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Teoria dos cineastas, vol. 1

2016

Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha 26 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha 28 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha 34

VER, OUVIR E LER OS CINEASTAS TEORIA DOS CINEASTAS VOL.1 MANUELA PENAFRIA EDUARDO TULIO BAGGIO ANDRÉ RUI GRAÇA DENIZE CORREA ARAUJO (EDS.) LABCOM.IFP Comunicação, Filosofia e Humanidades Unidade de Investigação Universidade da Beira Interior VER, OUVIR E LER OS CINEASTAS TEORIA DOS CINEASTAS - VOL.1 MANUELA PENAFRIA EDUARDO TULIO BAGGIO ANDRÉ RUI GRAÇA DENIZE CORREA ARAUJO (EDS.) TEORIA DOS CINEASTAS Ficha Técnica Título Ver, ouvir e ler os cineastas Teoria dos cineastas - Vol.1 Editores Manuela Penafria, Eduardo Tulio Baggio, André Rui Graça e Denize Correa Araujo Editora LabCom.IFP www.labcom-ifp.ubi.pt Em parceria com: Grupo de Pesquisa CIC- Comunicação, Imagem e Contemporaneidade (CNPq), UTP-Universidade Tuiuti do Paraná www.gpcic.net Grupo de Pesquisa CINECRIARE - Cinema: criação e reflexão (CNPq), UNESPAR-Universidade Estadual do Paraná www.cinecriare.com Teoria dos Cineastas www.labcom-ifp.ubi.pt/tcineastas Colecção Ars Direcção Francisco Paiva Design Gráfico Cristina Lopes Danilo Silva (capa) ISBN 978-989-654-338-9 (papel) 978-989-654-337-2 (pdf) 978-989-654-339-6 (epub) Depósito Legal 418444/16 Tiragem Print-on-demand Universidade da Beira Interior Rua Marquês D’Ávila e Bolama. 6201-001 Covilhã. Portugal www.ubi.pt Covilhã, 2016 © 2016, Manuela Penafria, Eduardo Tulio Baggio, André Rui Graça e Denize Correa Araujo. © 2016, Universidade da Beira Interior. O conteúdo desta obra está protegido por Lei. Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transformação da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa autorização do editor e dos seus autores. Os artigos, bem como a autorização de publicação das imagens, são da exclusiva responsabilidade dos autores. Índice Nota introdutória PARTE I - A ORIGINALIDADE DOS CINEASTAS: CONCEITOS E REFLEXÕES 9 15 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha 17 Érico Oliveira de Araújo Lima Sylvio Back e o cinema “desideologizado”35 Rosane Kaminski O cinematógrafo de Eugène Green 53 Pedro de Andrade Lima Faissol Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini 67 Marcelo Carvalho PARTE II - PARA A CONSTRUÇÃO DE UM PANORAMA ARTÍSTICO 91 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein 93 Fabiola Bastos Notari Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas 119 Rafael Valles Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin 139 Riccardo Migliore PARTE III - A CRIAÇÃO CINEMATOGRÁFICA EM MOVIMENTO 155 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho Cláudio Bezerra 157 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional 177 Cristiane Wosniak Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) 195 José Seoane Riveira Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka 217 Lucas Baptista Resumos / Abstracts231 Autores241 Nota introdutória “Teoria dos cineastas” é a designação que adotamos para a proposta de compreender o cinema a partir dos cineastas. Todavia, quer a designação, quer a subsequente explicação, apresentadas deste modo tão simples, tornam-se uma simplificação. Por um lado, a designação: “Teoria dos cineastas” é demasiado sucinta, mas foi adotada precisamente por se tratar de uma designação económica que facilita a comunicação entre os investigadores que já aderiram ou que pretendem aderir a esta abordagem. Por outro lado, dizer que se pretende estudar o cinema a partir dos cineastas, não clarifica quais as opções tomadas nessa aproximação. Assim sendo, começaremos por apresentar os principais fundamentos da “Teoria dos cineastas” para que esta nossa abordagem fique mais esclarecida e, subsequentemente, balizada e operacionalizada. No imediato, duas questões que convém precisar e que são assumidas como pressupostos que influenciam sobremaneira o desenvolvimento que pretendemos para a “Teoria dos cineastas”. Em primeiro lugar, adotamos o termo “teoria” e não “teorias”. A diferença entre o singular e o plural é de importância fundamental. Não negando a diversidade de pensamentos individuais e coerentes que enformam a eventual “teoria” de cada cineasta, o que mais nos interessa é o modo de construção desse pensamento e, nesse sentido, o singular evidencia haver semelhança na elaboração desse pensamento. Fazemos esta distinção porque também será mais condizente dizer que a academia produz “teoria” e não “teorias” pese embora as diferenças de explicação e descrição do fenómeno “cinema”, a academia enforma diferentes “teorias” a partir de procedimentos científi- cos sendo, por isso, produtora de “teoria”. A diferença entre o singular e o plural manifesta pois o nosso posicionamento perante um modo de pensamento criativo de carácter mais ensaístico que científico dos cineastas. Em segundo lugar, a “Teoria dos cineastas” é, como referido, mas que é necessário reafirmar, uma abordagem e não uma metodologia. Mas, com efeito, o principal objetivo é percorrer um determinado caminho metodológico no âmbito dos estudos científicos sobre cinema ou, de modo mais alargado, nos estudos sobre a imagem e sobre o som. Enquanto abordagem trata-se de uma linha de investigação em que: 1. “cineasta” é um termo que se alarga a todo e qualquer criativo para além do realizador (são disso exemplo, os atores e atrizes, montadores/as, diretores de fotografia, etc.); 2. não pretendemos assumir, desde logo, que todo o cineasta possui uma teoria, a designação de “teoria” deve ser discutida e a eventual “teoria” será sempre um ponto de chegada da investigação e não um ponto de partida; 3. o principal material bibliográfico de apoio ao investigador devem ser livros, manifestos, cartas, entrevistas, ou outros mas, sempre dos próprios cineastas; 4. os filmes são uma fonte para estudar a concepção de cinema de um determinado cineasta, seja por opção do investigador, seja pela não existência ou escassez de material escrito, seja pela necessidade ou interesse em complementar as fontes de pesquisa; 5. a investigação a realizar no âmbito desta abordagem implica uma constante avaliação crítica para evitar cair numa investigação que revele uma natureza laudatória ou de mera confirmação de tudo o que o cineasta afirma, sendo o discurso dos cineastas sobre a sua própria arte marcadamente apaixonado e apaixonante, a investigação científica sobre esse discurso deve ser suportada por uma metodologia que não promova a 10 Teoria dos cineastas, Vol.1 - Ver, ouvir e ler os cineastas imediata adesão a esse mesmo discurso, ou seja, a legitimidade de refletir sobre uma determinada obra não é exclusiva do seu próprio criador, no caso, o cineasta; 6. o tipo de teoria que a abordagem “Teoria dos cineastas” porventura encontra e produz tem como característica principal o facto de se encontrar profundamente dependente do processo criativo; mas, também, a própria designação de “processo criativo” deve merecer reflexão no âmbito das investigações científicas que tenham os filmes e o discurso verbal e escrito do cineasta como fonte primordial e de apoio. Para finalizar as considerações iniciais e antes de iniciarmos a apresentação propriamente dita do conteúdo do presente livro, gostaríamos de referir que não entendemos que esta abordagem é inovadora por si. Muitas investigações na área de cinema já terão citado ou parafraseado vários cineastas (em especial os reconhecidos como “grandes cineastas”). Porém, se inovação houver, passa por tornar este procedimento de aproximação ao discurso dos cineastas numa aposta consciente e sistemática. Por entendermos que será unânime considerar que esse discurso dos cineastas é merecedor de atenção, pretendemos fazer dessa atenção uma linha de investigação que, estamos em crer, virá refrescar os estudos sobre cinema. Teoria dos cineastas, Vol.1 - Ver, ouvir e ler os cineastas inaugura uma coleção de livros que pretendemos editar com regularidade. Este primeiro volume, no seu sub-título, é demonstrativo do primeiro passo que a abordagem “Teoria dos cineastas” promove. Os capítulos que compõem o presente livro são uma aproximação consciente à reflexão dos cineastas pela via de conceitos, relação com outros cineastas (por exemplo, o montador), leitura de manifestos e exposição de um pensamento que revela coerência reflexiva entre o discurso verbal/escrito e a práxis. A primeira parte, intitulada: “A originalidade dos cineastas: conceitos e reflexões” reúne um conjunto de capítulos onde é destacado o diálogo entre cineastas, como é o caso de: “Da montagem nuclear ao kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha”, de Érico Araújo Lima que Nota introdutória 11 discute a “montagem nuclear” num diálogo entre Glauber Rocha e o montador Ricardo Miranda relacionando esse conceito com o projeto de cinema integral Kynorama, proposto por Glauber Rocha. “Sylvio Back e o ‘cinema desideologizado’”, por Rosane Kaminski detalha o pensamento do cineasta situando-o perante a cinematografia brasileira. Pedro de Andrade Lima Faissol traz-nos um cineasta contemporâneo, Eugène Green, referindo-se à génese do seu pensamento e discutindo a sua concepção da vocação do cinema em: “O cinematógrafo de Eugène Green”. A terminar esta primeira parte, Marcelo Carvalho em: “Do cinema aos filmes: a Semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini” faz o mapeamento das principais propostas que Pasolini desenvolveu, não apenas para si mas para todo o cinema. Na segunda parte, sob o título: “Para a construção de um panorama artístico” os capítulos dizem respeito a uma espécie de bastidores da criação artística em que os cineastas são discutidos naquilo que antecede essa mesma criação ou que a acompanha mas, de modo menos visível. Fabiola Bastos Notari em: “Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein” apresenta-nos a criação gráfica na forma de desenho de um dos maiores cineastas. Em “Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas”, Rafael Valles aproxima-nos dos escritos de Mekas que antecedem e virão acompanhar a sua filmografia. E, finalmente, Riccardo Migliore, em: “Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões Vsevolod I. Pudovkin” apresenta-nos a concepção de Pudovkin a respeito da direção de atores. A terceira e última parte, intitulada: “A criação cinematográfica em movimento” é composta pela discussão do processo criativo de diferentes cineastas. “A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho”, de Cláudio Bezerra, enfatiza o momento de filmagem enquanto ato erótico, conforme o entendimento de Eduardo Coutinho. Por sua vez, “O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional”, assinado por Cristiane Wosniak, recorre aos documentários de homenagem realizados por Wenders a respeito do espaço documental e o tempo na mon- 12 Teoria dos cineastas, Vol.1 - Ver, ouvir e ler os cineastas tagem. Adiante, “Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960)”, de José Seoane Riveira, traz para primeiro plano da filmografia de Tarkovski um pequeno filme que estudado na sua relação com o guião revela traços próprios do cineasta. E, em jeito de conclusão tanto do capítulo como do livro, Lucas Baptista faz realçar a complementaridade em Kubelka: uma filmografia que revela uma consciência sobre a arte, através dos meios da própria arte, no texto “Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka”. Em última análise, é nosso intento providenciar uma base sólida, composta por uma seleção de estudos convergentes, que permita exemplificar o potencial da abordagem que propomos. Mais ainda, dada a diversidade dos capítulos aqui compilados, é nosso objetivo enfatizar a multiplicidade de vias que verificam e, até certo ponto, confirmam a validade de uma teoria de cinema ancorada na filtragem crítica do discurso dos cineastas — de resto, revisitar e adaptar para colocar em prática aquilo que Jacques Aumont havia já sugerido em 2002 em: Les théories des cinéastes. Assim, esperamos abrir caminho para edições seguintes (estando já no prelo um segundo volume sobre a problematização da abordagem em si e apresenta propostas relativas ao próprio desenvolvimento da “Teoria dos cineastas” enquanto teoria de cinema) promovendo um aprofundamento da compreensão de obras cinematográficas e dos diferentes olhares sobre o sentido do ofício de fazer cinema. Os Editores: Manuela Penafria Eduardo Tulio Baggio André Rui Graça Denize Correa Araujo Nota introdutória 13 Parte I A Originalidade dos Cineastas: Conceitos e reflexões DA MONTAGEM NUCLEAR AO KYNORAMA: EXPERIÊNCIAS DE TRANSBORDAMENTO COM GLAUBER ROCHA Érico Oliveira de Araújo Lima Pistas Ao pensar a possibilidade de uma teoria da montagem nuclear no cinema de Glauber Rocha,1 nos colocamos, desde já, em um desafio a respeito do que viria a ser a própria noção de teoria. Se nos deixarmos provocar pela ideia de que as teorias dos cineastas podem ter também a singularidade de escapar aos modelos sistemáticos, seria possível assumir aqui diferentes pistas para nos aproximarmos do que viria a ser uma montagem nuclear, nos modos como nos permitem pensar alguns escritos e falas do realizador mas, sobretudo, os próprios filmes, naquilo que apontam em suas materialidades. Dessa forma, minha tentativa aqui será a de perscrutar os procedimentos de uma obra em especial do cineasta: A idade da Terra (1980), tomando-a como a radicalização de um método de montagem – com bases já lançadas em Di Cavalcanti (1977) – que explode coordenadas espaço-temporais e convoca o próprio filme para um transbordamento da moldura. A hipótese que tentarei desdobrar diz respeito a um cotejamento com outra ideia lançada por Glauber de modo não sis1.  Já tive a oportunidade de desenvolver alguns primeiros apontamentos em torno da montagem nuclear, durante apresentação no V Encontro Anual da AIM, em 2015, com o título: “Caminhos e resistências de uma montagem nuclear”. Essas questões foram investigadas ao longo do meu mestrado, de 2012 a 2014, com o título “Numa cama, numa greve, numa festa, numa revolução: o cinema se bifurca, o tempo se abre”. Este artigo desdobra e tenta avançar tanto naquilo que foi apresentado no encontro da AIM, em 2015, quanto na pesquisa realizada para a dissertação, defendida em 2014. temático, a do Kynorama, o cinema integral, de múltiplas telas, de vários tempos interpolados, do raio laser e do holograma. “O próprio filme é a própria sala de projeção”, dizia em uma entrevista dada em 1978 e republicada em Revolução do Cinema Novo (Rocha, 2004: 383). A montagem nuclear e o Kynorama poderiam ser considerados duas forças teóricas intuitivas em Glauber, que dizem de um modo de pensar cinema e de um desejo em produzir filmes que já não suportam os limites do quadro, convocando, a todo instante, certa contaminação com uma espécie de fora radical. O desejo aqui se reveste, então, de uma ênfase especial no modo como uma teoria pode se dar a ver na escritura mesma dos filmes. Se podemos encontrar em Glauber alguns textos bastante centrais para a história do cinema, naquilo que ofereciam de formulações sobre problemas estéticos para as imagens – penso, em especial, nos escritos sobre a estética da fome e sobre a estética do sonho –, seria interessante buscar, não sem algum risco, esse outro modo de teorizar em obra, naquilo que diz do seu aspecto sensível, o que se dá na composição mesma das formas expressivas, das escalas de velocidade, das estratégias de introduzir descontinuidades, de operar por repetições e acúmulos. Diferentemente das teorias da montagem de Eisenstein, por exemplo, tão organizadas em uma extensa escrita, esse pensamento-montagem de Glauber tem seus rastros em outros caminhos. É, por isso, que vale insistir aqui em uma palavra: pistas. Trata-se de coletar essas pistas, não para fornecer um todo que reporia o lugar do sistemático, mas para considerar a dimensão mesma desse modo de constituir pensamento. É como se fosse preciso, no próprio gesto de escrita em companhia das obras, estar à altura do modo fragmentado e lacunar dessas imagens e dessa teoria. Em alguma medida, ao nos perguntarmos sobre as questões singulares levantadas por uma teoria glauberiana da montagem nuclear, queremos também nos colocar diante de uma pergunta mais ampla, que valeria tentar enunciar assim: o que nos ensina esse modo de constituir relação entre as imagens? Uma pergunta que se volta para certa pedagogia da montagem. É como se fosse possível aqui dialogar com algumas discussões já trazidas por Serge Daney (2007) em seus textos sobre a pedagogia strau- 18 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha biana e a pedagogia godardiana. E assim, ao indagar sobre a noção mesma de uma teoria formulada pelas imagens, trata-se de fazer o problema surgir do que essas imagens nos devolvem como modo singular de pensamento. Assim, tomando especialmente a obra final (seu último filme, seus últimos textos) de um realizador tão inquieto com os problemas da imagem e do mundo, queremos perguntar: o que nos ensina o cinema glauberiano – e por ele, uma montagem nuclear? Foguete Em uma conversa realizada em 2013 com Ricardo Miranda,2 um dos montadores de A idade da Terra, fizemos um percurso por várias das pistas desse método da montagem que o filme nos dá. Uma das ideias centrais que poderia constituir uma figura conceitual importante para acessar essa experiência seria a do foguete. Qual a trajetória desse foguete? Que coreografias ele faz e que rastros ele deixa na terra e nos céus? A montagem-foguete nos coloca rumo a uma explosão, que nos é dada pela dimensão de um excesso: acúmulo de planos, ritmo frenético. Já no curta Di Cavalcanti, Glauber falava nos créditos finais: “Di Cavalcanti, a montagem nuclear: a quantidade está na qualidade”. Também em Jorjamado no cinema (1977), esse método vai ser pesquisado, até desembocar no estilhaçamento radical de A idade da Terra. A montagem nuclear é como um foguete subindo aos céus. Ele [Glauber] chamava de nuclear a partir dessa ideia da explosão nuclear que existe no momento que o foguete sobe. Na hora em que o foguete sobe, existe um jorro muito forte. É essa ideia da montagem, ela explode e sobe. A melhor forma é a definição dele no Di Cavalcanti, você toma como base aquela definição: quanto mais, melhor. Quanto mais planos, quanto mais ideias, quanto mais pensamentos, quanto mais experimentação. É um quanto mais, não tem explicação, não tem uma decifragem disso. Ele não tem um texto que decifre isso teoricamente, como Eisenstein tem. [Com Eisenstein] você pensa na música, no compasso, você pensa na matemática... Isso não acontece no Glauber. Acontece um jogo 2.  Entrevista realizada com Ricardo Miranda, em agosto de 2013, durante pesquisa de mestrado. Érico Oliveira de Araújo Lima 19 emocional, que é o próprio jogo do foguete subindo, é a própria ideia da explosão. Eu nunca decifrei também, eu prefiro entender por essa lógica. É uma técnica que ele usa no Di, ele traz para A Idade e para a vida. (Ricardo Miranda, 2013). Ricardo Miranda montou A idade da Terra junto a Carlos Cox e Raul Soares, em um processo de produção que era carregado pelo descentramento, já que cada um assumiu uma parte dessa escritura, numa divisão que tinha por base, especialmente, as cidades de filmagem: Salvador, Brasília e Rio de Janeiro. Miranda conta que assumiu essa tarefa, quando a realização chegou ao Rio de Janeiro, passando a pensar junto com Glauber os caminhos a tomar nesses gestos de montagem. Ao rememorar essa dinâmica de criação de uma obra tão inquieta – tanto em relação aos modos de produção quanto em relação aos possíveis estéticos da imagem e do som –, Miranda evoca algumas chaves sugeridas por Glauber para disparar a inventividade dos montadores. Se nos detivermos um tanto nessa figura do foguete que sobe aos céus e deixa um jorro ao seu redor, podemos acessar a noção de nuclear nessa dimensão da força de um pathos intensivo, pura força irruptiva, da ordem de um estilhaço. Dizendo de outro modo, trata-se de pensar o nuclear como fórmula da combustão e da emoção, um modo de constituir na experiência estética do cinema certa intensidade conectiva que pode engajar o corpo do espectador diante de outro corpo, o do próprio filme. Assim, ainda que os modos de compor relações entre as imagens seja bastante singular, seria possível mesmo considerar essa ideia do foguete numa certa proximidade, guardadas as diferenças, com a montagem de atrações eisensteiniana e com certo regime de atrações dos primeiros cinemas. O choque era fundamental para Eisenstein, que se preocupava em constituir forças na imagem, na medida em que essa noção de atração apontava para uma possibilidade de suspensão da narração. “A montagem livre de ações (atrações) arbitrariamente escolhidas e independentes” (Eisenstein, 2008: 191) era a maneira de conceber uma outra ideia de intervalo. Tratava‑se também de tentar levar o espectador a “perceber o aspecto ideológico daquilo que foi exposto, sua conclusão ideológica final” (2008: 189). Nosso desafio 20 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha aqui é identificar as maneiras de constituir, no laço das imagens, essas sensações, já que os procedimentos não se dão, como ressalta o próprio Miranda, nas mesmas chaves matemáticas ou na mesma base melódica, digamos assim, que Eisenstein teorizava. E nossa aposta é também a de que há uma distância fundamental entre a pedagogia da montagem dialética e a pedagogia da montagem nuclear, que residiria, sobretudo, na relação que cada uma estabelece com a perspectiva de uma síntese ou daquela conclusão ideológica final afirmada por Eisenstein. Poderíamos dizer que, numa inflexão dentro do próprio pensamento glauberiano, A idade da Terra é a expressão de um desespero e de uma impossibilidade de síntese, um filme que se expõe numa montagem-abertura – e ex-por tem a ver aqui com uma radicalidade muito forte da possibilidade de abrir-se a uma exterioridade, às forças de um fora bastante longínquo, como quando se afirma de um sujeito que se expõe e corre perigo nessa atitude de exposição. Ismail Xavier (1981) já pontuou o efeito de inacabamento que A idade da Terra adquire, sempre como work-in-progress, expondo os acidentes, os desvios, as assimetrias, a impossibilidade de encadear. Xavier propõe a ideia de um filme sem moldura, sobretudo tomando o início e o final repentinos, sem créditos, sem anúncio do que está por vir. É uma montagem que rejeita o equilíbrio e a possibilidade de fechamento de um todo. A obra simplesmente começa com o sol nascendo em Brasília e de repente chega ao fim, em meio à multidão em procissão pelas ruas de Salvador. E a mistura de procedimentos também acentua a falta de contornos nítidos. São proliferações de diferentes registros (entrevistas, performances, encenações de chave mais alegórica, imersões documentais), sem hierarquia entre eles, sem encaixe harmônico, sem pureza possível. A Idade da Terra está longe do ideal de poesia visual anti-retórica, da preferência pela continuidade, homogeneidade e limpeza de estilo próprios aos adeptos do cinema puro. Seu movimento é contrário: violência total face à regra de separação de gêneros; exercício limitado do direito à palavra, descontinuidade no encaixe das diferentes formas de representação. Resulta um todo francamente heterogêneo. Seus fragmentos Érico Oliveira de Araújo Lima 21 se justapõem numa colagem de registros documentais, encenações “elevadas” de ritos que marcam a renovação religiosa, encenações grotescas da decadência imperial, lances coreográficos, entrevistas, improvisações, discurso direto do autor, explicitações do trabalho de filmagem e incorporação de seus acidentes. (Xavier, 1981: 70). Eis um inacabamento da história que a montagem dá a ver. Eis a porosidade do cinema, exposto aos estilhaços e aos acidentes da explosão de um foguete. Para dizer mais de perto e de modo material, há um elemento processual que pode nos fornecer mais uma aproximação a essa montagem. Ainda na esteira dos percursos abertos pela conversa com Ricardo Miranda, sabemos que uma das indicações de Glauber era a de que fossem utilizados todos os takes de uma mesma sequência filmada, mesmo aqueles que estariam errados, segundo certa concepção industrial: fragmentos que teriam ensaios dos atores, que revelariam ainda uma definição da luz, um tateio da câmera pelo espaço, uma descontinuidade dos gestos. Em uma sequência, é possível mesmo ver um momento em que Maurício do Valle está machucado, e por isso já não se filma uma cena, mas se acompanha justo a interrupção das filmagens para a recuperação do ator. “Ele [Glauber] disse: usa tudo. E usa tudo como se fosse a batida de um tamborim”, relembra Miranda. Orientação misteriosa, em alguma medida, que cabia ao montador tomar para si e descobrir como constituir em formas. Aí eu racionalizei isso. No princípio, numa proposta muito ligada a uma poesia concreta, uma ideia construtivista da própria língua da montagem, por isso eu propus aquela montagem de repetições. A batida de tamborim, você tem os repiques do tamborim. Eu me entendi com essa ideia: põe um plano, vai, repete, volta, vem. E o Glauber completa essa ideia. Porque quando eu montei só tinha as idas e vindas, só tinha o Brahms dizendo: ‘não vá ao senado amanhã’. Aí voltava. Depois ele [Glauber] põe o plano inteiro, ele fecha a ideia da própria batida do tamborim. Eu tomo como esse repique: ele vai e coloca o plano inteiro. É 22 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha isso que arremata toda aquela brincadeira, daquele ir e voltar, de pegar uma palavra e repetir e voltar. E o Tarcísio passa, volta, passa, volta... (Ricardo Miranda, 2013). Vejamos como isso ganha dinâmica de aparição no jogo da cena. Em um bloco de fragmentos reunidos em repetição e interpolação, temos, logo no início, um plano aberto com o personagem Brahms (Maurício do Valle) no topo de uma escadaria. Com uma espada erguida, que tem um pano verde na ponta, ele grita: “Paz, paz! Guerra e paz!”. Surge uma série de imagens curtas que revelam a repetição tanto das palavras quanto dos movimentos dos atores, situados basicamente em três espaços: uma escadaria, na qual estão Brahms e o Cristo militar (Tarcísio Meira); uma praia no meio da cidade do Rio de Janeiro, com o mar e figurantes ao fundo, onde surgem os personagens Brahms e Aurora Madalena (Ana Maria Magalhães); e um lugar com pedras na paisagem, que vai nos interessar especialmente, por conta das entradas e saídas de quadro do Cristo militar, enquanto Brahms permanece na imagem. Tomamos esse conjunto de fragmentos mais como um bloco nuclear e menos pela unidade de uma sequência dramática, já que parece haver entre eles, sobretudo, uma reverberação de forças e atrações. Ainda que fosse possível trabalhar com uma perspectiva de narrativa mais alargada, ligada às próprias dinâmicas imagéticas e não apenas sintagmáticas, diremos, para nos atermos ao procedimento da montagem, que estamos interessados, especialmente, nas condições de aparição dos gestos, das coreografias e das palavras nesse trecho, no que ele pode oferecer de ritmo, de batuque de tamborim e de foguete. Com a interferência de muitos planos entre si, em acúmulo serial, o que já não diz de um encadeamento de sentido, mas rítmico, a montagem vai produzindo repetições e alternâncias. Acompanhamos variações entre momentos dessa escadaria com outra cena, em que Aurora Madalena e Brahms conversam banhados pelas luzes douradas vindas dos rebatedores. Eles têm ao fundo a paisagem de montanhas, prédios e praias do Rio de Janeiro. Também são vistos por várias pessoas que estão nesse lugar e ficam curiosos para saber o que se passa ali. As interferências prosseguem Érico Oliveira de Araújo Lima 23 entre a descida, sempre interrompida, as falas e os movimentos de Aurora, também cortados pelo meio. As frases se repetem. “Você está no fim”, diz várias vezes Aurora para Brahms. O Cristo militar aparece na escadaria, junto a Brahms, vindo do fundo, nos planos que surgem depois. A cada vez que essa imagem surge, intercalada em meio às outras, é a mesma frase que se ouve: “Brahms, não vá ao Senado amanhã!” Brahms é constantemente ameaçado de morte, teme que seja pego numa emboscada, está rodeado de inimigos que querem sua cabeça. Existe o tom de intriga palaciana, indicado muito de relance, que estabelece uma historicidade bastante própria ao filme. Em seguida, somos levados a fragmentos que mostram o Cristo militar entrar e sair de quadro várias vezes. A mesma fala se repete e é interrompida pelo meio. O entoar da palavra se dilui em pedaços. A curta cena compõe uma imagem diante de alguns pilares de pedra, em que os dois personagens tecem uma relação dentro do quadro. Brahms e o Cristo militar são os dois corpos nesse espaço. O plano é fixo, a câmera não se movimenta em nenhum momento para procurar um dos atores e também não se aproxima de nenhum detalhe. Estamos diante de um quadro bastante rigoroso em que o entra e sai dá o tom. Tarcísio Meira ora entra pela direita, ora pela esquerda. Maurício do Valle está sempre em campo, com sua espada que tem um lenço verde na ponta. “Você já ouvir falar do negro Hassan?”, grita o Cristo militar. Introduz-se um corte, que nos leva para outro ponto do movimento do corpo pelo quadro, e a frase já é tomada na sua segunda parte: “Comandante-geral das Forças Armadas de Ogulaganda!”. Por várias vezes, a montagem ressalta um instante da fala: “Ele detesta a civilização!” O ator segue repetindo as frases, a cada vez com um tom mais alto, mais eufórico, o movimento mais acelerado. Ergue os braços, fala com veemência. Após a inserção de algumas cenas naqueles outros dois lugares desse bloco, o filme retorna a esse fragmento e o exibe em integridade, sem cortar nem a fala nem o movimento dos atores ao longo do espaço. Também a descida da escadaria, com o alerta do Cristo militar para Brahms – “não vá ao Senado amanhã!” – surge em sua completude. 24 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha A idade da Terra recorre à repetição, ao acúmulo de planos, faz ouvir uma mesma frase várias vezes, faz ver a mesma cena se reinventar, reexistir ininterruptamente. Corta e interrompe, começa de novo ou já parte para outro ponto. Nas idas e vindas do Cristo militar pelo quadro, ouvimos as mesmas palavras várias vezes, em exacerbação. A montagem usa uma quantidade grande de imagens, interrompendo no caminho e construindo outro desenho do plano, a partir dessa colocação dos vários momentos em que se filma a mesma cena. Ao final, surge a cena no seu prolongamento, tomado apenas um dos vários takes, já sem o ir e vir, a interrupção de um pelo outro. Na chave de leitura de Ricardo Miranda, seria aí o momento em que se fecha a batida do tamborim, o gesto imagético que dá a marcação do compasso. Poderíamos dizer que Glauber tenta aí uma medida comum paradoxal em meio à descontinuidade. Depois das sucessivas quebras e da desmontagem em fragmentos, ele dá a ver o desenrolar sem intervir pelo meio, deixando o percurso de um corpo pelo espaço finalmente se completar. O batuque de tamborim e o foguete se conjugam, então, como duas chaves imagéticas e sonoras para dimensionar a escala de articulação proposta pela montagem nuclear. O tamborim dá uma tonalidade rítmica, traça o andamento da alternância, faz com que espaços e tempos heterogêneos possam ser arranjados, para conferir à densidade da cena certo regime de afetação do corpo. A estrutura narrativa do filme é mesmo posta em completo desequilíbrio. Podem-se perceber alguns fios de uma história entre as sequências e os arcos dramáticos dos personagens, mas o interesse fundamental é transformar a materialidade fílmica em um modo de engajar o corpo. E para a formação desse jogo de emoções, a montagem vem operar como esse foguete de explosão e repetição. Estamos na experiência da terra, de uma orquestração de abalos sísmicos que fazem mover blocos tectônicos. A idade da Terra traz o lastro da experiência histórica, em personagens atravessados pelo mito, pelas críticas ao colonialismo, pelos acontecimentos do mundo vivido, mas faz isso, especialmente, como criação de outra percepção do tempo e do espaço do mito, do País, dos corpos em movimento na cena. É preciso operar por montagem, introduzir o intervalo, para constituir Érico Oliveira de Araújo Lima 25 o trabalho da imaginação. Se apostamos nessas figuras que guardam certa exterioridade com o cinema, o foguete e o tamborim, é porque elas ajudam a construir também uma teoria que faz justo a ponte entre o dentro e o fora do cinema. É como se fosse possível recorrer à dimensão coreográfica e intensiva de um foguete e à analogia musical do tamborim, para entender como se produzem formas expressivas a partir dos desenhos e ritmos das coisas do mundo. Olhar como se faz o movimento de um projétil ou como se constituem as escalas e os tempos de batidas em um tamborim permite produzir a forma fílmica no seu íntimo coengendramento com as formas do mundo. Falar de uma teoria da montagem nuclear diria respeito, então, à criação de um espaço de saber que se contamina radicalmente pelos saberes de outros objetos, naquilo que esses objetos podem nos oferecer de uma pedagogia do movimento, da ginga do corpo, das repetições ou das fulgurações dos fogos de artifício. Caleidoscópio Se, ao montar, era preciso aproveitar todos os takes, gerando uma experiência frenética de acúmulo e de excesso, há outro aspecto fundamental da montagem nuclear que deve ser considerado e pode ser descrito na dualidade de um projeto de futuro, desejo de fazer algo no porvir, e de uma materialidade em obra, que pode nos dar, de algum modo, a possibilidade de efetuação dos desejos. Trata-se do caráter randômico e aleatório desejado para a experiência de A idade da Terra, que deveria ser exibido, segundo os intentos de Glauber, sempre de um modo diferente, já que caberia ao projecionista embaralhar os rolos da película e fazer da exibição uma espécie de acontecimento ou performance ao vivo, capaz de sempre renovar as experiências do filme, multiplicar as entradas, bifurcar as travessias. Embaralhar os blocos permitiria fazer de cada projeção uma singularidade. E o filme mesmo, oferecido a esse propósito, se disponibilizava, com isso, a uma fruição randômica, radicalmente descarrilhada de um encadeamento sucessivo, carregada de virtualidades. É como se fosse uma obra dada a ver sempre pelo meio, já que não haveria início nem fim pré-estabelecidos, mas um desenrolar que já aboliu as bordas, para se dar como zona intermediária. 