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Bourdieu e a teoria social - Moishe Postone et al. (2024)

Já há muito uma figura proeminente nas ciências sociais francesas, Pierre Bourdieu vai se tornando cada vez mais influente internacionalmente. Em uma enxurrada de projetos de pesquisa e publicações iniciada na década de 1950, Bourdieu abordou uma surpreendente miríade de temas empíricos e teóricos. Publicou textos importantes sobre educação, trabalho, relações de parentesco, mudança econômica, linguagem, filosofia, literatura, fotografia, museus, universidades, direito, religião e ciências. Foi um

Bourdieu e a teoria social1 Edward LiPuma2 Craig Calhoun3 Moishe Postone Já há muito uma figura proeminente nas ciências sociais francesas, Pierre Bourdieu vai se tornando cada vez mais influente internacionalmente. Em uma enxurrada de projetos de pesquisa e publicações iniciada na década de 1950, Bourdieu abordou uma surpreendente miríade de temas empíricos e teóricos. Publicou textos importantes sobre educação, trabalho, relações de parentesco, mudança econômica, linguagem, filosofia, literatura, fotografia, museus, universidades, direito, religião e ciências. Foi um protagonista importante no desenvolvimento da “prática” como um conceito organizacional em pesquisa social, destacou-se como talvez o maior defensor contemporâneo da ciência social “reflexiva” e contribuiu crucialmente para intentar suplantar tais oposições teóricas generalizadas como subjetivo/objetivo, cultura/sociedade e estrutura/ação (ao introduzir o termo “estruturação” [structuration] e muitos outros de uso comum hoje). Em toda sua obra, Bourdieu desenvolveu e segue refinando uma abordagem particular da produção de conhecimento sociológico, abordagem essa que, entre outras coisas, une conhecimento e reflexão teóricos profundos com o desafio constante da pesquisa e análise empíricas. Os ensaios apresentados nesse volume apresentam um encontro entre a prática teórica de Pierre Bourdieu com várias vertentes da teoria social interdisciplinar angloamericana. Eles estabelecem os contornos essenciais do projeto bourdieusiano, localizam seus conceitos analíticos na arena mais ampla da teoria social, e sugerem algumas das questões envolvidas na conceitualização de aspectos determinados da vida social a partir de tais conceitos. As análises individuais assumem essas questões ao longo de três linhas intercessoras. A primeira é a relação entre a estrutura social e a prática. Ganha importância nevrálgica aqui a tentativa de Bourdieu de transcender o fosso entre as * Tradução de Sergio Ricardo Oliveira. 1 LIPUMA, Edward; CALHOUN, Craig; POSTONE, Moishe. “Bourdieu and social theory (Introduction)”. In: LIPUMA, Edward; CALHOUN, Craig; POSTONE, Moishe (eds.). Bourdieu: critical perspectives. Cambridge, Oxford: Polity Press, 1993 pp. 1-13. 2 Professor associado de antropologia na University of Miami. 3 Professor de sociologia e história na University of North Carolina em Chapel Hill. dimensões subjetivas e objetivas da vida social, que ele enxerga como um fosso entre o conhecimento prático encarnado e estruturas aparentemente objetivas, que são suscetíveis ao entendimento teórico. A segunda linha de investigação busca delinear e esclarecer o conceito bourdieusiano de reflexividade, assim como seus conceitos cruciais de habitus, capital e campo. A terceira linha de pesquisa diz respeito à interrelação entre estrutura social, sistemas de classificação e linguagem. Em todo o volume, os colaboradores analisam como a tentativa de Bourdieu, que se move para além das teorias existentes e desenvolve um novo aparelho conceitual, envolve problemáticas centrais da teoria social e seu método. Esses ensaios são autocontidos. Não obstante, porque eles se unem a partir de referências constantes à obra de Bourdieu, pode ser útil uma breve introdução a seu projeto teórico e a algo de seus conceitos essenciais. Nascido em 1930 em Béarn, filho de um carteiro da cidade, Bourdieu completou seus estudos na École normale supérieure em Paris. Graduado antropólogo no âmbito da tradição estruturalista então dominante, produziu trabalho de campo na Argélia. Boa parcela de sua pesquisa foi feita durante a Guerra da Argélia4 contra o domínio colonial francês – uma experiência que impressionou Bourdieu por meio da relação entre ciência, reflexão social e política. Ao regressar à França, foi gratificado com uma vaga na Universidade de Lille, onde escreveu seus primeiros ensaios sobre a Argélia, iniciando assim uma série de