Bourdieu e a teoria social1
Edward LiPuma2
Craig Calhoun3
Moishe Postone
Já há muito uma figura proeminente nas ciências sociais francesas, Pierre Bourdieu vai
se tornando cada vez mais influente internacionalmente. Em uma enxurrada de projetos
de pesquisa e publicações iniciada na década de 1950, Bourdieu abordou uma
surpreendente miríade de temas empíricos e teóricos. Publicou textos importantes sobre
educação, trabalho, relações de parentesco, mudança econômica, linguagem, filosofia,
literatura, fotografia, museus, universidades, direito, religião e ciências. Foi um
protagonista importante no desenvolvimento da “prática” como um conceito
organizacional em pesquisa social, destacou-se como talvez o maior defensor
contemporâneo da ciência social “reflexiva” e contribuiu crucialmente para intentar
suplantar
tais
oposições
teóricas
generalizadas
como
subjetivo/objetivo,
cultura/sociedade e estrutura/ação (ao introduzir o termo “estruturação” [structuration]
e muitos outros de uso comum hoje). Em toda sua obra, Bourdieu desenvolveu e segue
refinando uma abordagem particular da produção de conhecimento sociológico,
abordagem essa que, entre outras coisas, une conhecimento e reflexão teóricos
profundos com o desafio constante da pesquisa e análise empíricas.
Os ensaios apresentados nesse volume apresentam um encontro entre a prática
teórica de Pierre Bourdieu com várias vertentes da teoria social interdisciplinar angloamericana. Eles estabelecem os contornos essenciais do projeto bourdieusiano,
localizam seus conceitos analíticos na arena mais ampla da teoria social, e sugerem
algumas das questões envolvidas na conceitualização de aspectos determinados da vida
social a partir de tais conceitos.
As análises individuais assumem essas questões ao longo de três linhas
intercessoras. A primeira é a relação entre a estrutura social e a prática. Ganha
importância nevrálgica aqui a tentativa de Bourdieu de transcender o fosso entre as
* Tradução de Sergio Ricardo Oliveira.
1
LIPUMA, Edward; CALHOUN, Craig; POSTONE, Moishe. “Bourdieu and social theory
(Introduction)”. In: LIPUMA, Edward; CALHOUN, Craig; POSTONE, Moishe (eds.). Bourdieu: critical
perspectives. Cambridge, Oxford: Polity Press, 1993 pp. 1-13.
2
Professor associado de antropologia na University of Miami.
3
Professor de sociologia e história na University of North Carolina em Chapel Hill.
dimensões subjetivas e objetivas da vida social, que ele enxerga como um fosso entre o
conhecimento prático encarnado e estruturas aparentemente objetivas, que são
suscetíveis ao entendimento teórico. A segunda linha de investigação busca delinear e
esclarecer o conceito bourdieusiano de reflexividade, assim como seus conceitos
cruciais de habitus, capital e campo. A terceira linha de pesquisa diz respeito à interrelação entre estrutura social, sistemas de classificação e linguagem. Em todo o volume,
os colaboradores analisam como a tentativa de Bourdieu, que se move para além das
teorias existentes e desenvolve um novo aparelho conceitual, envolve problemáticas
centrais da teoria social e seu método.
Esses ensaios são autocontidos. Não obstante, porque eles se unem a partir de
referências constantes à obra de Bourdieu, pode ser útil uma breve introdução a seu
projeto teórico e a algo de seus conceitos essenciais.
Nascido em 1930 em Béarn, filho de um carteiro da cidade, Bourdieu completou
seus estudos na École normale supérieure em Paris. Graduado antropólogo no âmbito
da tradição estruturalista então dominante, produziu trabalho de campo na Argélia. Boa
parcela de sua pesquisa foi feita durante a Guerra da Argélia4 contra o domínio colonial
francês – uma experiência que impressionou Bourdieu por meio da relação entre
ciência, reflexão social e política. Ao regressar à França, foi gratificado com uma vaga
na Universidade de Lille, onde escreveu seus primeiros ensaios sobre a Argélia,
iniciando assim uma série de novos estudos, incluindo-se uma pesquisa sobre a sua
própria comunidade bearnense e a cultura popular francesa. Nesse mesmo período,
associou-se com Erving Goffman na qualidade de professor visitante no Institute for
Advanced Study da University of Pennsylvania. Do êxito em seus primeiros estudos
adveio uma vaga na École des hautes études en sciences sociales em Paris, onde mais
tarde foi designado a partir de seu próprio grupo de pesquisa no Center for European
sociology. No Centro, iniciou a organização do periódico Actes de la recherche en
sciences sociales que, desde 1975, foi o principal espaço para a publicação de sua
pesquisa, bem como a de seus colegas.