26 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha É aqui que gostaria de aproximar essa montagem nuclear glauberiana, que é da ordem de um caleidoscópio – multiplicador de entradas e percursos –, a certo regime de experiência tão cara às artes contemporâneas, nas quais o cinema se expande e parte para outros lugares possíveis de experiência e outras propostas de relação com o espectador. Faço essa aproximação, mais uma vez, voltado para uma formulação do próprio Glauber, na sua proposição de um Kynorama. Os cinemas que estão aí não suportarão mais as novas formas cinematográficas, terceira dimensão, cinema raio laser, cinema espacial. Então se terá que construir centros cinematográficos, que eu chamo de Kynorama (com k, y), que seriam os grandes centros audiovisuais. Um negócio que não tem em nenhum lugar do mundo e que eu tenho um projeto já em elaboração, que seria o grande cinema espacial. Uma espécie de teatro-filme. [...] Eu vou me lançar na construção do Kynorama já depois de A idade da Terra, em dezembro. [...] Kyno é cinema. E “rama” porque é o espaço. Um Kynorama seria o cinema integral. O próprio filme é a própria sala de projeção. Você entra na sala, ali dentro é um filme. Tudo é um filme, inclusive o espectador integrado. É o estúdio, é projeção, é tudo. O mesmo que um universo cinematográfico total (Rocha, 2004: 383). Kynorama é uma possibilidade de cinema. Em certa medida, Glauber fala dessa ideia como um projeto de futuro, mas aqui já não se trata de uma aposta macro-histórica para o País, e sim de uma defesa da transformação nas próprias maneiras de experienciar a imagem cinematográfica. O termo Kynorama surge, muito brevemente, em uma entrevista dada por Glauber em 1978 e não chega a se desdobrar, efetivamente, nessas novas salas que o realizador idealizava. Os maracanãs eletrônicos e visuais (Rocha, 1982: 31), expressões que aparecem em outra entrevista, são uma proposição de retirar o filme de uma única possibilidade de experimentação, para além dos espaços convencionas de projeção e para além de todo o dispositivo ar- Érico Oliveira de Araújo Lima 27 quitetônico que se configurou ao longo da consolidação daquilo que André Parente (2009) já chamou de uma forma cinema, que faz convergir a dimensão da sala escura, o sistema de captação e de projeção da imagem e um modelo representativo hegemônico (Parente, 2009: 24, 25). Essa forma cinema diz respeito a uma conformação, ao mesmo tempo, arquitetônica, tecnológica e discursiva. E se esse modelo formal se consolida como instância majoritária, ele não parou também de ser questionado, nas diversas variações que se apresentaram: cinema do dispositivo, cinema experimental, arte do vídeo, cinema expandido, cinema interativo – cinco momentos que Parente destaca, embora muitos outros possam também ser lembrados. “A história do cinema tende a recalcar os pequenos e grandes desvios produzidos nesse modelo, como se ele se constituísse apenas do que quer que tenha contribuído para o seu desenvolvimento e o seu aperfeiçoamento” (Parente, 2009: 25). Existe, então, toda uma outra história de vários cinemas que se proliferaram e investiram em outras sensorialidades, tanto na própria escritura fílmica quanto na maneira de se apresentar espacialmente ao espectador. O que esse Kynorama glauberiano aposta é também na possibilidade de colocar o cinema em variação, de experimentar um filme em outras situações cinema. Ainda que Glauber não tenha efetivado esse projeto, tomo aqui a proposição bastante embrionária que ele faz no âmbito do discurso, para tentar formular a figura do Kynorama como uma dimensão operatória nas próprias imagens já realizadas por Glauber, sobretudo em A idade da Terra. Quer dizer, o esforço aqui tem a ver com uma investigação da própria escritura fílmica, para pensar nelas o que poderia ser apontado como pesquisa de um cinema espacial. Se nos detivermos na experiência de A idade da Terra, já se trata de um campo repleto de hibridismos e do que identifico como um desejo de sair da tela para ocupar o mundo. Como já discutia Ismail Xavier (1981), o filme tem uma série de misturas que fazem extrapolar a moldura e quebrar a simetria. Então, haveria uma dimensão instalativa na própria sensação desencadeada pelas imagens desse último filme de Glauber e uma convocação à participação do espectador, como nos trabalhos de artistas 28 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha contemporâneos e como no que os estudos de audiovisual têm identificado a respeito das expansões do cinema pelo museu, pela cidade, pelas praças, por tantos diferentes formatos, na investigação de outras fruições. A figura do Kynorama, nesse desejo de Glauber em envolver o corpo do espectador pelas imagens, poderia se constituir na articulação mesma entre mise-en‑scène, montagem e experiência estética, o que pode dar a dimensão de um trabalho do espectador. Mais uma vez, trago as contribuições de Ricardo Miranda para compreender essa dimensão inventiva da montagem. A própria proposta estética é quase de videoarte. Tem quase um desejo de projetar nas paredes. É engraçado que o Terra em transe foi projetado nas paredes, junto com A chinesa, na França. Os estudantes projetavam Terra em transe na parede em 1968. Então, já é uma retórica que até já aconteceu com outros filmes dele. Essa ideia randômica, de você não ter uma ordem muito canônica... O Vertov pensa isso também, quando ele pensa montagem. Ele acha que o homem, quando acorda, tá montando, quando vai dirigir, tá montando, quando vai escrever, tá montando, quando monta, tá montando, e quando exibe, tá montando. A montagem toma uma ideia total do próprio filme. Quando Glauber interfere nesse processo, ele tá passando por um processo de montagem, ele tá remontando o filme para aquele momento. Se você passa na parede, é uma coisa, passa no cinema, é outra... Isso tudo passa por uma ideia de montagem, no sentido maior de montagem, não no sentido pequeno que as pessoas têm de montagem, como colar um plano no outro (Ricardo Miranda, 2013). A disposição dos fragmentos de A idade da Terra, dispersos sem uma ordem determinada, maleáveis em seu rearranjo, são um convite para que o filme seja percorrido de várias formas e saia de uma estrutura única. O filme guarda a possibilidade de ser exibido com os rolos escolhidos aleatoriamente, conforme as escolhas do projecionista na sala, como na potência de um cinema ao vivo, em que a experiência se cria no ato da projeção e aponta para todo um conjunto de virtualidades. A rigor, a cada nova exibição, seria Érico Oliveira de Araújo Lima 29 criada uma nova obra, desmontada e remontada no aqui e agora, no tempo compartilhado entre a exibição e a fruição por parte do espectador. O filme tem um movimento interno que constitui algo como uma força centrífuga, que atira os elementos para fora, gera uma carga de energia que retira as imagens de um centro para serem deslocadas em direção ao mundo. E na sua encenação mesma, A idade da Terra é já um happening: as encenações tomam o espaço urbano, os atores se integram à multidão, os corpos entram nas festas em curso nas cidades, como nas passagens de Tarcísio Meira pelo desfile de uma escola de samba, ou na imersão de Jece Valadão na procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, pelas ruas de Salvador. Ora aproxima‑se de um vídeo que acompanha as performances realizadas nos ambientes fechados, com uma câmera bem próxima aos corpos, ora é um monumento, com planos abertos, panorâmicas pela paisagem, tomadas aéreas de Brasília ou filmagens em campos amplos no Planalto Central. Trago essa perspectiva caleidoscópica e fragmentar da montagem nuclear para articular com o projeto de um Kynorama, porque há nela a indicação não só de uma estratégia pontual para montar um filme, mas, sobretudo, a formação de um campo de inquietações com o cinema de modo mais amplo. Se no âmbito material das formas fílmicas, Glauber buscava produzir essas experiências da ordem de explosões, acúmulos e simultaneidades – especialmente no percurso que se faz entre Di Cavalcanti, Jorjamado no cinema e A idade da Terra –, toda essa investigação estava como que aclimatada pela atmosfera de fazer o cinema saltar da tela. Nesse sentido, o foguete que analisávamos anteriormente não é apenas uma metáfora para a relação entre as imagens, mas é também uma indicação de uma trajetória – do filme para o mundo, filme-projétil. E aqui poderíamos, em alguma medida, ver no realizador uma faceta talvez pouco considerada, quando prevalecem as chaves interpretativas de um cinema moderno. Seria possível localizar nessas formulações glauberianas um apontamento singular, nas matrizes do cinema brasileiro, em crise com as formas cinemas instituídas e em diálogo imprevisto com toda uma experimentação do audiovisual expandido, que poderia ser remetida já à publicação de Gene Youngblood, com seu Expanded cinema 30 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha (1970). Considerar outros modos de exibição e de encontro com o espectador seria mesmo apostar na montagem como noção conceitual bem mais ampla que a simples junção entre planos. A montagem seria, sobretudo, coisa do pensamento, e como tal, indicaria os modos de exposição das imagens e de relação delas com as texturas do mundo. A sala de cinema vai parecer um circo, cinema de laser, holografia, cinema espacial, teatro das imagens, coordenação de cinema com o balé. Acabou a coisa do filme projetado. Tela é para televisão. Cinema será o chamado circo tecnológico. [...] Quando digo que acabou o cinema de sala, é que acabou o cinema das salas velhas. Filme de uma dimensão como o que se passa hoje será passado nas TVs velhas. Você só irá ao cinema para ver o grande espetáculo holográfico, do raio laser, das telas múltiplas, o cinema das jogadas visuais, a pintura eletrônica. E está aí o sentido político e ideológico (Rocha, 1982: 30, 31). A idade da Terra já instaurava outras condições de fruição na sua gestualidade. Se, em Di Cavalcanti, a escritura já criava uma festa de imagens, o último filme de Glauber também tem um clima de celebração e de explosão de energias. Ele demanda outras espacialidades. O diálogo desse trabalho de Glauber com a arte contemporânea pode ser encontrado nesse exercício de transformar a obra numa abertura de entradas para o espectador, no caráter inacabado que tem sempre pontas soltas, a serem associadas e dissociadas a cada novo olhar, por cada um que vê. A obra é feita numa estreita relação conceitual com as artes visuais, como salienta Paula Gaitán em uma conversa realizada em 2013,3 tanto pelos elementos de montagem quanto pelo trabalho com as cores, consideradas como objetos, ou pelo desenho dos figurinos, linhas e panos amarrados aos corpos de Ana Maria Magalhães e de Antonio Pitanga, em inspiração direta nas artes da performance – são 3.  Entrevista realizada com Paula Gaitán, em agosto de 2013, durante pesquisa de mestrado. Érico Oliveira de Araújo Lima 31 elementos que se tornam atemporais, porque já não são miméticos de um mundo, seguindo aqui de perto a reflexão de Paula Gaitán. E a singularidade do filme, vale reafirmar, está no convocar o corpo a partir do olhar mesmo. Olhar é experiência de corpo. Glauber constitui aí o potencial de seu Kynorama. Dizer que A idade da Terra se transforma, já na sua escritura, em um filme instalativo implica que o corpo faz por ele um percurso, como quando se percorrem as salas de uma galeria, fazendo escolhas e, ao mesmo tempo, tendo algumas orientações pela montagem imaginada pelo exercício da curadoria. No filme de Glauber, não são atravessadas salas de um museu, mas blocos sensíveis, que são também formações de espaço e de tempo, de luz e de sombras. Entro na sequência das amazonas, tenho o corpo alterado por esse encontro em meio aos corpos que se chocam, ao clima de devoração e de delírio, e daí sou jogado no carnaval carioca, nos batuques do sambódromo, também em meio a corpos, mas já com outra relação que se cria, agora em espaço aberto, filmando com mais riscos também, na medida em que já não se trata de uma cena de interiores. De uma sequência a outra, o filme faz uma curva, toma uma nova direção, tem outras cores, outro movimento de cena, toda uma nova percepção é demandada ao olhar, para se habituar às novas formas que se abrem. O espectador segue trabalhando. Esses trânsitos pela espacialidade inventada no filme, enquanto movimentos por blocos, são saltos descontínuos por experiências e por lugares. E no caso dessa obra em especial, os lugares são tanto fílmicos quanto geográficos mesmo, é a conexão atordoante entre Salvador, Rio e Brasília. É o filme que se introduz como corpo ritualístico no corpo das cidades filmadas. Se ainda existe algum país como horizonte aqui, como era comum nos filmes de Glauber dos anos 1960, é um país completamente estilhaçado do ponto de vista espacial, formado senão por fragmentos incapazes de constituir um todo. É que estamos numa instalação que é um jogo da amarelinha, como no livro de Julio Cortázar. É um filme que tem vários filmes virtuais em sua escritura, porque esse percurso da sequência das amazonas para a do carnaval, sugerido na montagem final, poderia ser também totalmente 32 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha distinto. Não existe uma necessária relação entre um momento e o outro e, se por questões logísticas, a estrutura randômica durante a projeção não pôde ser efetivada, é preciso dizer que ela está na obra, como que armazenada em potência.4 A obra se faz, se produz, nela mesma, como movimento randômico, e cada bloco não tem uma agregação necessária com o outro, do que resulta a possibilidade de associar e dissociar de infinitas maneiras, para que vários filmes sejam criados a partir do filme, vários desvios sejam traçados no percurso sugerido, diferentes e singulares caminhos inventados pelo trabalho do espectador. Essa condição de experiência expandida de A idade da Terra era também defendida por Glauber, em uma de suas entrevistas sobre o filme. E se tomarmos a pedagogia de uma montagem que confere mobilidade ao corpo e aos sentidos do espectador, arriscaríamos dizer mesmo que se torna sempre mais urgente, nos tempos em curso, fazer foguete e caleidoscópio em praça pública: exibir A idade da Terra nas ruas, nas paredes, na cidade. É um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, anti-literário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí. É um filme que fala das tentativas do Terceiro Mundo... fala do mundo em que vivemos. Não é para ser contado, só dá para ser visto (Rocha, 1979). Referências bibliográficas Daney, S. (2007). A rampa: cahiers du cinéma, 1970-1982. São Paulo: Cosac Naify, Mostra. Eisenstein, S. (2008) Montagem de atrações. In I. Xavier (ed.), A Experiência do cinema: antologia. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Graal, EMBRAFILME. 4.  Na época do lançamento de A idade da Terra, a Embrafilme não considerou viável a distribuição das cópias do filme nos moldes planejados por Glauber. Ao restaurar o filme e lançá-lo em DVD, a equipe do Tempo Glauber, com acompanhamento de Ricardo Miranda, criou um dispositivo, acessado pelo menu, que permite ao espectador ativar exibições randômicas e embaralhar os blocos do filme. Algumas exibições já aconteceram na Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, também acompanhadas por Ricardo Miranda (falecido em 2014), com essa possibilidade do aleatório. Érico Oliveira de Araújo Lima 33 Miranda, R. (2013). Entrevista a Ricardo Miranda por Érico Lima. 14 de agosto de 2013. Rio de Janeiro (registo da entrevista: gravação). Parente, A. (2009). A forma cinema: variações e rupturas. In K. Maciel (org.), Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa. Rocha, G. (1997). Cartas. In I. Bentes. Cartas ao mundo: Glauber Rocha. São Paulo: Companhia das Letras. _____(1982). O cinema brasileiro [entrevista de Glauber Rocha]. In P. Del Picchia & V. Murano. Glauber, o leão de Veneza. Editora Escrita. _____(2004). Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify. Xavier, I. (1981). Evangelho, Terceiro Mundo e as irradiações do Planalto. Revista Filme Cultura n˚ 38/39, agosto-nov. Rio de Janeiro. Filmografia A idade da Terra (1980), de Glauber Rocha. Di Cavalcanti (1977), de Glauber Rocha. Jorjamado no cinema (1977), de Glauber Rocha. 34 Da montagem nuclear ao Kynorama: experiências de transbordamento com Glauber Rocha SYLVIO BACK E O CINEMA “DESIDEOLOGIZADO” Rosane Kaminski Sylvio Back entre filmes e ideias Afirmei, há alguns anos, que a reflexão sobre a dimensão política do cinema brasileiro moderno ganha vigor quando se privilegia o exame das poéticas fílmicas (Kaminski, 2014: 137). A assertiva se baseava na convicção de que os experimentalismos estéticos, potentes no cinema moderno, produzem efeitos de sentido que interferem na nossa compreensão sobre o mundo em que vivemos. No entanto, entre os diversos atos criativos dos cineastas, está também a produção de ideias, muitas delas expressas em outros registros reflexivos que não os filmes em si: discursos acerca de suas próprias obras, acerca do cinema e, alargando o espectro, acerca da realidade. O estudo dessas ideias – ou, se assim quisermos, dessas teorias dos cineastas1 – amplia a compreensão da dimensão autoral e da vontade de participação de tais agentes no momento histórico em que vivem. Ao lado do estudo dos filmes, portanto, o estudo das teorias produzidas pelos cineastas permite entender outras facetas de suas ações culturais. De que forma tais autores se 1.  Remeto à noção de teorias dos cineastas no sentido de buscar a “perspectiva teórica dos cineastas diante de seus atos artísticos criadores”, conforme proposto por: Graça, A.; Baggio, E.; Penafria, M. (2015). Teoria dos cineastas: uma abordagem para a teoria do cinema. Revista Científica/ FAP, Curitiba, v.12, p. 21. posicionam frente aos debates específicos sobre cinema ou, mais do que isso, sobre o lugar ocupado pelo cinema nas discussões políticas e estéticas do seu tempo de produção? No caso do cineasta brasileiro Sylvio Back, objeto de interesse neste texto, pode-se dizer que as suas ideias sobre cinema expressaram-se, ao longo de meio século de atividade, ao menos de três maneiras: a) por meio da crítica cinematográfica, atividade exercida com intensidade por Back nos anos 1960 e, mais esporadicamente, nos anos 1970; b) por meio dos seus diversos filmes; c) por meio de seu discurso acerca dos próprios filmes e da maneira como os situa frente à cinematografia brasileira do seu tempo de produção.2 Em outros momentos, já escrevi sobre a poética cinematográfica de Sylvio Back e discuti as relações entre seus filmes e o contexto histórico, privilegiando as obras de ficção realizadas entre 1968-1975, as quais agrupei sob o a expressão “poética da angústia”.3 Esta primeira fase ficcional na obra cinematográfica de Back é composta pelos longas Lance Maior (1968), A Guerra dos Pelados (1971) e Aleluia, Gretchen! (1976). Tais filmes correspondem, ao meu ver, a um posicionamento estético-ideológico do cineasta que pode ser entendido como uma forma específica de reação fílmica diante das pressões de um contexto histórico determinado, a saber, o anos mais duros do regime militar brasileiro, instaurado após o golpe de 1964. Naqueles anos, além de fazer filmes, Back também concedeu entrevistas e fez declarações acerca do próprio cinema. Estudando tais documentos, observei uma variação no dis2.  Sylvio Back nasceu em 1937 em Blumenau, Santa Catarina. Iniciou na direção cinematográfica na década de 1960, na cidade de Curitiba, ocasião em que atuava como jornalista cultural e crítico de cinema. Desde 1987, reside no Rio de Janeiro. É autor de diversos filmes ficcionais e documentários de longa-metragem, além de curtas e médias-metragens. Atualmente continua atuando como cineasta e poeta. Seu filme mais recente é o documentário O Universo Graciliano (2014). 3.  Considerando sua produção de longas-metragens, dividi a obra cinematográfica de Back em fases ficcionais e documentais. Tais fases, grosso modo, correspondem a: 1) uma primeira fase ficcional, situada entre 1968 e 1977; 2) uma fase documental, que corresponde aos filmes produzidos entre 1980 e 1995; 3) uma segunda fase ficcional, de 1999 a 2004; e 4) uma segunda fase documental iniciada em 2010, com o filme Restos Mortais. Nesta última fase, situa-se também O Universo Graciliano (2014). Quanto à expressão “Poética da angústia”: considero que as particularidades dos três primeiros filmes longas-metragens de Back possuem uma tônica anti-utópica e pessimista. Assim, apesar da variabilidade de temas, épocas, e lugares sulinos em que se passa cada um dos três enredos, defendo a ideia de que estes filmes têm no conceito de angústia (ou melhor, na sugestão da angústia oriunda tanto da estrutura fílmica quanto do enfoque temático) um ponto que permite unificá-los. Para maiores detalhes, ver: Kaminski, R. (2008). A poética da angústia: história e ficção no cinema de Sylvio Back, anos 1960-70. Curitiba: Tese de Doutorado em História, UFPR. 36 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” curso do cineasta, sempre articulado aos debates culturais que pontuavam o “clima” nacional na ocasião em que se produzia cada filme. A modificação gradual nas teorias de Back acerca de seus próprios filmes e, por extensão, daquilo que ele valorizou no cinema ao longo de sua trajetória, será o assunto privilegiado neste texto. A princípio, apresentarei esquematicamente três momentos perceptíveis no discurso do cineasta sobre as próprias obras, sustentadas no período entre 1966 e 1986. Em seguida, privilegiarei a sua proposição teórica fundamentada na ideia de um cinema desideologizado. Trata-se de um discurso cujas origens remontam à segunda metade da década de 1970, mas que perpassa as declarações do cineasta até hoje. Variações no discurso: o público, o cinema sulino e a estética torta Num primeiro momento, entre 1966 e 1970, aproximadamente, Back defendeu a ideia de um cinema comunicativo. Quando da idealização, produção e lançamento do seu primeiro longa-metragem de ficção, o Lance Maior (1968), sua pretensão era falar diretamente com o público e, mais ainda, colocar o público no “centro” do seu trabalho (Back, 1967). Naquele momento, então, o cineasta assumia uma postura autoral basicamente centrada na comunicação com o público. A princípio, uma comunicação baseada na identificação cultural quando, em Lance Maior, filme de temática urbana, os personagens pertencem ao segmento social dos próprios consumidores de cinema e do próprio cineasta: a classe média.4 Aos poucos, esse desejo de comunicação se voltou à conscientização ideológica quando, em seu segundo longa-metragem – A Guerra dos Pelados (1971) –, a questão política, em plenos anos de chumbo, aparecia sob a forma de alegoria. No entanto, se ao produzir Lance Maior o cineasta teve boa repercussão de crítica e público com o seu “projeto comunicativo”, com o filme A Guerra dos Pelados as coisas não foram tão bem. O filme foi um fracasso de bilheteria. Como resultado dessa experiência, ao mesmo tempo em que endividou-se, Back pareceu ter se desiludido com o público. Poucos anos depois ele diria: 4.  A s afirmações do cineasta sobre esse propósito podem ser lidas em: O “lance maior” de Silvio Back. (1968) O Jornal. Rio de Janeiro, 20 dez.; Eu quis fazer um filme assim. (1969) Jornal da Tarde. São Paulo, 7 março; e Laura, I. (1969) Lance Maior, fita autêntica. O Estado de São Paulo, 12 março. Rosane Kaminski 37 Algum público cativo que existia perdeu-se com as agressões vindas da tela para finalmente achar-se próximo ao conformismo. Ingênuos, costumávamos paternalizar o público brasileiro quando, via de regra, ele é um esnobe, um açougueiro de cultura brasileira, um insensível à mínima leitura que fuja aos padrões do espectador colonizado. (Back, 1974). Num segundo momento, entre 1971 e 1976, o discurso do cineasta sobre seus filmes sofreu uma transformação, centrando-se cada vez mais na proposição de um “cinema sulino”. Há, nesse período, uma nítida estratégia de visibilidade, que corresponde simultaneamente a uma vontade de diferenciação dos filmes de raiz nordestina (em especial o Cinema Novo) e a uma tática de mercado, quer dizer, de querer ser visto e compreendido como algo que possui certa especificidade. As declarações de Back sobre o “cinema sulino” apareciam já na época do lançamento de A Guerra dos Pelados (1971), ao dizer que com esse filme dava “continuidade ao seu projeto de realizar um ‘cinema sulino’.”5 Na ocasião, promulgava que o filme falava do Brasil sob uma ótica do sul. Apesar de recair muito mais no conteúdo histórico e cultural do sul (temática humana e histórica do sul, civilização do sul, paisagem sulina, “homem do sul”, etc.), a defesa desse cinema perpassou, de certo modo, a questão da linguagem enquanto marca autoral. Isso é perceptível quando ele destaca, nos filmes, aspectos como “luz local”, “cor local” e, eventualmente, trejeitos da expressão oral. Por exemplo, Sylvio Back dizia que uma das melhores qualidades do seu segundo filme era a fotografia, associando-a ao clima do sul: “A fotografia a cores do filme é de responsabilidade do diretor e fotógrafo Oswaldo de Oliveira, que desenvolveu imagens que refletem dramaticamente a luz do interior de Santa Catarina, emprestando-lhe um toque pictórico representativo do clima sulino”.6 5.   Como pode ser lido na matéria: “A Guerra dos Pelados”: uma tragédia popular (1971). Diário do Paraná. Curitiba, 17 maio. 6.   Declarações presentes nas matérias: Encerradas as filmagens. (1970). O Estado de São Paulo, 12 julho; e “A Guerra dos Pelados”: aventura histórica filmada em Santa Catarina. (s/d) O Globo. Rio de Janeiro. 38 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” Além das menções à luminosidade sulina, alguns fragmentos do discurso de Sylvio Back destacam trejeitos da expressão oral considerados regionais. Tratavam-se de palavras deformadas em relação ao modelo da língua culta, como por exemplo: “o jagunço sulino, o caboclo de pé no chão que não se ‘assujeitava’ e sabia baixar a espada com ‘valimento e sustança’ quando provocado”7. Principalmente nesse segundo filme, quando Back se voltou para o mundo rural do sul, ele diz ter tentado extrair dali alguns traços que pudessem ser definidores de um cinema sulino. Alguns anos mais tarde, tal discurso culminou na afirmação de uma “trilogia do sul”. Em princípios de 1974, quando participou do programa Roda Viva promovida pela Voz do Paraná, Sylvio Back falou sobre a possibilidade de compor uma trilogia: Tenho um roteiro praticamente pronto. Chama-se ‘Aleluia, Gretcha’ [sic] que trata dos quarenta anos de uma família de imigrantes alemães; é um pouco da biografia da minha família e de muitas famílias alemãs. Faz parte de uma trilogia: ‘Lance Maior’ foi uma visão do sul, uma cidade como Curitiba provinciana e que tem problemas universais; ‘a Guerra dos Pelados’ é um aspecto histórico na Guerra do Contestado e agora estava querendo falar sobre os imigrantes alemães no sul do Brasil.8 Depois disso, falar do aspecto sulino dos filmes de Back se tornou habitual, principalmente durante as filmagens do Aleluia, Gretchen!. Numa entrevista concedida em 1975 ele dizia que: O ‘Lance’, meu primeiro longo, é uma história de ascensão social de jovens numa cidade provinciana do sul do Brasil, onde os rapazes falam ‘guria’. ‘Pô, aquela guria... viu aquela guria?’ Expressão tipicamente sulina. Uma história urbana envolvendo jovens. Bom, o segundo filme, está fundamentado no Contestado, um episódio sulino, aliás um episódio mais importante pra mim do que Canudos. É porque não teve o Euclides da Cunha, mas que é mais importante, é. As implicações do Contestado são mais profundas que as do Canudos. E finalmente os imigrantes. Por 7.   Comentário extraído de: A guerra de Sílvio Back (1971). Última Hora. Rio de Janeiro, 29 set. 8.   Publicado sob o título: Silvio Back - o cinema brasileiro está enfrentando a pior fase. (1974). Entrevista à Roda Viva. Voz do Paraná. Curitiba. Rosane Kaminski 39 coincidência nestes filmes eu tratei de três coisas: da nossa época de hoje, da história e da imigração, que é uma das chaves para a compreensão da civilização sulina. (Back, 1975). Assim, ele passava a reiterar o Sul não apenas como o lugar de onde falava, mas como definidor de um ângulo pelo qual podia ver os problemas nacionais e universais. No entanto, nova modificação no discurso do cineasta apareceria logo após o lançamento de Aleluia, Gretchen!, em 1976. Surgia um terceiro momento na retórica do autor, marcado pela ênfase na questão autoral, que se estenderia até 1986, quando ele publicou o manifesto Por um cinema desideologizado, formalizando em texto a sua teoria.9 Para compreendê-la vale observar suas declarações públicas já desde 1976. Quando o recém-terminado Aleluia, Gretchen! participava do Festival de Brasília, o jornal Diário de Brasília publicou uma entrevista com Sylvio Back, na qual ele falou sobre a situação do cinema brasileiro naquele momento, declarando que percebia um “esvaziamento” em termos de propostas, e dizendo sentir “falta de filmes de autor” (Back, 1976). Esse terceiro momento do discurso de Back culminou com a afirmação do seu “engajamento com a criação livre, com um rearranjo pessoal da realidade dentro de uma estética experimental, de uma estética torta por natureza, de uma postura abusiva até em termos de mercado e de público”, como ele asseveraria no manifesto Por um cinema desideologizado (Back, 1986) que dava forma a um pensamento que vinha sendo elaborado ao longo de anos. Nas próximas páginas, portanto, dedicar-me-ei a discutir o surgimento e as características dessa teoria de Back sobre a possibilidade de se fazer um cinema “desideologizado”. 9.  Publicado originalmente em julho de 1986, no jornal curitibano Correio de Notícias. No ano seguinte, o mesmo texto-manifesto foi republicado num boletim informativo da Fundação Cultural de Curitiba, junto à biofilmografia do cineasta. Cf: Boletim Informativo da casa Romário Martins, n.78. (1987) Curitiba: FCC. Durante os anos 1980 e 1990, a insistência de Back em afirmar seu empenho em produzir um cinema “desideologizado” apareceu em diversas entrevistas. Ver, por exemplo: Back, Sylvio (1998). Meus filmes são melhores do que eu. Entrevista a Mário Hélio. Suplemento Cultural. Recife. Publicado em: Cinemateca Sylvio Back. (s/d) Gráfica da Fundação Padre Anchieta. 40 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” A proposta de um cinema desideologizado Em 1979, saiu uma edição especial do jornal Folhetim dedicada à revisão do cinema brasileiro feito ao longo daquela década que findava. Entre os cineastas que ali opinaram, estava Sylvio Back. Ele se manifestou da seguinte forma: Nesta década de 70, eu entrei definitivamente em dúvida e perdi todas as certezas que havia adquirido romanticamente nos anos 60. A década de 70 pra mim foi gloriosa. [...] A gente, finalmente, abriu mão de uma série de coisas e caiu numa dúvida de quatro, sem medo. E, em função exatamente da alteração do quadro institucional brasileiro, afinal se reconheceu que o único poder do cineasta é o seu filme, não o seu capital, nem a sua técnica e nem o seu trabalho e sim o filme (Back, 1979). Fica claro, por meio destas palavras, que o cineasta sentia-se liberto da obrigação com quaisquer “verdades” dadas a priori – como as certezas revolucionárias das quais partilhou nos anos 1960, quando participou da Ação Popular10 – e que agora assumia um compromisso exclusivo com o cinema. Se é que isso é possível, seria a partir desse despojamento ideológico – ou, ao menos, dessa tentativa de despojamento – que Back passaria a acalentar o seu discurso em defesa de um cinema “desideologizado”. Segundo contou‑me em entrevista, esta sua oposição ao cinema clientelista e hagiográfico referenciava-se no pensamento de Marc Ferro, que “desmontou o cinema da União Soviética e desmontou o cinema francês, e investe na desideologização [...], mostra o quanto o cinema é ‘usado’ para vender ideias” (Back, 2003).11 10.  Back ingressou na Ação Popular em 1967, permanecendo afiliado ao grupo até cerca de 1970. Essa organização já existia no Brasil desde 1962, tendo surgido de uma dissidência da Juventude Universitária Católica (JUC). Sobre o surgimento e consolidação da AP, ver: Ridenti, M. (2002). Ação Popular: cristianismo e marxismo. In: Ridenti, M., e Reis Filho, D. A. (orgs.). História do marxismo no Brasil, vol.V – partidos e organizações dos anos 20 aos 60. Campinas: EdUnicamp, p.214-227. Entre meados de 1966 e 1967, reconstituía-se um dos núcleos da AP Curitiba, no qual Back ingressou muito provavelmente por meio da amizade pessoal com Walmor Marcelino, este um dos dirigentes da AP regional. Ver também: Marcelino, W. (2005). História da AP no Paraná. Curitiba: Quem de Direito. 11.  A s ideias do historiador francês Marc Ferro acerca das relações entre cinema e história foram divulgadas no Brasil durante os anos 1970 (o seu conhecido texto O filme: uma contra-análise da sociedade, escrito em 1971, foi traduzido para o português em 1976). Rosane Kaminski 41 Foi noutra matéria da mesma edição do Folhetim que encontrei o registro mais antigo dessa expressão cunhada pelo cineasta. Em meio a um debate que reunia alguns cineastas e dois professores da Universidade de São Paulo, a tônica era cada vez mais definida pelas queixas de Ipojuca Pontes acerca da insipiência de temas políticos no cinema brasileiro, que não faziam críticas diretas aos militares. Num dado momento, Back se posicionou: SYLVIO: “Eu gostaria de ‘desideologizar’ a discussão porque a coisa não é essa. Eu acho que o compromisso do artista é com o imaginário, não com o conhecimento físico da realidade”. IPOJUCA: “Ah, não, eu acho que a imaginação está circunscrita à realidade”. SYLVIO: “Não, não. Acho que o nosso compromisso fundamental é com o imaginário. E se nós não fazemos filme com militar, não é de hoje”.12 Naquele momento, já estava traçada a diretriz fundamental da defesa de um cinema que não fosse condutor de ideologias cristalizadas, seja de esquerda, seja de direita, mas que fosse, antes, a problematização de um determinado tema. Note-se que aquele era o momento em que Back experimentava o sabor da consagração nacional, conquistado por meio de um filme que “já nascera torto” (Back, 1978) – o Aleluia, Gretchen! –, por ser polêmico em termos políticos e causar estranhamentos estéticos. Alguns anos depois, numa entrevista concedida a Hugo Mengarelli, Back diria que a produção desse terceiro filme o fizera, de fato, modificar sua teoria sobre o fazer cinematográfico: em ‘Aleluia, Gretchen’ compreendi que para mim o cinema é enquadração, essa organização que você faz da realidade, tem mais importância que a própria montagem. Essa imagem primeira, essa imagem que flutua na frente do visor para mim é o cinema; por isso que quando estou 12.  Trata-se de um excerto do debate transcrito na matéria: Contier, Arnaldo; Mendes, Oswaldo; Babenco, Hector; Back, Sylvio; Oliveira, Denoy; Pontes, Ipojuca; Santos, Roberto (1979). Debate: “Cadê o homem brasileiro no cinema nacional?”. Os anos 70. Folhetim. São Paulo, 16 dez. 42 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” com o olho no visor esqueço tudo o que sei e li sobre o cinema. [...] Estou com Maiacowski [sic] quando diz que não se terá nenhum conteúdo revolucionário se a forma não for revolucionária. Noutras palavras, para dizer coisas novas se necessitam formas novas. Eu tinha lido isso, sabia – mas entre teoria e prática o caminho é anos-luz – mas num começo para mim também era importante o conteúdo, era o que mais me preocupava. (Back, 1982a). A observação desse depoimento, associada à investigação sobre as origens da teoria backiana acerca do cinema “desideologizado”, permite afirmar, no final das contas, que não existia, a priori, um plano de ação claro do cineasta sobre qual seria a poética a perseguir. Por isso o seu estilo – que num certo momento ele passou a definir como “estética torta” – foi se moldando conforme os resultados obtidos a cada novo filme, e conforme as mudanças nas suas próprias visões sobre o cinema, sobre sua capacidade (e os seus meios) de interferir na sociedade. E, ainda, conforme o seu entendimento acerca da figura do autor. Tudo isso enquanto Back debatia-se, por assim dizer, em traduzir para a prática a famosa proposição de Vladimir Maiakovsky. Quando citou esse autor, mostrou, ainda, que juntava resquícios de teorias das vanguardas soviéticas ao seu feixe de referências. Ao declarar, nessa entrevista, que somente com o Aleluia descobriu que para ele “cinema é enquadração”, estava verbalizando o modo como ele mesmo via o deslocamento de seus interesses ao fazer cinema. Isso corresponde, de certo modo, àquele processo que antes traduzi como um arco que vai desde a sua proposta inicial que enfatizava a relação com o público, este colocado no centro da obra, passando pela ênfase no conteúdo “sulino”, até vergar para uma outra proposta, na qual o autor é que fica em evidência. Tal processo, é claro, não era um projeto consciente do cineasta, era antes uma busca, um trabalho de constituição de um modo próprio de pensar cinema que, ainda assim, ainda que fosse “próprio”, precisava se apoiar no repertório da cinematografia já constituída, bem como das teorias sobre o assunto. Rosane Kaminski 43 Mas a tendência de Back em estimar a marca autoral, quando diz ter despertado para a valorização da “enquadração”, lhe fica claro somente em Aleluia, conforme ele mesmo indica. Antes, sua pesquisa estética não estava fixa no aspecto da “enquadração”, ainda que em todos os três filmes aqui mencionados, grande parte da potência estética do seu trabalho já estava presente. Sobre Lance Maior, ele comentou ter feito algumas experimentações na montagem que, segundo disse, “quase subverteram o roteiro original bastante melodramático, tornando-o mais ambíguo”. Sobre A Guerra dos Pelados, ele lamentou não ter podido levar suas preocupações cinematográficas ao extremo, pois enfrentou muitos problemas de produção, e também diversas cobranças por parte dos companheiros políticos que não compreendiam sua opção por fazer arte (Back, 2003). Mas disse que com Aleluia, Gretchen! estava com uma outra ideia: Para explicá-la [essa ideia] é preciso remontar aos anos setenta. Os anos setenta foram os anos mais gloriosos, talvez, destes últimos cinquenta anos, isto é, desde os anos trinta até hoje. Porque os anos vinte também foram gloriosos para o país, foram anos de grandes transformações, anos onde entrou o capitalismo, disco, música estrangeira, cinema estrangeiro, onde [...] o Brasil mudou profundamente. Agora a década dos setenta foi importantíssima, a mudança não foi na área de comportamento, senão na ideológica. A glória dos anos setenta, que foi escrita com sangue de milhares de jovens, anos de fechadura, de mortes não só de pessoas como também de ideias, por outro lado ensejou em todos nós uma transformação. Formados no final da década de cinquenta e na década de sessenta, onde existia essa certeza de que o socialismo viria somente apertando um interruptor, essa certeza dogmática desses anos, e que já tinha de certa forma posta sob suspeita quando Kruschev [sic] denunciou o stalinismo ou quando Sartre denunciou a invasão da Hungria, e que no entanto não conseguiram atingir-nos. Essa primavera nem sequer foi abalada pelo 64. Já em 68 se tornou mais grave, mas se- 44 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” rão os anos setenta, para aqueles que sobreviveram, que servirão para tirar as calças de todos os dogmas, políticos, ideológicos e especialmente todos os dogmas estéticos. Foi em ‘Aleluia, Gretchen’ que botei o olho na câmera sem me preocupar que me chamassem de formalista, inclusive até me chamaram de traidor do cinema nacional porque era um perfeccionista, coisa que sê-lo num país subdesenvolvido pareceria, para alguns, que servisse ao capital e à ideologia estrangeiros. Com ‘Aleluia, Gretchen’ compreendi que [...] o cinema é antes de tudo um projeto estético. (Back, 1982a). Enfim, essa “confissão” do cineasta, posterior à fatura dos seus três primeiros filmes, auxilia a visualizar como, do ponto de vista do cineasta, ele teria finalmente conquistado uma espécie de “independência” daqueles “dogmas” – tanto os ideológicos quanto os estéticos – com os quais se deparou no início de sua carreira no cinema, e com os quais teve de lidar quando produziu esses filmes ficcionais. Entre os tais dogmas estéticos, estaria a afirmação da precariedade do cinema feito num país “subdesenvolvido”, que aparecia tanto na “estética da fome” quanto no “cinema marginal”. No depoimento acima, Back deixa evidente que a rejeição consciente a esse pressuposto era um fator que lhe preocupava, no que tange à legitimação dos seus filmes dentro da cinematografia nacional. Mas agora, ele afirmava livremente: Para mim, o objetivo da arte é trazer um prazer estético, esse prazer pode ser canalizado para a revolução, o amor, a solidariedade, o trabalho, etc. Por isso se você consegue levar para o espectador uma chispa de revolução, muito bem, ou uma chispa de alegria momentânea, muito bem. A arte só tem compromisso com o imaginário, com a intuição, com o ambíguo. (Back, 1982b). Apesar de Back afirmar que o cinema é “antes de tudo um projeto estético”, e que a arte “só tem compromisso com o imaginário”, é bem evidente que os seus filmes, mesmo os que vieram após Aleluia, Gretchen!, sempre demonstraram a preocupação desse cineasta com as questões morais e políticas do seu entorno. Suas obras costumam despertar polêmicas antes éticas do que Rosane Kaminski 45 estéticas. A tentativa de desconstruir as “vontades de verdade”, para usar uma expressão de Foucault, ficou quase sempre num plano acima do que quaisquer possíveis rupturas ante os “dogmas estéticos”. Ainda assim, vejo em sua poética uma especificidade, que não foi nem indicada pelo autor e nem apontada pela crítica, à qual nomeei, como disse no início deste texto, de poética da angústia. Gostaria de observar que a noção de angústia articulada à sua poética fílmica trata-se de um conceito teórico, em estreita relação com o caráter anti-utópico da filosofia existencialista, e que não se refere a um sentimento pessoal de Sylvio Back. Antes, é a conformação fílmica de um modo de interpretar o mundo à sua volta, referindo-se às características de narração e estilo dos filmes. Enfim, é o pensamento anti-utópico da filosofia existencialista, que nega apriorismos, que considera as teleologias criadas pelo homem como maneiras de evitar o enfrentamento da própria finitude, é esse pensamento que se articula em forma e conteúdo nas obras de Sylvio Back. Obras, diga-se, que não simplesmente “reproduzem” as discussões do seu momento histórico, mas que as absorvem e problematizam. Esse pensamento, no discurso verbal do autor, recebeu o estranho nome de “desideologização”. Considerações finais Quanto às variações que se processaram no discurso do cineasta acerca dos próprios filmes ao longo daquelas duas décadas, ainda há algo a ser apontado aqui, com o intuito de clarear o caminho por onde ele mesmo afirmou ter se direcionado, à procura de um cinema “desideologizado”. Como foi dito, o estudo das fontes permitiu detectar três diferentes fases no discurso de Back, cujas modificações se articulavam aos debates culturais que pontuavam o “clima” nacional na ocasião em que produzia cada filme: 1) a questão da comunicabilidade; 2) a questão do nacionalismo a partir de um “cinema do sul”; e 3) a questão do cinema de autor. Atrelado a isso, pôde-se notar uma variação do foco retórico em seus filmes, inicialmente ancorado no público, depois demonstrando ambiguidade (entre público, mensagem política ou autor), e finalmente enfocando o “autor”. 