novos estudos, incluindo-se uma pesquisa sobre a sua própria comunidade bearnense e a cultura popular francesa. Nesse mesmo período, associou-se com Erving Goffman na qualidade de professor visitante no Institute for Advanced Study da University of Pennsylvania. Do êxito em seus primeiros estudos adveio uma vaga na École des hautes études en sciences sociales em Paris, onde mais tarde foi designado a partir de seu próprio grupo de pesquisa no Center for European sociology. No Centro, iniciou a organização do periódico Actes de la recherche en sciences sociales que, desde 1975, foi o principal espaço para a publicação de sua pesquisa, bem como a de seus colegas. No início de sua carreira, ainda influenciado pelo estruturalismo, Bourdieu deu início a um estudo teórico em que tentou desenvolver uma “teoria geral da cultura” do ponto de vista saussureano. Tão logo se pôs a repensar criticamente os pressupostos saussureanos – sobretudo a noção de que cultura e langue opõem-se a prática e parole –, 4 Trata-se da Guerra de Independência da Argélia travada entre 1954 e 1962 (N.T.). 2 abandonou o projeto e deu início a uma outra espécie de teoria, teoria essa da prática cultural. Chegou à conclusão de que a teoria somente poderia ser desenvolvida se o analista fosse capaz de transcender oposições e dicotomias herdadas, além das limitações de visão que elas sempre implicam. As tentativas de Bourdieu de formular essa abordagem teórica pouco ortodoxa seguiram institucionalmente em paralelo com seus esforços em localizar e assegurar um espaço social que não se identifica exclusivamente com nenhuma disciplina acadêmica em particular. É somente desse lugar que Bourdieu sente que pode gerar uma crítica da teoria social clássica. Para Bourdieu, a teoria social clássica se caracteriza por uma oposição entre abordagens subjetivistas e objetivistas. As visões subjetivistas têm como centro de gravidade as crenças, desejos e opiniões de agentes, considerando estes últimos dotados e capacitados para criar o mundo e agir segundo suas próprias convicções. De outra maneira, as visões objetivistas explicam o pensamento e ação sociais em matéria de condições econômicas, estruturas sociais e lógicas culturais. Elas parecem transcender como mais poderosa do que as construções, experiências e ações simbólicas dos agentes. Em dois de seus livros mais significativos, Esboço de uma teoria da prática e A lógica da prática5, Bourdieu explora como o objetivismo (sobretudo o estruturalismo) depende de pressupostos e orientações que não torna explícitos mesmo para si, e de como uma versão do subjetivismo (vinculada a Sartre, mas também, de modo mais geral, a abordagens fenomenológicas) ignora uma exploração adequada das condições sociais objetivas que produzem orientações subjetivas para a ação. Nenhuma dessas posturas poderia captar adequadamente a vida social. A vida social, diz Bourdieu, deve ser entendida a partir de noções que façam justiça tanto a estruturas materiais objetivas, culturais e sociais quanto a práticas e experiências constituintes de indivíduos e grupos. Uma postura associada que Bourdieu procura suplantar em muitos de seus textos é aquela entre o conhecimento teórico do mundo social conforme construído por observadores externos e o conhecimento utilizado por aqueles que possuem um domínio 5 Os dois livros se repetem consideravelmente. O segundo representa uma reelaboração e ampliação feita a partir do primeiro após quase uma década. Na verdade, ambos são sínteses temporárias de uma orientação analítica que Bourdieu vinha desenvolvendo desde a década de 1960. Muitos de seus temas foram apresentados pela primeira vez em vários artigos. A tradução relativamente tardia de Lógica da prática (1990) faz parecê-la um tanto mais distante de Esboço de uma teoria da prática (1977) do que de fato é. O título da tradução é na verdade uma concessão um tanto infeliz, que perde algo do sentido de Le sens pratique. 