No início de sua carreira, ainda influenciado pelo estruturalismo, Bourdieu deu
início a um estudo teórico em que tentou desenvolver uma “teoria geral da cultura” do
ponto de vista saussureano. Tão logo se pôs a repensar criticamente os pressupostos
saussureanos – sobretudo a noção de que cultura e langue opõem-se a prática e parole –,
4
Trata-se da Guerra de Independência da Argélia travada entre 1954 e 1962 (N.T.).
2
abandonou o projeto e deu início a uma outra espécie de teoria, teoria essa da prática
cultural. Chegou à conclusão de que a teoria somente poderia ser desenvolvida se o
analista fosse capaz de transcender oposições e dicotomias herdadas, além das
limitações de visão que elas sempre implicam. As tentativas de Bourdieu de formular
essa abordagem teórica pouco ortodoxa seguiram institucionalmente em paralelo com
seus esforços em localizar e assegurar um espaço social que não se identifica
exclusivamente com nenhuma disciplina acadêmica em particular. É somente desse
lugar que Bourdieu sente que pode gerar uma crítica da teoria social clássica.
Para Bourdieu, a teoria social clássica se caracteriza por uma oposição entre
abordagens subjetivistas e objetivistas. As visões subjetivistas têm como centro de
gravidade as crenças, desejos e opiniões de agentes, considerando estes últimos dotados
e capacitados para criar o mundo e agir segundo suas próprias convicções. De outra
maneira, as visões objetivistas explicam o pensamento e ação sociais em matéria de
condições econômicas, estruturas sociais e lógicas culturais. Elas parecem transcender
como mais poderosa do que as construções, experiências e ações simbólicas dos
agentes.
Em dois de seus livros mais significativos, Esboço de uma teoria da prática e A
lógica da prática5, Bourdieu explora como o objetivismo (sobretudo o estruturalismo)
depende de pressupostos e orientações que não torna explícitos mesmo para si, e de
como uma versão do subjetivismo (vinculada a Sartre, mas também, de modo mais
geral, a abordagens fenomenológicas) ignora uma exploração adequada das condições
sociais objetivas que produzem orientações subjetivas para a ação. Nenhuma dessas
posturas poderia captar adequadamente a vida social. A vida social, diz Bourdieu, deve
ser entendida a partir de noções que façam justiça tanto a estruturas materiais objetivas,
culturais e sociais quanto a práticas e experiências constituintes de indivíduos e grupos.
Uma postura associada que Bourdieu procura suplantar em muitos de seus textos
é aquela entre o conhecimento teórico do mundo social conforme construído por
observadores externos e o conhecimento utilizado por aqueles que possuem um domínio
5
Os dois livros se repetem consideravelmente. O segundo representa uma reelaboração e ampliação feita
a partir do primeiro após quase uma década. Na verdade, ambos são sínteses temporárias de uma
orientação analítica que Bourdieu vinha desenvolvendo desde a década de 1960. Muitos de seus temas
foram apresentados pela primeira vez em vários artigos. A tradução relativamente tardia de Lógica da
prática (1990) faz parecê-la um tanto mais distante de Esboço de uma teoria da prática (1977) do que de
fato é. O título da tradução é na verdade uma concessão um tanto infeliz, que perde algo do sentido de Le
sens pratique.
3
prático de seu mundo. Ele tenta conceder validade a concepções locais sem
simplesmente tomá-las ao pé da letra.
Por fim, ao tentar transcender a oposição entre a ciência e o seu objeto, Bourdieu
a trata, e também os cientistas, como partes e produtos de seu universo social. O campo
científico não pode reivindicar nenhum privilégio especial em face de outros campos;
ele também se estrutura por forças relativamente a agentes que lutam para melhorar suas
posições. A ciência busca analisar a contribuição das concepções de agentes dirigidas à
construção da realidade social, enquanto reconhece que essas concepções muitas vezes
reconhecem mal aquela realidade social. Do mesmo modo, as construções dos cientistas
de sua própria realidade – o campo científico e as motivações para o comportamento
científico – muitas vezes não logram captar aquela realidade. Por conseguinte, é
essencial avançar e reafirmar uma ciência reflexiva da sociedade.