46 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” Foi após todo esse percurso, durante o qual o cineasta parecia estar buscando um eixo sustentador e definidor do seu cinema, que veio a afirmação do cinema “desideologizado”. Mas isso não me parece simplesmente uma guinada no seu discurso, ou uma nova fase. A despeito de não tê-lo verbalizado antes, essa “desideologização” talvez tenha sido a sua verdadeira ambição, uma vez que desde os tempos de crítico de cinema ele demonstrava interesse por temas que contrariassem as “ideologias oficiais”, seja as da moral burguesa, seja as dos radicalismos políticos.13 O que ele finalmente faz, a partir do início dos anos oitenta, é assumir verbalmente que por meio de seus filmes buscou manter sempre uma postura crítica, diante de qualquer ideia que se quisesse impor como verdade. Não importava de que direção ela viesse. Removendo as “verdades” dos homens, recupera-se a consciência da angústia. Não quero, com isso, afirmar que tal postura crítica era uma prerrogativa de Sylvio Back. Ao contrário, muitos estudiosos do período já apontaram a descrença em relação às grandes narrativas como um sintoma cultural na passagem das décadas de 1960-70. A própria receptividade das ideias de Sartre no meio intelectual brasileiro, da qual Back partilhou, ajuda a visualizar um solo comum entre Back e outros que rejeitavam as teleologias e apriorismos, apesar de manterem simpatia pelas ideias de esquerda. O que quero indicar é que indícios desta descrença são visíveis também nas obras de Back, já desde o Lance Maior. Quando Back passou a nomear seu cinema como “desideologizado”, ele afirmava que “a arte só tem compromisso com o imaginário”, o qual: nunca está compromissado com nenhuma corrente ideológica, política. Ele não está comprometido com a verdade contemporânea, senão com algo muito maior que transcende os interesses da época. Por isso con- 13.  Tratei desse assunto com mais minúcias no capítulo “Crítica de cinema e cineclubismo”, em Kaminski, 2008. Rosane Kaminski 47 cordo com Julio Cortazar quando disse que se estamos a fim de estudar uma época é melhor ler os romances dessa época que a história oficial, a história dos vencedores, ou dos vencidos. (Back, 1982b). Note-se aí a convicção declarada de Back, naquele momento, de que poderia existir “algo que transcende os interesses da época”, ou seja, trans-histórico. Algo da arte, nessa afirmação, estaria além, ou “acima” da história. Isso fundamentaria a sua afirmação de um cinema capaz de transcender as ideologias, pois estas são sempre “históricas”, presas ao seu tempo. Paradoxalmente, contudo, para estudar “uma época”, ele mesmo recomenda que se estude a arte dessa época. Proposições contraditórias entre si, enfim, pois se a arte fosse de fato trans-histórica não faria sentido usá-la como referência para estudar uma determinada época. No final das contas, é perfeitamente compreensível que Back não concordasse com o uso da arte enquanto veículo de militância, seja de esquerda, seja de direita. Mas dizer que ela existe “sem compromissos ideológicos” já soava como afetação. Assim, para finalizar este texto, proponho relativizar essa afirmação de Back que, ao meu ver, não condiz com o que ele efetivamente fez no seu cinema. Considero mais coerente balizá-la a partir da recomendação de Júlio Cortazar, que ele mesmo mencionou, ao dizer que o estudo dos produtos artísticos e culturais permite conhecer algo do seu tempo de produção. Isso é possível não por ser a arte isenta de ideologia, mas por ser eminentemente histórica, articulada ao seu contexto e a toda a sua carga ideológica, seja de modo a afirmá-la, seja a problematizá-la. Na minha opinião, é exatamente isso que transparece da poética de Sylvio Back. Ou melhor, que se detecta tanto em seu discurso nas obras quanto no seu discurso sobre as obras: ele escolheu problematizar temas históricos por meio da arte, afirmando que estava falando “do seu tempo” mesmo quando fazia um filme histórico. Ainda assim, quando publicou seu texto-manifesto Por um cinema desideologizado, em 1986, Back parecia querer atestar a possibilidade de neutralidade do cineasta diante dos temas históricos tratados nos seus filmes. Afirmava: “Adoro mexer na História”, e justificava essa atração pelo desejo de des- 48 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” vendar pontos de vista não trabalhados pela historiografia oficial, nem pela historiografia atrelada a “interesses partidários e ideológicos”. O importante, dizia, era recusar quaisquer “simulacros da verdade”, e o caminho que ele propunha era: um pensamento autoral desideologizado, sem barreiras temporais e espaciais, e empenhado na salvaguarda da dignidade humana. Toda a vez que me debruço sobre algum acontecimento histórico, tomo-o mais como álibi que como curiosidade em torno do fato em si. O fato coloca‑se, aí, antes como um gancho indiscutível [...]. Nem por isso, no entanto, deixo de exaurir o episódio em todos os seus ângulos, escaninhos e implicações. (Back, 1986). Acreditar nessa possibilidade de um “pensamento autoral desideologizado” se tornava, certamente, um tanto quanto arriscado, visto que credibilidade na isenção ideológica do analista, típica do pensamento positivista, era uma ideia anacrônica. Mas para evitar simplificações, é importante ponderar sobre o que Sylvio Back queria dizer com essa expressão. Segundo o próprio cineasta, ao formalizar tais pensamentos em torno de um cinema pretensamente destituído de ideologias, ele tinha em mente a noção de ideologia como “feixe de ideias que procura fundar uma verdade”, seja por parte dos comunistas, do governo, da igreja, dos neoliberais, etc. (Back, 2003). Neste sentido, ele preferiu optar por não fundar verdade nenhuma em seus filmes, mas apresentar temas, signos, imagens e sons ao espectador, para que esse tirasse suas próprias conclusões sobre o que era mostrado na tela. O “cinema desideologizado”, para Back, não significava, afinal, uma pretensão de neutralidade, mas uma tentativa de apontar contradições nas personagens e situações retratadas. Esta seria uma maneira de enunciar sua oposição a alguns tipos de filmes que vinham sendo produzidos no Brasil, desde os anos setenta, e com os quais não concordava. Enfim, a partir da recuperação de todas essas questões, volto a afirmar que apesar do discurso muitas vezes contraditório do cineasta, são principalmente os sintomas da sua poética cinematográfica que conferem um acorde Rosane Kaminski 49 fortemente crítico aos filmes de Back, pois são coerentes com sua desconfiança frente às visões redentoras da história, perceptível também noutras produções artísticas daquele momento, ainda que por caminhos bastante distintos. O ceticismo que impregna aquela primeira fase ficcional de Sylvio Back viria a se tornar uma característica de seu posicionamento frente à história também em seus filmes posteriores – não só ao entorno histórico imediato de produção de seus filmes, mas à concepção de temporalidade que almeja a existência de algum tipo de progressão na história da humanidade como um todo. Sua obra enfatiza a imobilidade das relações sociais, e não a transformação. Enfatiza a repetição, e não a ruptura. Sugere que o movimento temporal nos remete sempre ao mesmo, e aponta para a inocuidade dos esforços humanos diante dessa imagem de estagnação. O resultado almejado por este estudo, no final das contas, constitui-se da avaliação da poética e da ética cinematográfica de Sylvio Back, articulada à detecção das mudanças na sua própria teoria acerca dos filmes, diante de questões histórico-políticas cruciais à compreensão da realidade brasileira nos anos 1960-80. Desse modo, espero ficar evidente que este texto não pretendeu dar conta de toda a teoria do cineasta Sylvio Back, mas almejou, isso sim, lançar bases para uma compreensão do lugar desse cineasta na história do cinema brasileiro, a partir do estudo de suas ideias (que indicam sua vontade de participação num contexto histórico nevrálgico) e de como elas se formalizaram em suas obras e em suas declarações, num momento contundente de amadurecimento desse campo profissional no país, lembrando que ao menos desde os anos 1960 os cineastas brasileiros inseriram-se nos debates mais eruditos sobre a realidade nacional. 50 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” Referências bibliográficas “A Guerra dos Pelados”: aventura histórica filmada em Santa Catarina. (s/d). O Globo. Rio de Janeiro. “A Guerra dos Pelados”: uma tragédia popular (1971). Diário do Paraná. Curitiba, 17 maio. A guerra de Sílvio Back (1971). Última Hora. Rio de Janeiro, 29 set. Back, S. (1967). 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Aleluia, Gretchen! (1976), de Sylvio Back. 52 Sylvio Back e o cinema “desideologizado” O CINEMATÓGRAFO DE EUGÈNE GREEN Pedro de Andrade Lima Faissol Em 1969, aos 21 anos de idade, o nova-iorquino Eugene realizava um desejo que nutria desde cedo: deixar o seu país natal. Após uma longa viagem de juventude pela Europa, decide fixar residência em Paris. Em seguida, rompe com a cultura americana e com a língua inglesa (abolindo, inclusive, os anglicismos correntes da fala), adota para si a cidadania francesa, e ainda acrescenta um acento grave em seu primeiro nome. A ruptura com as suas origens é radical, e mais adiante Eugène Green – nascido de ventre judeu – se converterá ainda ao cristianismo. Como Green costuma reiterar em entrevistas, o contato com o teatro asiático, ainda na juventude, o conduz a uma longa pesquisa sobre o sagrado na arte. Paralelamente aos seus estudos, cria uma companhia de teatro barroco intitulada “Théâtre de la Sapience”. Com ela, durante mais de 20 anos, Green e seus atores remontam inúmeras tragédias do período na tentativa de “recuperar a pronúncia e reconstituir o estilo gestual, sonoro e visual da cena [teatral] do século XVII” (Aumont, 2006: 30). A sua longa pesquisa sobre teatro barroco permitiu que encontrasse pistas concretas da dicção e da gestualidade do ator durante o período. Entre 1977 e 1999, Eugène Green remonta com a sua companhia teatral diversos textos seiscentistas com a ambição de assim fazê-lo tal como foram encenados na época. Apesar de alguns elogios pontuais, o trabalho empenhado ao longo dos anos não obteve o reconhecimento da crítica teatral. Segundo Green, o silêncio e a indiferença dos “órgãos oficiais de cultura” deram lugar, no fim dos anos 90, a uma reação “violenta” e “reacionária”, que enxergava nas remontagens um “empreendimento imoral, blasfematório e obsceno” (Green, 2001: 15). Sendo assim, após a remontagem de Mithridate (Racine) na capela da Sorbonne em outubro de 1999, decide encerrar as atividades de sua companhia teatral. Dois anos depois, em 2001, Green publica o livro La parole baroque no qual descreve detalhadamente a sua longa pesquisa realizada sobre a declamação e a gestualidade do teatro barroco. Nesse mesmo ano, lança o seu primeiro filme, Toutes les nuits (2001), e dá início à sua carreira como cineasta. O primeiro contato de Green com um set de filmagem, portanto, se dá apenas nos anos 2000, quando já se aproximava dos 55 anos de idade. Como realizador de cinema, ao contrário do que havia enfrentado nos palcos teatrais, e talvez impulsionado por alguns prêmios obtidos1, Eugène Green conseguiu imprimir um bom ritmo de trabalho, alcançando – após 15 anos de carreira – a boa marca de 10 filmes realizados, entre 7 longas-metragens e 3 curtas. Apesar do reconhecimento em alguns festivais internacionais, como o de Locarno, Cannes, Toronto, IndieLisboa e Turim (este último tendo realizado uma retrospectiva completa de sua obra), poucas vezes se viu qualquer de seus filmes sendo lançado comercialmente fora da França. Na América do Sul, por exemplo, apenas La Sapienza (2014) fora exibido no circuito comercial. E a única forma de se ter acesso à maioria de seus filmes é importando-os da França, em DVD, ou baixando-os pela internet, via download. Feita essa breve exposição biográfica do percurso que o conduziu da prática teatral para a realização de filmes, introduziremos a seguir os propósitos centrais desse artigo. 1.  Dentre os quais, destacam-se o prêmio Louis Delluc de melhor filme de estreia por Toutes les nuits (2001); o Grande Prémio de Longa Metragem no IndieLisboa 2004 e o FIPRESCI no Festival de Londres por Le Monde vivant (2003); e o prêmio do júri em Locarno pelo filme coletivo Memories (2007), de Eugène Green, Harun Farocki e Pedro Costa. 54 O cinematógrafo de Eugène Green Comecemos com uma frase que sintetiza a maneira pela qual Eugène Green dá início a todos os seus filmes. Vejamos. A matéria do mundo é reduzida ao mínimo, no limite da significação, para que tudo perca o seu volume e ganhe por fim uma legibilidade. Mais uma: o mundo visível é achatado, planificado, adquirindo o aspecto abstrato de um “diagrama”, para finalmente ser codificado no ato da leitura. Uma última, mais audaciosa: as “palavras” se unem às “coisas” para formar um tecido textual composto de signos indistintos. Pois bem, já começamos a nos repetir. E o espectador, como ele fica nisso tudo? Caberá ao espectador exercer o papel do “leitor” nesse grande teatro que se desenrola à distância. O retrato parcial descrito nas linhas acima poderia sugerir a falta de generosidade de um realizador excessivamente controlador. Mas não nos enganemos: os filmes de Eugène Green são um divertimento. A concisão desse rígido “sistema de signos” apenas ajuda na clareza de uma encenação tão bela quanto mais direta e objetiva nos parecer. Nenhum excesso, nenhuma confusão, nenhuma opacidade; nada que denote o mundo subjetivo do personagem ou que escape à cognição do espectador. O que é dado a ver comporta-se numa lógica ordenada segundo fins imateriais. E é justamente ao se opor aos excessos da matéria, concentrando os signos numa ordem regida por sua mise en scène, que Green dá vida ao seu fascinante “teatro ao ar livre”. Se, como dissemos há pouco, os filmes de Green se iniciam sempre dessa maneira, como um sistema de signos, é certo também, contudo, que nenhum deles seguirá em linha reta, nessa direção, até o fim. Uma vez consolidado o pacto significante com o espectador, Green procederá de outras formas, embaralhando as peças desse jogo semântico estabelecido. Veremos mais adiante que em Correspondances (2007), assim como já havia acontecido em outros filmes de Green, esse mosaico textual será acrescido de “sinais” – nomenclatura usada, inclusive, pelo próprio realizador. Algo então escapará à apreensão racional das coisas, e o espectador será convidado a se relacionar com o filme pela fé, pela crença de que haveria, entre ele e o mundo filmado, uma misteriosa “correspondência”. Pedro de Andrade Lima Faissol 55 Mas não nos precipitemos. Antes de analisarmos o filme supracitado, e sobretudo antes de desenvolvermos algumas questões presentes em toda a sua obra fílmica, será necessário formularmos as ideias centrais de Green acerca do cinema – referido em seu livro, assim como fizera Robert Bresson no passado, pelo termo “cinematógrafo”. Apresentaremos a seguir (a partir de uma exposição das principais ideias contidas em Poétique du cinématographe) uma pequena introdução ao pensamento de Eugène Green. Poética do cinematógrafo O conjunto de ensaios que compõe o livro Poétique du cinématographe é redigido inteiramente em parágrafos curtos, muito sintéticos, beirando o aforismo. Green resgata uma tradição literária um pouco perdida no tempo: a tradição das poéticas. Como disciplina teórica, a poética é o estudo das obras que define suas características gerais, criando conceitos que podem ser generalizados para a compreensão de outras obras do gênero. Assim, retomando o tom assertivo das poéticas do passado, e se juntando – no gesto e na erudição – aos cineastas Robert Bresson (Notes sur le cinématographe) e Raúl Ruiz (Poétique du cinéma), Eugène Green dá vazão a um conjunto de ideias objetivas que caracterizaria a gênese e a natureza do cinema. O livro de Green é dividido em duas partes. Na parte 1, intitulada “A Ideia”, Green inicia uma digressão que remonta ao Antigo Testamento, refratando a oposição iconoclasta entre a palavra e a imagem. Segundo Green, essa dicotomia – manifestação do puritanismo vigente – ignora a tradição das Escrituras, já que a aparição de Deus para Moisés se dá tanto pela visão quanto pela escuta. A sua reflexão teórica está filiada a uma tradição cristã que não distingue a imagem da palavra falada. Segundo o Evangelho de João, Jesus Cristo é a encarnação do verbo divino, e a matéria desse verbo é feita de luz. Há, portanto, uma sugestão de equivalência entre a Luz e o poder criador do Verbo. Ao longo do texto, enquanto desenvolve o conjunto de crenças que compõe sua cosmovisão, Eugène Green atravessa a história da filosofia cristã trazendo para seu lado nomes como São Paulo, Mestre Eckhart, Giordano 56 O cinematógrafo de Eugène Green Bruno, Blaise Pascal, Padre Antônio Vieira etc. O apogeu e o declínio dessa tradição mística teria se dado durante o período barroco, época em que o homem era ainda dominado pelo desejo contraditório de revelar o “Deus Escondido”, ao mesmo tempo em que gradualmente criava um modelo do universo que O excluía. O postulado estético de Green consiste em dar visibilidade ao Verbo, reconciliando o presente da obra de arte (reformada pelo espírito no ato da criação) com o elo divino perdido no passado. Sendo assim, o cinematógrafo, segundo a sua particularíssima teoria artística, seria o equivalente ao “verbo feito imagem” (Green, 2009: 15). Em franca oposição às outras artes (e, em larga medida, em oposição ao próprio cinema), essa concepção artística teria o compromisso de – naquilo que o aproxima de André Bazin – manter a integridade do mundo filmado. Essa fidelidade ao mundo sensível, paradoxalmente, faria revelar uma “presença real” invisível. Logo, o cinematógrafo greeniano, ou a vocação metafísica do aparato cinematográfico, consiste em dar visibilidade a um mundo espiritual sem o qual seria impossível acessar diretamente. Na segunda parte do livro, intitulada “A Prática”, Eugène Green expõe as soluções encontradas – enquanto realizador – para resolver problemas concretos ligados ao roteiro, à fotografia, ao som e ao trabalho com o ator. O pensamento teórico de Green está presente, de forma bastante coesa, em todas as áreas da práxis cinematográfica. Em relação à fotografia, por exemplo, Green irá defender que a iluminação deve buscar sempre a transparência. “O cineasta deve projetar a iluminação de um filme visando sempre o conteúdo da imagem: caso contrário, produzirá “efeitos” de luz, como em uma discoteca.” (Green, 2009: 80). Ou seja, a iluminação não deve servir aos propósitos de uma ideia, não pode jamais atuar com um propósito significante. Caso contrário, seria mero veículo expressivo do autor. Embora reconheça que a iluminação de um filme possa ser “fabricada” pelo fotógrafo, Green adverte que a Luz “nunca é puramente humana” (Green, 2009: 81). Da mesma forma que a Luz não existe sem as Pedro de Andrade Lima Faissol 57 Trevas, continua Green, a luz de cinema jamais pode prescindir da sombra. O fotógrafo não deve jamais anular as sombras naturais do rosto de um ator (embora não se deva também realçá-las artificialmente à maneira expressionista), sob o risco de transformar o rosto humano em uma máscara. “Sob uma luz vivaz, que inclui as sombras, a figura humana torna-se o espelho de uma vida interior” (Green, 2009: 81). Da mesma forma que a iluminação deve buscar a sua transparência (não podendo atuar jamais como expressão de uma subjetividade aflorada), todas as outras áreas do cinema (roteiro, direção, montagem, som, cenografia, figurino, maquiagem etc.) devem evitar qualquer marca de expressão autoral. O dispositivo defendido por Green para se filmar um diálogo (em um caso em que a sua teoria corresponde precisamente ao que realiza em seus filmes) é também uma via para a objetividade. Ao invés de filmar os atores através do uso convencional do campo/contracampo, Green os filma frontalmente, muito de perto (colocando a câmera entre os dois personagens, numa posição sem equivalência no jogo de olhares da cena). Enquanto que a tradicional regra dos 180º produz um efeito no espectador que o faz assumir o ponto de vista deslocado do sujeito que ouve (vemos tudo pela mediação de um olhar tomado de empréstimo), o dispositivo adotado por Green produz um efeito muito mais direto. Ao mexer nas convenções designadas para filmar uma conversa entre dois personagens, colando um rosto ao outro sem angulação (sobrepondo-os frontalmente), Green libera o espectador do olhar mediado pelo interlocutor da cena. Não vemos mais “por procuração”2. A abolição do plano ponto-de-vista possui um efeito unívoco em seus filmes: o acréscimo de objetividade. Assim, finaliza Green: “O plano subjetivo não existe mais, pois o olho do espectador é sempre aquele da câmera, que por sua vez mostra o que nenhum olhar humano é capaz de ver ao contemplar os fragmentos do mundo” (Green, 2009: 91). 2.  Segundo Green, o plano ponto-de-vista no cinema é uma herança da onisciência narrativa na literatura romanesca dos séculos XVIII e XIX, e teria, portanto, os mesmos efeitos negativos da literatura burguesa (julgamento moral e psicologização dos personagens). O cinematógrafo, segundo Green, seria uma retomada ao método descritivo de Flaubert – este, por sua vez, uma espécie de “precursor” do cinematógrafo. (Green, 2009: 99). 58 O cinematógrafo de Eugène Green Ao longo de toda a segunda parte de Poétique du cinématographe, fica claro que Eugène Green se filia a um grupo de realizadores (supostamente inspirados por André Bazin) para os quais deve ser proscrita da cena qualquer deformação que perturbe a apreensão estritamente material do quadro cinematográfico. Contudo, em relação à montagem (livre associação de imagens) e à moldura (enquadramentos excessivamente fragmentados), Green parece não ter as mesmas ressalvas. Conforme veremos mais adiante, esses dois elementos serão usados para exercer no filme um papel organizador: enquanto que a edição ordenará a mise en scène relacional entre texto e imagem, o enquadramento limitará o olhar do espectador aos seus propósitos sintáticos. O uso significante desses dois elementos seria, segundo o modelo baziniano, o pecado original de Eugène Green. Correspondências A seguir, para explicitarmos melhor a reflexão cinematográfica de Eugène Green, faremos a análise de Correspondances (2007), curta-metragem que integra o longa-metragem coletivo Memories (2007)3. Trataremos aqui do curta de Green isoladamente, pois os filmes desse projeto, intitulado “Jeonju Digital Project”, possuem plena autonomia, sendo o único ponto de contato entre eles – além do suporte digital obrigatório – a relação um pouco vaga com o tema da Memória. O projeto fora inicialmente recebido com ceticismo por Eugène Green. Nunca antes ele havia filmado em digital. Green sempre fora, desde quando começara a fazer filmes, um grande crítico desse suporte. Em seu primeiro livro dedicado ao cinema, Présences, de 2003, Green faz uma defesa do cinema analógico. Segundo dizia, apenas a película consegue apreender a energia vital dos seres e das coisas, já que a tecnologia digital é “desprovida de matéria, e não capta energia nenhuma.” (Green, 2003: 241). Supõe-se que essa crença no cinema analógico (crença que acompanha uma intensa dedicação na “captação” da energia liberada pelas coisas) explique, 3.   Os outros dois curtas são: The Rabbit Hunters, de Pedro Costa, e Respite, de Harun Farocki. Pedro de Andrade Lima Faissol 59 ao menos em parte, o aspecto aurático que consegue imprimir aos objetos filmados, dando aos seus filmes uma qualidade litúrgica equivalente à de um cerimonial religioso. Diante da impossibilidade de se filmar em película, já que a proposta do projeto era justamente a difusão do suporte digital, a solução encontrada por Green foi filmar o curta-metragem inteiramente em interiores. O projeto todo, desde o argumento, fora concebido por um diretor que, além de jamais ter usado uma câmera digital, se esforçara ao máximo para minimizar os efeitos (supostamente negativos) desse suporte. A proposta do filme é simples: filmar um diálogo por e-mail entre dois adolescentes, Virgile e Blanche. O que se vê, ao longo de todo o filme, são imagens inteiramente filmadas nos quartos dos dois; e o que se ouve é o conteúdo dos e-mails, reproduzidos integralmente em voz off – cada personagem empresta a sua voz ao texto que escreve ao outro. Quem inicia o contato virtual é Virgile. Após conseguir o endereço de e-mail de Blanche através de “uma pessoa que prefere não ser identificada”, Virgile escreve uma mensagem dizendo que não para de pensar nela desde que se encontraram alguns dias antes. Eles supostamente dançaram juntos num baile, só que esse contato prévio jamais é mostrado pelo filme, e Blanche tampouco consegue se lembrar desse curto momento que passaram juntos. Virgile tenta, sem sucesso, evocar a imagem de um gorro de lã, usado por ele naquele mesmo dia, para tentar fazê-la se lembrar de seu rosto. Blanche, contudo, diz que não se lembra de nada. Dessa curiosa situação, se inicia um longo diálogo em que Virgile tenta convencer Blanche a encontrá-lo pessoalmente. De início muito resistente à ideia de marcar um encontro com um estranho, Blanche é gradualmente convencida do contrário, e por fim acaba aceitando encontrá-lo numa praça pública. O filme termina antes do encontro, com a câmera apontada para a janela do quarto, dando vista para fora de casa. Um lento travelling para frente no final do filme ressalta esse movimento percorrido pelos personagens: de dentro para fora do apartamento. O filme, portanto, trata exatamente 60 O cinematógrafo de Eugène Green desse contato virtual entre dois jovens, o amor de um pelo outro ganhando uma reciprocidade e, por fim, após muito hesitar, a decisão de Blanche de encontrá-lo presencialmente. Enquanto esse longo diálogo em voz off se desenrola, o principal trabalho de mise en scène consiste em filmá-los individualmente em seus respectivos quartos, sempre interagindo com os objetos que integram seus universos (universos de dois adolescentes, diga-se de passagem). Esses objetos espalhados em seus quartos são o próprio cenário do filme, porém, estabelecem com o texto uma relação determinante; exercem uma função que ultrapassa a mera decoração ou ambiência. O trabalho de Eugène Green consiste em fazer uma costura entre o que se vê e o que se ouve, estabelecendo um sentido adequado aos propósitos do filme. Assim, enquanto ouvimos as vozes dos personagens conversando, vemos alguns objetos que pertencem aos seus respectivos quartos: fotografias, livros, alguns móveis, seus respectivos computadores, uma vela, algumas peças de roupa, uma rosa, um CD player, um gatinho preto etc. Às vezes esses objetos são filmados isoladamente, em planos detalhes, outras vezes em conjunto com os personagens. Importante ressaltar aqui que essas imagens estão, todas elas, integradas naturalmente ao espaço de cada quarto, ou seja, elas estabelecem com o espaço circundante uma relação de continuidade. Vejamos a seguir um simples exemplo de como essas imagens são trabalhadas com o texto. Num dado momento do filme, ainda na primeira metade, Virgile diz que pensa tanto em Blanche que ela parece estar ao seu lado como “um fantasma que pode ser visto, mas não possui um corpo”. Nesse momento, Green filma bem de perto – numa suave panorâmica – o corpo de Blanche. Ela, por sua vez, responde que Virgile é como um fantasma que não pode ser visto, apenas ouvido, pois ela não sabe como é o seu rosto. Nesse exato instante, Green filma pela primeira vez o rosto de Virgile. Nesses dois casos, a relação que as imagens estabelecem com o texto é de oposição. Ou melhor, de complementariedade. A montagem do filme consiste em oferecer imagens que teriam a função de preencher as lacunas na memória de cada um (o corpo de Blanche, no primeiro caso; o rosto de Virgile, Pedro de Andrade Lima Faissol 61 no segundo). Logo após vermos o rosto de Virgile pela primeira vez, ouvimos a sua voz off dizer: “Se você procurar bem, poderá encontrar o meu rosto na sua memória”. E a imagem que Green nos oferece a seguir é a de seu gorro de lã vermelho – justamente aquela mesma imagem que, desde o início do filme, está marcada pelo seu poder evocativo. Virgile ainda reforça: “Esse rosto que você se esqueceu está vendo o seu. Você poderá encontrá-lo se pensar em meu gorro de lã. Você deve tê-lo notado, todo mundo nota”. E assim o filme vai evoluindo, as imagens sempre estabelecendo uma relação de complementariedade com o texto declamado. Avesso à filiação iconoclasta que enxerga oposição entre a palavra e a imagem (noutros termos: entre o Verbo e a Luz), Green procura estabelecer com o espectador uma relação baseada na costura entre o texto declamado e o poder de sugestão da imagem – e tal relação se dá, como o título do filme já sugere, através de uma rede de correspondências. Dentre essas imagens evocativas, reiteradas ao longo de todo o filme, há um cartaz de uma conhecida Anunciação (Annunziata [1476], de Antonello da Messina). O cartaz com a pintura da Virgem está pendurado na parede do quarto de Blanche – perfeitamente integrado, como dissemos, ao universo da personagem. Blanche, por sua vez, já havia dito a Virgile que possuía em seu quarto uma imagem religiosa cujo sentido lhe escapava. No exato momento em que nos é mostrada a Anunciação de Antonello da Messina, Virgile diz a Blanche: “Todas as imagens anunciam uma palavra”, fazendo unir o sentido bíblico da Anunciação à operação relacional do cinema de Eugène Green. Nem sempre, contudo, as imagens que ganham destaque na cena são objetos e/ou fragmentos de corpos dos personagens. Vejamos. Num dado momento do filme, Virgile diz que ama Blanche. Ela, contudo, não compreende o seu amor, pois – afinal – eles mal se conhecem. Os dois conversam então sobre isso. No final da conversa, Virgile diz: “Quando sentimos que estamos nos tornando uma ligação entre dois pedaços do mundo, isso faz ressoar algo de visível”. Logo em seguida, Virgile vai até o seu CD player e bota para tocar uma música de Claudio Monteverdi. Nos próximos três minutos, os dois personagens – inclusive Blanche – serão flagrados em seus quartos como se 62 O cinematógrafo de Eugène Green ouvissem a música e sentissem, na solidão, a presença um do outro. No final dessa sequência musical, uma lenta panorâmica revela, no chão do quarto de Blanche, dois focos de luz solar projetados lado a lado. Logo em seguida, tendo visto a mesma imagem que o espectador, Blanche dirá que finalmente compreendeu o amor de Virgile. Parece haver ali, naquelas duas marcas luminosas projetadas no chão de seu quarto, uma confirmação do que Virgile havia dito para ela: os dois focos de luz foram decifrados por Blanche como aquele “algo de visível” que ligaria “dois pedaços do mundo”. O espectador que já conhece alguns filmes de Eugène Green talvez não se surpreenda com a lógica que subjaz a essa maneira de encenar. Green geralmente inicia seus filmes fazendo um uso inequívoco de marcações cênicas. Depois disso, uma vez estabelecido e consolidado o pacto significante com o espectador, Green passa a utilizar signos não muito claros. A apreensão dessas imagens enigmáticas escapa à razão do espectador. A esses corpos inanimados e luminosos, colocados normalmente no centro do quadro, desprovidos de revelo e materialidade, o próprio Green chamará pelo nome de “sinais”4. Esses signos especiais podem ser mais que um equivalente significante, mais que uma ferramenta mimética de substituição. Ao invés de substituírem um referente implícito na cena (como o faz qualquer signo ordinário), esses signos especiais sinalizam para algo exterior à sua própria significação. No caso explicitado acima, as duas marcas luminosas no chão do quarto de Blanche sinalizam e dão sentido ao comentário feito por Virgile alguns minutos antes: “Quando sentimos que estamos nos tornando uma ligação entre dois pedaços do mundo, isso faz ressoar algo de visível”. As marcas luminosas no chão do quarto de Blanche são decerto um “sinal”, e os filmes de Green são repletos de imagens premonitórias como essas. 4.   