3 prático de seu mundo. Ele tenta conceder validade a concepções locais sem simplesmente tomá-las ao pé da letra. Por fim, ao tentar transcender a oposição entre a ciência e o seu objeto, Bourdieu a trata, e também os cientistas, como partes e produtos de seu universo social. O campo científico não pode reivindicar nenhum privilégio especial em face de outros campos; ele também se estrutura por forças relativamente a agentes que lutam para melhorar suas posições. A ciência busca analisar a contribuição das concepções de agentes dirigidas à construção da realidade social, enquanto reconhece que essas concepções muitas vezes reconhecem mal aquela realidade social. Do mesmo modo, as construções dos cientistas de sua própria realidade – o campo científico e as motivações para o comportamento científico – muitas vezes não logram captar aquela realidade. Por conseguinte, é essencial avançar e reafirmar uma ciência reflexiva da sociedade. O projeto de Bourdieu, então, pode em geral ser descrito como uma tentativa obstinada de suplantar teoricamente as oposições que caracterizaram a teoria social, assim como se pôs a formular uma abordagem reflexiva da vida social. Três conceitos fundamentais estão no centro desse projeto: “habitus”, “capital” e “campo”. A noção de habitus é central para a teoria da prática bourdieusiana, que busca transcender a oposição entre teorias que captam a prática somente como constituintes, conforme expresso no individualismo ontológico e metodológico (fenomenologia), e aquelas que enxergam a prática somente como constituídas, conforme exemplificado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, assim como pelo funcionalismo estrutural dos descendentes de Durkheim. Para tanto, Bourdieu trata a vida social como uma interação mutuamente constituinte de estruturas, disposições e ações em que as estruturas sociais e o conhecimento encarnado (portanto, situado) daquelas estruturas produzem orientações duradouras para a ação, as quais, por sua vez, são constitutivas das estruturas sociais. Portanto, essas orientações são, ao mesmo tempo, “estruturas estruturantes” e “estruturas estruturadas”; elas moldam ao passo que são moldadas pela prática social. A prática, entretanto, não segue diretamente as orientações, ao modo dos estudos de posturas. Na verdade, resulta de um processo que, por sua vez, se estrutura por meio de orientações culturais, pelas trajetórias pessoais, bem como através da capacidade de jogar o jogo da interação social. Essa capacidade para a improvisação estruturada é o que Bourdieu chama “habitus” (um termo que, assim como Norbert Elias, recobrou dos estudos clássicos). Bourdieu caracteriza o habitus como um sistema de esquemas gerais geradores que são 4 tanto duráveis (inscritos na construção social do indivíduo) quanto transponíveis (que vão de um campo a outro), funciona em um plano inconsciente e ocorre em um espaço de possibilidades estruturado (definido pela interseção entre as condições materiais e os campos de operação). O habitus é ao mesmo tempo intersubjetivo e o lugar da constituição da pessoa-em-ação; trata-se de um sistema de disposições objetivo e subjetivo. A ser assim, o habitus é a interseção dinâmica entre estrutura e ação, sociedade e indivíduo. A noção de habitus permite a Bourdieu analisar o comportamento regular dos agentes coordenados objetivamente sem que seja produto de regras, por um lado, ou de uma racionalidade consciente, por outro. Foi designado para capturar o domínio da prática que as pessoas apresentam em face de sua situação social, enquanto fundamenta o próprio domínio socialmente. A noção bourdieusiana de capital, nem marxiana nem formal economicamente, envolve a capacidade do exercício do controle sobre o futuro de alguém e de outras pessoas. Como tal, trata-se de uma forma de poder. Essa noção de capital também é válida para mediar teoricamente indivíduo e sociedade. Em um nível, a sociedade se estrutura por uma distribuição diferencial de capital, segundo Bourdieu. Em outro nível, os indivíduos lutam para maximizar seu capital. (Isso não quer dizer que eles apresentem uma ordem de preferência transitiva que procuram maximizar. Na verdade, sem estarem cientes de algumas das possibilidades reais e sem serem capazes de se beneficiar de outras possibilidades devido a seu habitus de classe, os agentes, entretanto, buscam maximizar benefícios, dada a sua posição relacional em um determinado campo.) O capital que são capazes de acumular define a sua trajetória social (isto é, suas oportunidades na vida). Além disso, ele também serve para reproduzir distinções de classe. Boa parcela da obra bourdieusiana se concentra na interação entre o que ele distingue como capital econômico, social e cultural. O capital econômico é a forma mais eficiente de capital; traço característico do capitalismo, ele sozinho pode ser transportado, a título de dinheiro geral, anônimo, conversível e multifuncional, de uma geração para outra. O capital econômico pode ser mais eficiente e facilmente convertido em capital simbólico (isto é, social e cultural) do que o oposto, ainda que o capital simbólico possa, em última instância, se transformar em capital econômico. Desse modo, Bourdieu se apropria de Marx e posiciona a classe no centro de sua análise da sociedade moderna de modo a permitir uma determinação material da cultura e da história. 