O projeto de Bourdieu, então, pode em geral ser descrito como uma tentativa
obstinada de suplantar teoricamente as oposições que caracterizaram a teoria social,
assim como se pôs a formular uma abordagem reflexiva da vida social. Três conceitos
fundamentais estão no centro desse projeto: “habitus”, “capital” e “campo”.
A noção de habitus é central para a teoria da prática bourdieusiana, que busca
transcender a oposição entre teorias que captam a prática somente como constituintes,
conforme expresso no individualismo ontológico e metodológico (fenomenologia), e
aquelas que enxergam a prática somente como constituídas, conforme exemplificado
pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, assim como pelo funcionalismo estrutural dos
descendentes de Durkheim. Para tanto, Bourdieu trata a vida social como uma interação
mutuamente constituinte de estruturas, disposições e ações em que as estruturas sociais
e o conhecimento encarnado (portanto, situado) daquelas estruturas produzem
orientações duradouras para a ação, as quais, por sua vez, são constitutivas das
estruturas sociais. Portanto, essas orientações são, ao mesmo tempo, “estruturas
estruturantes” e “estruturas estruturadas”; elas moldam ao passo que são moldadas pela
prática social. A prática, entretanto, não segue diretamente as orientações, ao modo dos
estudos de posturas. Na verdade, resulta de um processo que, por sua vez, se estrutura
por meio de orientações culturais, pelas trajetórias pessoais, bem como através da
capacidade de jogar o jogo da interação social.
Essa capacidade para a improvisação estruturada é o que Bourdieu chama
“habitus” (um termo que, assim como Norbert Elias, recobrou dos estudos clássicos).
Bourdieu caracteriza o habitus como um sistema de esquemas gerais geradores que são
4
tanto duráveis (inscritos na construção social do indivíduo) quanto transponíveis (que
vão de um campo a outro), funciona em um plano inconsciente e ocorre em um espaço
de possibilidades estruturado (definido pela interseção entre as condições materiais e os
campos de operação). O habitus é ao mesmo tempo intersubjetivo e o lugar da
constituição da pessoa-em-ação; trata-se de um sistema de disposições objetivo e
subjetivo. A ser assim, o habitus é a interseção dinâmica entre estrutura e ação,
sociedade e indivíduo. A noção de habitus permite a Bourdieu analisar o
comportamento regular dos agentes coordenados objetivamente sem que seja produto de
regras, por um lado, ou de uma racionalidade consciente, por outro. Foi designado para
capturar o domínio da prática que as pessoas apresentam em face de sua situação social,
enquanto fundamenta o próprio domínio socialmente.
A noção bourdieusiana de capital, nem marxiana nem formal economicamente,
envolve a capacidade do exercício do controle sobre o futuro de alguém e de outras
pessoas. Como tal, trata-se de uma forma de poder. Essa noção de capital também é
válida para mediar teoricamente indivíduo e sociedade. Em um nível, a sociedade se
estrutura por uma distribuição diferencial de capital, segundo Bourdieu. Em outro nível,
os indivíduos lutam para maximizar seu capital. (Isso não quer dizer que eles
apresentem uma ordem de preferência transitiva que procuram maximizar. Na verdade,
sem estarem cientes de algumas das possibilidades reais e sem serem capazes de se
beneficiar de outras possibilidades devido a seu habitus de classe, os agentes, entretanto,
buscam maximizar benefícios, dada a sua posição relacional em um determinado
campo.) O capital que são capazes de acumular define a sua trajetória social (isto é, suas
oportunidades na vida). Além disso, ele também serve para reproduzir distinções de
classe.
Boa parcela da obra bourdieusiana se concentra na interação entre o que ele
distingue como capital econômico, social e cultural. O capital econômico é a forma
mais eficiente de capital; traço característico do capitalismo, ele sozinho pode ser
transportado, a título de dinheiro geral, anônimo, conversível e multifuncional, de uma
geração para outra. O capital econômico pode ser mais eficiente e facilmente convertido
em capital simbólico (isto é, social e cultural) do que o oposto, ainda que o capital
simbólico possa, em última instância, se transformar em capital econômico. Desse
modo, Bourdieu se apropria de Marx e posiciona a classe no centro de sua análise da
sociedade moderna de modo a permitir uma determinação material da cultura e da
história.
