas. Logo nesse primeiro momento se vê uma divisão não muito clara entre os
“moderados” e os assim chamados “linha-dura”. O conceito do que é ser moderado ou
linha-dura irá mudar no correr da Ditadura, mas de maneira geral os moderados defendiam
que o Regime deveria ser breve e que deveria somente estabilizar o país até a próxima
eleição. Já os linha-dura tinham claramente em seu plano um regime militar de longa
duração que desse conta de exterminar qualquer pensamento de esquerda ou progressista
que existisse no país. Em grande medida, a ala linha-dura era herdeira de nomes e ideais
do antigo partido fascista brasileiro, a Ação Integralista Brasileira (AIB). Em relação a
repressão e ao uso da tortura, ambas alas irão apoiar abertamente ou fingir
desconhecimento dos fatos.
Castelo Branco estava comprometido com a ala moderada das Forças Armadas, e
defendia que o governo deveria ser devolvido aos civis o mais rápido possível. Porém, sua
atuação como presidente será fraca e sua morte precoce irá impedir que esse plano se
concretizasse. Seu governo foi fraco devido, principalmente, a sua falta de pulso firme para
lidar com a indisciplina de seus subordinados e o caótico cenário político pós-golpe. Desde
o primeiro dia do Golpe, se assiste dentro dos quartéis uma “anarquia militar” (termo
cunhado pelo próprio autor), em que a regra sagrada das F.A., a sacralidade da hierarquia,
será jogada pela janela. Oficiais guiados por ambições e dissabores pessoais irão atuar de
forma a atender seus próprios interesses carreiristas. Junto desse quadro caótico, irão
nascer os órgãos de inteligência do Exército voltados para a repressão interna. O principal
órgão será o SNI (Serviço Nacional de Inteligência), fundado e liderado pelo próprio
Golbery, ele nasce com objetivo de centralizar o comando das forças de repressão e de
organizar de forma útil as informações obtidas a partir de investigações, prisões e torturas.
Esse objetivo porém é natimorto, nunca tendo sido concretizado e criando um cenário em
que a “Inteligência” das Forças Armadas estava muito longe de conseguir centralizar as
informações obtidas pelos inquéritos realizados. Tal confusão organizacional chega ao
ponto que as Forças Armadas, Polícias Civis e Militares do Estado de São Paulo não tinham
nenhum tipo de compartilhamento das descobertas que eram feitas. Além disso, o SNI
esbarrava no jogo de interesses que regia a alocação de recursos e pessoal dentro do
Regime. Casos de tortura e corrupção serão sempre abafados para evitar o desagrado de
figurões da Ditadura.
O uso da tortura na repressão executada pelo Regime Militar merece um comentário
a parte. A prática da tortura nunca foi oficializada, nunca houve uma ordem ou
determinação por parte dos comandantes das Forças Armadas de se praticar tortura para
obtenção de informações ou confissões de presos políticos. Porém, essa abominável
prática irá se enraizar dentro dos porões da Ditadura a partir de uma lógica ambígua que
tentarei descrever agora: uma vez que a tortura não existia oficialmente, não há
necessidade de proibí-la, visto que, em tese, ela não existia. Porém, quando confrontados
por denuncias de tortura divulgadas pelos jornais e que foram realizadas contra os presos
políticos que foram libertos, a tortura será sempre negada pelo Regime ou sua culpa será
jogada no colo dos seus perpetradores, sendo definidas como casos isolados ou excessos
individuais. Nunca haverá investigação ou punição para nenhum desses denunciados. Por
outro lado, os chefes dos órgãos de inteligência que perpetuavam essas práticas, serão
premiados com medalhas e títulos de honra dentro das Forças Armadas. Não à toa, nomes
como o de delegado Fleury e Brilhante Ustra foram das pessoas que mais ganharam
medalhas durante o Regime. Esse quadro ambíguo de negação da realidade combinada
com a premiação de quem executava essas torturas irá criar um solo fértil para o
crescimento da indisciplina dentro dos quartéis brasileiros, visto que os militares envolvidos
diretamente na prática da tortura se colocavam acima do restante dos quadros do Exército,
desrespeitando as patentes miltitares e assim indo frontalmente contra a “sagrada”
hierarquia militar. O autor traz diversos relatos, depoimentos e documentação oficial que
corroboram essa tese e uma passagem simbólica disso é referida pelo autor a partir de uma
entrevista feita por ele com Brilhante Ustra, que afirmou que “para que os tenentes possam
ter suas aulas de Tática em perfeita paz, outras pessoas precisam sujar suas mãos”
(adaptado por mim).
O livro caminha para seu fim abordando o começo da luta armada por parte das
esquerdas. Uma vez que a ideia de que o regime seria breve cai por terra, o PCB e as alas
radicais do PTB irão iniciar a formação de guerrilhas urbanas e rurais. Nem PCB e nem PTB
irão aderir oficialmente a isso, ocorrendo na verdade diversas rachas que irão criar uma
miríades de organizações paramilitares, que de forma mais ou menos autônoma e
independentes, irão pegar em Armas para enfrentar o Regime Militar. Se o sistema de
inteligência da Ditadura era falho devido a desorganização, mais falho ainda era a
organização da luta armada. A diversidade tática e organizacional dos que pretendiam
derrubar o governo militar por si só apontava a falha central das esquerdas: sua desunião.
Apesar de algum apoio cubano, soviético e chinês, nenhuma das organizações terá duração
longa e a maior parte delas será extinta a partir da chegada de Costa e Silva à presidência.
Seu governo será marcado por iniciar a fase mais dura da repressão da ditadura.
Nome forte da ala linha-dura, ele irá conquistar a liderança do país a partir de sua influência
dentro da alta cúpula das Forças Armadas e o apoio das indivíduos diretamente envolvidos
com a repressão e a tortura. Porém, sua inabilidade em lidar com o cenário político nacional
propiciou um endurecimento da repressão, como fica claro na seguinte passagem: “Como
observa Brian Crozier, especialista inglês no combate à subversão e discreto visitante do SNI
em 1964: ‘Os bons governos previnem o conflito, os maus o estimulam; os governos fortes o
desencorajam, e os governos fracos o tornam inevitável’. O governo do marechal Costa e Silva
era mau e fraco.”(pg 304) Durante seu governo ocorrerá o assassinato do estudante Edson
Luis, fato que deu muita força para a oposião civil, que tomará as ruas em passeatas,
greves e movimentações na sociedade. Isso criou o cenário perfeito para a imposição de
um novo dispositivo para ampliar a repressão e concretizar o que era desejado pelo ala
linha-dura: uma ditadura longa, que não pretendia devolver o poder aos políticos civis e que
iria exterminar qualquer pensamento de esquerda que existisse no Brasil. Esse dispositivo
infame atende pelo nome de Ato Institucional nº 05 e sua criação encerra o primeiro livro
dessa série. O livro acaba com um um clima de inconclusão, visto que é só o primeiro da
série que pretende analisar o Regime Militar, mas abre espaço para que a obra que lhe dá
sequência explique melhor essa nova fase de repressão inaugurada pelo AI-05.