5 Embora a esfera econômica seja crucialmente determinante, deve ser mediada simbolicamente. A reprodução não-dissimulada do capital econômico revelaria o caráter arbitrário da distribuição de poder e riqueza. O capital simbólico opera de modo a mascarar a dominação econômica da classe dominante, além de legitimar socialmente a hierarquia ao essencializar-se e naturalizar-se a posição social. Isto é, os campos nãoeconômicos articulam-se, reproduzem e legitimam as relações de classe por meio do mal reconhecimento. A classe e o status, separados na visão weberiana, são interrelacionados para Bourdieu. O objetivo do conceito bourdieusiano de campo é o de fornecer um quadro para a “análise relacional”, por meio do qual ele apresenta uma descrição do espaço multidimensional de posições e a tomada dessas posições pelos agentes. A posição de um agente particular é o resultado de uma interação entre o habitus pessoal e seu lugar em um campo de posições conforme definido pela distribuição da forma apropriada de capital. A natureza e a faixa de posições possíveis variam social e historicamente. Cada campo é semiautônomo, é caracterizado por seus agentes determinados (por exemplo, alunos, escritores, cientistas), por seu acúmulo histórico, por sua própria lógica de ação e por suas próprias formas de capital. Os campos, entretanto, não são plenamente autônomos. As gratificações de capital obtidas em um campo podem se transferir para outro. Além disso, cada campo se insere em um campo institucional de poder e, em geral, no campo das relações de classe. Cada campo é um local de lutas. Ou seja, há lutas em certos campos e há lutas pelo poder de definição de um campo. A constituição de formas distintas de capital e sua convertibilidade em vários campos de atividade tornam-se temas centrais de pesquisa. Bourdieu inter-relaciona os três conceitos centrais que delineamos. Ele concebe a prática social como a relação que se dá entre o habitus de classe e o capital atual conforme realizado na lógica específica de um determinado campo. O capital de um agente é justamente o produto do habitus, assim com a especificidade de um campo é uma história objetificada que incorpora o habitus dos agentes que operaram naquele campo. O habitus é autorreflexivo no sentido em que sempre se anima na prática, ele se encontra como história incorporada e objetificada ao mesmo tempo. Com base nesses três conceitos, Bourdieu tentou formular uma abordagem reflexiva da vida social que desvela as condições arbitrárias de produção da estrutura social e das disposições e posturas associadas a ela. Essa abordagem se vincula a uma noção de emancipação. Para Bourdieu, o estudo das vidas humanas não seria válido se 6 não auxiliasse a que os agentes captassem o significado de suas ações. Sua abordagem procura elucidar a reprodução cultural e social da desigualdade ao analisar processos de mal reconhecimento: isto é, ao investigar como o habitus de grupos dominados pode mascarar as condições de sua subordinação. Bourdieu se embrenhou nesse tema, por meio de suas descrições sobre o conhecimento e sua transmissão (via sistema educacional), de suas análises da constituição social da distinção, e de seus tratamentos sobre a violência simbólica. Sua abordagem é necessariamente reflexiva. Ele está ciente de que não há um ponto fora do sistema a partir do qual pode-se obter uma perspectiva desinteressada e neutra. Como teórico social, Bourdieu opera necessariamente nos campos em que analisa; ele é tanto um analista da ciência e da sociedade quanto um ator nesses campos. As reflexões de Bourdieu sobre seu próprio projeto e sua tomada de posição chama a atenção de vários problemas envolvidos na busca por uma perspectiva reflexiva. Não obstante, como ele claramente aponta, a reflexividade é uma condição de qualquer teoria social crítica que tente suplantar os dualismos característicos do pensamento social moderno. Foi isso que, em parte, levou Bourdieu a produzir um estudo gigantesco das condições de produção do conhecimento acadêmico, da especialização técnica e do poder burocrático na França contemporânea dos últimos anos. *** Em meados da década de 1970, os textos mais relevantes de Bourdieu começaram a ser traduzidos para o inglês. O momento