5
Embora a esfera econômica seja crucialmente determinante, deve ser mediada
simbolicamente. A reprodução não-dissimulada do capital econômico revelaria o caráter
arbitrário da distribuição de poder e riqueza. O capital simbólico opera de modo a
mascarar a dominação econômica da classe dominante, além de legitimar socialmente a
hierarquia ao essencializar-se e naturalizar-se a posição social. Isto é, os campos nãoeconômicos articulam-se, reproduzem e legitimam as relações de classe por meio do
mal reconhecimento. A classe e o status, separados na visão weberiana, são interrelacionados para Bourdieu.
O objetivo do conceito bourdieusiano de campo é o de fornecer um quadro para
a “análise relacional”, por meio do qual ele apresenta uma descrição do espaço
multidimensional de posições e a tomada dessas posições pelos agentes. A posição de
um agente particular é o resultado de uma interação entre o habitus pessoal e seu lugar
em um campo de posições conforme definido pela distribuição da forma apropriada de
capital. A natureza e a faixa de posições possíveis variam social e historicamente.
Cada campo é semiautônomo, é caracterizado por seus agentes determinados
(por exemplo, alunos, escritores, cientistas), por seu acúmulo histórico, por sua própria
lógica de ação e por suas próprias formas de capital. Os campos, entretanto, não são
plenamente autônomos. As gratificações de capital obtidas em um campo podem se
transferir para outro. Além disso, cada campo se insere em um campo institucional de
poder e, em geral, no campo das relações de classe. Cada campo é um local de lutas. Ou
seja, há lutas em certos campos e há lutas pelo poder de definição de um campo. A
constituição de formas distintas de capital e sua convertibilidade em vários campos de
atividade tornam-se temas centrais de pesquisa.
Bourdieu inter-relaciona os três conceitos centrais que delineamos. Ele concebe
a prática social como a relação que se dá entre o habitus de classe e o capital atual
conforme realizado na lógica específica de um determinado campo. O capital de um
agente é justamente o produto do habitus, assim com a especificidade de um campo é
uma história objetificada que incorpora o habitus dos agentes que operaram naquele
campo. O habitus é autorreflexivo no sentido em que sempre se anima na prática, ele se
encontra como história incorporada e objetificada ao mesmo tempo.
Com base nesses três conceitos, Bourdieu tentou formular uma abordagem
reflexiva da vida social que desvela as condições arbitrárias de produção da estrutura
social e das disposições e posturas associadas a ela. Essa abordagem se vincula a uma
noção de emancipação. Para Bourdieu, o estudo das vidas humanas não seria válido se
6
não auxiliasse a que os agentes captassem o significado de suas ações. Sua abordagem
procura elucidar a reprodução cultural e social da desigualdade ao analisar processos de
mal reconhecimento: isto é, ao investigar como o habitus de grupos dominados pode
mascarar as condições de sua subordinação. Bourdieu se embrenhou nesse tema, por
meio de suas descrições sobre o conhecimento e sua transmissão (via sistema
educacional), de suas análises da constituição social da distinção, e de seus tratamentos
sobre a violência simbólica.
Sua abordagem é necessariamente reflexiva. Ele está ciente de que não há um
ponto fora do sistema a partir do qual pode-se obter uma perspectiva desinteressada e
neutra. Como teórico social, Bourdieu opera necessariamente nos campos em que
analisa; ele é tanto um analista da ciência e da sociedade quanto um ator nesses campos.
As reflexões de Bourdieu sobre seu próprio projeto e sua tomada de posição chama a
atenção de vários problemas envolvidos na busca por uma perspectiva reflexiva. Não
obstante, como ele claramente aponta, a reflexividade é uma condição de qualquer
teoria social crítica que tente suplantar os dualismos característicos do pensamento
social moderno. Foi isso que, em parte, levou Bourdieu a produzir um estudo gigantesco
das condições de produção do conhecimento acadêmico, da especialização técnica e do
poder burocrático na França contemporânea dos últimos anos.
***
Em meados da década de 1970, os textos mais relevantes de Bourdieu começaram a ser
traduzidos para o inglês. O momento não foi acidental. Naquela época, Bourdieu havia
conquistado uma posição central no mundo acadêmico francês e começava a alargar sua
influência no ensino e na fundação do Center for European sociology na École des
hautes études en sciences sociales em Paris. Nessa mesma época, uma nova geração de
acadêmicos em universidades anglo-americanas procurava novas orientações no
rescaldo das quebradeiras do fim da década de 1960. Particularmente, muitos
começaram a explorar as contribuições da teoria social francesa para além dos textos
muito influentes de Sartre, Lévi-Strauss e Althusser. Bourdieu, Michel Foucault e
Jacques Derrida foram sendo apropriados juntamente com outros de sua geração como
parte de uma onda de pensadores cujo esforço sucedeu o estruturalismo (do mesmo
modo que o estruturalismo havia sucedido o existencialismo).