Esses “sinais” são trabalhados por Green numa chave cujo sistema foi detalhado por mim em uma dissertação de mestrado intitulada “A Natureza Eloquente – um estudo sobre o cinema de Eugène Green”. Neste trabalho, procurei mostrar que o cinema de Green estabelece com o seu espectador um pacto que consiste em dar aos objetos filmados um forte poder de evocação. Em outras palavras: fazer as imagens falarem, tornar a natureza eloquente. Pedro de Andrade Lima Faissol 63 No primeiro filme de Eugène Green, Toutes les nuits (2001), por exemplo, um reflexo de luz estampado na parede de uma maternidade é usado para antecipar o gênero de uma criança que ainda está para nascer. O formato triangular do reflexo luminoso é uma marca que designa o sexo feminino (em alusão à genitália feminina). Nos dois casos citados acima, notemos que é a montagem de Eugène Green que permite que o texto se relacione com a imagem de forma premonitória, é ela que dá o sentido almejado pelo realizador. Segundo Bazin, para quem o cinema tem como “vocação” a apreensão realista da cena, a montagem estaria “proibida” quando “o essencial de um acontecimento depende da presença simultânea de dois ou mais fatores da ação” (Bazin, 1991: 127). Eugène Green, contudo, parece não possuir as mesmas convicções em relação ao uso da edição, mesmo quando ela é – justamente – o elo entre um personagem a um fenômeno “metafísico”. O cinema de Green, afinal, tem como objetivo a apreensão de uma realidade espiritual da qual o mundo material ofereceria apenas vestígios. Sem o aparato cinematográfico, segundo Green nos conta em seus livros, esses “sinais” não poderiam ser plenamente acolhidos. Para ele, portanto, o cinema consiste em fazer revelar uma “realidade espiritual” jamais vista sem a mediação do aparato cinematográfico (razão pela qual Green chama o “cinema ideal” de “cinematógrafo” – ênfase aqui na vocação “metafísica” do registro). Nesse momento, nos afastamos decididamente do universo da fenomenologia e da imanência baziniana. Muito na contramão do empirismo reinante, Eugène Green solicita de seu espectador um trabalho de decifração. É justamente interpretando alguns “sinais” espalhados pelo filme que passamos a compreender o sentido almejado por Green. E sempre haverá um sentido, não devemos perder isso de vista. A interpretação corresponde a uma etapa fundamental na busca pelo conhecimento. A realidade ficcional torna-se pro espectador o que o mundo sensível é para o homem crente: campo de ação para a busca de um sen- 64 O cinematógrafo de Eugène Green tido. Caberá ao espectador empenhar-se ativamente na decifração desses “sinais” através dos quais o mundo refletiria um “para-além”. Dessa forma, não lhe restará outra forma de se relacionar com o filme senão pela fé, pela crença de que haveria uma correspondência, à distância, entre o homem e o mundo espiritual. O espectador greeniano, idealmente, é como um leitor solitário que busca o sentido de um texto através da leitura. Devemos decifrar esses signos especiais, contudo, não como o fazem, por exemplo, os psicanalistas; mas à maneira de um vidente que busca nas sementes das plantas (ou ainda nas constelações do firmamento) reflexos visíveis de um mundo espiritual invisível. A busca pelo conhecimento deve ser travada pelo homem, não no interior de seu inconsciente, mas na objetividade contingente da natureza. O gosto de Green pela metafísica neoplatônica parece encontrar aqui um amparo estético: os “sinais” espalhados em seus filmes são como “espelhos do Inteligível”, cujos reflexos (perfeitamente legíveis – a quem se dispuser a lê-los) se apresentam ao homem como pura exterioridade. Esses “sinais”, portanto, jamais poderiam pertencer ao mundo mental dos personagens. É importante enfatizarmos isso, pois essa postura “para fora”, exteriorizada, diz muito sobre o pensamento de Eugène Green. Nunca se verá em seu cinema a manifestação do mundo imaginativo ganhando uma forma própria. Isso se nota na total ausência de efeitos visuais ou sonoros, câmera na mão ou plano ponto-de-vista que denotem o mundo subjetivo de algum personagem. O que se vê em seu cinema é, antes, uma linguagem muito decantada, livre de excessos e verborragias, plena de objetividade e concisão. Pedro de Andrade Lima Faissol 65 Referências bibliográficas Aumont, J. (2006). O cinema e a encenação. Lisboa: Texto & Grafia. Ayfre, A. (1964). Conversion aux images. Paris: Cerf. Bazin, A. (1991). O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense. Bresson, R. (2005). Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras. Green, E. (2001). La parole baroque. Paris: Desclée de Brouwer. ____ (2003). Présences – essai sur la nature du cinéma. Paris: Desclée de Brouwer. ____ (2009). Poétique du cinématographe. Arles: Actes Sud. Metz, C. (2012). A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva. Ruiz, R. (1995). Poétique du cinéma. Paris: Dis Voir. 66 O cinematógrafo de Eugène Green DO CINEMA AOS FILMES: A SEMIOLOGIA GERAL DA REALIDADE DE PIER PAOLO PASOLINI Marcelo Carvalho Boa parte dos textos do livro Empirismo Herege, coletânea de ensaios e entrevistas de Pier Paolo Pasolini publicada pela primeira vez em 1972, já viera a público antes de ser reunida sob este título. Dividida em três seções, Língua, Literatura e Cinema, traz nesta última o que de mais relevante Pasolini produziu sobre a teoria cinematográfica. Escritos entre 1965 e 1971, os textos sobre o cinema manifestam notável coerência temática. No entanto, sem a unidade de um sistema teórico acabado, tais textos delineiam ideias e conceitos que evoluem a cada nova intervenção, por vezes em meio a debates, em alguns momentos apresentando revisões e acréscimos, lá onde o pensamento iconoclasta de Pasolini embaralha as fronteiras entre a linguística, a semiologia e a teoria do cinema. Propomos aqui um mapeamento de algumas das principais ideias trabalhadas pelo cineasta nos textos reunidos em Cinema com o intuito de recompor a argumentação pasoliniana num percurso didático e coerente. Dentre as propostas apresentadas no livro, o cinema de poesia é sem dúvida a que mais atenção mereceu daqueles que se interessaram pelas ideias teóricas de Pasolini, razão pela qual não a incluiremos neste levantamento, salvo pontualmente. Nosso foco se dirigirá para questões como a noção de “realidade” de Pasolini, a diferenciação entre cinema (enquanto langue) e filme (parole), a teoria do plano-sequência, o cinema como “língua da realida- de”, a montagem como passagem do presente para o passado, os objetos e a dupla articulação no cinema, os fundamentos da semiologia geral da realidade e o Ur-código. Por fim, faremos referência a alguns filmes de Pasolini, não para ilustrar suas ideias, mas para tentar lançá-las em novas direções. A ‘realidade’ segundo Pasolini O cinema, segundo Pasolini, seria o lugar de um encontro com os objetos do mundo, com a matéria, como fica evidente no texto A língua escrita da realidade (de 1966), escrito em confesso estado de “crise e negatividade” (Pasolini, 1982: 163) em relação ao artigo do semiólogo Christian Metz (1972) Cinema: língua ou linguagem? (de 1964). Pasolini deseja levar o cinema para além da categoria de linguagem artística (como o classifica Metz), vendo-o como uma espécie de “língua escrita” sem seu correspondente oral (o cinema não serviria, evidentemente, para falar). Existiria, enfim, ao contrário do que afirma Metz, uma língua do cinema, sendo possível, inclusive, esboçar sua gramática não-normativa e não apenas fazer-lhe uma descrição semiológica.1 Ainda em A língua escrita da realidade, Pasolini propõe a distinção entre cinema e filme baseada na diferenciação entre langue (língua) e parole (discurso, fala) oriunda da linguística.2 O cinema, como a langue, não existiria concretamente, apenas como “dedução abstrata e normatizadora operada a partir da existência concreta dos filmes” (Pasolini, 1982: 208). Em contrapartida, haveria o filme concreto, tal como só existe a parole em relação a 1.  Para Christian Metz (no texto Cinema: língua ou linguagem?) o cinema não seria assimilável a uma língua, mesmo primitiva, pois contrariaria princípios básicos de um idioma: não seria um sistema, não abrigaria signos facilmente e não seria um meio “natural” de comunicação. Criticando a possibilidade da cine-língua – proposta por Sergei Eisenstein –, Metz considera a imagem cinematográfica como remetendo apenas ao que captou. O cinema seria “arte ‘fenomenológica’ por excelência, o significante coextensivo ao conjunto do significado, o espetáculo que se significa a si mesmo...” (Metz, 1972: 59). Por outro lado, o cinema poderia ser linguagem, notadamente uma linguagem artística, embora Metz seja bem cuidadoso a este respeito: o cinema seria uma linguagem semiológica, mas apenas em um “nível específico de codificação” (Metz, 1972: 79). 2.  Pasolini retoma a distinção saussuriana entre langue (a língua, o sistema complexo de unidades de valores diferenciados entre si, código social homogêneo comum a cada falante de uma determinada comunidade) e parole (o discurso, a fala que atualiza a língua em um dado momento no tempo através de um falante que domina tal código). Para Saussure, só a langue (esfera social) seria passível de análise, pois a parole (esfera individual) estaria sujeita aos fatores externos, não linguísticos (Saussure, 1995). 68 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini uma langue. Uma “língua do cinema” (ou, mais especificamente, o cinema enquanto langue) é o ponto de discordância fundamental entre Pasolini e Metz, já que para este de maneira alguma o cinema seria uma língua. A aproximação entre cinema e langue não é fortuita, pois Pasolini pretende dar um passo bastante ousado mais adiante. Tomemos a noção de “realidade” como Pasolini a invoca em O medo do naturalismo, texto de 1967: “por realidade entendo referir o mundo físico e social em que se vive, seja este qual for” (Pasolini, 1982: 204). Tal concepção é enganadoramente simples, pois engloba complexidades políticas, além de conotações tanto sexuais quanto sagradas e/ou blasfemas.3 Seus filmes refletem esta concepção ampla de “realidade”, que proporciona a Pasolini a oportunidade (estética, mas também metafísica) de acercar-se dos seus objetos de “culto”, seja para profaná-los pela crítica política ou pela abjeção – Gaviões e passarinhos (Uccellacci e uccellini, 1966), Pocilga (Porcile, 1969), Saló ou os 120 dias de Sodoma (Saló o le 120 giornate di Sodoma, 1975) –, seja para retomar o impulso perdido de sacralização/sexualização da vida – a primeira parte de Medeia (Medea, 1969), Decameron (Il decameron, 1971), Os contos de Canterbury (I raconti di Canterbury, 1972) e As mil e uma noites (Il fiore delle Mille e uma notte, 1974)4 etc. Pasolini abandona gradualmente a compreensão do cinema como representação e cópia da realidade em prol de aproximar-se dos objetos reais, mesmo que tal aproximação suscite a abstração da langue cinematográfica. É possível mapear esta passagem. Em entrevista (Pistas para o cinema, de 1966), Pasolini convoca sua concepção de realidade para a imagem cinema3.  Complexidades que vêm à tona quando Pasolini declara ter um “amor pragmático pela realidade. Religioso também, na medida em que funda de certo modo, por analogia, uma espécie de imenso fetichismo sexual. O mundo não parece ser para mim senão um conjunto de pais e de mães, para os quais sinto um impulso total, feito de respeito e veneração e da necessidade de violar esse respeito e essa veneração através de dessacralizações ainda que violentas e escandalosas” (Pasolini, 1982: 187). E “o meu amor fetichista pelas ‘coisas’ do mundo impede-me de as considerar naturais. Ou as consagra ou as desconsagra – violentamente, uma por uma: não as liga num fluxo harmonioso e equilibrado, não admite esse fluxo. Isola-se e idolatra-as, e assim, mais ou menos intensamente, uma a uma” (Pasolini, 1982: 188). Trechos de entrevista de Pasolini editada em Empirismo herege sob o título Pistas para o cinema, originalmente publicada em Cinema e film (A. I, nº 1, inverno, 1966-1967 (N. A.)). 4.  Os três últimos filmes formam a Trilogia da vida, abjurada mais tarde por Pasolini como reação à “captura” dessas obras por uma falsa tolerância com relação ao sexo e pela maquinaria do consumo fácil e acrítico (Barroso, 2000: 203-206). Marcelo Carvalho 69 tográfica, mas ainda refere-se ao cinema como “reprodução”, espelho das coisas, das formas, dos movimentos, que se poria em curso novamente no momento da projeção: o cinema seria “(...) a realidade através da realidade. Concretamente, através dos objetos da realidade que uma câmera, momento a momento, reproduz” (Pasolini, 1982: 186 e 187); ou “o cinema é uma língua que não se afasta nunca da realidade (é a sua reprodução!)” (Pasolini, 1982: 187). No entanto, no artigo Os signos vivos e os poetas mortos (datado de 1967) Pasolini já não considera o cinema como “reprodução da realidade”, mas como entidade abstrata que se confunde com a própria realidade, isto é, cinema como langue:5 Ora – e aqui está a ideia nova que é a razão que me faz escrever este apêndice – enquanto a langue, deduzida por abstração das paroles, é sempre um fato linguístico, mesmo que exista como hipótese e subsequente codificação, o cinema deduzido dos vários filmes já não é um fato cinematográfico. A LANGUE DOS FILMES (ISTO É O CINEMA) É A PRÓPRIA REALIDADE! (Pasolini, 1982: 208).6 Pasolini evoca uma condição de direito, o cinema como realidade, condição que presidiria o funcionamento do mecanismo cinematográfico de captação de imagens. E mesmo que parta da concepção saussuriana de langue, Pasolini estabelece com esta uma diferenciação fundamental ao recriá-la no âmbito cinematográfico. Pois a dimensão mais abstrata, a langue cinematográfica, o cinema, é também a dimensão mais concreta: o cinema para Pasolini seria a própria realidade e sua radical diferença com relação à langue está, justamente, em também fazer parte do universo material. É por isso que Pasolini não se detém no cinema enquanto virtualidade da matéria, 5.  A s intervenções de Pasolini nesta época mostram-no preocupado em caracterizar o que entende por realidade como uma instância não-representacional: ainda na entrevista Pistas para o cinema, de 1966, “expressando-me através da língua do cinema (...) permaneço sempre no âmbito da realidade” (Pasolini, 1982: 187); ou no artigo O código dos códigos, de 1967, “muitas vezes repeti que o Código da Realidade e o Código do Cinema (...) são o mesmo código” (Pasolini, 1982: 232), etc. 6.  Mantivemos (nesta e nas demais citações ao logo do artigo) os destaques encontrados nos textos (em letra maiúscula ou em itálico) tal como aparecem na edição de Empirismo herege consultada. 70 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini pois a matéria não seria modulada pelo cinema sem que já não fosse, ela própria, cinema: “a realidade é um cinema em estado de natureza” (Pasolini, 1982: 186).7 Plano-sequência infinito Para demonstrar a conexão da realidade com a langue/cinema, Pasolini lança mão de sua teoria sobre o plano-sequência.8 Sua argumentação toma o percurso de uma vida humana, do nascimento à morte, como um itinerário cinematográfico, como se uma câmera imaginária estivesse idealmente instalada por trás dos olhos de uma pessoa, acompanhando-a em todas as suas ações. A infinitude e a continuidade da realidade se rebateriam na infinitude e na continuidade desse cinema ideal, como exposto no trecho abaixo de Os signos vivos e os poetas mortos: O cinema é um plano-sequência infinito que expressa a realidade através da realidade. Há sempre diante de cada um de nós uma câmara virtual e latente, de châssis inesgotável, que ‘roda’ a nossa vida desde que nascemos até morrermos. Porque a nossa linguagem PRIMEIRA E PURA é a nossa presença, realidade na realidade (Pasolini, 1982: 207). Apesar de invocar a presença humana (perceptiva e ativa) enquanto “realidade na realidade”, Pasolini se distancia de um sujeito percipiente que experimenta a realidade ao afirmar um universo “anterior” à leitura fenomenológica proposta por Merleau-Ponty (1983) para o cinema. Merleau-Ponty interessa-se pela condição de percepção de um sujeito diante do filme projetado e a associação (ou não) do filme à percepção natural. Mas Pasolini parte 7.  É interessante notarmos algumas confluências entre Pasolini e a posição de Henri Bergson (1990) em Matéria e memória. Nesta obra (escrita em 1896), Bergson apresenta seu conceito de “imagem” como não-representacional, identificando-a como o conjunto de tudo o que efetivamente existe. Por extensão, para Bergson imagem é igual a matéria, a movimento e a luz. Em sua leitura bergsoniana do cinema, Gilles Deleuze (1985), referindo-se ao universo material, afirma ser o plano de imanência enquanto corte móvel (movimento) da duração o “agenciamento maquínico das imagens-movimento. Há aqui um extraordinário avanço de Bergson: é o universo como cinema em si, um metacinema” (Deleuze, 1985: 80). 8.  Em um filme, o plano é o período fílmico entre dois cortes (sendo o corte a substituição abrupta de um plano por outro plano). A sequência é uma unidade dramática, contendo um número variável de planos e cenas (unidades espaço-temporais dentro de uma mesma sequência). O plano-sequência é a sequência formada de um único plano, sem cortes. Um exemplo notório de plano-sequência é o início de A marca da maldade (Touch of evil, 1958, de Orson Welles) – apesar do corte no final, quando da explosão do automóvel. Marcelo Carvalho 71 de outros pressupostos, direcionando-se para a própria tessitura espaço‑temporal ao qual o cinema se relacionaria. Tomemos sua definição genérica de que a langue/cinema seria um plano-sequência ideal e subjetivo. No texto Observações sobre o plano-sequência (de 1967), Pasolini recorre a um exemplo exterior à instituição cinematográfica como espetáculo, o que reforça seu interesse pela condição de existência do cinema. Trata-se não de um filme, nem mesmo de uma reportagem televisiva, mas do flagrante realizado em super-8 por Abraham Zapruder do assassinato do presidente americano John Fitzgerald Kennedy em 1963; e não sendo um plano-sequência inserido em um filme, tem ainda o mérito de manter o foco na questão, afastando dicotomias como a de ficção versus documentário ou a de arte versus mídia. A visão subjetiva e única do material filmado por Zapruder seria “o limite realista máximo de qualquer técnica audiovisual” (Pasolini, 1982: 193), já que haveria apenas um ponto de vista contínuo sobre o evento captado. Por outro lado, restaria irrealizado o conjunto de todos os outros pontos de vista simultâneos sobre o mesmo fato (a morte de Kennedy) que Pasolini classifica como a série incomensurável de planos-sequência subjetivos. Mas os inumeráveis pontos de vista latentes não fazem jus ao evento em si, pois mesmo se fosse possível montar um após o outro cada um de todos os planos-sequência possíveis e irrealizados do momento da morte de Kennedy, resultaria apenas na multiplicação de presentes exibidos sucessivamente, o que acabaria por abolir o próprio presente, esvaziando-o nos inúmeros pontos de vista que se relativizariam uns aos outros. Portanto, segue Pasolini em Observações sobre o plano-sequência, cada ponto de vista da langue/cinema não passaria de um modo pobre e aleatório de testemunho frente à realidade que se esconde para além da somatória de todos os pontos de vista. Mas restaria um vestígio do tempo, lá onde a realidade “falou” pelo ponto de vista (pobre e aleatório) que efetivamente existe (o filme de Zapruder), pois “a realidade não fala com outras coisas senão consigo própria” (Pasolini, 1982: 194). 72 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini A realidade falaria por signos “não simbólicos”: “a linguagem da ação é, portanto, a linguagem dos signos não simbólicos do tempo presente, e, no tempo presente, todavia, não há sentido” (Pasolini, 1982: 194). A linguagem da ação, da realidade, não é linguística, o que não significa que não envolva uma busca, uma “sistematização relativamente a si própria a ao mundo objetivo e, por conseguinte, uma busca de relação com todas as outras linguagens da ação através de que os outros ao mesmo tempo se expressavam” (Pasolini, 1982: 194 e 195). O contato com a realidade, a sistematização preliminar organizativa dos objetos do mundo objetivo é descrito por Pasolini como sendo possível apenas com a existência de uma espécie de “língua da realidade” inerente às coisas, pré-comunicacional e selvagem. Mas, se Pasolini chama esse momento de “língua” é com o pressuposto de um necessário alargamento (ou mesmo um rompimento) com a ideia de língua, como se depreende do depoimento contido em O não-verbal como outra verbalidade9 (de 1971): Sim, este carvalho que tenho diante de mim, não é o ‘significado’ do signo escrito-falado ‘carvalho’: não, este carvalho, fisicamente aqui perante os meus sentidos, é ele próprio um signo: um signo por certo que não escrito-falado, mas icônico-vivo, ou como se queira dizer de outro modo. Isto é, essencialmente, os ‘signos’ das línguas verbais não fazem mais do que traduzir os ‘signos’ das línguas não verbais: ou, na circunstância, os signos das línguas escrito-faladas não fazem mais do que traduzir os signos da Linguagem da Realidade. (...) O não verbal, por conseguinte, não é senão uma outra verbalidade: a da Linguagem da Realidade (Pasolini, 1982: 217 e 218).10 9.   Entrevista por escrito a S. Arecco (Filmcritica, março de 1971) – como informado na nota de rodapé em Empirismo herege: 217. 10.   Da mesma forma, Pasolini sabia como a “língua do cinema”, para ser considerada como tal, deveria modificar o próprio conceito de língua (como explicitado no artigo O argumento cinematográfico como ‘estrutura que quer ser outra estrutura’ (de 1965): “se o cinema é uma outra língua, essa língua desconhecida não poderá assentar em leis que nada tenham a ver com as leis linguísticas a que estamos habituados? (...) o cinema assenta num ‘sistema de signos’ diferente do sistema escrito-falado” (Pasolini, 1982: 156)). Marcelo Carvalho 73 Restaria tratar a dimensão da parole/filme, mais precisamente, a passagem da langue/cinema a parole/filme. A linguagem da ação, da realidade, isto é, todos os pontos de vista ideais – no exemplo trabalhado por Pasolini, a “ação” de Kennedy, seus últimos momentos, somada às “ações” das pessoas que o assistiam –, estariam truncados e incompletos até que as relações viessem a ser estabelecidas, não pela multiplicação dos presentes (isto é, com a justaposição sucessiva dos planos-sequência subjetivos), mas pela escolha e coordenação de diversos trechos dos vários pontos de vista de modo a constituir um percurso coerente (montagem), que, em vez de destruir e esvaziar o presente, tornaria o presente, passado. O cinema, enquanto langue abstrata da realidade (idealmente imaginada como um plano-sequência virtual pleno, língua escrita da ação), precisaria transpor sua própria continuidade e infinitude lineares, ditas “analíticas”, para uma solução concreta e igualmente linear (mas de uma linearidade “sintética” e apenas potencialmente contínua e infinita) pela montagem pensada como síntese (pela seleção dos trechos dos pontos de vista). Isto é, em um filme enquanto parole concreta e existente da langue abstrata da realidade. Assim se constituiria o caminho que vai da langue/cinema (que escreve virtualmente a realidade numa fisicalidade infinita e numa temporalidade ininterrupta) a parole/filme que mantém a linearidade pela montagem, porém, reduzindo-a a segmentos, sintetizando o continuum da realidade. Em sua teorização, Pasolini concebe a montagem como uma operação de síntese. Entretanto, tal concepção parece dizer respeito à passagem conceitual entre a langue/cinema e a parole/filme, já que sua posição de partida não o impede de celebrar experiências disjuntivas do cinema moderno,11 nem de adotar procedimentos disruptivos em seus próprios filmes. Tomemos, por exemplo, Teorema (1968), onde a estrutura familiar burguesa é desestruturada após a chegada de um estranho que seduz a todos. O confronto com 11.   Ao caracterizar o cinema de poesia, Pasolini (1982: 146-152) se serve de autores emblemáticos do cinema moderno, como Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard e Bernardo Bertolucci, cujas obras caracterizavam-se em 1965 (quando o cineasta apresentou o manifesto O cinema de poesia durante a primeira Mostra Internazionale del Nuovo Cinema de Pesaro, Itália (Amoroso, 2002: 63)) não pela reconstituição de unidades sintéticas, totalizantes e verazes (como grosso modo no cinema clássico americano ou o cinema soviético dos anos 1920), mas por incomensurabilidades da imagem, reencadeamentos constantes e disjunções as mais variadas (Deleuze, 1990). 74 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini seus instintos sexuais primários leva cada membro da família a uma espécie de entropia em separado: o pintor que perde a autoconfiança, a moça prisioneira da imobilidade e da mudez, a mãe torturada pela culpa por não conseguir mais controlar seus impulsos sexuais, o industrial que abdica dos bens materiais após perder suas referências. Emancipados da moral burguesa e de uma vida vazia, agem, contudo, como deserdados, não como libertos. Só a empregada da família ainda consegue potencializar a expiação e o martírio em milagres, mas ao custo de ser enterrada viva no final. Os destinos tomados pelos personagens são irreconciliáveis entre si (eles não mais se encontram) e a recomposição da ordem familiar burguesa já não é mais possível, salvo enquanto território estéril comum – os planos do terreno vulcânico como leitmotiv do filme. Ou ainda Pocilga, crítica às entranhas do capitalismo pela construção de dois universos que permanecem apartados durante o filme: o presente (década de 1960 do século XX), em uma atmosfera de flerte com o poder e conivência com o nazi-fascismo, e uma dimensão passada (século XVI) onde um homem mata e canibaliza a carne do pai, dando vazão às suas pulsões mais violentas e selvagens. A conexão entre as duas partes se faz apenas nas relações simbólicas entre as pulsões e a resistência e/ou a capitulação frente às demandas do poder religioso e do capital. Em ambas aflora a natureza humana violenta, libertária e amoral que subjaz às convenções sociais e que leva à morte tanto o canibal quanto o jovem burguês inadaptado, devorado pelos porcos. Se o filme atualiza a ideia abstrata de cinema em uma relação espaço‑temporal diferente da que experimentamos (por intermédio de nossos sentidos naturais), por outro lado esta mesma relação espaço-temporal diferenciada abre a possibilidade da langue/cinema ser operada estilisticamente. Em Os signos vivos e os poetas mortos (também de 1967), seria “naturalista” a langue/cinema que expressaria a realidade com a própria realidade “de modo incessante, isto é, segundo o próprio tempo da realidade” (Pasolini, 1982: 207). No texto Que será natural?, também de 1967, Pasolini comenta que se não há diferença entre o que denomina como “tempo da vida” e como “tempo do cinema” (da langue/cinema), já que trata-se de um “plano-sequência Marcelo Carvalho 75 infinito”, “pelo contrário, é substancial a diferença existente entre o tempo da vida e o tempo dos vários filmes” (Pasolini, 1982: 198). Tal diferença faz com que Pasolini tenha uma concepção negativa do “naturalismo”12 nos filmes enquanto tentativa de simular a langue/cinema, considerando-o como impraticável,13 já que a inventividade temporal posta em curso na montagem desnaturalizaria a langue/cinema ao torná-la filme. A montagem seria também máquina de produção de sentido, assim como a morte, e ambas promoveriam uma organização a posteriori que afasta a langue/cinema (tornada parole/filme) e o ser vivo (que se extingue) da realidade. Como escreve em Observações sobre o plano-sequência, “somente os fatos acontecidos e acabados são coordenáveis entre si e portanto adquirem sentido” (Pasolini, 1982: 195), pois “a morte realiza uma montagem fulminante da nossa vida” (Pasolini, 1982: 196). É todo o percurso do cinema ao filme, do presente ao passado, da matéria à memória: O cinema (ou melhor, a técnica audiovisual) é substancialmente um plano-sequência infinito, como exatamente o é a realidade perante nossos olhos e ouvidos, durante todo o tempo em que nos encontramos em condições de ver e de ouvir (um plano-sequência subjetivo infinito que acaba com o fim da nossa vida): e este plano-sequência, em seguida, não é mais do que a reprodução (como já repeti várias vezes) da linguagem da realidade: por outras palavras, é a reprodução do presente. 12. O termo “naturalismo”, tal como usado por Pasolini, não se refere ao movimento literário da segunda metade do século XIX relacionado ao escritor francês Émile Zola. 13.   Ou, no mínimo, equivocado. A recusa de Pasolini ao que ele denomina como “naturalismo” precisa ser interpretada tendo em vista a distinção que estabelece entre o plano-sequência virtual do cinema (continuum da realidade) e o plano-sequência concreto em um filme. É a realidade no filme o que Pasolini deseja encontrar sobre a tela. Por exemplo, em Que será natural?, encontramo-lo qualificando como “insensatamente naturalista” (1982: 199) os filmes em planos-sequência do underground americano, como Sleep (1963), de Andy Warhol, ao compará-los com os planos-sequências do neorrealismo italiano: “O breve, sensato, medido, natural, afável, plano-sequência” neorrealista “dá-nos o prazer de reconhecermos a realidade vivida cotidianamente e fruída através de um confronto estético com as convenções acadêmicas; o longo, insensato, desmedido, inatural, mudo, plano-sequência do novo cinema [underground americano], pelo contrário, coloca-nos num estado de horror pela realidade, através de um confronto estético com o naturalismo neorrealista interpretado como uma academia do viver” (Pasolini, 1982: 199-200). 76 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini Mas a partir do momento em que intervém a montagem, ou seja: quando se passa do cinema ao filme (cinema e filme que são, por conseguinte, duas coisas muito diferentes, como a langue é diferente da parole), sucede que o presente se torna passado (houve, quer dizer, entretanto, coordenações entre as várias linguagens vivas): um passado que, por razões imanentes ao meio cinematográfico, e não por escolha estética, tem sempre o modo do presente (e é por isso um presente histórico).14 (Pasolini, 1982: 195). Os objetos e a dupla articulação no cinema Pasolini opõe-se às críticas de Metz aos teóricos da língua do cinema, como Sergei Eisenstein, por acreditar que o semiólogo não teria levado em conta que as teorias do entreguerras que recorriam à noção de língua no cinema seriam mais prosódicas (rítmicas) e, sobretudo, estilísticas (sustentavam-se pelas concepções de montagem), do que propriamente linguísticas.15 Mas é o próprio Pasolini quem admite, como vimos, que o reconhecimento de uma língua do cinema estaria condicionado à modificação da própria concepção do que seria uma língua, chegando, inclusive, a cogitar que possa haver uma língua sem dupla articulação.16 Seria necessário, como escreve 14.  Embora reconheça o potencial da montagem em lidar com o passado diretamente, Pasolini mantém, em última instância, a leitura tradicional sobre o cinema como um processo que necessariamente presentifica a imagem na projeção. 15. A concepção de montagem de Eisenstein (1990), tributária do cinema de D. W. Griffith, o leva a conceber o desenvolvimento dialético do filme como tendo a mesma estrutura de um estágio primitivo da língua (quando palavras isoladas faziam a vez de sentenças inteiras). O ato comparativo e a imagem estariam presentes quando da criação de um idioma, sendo os significados de um idioma imagísticos em sua origem. Este estágio da língua, identificado por Eisenstein no cinema, o aproximaria da metáfora, procedimento que romperia a fluência dramatúrgica cinematográfica em prol da abstração conceitual. “A metáfora primitiva necessariamente existe no alvorecer do idioma, intimamente vinculada ao período da elaboração das primeiras transferências, isto é, das primeiras palavras a exprimirem significado (...)” (Eisenstein, 1990: 207). Os significados surgiriam no filme pela justaposição dos planos, mas seria o método científico-dialético de montagem, tendo em vista as sínteses imagéticas, que possibilitaria alcançar o salto qualitativo (o patético) em uma estrutura racional/emocional baseada em metáforas visuais (Eisenstein, 1990). 16. A dupla articulação da língua foi identificada pelo linguista André Martinet (1978) a partir do trabalho inaugural de Ferdinand de Saussure. A primeira articulação estrutura um enunciado em unidades significativas mínimas, ou seja, nos menores elementos formais (significantes) dotados de conteúdo semântico (significado): trata-se não exatamente das palavras, mas dos seus elementos semânticos internos que ainda conservam significado (monemas: lexemas quando situados no léxico; e morfemas, quando localizados na gramática). Esse primeiro nível da língua é o do eixo horizontal, isto é, sintagmático: as palavras, na presença uma das outras (unidades presentes), relacionam-se compondo enunciados com significados. Já a segunda articulação estrutura tais unidades significativas a partir de unidades distintas e substituíveis, sem significado per si: as letras e/ou os sons (fonemas) que compõem as palavras. Trata-se, aqui, do eixo paradigmático (vertical) da língua, onde as unidades Marcelo Carvalho 77 Pasolini em A língua escrita da realidade (datado de 1966), “alargarmos e até revolucionarmos a nossa noção de língua, e estarmos prontos a aceitar talvez até a existência escandalosa de uma língua sem dupla articulação” (Pasolini, 1982: 164). No entanto, Pasolini imagina uma dupla articulação para a imagem cinematográfica. Em primeiro lugar, a ideia tradicional de que o plano seria a unidade mínima do filme é descaracterizada por Pasolini ainda em A língua escrita da realidade: “a unidade mínimal da língua cinematográfica são os vários objetos reais que compõem um plano” (Pasolini, 1982: 164). Um objeto é uma delimitação espacial da matéria, um conjunto artificial e momentâneo do continuum material, ou, tal como definido poeticamente em O código dos códigos (de 1967) por Pasolini, “(...) um monólogo que o corpo infinito da realidade mantém para consigo próprio” (Pasolini, 1982: 234). Evidentemente, cada conjunto assim considerado pode ser decomponível em vários outros conjuntos, em vários outros objetos, segundo a necessidade de agirmos sobre eles. Desta forma, não haveria um plano composto por apenas um objeto: cada objeto, assim considerado, é composto por vários outros objetos, cada plano é um composto intrincado de muitos objetos, formas ou atos. Um close de um único rosto pareceria conter um só objeto. Mas o rosto é composto de muitas outras partes, olhos, nariz, cabelo, boca. Se um dos elementos fosse retirado ou modificado em um novo plano (um dos olhos está fechado, o enquadramento deixa de fora metade do rosto), todo o conjunto sofreria uma mutação. Escrevendo entre os anos 1960 e 1970, em uma época onde os recursos tecnológicos disponíveis ainda não permitiam criar imagens digitais realísticas sem o concurso da câmera, Pasolini ainda podia considerar impensável que um filme pudesse prescindir de objetos concretos filmados. Como escreve em A língua escrita da realidade, seria algo “tão absurdo e inconcebível como pretender expressarmo-nos linguisticamente sem empregarmos as (ausentes) podem ser permutadas com consequente mudança de significado: em um enunciado, “r” no lugar de “p” em “p-a-t-o”, resultando “rato”. A dupla articulação permite à língua uma enorme quantidade de combinações significativas a partir de um número mínimo de unidades. 78 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini consoantes e as vogais, ou seja: os fonemas (os materiais da segunda articulação)” (Pasolini, 1982: 164 e 165), havendo, inclusive, correspondência entre os fonemas da língua e os objetos da tela: “posso dar a todos os objetos, formas ou atos da realidade permanentes que integram a imagem cinematográfica o nome de ‘cinemas’, exatamente por analogia com ‘fonemas’” (Pasolini, 1982: 164 e 165). Assim, Pasolini reconhece nos objetos a função de segunda articulação no cinema, função análoga a dos fonemas de uma língua. Os objetos/cinemas são colhidos do entorno capturável pela câmera em meio a tantos outros que compõem a realidade; e da mesma forma que o fonema, o objeto/cinema é intraduzível. Virtualmente infinitos (e contrapondo-se à finitude dos fonemas de uma língua), os objetos/cinemas comporiam os planos/monemas, cuja função em um filme seria análoga àquela desempenhada pelos monemas17 em uma língua. Planos/monemas (elementos de primeira articulação) e objetos/cinemas (elementos de segunda articulação) comporiam a dupla articulação no cinema. Cinco anos mais tarde, no texto Teoria dos raccords (de 1971), Pasolini introduz uma importante modificação quanto à sua proposta de dupla articulação no cinema, que não mais consistiria na relação entre planos/monemas e objetos/cinemas, mas entre a ordem dos planos e a ordem dos objetos, que, aliás, seria mais importante que a própria relação entre os planos. A dupla articulação cinematográfica estaria localizada, a partir de então, na langue/cinema e não mais no filme concreto, já que a langue/cinema, segundo Pasolini, não seria audiovisual, mas espaço-temporal, desenvolvimento no tempo, sucessão de uma “grande cadeia temporal” (Pasolini, 1982: 239) – onde os planos/ monemas se colocariam em contextos globais e não apenas um a um. É na relação entre a langue/cinema (ordem dos planos e ordem dos objetos) e a parole/filme concreta que o cinema se faria em sua plenitude. “O material audiovisual não seria mais, portanto, do que um material físico, sensorial, dando corpo a uma língua espaço-temporal, que de outro modo seria meramente ‘espiritual’ ou abstrata” (Pasolini, 1982: 240). 17.  Unidades mínimas de primeira articulação da língua dotadas de significância e compostas por fonemas. Marcelo Carvalho 79 E seria na relação entre a langue/cinema e a parole/filme que se daria a “decifração do código cinematográfico”, análogo ao próprio “código de decifração da realidade”, segundo três modos simultâneos. Na identificação, na abstração e na sistematização dessa relação é que, para Pasolini, deveria fundamentar-se a possibilidade de existência da “língua cinematográfica”, tal como explicitado no artigo O rema (de 1971), sendo o terceiro modo a dupla articulação própria do cinema: 1° modo) Consciência da analogia do código do cinema com o código fisiopsicológico da realidade (cinema como langue) – tal coincidência nunca seria completamente realizada, pois o cinema não existiria concretamente, existindo apenas o filme. Mas é quase atingida com a transmissão direta da TV (o que impediria seria apenas o ponto de vista obrigatório e imposto), e alcançada na imaginação: “uma ação da realidade imaginada e uma ação da língua audiovisual imaginada são exatamente as mesmas” (Pasolini, 1982: 244). 2° modo) Consciência de coincidência do código da realidade com o código do sistema de signos audiovisuais (filme como parole) – que pode ser descrita e normatizada em uma gramática e em uma sintaxe cinematográfica, como Pasolini propõe no artigo A língua escrita da realidade. 