não foi acidental. Naquela época, Bourdieu havia conquistado uma posição central no mundo acadêmico francês e começava a alargar sua influência no ensino e na fundação do Center for European sociology na École des hautes études en sciences sociales em Paris. Nessa mesma época, uma nova geração de acadêmicos em universidades anglo-americanas procurava novas orientações no rescaldo das quebradeiras do fim da década de 1960. Particularmente, muitos começaram a explorar as contribuições da teoria social francesa para além dos textos muito influentes de Sartre, Lévi-Strauss e Althusser. Bourdieu, Michel Foucault e Jacques Derrida foram sendo apropriados juntamente com outros de sua geração como parte de uma onda de pensadores cujo esforço sucedeu o estruturalismo (do mesmo modo que o estruturalismo havia sucedido o existencialismo). Um dos efeitos da tradução, como a mera passagem de tempo, é o de retirar os textos de seus contextos intelectuais originais e inseri-los em novos. Os efeitos 7 negativos desse processo são sobretudo evidentes no caso de Bourdieu. Particularmente, a unidade dos textos de Bourdieu, seu desenvolvimento como método distintivo de produção intelectual empregado em vários estudos de temas aparentemente diversos empiricamente, foi em geral perdida. Essa perda foi estimulada pelo fato de que a academia anglo-americana não contava com um campo interdisciplinar comparável às “ciências humanas” francesas. Os livros que dividiam o mesmo espaço nas prateleiras na categoria de “ciências humanas” em Paris foram dispersos para as seções aparentemente autocontidas de livros sobre antropologia, sociologia, filosofia e educação (no melhor das hipóteses), nas livrarias de Oxford, Berkeley e Chicago. Em meados da década de 1970, Bourdieu ficou conhecido entre os antropólogos e acadêmicos do Oriente Médio por conta de várias análises estruturalistas elegantes, talvez pelo seu famoso estudo sobre a casa Kabyle6 e por sua breve etnografia, Argélia 19607. A colaboração de Bourdieu com Jean-Claude Passeron, Reprodução na educação, na cultura e na sociedade, o firmou como “teórico da estratificação” na sociologia e como “teórico da reprodução” na educação8. Tal quase não teve relação alguma com sua análise sobre a Argélia. Quando Esboço de uma teoria da prática foi publicado em língua inglesa em 1977, foi amplamente lido por antropólogos, mas inicialmente foi praticamente ignorado pelos sociólogos. Conforme mostra Loïc Wacquant neste volume, as leituras fragmentadas desse tipo seguiram atormentando a recepção em língua inglesa da obra de Bourdieu. Igualmente problemático foi que muitos leitores anglo-americanos foram lentos para valorizar a organização do discurso intelectual francês que produziu as antinomias que Bourdieu buscava suplantar, e que deu aos recursos que empregou o seu valor específico. Consequentemente, eles nem sempre valorizaram como Bourdieu estava se posicionando no campo intelectual. Por exemplo, quando Bourdieu era aluno, a vida intelectual francesa era dominada por uma escolha aparentemente binária entre as figuras imponentes de Lévi-Strauss e Sartre. Embora Bourdieu tivesse sido mais atraído pelo estruturalismo lévistraussiano, que moldou imensamente sua obra, começou relativamente cedo a questionar as certezas kantianas do estruturalismo (conforme também o fez Foucault e Derrida de formas diferentes e em outras partes do campo Conhecido em inglês como “The Kabyle house or the world reversed” [“A casa Kabyle ou o mundo inverso”], apêndice de Lógica da prática. O texto original foi publicado em francês em 1970. 7 BOURDIEU, Pierre. Algeria 1960. Trans. R. Nice. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. 8 BOURDIEU; Pierre; PASSERON Jean-Claude. Reproduction in education, society and culture. London: Sage, 1977 [1970]. 6 8 intelectual). O desafio de Bourdieu desembocou tanto no marxismo quanto na fenomenologia. Embora moldada pela oposição que encontrou entre subjetivismo/existencialismo e objetivismo/estruturalismo, sua tentativa de desenvolver uma teoria da prática volta-se a suplantar tais dicotomias em vez de reivindicar uma posição entre elas. O uso bourdieusiano de uma linguagem de estratégias largamente angloamericana é um exemplo disso. Observamos que ele desenvolveu a noção de habitus com o propósito de escapar do dualismo das visões objetivistas e subjetivistas. Os improvisos do habitus não são meramente respostas aos estímulos ambientais, segundo Bourdieu. Trata-se de momentos estratégicos – que não meramente