Um dos efeitos da tradução, como a mera passagem de tempo, é o de retirar os
textos de seus contextos intelectuais originais e inseri-los em novos. Os efeitos
7
negativos desse processo são sobretudo evidentes no caso de Bourdieu. Particularmente,
a unidade dos textos de Bourdieu, seu desenvolvimento como método distintivo de
produção intelectual empregado em vários estudos de temas aparentemente diversos
empiricamente, foi em geral perdida. Essa perda foi estimulada pelo fato de que a
academia anglo-americana não contava com um campo interdisciplinar comparável às
“ciências humanas” francesas. Os livros que dividiam o mesmo espaço nas prateleiras
na categoria de “ciências humanas” em Paris foram dispersos para as seções
aparentemente autocontidas de livros sobre antropologia, sociologia, filosofia e
educação (no melhor das hipóteses), nas livrarias de Oxford, Berkeley e Chicago. Em
meados da década de 1970, Bourdieu ficou conhecido entre os antropólogos e
acadêmicos do Oriente Médio por conta de várias análises estruturalistas elegantes,
talvez pelo seu famoso estudo sobre a casa Kabyle6 e por sua breve etnografia, Argélia
19607. A colaboração de Bourdieu com Jean-Claude Passeron, Reprodução na
educação, na cultura e na sociedade, o firmou como “teórico da estratificação” na
sociologia e como “teórico da reprodução” na educação8. Tal quase não teve relação
alguma com sua análise sobre a Argélia. Quando Esboço de uma teoria da prática foi
publicado em língua inglesa em 1977, foi amplamente lido por antropólogos, mas
inicialmente foi praticamente ignorado pelos sociólogos. Conforme mostra Loïc
Wacquant neste volume, as leituras fragmentadas desse tipo seguiram atormentando a
recepção em língua inglesa da obra de Bourdieu.
Igualmente problemático foi que muitos leitores anglo-americanos foram lentos
para valorizar a organização do discurso intelectual francês que produziu as antinomias
que Bourdieu buscava suplantar, e que deu aos recursos que empregou o seu valor
específico. Consequentemente, eles nem sempre valorizaram como Bourdieu estava se
posicionando no campo intelectual. Por exemplo, quando Bourdieu era aluno, a vida
intelectual francesa era dominada por uma escolha aparentemente binária entre as
figuras imponentes de Lévi-Strauss e Sartre. Embora Bourdieu tivesse sido mais atraído
pelo estruturalismo lévistraussiano, que moldou imensamente sua obra, começou
relativamente cedo a questionar as certezas kantianas do estruturalismo (conforme
também o fez Foucault e Derrida de formas diferentes e em outras partes do campo
Conhecido em inglês como “The Kabyle house or the world reversed” [“A casa Kabyle ou o mundo
inverso”], apêndice de Lógica da prática. O texto original foi publicado em francês em 1970.
7
BOURDIEU, Pierre. Algeria 1960. Trans. R. Nice. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
8
BOURDIEU; Pierre; PASSERON Jean-Claude. Reproduction in education, society and culture.
London: Sage, 1977 [1970].
6
8
intelectual). O desafio de Bourdieu desembocou tanto no marxismo quanto na
fenomenologia.
Embora
moldada
pela
oposição
que
encontrou
entre
subjetivismo/existencialismo e objetivismo/estruturalismo, sua tentativa de desenvolver
uma teoria da prática volta-se a suplantar tais dicotomias em vez de reivindicar uma
posição entre elas.