3° modo) Consciência do código espaço-temporal (cinema como metalinguagem) – a dupla articulação do cinema consistindo na relação entre a ordem dos planos consigo mesmo e com a ordem dos objetos/cinemas que a compõe, como descrito por Pasolini no texto Teoria dos raccords. Baseando-se nos três modos de decifração do código cinematográfico, Pasolini define o plano como uma “inclusão” da realidade de caráter fisiopsicológico, audiovisual e espaço-temporal. Cada raccord18 entre os planos relacionaria as inclusões entre si, sendo o raccord uma exclusão (o 18.  Chama-se raccord em cinema a todo e qualquer elemento de continuidade entre um plano e outro – seja por um objeto, pelas entradas e saídas de um móvel, pela direção do olhar para fora do quadro etc. – de modo a determinar um continuum espacial e temporal entre dois planos consecutivos. O raccord garante as relações (de consequência, sucessibilidade, permanência, coerência etc., bem como de não causalidade, embaralhamento temporal, desaparição, incongruência etc.) entre dois planos separados pelo corte. 80 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini raccord entre dois planos se faz necessariamente sobre tudo aquilo que ficou de fora de ambos) igualmente de caráter fisiopsicológico, audiovisual e espaço-temporal. Evidentemente, não há exclusões ou inclusões de elementos no continuum da realidade, da imaginação ou da langue/cinema (plano-sequência ideal). Apenas nos filmes haveria séries de inclusões e exclusões, sintetizadas pela montagem. Na relação entre a langue/cinema e a parole/filme, a primeira dotaria a segunda de traços de continuidade que, apesar das constantes interrupções (cortes), garantiriam uma dose de sucessividade no interior do plano ou na relação entre os planos; pois algo no filme “(...) tem que fluir como a realidade e o cinema” (Pasolini, 1982: 246). A sucessão dos planos/monemas garantiria a linearidade da língua do cinema pela formação de uma cadeia de imagens, de forma similar da que ocorre com a sucessão temporal dos monemas de uma língua. Se tal sucessão é uma evidência tanto para os planos/monemas, quanto para os objetos/ cinemas, estes aparentemente compareceriam em conjunto no interior dos planos/monemas, o que faz Pasolini recorrer a um dado perceptivo: a apreensão de cada objeto, ou conjunto de objetos, se faria por adições sucessivas de cada pormenor (vemos em primeiro lugar esta região do plano que aparece na tela com os seus objetos, depois aquela outra região e assim por diante). A dupla articulação garante a economia (poucos elementos) e a estabilidade (poucas variações) da língua, mas o cinema não teria necessidade de estabilização quanto à ordem dos objetos/cinemas, pois tanto o significante quanto o significado estariam garantidos pela própria materialidade objetal. Pasolini se antecipa à provável crítica de que toda língua apresenta articulação própria, não tendo equivalentes exatos em outras línguas, afirmando ser esta uma questão irrelevante, pois o cinema seria uma língua “universal”, única para qualquer um, não existindo “línguas de cinema” diferenciadas e, por conseguinte, não havendo como confrontá-las entre si, como acontece com as inúmeras línguas existentes. Assim, a língua do cinema seria um Marcelo Carvalho 81 instrumento audiovisual dotado de dupla articulação (pela relação entre a ordem dos monemas/planos e a ordem dos objetos/cinemas) que colhe seus elementos diretamente na realidade. O cinema e a semiologia geral da realidade A ideia de uma semiologia geral da realidade – que trataria da “língua da realidade”, ou “linguagem da ação” –, embora não estivesse explícita em seus primeiros textos, é identificável de maneira transversal já em O cinema de poesia (de 1965, o primeiro trecho abaixo) e em A língua escrita da realidade (de 1966, o segundo e o terceiro trechos): O caminhar só pela estrada, mesmo com os ouvidos tapados, é um contínuo colóquio entre nós e o ambiente que se expressa através das imagens que o compõem: (...) e por isso ‘falam’ brutalmente através da sua própria presença (Pasolini, 1982: 138). Eis, portanto, a ação humana sobre a realidade como primeira e principal linguagem dos seres humanos (Pasolini, 1982: 162). A primeira linguagem dos homens parece-me, portanto, o seu agir. A língua escrito-falada não é mais do que uma integração e um meio deste agir. (Pasolini, 1982: 167). Estas passagens sugerem o que só um pouco mais tarde se tornaria manifesto, como no artigo O código dos códigos (de 1967) ou em O não-verbal como outra verbalidade (de 1971): “o livro do mundo, o livro da natureza; a prosa do pragma; a poesia da vida: são lugares comuns que antecedem numa pré‑história selvagem uma ‘Semiologia Geral da Realidade como Linguagem’” (Pasolini, 1982: 217). Ocupando-se, num mesmo movimento, da realidade e do cinema, esta semiologia ampliada, tal como explicitado em Que será natural? (de 1967), “seria ao mesmo tempo Semiologia da Linguagem da Realidade e Semiologia da Linguagem do Cinema” (Pasolini, 1982: 198). Fica evidente que o cinema seria para Pasolini um momento fundamental para 82 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini a constituição da semiologia geral da realidade: se a langue/cinema é a realidade, estudá-la seria o equivalente a estudar a própria realidade, a língua da realidade. A realidade seria metonímica, o que leva Pasolini a declarar na entrevista Pistas para o cinema (de 1966) que “são os ‘fenômenos’ do mundo os ‘sintagmas’ naturais da linguagem da realidade” (Pasolini, 1982: 191). E a natureza do cinema seria igualmente metonímica, já que “não é senão a ‘linearidade’ com que a realidade fala. Em resumo, os planos de um filme não são substituíveis, como as páginas de um calendário, porque não são substituíveis os objetos da realidade (...)” (Pasolini, 1982: 191). Metonímico, pelo menos no nível dos planos/monemas, já que estaria na montagem, para Pasolini, o exercício de estilo e liberdade do autor. E assim como a língua escrita pôde revelar a existência da própria língua oral – e da língua propriamente dita – o cinema revelaria a própria realidade por ser desta a língua “escrita”: A linguagem da realidade, enquanto era apenas natural, estava fora da nossa consciência: agora que surge ‘escrita’ através do cinema, não pode deixar de encontrar-se com uma consciência. A linguagem escrita da realidade, far-nos-á saber, antes de tudo o mais, o que é a linguagem da realidade; e acabará por finalmente modificar o nosso pensamento diante dela, tornando as nossas relações físicas, pelo menos, com a realidade, relações culturais. (Pasolini, 1982: 192). A língua da realidade é a própria realidade, mas esta não se confunde com o objeto bruto. É o que se depreende da resposta de Pasolini (no artigo O código dos códigos) à crítica que lhe direciona o semiólogo Umberto Eco, para quem a semiologia da realidade e a proposta de Pasolini de que os objetos “reais” seriam os signos elementares do cinema contradiriam o propósito da semiologia de conduzir os fenômenos naturais aos fatos de cultura.19 Pasolini responde a Eco que sua semiologia geral da realidade quer, ao contrário, culturalizar a natureza, interpretando a realidade como linguagem: “por que não dar um passo mais na direção da ‘culturalização’ total da realidade fí19.   Umberto Eco (1976) critica duramente as concepções de Pasolini em A estrutura ausente. Marcelo Carvalho 83 sica e humana, e examinar os fenômenos físicos muito mais imprecisos, aqueles precisamente que pertencem à realidade física e humana na sua totalidade (...)?” (Pasolini, 1982: 235). A esse respeito, Pasolini formula no texto Quadro (de 1971) uma exaustiva taxionomia sobre a forma como a realidade se apresentaria, englobando as instâncias da (1) realidade – que engloba a realidade vivida em sua fisicalidade e temporalidade (Ur-código, código dos códigos ou código da realidade vivida); (2) da contemplação (ilusoriamente) objetiva e distanciada, momento da consciência sobre algo pensado como sucessividade (código da realidade observada ou contemplada); (3) da memória, da imaginação, do onirismo e da projeção de futuro, acentuando-se a ilusão de objetividade e sucessividade enquanto criação (código da realidade imaginada ou interiorizada); (4) da existência vivida como “espetáculo” quando a relação entre observador e observado é convencionalizada nos papéis de “espectador” e “ator” (no teatro ou na ficção cênica) (código da realidade representada); (5) da verbalidade – simbólica, convencional e evocativa – tendo por base a realidade vivida (código da realidade evocada ou verbal); (6) da estética plástica, que recorre aos códigos anteriores para a descodificação pictural e escultural, percebidos como fixos, mas experimentados como fluindo espacial e temporalmente (código da realidade figurada); (7) da reprodução fotográfica com prevalência dos códigos da realidade representada, da realidade figurada, mas, sobretudo, da realidade imaginada que determina a sucessividade da realidade vivida e/ou contemplada segundo segmentos, fragmentos e visões (código da realidade fotografada); (8) da observação remota por intermédio de emissão televisiva (parole), na qual há sempre consciência da distância com relação à ação observada, sendo a realidade decifrada através do Ur-código (langue) e do código da realidade observada (código da realidade audiovisual transmitida); e (9) da cinematografia, que teria as mesmas características da realidade transmitida, exacerbando-se seu caráter de parole artística (código da realidade audiovisual reproduzida) – sendo a realidade transmitida e a realidade reproduzida as únicas instâncias que nos poriam em contato com a realidade (Pasolini, 1982: 247-250). 84 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini Com relação ao Ur-código, Pasolini refere-se aqui ao “monólogo da realidade”, da língua da ação: a realidade no Ur-código é infinita, diferentemente dos outros códigos derivados, onde a realidade apareceria como sucessividade e finitude. O Ur-código descodifica sem que haja resquício algum de consciência, pois “é o fazer que descodifica o fazer, e cifrador e decifrador pertencem a um mesmo corpo que se autorrevela sem fim, afirmando e reafirmando que é” (Pasolini, 1982: 249). O que haveria de comum entre o “cifrador” (uma árvore, por exemplo) e o “decifrador” (a consciência)...: ... não é tanto a língua verbal como o mundo vivido. É na base do Ur-código e dos seus primeiros resultados que, ao ouvir um sistema simbólico de signos, eu entendo o que me querem dizer: estes signos, com efeito, não são senão a tradução de outros signos, e eu tenho que os traduzir de novo (Pasolini, 1982: 248 e 249). No entanto: Deve notar-se que, enquanto as línguas da realidade, e não somente da realidade vivida – refiro-me sobretudo às do campo estético – NUNCA são de molde a fazer-nos pensar num código de códigos, nem, portanto, na realidade como numa língua, é isso o que se produz, pelo contrário, através da consciência da língua da realidade transmitida e da realidade reproduzida (Pasolini, 1982: 250)... ... e disso decorre a importância do cinema para a constituição de uma semiologia geral da realidade na argumentação de Pasolini. O cinema, em uma semiologia alargada que se interessaria pela língua da realidade, pela língua total da ação, pelo Ur-código, seria o momento “escrito” da própria realidade, reproduzindo a língua escrita do pragma sem interpretá-la, favorecendo-nos a que, enfim, a reconheçamos como Ur-código. Pasolini já tinha chegado ao essencial desta formulação em 1966 no artigo A língua escrita da realidade: Ora, estes arquétipos de reprodução da linguagem da ação, ou tout court da realidade (que é sempre ação), concretizam-se num meio mecânico e comum, o cinematógrafo. Este não é, portanto, senão o momento ‘escrito’ Marcelo Carvalho 85 de uma língua natural e total, que é o agir na realidade. (...) O cinematógrafo (com as outras técnicas audiovisuais) parece ser a língua escrita desta pragma. (Pasolini, 1982: 167 e 168). Os objetos/cinemas, unidades mínimas da particular cine-língua proposta por Pasolini, são elementos estáveis do significante e indicam a permanência da realidade na langue/cinema. A língua escrito-falada (simbólica) seria paralela à própria realidade; isto é, “a cadeia gramatical dos significantes é paralela à série dos significados. A sua linearidade é a linearidade através da qual percepcionamos a própria realidade” e um gráfico de seus “modos gramaticais” poderia ser pensado como uma “linha horizontal” (Pasolini, 1982: 168). Diferentemente da língua escrito-falada, o gráfico dos modos gramaticais de uma língua do cinema seria uma linha vertical, uma linha “que mergulha no Significado, o assume continuamente, incorporando-o em si, através da sua imanência à reprodução mecânica audiovisual” (Pasolini, 1982: 169). Assim, seria possível identificar uma “gramática”, uma “sintaxe” e mesmo uma prosódia (língua/cinema de prosa e língua/cinema de poesia) operando um “léxico” cinematográfico na série virtualmente infinita dos objetos/cinemas.20 Desafios pós-pasolinianos A teoria que Pasolini formulou em seus textos parte do cinema enquanto conexão com o Ur-código, enquanto langue cinematográfica, mais do que de filmes. Daí serem bem poucos os exemplos citados em sua teorização, e Pasolini não se vale nem mesmo de sua própria obra fílmica. Suas propostas teóricas sobre o cinema referenciam-se na compreensão do que seria a “realidade” e seu caráter de tempo presente. 20.  Pasolini encontra quatro modos distintos (em A língua escrita da realidade) para o eixo vertical de captura dos objetos/cinemas à realidade – operação gramático-cinematográfica que Pasolini quer descritiva, neutra e indiferenciadamente aplicável a qualquer código audiovisual: modos de ortografia ou da reprodução (técnicas de reprodução da realidade executadas pela câmera – que incluem, por exemplo, efeitos de luz – e pelas normas de captação sonora); modos de substantivação (os planos que, ao apresentarem objetos, atuam como monemas); modos de qualificação (operação de qualificação dos “substantivos”, que pode ser interferências sobre os objetos a serem filmados ou que têm como centro a câmera (enquadramento)); e modos de verbalização ou sintáticos (montagem). 86 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini A importância para o pensamento de Pasolini da noção de “realidade” no presente como conexão objetal necessária entre o universo material e o cinema não o impediu de recorrer em sua obra a temas oriundos do passado.21 São os códigos tradutores que determinam as formas pelas quais a realidade se apresentaria nos filmes (a extensa classificação no texto Quadro (de 1971)), bem como a leitura que terão, seja ou não o momento de filmagem contemporâneo ao tema tratado. O pensamento pasoliniano sobre os filmes se constrói em relação à langue/cinema, ou mais precisamente entre o cinema como momento “escrito” da realidade e a montagem que transforma o presente (cinematográfico) em passado (fílmico), mesmo que seja um passado “presentificado”, segundo o que pensa Pasolini, por “razões imanentes ao meio cinematográfico” (Pasolini, 1982: 195). É a montagem que salva os filmes do mero registro de um presente empobrecido22 ao jogá-los numa dimensão propriamente temporal. Mas restam alguns impasses quanto à dimensão da langue/cinema. A proposta de Pasolini de “culturalizar a natureza” parece enredar o universo material em linguagem. Ele diz isso diretamente em O código dos códigos: “uma Semiologia Geral da Realidade seria uma filosofia que interpreta a realidade como linguagem” (Pasolini, 1982: 233). Por outro lado, o Ur-código seria o universo material que “fala” por si e a si, como um monólogo da realidade (o que é dito também em O código dos códigos), o que sugere uma instância propriamente material aquém de qualquer linguagem, sendo o cinema sua constatação e via de acesso. Essa tensão atravessa muitos de seus textos. De toda forma, mesmo que Pasolini estivesse pagando tributo a uma visão excessivamente linguística do cinema ou mesmo às exigências circunstanciais da polêmica e do debate intelectual, vimos ao longo deste trabalho inúmeras passagens onde a “realidade” surge como revelação de 21.  Após seus primeiros trabalhos, que refletiam sua experiência com o lumpesinato na periferia romana (em curtas e em longas-metragens como Accattone (1961) e Mamma Roma (1962)), Pasolini passou a recorrer ao passado e ao universo mítico para falar alegoricamente de sua época: da Idade Média (Decameron, Os contos de Canterbury, As mil e uma noites) ao século XVI (Pocilga) e ao final da Segunda Guerra Mundial (Saló ou os 120 dias de Sodoma); das tragédias (Medeia, Édipo rei (Edipo re, 1967)) ao mito do Cristo (O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964)). 22.   Como o registro de Zapruder sobre a morte de Kennedy, flagrante onde filmagem e evento que lhe serviu de tema coincidem enquanto ancoragem temporal ao comungarem um mesmo presente. Marcelo Carvalho 87 si própria, sendo o cinema, a langue/cinema, um momento material da “realidade”. Isso é perceptível, ainda, no reparo que faz a Christian Metz em A língua escrita da realidade: “Metz fala de uma impressão de realidade como característica da comunicação cinematográfica. Eu não diria que se trata de uma ‘impressão de realidade’, mas de ‘realidade’ tout court” (Pasolini, 1982: 164). Tal rejeição à “impressão de realidade” do cinema afastava-o da noção de que o cinema seria apenas uma representação do mundo material. Pasolini encontrava-se numa posição estranha com relação aos estudos semiológicos, usando o instrumental teórico da semiologia, mas forçando seus parâmetros até o rompimento. Seu lugar era outro, pois se a língua da realidade não é uma língua (como advogavam seus detratores), suas propostas, mesmo que fronteiriças, o colocam como um raro proponente de uma ciência dos signos23 e de uma teoria do cinema24 que evoca a dimensão não linguística fundante dos dois domínios. Referências bibliográficas Amoroso, M. B. (2002). Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac Naify. Bergson, H. (1990). Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes. Barroso, M. A. (2000). Pier Paolo Pasolini: la brutalidad de la coherencia. Madrid: Ediciones Jaguar. Deleuze, G. (1985). A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense. _______ (1990). A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense. Eco, U. (1976). A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva. Eisenstein, S. (1990). A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Martinet, A. (1978). Elementos de linguística geral. São Paulo: Martins Fontes. Merleau-Ponty, M. (1983). O cinema e a nova psicologia. In I. Xavier (ed.), A experiência do cinema (pp. 101-117). Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme. Metz, C. (1972). A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva. 23.   O que o aproxima do projeto de semiótica de Charles S. Peirce (2000). 24.   O projeto de uma semiótica sem pressupostos linguísticos a partir do cinema foi retomado nos anos 1980 por Gilles Deleuze. Como diz André Parente, Pasolini foi “o primeiro teórico que tentou construir uma semiótica do cinema, independentemente da linguística” (Parente, 2000: 22). 88 Do cinema aos filmes: a semiologia geral da realidade de Pier Paolo Pasolini Parente, A. (2000). Narrativa e modernidade – os cinemas não–narrativos do pós-guerra. Campinas: Papirus. Pasolini: P. (1982). Empirismo Herege. Lisboa: Assírio e Alvim. Peirce, C. S. (2000). Semiótica. São Paulo: Perspectiva. Saussure, F. de (1995). Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix. Filmografia Accattone (1961), de Pier Paolo Pasolini. Mamma Roma (1962), de Pier Paolo Pasolini. O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964), de Pier Paolo Pasolini. Gaviões e passarinhos (Uccellacci e uccellini, 1966), de Pier Paolo Pasolini. Édipo rei (Edipo re, 1967), de Pier Paolo Pasolini. Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini. Medeia (Medea, 1969), de Pier Paolo Pasolini. Pocilga (Porcile, 1969), de Pier Paolo Pasolini. Decameron (Il decameron, 1971), de Pier Paolo Pasolini. Os contos de Canterbury (I raconti di Canterbury, 1972), de Pier Paolo Pasolini. As mil e uma noites (Il fiore delle Mille e uma notte, 1974), de Pier Paolo Pasolini. Saló ou os 120 dias de Sodoma (Saló o le 120 giornate di Sodoma, 1975), de Pier Paolo Pasolini. Marcelo Carvalho 89 Parte II Para a Construção de um Panorama Artístico SÍNTESE E FRAGMENTO: OS DESENHOS DE S. M. EISENSTEIN Fabiola Bastos Notari Por que eu desenho...1 Por isso, procura-se fixar sôbre o papel o mais essencial. E surge um desenho... Não é uma ilustração para o script. E menos ainda um hors-texte. É por vêzes a intuição primeira de uma cena que o roteiro vai em seguida transcrever e registrar. (Eisenstein, 1969: 239). Esta citação de S. M. Eisenstein foi retirada do texto Desenhos e Croquis de Trabalho, do livro Reflexões de um Cineasta da edição de língua portuguesa de 1969. Escrito em outubro de 1943 por um cineasta maduro e em plena ação – em abril desse ano, começou a filmar a primeira parte de Ivan, o terrível (1944) –, Eisenstein sintetiza o que para ele o desenho representava naquele momento, registro de uma ideia essencial. Entre as filmagens de Aleksandr Niévski (1938) e Ivan, o terrível, não produziu outros filmes, em 1938 foi convidado a dirigir o filme Perekop com roteiro de A. A. Fadeiev e L. V. Nikulin, realizou algumas tomadas experimentais para O grande canal de Fergana (1939) em colaboração com E. K. Tisse com roteiro de P. A. Pavlenko, ambos foram interrompidos. No entanto, foi um período de intensa produção intelectual, aprofundou-se em seus 1.   Subtítulo apropriado do artigo de mesmo nome de S. M. Eisenstein. estudos com temas variados – cinema, artes e ciências – escrevendo muitos apontamentos e artigos, dedicando-se ao ensino de direção na Gerasimov Instituto de Cinematografia (VGIK). Dirigiu a ópera de Wagner A Valquíria (1939) no Teatro Bolshoi – os desenhos e estudos para a ópera já anunciavam características formais e conceituais de Ivan, o terrível –, e como apontado na primeira linha da citação, buscou o essencial. O ano de 1938 foi marcado por inúmeras perseguições aos “inimigos do estado”. S. M. Tretyakov, amigo e colaborador próximo e V. E. Meyerhold, seu mestre/mentor no teatro, foram presos e mortos. I. Babel, colaborador no filme inacabado O Prado de Benjin (1935) – produção suspensa em 1937 – pouco tempo depois estava desaparecido. A possibilidade de ser preso era grande, e a descoberta de suas anotações e desenhos eram as provas de sua condenação, pois nessas linguagens expressava-se sem pudor ou censura. O sucesso de Aleksandr Niévski e a queda de B. Z. Shumyatski2 fez com que Eisenstein ganhasse certa proteção. Seu próximo grande projeto foi Ivan, o terrível, que seria supostamente a obra-prima que exaltaria a criação, a continuidade e a capacidade de ser indomável do estado russo, num período onde havia grande ameaça externa. Mas, como se sabe, os filmes podem ser entendidos de diversas maneiras, contendo mensagens para além do óbvio. Os desenhos de Ivan têm um estilo expressionista, nos quais se observa grande influência nas formas distorcidas de El Greco, o qual Eisenstein cita como o “primeiro” cineasta em seu artigo El Greco, cineasta com edição de F. Albera3. Espaço, cor, dinamismo, montagem, perspectiva, pathos e êxtase são apenas alguns dos temas discutidos em seus escritos, nos quais as imagens misturam-se com os quadros em um exercício de reflexão teórica‑lúcida e estética. 2.   B. Z. Shumyatski (1886-1938) Na reorganização da indústria cinematográfica soviética, ele foi selecionado por Stalin para se tornar o chefe de Soyuzkino em dezembro de 1930. Quando Soyuzkino foi dissolvido e substituído por GUKF em 11 de fevereiro de 1933, ele permaneceu no comando e mesmo com poderes ampliados sobre tudo – questões de produção, importação/exportação, distribuição e exibição. 3.   Eisenstein, S. M (2014). El Greco, cineasta. Trad. de P. G. Canga. Guadalajara: Intermedio Ediciones 94 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Eisenstein desenhou, projetou e trabalhou, até o último detalhe, o cenário, as roupas, as cenas e a arquitetura para a grande trilogia. Segundo David Elliot: Ivan provou ser a apoteose da carreira de Eisenstein em desenho e filme, até sua morte permaneceu, como sempre, desenvolvendo novos projetos e ideias. Mas, essencialmente, Ivan foi a culminação de ideias, teorias e emoções, as quais já percorreram seus filmes durante os últimos catorze anos. Potiomkin tinha sido seminal na década de 1920 porque reuniu as teorias e intuições de montagem no momento certo. Ivan ocupa uma importância semelhante na década de 1940. (Elliot, 1988: 39).4 Na trilogia Ivan, o terrível, Eisenstein apresentou a síntese das artes: trouxe a poesia, escrevendo o roteiro em russo arcaico; na música convidou S. S. Prokofiev para compor a trilha; preocupou-se com o design das peças; na atuação dos atores utilizou a técnica da biomecânica de V. E. Meyerhold; na produção colocou em prática a teoria da montagem intelectual; desenhou cada detalhe e claro, por fim, mas não menos importante, a dança, onde tudo começou. Como aprendi a desenhar5 A linha é rastro do movimento... E enquanto movimento dinâmico; a linha enquanto processo; a linha enquanto itinerário. Muitos anos depois ela me impeliu a inscrever em meu coração o sábio enunciado de Wang Pi, que viveu no terceiro século a.C.: “O que é uma linha? A linha nos fala de movimento...”. (Eisenstein, 1987: 83-84). Em fevereiro de 1946, Eisenstein inicia suas Memórias Imorais, após sofrer um sério ataque cardíaco. Segundo H. Marshall, ele jamais esperou que sua autobiografia fosse publicada em vida ou enquanto Stalin vivesse, como de fato não foi. Como o próprio cineasta adverte na apresentação: “A imorali4.   Tradução livre da autora. 5.   Subtítulo apropriado do artigo de mesmo nome de S. M. Eisenstein. Fabiola Bastos Notari 95 dade destas anotações será de uma qualidade totalmente diversa. (...) Nada provarão. Não explicarão nada. Nada ensinarão” (Eisenstein, 1987: 34). Com tom irônico e despretensioso, revela, de forma descontraída e não cronológica, suas memórias, e, entre elas, ele compartilha a descoberta do desenho. Na citação acima, o desenho torna-se o registro do movimento, e a linha desse desenho é o próprio movimento. A experimentação e a percepção desse gesto no tempo e no espaço mostram a natureza investigativa do processo criador. São rascunhos, estudos, croquis, plantas, esboços, roteiros, maquetes, projetos, ensaios, contatos, story-boards. A experimentação é comum, a unicidade está no modo como esses desenhos acontecem, na materialidade das opções e nos julgamentos que levam às escolhas. Tanto os desenhos quanto os escritos fazem parte do rastro do gesto – movimento da mão registrado numa superfície, sobre a qual se pressiona o material gráfico: grafite, nanquim, pigmento –, são fragmentos de ideias no tempo que necessitam tornar-se imagem no espaço, dessa maneira aproximam-se da teoria de montagem cinematográfica e da própria natureza do cinema, o qual possibilidade o desenho do e no tempo. O termo “rastro” empregado por Eisenstein nos permite uma leitura mais ampla, não sendo apenas um mero registro controlado do movimento. Segundo J. M. Gagnebin: “Como quem deixa rastros não o faz com intenção de transmissão ou de significação, o decifrar dos rastros também é marcado por essa não-intencionalidade”. (Gagnebin, 2009:113). A partir desta citação, expandem-se os possíveis diálogos do desenho com a escrita automática proposta pelos surrealistas, na qual o inconsciente manifesta-se sem o controle e a censura do consciente, deixando o gesto “livre”, e como na dança, na qual o dançarino, ao se deslocar pelo espaço num determinado tempo, desloca o ar, construindo linhas invisíveis – desenhos efêmeros. M. de Andrade publicou uma reflexão sobre o desenho no artigo Do desenho, que diz: 96 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein O desenho fala, chega mesmo a ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte plástica. Creio ter sido Alain quem chegou até o ponto de afirmar que o desenho não é, de natureza, uma plástica; mas se há exagero de sistema numa afirmativa assim tão categórica, sempre é certo que o desenho está pelo menos tão ligado, pela sua finalidade, à prosa e principalmente à poesia, como o está, pelos seus meios de realização, à pintura e à escultura. É como que uma arte intermediária entre as artes do espaço e as do tempo, tanto como a dança. E se a dança, é uma arte intermediária que se realiza por meio do tempo, sendo materialmente uma arte em movimento; o desenho é a arte intermediária que se realiza por meio do espaço, pois a sua matéria é imóvel. (Andrade, 1975: 69). Eisenstein partilha de forma similar o pensamento. No mesmo artigo, Como aprendi a desenhar: um capítulo sobre aulas de dança, ele afirma: O desenho e a dança, que nascem de um único impulso, aqui se encontram. As linhas de meu desenho deslizam exatamente como os passos de uma dança, e nisso se encontra a chave do ‘mistério’ de minha incapacidade de aprender a dançar e de dominar a técnica do desenho. (Eisenstein, 1987: 88). Ao refletir sobre seu desenho, reflete-se sobre seu processo criativo. As escolhas feitas, como manter esse ou aquele desenho ao invés de outro. O ato criador parte de diferentes critérios. Sendo o desenho parte do processo intelectual, da construção e defesa de uma ideia, como produto independente, dialoga complementariamente com os escritos, com as fotografias e os fotogramas. É o rastro do movimento do lápis, prolongamento do pensamento. O artista não é, sob esse ponto de vista, um ser isolado, mas alguém inserido e afetado pelo seu tempo e seus contemporâneos. O tempo e o espaço do objeto em criação são únicos e singulares e surgem de características que o artista vai lhes oferecendo, porém se alimentam do tempo e espaço que envolvem sua produção. (Salles, 2006: 38). Fabiola Bastos Notari 97 Caligrafia6 E então registrei a descoberta, em mim, de um conflito de longa duração entre o desenho que flui livremente all’improviso, ou o livre movimento da dança, sujeitos unicamente às leis do impulso interior do ritmo orgânico de um projeto inicial, e a estrutura e os antolhos dos cânones e das fórmulas rígidas. (...) Aqui abordamos um dos temas essenciais que permeiam praticamente todos os estágios básicos de minhas pesquisas teóricas, repetindo invariavelmente esse par primordial e o conflito de relações entre suas partes componentes. Somente as interpretações específicas mudam de acordo com sua problemática, quer se trate do movimento expressivo ou do princípio da estrutura da forma. Tal fato não é acidental. Pois nele se encerra o conflito que permeia os relacionamentos dos opostos, nos quais, como o antigo símbolo chinês do yin e do yang, tudo se contém e tudo se move. E assim que flui meu trabalho. (Eisenstein, 1987: 92-93). Segundo J. C. Marcadé, Eisenstein sempre desenhou. Quando tinha 10 anos interessou-se pela produção gráfica de H. Daumier, artista que admirou até sua maturidade. A fascinação do cineasta por L. Carroll encontra-se enraizada em suas primeiras lembranças de desenho. Em suas Memórias Imorais, Eisenstein escreve sobre as distorções expressivas e sarcásticas nas caricaturas de H. Daumier e seu contemporâneo C. Philipon, que desenhou a famosa sequência de quatro etapas da metamorfose da cabeça do Rei Luis Felipe transformando-se em pera. L. Da Vinci fez isso em seus desenhos grotescos, e também T. Rowlandson em seus estudos fisionômicos. 6.   Subtítulo apropriado do artigo de mesmo nome de S. M. Eisenstein. 98 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Figura 1 – H. Daumier. Show de rua com palhaço tocando tambor, 1825–79, desenho (carvão, grafite e aquarela). The Metropolitan Museum. Fabiola Bastos Notari 99 Figura 2 – L. Da Vinci. Cabeça de um homem grotesco de perfil direito, c. 1500, desenho (nanquim marrom). The Metropolitan Museum. 100 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Nos primeiros desenhos de Eisenstein, já se observa grande apreciação à fantástica transformação e também ao universo circense. Fantasia era um importante do da biomecânica de V. E. Meyerhold, nele o ator não precisava ser necessariamente um profissional, podendo ser um proletariado, no entanto, exigia-se um rigoroso treino, no qual o corpo era concebido como uma máquina que reage rapidamente aos estímulos. Figura 3 – T. Rowlandson. Açougueiro, 1790, gravura em metal (água forte e água tinta). The Metropolitan Museum. Fabiola Bastos Notari 101 Figura 4 – C. Philipon. Auguste Desperret: Philipon ele mesmo como uma caricatura/bobo da corte lutando contra as autoridades acusadoras. La Caricature, 28.3.1833, litografia. A montagem de atrações tem influências do circo, da commedia dell’ arte, do teatro oriental e do teatro de fantoches. Também é importante citar outra grande influência, a dialética marxista – a realidade não é dada de modo imediato e empírico, sendo necessário progredir para o nível dos conceitos, a natureza não se mostra na observação simples. Para Eisenstein a linguagem cinematográfica tem como uma das funções a desocultação da realidade. Segundo esta teoria, o mundo está em permanente transformação num autodinamismo que leva a algum tipo de “evolução” em determinado modo. Eu queria porque queria fazer parte da história! E que história poderia existir sem a guilhotina? Inicialmente eu desenhava com lápis, após o que sublinhava tudo com tinta. Aos contornos imperfeitos faltava o dinamismo ou a expressividade de um fluxo espontâneo de pensamento e sentimento. (Eisenstein, 1987: 95). 102 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein A partir de 1915, Eisenstein frequentou os cursos de engenharia e arquitetura no Instituto de Engenharia Civil de Petrogrado, onde desenhava continuamente. Nesse período assinava como “Sir Gay”, trocadilho do seu nome “Serguêi”. Publicou desenhos no periódicos A Gazeta de São Petersburgo e As Notícias da Bolsa. Em suas memórias, Eisenstein descreve a angústia de ter um desenho aprovado por Khudiakov e como posteriormente aqueles desenhos caricaturescos estariam presentes em seu filme Outubro: O desenho que eu lhe submetia era, quanto à técnica mais ousado do que o anterior, executado diretamente com tinta, sem o auxílio do lápis e da borracha. (...) Encaminhei um segundo desenho, cujo tema era o fato de os habitantes de Petrogrado terem se habituado aos tiroteios (naquela época havia muitos tiroteios na cidade). Tratava-se de quatro pequenos desenhos, que iam num crescendo. O último deles trazia a seguinte legenda: ‘Cidadão, pelo visto uma granada o atingiu!’. ‘O que? É mesmo? Tem certeza?’ Nas costas do sujeito cravada metade de uma granada. (...) Aqueles dias se tornaram históricos. A história pela qual eu tanto ansiava e que queria tocar fisicamente. Recriei esses dias dez anos mais tarde, no filme Outubro, quando, juntamente com Aleksandrov. (...) Passei mais de uma hora pondo em ordem as anotações sobre os gravadores do século XVIII e fui para a cama. A distância, num ponto longínquo da cidade, o barulho dos tiroteios estava acima do normal, mas na rua Tavritcheskaia reinava a tranquilidade. Ao deitar-me, recordei com pedantismo a data em que as anotações tinham sido postas em ordem: 25 de outubro de 1917. Na noite do dia seguinte essa data já fazia parte da história. (Eisenstein, 1987: 96-99). Fabiola Bastos Notari 103 Figura 5 – S. M. Eisenstein. Sem título, 1914, desenho sobre caderno/diário (grafite e nanquim). The Daniel Langlois Foundation. Figura 6 – S. M. Eisenstein. S. M. Eisenstein. Sem título, 1914, desenho sobre caderno/diário (grafite e nanquim). The Daniel Langlois Foundation. 104 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Ainda na escola de engenharia, junto com seus colegas, Eisenstein se juntou aos militares para servir a revolução no Exército Vermelho. Em 1920, o jovem aspirante a cineasta foi transferido para uma posição de comando em Minsk, após providenciar uma exitosa propaganda para a Revolução de Outubro. Nessa época, Eisenstein estudou japonês, aprendeu cerca de trezentos caracteres kanji que ele citou como uma influência no seu desenvolvimento pictórico. Em 1920 Eisenstein mudou-se para Moscou e começou sua carreira no teatro Proletkult, onde ficou até 1923. Seus desenhos estavam diretamente ligados ao teatro, seus traços tornavam-se cada vez mais sofisticados, colocando no papel toda a criatividade e fantasia que já povoavam a mente do até então futuro cineasta. Nos esboços de figurinos e cenários, evoluiu de um realismo para um cubismo futurista, estilo dominante da vanguarda russa no final da primeira década do século XX. Eisenstein oscilava entre a profusão romântica do Teatro de Câmara (Kamerny) de Tairov e o ascetismo das arquiteturas cênicas do Teatro de Meyerhold, no qual L. S. Popova e V. F. Stépanova inauguravam o construtivismo. Em 1923, Eisenstein começou sua carreira como teórico, escrevendo A Montagem das Atrações para o jornal LEF (Frente de esquerda) de V. V. Maiakóvski e O. Brik. O primeiro filme de Eisenstein, O Diário de Glumov, também foi feito no mesmo ano, fazendo parte da produção teatral de O Homem Sábio de A. N. Ostrovski. Segundo Marcadé: “É durante este período, no qual experimenta as coordenadas da revolução estética russa em todos os domínios, que se forja um dos princípios fundamentais da sua arte, - patente nos desenhos inéditos hoje publicados – o da montagem.” (Marcadé, 2003: 30). Fabiola Bastos Notari 105 Figura 7 – S. M. Eisenstein. Desenho para Heartbreak de Bernard Shaw, 1921, desenho (grafite e lápis de cor). 