expressam as intenções de atores individuais, mas são fundados estruturalmente. Eles são estratégias do que Bourdieu chamou “acumulação de capital”. Para elaborar essa ideia, Bourdieu se valeu de noções de Wittgenstein e Austin sobre o uso da linguagem como ação social, assim como lançou mão do discurso anglo-americano de ação estratégica, sobretudo o vocabulário da maximização econômica. Essa terminologia permitiu que Bourdieu formulasse uma abordagem oposta às posturas existentes no debate francês. No entanto, tal também lançou as bases para as leituras problemáticas de acadêmicos angloamericanos que eram capazes de compreender o uso bourdieusiano desses termos fora de seu contexto discursivo francês, como se ele expressasse monoliticamente o racionalismo estratégico do discurso – sobretudo economicista – anglo-americano9. E uma vez que nunca podemos tratar a linguagem como um objeto totalmente neutro, conforme declarava o próprio Bourdieu, foi atraído algumas vezes por essa linguagem posta a uma análise racionalista puramente estratégica e calculista, até mais do que ele poderia desejar. Nos últimos anos, ele achou por bem emitir mais rejeições objetivas de perspectivas de escolha racional10. *** Muitos ensaios que constam nesse volume recobram o conjunto de temas vinculados à noção bourdieusiana de habitus e sua explicação da razão prática. Hubert Dreyfus e Paul Rabinow situam Bourdieu na tradição da fenomenologia e do existencialismo: com seu 9 É sintomático que os teóricos da escolha racional estadunidense tenham inicialmente lido Bourdieu como um teórico do capital humano, na verve de um Gary Becker. Ver a introdução de James Coleman a Bourdieu e COLEMAN, James (ed.). Theory for a changing society. Boulder, Colo.: Westview Press, 1991. 10 BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. An invitation to reflexive sociology. Chicago: Chicago University Press; Cambridge: Polity, 1992. 9 conceito central de habitus, ele desenvolve proficuamente e especifica socialmente as ideias gerais formuladas por Merleau-Ponty e Heidegger quanto à estrutura universal do ser no mundo que caracteriza os seres humanos. Os textos sugerem, entretanto, que ao atribuir um significado universal à ação humana (isto é, a maximização do capital simbólico), Bourdieu estende a descrição objetiva para áreas que demandam uma abordagem interpretativa, de modo a introduzir várias tensões em seu estudo. Aaron Cicourel explora como a noção bourdieusiana de habitus responde à oposição entre teorias estruturais e processuais do conhecimento e da prática social, argumentando que ela fornece uma ferramenta conceitual poderosa para suplantar essa oposição teórica, assim como para o exame no domínio da prática cotidiana. Não obstante, segundo Cicourel, a noção de habitus poderia ser esclarecida e ampliada por refinamentos conceituais e estudos empíricos – sobretudo com respeito à socialização da linguagem e a como as crianças adquirem seus entendimentos de poder. Charles Taylor explora a ampliação bourdieusiana de Wittgenstein e o seu uso de insights originados da tradição fenomenológica postos a desenvolver uma explicação do entendimento prático, que deve ser visto como incorporado e que também deve desafiar a divisão mente (criadora de objetivos) e corpo (executor de objetivos), endêmica em boa parcela do pensamento ocidental. Craig Calhoun pergunta o quão específica à prática ocidental é uma parte da descrição crítica bourdieusiana, e diz que o habitus, a ação estratégica e a acumulação de capital devem operar de modos distintos onde grandes sociedades altamente diferenciadas unem campos sociais relativamente autônomos em estruturas heterogêneas. Edward LiPuma declara que, ao não articular uma noção desenvolvida de ordem simbólica, Bourdieu introduz tensões em seu esforço de criação de uma teoria social reflexiva. Contudo, embora o projeto bourdieusiano não faça muita justiça ao conceito antropológico de cultura, poderia informar e ser informado proficuamente por aquele conceito. Não é à toa que a crítica bourdieusiana do subjetivismo e do objetivismo n’A lógica da prática aparece com o título de “crítica da razão teórica”, significando tanto um amplo desafio à sistematização teórica quanto uma tensão específica com Sartre. Bourdieu sempre desconfiava estar diante do lado repressor e rígido da teorização abstrata. Foi um crítico veemente de “teóricos de teorias” que tentam construir sistemas sintéticos e abstratos, e que não se engajam em análises empíricas reais, mas apenas fazem uso de argumentos abstratos. Neste sentido, apesar dos redirecionamentos impressionantes da teoria social que produziu, não deixou que o rotulassem de teórico. 