O uso bourdieusiano de uma linguagem de estratégias largamente angloamericana é um exemplo disso. Observamos que ele desenvolveu a noção de habitus
com o propósito de escapar do dualismo das visões objetivistas e subjetivistas. Os
improvisos do habitus não são meramente respostas aos estímulos ambientais, segundo
Bourdieu. Trata-se de momentos estratégicos – que não meramente expressam as
intenções de atores individuais, mas são fundados estruturalmente. Eles são estratégias
do que Bourdieu chamou “acumulação de capital”. Para elaborar essa ideia, Bourdieu se
valeu de noções de Wittgenstein e Austin sobre o uso da linguagem como ação social,
assim como lançou mão do discurso anglo-americano de ação estratégica, sobretudo o
vocabulário da maximização econômica. Essa terminologia permitiu que Bourdieu
formulasse uma abordagem oposta às posturas existentes no debate francês. No entanto,
tal também lançou as bases para as leituras problemáticas de acadêmicos angloamericanos que eram capazes de compreender o uso bourdieusiano desses termos fora
de seu contexto discursivo francês, como se ele expressasse monoliticamente o
racionalismo estratégico do discurso – sobretudo economicista – anglo-americano9. E
uma vez que nunca podemos tratar a linguagem como um objeto totalmente neutro,
conforme declarava o próprio Bourdieu, foi atraído algumas vezes por essa linguagem
posta a uma análise racionalista puramente estratégica e calculista, até mais do que ele
poderia desejar. Nos últimos anos, ele achou por bem emitir mais rejeições objetivas de
perspectivas de escolha racional10.
***
Muitos ensaios que constam nesse volume recobram o conjunto de temas vinculados à
noção bourdieusiana de habitus e sua explicação da razão prática. Hubert Dreyfus e Paul
Rabinow situam Bourdieu na tradição da fenomenologia e do existencialismo: com seu
9
É sintomático que os teóricos da escolha racional estadunidense tenham inicialmente lido Bourdieu
como um teórico do capital humano, na verve de um Gary Becker. Ver a introdução de James Coleman a
Bourdieu e COLEMAN, James (ed.). Theory for a changing society. Boulder, Colo.: Westview Press,
1991.
10
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. An invitation to reflexive sociology. Chicago: Chicago
University Press; Cambridge: Polity, 1992.
9
conceito central de habitus, ele desenvolve proficuamente e especifica socialmente as
ideias gerais formuladas por Merleau-Ponty e Heidegger quanto à estrutura universal do
ser no mundo que caracteriza os seres humanos. Os textos sugerem, entretanto, que ao
atribuir um significado universal à ação humana (isto é, a maximização do capital
simbólico), Bourdieu estende a descrição objetiva para áreas que demandam uma
abordagem interpretativa, de modo a introduzir várias tensões em seu estudo. Aaron
Cicourel explora como a noção bourdieusiana de habitus responde à oposição entre
teorias estruturais e processuais do conhecimento e da prática social, argumentando que
ela fornece uma ferramenta conceitual poderosa para suplantar essa oposição teórica,
assim como para o exame no domínio da prática cotidiana. Não obstante, segundo
Cicourel, a noção de habitus poderia ser esclarecida e ampliada por refinamentos
conceituais e estudos empíricos – sobretudo com respeito à socialização da linguagem e
a como as crianças adquirem seus entendimentos de poder. Charles Taylor explora a
ampliação bourdieusiana de Wittgenstein e o seu uso de insights originados da tradição
fenomenológica postos a desenvolver uma explicação do entendimento prático, que
deve ser visto como incorporado e que também deve desafiar a divisão mente (criadora
de objetivos) e corpo (executor de objetivos), endêmica em boa parcela do pensamento
ocidental. Craig Calhoun pergunta o quão específica à prática ocidental é uma parte da
descrição crítica bourdieusiana, e diz que o habitus, a ação estratégica e a acumulação
de capital devem operar de modos distintos onde grandes sociedades altamente
diferenciadas
unem
campos
sociais
relativamente
autônomos
em
estruturas
heterogêneas. Edward LiPuma declara que, ao não articular uma noção desenvolvida de
ordem simbólica, Bourdieu introduz tensões em seu esforço de criação de uma teoria
social reflexiva. Contudo, embora o projeto bourdieusiano não faça muita justiça ao
conceito antropológico de cultura, poderia informar e ser informado proficuamente por
aquele conceito.
Não é à toa que a crítica bourdieusiana do subjetivismo e do objetivismo n’A
lógica da prática aparece com o título de “crítica da razão teórica”, significando tanto
um amplo desafio à sistematização teórica quanto uma tensão específica com Sartre.
Bourdieu sempre desconfiava estar diante do lado repressor e rígido da teorização
abstrata. Foi um crítico veemente de “teóricos de teorias” que tentam construir sistemas
sintéticos e abstratos, e que não se engajam em análises empíricas reais, mas apenas
fazem uso de argumentos abstratos. Neste sentido, apesar dos redirecionamentos
impressionantes da teoria social que produziu, não deixou que o rotulassem de teórico.