106 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Figura 8 – S. M. Eisenstein. Figurino de Lady Macbeth de William Shakespeare, 1922, desenho (grafite e lápis de cor). Com 26 anos dirigiu A Greve (1925), filme que analisa de modo peculiar as etapas do processo revolucionário, colocando em prática a teoria da montagem – já esboçada em textos –, paralelismos e a introdução de imagens simbólicas – metáfora e metonímia –, mostrando a grande influência que as artes plásticas, o teatro e a literatura tinham em seu trabalho como cineasta. Em seguida, dirigiu O Encouraçado Potiomkin (1925), obra que foi considerada pela Academia Americana de Artes em 1926 “melhor filme do mundo” e em 1958 a Exposição Internacional de Bruxelas considerou-o “melhor filme de todos os tempos e de todos os povos”. Fabiola Bastos Notari 107 O filme conta a história do maior navio de guerra da armada imperial russa, o couraçado Potiomkin, no ano da primeira revolução socialista soviética em 1905. Essa obra explora os recursos técnicos da linguagem cinematográfica – teoria da montagem. São assim valorizados os elementos da teoria – montagem, plano, sequência, enredo – permeados por numerosos elementos simbólicos. Outubro (1927) tornou-se um dos relatos mais conhecidos e duradouros de outubro de 1917, mês em que os bolcheviques depuseram o Governo Provisório da Rússia, tomando o controle de Petrogrado, e se iniciando assim a construção da ordem socialista. Em seu texto Dramaturgia da forma do filme7, Eisenstein afirma: “Em minha opinião, porém, a montagem é uma idéia que nasce da colisão de planos independentes – planos até opostos um ao outro: o princípio ‘dramático’”(Eisenstein, 2002: 52) A cada filme, a cada artigo publicado, a teoria da montagem vai ganhando novos contornos, mas sem perder a sua essência, a qual está estruturada nas relações entre fragmento e síntese. (...) cada elemento seqüencial é percebido não em seguida, mas em cima do outro. Porque a idéia (ou sensação) de movimento nasce do processo da superposição, sobre o sinal, conservando na memória, da primeira posição do objeto, da recém-visível posição posterior do mesmo objeto. (Eisenstein, 2002: 53). Eisenstein reflete sobre a linguagem cinematográfica utilizando-se de elementos de outras linguagens, como literatura, teatro, artes plásticas, música e ciências, demonstrando a capacidade de intersecção do cinema, por ser uma arte do e no tempo. Desde seus primeiros desenhos, Eisenstein já se interessava pelas metamorfoses e sobreposições; conforme seu traço, sua linha, sua caligrafia foi amadurecendo percebeu que o desenho é síntese, sendo a linha movimento – registro do essencial. 7.   Dramaturgie der Film Form. Escrito originalmente em alemão, em abril de 1929, em Moscou, revisto e ampliado em novembro desse ano em Zurique. Traduzido para o inglês, o texto teve sua primeira publicação em setembro de 1930 na revista inglesa Close Up, com o título A Dialectic Approach to Film Form. (Eisenstein, S. M (2002). A Forma do Filme. São Paulo: 70) 108 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Desenhos secretos8 Em 1928, o teatro japonês Kabuki esteve em Moscou. Eisenstein o estudou intensamente. Em 1929, publica Fora do Quadro9, no qual ele demonstra como a estrutura visual da escrita ideográfica sino-japonesa revela a “colisão” entre imagem/palavra, levando-o assim ao desenvolvimento e aprofundamento de seus estudos sobre montagem. Em 1929, tendo terminado o filme A Linha Geral – O Velho e o novo, e com vista às conferências que havia de fazer no Ocidente, especifica novamente a sua linha de pensamento: Mas, de meu ponto de vista, a montagem não é um pensamento composto de partes que se sucedem, e sim um pensamento que nasce do choque de duas partes, uma independente da outra (princípio “dramático”). (“Épico e “dramático” em relação à metodologia da forma e não ao conteúdo e nem à ação!!!) Como na hieroglífica japonesa, na qual dois signos ideográficos independentes (quadros), justapostos, explodem em um conceito novo. (Albera, 2002: 85). Nem tudo é imediatamente decifrável e, a cada momento, o espectador deve fazer um esforço de construção, ou melhor, de reconstrução. Durante 1930, Eisenstein estudou história e psicologia intensamente. A escassez de trabalho na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) fez com que tivesse muito tempo para estudar, escrever e desenhar. Ele continuou com as explorações teóricas relacionadas à natureza do filme, mas foi nos desenhos onde encontrou sua “válvula de escape”. Caricaturas 8.  Subtítulo apropriado do artigo de mesmo nome de J. C. Marcadé. 9.  Za Kadrom. Escrito em fevereiro de 1929 com posfácio ao ensaio Yaponskoye Kino (O cinema japonês) de Nikolai Kaufman. Em 1930 foi publicado na revista francesa Transitions, com o título O princípio cinematográfico e a cultura japonesa. Em 1949, na primeira edição de Film Form com o título de O princípio cinematográfico e o ideograma. (Eisenstein, S. M (2002). A Forma do Filme. São Paulo: 48) Fabiola Bastos Notari 109 e estudos para projetos e/ou filmes foram feitos, simultaneamente, com desenhos mais confessionais, os quais exteriorizavam pressões e expurgavam demônios. Graças ao sucesso extraordinário e reconhecimento internacional de O Encouraçado Potiomkin, foi convidado pelo estúdio MGM (Metro Goldwyn Mayer) para dirigir filmes em território americano e para estudar mais sobre o cinema sonoro e os “talkies” americanos, assim embarcou para os Estados Unidos da América. Infelizmente, diversos projetos foram cancelados ou boicotados, mesmo tendo amigos influentes, como C. Chaplin, ao qual sempre demonstrou grande admiração. Com Upton Sinclair, Eisenstein viajou ao México para dirigir um documentário sobre a história e cultura mexicana. Em solo mexicano, encontrou-se. Durante meu primeiro encontro com o México, tive a impressão de que ele, em toda a variedade de suas contradições, era uma espécie de projeção exterior daquelas linhas e traços individuais que eu carregava e carrego comigo, como se fossem um emaranhado de complexos. (Eisenstein, 1987: 251). Mas, ao mesmo tempo, perdeu-se, pois seu objetivo inicial não foi concluído. Algum tempo depois, as filmagens de Que Viva México foram interrompidas e Eisenstein retorna à URSS com muitas ideias inquietantes, projetos e roteiros, mas nenhum produto, nenhum filme como era esperado. As experiências que teve em solo americano – EUA e México – o transformaram; ele se metamorfoseou, o homo sovieticus estava “adulterado”, não se encaixava mais na realidade socialista. No México (1931-1932) Eisenstein regressa à prática do desenho, mas dessa vez com grande intensidade e frequência, como se de alguma forma ele tivesse se reencontrado com sua essência. Segundo Mary Seton, ele enviou ao seu “protetor” americano, Upton Sinclair, uma mala cheia de desenhos. Esses desenhos foram considerados diabólicos, terrivelmente sangrentos, de um dinamismo feroz, aterradores e blasfêmicos. 110 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Os desenhos de Eisenstein são, na sua maioria, complexos, porque combinam em si vários extratos míticos. É aliás, muitas vezes difícil determinar exactamente o conteúdo de certas composições gráficas. (...) Apesar de tudo, que pese embora a crueza das encenações sexuais, há uma vontade de camuflagem, que provém tanto de uma autocensura consciente e inconsciente como de um posicionamento artístico. (...) Os desenhos são, efectivamente, extremamente construídos, extremamente trabalhados, transmitindo simultaneamente a impressão de uma liberdade absoluta do traço.” (Marcadé, 2003: 30). Figura 9 – S. M. Eisenstein. Desenho n.4 da série Morte de Duncan, 1931, desenho (lápis de cor). Fabiola Bastos Notari 111 Figura 10 – S. M. Eisenstein. Desenho da série Pensamentos sobre a Música, 1938, desenho (lápis de cor). A ideia de uma “multiestratificação” da consciência traduz-se, nos desenhos, pela colisão de vários elementos figurativos provenientes das zonas mais diversas. Quando Eisenstein compreende que uma vez estendido os limites do pensamento e consequentemente os limites do desenho, sua atitude como pesquisador, professor e cineasta não seria mais a mesma. Como ele afirma nessa citação: “Não quero passar cal naquilo que, em meu esboço tão tosco, irrompeu como um dilúvio, para além dos enquadramentos e limitações!” 112 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein (Eisenstein, 1987: 93) não é apenas o desenho que não quer mais receber a pá de cal, mas também sua vida, e por conta dessa atitude, ele nunca mais seria o mesmo. O desenho representa a síntese de uma ideia, sendo de execução ágil, captura o fugaz e a fragilidade de um pensamento. P. Klee sob a perspectiva da luz afirma: “O trabalho gráfico é essencialmente diferente do trabalho com tonalidades e cores – desenho pode ser praticado no escuro da noite mais escura e cor pressupõe luz” (Klee, 1990: 343). Eisenstein fala algo semelhante no texto Desenhos e Croquis de Trabalho, o desenho possibilita a concretude da imaginação em processo de desenvolvimento. Durante o processo de produção cinematográfica, o desenho é um modo de fixação de ideias que são essenciais e que podem se perder. Esses desenhos de passagem já carregados da futura obra, são desenhos preparatórios – storyboards – que além de terem essa relação com o futuro, em termos da concretização em outra linguagem, desempenham uma função importante nos processos não-individuais, pois transmitem informações para os outros participantes da equipe. Esses desenhos de filmes não-filmados, entre 1930 e 1940, podem ser divididos em duas categorias segundo David Elliot: “O gênero psicosexual relativamente brincalhão, continuando a partir do trabalho mexicano e do niilismo mais escuro que refletia diretamente a dizimação cultural dos expurgos.” (Elliot, 1988: 36) É importante refletir sobre a produção gráfica eisensteiniana observando duas diversas vertentes – anotações, desenhos, fotografias e fotogramas – para assim perceber o ato criador. O desenho, em sua natureza precária e individual, mostra o cineasta tateando o que deseja ou o que busca, logo sua mobilidade está relacionada ao tempo da criação. Os esboços relacionados a projetos e/ou filmes são índices do artista em ação, pensando visualmente o movimento, engendrando formas novas. Fabiola Bastos Notari 113 Não há nada original num artista basear-se em fontes literárias, artísticas ou em sua própria experiência pessoal. No caso de Eisenstein, no entanto, este processo natural foi ampliado por causa de seu apetite insaciável por informações e experiências. (Leyda, 1982: ix introduction).10 A linha nos fala em movimento... R. Barthes no capítulo The Third Meaning no livro Image Music Text, analisou os desenhos e fotogramas de Ivan, o terrível, e apresentou o conceito do terceiro significado – uma mensagem, um sentido óbvio e um sentido obtuso. Os desenhos são como um terceiro texto, que está além do óbvio – filmes e escritos – o que constitui sua presença autoral. A falta de um significado direto, oferece certa resistência para a construção de um discurso crítico em direção a uma contra narrativa, apresentando assim um sentido obtuso. No caso de Eisenstein, essa contra narrativa pode traçar elos entre Ivan, Willie the Whale (1946) da Disney e as ilustrações de J. Tenniel para Alice no país das maravilhas (1865) – ligações já propostas por Eisenstein em seu ensaio sobre Disney11. Seus desenhos não eram meramente sintomáticos – suplemento ao que Eisenstein não poderia dizer/escrever/filmar – mas eles eram autônomos, como sendo outro texto. O essencial é destacar um princípio de organização que ajusta os fragmentos do mundo visível, retirados do espaço e do tempo, para que eles se tornem peças de um discurso, elos de uma sequência lógico-dedutiva, sobreposições cuja leitura em verdade exige mediações e que se põem, para o espectador atento, como alegoria a decifrar. Se há, portanto, a reconhecida grafia eisensteiniana das atrações em que sobreposições ou sucessões rápidas geram o senso da leitura do hieróglifo, o desafio não é menor no caso de Vertov cuja montagem é clara instância de cinema intelectual. (Novaes, 2006: 367). 10.   Tradução livre da autora. 11.   Eisenstein, S. M. & Bulgakowa O. (2012). Disney. San Francisco: Potemkin Press. 114 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Figura 11 – S. M. Eisenstein. Ivan, o terrível, 1941, desenho (grafite). Figura 12 – S. M. Eisenstein. Ivan, o terrível, 1942, desenho (grafite). Fabiola Bastos Notari 115 Traceja-se um plano de trabalho, rabisca-se para refletir melhor sobre uma questão, assim, o bloco de croquis, os pequenos papéis são como diários realizados em qualquer canto, um convite à introspecção. O caráter provisório do desenho possibilita a anotação do pensamento e seu esclarecimento, é a materialização do gesto que se releva instantaneamente. Cavocar todas as fendas do problema, penetrar nele, tentar entendê-lo cada vez mais profundamente, chegar cada vez mais perto de seu âmago. Não esperar nenhum tipo de ajuda, mas não esconder o que achar: expô-lo à luz do dia, em aulas, na imprensa, em artigos, em livros. Mas... vocês sabiam que o meio mais seguro de se esconder algo é a completa revelação? (Eisenstein, 1987: 130). Dos desenhos recuperados, descobertos e conhecidos, sobreviventes das diversas intempéries, pode-se obter um panorama da vitalidade com a qual Eisenstein o executava. As características físicas das linhas – fluidez, rapidez, densidade –, as escolhas dos materiais – grafite, nanquim, pigmento – podem ter mudado com a maturidade do cineasta, no entanto desde o princípio os desenhos buscavam apresentar os movimentos do gesto, da vida, da arte e da história, os quais a fotografia revelou posteriormente – fotodinamismo, cronofotografia. As imagens se sobrepõem em camadas no tempo, metamorfoseando-se, transformando a realidade em uma fantasia, em outra realidade, a da montagem cinematográfica. No fragmento encontra-se a síntese, no desenho o cinema já pré existia. No desenho os projetos e esboços cinematográficos de Eisenstein sobreviveram para contar ao mundo parte do que seria a sua busca como artista, diretor, professor e pesquisador. Se há, portanto, a fragmentação como princípio construtivo e o mergulho na vertigem da decomposição infinita; em contraposição, permanece com toda a força a procura de síntese. (Novaes, 2006: 373). 116 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein Enfatizar a linha pura, a linha gráfica, para se desenhar movimento. Buscar na deformação a representação da natureza. Comunicar. Eisenstein aplicou em seus conceitos cinematográficos reflexões advindas das artes, e nessas linguagens artísticas – artes, literatura, teatro – encontrou o cinema, nessa interação, o desenho torna-se o grande protagonista. Figura 13 – S. M. Eisenstein. Ivan, o terrível, 1944, desenho (grafite). Fabiola Bastos Notari 117 Referências bibliográficas Albera, François. Eisenstein e o construtivismo russo. Trad. de E. A. Ribeiro. São Paulo: Cosac&Naify, 2002 Andrade, M. de & Artigas, J. B. V. & Motta, F. (1975). Sobre desenho. São Paulo: Centro de Estudos Brasileiros do Grêmio da FAU-USP, 1975. Barthes, Roland (1977). Image Music Text. London: Fontana Press. Christie, I. & Elliot, D. (1988). Eisenstein at ninety. Oxford: Museum of Modern Art Oxford. Christie, I. (2000). Eisenstein’s Third Text: The Drawings and Their Ancestors. A Symposium: Eisenstein’s Motion Pictures – The Drawing Center, 29-33. New York. Eisenstein, S. M. (1969). Trad. de G. A. Doria. Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro: Zahar Editores. ____ (1987). Memórias imorais: uma autobiografia. Trad. de Carlos E. M. de Moura. São Paulo: Companhia das Letras. ____ (2002). A Forma do Filme. Trad de T. Ottoni. Rio de Janeiro: Zahar. ____ (2014). Notas para uma história geral do cinema. Trad. de S. Branco e L. R. Monteiro. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. Gagnebin, Jeanne Marie (2009). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34. Klee, P. (1991). Diários. São Paulo: Martins Fontes. Leyda, J. & Voynow, Z. (1982). Eisenstein at work. New York: Pantheon Books. Marcadé, J. C. & Ackerman, G (2003). S.M. Eisenstein: desenhos secretos. Lisboa: Quetzal Editores. Novaes, A. (2006). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras. Salles, C. A. (2006). O gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Editora Annablume. 118 Síntese e fragmento: os desenhos de S. M. Eisenstein CONSTRUIR O CINEMA A PARTIR DAS SUAS MARGENS – UMA ANÁLISE SOBRE O MOVIE JOURNAL, DE JONAS MEKAS Rafael Valles 1. Introdução No verão de 1958, já devidamente estabelecido em Nova York e nove anos depois de haver chegado aos EUA como exilado, Jonas Mekas decidiu fazer mudanças radicais na sua vida. Uma dessas decisões veio a ser determinante na construção da sua obra reflexiva sobre o cinema, quando procurou consultar Jerry Tallmer, no Village Voice, para lhe perguntar por que não havia no seu jornal uma seção dedicada ao cinema. “Por que você não faz uma?”, me respondeu. Eu lhe disse: “Muito bem. Amanhã já a terá”. Minha primeira coluna apareceu em 12 de novembro de 1958, e um aviso no jornal anunciava: “O ‘Diário de cinema’ começa esta semana no Voice como seção regular”. (Mekas, 2013a: 8, minha trad.). Até aquele momento, além de ser entusiasta de um novo cenário no cinema nova-iorquino que começava a despontar, Mekas também procurou se inserir nesse contexto pela criação da revista Film Culture. Criada no ano de 1955 em conjunto com o seu irmão Adolfas e com o subtítulo de America’s Independent Motion Picture Magazine, a revista se tornou a primeira medida efetiva de Mekas para se inserir no meio cinematográfico local. Além de ter sido editor-chefe, ele também foi responsá- vel por artigos que procuravam mapear as novas tendências daquele novo cinema, como é o caso dos textos Hans Richter on the nature of film poetry (1957), Notas sobre o Novo Cinema Americano (1960) e Notas sobre alguns filmes novos e felicidade (1965), entre outros. Paralelamente à Film Culture, foi por meio da sua coluna intitulada Movie Journal (Diário de Cinema), publicada semanalmente no jornal nova-iorquino Village Voice, que Mekas se tornaria responsável por uma radiografia profunda sobre o cinema independente americano num dos seus períodos mais férteis. Mekas resolveu assumir a posição de “ministro de defesa e propaganda do novo cinema” (Mekas, 2013a: 9, minha trad.), como ele próprio admitiu, uma vez que os seus textos buscavam não somente afirmar esse novo cenário feito por cineastas independentes e com filmes de baixo orçamento, mas também confrontar as convenções do cinema de Hollywood e dos críticos cinematográficos que enalteciam, nos filmes dos grandes estúdios, um padrão de qualidade técnica e artística. Como ele próprio afirma, (...) apesar de que minha intenção era, nas minhas primeiras colunas, me converter em um “sério” crítico de cinema e falar “seriamente” do cinema de Hollywood, descobri logo que meu distintivo de crítico não me era de maior utilidade. (...) Ninguém levava a sério o novo realizador. O cinema não narrativo não era considerado cinema. Meus colegas ou o ignoravam ou o atacavam. (Mekas, 2013a: 8-9, minha trad.). Além de registrar o contexto no qual esteve inserido, Mekas também fez do Movie Journal um caminho de construção das suas convicções estéticas e cinematográficas. Assumindo um caráter de pequenas notas reflexivas sobre cinema e dando prosseguimento a sua busca literária pelo formato diário – que já vinha escrevendo desde o período em que esteve preso nos campos de trabalhos forçados nazistas (1944-1945) e nos campos de refugiados no período pós-guerra (1945-1949) –, Mekas buscou se desvincular da figura de um crítico cinematográfico. Sem assumir um rigor de análise técnica sobre 120 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas os filmes que mencionava, Mekas encontrou na escrita da sua coluna semanal uma oportunidade para buscar diálogos, tensionamentos e criações de conceitos a partir dos filmes e autores abordados. É a partir desse entendimento inicial que este artigo buscará abordar fragmentos contidos em alguns dos seus textos, para refletir sobre como o Movie Journal foi importante tanto para se entender a afirmação do cinema independente americano nos anos 1960, assim como por ter sido responsável pela construção das convicções de Mekas em relação ao cinema. 2. Alimentar-se das margens Para começar a entender as proposições de Jonas Mekas no seu diário de cinema, faz-se necessário analisar alguns aspectos do seu período anterior ao Movie Journal. É bastante referencial entender as transições que Mekas atravessou na sua concepção estética, se tomarmos em conta o texto The Experimental Film in America, que ele escreveu para a edição número três da revista Film Culture, no ano de 1955. Nesse texto, Mekas condena o cinema experimental americano pelo seu “temperamento adolescente”, feito com “rudez técnica e limitação temática, falta de inspiração criativa, e conspiração homossexual” (Mekas, 2013b: 29). Esse texto não somente foi mal recebido dentro do meio relacionado ao cinema experimental, como também, anos depois, Mekas viria a mostrar-se arrependido pelo que disse. Como afirma David James, “no primeiro artigo, Mekas estava à procura de um cinema para cobrir a lacuna entre Hollywood e o cinema experimental. (...) Sua atitude em relação à avant-garde era, consequentemente, equivocada” (James, 1989: 102, minha trad.). É importante observar que Mekas, na primeira metade da década de 1950, ainda estava distante das posições que assumiria anos depois no Movie Journal. Tendo em conta os seus primeiros anos nos EUA, ele ainda se encontrava num período de transição entre a sua formação europeia e o descobrimento da cultura e do cinema americano. Como ele próprio afirma, no ano de 1952: Rafael Valles 121 Não nos permitimos gastar nem uma hora sequer. Sem descanso. Fomos a cada obra de teatro, a cada ópera, a cada ballet, a cada filme que passava em Nova York todo este ano. Recorremos galerias e museus. Tudo isso com um propósito louco: colocarmo-nos em dia com nossos anos perdidos, conhecer a América, fincar raízes em Nova York, experimentar plenamente a cidade, absorvê-la com nossos olhos, ouvidos, corpo... (Mekas, 2008: 336, minha trad.). À medida que Mekas começou a assumir contato com outros autores e filmes através de projeções como as que eram realizadas pelo Cinema 16 (1947-1963), tradicional cineclube de vanguarda em Nova York, uma mudança de perspectiva foi transparecendo dentro dos seus textos na Film Culture e no Movie Journal. Essa mudança de perspectiva começou a ser evidenciada em fins dos anos cinquenta, mais precisamente através de dois filmes: Pull my Daisy (1959), de Alfred Leslie e Robert Frank, e Shadows (1959), de John Cassavetes. Ambos os filmes se tornaram dois pilares da nova geração de cineastas que despontava naquele período. Com recursos escassos, assumindo suas limitações técnicas, mas revelando inquietações estéticas que afrontavam o cinema realizado em Hollywood, Mekas nos leva a entender que “Shadows e Pull my Daisy chegaram como uma brisa de ar fresco, nos permitiram respirar com mais liberdade” (Mekas, 2013c: 219, minha trad.). Falar sobre esses dois filmes acabou se tornando um ponto referencial para compreender as alterações que Mekas foi operando sobre as suas concepções estéticas. Sobre Pull my Daisy, curta-metragem escrito e narrado por Jack Kerouac, tendo os poetas beatniks Allen Ginsberg, Gregory Corso e Peter Orlovsky, que interpretam a si mesmos como escritores beats, Mekas não somente procura evidenciar o seu entusiasmo, como também incitar para que os leitores da sua coluna no jornal Village Voice também encarem este filme como um ponto de virada dentro do cenário cinematográfico americano. 122 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas Pull My Daisy (1959) de Alfred Leslie e Robert Frank está finalmente em cartaz no Cinema 16, e aqueles que o assistiram entenderão agora, eu espero, por que eu era tão entusiasta a seu respeito. Não vejo como resenhar qualquer filme após Pull My Daisy sem tê-lo como ponto de referência. Ponto de referência no cinema como The Connection no teatro moderno. Ambos, The Connection e Pull My Daisy, apontam claramente para novas direções, para novos caminhos fora do academicismo e da senilidade das artes no nosso século em curso, para novos temas, uma nova sensibilidade. (Mekas, 2013d: 57) Nesse artigo, intitulado Pull My Daisy e a verdade do cinema (1959), Mekas também afirmaria algo que viria a ser recorrente nos seus textos, enquanto encontrar em Pull my Daisy um filme que não buscava “a perfeição asséptica dos nossos filmes contemporâneos, sejam eles de Hollywood, de Paris ou da Suécia” (Mekas, 2013d: 57). Dentro de um contexto de afirmação artística da literatura beat, com nomes como Kerouac, Ginsberg e William Burroughs, e da criação do Bebop, estilo que viria a tornar-se numa das correntes mais influentes do jazz, com influências afro-cubanas que apontava através das improvisações dos músicos nas suas apresentações e contra as suntuosidades das orquestras contidas nas big bands, o cinema também se inseria dentro de uma época de renovações estéticas, em que as experimentações e a ideia de fluxo assumiam protagonismo. O Movie Journal não somente tratou de captar e refletir esse período fértil de transformações, como também evidenciou o quanto Mekas foi sendo transformado por estas novas concepções estéticas. Ainda em 1959, John Cassavetes lançaria Shadows, filme que também causou furor dentro do cenário independente nova-iorquino e americano. Cassavetes não somente resolveu fazer este filme a partir de improvisações com amigos e atores amadores que encontrou em um workshop que realizou no instituto Variety Arts, como também criou um método que conseguiu manter este frescor do improviso. A intenção contida em Shadows era de que os personagens ganhassem vida própria, conseguissem ir mais além do que uma representação presa a uma trama ou a um método. Com uma Rafael Valles 123 câmera ágil e uma premissa argumentativa bastante simples, ao acompanhar a vida de três irmãos que vivem juntos num pequeno apartamento em Nova York, o filme – segundo Mekas – “alcançou captar mais vida do que o próprio Cassavetes imaginava” (Mekas, 2013e: 23, minha trad.). Shadows rompe com a mise en scène do cinema oficial, com a maquiagem, o roteiro escrito e a continuidade de argumento. Ainda que a sua falta de experiência na montagem, no som e no movimento de câmeras se torne parte do seu estilo, apresenta uma aspereza que somente a vida (e as pinturas de Alfred Leslie) tem. Não prova nada, nem sequer trata de dizer nada; mas, na verdade, diz mais que dez ou cento e dez filmes recentes norte-americanos. Os tons e os ritmos de uma nova América são captados em Shadows pela primeira vez. (Mekas, 2013e: 23, minha trad.). No entanto, nesse mesmo artigo Mekas também não poupou críticas a Cassavetes pelo fato de que o realizador fez duas versões do mesmo filme, uma sendo filmada em 1957 e a segunda – a versão favorita de Cassavetes –, em 1959. Enquanto na primeira versão se acentuava mais o caráter documental e de improvisação com os atores, a segunda versão assumia uma maior harmonia narrativa dentro do argumento original do filme, fator este que trouxe uma reação contundente de Mekas ao afirmar: “não tenho a menor dúvida de que, enquanto que a segunda versão de Shadows é outro filme a mais de Hollywood, a primeira versão é o filme americano da última década que mais fronteiras ultrapassou” (Mekas, 2013e: 22, minha trad.). É revelador perceber, em fragmentos como esse, que Mekas entendia que a construção de um novo cinema e de uma nova busca estética não passava por Hollywood. Um cinema provocador e original precisava ser construído necessariamente pelas margens dos grandes estúdios. Só que, por outro lado, também é importante afirmar que o discurso anti‑Hollywood de Mekas também não estava isento de contradições, devendo ser relativizado a cada vez que ele assumia uma posição contra o star-system. Existe na sua ênfase contra os filmes dos grandes estúdios também um dis- 124 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas curso que almejou atenção da indústria cinematográfica americana. Mekas afirmou isso abertamente somente muitos anos depois, no artigo Sobre como o underground enganou Hollywood (1967). Creio que agora devo dizer a verdade. Já não tenho nada a perder. (...) Tudo começou há dez anos, quando alguns de nós, que queríamos fazer cinema, mas que não podíamos conseguir nem os estúdios de Hollywood nem os aparelhos necessários (...) Era o seguinte: decidimos inventar uma série de truques, de técnicas “peculiares”, como as câmeras manuais, as tomadas fora de foco, a interpretação improvisada, os fotogramas únicos, a vibração da câmera, os cortes abruptos, coisas assim. Conhecendo a psicologia de Hollywood, a qual estudamos cuidadosamente, sabíamos que era somente questão de um pouco de insistência de nossa parte e um pouco de publicidade “casual”, e Hollywood morderia o anzol. (...) Nosso plano funcionou perfeitamente! Agora, em Hollywood, estão correndo pelos estúdios com câmeras manuais que estão sendo agitadas, enquanto os tripés e os dollys se oxidam nos rincões. (Mekas, 2013f: 352-353, minha trad.) Se é necessário estabelecer um certo distanciamento cada vez que Mekas menciona Hollywood, por outro lado também é necessário entender que os textos de Mekas ganham maior profundidade quando o autor potencializa reflexões sobre o novo cinema americano que começou a despontar no final dos anos cinquenta. Seus textos possuem não somente um valor de cunho documental, ao registrar semanalmente na sua coluna no Village Voice as transformações que os anos cinquenta e sessenta trouxeram para o cinema norte-americano, como também um valor testemunhal, enquanto revelar a construção de um olhar de uma das pessoas que se tornariam fundamentais para a afirmação desse contexto. 3. Por um cinema baudelaireano Em maio de 1963, Mekas publicou no Movie Journal o artigo Sobre o cinema baudelaireano. Nesse texto, procura apontar um processo de transição que ocorre dentro do que ele entende como o novo cinema americano, já que Rafael Valles 125 Shadows e Pull my Daisy marcaram o fim da tradição de um cinema experimental de vanguarda dos anos 40 e 50 feito por realizadores como Maya Deren, Marie Menken, Kenneth Anger, e ao mesmo tempo abriram um caminho para obras posteriores que “avançam para um cinema de desengajamento e nova liberdade” (Mekas, 2013g: 80). Ele se referia diretamente aos filmes The Queen of Sheba Meets the Atom Man (1963), de Ron Rice; Flaming Creaturs (1963), de Jack Smith; Little Strab at Hapiness (1963), de Ken Jacobs; Blonde Cobra (1963), de Bob Fleishner, que “compõem a verdadeira revolução atual no cinema” (Mekas, 2013g: 80). Tendo Baudelaire, Marquês de Sade, Rimbaud e Burroughs como escritores cuja literatura profana influenciou aqueles realizadores, Mekas encontrava nesses filmes a essência de um cinema underground. É um mundo de flores do mal, de iluminações, de carne dilacerada e torturada; uma poesia que é ao mesmo tempo bela e terrível, boa e má, delicada e suja. (...) Estes artistas não têm inibições, sejam sexuais ou de outro tipo. Estes são, nas palavras de Ken Jacobs, filmes “boca suja”. Todos contêm elementos de homossexualismo e lesbianismo. Por causa de sua existência fora de convenções morais oficiais, o homossexualismo liberou sensibilidades e experiências que têm estado na base de boa parte da grande poesia desde os primórdios da humanidade. (Mekas, 2013g: 80). Nessa busca por um cinema mais libidinoso que verborrágico, mais corporal que simbólico, que emergia mais dos porões de casa e de orçamentos consideravelmente baixos, realizadores como Jack Smith, Ken Jacobs e Gregory Markopoulos firmaram outros princípios dentro desse novo cinema americano. Como afirma o realizador Parker Tyler em depoimento para o Movie Journal, “os filmes undergrounds são buracos de fechadura, espetáculos proibidos, truques infantis, cinema fetichista, são produto do degenerado desenvolvimento do underground” (Mekas, 2013h: 422, minha trad.). O cinema underground vinha, assim, para acentuar não somente experimentações estéticas e narrativas, mas também para entender esses filmes como parte de um contexto mais amplo, o da contracultura. 126 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas Mekas havia percebido a transcendência dessa forma de cinema que buscava afrontar convenções tanto estéticas como morais. Como ele mesmo afirma, “a verdade é que toda a mudança na mente e no coração do homem está ocorrendo no underground (...) Na superfície há demasiado ruído desnecessário” (Mekas, 2013i: 108, minha trad.). Ao celebrar essa busca por um cinema underground, ele identificava um sentido de representação distinto do que se fazia até então. Mas esse entusiasmo não vinha somente dos filmes em si ou das suas convicções artísticas que se afirmavam a cada texto que buscasse refletir sobre esta forma de cinema. Existia uma relação mais profunda entre Mekas e esses filmes. Se ele praticamente não comenta sobre a sua juventude na Lituânia nos textos do Movie Journal ou na revista Film Culture, quando decide citar esse período da sua vida, as relações entre a sua memória pessoal, a sua escrita cinematográfica e o contexto do cinema underground começam a ganhar relevo biográfico. É o que acontece, por exemplo, no artigo que escreveu na edição número 37 da revista Film Culture, intitulado Notas sobre alguns filmes novos e a felicidade (1965). Mekas decide discorrer sobre os filmes que vinham sendo realizados por Ken Jacobs (Little Stabs at Happiness – 1963), Stan Brakhage (Mothlight – 1963), Marie Menken (Go! Go! Go! – 1964 e Glimpse of the garden – 1957), Jack Smith (Scoth tape – 1963), Andy Warhol (Eat – 1963), entre outros. Essa felicidade, essa alegria que vemos nesses filmes, é uma alegria sem desilusão, sem complexos de engajamento sexual e moral. É uma alegria do tipo mais lúdico. É um sorriso que nada tem que ver com a New Yorker, ou o Simplicissimus, ou Krokodil, ou Pfeiffer, ou o humor de The Realist. Esse sorriso me lembra mais alguém que viajou 10 mil milhas a pé para ver o que há no fim da estrada (que sonhou com isso desde a infância) e descobriu, na chegada, que na verdade não havia nada no fim da estrada, nada a não ser uma pequena pilha de bosta de coelho. Então olha para ela e sorri. (Mekas, 2013j: 47-48). Rafael Valles 127 Mekas celebra um cinema que não se encontra preso as convenções de ordem técnica e estética, mas que faz justamente no uso de ambas formas, um caminho para pensar ao próprio cinema. É diante disso que se torna revelador perceber que nesse mesmo texto existe um trabalho de rememoração que o remete às suas memórias de infância. Mais adiante, no mesmo texto, ele recorda as mulheres do seu vilarejo, na Lituânia, sentadas, costurando nas janelas, nas portas, ou nos móveis, “imersas em seus bordados e desenhos e flores vermelhas e verdes e amarelas e pontos e sóis por dias e dias” (Mekas, 2013j: 48). Enquanto crescia lentamente, no olho da minha memória podia vê-las, tanto quanto posso me lembrar, sentadas ali sem fazer nada além disso: achei-as ali quando nasci, e deixei-as ali quando me tornei um Menino Grande, e talvez elas ainda estejam ali, costurando, sem museus para exibir suas obras primas, ninguém chamando-as de obras de arte – e se alguém diz algo agradável, elas ruborizam, ou respondem algo, e nem sempre é agradável o que dizem. Era a felicidade o que estavam costurando. (Mekas, 2013j: 48). Nesta citação Mekas nos revela uma conexão afetiva e ao mesmo tempo idealizada no que se refere as suas memórias de infância em relação ao novo cinema americano. Vitima de contextos sociopolíticos que o forçaram a deixar a sua terra natal, Mekas encontrava na suposta falta de pretensões conceituais, no despojamento de uma estética de filmes caseiros, um caminho para se pensar numa outra forma de encarar não somente o cinema, mas também a vida. Não é por acaso que Mekas revela aqui determinadas questões que viriam a estar presentes na sua obra fílmica, onde o desejo por desprender-se das grandes narrativas e a busca pelas “profanações estilísticas” contidas nesses filmes baudelaireanos assumem um caráter mais relacionado ao âmbito sensorial, do que propriamente a um cinema mais fechado em convenções narrativas. 