10 Rogers Brubaker sugere em seu ensaio que talvez fosse melhor enxergar Bourdieu como quem exemplifica um determinado habitus teórico conforme vai produzindo uma série de análises empíricas cognatas, em vez de tentar retirar os conceitos e proposições de seus contextos analíticos (muitas vezes estratégicos e dicotômicos) de uso. Ao mesmo tempo, Calhoun sugere que a rejeição do rótulo de “teórico” é em si uma escolha estratégica bem definida, e que de outros pontos de vista Bourdieu tem mais em comum com a tradição da teoria crítica do que a sua própria autoidentificação pública poderia indicar. Desde o início, as análises de Bourdieu das práticas sociais tinham o objetivo de elucidar o funcionamento do poder social e oferecer um entendimento crítico – portanto, nada neutro – da vida social. As análises de Bourdieu são críticas de muitas maneiras. Variam da descrição das condições exploradoras do trabalho na Argélia colonial (sobretudo em Travail et travailleurs en Algérie11) a uma crítica das categorias existentes do conhecimento. Uma das grandes contribuições de Esboço e outros textos da década de 1960 e 1970 foi a descrição da violência simbólica. Bourdieu mostrou os caminhos pelos quais a nomeação era uma questão de força, por exemplo, e com a qual a produção de certas categorias do entendimento determinava e sustentava as relações de dominação. A autora Beate Krais retoma esse fio do argumento bourdieusiano em seu ensaio e o desenvolve relativamente ao gênero, tema esse negligenciado nos próprios estudos do autor. A crítica bourdieusiana de categorias de análises levou a investigações de como a língua é usada, assim como sobre o papel de instituições educacionais na reprodução dessas categorias e das hierarquias sociais que elas sustentam. Ele desenvolveu essa crítica em uma série de textos, incluindo-se Reprodução na educação, na cultura e na sociedade e Homo academicus12. Este último é uma maneira de revelar como as estruturas subjacentes do habitus intelectual e as instituições moldam o conteúdo e a organização social da produção acadêmica. Essa crítica é de importância prática imediata para a sociedade francesa, assim como a da produção de expertise no estudo bourdieusiano das “grandes escolas”, La noblesse d’État13. 11 BOURDIEU, Pierre et al. Travail et travailleurs en Algérie. Paris: Raisons d’agir éditions, 2021 [1963]. 12 BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Reproduction in education, society and culture. London: Sage, 1977 [1970]; BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Cambridge: Polity; Stanford: Stanford University Press, 1988. 13 BOURDIEU, Pierre. La noblesse d’État: grand corps et grandes Écoles. Paris: Éditions de Minuit, 1989. 11 No presente volume, James Collins considera uma unidade nos textos bourdieusianos sobre linguagem e educação, em geral lidos separadamente. Ele mostra, em ambos, os mecanismos da reprodução, tema que predominou, além de discutir como as contradições abrem possibilidades para a ação criativa e a mudança social. William Hanks, ao contrário, identifica o fosso na descrição bourdieusiana da linguagem e em estudos voltados para a prática do uso da língua em geral. Nessas abordagens, a semântica, isto é, como a linguagem produz conteúdo significativo, é em geral ignorada para favorecer descrições de seu uso social. Hanks declara que a sintaxe e a semântica de uma língua estão intimamente relacionadas a seu uso prático. Portanto, uma análise do uso prático não se opõe a uma análise do “significado”. Muitos sentidos de crítica estão reunidos no extraordinário estudo bourdieusiano das culturas de gosto francês, Distinction14. Aqui Bourdieu oferece uma crítica das hierarquias e categorias culturais herdadas, incluindo-se um argumento de que a dinâmica da elite governante e dos gostos populares não são muito diferentes. Isso se alinha com o maior esforço para revelar a medida em que as categorias culturais se vinculam a estruturas de dominação e estratégias de acumulação. Distinction também constitui uma crítica à abordagem kantiana da estética, assim como do estreitamento acadêmico que tal abordagem implica. Tanto LiPuma quanto Wacquant mostram, entretanto, que a obra foi lida sem a atenção devida em face de sua teoria mais ampla, e que apareceu como uma descrição estruturalista unilateral dos padrões de gosto. Ela