10
Rogers Brubaker sugere em seu ensaio que talvez fosse melhor enxergar Bourdieu como
quem exemplifica um determinado habitus teórico conforme vai produzindo uma série
de análises empíricas cognatas, em vez de tentar retirar os conceitos e proposições de
seus contextos analíticos (muitas vezes estratégicos e dicotômicos) de uso. Ao mesmo
tempo, Calhoun sugere que a rejeição do rótulo de “teórico” é em si uma escolha
estratégica bem definida, e que de outros pontos de vista Bourdieu tem mais em comum
com a tradição da teoria crítica do que a sua própria autoidentificação pública poderia
indicar.
Desde o início, as análises de Bourdieu das práticas sociais tinham o objetivo de
elucidar o funcionamento do poder social e oferecer um entendimento crítico – portanto,
nada neutro – da vida social. As análises de Bourdieu são críticas de muitas maneiras.
Variam da descrição das condições exploradoras do trabalho na Argélia colonial
(sobretudo em Travail et travailleurs en Algérie11) a uma crítica das categorias
existentes do conhecimento. Uma das grandes contribuições de Esboço e outros textos
da década de 1960 e 1970 foi a descrição da violência simbólica. Bourdieu mostrou os
caminhos pelos quais a nomeação era uma questão de força, por exemplo, e com a qual
a produção de certas categorias do entendimento determinava e sustentava as relações
de dominação. A autora Beate Krais retoma esse fio do argumento bourdieusiano em
seu ensaio e o desenvolve relativamente ao gênero, tema esse negligenciado nos
próprios estudos do autor.
A crítica bourdieusiana de categorias de análises levou a investigações de como
a língua é usada, assim como sobre o papel de instituições educacionais na reprodução
dessas categorias e das hierarquias sociais que elas sustentam. Ele desenvolveu essa
crítica em uma série de textos, incluindo-se Reprodução na educação, na cultura e na
sociedade e Homo academicus12. Este último é uma maneira de revelar como as
estruturas subjacentes do habitus intelectual e as instituições moldam o conteúdo e a
organização social da produção acadêmica. Essa crítica é de importância prática
imediata para a sociedade francesa, assim como a da produção de expertise no estudo
bourdieusiano das “grandes escolas”, La noblesse d’État13.
11
BOURDIEU, Pierre et al. Travail et travailleurs en Algérie. Paris: Raisons d’agir éditions, 2021
[1963].
12
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Reproduction in education, society and culture.
London: Sage, 1977 [1970]; BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Cambridge: Polity; Stanford:
Stanford University Press, 1988.
13
BOURDIEU, Pierre. La noblesse d’État: grand corps et grandes Écoles. Paris: Éditions de Minuit,
1989.
11
No presente volume, James Collins considera uma unidade nos textos
bourdieusianos sobre linguagem e educação, em geral lidos separadamente. Ele mostra,
em ambos, os mecanismos da reprodução, tema que predominou, além de discutir como
as contradições abrem possibilidades para a ação criativa e a mudança social. William
Hanks, ao contrário, identifica o fosso na descrição bourdieusiana da linguagem e em
estudos voltados para a prática do uso da língua em geral. Nessas abordagens, a
semântica, isto é, como a linguagem produz conteúdo significativo, é em geral ignorada
para favorecer descrições de seu uso social. Hanks declara que a sintaxe e a semântica
de uma língua estão intimamente relacionadas a seu uso prático. Portanto, uma análise
do uso prático não se opõe a uma análise do “significado”.
Muitos sentidos de crítica estão reunidos no extraordinário estudo bourdieusiano
das culturas de gosto francês, Distinction14. Aqui Bourdieu oferece uma crítica das
hierarquias e categorias culturais herdadas, incluindo-se um argumento de que a
dinâmica da elite governante e dos gostos populares não são muito diferentes. Isso se
alinha com o maior esforço para revelar a medida em que as categorias culturais se
vinculam a estruturas de dominação e estratégias de acumulação. Distinction também
constitui uma crítica à abordagem kantiana da estética, assim como do estreitamento
acadêmico que tal abordagem implica. Tanto LiPuma quanto Wacquant mostram,
entretanto, que a obra foi lida sem a atenção devida em face de sua teoria mais ampla, e
que apareceu como uma descrição estruturalista unilateral dos padrões de gosto. Ela
também, em alguma medida, foi reduzida ao gênero de estudos sociológicos da cultura
popular e, assim, destituída de sua força crítica essencial. Ironicamente, no contexto
anglo-americano é necessário reafirmar o lado teórico da obra de Bourdieu, ainda que
no contexto francês ele se concentre em sua base empírica. Sem um foco grande na
teoria (embora não seja o caso do sentido de construção do sistema), o momento crítico
dos estudos empíricos tende a se perder.