128 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas Felicidade e inocência são o que vêm de Little Stabs, Scoth Tape, Christmas on Earth ou do trabalho de Marie Menken, Stan Brakhage, George Landow. Esses filmes são ao mesmo tempo jogos e documentos, livros de registro de novas correntes e subcorrentes que começam a aparecer e vibrar no inconsciente do ser humano. Por isso a Cinemateca Francesa não os pôde suportar. Por isso os cidadãos sérios de todo o mundo não podem suportar esses filmes. Eles lembram-lhes o Paraíso Perdido. (Mekas, 2013j: 51). O diário de cinema de Mekas também revela um autor que buscou um processo de rompimento com a sua formação europeia a partir da sua intenção em criar vínculos com a cultura americana. É revelador constatar que, ainda em 1949, na sua condição de exilado, sem poder regressar ao seu país de origem e necessitando reconstruir a sua vida longe dos campos de refugiados, Mekas não somente descartava a possibilidade em viver nos EUA, como também assumia uma posição bastante caricata sobre as condições de vida no território norte-americano. “Viajar à América? Que trabalho posso chegar a conseguir lá que um robô não faça melhor? (...) Além disso, não tenho desejo ou intenção de competir. (...) Somente o azar pode me levar à América” (Mekas, 2008: 201, minha trad.), afirmou no seu diário de exílio. Se, por um lado, essa felicidade e esse despojamento formal do cinema underground o remetiam a sua juventude, por outro lado também mostravam um processo de transformações de alguém que buscou entender a cultura americana a partir de uma outra perspectiva. Nesse olhar de um europeu que encontrava nos EUA uma nova forma de encarar a arte, os seus textos evidenciam os choques entre duas culturas, como no texto Sobre Godard e o racionalismo, em que Mekas comenta: é esta preponderância da mente (do intelecto, da razão) o que mantém a França, e a maior parte da Europa, num mortal aprisionamento. Cogito, ergo sum. Nos Estados Unidos, a mente foi aberta pelos beats. O homem Rafael Valles 129 não sempre sabe o que dirá a continuação antes de dizê-lo, nem tem por que sabê-lo. Nem a ação nem a palavra deveriam surgir já mortas, assassinadas pela premeditação. (Mekas, 2013k: 118, minha trad.) Mekas evidencia em fragmentos como esse o quanto um racionalismo contido na cultura europeia buscava cercear a espontaneidade, assim como um excesso de formalismo acabava comprometendo o fluxo das experimentações estéticas. Os textos publicados no Village Voice evidenciavam assim as mudanças que a beat generation e o cinema underground haviam operado na sua própria concepção artística e cinematográfica. Na mesma medida em que seus textos buscavam alertar os leitores sobre a construção de um novo cinema americano, também acabavam afirmando a construção de um autor que buscava abdicar dos seus referenciais europeus. Mekas encontrou nesse choque cultural uma nova forma de entender tanto o europeu – como uma alma “de profundas ranhuras, formas e modelos de culturas passadas” (Mekas, 2013l: 66) –, como o americano, enquanto uma alma “perdida, instável, penetrante, frágil, desfilando em um cenário de incerteza moral, que resiste a qualquer tentativa de que o usem de maneira pensada, preconcebida” (Mekas, 2013l: 66). É diante desse estado limiar entre a sua formação europeia e a sua incorporação à cultura americana, entre ser um exilado e ao mesmo tempo exaltar uma cultura à qual buscava se inserir, que Mekas encontrou no cinema uma forma de construir o seu próprio olhar. 4. A busca pelas imperfeições do cinema Antes mesmo de ser reconhecido como cineasta, de haver criado a Film Culture e escrito para o Village Voice, Mekas já filmava. Poucos meses depois de chegar aos EUA como exilado, em 1949, e com um empréstimo de 200 dólares, Mekas conseguiu comprar sua primeira câmera, uma Bolex 16mm. Não seria a primeira vez que registrava algo em fílmico nos EUA, mas era pelo menos o início de um novo caminho. Como ele próprio comenta, 130 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas estivemos filmando muito. Entenda o que isso significa, em nosso caso, não tenho que lhe dar longas explicações. Em Hollywood é muito mais simples: se faz com dinheiro. Lá não há problemas que o dinheiro não possa resolver. Mas nós estamos tentando fazer com nossos últimos miseráveis centavos nos poucos minutos que temos disponíveis. A maioria das pessoas aqui pensa que estamos loucos. Dizem que o cinema nos deixou loucos (...) e sim, além disso, se sonha ser artista, então o único modo de fazê-lo é tornar-se louco. (Mekas, 2008: 300, minha trad.). Entre esses primeiros passos de um exilado que resolveu registrar o seu cotidiano nos subúrbios de Nova York e o cineasta que se tornou referência pelos seus filmes-diário muitos anos depois, existem os seus textos na revista Film Culture e no jornal Village Voice. Mekas conseguiu unir a teoria com a prática, fazendo com que as suas publicações se tornassem um campo de gestação de ideias e conceitos que, mais tarde, seriam aplicadas na sua obra cinematográfica. Em muitos textos que escreveu na coluna Movie Journal, ele evidencia o quanto é partidário de um cinema amateur, um cinema “que não tem medo de parecer feio, que ousa dar as costas para a arte” (Mekas, 2013m: 72). No artigo A linguagem mutante do cinema (1962), Mekas extrai dos ruídos, das falhas técnicas, uma atitude para ressignificar ao próprio cinema. Mesmo os erros, os planos fora de foco, os planos tremidos, os passos inseguros, os movimentos hesitantes, os pedaços superexpostos ou subexpostos fazem parte do vocabulário. As portas para a espontaneidade se abrem; o ar viciado do profissionalismo rançoso e respeitável escapa. (...) O insignificante, o efêmero, o espontâneo são as passagens que revelam a vida e que possuem todo o entusiasmo e a beleza. (Mekas, 2013m: 72). Não por acaso, anos depois do seu início como colunista no Village Voice, Mekas fez filmes-diário que se tornaram referência na história do cinema de não-ficção, como Walden (1964-1969), Lost Lost Lost (1976), a partir de imagens caseiras nas quais registrava a si próprio, sua família, os seus ami- Rafael Valles 131 gos e os lituanos exilados nos EUA. Com uma Bolex 16mm, Mekas fez das imperfeições dos seus registros e das falhas técnicas da câmera uma forma para potencializar uma construção estética, como ele próprio afirmou ao se referir às filmagens que fez em Reminiscences of a Journey to Lithuania (1971-1972). Quando comecei a filmar, descobri que a minha nova Bolex não era de forma alguma idêntica à antiga. Ela era, na verdade, defeituosa, nunca mantinha uma velocidade constante. Eu a ajustava em 24 quadros (por segundo), e após três ou quatro cenas ela estava em 32 quadros. Você tinha de olhar constantemente para o mostrador, porque as velocidades de quadros por segundo afetam a iluminação, a exposição. E quando finalmente me dei conta de que não havia jeito de consertá-la ou de fixar a velocidade, decidi aceitar e incorporar o defeito como um dos recursos estilísticos, usar as mudanças de luz como um meio estrutural. (Mekas, 2013n: 137). Mekas construiu sua trajetória em conjunto com uma geração de cineastas americanos que já não viam em Hollywood um parâmetro para construírem as suas obras. Com filmes de baixo orçamento, muitos deles feitos com câmeras portáteis e sem a necessidade de locações ou de uma equipe técnica por trás, o cinema realizado a partir de imagens caseiras afirmou-se como uma busca por novas formas narrativas ou inventividades estéticas. Os seus textos no Village Voice procuram mostrar a convicção de que “o cinema foi liberado do ‘regime’ de Hollywood. O realizador está livre das técnicas ‘profissionais’, dos temas de Hollywood, das rotinas de argumento, da iluminação de Hollywood” (Mekas, 2013c: 219, minha trad.). Mekas nos leva assim para um caminho onde o cinema amateur libera o realizador de uma busca pela precisão e perfeição técnica. Justamente por apoiar e realizar esse tipo de filmes que seguiam a contracorrente do cinema dos estúdios hollywoodianos, Mekas utilizou o Movie Journal para criticar o sentido pejorativo empregado na palavra amateur dentro do meio cinematográfico. Ele partia do entendimento de que “a mais 132 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas bela poesia cinematográfica será revelada algum dia pelo cinema caseiro de 8 mm; poesia simples, com crianças sobre a grama e criaturas nos braços das suas mães. (...) Há poesia nos filmes caseiros” (Mekas, 2013o: 156, minha trad.). Para Mekas, porém, também não bastava que esse cinema amateur fosse reconhecido somente dentro de nichos relacionados ao cinema experimental ou de vanguarda. Muitos dos seus textos revelam o descontentamento pela indiferença da grande mídia e até mesmo de jornais underground em relação àqueles filmes de baixo custo. Em textos como Por que estou escrevendo este artigo (1969), ele afirma que “um grande número de bons filmes de baixo orçamento estreiam em Nova York a cada semana, muito mais que os filmes de grande orçamento, e ninguém sabe. É pedir muito à imprensa que informe o público sobre “todos” os filmes que estreiam em Nova York?” (Mekas, 2013p: 397, minha trad.). Partindo dessa falta de espaço na grande mídia é que Mekas passou não somente a escrever sobre esse cenário, mas também a atuar sobre ele, ao se tornar um dos mentores na criação do New American Cinema Group (1960), composto por um grupo de cineastas que buscava afirmar tanto o novo cinema americano, como também uma nova forma de produção e distribuição dos seus filmes. Nesse processo, tanto a Film Culture como o Movie Journal foram importantes para divulgar as posições do grupo. No ano de 1961, foi publicado, na edição número 22-23 da revista Film Culture, o manifesto Primeira Declaração do Novo Cinema Americano. Tratava-se de uma declaração de intenções, assinada por Jonas e Adolfas Mekas, entre outros 1, em que se buscavam formalizar as posições do grupo de cineastas que começava a despontar 1.   Os demais cineastas que assinaram este manifesto foram Lionel Rogosin, Peter Bogdanovich, Robert Frank, Alfred Leslie, Edouard de Larout, Ben Carruthers, Argus Speare Juilliard, Emile de Antonio, Lewis Allen, Shirley Clarke, Gregory Markopoulos, Daniel Talbot, Guy Thomajan, Louis Brigante, Harold Humes, Bert Stern, Don Gillin, Walter Gutman, Jack Perlman, David C. Stone, Sheldon Rochlin e Edward Bland. Rafael Valles 133 no cenário nova-iorquino. No texto, formulava-se uma série de proposições estéticas e administrativas que confrontavam o cinema com apelo mais comercial americano e mundial. Num dos fragmentos, o grupo afirma que “se o Novo Cinema Americano tem sido até agora uma manifestação inconsciente e esporádica, sentimos que chegou a hora de nos unirmos. Somos muitos (...) e sabemos o que deve ser destruído e o que defendemos” (Mekas, 2013q: 32-33). Por trás dessa proposta que transitava entre um caráter combativo e idealista – como grande parte dos novos cinemas que surgiram nos anos 1960 pelo mundo –, existia pela primeira vez, no cenário do cinema underground americano, o desejo de se realizar uma ação conjunta que buscasse entrar num embate com entidades e estúdios que construíam o sistema industrial americano. Ao nos unirmos, queremos deixar claro que há uma diferença básica entre nosso grupo e as organizações, tais como a United Artists. Não estamos nos unindo para ganhar dinheiro. Estamos nos unindo para realizar filmes. Estamos nos unindo para construir o Novo Cinema Americano. E o faremos com o restante dos Estados Unidos e com o restante da nossa geração. (...) Não queremos filmes falsos, polidos, lisos – os preferimos ásperos, mal acabados, mas vivos; não queremos filmes cor-de-rosa – os queremos da cor de sangue. (Mekas, 2013q: 35). A afirmação desse grupo também passava pela atuação de Mekas como mediador desse processo, na medida em que ele se tornou um dos criadores de entidades como Film-Makers Cooperative (1962), Film Culture Non-Profit Corporation (1963), Film-Makers Cinematheque (1964), Film‑Makers Distribution Center (1966), além da referencial Antology Film Archives (1969), que se tornaram fundamentais para a consolidação e a preservação da memória dessa nova geração de cineastas. Como afirma David James, 134 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas sem a Film Culture, a Film-Makers Cooperative e a Anthology Film Archives, nas quais ele desempenhou um papel importante, a elaboração social das renovações perceptivas e imaginativas fornecidas ao indivíduo pelo novo filme teria permanecido um sonho. (James, 1989: 100, minha trad.). Por meio de uma atuação não somente nos seus textos, como também nas entidades e nas medidas criadas para firmar este novo cinema americano dentro de um contexto cinematográfico mais amplo, Mekas construiu o seu espaço no cinema norte-americano. Seja através das posições tomadas na Film Culture e no Movie Journal, seja na sua atuação administrativa como co-criador do New American Cinema Group, da Film-Makers Cooperative e da Anthology Film Archives, ele fez desse contexto um campo de afirmações sobre as suas convicções estéticas e cinematográficas. 5. Considerações finais Mekas construiu sua trajetória diante de um contexto de rupturas. A Segunda Guerra Mundial não somente o obrigou a fugir do seu país de origem, como também o fez entender o contexto sócio-histórico ao qual pertenceu diante de uma outra perspectiva. A sua inserção na sociedade norte-americana e a sua afirmação dentro do meio cinematográfico nova-iorquino passaram inevitavelmente por um entendimento sobre a sua condição de exilado. Ao ir para os EUA, Mekas não somente construiu um outro olhar sobre as suas origens europeias, como também fez da cultura americana um campo para descobrir as suas próprias convicções. Os seus textos evidenciam, assim, um processo de transformações e de afirmação de um exilado que construiu nos EUA o seu lugar de fala, o seu lugar no mundo. Se, por um lado, Mekas chegou aos EUA com o sonho de se tornar um cineasta em Hollywood, a sua trajetória foi continuamente mostrando uma relação conflitiva com esse objetivo inicial. Como admirador que se tornou da literatura beat e do novo cinema americano dos anos 1950 e 1960, Mekas buscou compreender o cinema dentro de um contexto mais amplo. Sua afirmação, não somente na sociedade americana, como também no âmbito Rafael Valles 135 audiovisual começou a ocorrer à medida que ele encontrou, num cinema feito às margens de Hollywood, uma causa pela qual lutar. Os textos que escreveu para a Film Culture e para o Village Voice se tornariam não somente uma trincheira em defesa de um novo cinema americano, como também um campo em que ele pôde desenvolver as suas convicções estéticas que anos mais tarde foram determinantes na construção da sua obra fílmica. Mais do que ser uma simples transição na sua trajetória, esses textos também constroem um fluxo de influências cinematográficas que contribuíram diretamente para a formação do olhar de Mekas. Sua obra fílmica efetivamente teve início através desses escritos, através do diálogo que ele procurou estabelecer com os filmes de outros realizadores. Ao buscar no cinema underground e no cinema amateur um campo de liberação das convenções narrativas consagradas nos filmes de Hollywood, Mekas potencializava nos seus textos um entendimento mais amplo sobre o cinema. A partir das imperfeições, das improvisações, dos despojamentos estilísticos e dos ruídos técnicos, Mekas exaltou uma busca mais errática e menos profissional no cinema, mais poética e menos técnica. É neste sentido que os seus textos evidenciam um período de afirmação, que vieram determinar tanto a construção da sua obra cinematográfica, como o seu lugar dentro do cinema norte-americano e mundial. Referências bibliográficas James, D.E.. (1989). Allegories of cinema – American Film in the Sixties. New Jersey-EUA: Princeton University Press. Mekas, J. (2008) Ningún lugar adonde ir. Buenos Aires: Caja Negra Editora. ____ (2013a). Fragmento número uno de mis propios “Diários”: 8 de noviembre de 1958. In: Mekas, J. 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Jonas Mekas, São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP: 31-35. Filmografia Blonde Cobra (1963), de Bob Fleishner. Eat (1963), Andy Warhol. Flaming Creaturs (1963), de Jack Smith. Glimpse of the garden (1957), de Marie Menken. Go! Go! Go!, (1964) - Marie Menken. Little Strab at Hapiness (1963), de Ken Jacobs. Lost Lost Lost (1976), de Jonas Mekas. Mothlight (1963), de Stan Brakhage. Pull my Daisy (1959), de Robert Frank e Alfred Leslie. Reminiscences of a Journey to Lithuania (1971-1972), de Jonas Mekas. Scoth tape (1963), Jack Smith. Shadows (1959), de John Cassavetes. The Queen of Sheba Meets the Atom Man (1963), de Ron Rice. Walden (1964-1969), de Jonas Mekas. 138 Construir o cinema a partir das suas margens – uma análise sobre o Movie Journal, de Jonas Mekas DIREÇÃO DE ELENCO, ATUAÇÃO E CONSCIÊNCIA FÍLMICA DOS ATORES: AS REFLEXÕES DE VSEVOLOD I. PUDOVKIN Riccardo Migliore Da coletividade do empreendimento cinematográfico: as funções criativas e outras questões prévias Quando assistimos um filme estamos apreciando o resultado de um esforço coletivo, isto é, um conjunto complexo de relações interpessoais e criativas. Embora esta afirmação possa parecer banal, não há como se compreender a arte cinematográfica sem entender profundamente as referidas interações profissionais e artísticas entre o diretor e os membros da equipe e, também, entre o realizador e os participantes do elenco. Neste capítulo abordamos especificamente os conceitos inerentes ao trabalho de direção dos atores. Para esta finalidade, recorremos principalmente às ponderações de Vsevolod I. Pudovkin, contidas na publicação Film technique and film acting1 (1954). O texto do ator e cineasta soviético está dividido numa primeira parte dedicada às especificidades da técnica fílmica para abordar, em seguida, a questão da direção dos intérpretes2, através da qual enfatizam-se as demais diferenças existentes entre cinema e teatro. A abrangência do tema aqui retratado e 1.  Técnica cinematográfica e atuação fílmica. 2.  Neste paper utilizamos os termos “ator” e “intérprete” como sinónimos. Utilizamos o termo intérprete devido ao fato do ator se deparar com uma interpretação, isto é, com a representação de uma “imagem” criada por um autor ou pelo cineasta-autor. a atualidade e relevância do debate suscitado por Pudovkin, torna possível o estabelecimento de um diálogo com outros cineastas e também, com atores de cinema. Inicialmente, vale sublinhar que, segundo Pudovkin “qualquer trabalho de arte deve ser considerado não como um processo de dois fatores – o artista criativo e o trabalho criado – mas como um processo mais complexo, que consiste em três fatores: o artista criativo, o trabalho criado e o espectador que o apreende”3 (Pudovkin, 1954: 13). Com esta afirmação, Pudovkin, de certa forma, antecipa as teorias da recepção, como também, o conceito de Alain Resnais (2002) acerca das demais funções autorais, que além do realizador, dos intérpretes e dos mais importantes diretores de departamento (por ex. o diretor de fotografia), compreendem o papel criativo do espectador. Atuação no cinema e no teatro: aproximações e divergências Pudovkin afirma que é o contato com o espectador a dar vida às demais artes, contudo, este cineasta deixa entrever uma primeira distinção entre teatro e cinema, na medida em que reflete acerca da relação entre a amplitude da difusão de uma peça teatral e sua qualidade técnica. Segundo este cineasta e teórico, a referida relação seria inversamente proporcional, ou seja, quanto maior a escala geográfica da representação da peça, menor sua qualidade. Neste sentido vale sublinhar que Pudovkin era hostil à mecanicidade do trabalho dos atores e, implicitamente, entende-se que a ampla difusão de uma peça torna a atuação mais mecânica, devido à reiteração da interpretação, com a consequente perda de naturalidade e brilho na performance dos atores. Esta que o realizador soviético denomina de primeira contradição no trabalho do ator teatral é resolvida no cinema, já que a reprodução de cópias de determinado filme não reduz a qualidade técnica da obra audiovisual. Vê-se, 3.  Tradução livre 140 Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin com Pudovkin, que a segunda contradição é também resolvida no âmbito da Sétima Arte, ao se tratar da relação proporcional entre o tamanho do teatro e a qualidade da interpretação dos atores. De acordo com este cineasta, o trabalho do ator se desvaloriza proporcionalmente ao aumento das dimensões de um teatro, já que as nuanças da representação não podem ser percebidas pelos espectadores sentados nas últimas filas. Já no cinema, o tamanho da sala de projeção não representa um fator redutivo quanto à qualidade da interpretação dos atores, pois “a possibilidade de aumentar o tamanho da tela ou o número de reprodutores do som é ilimitada” (p. 16). Resulta que, na hora das filmagens, o ator “está livre de exercitar a variação mais fina de tom e gestos”. (idem). Acrescente-se que, para Pudovkin, o conjunto espaço-temporal e as relativas especificidades derivadas das possibilidades técnicas, é que diferenciam as demais artes. Esta ênfase no conjunto espaço-temporal é fundamental para a compreensão do esforço teórico de cineastas que, principalmente durante a primeira metade do século XX, visavam enfatizar a emancipação do cinema enquanto arte específica. Apesar do acirramento do debate e da exacerbação dos argumentos utilizados de maneira às vezes obsessiva por estes realizadores, é necessário reconhecer a relevância do debate e, principalmente, a consistência de alguns dos argumentos, assim como aqueles defendidos pelo cineasta Jean Epstein (2002) ao introduzir o conceito de fotogenia, de fato fundamentado nas peculiaridades espaço-temporais e no movimento cinematográfico. Já no teatro, segundo Pudovkin, o trabalho para devolver o real através do conjunto espaço-temporal é obtido através da fragmentação da performance através de atos e cenas distintos. Quanto à distinção entre o que Tom Gunning (2006) chama de cinema das atrações e o teatro em auge na época, Pudovkin destaca que as cenas maiores, no cinema dos exórdios, em termos de duração na tela, equivalem às menores das cenas teatrais, onde lembremos, entende-se por cena a uni- Riccardo Migliore 141 dade mínima de tempo e lugar. Isso significa que, segundo o autor de Film technique and film acting, aquilo que no cinema representa o limite da lentidão, no teatro é impensável em termos de celeridade. O cineasta-teórico Pudovkin chega assim a definir os recursos técnicos que permitiram ao cinema de superar as limitações (ou contradições, como já vimos acima) espaço-temporais do teatro, sendo eles: o “olho” móvel da câmera e o “ouvido” móvel do microfone, isto é, um aparato de fotografia móvel e um aparato de gravação sonora igualmente dinâmico. Entende-se, pois, que estas inovações técnicas revolucionaram o trabalho do ator cinematográfico, a respeito daquele teatral. Estas transformações proporcionaram novas exigências no âmbito da interpretação fílmica e, ao mesmo tempo, produziram alguns problemas, como é o caso da iluminação4. Pudovkin parte das semelhanças existentes entre o trabalho de interpretação peculiar do ator cinematográfico e daquele teatral. Em ambas as representações, aquela fílmica e aquela teatral, o ator deve incorporar a que o autor chama de imagem, ou seja, algo que pode ser traduzido como o conjunto narrativo e, ao mesmo tempo, a essência de determinado script ou dramaturgia. Mas em realidade, imagem é algo intraduzível, e é interessante que Pudovkin tenha utilizado esta metáfora, pois isso remete para o papel criativo do realizador cinematográfico, principalmente no que diz respeito à pré-produção. Entende-se, implicitamente, que Pudovkin considera o diretor cinematográfico como uma espécie de visionário. Segundo Steven Katz (2000), o trabalho criativo do autor (que Katz tende a associar ao realizador, embora possa se tratar do roteirista ou, também, do produtor) começa antes mesmo da escrita do argumento ou do roteiro, quando ele encontra-se a (pré)visualizar o filme. Trata-se de uma atitude visionária que, de certa forma, reduz e sintetiza o filme a uma imagem, por sua vez ligada a um sentimento ou conjunto de sentimentos. 4.  Cientes do fato que no teatro o ator seja chamado a atuar em favor de todo um aparato de iluminação cênica, neste momento estamos acompanhando o raciocínio de Pudovkin, no que diz respeito à mobilidade do meio cinematográfico, evidentemente superior àquele teatral. É com relação à esta mobilidade que estamos considerando a questão da iluminação. 142 Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin Neste sentido, pode-se afirmar que a principal função de um diretor de cinema é, basicamente, aquela de transmitir aos demais colaboradores, tanto aqueles que compõem a equipe técnica, como também ao elenco, a referida imagem, isto é, sua visão e ao mesmo tempo, o sentimento que a permeia e a torna viva e única. Entretanto, o papel dos demais colaboradores e, no caso específico, aquele dos atores, é de interpretar a imagem o mais fielmente possível, dando-lhes consistência e transformando, assim, uma visão em algo concreto. No que diz respeito aos atores, segundo Pudovkin, trata-se de um trabalho de incorporação. Surge, porém, o problema das contradições referentes ao trabalho do ator, as quais, segundo o autor de Film technique and film acting, podem ser sintetizadas no duplo condicionamento do intérprete fílmico ou teatral, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Pudovkin ressalta que a imagem a ser incorporada pelo ator é condicionada tanto pela dramaturgia ou roteiro, como pela individualidade do ator. Quanto ao primeiro condicionamento, vemos que, implicitamente, Pudovkin refere-se à transformação da imagem primeira, isto é, a visão do diretor‑autor, em algo concreto, como é o caso da dramaturgia (teatro) e do roteiro (cinematográfico). Trata-se de um processo que, de certa forma, vem inexoravelmente a modificar a imagem inicial, ao mesmo tempo por ser algo sucessivo à visualização da imagem primeira, e devido à transformação de uma imagem mental e emocional, quer dizer, psíquica, interior, em linguagem verbal escrita. Este é o que Pudovkin denomina de condicionamento objetivo. E quanto ao condicionamento subjetivo, entende-se que a imagem do realizador, que como acabamos de colocar, surge como visão interior, ou imagem psíquica, deve ser interpretada pela subjetividade do ator, de fato uma subjetividade outra. Portanto, o ator deve absorver uma visão interior alheia, traduzida em linguagem verbal pelo diretor-autor, mantendo certo grau de fidelidade com a imagem primeira produzida por uma subjetividade diferen- Riccardo Migliore 143 te da própria, mas que, de forma imprescindível, deve ser mediada através da própria individualidade, considerando tanto a esfera da personalidade, como também, aquela da cultura. O aspecto mais difícil da interpretação, que não deixa de ser uma tradução, a decifração de uma intenção inicial alheia, está ligado ao fato do ator ter que devolver um sentimento, ou melhor, um conjunto de sentimentos, não de maneira abstrata, mas sim, concreta, entrando em determinada “frequência” emocional, isto é, trabalhando em nível de nuanças sutis e, de fato, únicas. Ao mesmo tempo, o trabalho do realizador é o de ajudar o ator a afinar sua frequência, ou vibração, de maneira a devolver a imagem primeira através de seu trabalho sobre o personagem. Quanto ao trabalho do ator sobre a imagem, Pudovkin sugere que o mesmo é orientado de duas maneiras distintas: primeiramente, a imagem é construída sobre si mesmo, enquanto pessoa particular, dotada de peculiaridades em termos culturais e de caráter e, em segundo lugar, a partir da interação do elemento pessoal com aquele objetivo, ligado à dramaturgia ou roteiro como um todo. Percebe-se que Pudovkin é influenciado pelos conceitos de Igor Staniskavski (2008), na medida em que o cineasta realça que o papel do ator não deve ser criado a partir de qualidades mecânicas que lhe são estranhas, mas trabalhando sobre suas qualidades inatas. Resulta assim, que o lado lógico (objetivo) e emocional (subjetivo) representam o dualismo no trabalho do ator enquanto este cria a imagem. Permanecendo no âmbito das diferenças entre a atuação teatral e cinematográfica, Pudovkin aponta à questão da descontinuidade peculiar do trabalho do ator no cinema, o que, segundo este cineasta, proporciona maiores possibilidades de reproduzir o real a respeito do teatro. Dito de outra forma, Pudovkin implicitamente sugere que a fragmentação da representação cinematográfica amplia as potencialidades do conjunto espaço-tempo e, consequentemente, devolve ao filme um maior senso de “realidade”. Quanto ao trabalho do ator (e do diretor junto com ele), o autor de Film Technique and 144 Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin Film Acting enfatiza que a imagem fragmentada só num segundo momento será reunida, mas sem que o ator possa opinar acerca deste processo que conhecemos como montagem. Segundo Pudovkin, devem ser dadas ao ator as condições básicas para que ele possa vivenciar o seu papel e, considerando a fragmentação da imagem fílmica, é necessário ajudar o ator a manter uma unidade de atuação, ou dito de outra maneira, coerência na imagem criada interiormente, tratando-se de uma “imagem única a ser vivenciada organicamente” (p. 34). Se no teatro o auxílio ao ator, quanto à criação da organicidade de sua atuação, é oferecido através do ensaio, Pudovkin pondera que no cinema deve‑se seguir o mesmo caminho. O cineasta soviético critica, desta forma, a coisificação do ator na medida em que é utilizado por alguns diretores como uma mera componente do filme, um material fílmico qualquer. Segundo este realizador, o ator, enquanto ente vivo, deve ser destacado e valorizado. O intérprete, pois não deve ser utilizado como se fosse uma máquina, entretanto, este profissional deve atuar em favor de um olho mecânico, aquele da câmera, considerando seus ângulos múltiplos. Vemos, portanto, que Pudovkin considera a fragmentação do ponto de vista como um aspecto peculiar e intransponível da arte cinematográfica e critica os diretores que, para evita-la, aumentam a duração de seus planos. A este propósito, lembremos, este cineasta pode ter sido influenciado pela vanguarda soviética e pelas demais vanguardas europeias da década de 1920, que justamente optaram pela fragmentação ou até mesmo pela descontinuidade extrema do elemento espaço-temporal. Outra forma que Pudovkin utiliza para frisar a distinção existente entre a arte cinematográfica e aquela teatral é a de considerar aquilo que, no teatro, é mencionado, mas encontra-se fora da cena, isto é, do palco. Neste caso, na arte cênica, a única solução possível é narrar, enquanto no cinema, pode-se recorrer à representação direta daquilo que transcende determinada cena. Riccardo Migliore 145 Ampliando a referida distinção (entre teatro e cinema) e envolvendo também a literatura, Pudovkin exemplifica da seguinte maneira: “no palco o ator falará de um voo, na literatura o autor acrescentará à história uma descrição das circunstâncias exteriores às emoções interiores da pessoa que está voando, mas somente o cinema pode juntar em benefício do espectador a sensação direta e plena de ambas” (p. 43). Disso resulta que o cinema é capaz de devolver as sensações diretas do fato narrado, o que repercute, segundo o autor, numa força profunda e ínsita na representação cinematográfica, a qual traz o espectador por dentro da narração. Dito de outra maneira, as possibilidades inerentes ao processo de identificação do espectador, no cinema, transcendem aquelas do teatro e da literatura, o que torna a representação direta, embora o espetáculo cinematográfico seja, em realidade uma representação a posteriori e, portanto, indireta. Acerca da fragmentação da representação fílmica, Pudovkin sublinha sua tríplice manifestação, no que diz respeito à ação, atuação e ponto de vista. Ao se referir à fragmentação, este cineasta realça as potencialidades do cinema de capturar e manter a atenção do espectador, por meio da atuação e da cobertura imagética, a cada instante e, potencialmente, sobre cada detalhe da cena. E alerta que uma cobertura multi-câmera não funciona, na medida em que cada quadro deve ser pensado para um determinado plano. A este respeito, Pudovkin chega a definir o dilema existente, no cinema, entre o desejo do ator de representar de maneira integral, ou seja, sem interrupção, e as necessidades técnicas de descontinuidade em termos de interpretação. Este conflito, de fato, produziu duas grandes maneiras de fazer cinema, as que se resumem, por um lado, na fragmentação exacerbada do ponto de vista e, por outro, no chamado realismo espacial, assim como foi teorizado por André Bazin (1986). Basicamente, a primeira vertente utiliza a montagem de modo mais dinâmico, enquanto a segunda tende a trabalhar mais o ritmo interno em um mesmo plano, cuja duração aumenta consideravelmente, já que se utilizam menos cortes. Apesar das inúmeras nuanças entre estas tendências, a história do cinema pode ser considerada a partir desta dicotomia. 146 Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin De certa forma, Pudovkin considera que no próprio teatro exista uma contradição entre a personalidade do ator e seu processo e esforço para se tornar uma parte conectada harmoniosamente com a circunstância cênica em seu conjunto. O autor, porém, sugere que “não há necessidade de se eliminar tal contradição”, sendo necessário compreender os métodos da técnica de atuação e portanto, “os meios legítimos a serem empregados” (p. 52). Portanto, o autor de Film technique and film acting valoriza o ensaio, enquanto meio a ser utilizado pelo ator para trabalhar o seu papel de maneira despreocupada com relação à fragmentação. Dito de outra maneira, o papel a ser interpretado durante o ensaio, pode ser trabalhado como um todo orgânico, já que, segundo Pudovkin, o intérprete deve se esforçar para harmonizar a própria personalidade com a imagem que interpreta. Fundamental, segundo este cineasta, é que o ator, no ensaio, trabalhe sobre algo não contido no roteiro, de maneira que possa ampliar a organicidade de sua atuação, adquirindo e vivenciando uma imagem total da interpretação. O pior, segundo Pudovkin, ocorre quando a atuação limita-se, simplesmente, à soma de instruções que o ator recebe do diretor sobre cada fragmento a ser filmado. Reitera-se, pois, que o ator deve incorporar a imagem do filme como um todo. Alcançando esta consciência integral sobre o filme, o ator deve adquirir certa consciência técnica no que diz respeito às potencialidades específicas do meio cinematográfico, principalmente com relação à sua interação com a câmera. Pudovkin sugere que, assim como o ator teatral sente a necessidade de enfatizar determinado gesto, o ator cinematográfico deve chegar a sentir a necessidade de ter a câmera em determinado ângulo. A consciência do ator se dá em dois níveis diferentes: deve ter noção do seu lugar no filme e deve ter a capacidade de disfrutar o espaço multifacetado e a multi‑angularidade da tomada. Outra consideração pertinente sobre a distinção entre o trabalho do ator teatral e cinematográfico é aquela segundo a qual o público do espetáculo teatral, de certa maneira, participa do esforço criativo do ator. A plateia tea- Riccardo Migliore 147 tral, apesar da concentração do intérprete durante sua atuação, demonstra a própria estima para com este profissional. E não só de estima se trata, sendo algo mais sutil, uma energia coletiva que, de certa forma, é canalizada em função do trabalho do ator teatral. Diferentemente, no cinema, o ator não tem como perceber a reação do espectador (que só assistirá o filme a posteriori), nem a simples presença do mesmo. Pudovkin reforça a importância da confiança que o ator cinematográfico sente com relação ao diretor e relata acerca de suas experiências como realizador na época do cinema mudo, quando literalmente ele encorajava os atores com palavras de louvor durante uma tomada. Um exemplo interessante proposto pelo autor se refere ao filme Mother (V.I. Pudovkin, 1926). O cineasta relata que, ao longo da produção deste filme, a atriz Baranovskaia lhe declarou que, até que ele se encontrasse em seu lugar costumeiro ao lado da câmera, ela não conseguia atuar. A presença do diretor e sua reação perante a performance é, segundo este realizador, uma necessidade orgânica para o ator cinematográfico. Ocorre que, algumas vezes, ao exacerbar sua expressão, o ator pode obter o efeito contrário ao desejado, isto é, ao invés de alcançar um maior nível de expressividade, ele está forçando a máscara, tornando a atuação patética e falsa, já que o posicionamento e angulação da câmera, a lente utilizada, a iluminação e outros aspectos técnicos, em determinados momentos requerem apenas que o ator esteja ciente do seu papel e da história em função da qual está atuando, controlando e limitando suas contrações musculares (principalmente faciais). De fato, uma coisa é a intensidade do olhar de um intérprete (que no cinema já “fala” por si só) e outra é o fato deste dramatizar a máscara, pensando de alcançar aquela mesma intensidade. Vale ressaltar o fato que Pudovkin realizou filmes durante o período do cinema mudo, no qual a pantomima era notoriamente utilizada, com todos seus clichês em termos de gestualidade e expressão, assim como foi considerado por Jaques Aumont em O cinema 148 Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin e a encenação (2008). E a este respeito vale frisar que a atuação por meio de clichês já tinha sido abundantemente criticada por Igor Stanislavski (2008), no âmbito do teatro. É a partir dos pressupostos discutidos acima, que Pudovkin resumidamente destaca dois elementos básicos que orientam a técnica do ator cinematográfico, em primeiro lugar, “(...) a subordinação por si mesmo de sua atuação aos problemas criativos da arte da montagem; segundo, a absorção da imagem interpretada, organicamente e como um todo” (p. 108). Se pelas considerações acima reitera-se a influência de Stanislavski sobre o pensamento e a práxis fílmica de Pudovkin, encontramos a confirmação explicita desta simpatia no trecho a seguir: Assim como vimos, em seu sistema de treinamento, o ator cinematográfico deveria abordar a escola de Stanislavski. Portanto os elementos básicos de sua apreciação inicial por um papel está fundamentada principalmente no conteúdo interior da imagem. Mas apesar disso, seria um erro grosseiro separar este conteúdo das formas exteriores por meio das quais este será transmitido ao espectador a partir da tela. (p. 130). Segundo o raciocínio do cineasta soviético, é portanto necessário que o ator disponha de um profundo e completo conhecimento da técnica peculiar de sua arte, no caso, aquela cinematográfica. Esta consciência técnica é que lhe permitirá compreender se e como o seu papel vai se desenvolver, isto é, se e como chegará a obter determinado resultado. A práxis fílmica de Pudovkin é aqui chamada em causa no que diz respeito à questão da interação entre diretor e ator. O realizador refere-se à relação existente entre o grau de intimidade diretor-ator e o progresso das filmagens, em termos de harmonia no set (ou locação) e ajuda recíproca, mas sobre tudo, em termos de confiança, “que é tão necessária para (alcançar) as mais plenas vantagens no trabalho criativo” (p. 134). Riccardo Migliore 149 Mais uma vez, os exemplos extraídos da trajetória profissional deste diretor podem servir para melhor compreendermos, na prática, a importância de uma boa interação entre diretor e ator. Pudovkin menciona novamente sua experiência com a atriz Baranovskaia, durante as filmagens do filme Mother (V.I. Pudovkin, 1926), destacando que, o contato entre eles alcançou o que o realizador chama de “verdadeiro estágio interior” apenas no meio da produção, enquanto, com o ator Livanov “foi bem pior – nós temos alcançado uma compreensão criativa recíproca no final” (p. 134). Para além da necessidade de um bom relacionamento entre diretor e ator, Pudovkin realça a importância de se favorecer contatos e trocas de opiniões entre diretor, ator e roteirista desde a fase de pré-produção. Ou nas palavras do cineasta: “Quando o processo de produção do filme tem começado, já é tarde para iniciar a organizar contatos reais, e em alguns casos é praticamente impossível” (p. 137). O autor de Film technique and film acting lamenta o caso corriqueiro no qual o ator acaba defrontando-se com o resultado final do filme já montado, sem ter a menor chance de modificar alguma coisa feita pelo diretor. O discurso de Pudovkin, de fato, é coerente desde o começo do texto até o final, na medida em que o cineasta propõe a atribuição de um papel criativo para o ator e se opõe à mecanicidade da execução de um papel. O tom crítico do cineasta soviético é reforçado e, ao mesmo tempo, resumido, através das seguintes palavras: “Nós temos já explicado o status deficiente do ator cinematográfico na nossa indústria”. (p. 138). Para que o método sugerido por Pudovkin possa ser aplicado dever-se-ia saber a priori com quais atores o diretor poderá contar, de maneira a envolver, pelo menos os principais, no processo de pré-produção, numa etapa que, apenas para exemplificar, poder-se-ia chamar de “ajuste coletivo do roteiro”. 