também, em alguma medida, foi reduzida ao gênero de estudos sociológicos da cultura popular e, assim, destituída de sua força crítica essencial. Ironicamente, no contexto anglo-americano é necessário reafirmar o lado teórico da obra de Bourdieu, ainda que no contexto francês ele se concentre em sua base empírica. Sem um foco grande na teoria (embora não seja o caso do sentido de construção do sistema), o momento crítico dos estudos empíricos tende a se perder. Um dos traços mais distintivos da obra bourdieusiana, em todo caso, sempre foi a sua insistência em unir o esforço teórico e empírico a uma abordagem indissolúvel à análise. Isso é outra instância de seu esforço de superação das dicotomias perniciosas. Também é parte da ênfase bourdieusiana na necessidade de reconstituir a definição dos objetos de análise, como parte essencial de cada esforço de pesquisa, em vez de aceitar acriticamente tanto o uso do discurso acadêmico comum quanto o de outras construções 14 BOURDIEU, Pierre. Distinction: a social critique of the judgment of taste. Cambridge, Mass.: Harvard University Press; London: Routledge and Kegan Paul, 1989 [1979]. 12 da realidade social. Não obstante, Cicourel questionou se Bourdieu é sempre reflexivo o suficiente para a construção de seus dados e suas descrições empíricas. Ele também sugere como abordar as questões empíricas relevantes pode contribuir para superar a dicotomia entre abordagens processuais e estruturais, ao desenvolver as ideias bourdieusianas de poder simbólico e habitus. Em seu ensaio, Nicholas Garnhan aponta uma falta surpreendente na obra de Bourdieu. Para todos os estudos bourdieusianos sobre organização e reprodução da cultura, ele tinha notavelmente pouco a dizer sobre as mídias, sobretudo as mídias eletrônicas modernas. Garnhan mostra, no entanto, que as categorias bourdieusianas podem ser úteis para formular uma teoria crítica que não conta com uma arbitrariedade essencial do conteúdo cultural, mas analisa as implicações estruturais sociais da programação televisiva. Esse tema é retomado no capítulo de Scott Lash, no qual a atenção às mídias é componente de uma análise mais ampla de como a obra de Bourdieu permite a descrição da mudança cultural, que é fundada em uma economia da produção cultural, em vez de se contar com asserções menos teorizadas sobre conteúdos mutantes. Em suas considerações finais, o próprio Bourdieu discute o “modo de produção intelectual” que caracteriza sua obra. Ele aborda algumas fontes potenciais das incoerências relativas à circulação internacional de ideias e ilustra a importância do modo específico e das condições de sua própria produção intelectual com o exemplo de seu estudo sobre arte. Por fim, oferece uma defesa de sua obra contra o que ele chama de leituras “teoriticistas” e a reivindicação de que desenvolve uma ontologia histórica. Uma das tarefas mais desafiadoras da organização desse livro foi estabelecer uma ordem para os capítulos. Isso, em parte, se dá porque a obra bourdieusiana resiste à simples ordenação de prioridade de conceitos ou temas. É, portanto, necessário ter um entendimento relativamente amplo e multidimensional de sua obra para abordar qualquer de suas partes específicas. Não podemos, é claro, oferecer isso em uma introdução. Nem intencionamos que esse livro o fizesse. Reconhecemos, por exemplo, que a estética – uma importante dimensão dos textos de Bourdieu, especialmente sobre literatura e artes visuais – é sub-representada. Nem tentamos oferecer um guia amplo para a sua obra. Esse guia pode ser encontrado em muitas introduções agora disponíveis na imprensa15. Bourdieu, ele mesmo, juntamente com Loïc Wacquant, produziu uma 15 Ver ROBBINS, Derek. The work of Pierre Bourdieu. Boulder, Colo.: Westview, 1991; HARKER, Richard; MAHAR, Cheleen; WILKES, Chris. An introduction to the works of Pierre Bourdieu: the 13 discussão mais abrangente de sua obra – em Convite à sociologia reflexiva16. O que achamos que esse volume de fato oferece é um engajamento na obra bourdieusiana fiel a seu caráter multidimensional, multidisciplinar, e que relaciona vários temas principais e contribuições conceituais do autor aos discursos da teoria social e cultural no mundo anglo-americano. practice of theory. New York: St. Martin’s, 1990; SWARTZ, David. Culture and domination: the social theory of Pierre Bourdieu (em preparação). 16 BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. An invitation to reflexive sociology. Chicago: Chicago University Press; Cambridge: Polity, 1992. 14