Um dos traços mais distintivos da obra bourdieusiana, em todo caso, sempre foi
a sua insistência em unir o esforço teórico e empírico a uma abordagem indissolúvel à
análise. Isso é outra instância de seu esforço de superação das dicotomias perniciosas.
Também é parte da ênfase bourdieusiana na necessidade de reconstituir a definição dos
objetos de análise, como parte essencial de cada esforço de pesquisa, em vez de aceitar
acriticamente tanto o uso do discurso acadêmico comum quanto o de outras construções
14
BOURDIEU, Pierre. Distinction: a social critique of the judgment of taste. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press; London: Routledge and Kegan Paul, 1989 [1979].
12
da realidade social. Não obstante, Cicourel questionou se Bourdieu é sempre reflexivo o
suficiente para a construção de seus dados e suas descrições empíricas. Ele também
sugere como abordar as questões empíricas relevantes pode contribuir para superar a
dicotomia entre abordagens processuais e estruturais, ao desenvolver as ideias
bourdieusianas de poder simbólico e habitus.
Em seu ensaio, Nicholas Garnhan aponta uma falta surpreendente na obra de
Bourdieu. Para todos os estudos bourdieusianos sobre organização e reprodução da
cultura, ele tinha notavelmente pouco a dizer sobre as mídias, sobretudo as mídias
eletrônicas modernas. Garnhan mostra, no entanto, que as categorias bourdieusianas
podem ser úteis para formular uma teoria crítica que não conta com uma arbitrariedade
essencial do conteúdo cultural, mas analisa as implicações estruturais sociais da
programação televisiva. Esse tema é retomado no capítulo de Scott Lash, no qual a
atenção às mídias é componente de uma análise mais ampla de como a obra de
Bourdieu permite a descrição da mudança cultural, que é fundada em uma economia da
produção cultural, em vez de se contar com asserções menos teorizadas sobre conteúdos
mutantes.
Em suas considerações finais, o próprio Bourdieu discute o “modo de produção
intelectual” que caracteriza sua obra. Ele aborda algumas fontes potenciais das
incoerências relativas à circulação internacional de ideias e ilustra a importância do
modo específico e das condições de sua própria produção intelectual com o exemplo de
seu estudo sobre arte. Por fim, oferece uma defesa de sua obra contra o que ele chama
de leituras “teoriticistas” e a reivindicação de que desenvolve uma ontologia histórica.
Uma das tarefas mais desafiadoras da organização desse livro foi estabelecer
uma ordem para os capítulos. Isso, em parte, se dá porque a obra bourdieusiana resiste à
simples ordenação de prioridade de conceitos ou temas. É, portanto, necessário ter um
entendimento relativamente amplo e multidimensional de sua obra para abordar
qualquer de suas partes específicas. Não podemos, é claro, oferecer isso em uma
introdução. Nem intencionamos que esse livro o fizesse. Reconhecemos, por exemplo,
que a estética – uma importante dimensão dos textos de Bourdieu, especialmente sobre
literatura e artes visuais – é sub-representada. Nem tentamos oferecer um guia amplo
para a sua obra. Esse guia pode ser encontrado em muitas introduções agora disponíveis
na imprensa15. Bourdieu, ele mesmo, juntamente com Loïc Wacquant, produziu uma
15
Ver ROBBINS, Derek. The work of Pierre Bourdieu. Boulder, Colo.: Westview, 1991; HARKER,
Richard; MAHAR, Cheleen; WILKES, Chris. An introduction to the works of Pierre Bourdieu: the
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discussão mais abrangente de sua obra – em Convite à sociologia reflexiva16. O que
achamos que esse volume de fato oferece é um engajamento na obra bourdieusiana fiel
a seu caráter multidimensional, multidisciplinar, e que relaciona vários temas principais
e contribuições conceituais do autor aos discursos da teoria social e cultural no mundo
anglo-americano.
practice of theory. New York: St. Martin’s, 1990; SWARTZ, David. Culture and domination: the social
theory of Pierre Bourdieu (em preparação).
16
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. An invitation to reflexive sociology. Chicago: Chicago
University Press; Cambridge: Polity, 1992.
14