150 Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin Conclusão Diante das ponderações de Vsevolod I. Pudovkin, entende-se que existe certa tensão nas interações entre profissionais do cinema, especialmente, entre diretor e ator, como também, junto ao roteirista. Percebe-se, pois, o teor criativo do ofício do intérprete fílmico, que em nenhum caso deve ser considerado como uma função mecânica. O texto de Pudovkin, explicita ou implicitamente, sugere que o ator cinematográfico, de fato, deve dispor de auto-conhecimento, sensibilidade, criatividade e consciência da técnica cinematográfica. Autoconhecimento, porque ao absorver a imagem inicialmente (pré)visualizada pelo diretor, ele deverá traduzi-la em algo concreto, através da própria atuação, pelo que deverá se conhecer profundamente, de maneira a evitar de confundir a que Pudovkin chama de imagem primeira, com a projeção da mesma efetuada a partir da própria personalidade, gosto pessoal e cultura. O autoconhecimento, portanto, serve para garantir a fidelidade à imagem primeira, isto é, a visão orgânica e sensorial do filme que, no caso de um filme autoral, precede até mesmo o esboço do argumento. Quanto à sensibilidade, esta refere-se à capacidade do ator de perceber a essência emocional e tonal da imagem que deverá incorporar, mantendo-se naquela “frequência” ao longo de todo o filme, apesar da descontinuidade ou fragmentação peculiar da produção cinematográfica. Percebe-se, ainda, que o ator, embora guiado pelo diretor, desempenhe uma função criativa, isto é, não-mecânica. Explica-se pois, a razão pela qual, neste paper, temos amplamente utilizado o termo “intérprete” como sinónimo de “ator”. Intérprete é, justamente, quem representa a imagem primeira através de seu ofício de ator. De fato, além de absorver a referida imagem, o ator deverá interpretá-la, decifrá-la, o que, tratando-se de uma visão posteriormente traduzida em argumento e roteiro (e sucessivamente, em material imagético) comporta a capacidade de (re)criar, dar vida a algo que, enquanto imagem primeira, surge na psique do realizador como algo próximo de um sonho, ou de uma alucinação. Riccardo Migliore 151 E como Pudovkin reitera em diversas ocasiões, o ator deve ter consciência da técnica fílmica, pois o fato de atuar perante um olho mecânico, cuja “visão” é alterada por meio de lentes e recursos de iluminação (entre outros), vai afetar a performance. Disso resulta que, devido à sutileza da interpretação fílmica, o ator deve conhecer o meio cinematográfico de maneira a saber quando e como amenizar sua expressão. Se no cinema, de uma forma geral, o mais é menos, existem situações nas quais a mais leve contração de um músculo da testa ou da sobrancelha, ou ainda, da boca, pode levar a performance ao completo fracasso, tornando a atuação forçada e grotesca. Referências bibliográficas Bazin, A. (1986). Che cos’è il cinema. Milano: Garzanti. Epstein, J. (2002). L’essenza del cinema. Roma: Fondazione Scuola Nazionale di Cinema. Gunning, T. (2006). Attractions: how they came into the world. In: The cinema of attractions reloaded. Amsterdam: Amsterdam University Press: 31-40. Katz, S. (2000). Film directing shot by shot: Visualizing from concept to screen. Studio City: Michael Wiese Productions. Pudovkin, V.I. (1954). Film technique and film acting. London: Vision Press Limited. Resnais, A. (1992). Il metodo, la creazione, lo stile. Roma: Fondazione Scuola Nazionale di Cinema. Stanislavski, I. (2008). Il lavoro dell’attore su se stesso. Bari: Editori La Terza. Filmografia V.I. Pudovkin. Mother (União Soviética, 1926). 152 Direção de elenco, atuação e consciência fílmica dos atores: as reflexões de Vsevolod I. Pudovkin Parte III A Criação Cinematográfica em Movimento A JUSTA DISTÂNCIA ONDE AS PESSOAS SE AMAM OU SE ODEIAM: A FILMAGEM COMO ATO ERÓTICO NO DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO Cláudio Bezerra O brasileiro Eduardo Coutinho (1933-2014) foi um cineasta cuja maturidade artística chegou com a idade avançada. Embora tenha lançado uma obra-prima do cinema brasileiro aos 51 anos de idade, Cabra marcado para morrer (1984), é, no entanto, na velhice, aos 65 anos, que formata um estilo de pensar e fazer documentário, a partir de Santo Forte (1999). A principal característica desse estilo é o de investir na palavra e na imagem do corpo em seu potencial expressivo, oral e gestual.1 Ciente de que o desempenho dos interlocutores diante das câmeras era fundamental para o seu documentário, Eduardo Coutinho desenvolveu um conjunto de procedimentos formais, mais ou menos estáveis, com o intuito de produzir e potencializar o momento do encontro que mantinha com alguém durante as filmagens. Para Coutinho, o documentário era essencialmente esse encontro provocado para a realização de um filme, que envolve sentimentos humanos variados, como afetos, indiferenças, tensões, amor, ódio e certo erotismo. A partir de entrevistas concedidas pelo cineasta em periódicos, livros e filmes, este artigo discute o encontro de filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho. Para atingir seu objetivo, o texto inicia com a 1.  Para um entendimento mais aprofundado sobre o documentário de Eduardo Coutinho, ver Bezerra, C. (2014). A personagem no documentário de Eduardo Coutinho. Campinas: Papirus. definição de documentário como encontro, segundo Coutinho. Em seguida, apresenta as principais características estético-narrativas e procedimentos formais do seu documentário, destacando a importância do momento da filmagem. Por fim, aponta o que caracteriza a dimensão erótica do encontro do cineasta com seus interlocutores. Sempre que necessário, serão citados trechos de alguns documentários do cineasta, no intuito de garantir um maior esclarecimento das questões abordadas. O documentário como encontro O que é documentário? A pergunta é necessária para o entendimento das obras e das ideias de qualquer documentarista. E foi feita a Eduardo Coutinho por mim e dois colegas acadêmicos, durante o lançamento de Edifício Máster (2002), na cidade do Recife, nordeste do Brasil, em fevereiro de 2003. Para responder a pergunta, em um primeiro momento o cineasta recorreu às ideias do documentarista e teórico francês, Jean-Louis Comolli, estabelecendo uma comparação com a reportagem. Segundo Coutinho, para Comolli o documentário é feito para durar e não se pauta pela objetividade jornalística, pois é uma visão subjetiva do realizador sobre o real. Em seguida, Coutinho passou a delinear a sua concepção de documentário: O documentário é o próprio ato de documentar. Um filme é um filme porque há um ato de filmagem. Por isso, o ato mesmo de filmar, tudo o que acontece naquele momento em que estou filmando, é o que mais importa. Eu procuro então incorporar ao filme a nossa própria intervenção numa determinada situação ou num determinado lugar, justamente por que estou ali filmando. (Coutinho, 2003: 215-216). Filmar com determinadas pessoas em determinadas circunstâncias, e interagir com elas, era essencial para o estilo de documentário que Coutinho decidiu fazer desde Santo Forte. Para o cineasta, só era possível fazer um filme a partir das indeterminações do encontro entre quem filma e quem é filmado. 158 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho De repente, nessa interação, nesse diálogo, nesse encontro, se produz uma experiência que só faz sentido para mim se eu sentir que ela nunca aconteceu antes e que jamais vai acontecer depois. O que não quer dizer que aquela pessoa que estou entrevistando não tenha dito as mesmas coisas antes, ou que venha a dizer depois para outras pessoas. Mas sei que ela nunca vai dizer da mesma forma porque a forma como ela disse depende também da minha própria intervenção. (Coutinho, 2003: 216-217). Coutinho não buscava a exclusividade do relato, mas o que poderia brotar do frescor do primeiro e único encontro que mantinha com os participantes do seu filme. Um dos procedimentos adotados pelo cineasta para a realização de seus documentários era a pesquisa prévia. Mas ele nunca fazia esse trabalho. O contato inicial era sempre estabelecido por alguém da produção. Para Coutinho, a maneira como os produtores se comportavam era determinante para conquistar o engajamento das pessoas com o filme: “É muito importante saber como obter informação do outro. A pessoa tem que ser cortês, tem que ter respeito. Isto é, quando eu chego, a pesquisa cria um troço que eu sou uma pessoa do bem” (Coutinho apud Bezerra, 2014: 63). A entrevista inicial feita pela produção era registrada em vídeo e, posteriormente, Coutinho assistia ao material gravado junto com a equipe para selecionar quem seria filmado. Se a pesquisa prévia é uma etapa necessária para a realização da maioria dos documentários, em Coutinho ela tinha algumas particularidades. Além de coletar informações, ser gravada em vídeo, servir para preparar o terreno para a chegada do realizador e ajudar na seleção dos participantes do filme, a pesquisa também dava parâmetros para a atuação tanto do cineasta como de quem era filmado. No geral, ambos improvisavam a partir dessas informações coletadas previamente. Mas Coutinho desejava mesmo era ser surpreendido: “A pesquisa é boa, mas, quando sai da pesquisa, fica melhor”. (Coutinho apud Bezerra, 2014: 73). Cláudio Bezerra 159 Durante as filmagens, o cineasta costumava recorrer a certos procedimentos considerados por ele como “essenciais”, para o tipo de documentário que fazia: não esconder a câmera; montar rapidamente o set; deixar a pessoa sentar em um lugar confortável, independente da beleza ou não do local; manter a câmera preferencialmente fixa no tripé, “sempre no mesmo eixo”; e, sobretudo, desenvolver uma “conversa” atenta e prolongada com alguém em uma locação única, como uma espécie de confinamento onde ambos ficavam disponíveis e à vontade para interagir. Uma série de outros procedimentos foram adotados também para garantir o frescor e a espontaneidade desse encontro fílmico na montagem. Um deles foi a inclusão de imagens e informações sobre o método de produção do documentário. Além de chamar a atenção do espectador para um confronto com a forma fílmica documentária, em Coutinho o princípio da metalinguagem enfatiza uma impressão geral de espontaneidade no filme, lembra, a todo instante, que o espectador está assistindo a algo em processo. Em outras palavras, procura manter o frescor de “ao vivo” do encontro do cineasta e sua equipe com alguém, quando este alguém, de improviso, foi capaz de atuar, criando uma autoperformance de sua experiência de vida. De modo geral, a montagem dos documentários de Coutinho era demonstrativa e descontínua, no sentido de não obedecer a certas expectativas associadas ao cinema documentário de contar uma história unitária, ou seja, de apresentar informações cumulativas e articuladas a respeito de determinado tema ou alguém. Em seus filmes, o cineasta, basicamente, mostra uma sequência de performances autônomas. A que vem depois não tem nada a ver com a anterior, nem com a posterior. A montagem demonstrativa de Coutinho também não obedecia certos critérios estabelecidos pelo documentário clássico para a definição da ordem de entrada das personagens, visando criar um clímax no filme. O cineasta considerava esse procedimento como “montagem ficcionalizante”, por quebrar a sequência da filmagem. “Eu não tento fazer uma montagem, eu tento 160 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho respeitar a cronologia da filmagem, eu tento respeitar o caráter documental, manter o caráter singular do acontecimento na montagem.” (Coutinho, 2000: 58). Outro importante procedimento de montagem era o critério de corte das falas. O cineasta procurava incluir os momentos de atuação mais interessantes de cada participante, ao mesmo tempo em que tentava preservar “coisas essenciais da história que constrói o seu retrato”. A maior dificuldade de Coutinho era a de reduzir para poucos minutos uma conversa longa, às vezes, de mais de uma hora. Pois, embora montasse de maneira descontínua, não gostava de cortes rápidos. “Muitas vezes, sou obrigado a ter um plano de 45 segundos para botar um de 10 segundos, eu tenho que pegar um troço menos interessante para ter uma duração.” (Coutinho apud Bezerra, 2014: 79). Os procedimentos de montagem desenvolvidos por Coutinho, sobretudo, a partir de Edifício Master, passaram a rejeitar os elementos visuais e sonoros que não estavam presentes na filmagem. Sua montagem privilegiava a fala capturada em sincronia com a imagem, restringia o papel da locução à simples apresentação do método de filmagem no início do filme, descartava as imagens de cobertura e a trilha musical. Em geral, era uma montagem de corte seco, sem fusões, escurecimentos ou trucagens. Como dito antes, esses procedimentos tinham como objetivo resgatar o frescor do momento da filmagem, para destacar o corpo como o centro de todas as atenções, ao mesmo tempo objeto de revelação e de credibilidade. O interesse do cineasta em preservar na montagem o que acontecia durante a filmagem era tanto que Jordana Berg (2015), montadora dos seus últimos doze filmes, em artigo publicado na revista brasileira Piauí, um ano após a morte dele, declarou: “Ainda hoje, eu me pergunto em que momento Coutinho dispensaria também a própria montagem, já que se dizia desgostoso pelo fato de um filme nunca fazer jus ao seu material bruto?” Trazer e mostrar no documentário o que aconteceu no encontro fílmico era quase uma obsessão para Coutinho: “A cada novo filme, o que se via não era mais Cláudio Bezerra 161 do mesmo. Era menos do mesmo. E assim, nesse rumo, ia testando o que sobraria de seus encontros, buscando a memória inventada por todas as memórias.” (Berg, 2015). A dimensão erótica do encontro na filmagem Em diferentes ocasiões, Coutinho chegou a indicar certa analogia entre seus encontros de filmagem e a conversa psicanalítica sem, no entanto, estabelecer uma relação direta, pois sabia que ambos tinham métodos e objetivos distintos. Mas, como intelectual, tinha conhecimento a respeito da psicanálise e da necessidade do ser humano de ser ouvido e reconhecido pelo outro. Seu documentário se alimentava desse desejo. Já em 1999, quando lança Santo Forte, declara: Pela primeira vez na minha vida eu trabalhei num filme em que tudo era montado como um set de psicanálise. Montei um set. Eu tive muito medo de que isso fosse um desastre. Mas para conversar sobre religião, eu sabia que precisava criar um clima privado. Tanto que eu pedi a todos os personagens que estivessem sozinhos, em casa. (Coutinho, 1999: 27-28). O set a que o cineasta se refere era a casa dos moradores da favela Vila Parque da Cidade, no Rio de Janeiro. Santo Forte ainda é um filme temático sobre religiosidade, mas não apresenta padres, pastores, mães-de-santo ou especialistas explicando este assunto. Também são raras as imagens de cultos e manifestações semelhantes. O que se vê são, basicamente, pessoas comuns falando com desenvoltura para a câmera, expondo suas experiências místicas e religiosas. Em outras palavras, um corpo em ato de fabulação peculiar nos gestos, tom de voz, posturas e atitudes. A habilidade de Coutinho como entrevistador adquire a partir desse filme um apuro excepcional para evidenciar, com um mínimo de intervenção, o caráter universal de histórias particulares e a natureza performática dos atos de fala. Santo Forte inaugura as bases do que Coutinho entendia por “documentário como encontro”. Muito dos procedimentos usados pelo cineasta em documentários anteriores são depurados ou redimensionados. A locução torna-se 162 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho pontual, assim como a imagem de cobertura. O filme é quase todo estruturado na fala presencial. Coutinho retoma a concentração espacial, gravando apenas em uma favela, e inaugura a pesquisa prévia de personagens. Além disso, ele desiste de filmar em película e adota o vídeo como formato ideal para viabilizar o seu documentário, baseado no registro de longas conversas. A metalinguagem presente em Cabra marcado para morrer reaparece de maneira radical, expondo não só a equipe como o pagamento de cachê aos entrevistados, procedimento estranho no âmbito do documentário. Pouco a pouco esses procedimentos foram aperfeiçoados pelo cineasta para garantir a espontaneidade das filmagens. Seus filmes tornaram-se praticamente registros de conversas marcadas a partir de determinadas condições previamente definidas no processo de pré-produção. Uma delas era a escolha de quem seria filmado. Para Coutinho (2005: 37), interessava conversar com pessoas diferentes dele: “Só me interessa o que não conheço, não quero fazer um filme sobre cineastas idosos. Essa é a razão fundamental, mas também tem outra: não faço filmes sobre a elite porque não gosto de fazer filme contra. Gosto de filmar a favor”. Outra condição para participar do seu documentário era a habilidade narrativa. O cineasta buscava pessoas dotadas de um modo peculiar de narrar fragmentos de suas experiências de vida: “No tipo de documentário que faço, o mais importante é narrar bem: é contar de modo extraordinário mais do que viver algo realmente extraordinário”. (Coutinho, 2003: 225). Nos encontros de filmagem, Coutinho sentia-se particularmente atraído pelo jogo da negociação de desejos que um primeiro e único encontro com alguém poderia gerar: Toda filmagem é uma negociação diante da câmera. O cara não me conhece, eu não conheço ele. De repente, eu tomo um caminho que ele não quer. De repente, o caminho empaca. Tem uma negociação de desejos ali. E há uma certa igualdade, porque se ele não me der, eu não tenho filme! Eu dependo inteiramente das pessoas, e acho que isso passa nos meus filmes. (Coutinho, 1999: 26). Cláudio Bezerra 163 Em certos momentos essa negociação de desejos era carregada de tensão. Às vezes, o cineasta era interpelado de modo mais duro por seus interlocutores. É o caso de Roberto, em Edifício Máster. Ao ser indagado onde trabalhava, o senhor, um vendedor ambulante de 65 anos, de aparência frágil, responde com certa rispidez: “Para dar emprego a um garoto novo tá difícil! Quanto mais para um velho cheio de problema! Então, não tem emprego para uma pessoa igual a mim! O senhor quer me dar um emprego?”. Em seguida, Roberto fica olhando fixamente em direção ao cineasta, que responde sem jeito: “Eu não tenho emprego para dar...”. Segundo Coutinho, mesmo nos momentos mais duros, os encontros de filmagem eram marcados por um jogo de sedução. Em suas últimas entrevistas, o cineasta falou de modo explícito que o ato de filmar era atravessado por certo erotismo: “O que estou filmando é uma interação entre duas pessoas, uma de um lado da câmera, outra, de outro. Isso tem um conteúdo erótico, no sentido mais amplo da palavra.” (Coutinho, 2012: 81). Qual era então o sentido deste erotismo? Onde e como ele se manifestava durante as filmagens dos documentários de Eduardo Coutinho? De maneira parecida com certos encontros amorosos, o encontro de filmagem era mediado por alguém da produção do filme que criava um clima favorável à chegada do cineasta. Em um primeiro momento, o local do encontro foi a casa de quem era filmado, seja na favela, como em Santo Forte e Babilônia 2000, ou no prédio de classe média, no bairro de Copacabana, em Edifício Máster. Posteriormente, o encontro passou para um local neutro, como o palco de um teatro, em Jogo de cena e As canções, ou o estúdio, em Últimas conversas.2 Coutinho costumava alegar que essa mudança de locação ocorreu porque ele não tinha mais saúde para subir o morro de uma favela do Rio de Janeiro. 2.  Embora não tenha sido finalizado por Coutinho, Últimas conversas (2015) foi filmado por ele, no final de 2013. O cineasta foi morto em fevereiro de 2014. A montagem final do filme é de Jordana Berg e João Moreira Salles. 164 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho O cineasta andava muito debilitado pela idade avançada e problemas causados pelo consumo excessivo de cigarros. Mas ainda encontrou forças para ir ao encontro de uma comunidade de idosos em São João dos Peixes, no sertão da Paraíba, nordeste do Brasil, onde fez O fim e o princípio. No início de 2013, ele revisitou os participantes de Cabra marcado para morrer, em Vitória de Santo Antão, no estado de Pernambuco, nas cidades de João Pessoa e Sapé, na Paraíba, e na Favela de Ramos, no Rio de Janeiro, para saber o que aconteceu na vida de cada um. Como resultado desses reencontros foram realizados os média-metragens Sobreviventes de Galileia (2014) e A família Elizabeth Teixeira (2014), os dois últimos filmes que concluiu em vida, inseridos como material extra no DVD de Cabra marcado para morrer. De maneira voluntária ou não, a mudança para um local neutro teve um efeito positivo para o documentário de Coutinho. Se por um lado esse ambiente neutro retirou as pessoas do seu habitat (sala, quarto, cozinha, terraço, quintal, ou mesmo a rua de uma comunidade), espaço que de alguma forma identificava e revelava algo a respeito delas, por outro, criou uma atmosfera ideal para a atuação diante das câmeras. Por exemplo, no palco do teatro onde foram filmados Jogo de cena e As canções há uma sofisticada produção cênica, sobretudo, de iluminação, construindo um tempo e espaço “ficcional” que, de algum modo, deve ter contribuído para o adensamento da atuação performática de quem se dirigiu ao local para participar do filme. No entanto, independente do encontro ser na casa das pessoas ou em um ambiente neutro, Coutinho mantinha certos procedimentos que considerava essenciais para gerar um clima de espontaneidade no set de filmagem. No geral, a câmera ficava fixa no tripé, em ângulo normal, na altura dos olhos, filmando a conversa sem corte e com duas ou três variações de planos (um mais aberto, um plano médio e um primeiro plano). Se o cinegrafista precisasse fazer um movimento de câmera deveria ser suave, quase imperceptível. Era “essencial” também que o fotógrafo soubesse ouvir. Cláudio Bezerra 165 Na verdade, é um dispositivo muito simples que não esconde a câmera, mas que, ao mesmo tempo, pela imobilidade da câmera, é contínuo, e faz com que a pessoa, de repente, se esqueça da câmera, às vezes, sinta, mas a câmera ela não incomoda, desde que esteja instalada lá, fica parada. Silêncio absoluto e o olhar. O olhar é absolutamente essencial. (Coutinho apud Bezerra, 2014: 75). Para Coutinho, olhar nos olhos das pessoas era colocar-se inteiramente à disposição delas, e a posição da câmera em ângulo normal valorizava essa dimensão. É também através do olhar que o diretor deixava transparecer o que desejava de alguém: “teu olhar é o que pede sem dizer, por favor, conte uma história, por favor, faça uma boa performance” (Coutinho apud Bezerra, 2014: 75). E, como a busca por uma fala espontânea exigia tempo, atenção e interesse, era preciso todo um investimento na duração do plano, para que um corpo pudesse evoluir conforme as suas habilidades verbais e/ ou gestuais durante a filmagem. Naturalmente que, para olhar nos olhos, quem filma e quem é filmado precisam estar próximos. Em uma de suas últimas entrevistas, que virou o filme Eduardo Coutinho – 7 de outubro (2013), do cineasta brasileiro Carlos Nader, Coutinho chegou a indicar a medida dessa distância: “A justa distância é a que nós estamos agora, dois, três metros de distância, onde as pessoas se matam ou se amam”. A entrevista concedida a Nader foi filmada pelos mesmos profissionais e nas mesmas condições que Coutinho realizava seus filmes.3 Talvez por isso ele tenha se sentido à vontade para expor um pouco mais sobre o erotismo nas filmagens do seu documentário. 3.  A entrevista de Carlos Nader com Eduardo Coutinho foi filmada em 07/10/2013 pelo fotógrafo Jacques Cheuiche e a operadora de som, Valéria Ferro, em um cenário neutro, com duas poltronas e iluminação básica, para um programa televisivo de cinco entrevistas. Com a morte trágica do cineasta, o projeto foi interrompido e virou filme, montado por Jordana Berg. Os três profissionais trabalhavam com Coutinho desde Santo Forte. 166 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho Essas relações, na verdade, são relações eróticas, no sentido amplo da palavra. Eu estou plenamente convencido que seja verdade, no sentido que não se usa, mas, realmente, são relações de corpo. E é isso que faz, de repente, que uma velha ou uma garota de programa, que tá com o joelho colado em mim, não importa isso, ela fale comigo. Ao falar de relações eróticas em sentido amplo e não usual, Coutinho, naturalmente, quis demarcar uma distância entre seus encontros de filmagem e a associação imediata do erotismo com a excitação sexual propriamente dita. O cineasta ressalta que, até por sua velhice, essa visão tradicional do erotismo não se colocava. Para ele, o erótico em sentido amplo diz respeito a relação de dois corpos em situação presencial, mediada pela fala, por gestos e expressões: “O corpo fala, e a fala que tá ligada ao corpo, quando é visceral, é porque há uma relação erótica. Nesse sentido, eu acho que eu sou bom. Eu sou bom para provocar isso”. No filme de Carlos Nader, Coutinho não diz, mas é plausível supor que ao falar de uma velha e de uma garota de programa, tenha se referido respectivamente a dona Mariquinha, de O fim e o princípio, e Alessandra, de Edifício Máster. A primeira é uma senhora viúva, que apanhava do marido com quem teve catorze filhos, mas, apenas dois sobreviveram. Sua fala incialmente é triste. No entanto, Mariquinha muda quando passa a falar do medo da morte, um temor declarado também pelo cineasta, em resposta a uma pergunta dela. Depois de alguns segundos em silêncio, Mariquinha coloca uma mão no rosto, tira, sorri, recua o corpo e diz, em tom de cumplicidade: “Nós não temos o que fazer, né, meu filho? Quando chega a hora, adeus!”. A cena é carregada de sentido pela cumplicidade estabelecida entre dois velhos falando da morte. A relação de poder entre o cineasta e quem ele filma, por um momento, fica em suspenso, ambos se equivalem no temor ao inevitável fim da vida. Essa igualdade utópica e provisória da conversa, almejada por Coutinho, prossegue quando Mariquinha comenta sobre a seriedade de um integrante da equipe de filmagem. O cineasta pergunta se ela gosta de gente séria e ouve como resposta uma manifestação de empatia: “Eu não Cláudio Bezerra 167 gosto de gente muito séria, não. Assim como o senhor, é tão bonzinho... é de conversar... fofoqueiro.” Mariquinha sorri e, selando a igualdade entre ambos, dá uma tapa na perna do cineasta, um gesto de intimidade somente possível pela proximidade física entre ambos, mas também pela maneira como Coutinho se mostrava aberto e interessado em ouvir e dialogar com quem filmava. Por sua vez, a garota de programa Alessandra também começa falando com uma expressão séria que não teve a liberdade de ser uma criança normal, porque engravidou na primeira relação sexual e tornou-se mãe aos 14 anos. Ao mesmo tempo em que lamenta não ter tido infância, ela lembra, com alegria, da “farra” que fez com a filha numa lanchonete com o dinheiro recebido do primeiro cliente: “aquele dia pra mim foi igual a uma criança quando ganha o brinquedo que mais quer”. Quando Coutinho elogia a coragem dela em assumir a condição de garota de programa, Alessandra declara que não é coragem, porque hoje tudo parece normal: É gente roubando, é político roubando gente, é ladrão roubando de pobre, ladrão pobre roubando de pobre, ladrão rico roubando de pobre, é gente roubando de gente... O pessoal acha normal. Porque eu fazer programa é anormal? É coisa de alguém vir me apedrejar? Em quase toda sua fala, Alessandra aparece com uma expressão terna, olhando direto para a câmera como quem fala olho no olho. A câmera fixa, em primeiro plano, chama a atenção para as suas expressões faciais, uma paisagem composta por diferentes estados de ser. Ela fecha os olhos para enfatizar uma afirmação; exibe um sorriso pelo canto da boca quando é irônica; lança um olhar maroto ao jurar que falou com sinceridade. Por outro lado, fica séria e pensativa por alguns instantes, quando é questionada sobre como é a vida de uma garota de programa. Alessandra pode ser vista como um exemplo da personagem falsária de que fala Deleuze (1990), está sempre atravessando as fronteiras entre o real e a ficção, porque inventa quando é real e torna-se mais real quanto mais 168 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho inventa. Sua capacidade criadora de fabular, de colocar a palavra em ato, explora ao limite a “potência do falso”. O ápice de sua fabulação é quando se autodenomina de mentirosa, chegando a chorar para acreditar no que diz: Eu sou muito mentirosa! Eu conto mentira, e acho que para a gente mentir a gente tem que acreditar. A gente tem que acreditar na mentira para a mentira ficar bem feita. Eu até choro para acreditar numa mentira. Você sabe que tem mentira que eu acabo acreditando que é verdade? Quando Coutinho pergunta sobre o que ela mentiu na conversa, Alessandra responde com expressão amável: “Ah... agora não menti nada não”. Mas, logo depois, diz que havia mentido no dia anterior para a equipe de produção do filme porque estava com medo de fazer a entrevista: “Você vê como é que eu sou uma mentirosa verdadeira. Falo a mentira, mas eu falo a verdade”. Coutinho acreditava que as pessoas faziam declarações como as de Alessandra porque ele se colocava aberto na hora da conversa, não julgava ninguém. Para o cineasta, o ser humano tem um desejo ontológico de falar e ser escutado: “A necessidade de ser ouvido é uma das mais profundas, senão a mais profunda necessidade humana. Ser ouvido é ser legitimado em sua mediocridade. Agora, quem é que tá preocupado em legitimar o outro?”, pergunta Coutinho no filme de Carlos Nader. Ouvir requer atenção e certo nível de afeto. Como já foi dito, Coutinho só tinha interesse de filmar quem ele gostava. E é por esse caminho que é possível entender o jogo de sedução durante a filmagem do seu documentário como um ato erótico. No entanto, sua escuta não era passiva, pois procurava encaminhar a conversa para o que achava interessante: “Você ouve com respeito, mas tenta encaminhar a conversa para o que lhe interessa. De repente, há pontos de encontro entre o desejo dele e o seu, e então é a glória.” (Coutinho, 2003: 220). Segundo Coutinho, essa confluência de interesses e desejos na filmagem ocorria relativamente rápida. No geral, acontecia em meia hora, mas, às vezes, demorava um pouco mais. O fato é que, quando ocorria, lhe dava muito Cláudio Bezerra 169 prazer: “quando dá certo é um orgasmo”, declarou a Carlos Nader. Em seguida, o cineasta citou com entusiasmo o caso de dona Tereza, uma senhora do filme Santo Forte: Quando você tá filmando gera um troço de uma pessoa que fala ‘eu fui rainha no Egito, eu fui muito má’, onde os gestos são extraordinários junto com as palavras... Porra! Eu só fico rezando! Espero que o Jacques (fotógrafo) não esteja fazendo zoon. Espero que Valéria (operadora de som) não esteja brincando na hora. Puta que pariu! Porque depende disso! Mas nem sempre era fácil. Em certas ocasiões as pessoas mostravam-se resistentes, desconfiadas ou questionadoras, exigiam um pouco mais do cineasta para entrar no jogo. Um caso ilustrativo é Chico Moisés, de O fim e o princípio. A conversa começa burocrática. Coutinho pergunta a idade dele, se trabalhou na lavoura e como foi a infância. Sério, Chico Moisés responde, de maneira quase monossilábica, que tem 57 anos, trabalhou a vida toda na lavoura e não teve infância, nem condições de estudar. É perceptível um clima de tensão. Chico Moisés só relaxa um pouco quando Coutinho pergunta quantos filhos ele teve. Sorrindo, responde fazendo uma pergunta: “A mulher?”. Coutinho não entende a brincadeira, e quer saber o motivo dele ter perguntando sobre a mulher. Irônico, Chico Moisés diz: “Porque foi ela que teve”. A partir daí, a conversa flui marcada por um jogo de vai-e-vem. Como um provocador nato, Chico Moisés põe em suspeição, ou problematiza, as coisas que afirma e as perguntas de Coutinho. Uma cena curiosa traduz a medida exata da contenda entre os dois. Chico Moisés vira o lado do rosto em frente à câmera. O diretor quer saber o motivo dele ter mudado de posição, e ouve a seguinte resposta: “porque eu dou uma mudança”. Irônico, Coutinho comenta: “O senhor preparou uma mudança, hein?” E em seguida, completa: “O senhor podia ser ator de cinema”. Os dois ficam por uns instantes num vai-e-vem de perguntas e respostas curtas sobre a mudança de perfil, até que Chico Moisés, fazendo referência 170 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho às provocações recíprocas, declara: “Mas rapaz, será possível! Peleja para me pegar e nunca pega, e sempre eu vou continuando, sempre na mesma linha!” O desafio entre ambos segue até a despedida, de maneira parecida com um duelo de repentistas populares do nordeste brasileiro. Após ser elogiado pelo cineasta, Chico Moisés fala em tom de provocação: “Ora, se eu fosse sabido andava filmando e procurando as pessoas. Errei?”. Coutinho responde: “Não. Mas eu vim procurar o senhor duas vezes porque o senhor é sabido também”. O interlocutor rebate: “só porque eu estou sendo filmado...”. Coutinho retruca: “Mesmo sem filmar, se eu conversasse com o senhor eu via que o senhor tinha umas ideias interessantes...”. Chico Moisés o interrompe, dizendo: “Que pena, não é? E eu, que sei, não disse. Só fiz conversar”. Em outras ocasiões, a relação do cineasta com quem era filmado era mais amistosa, envolvia troca recíproca de elogios e gentilezas. Em O fim e o princípio, por exemplo, Coutinho elogia a beleza de Assis, um senhor educado e gentil, de 80 anos, que diz ter namorado muito quando era solteiro. “O senhor deve ter sido um homem bonito, o senhor é bonito ainda”, diz o cineasta. Já em Edifício Máster, Coutinho e sua equipe são recebidos de maneira simpática por muitos moradores. Um deles, José Carlos, além de saudá-los com um “por favor, fiquem à vontade”, apresenta a esposa, a casa onde mora e mostra uma mesa repleta de comidas: “É uma coisa simples que nós preparamos para recepciona-los”, diz. Talvez a maior prova do jogo de sedução que ocorria na filmagem dos documentários de Coutinho seja a maneira como as pessoas confessavam situações muito íntimas. As confissões envolveram, entre outros assuntos, tentativas de assassinato e suicídio, briga familiar, tragédia pessoal, amor não correspondido e até questões aparentemente banais, mas que tinham um significado especial para quem confessava. É o caso de Antônio Carlos, em Edifício Máster, que chora emocionado ao lembrar das palavras ditas por seu chefe quando pediu licença para visitar a mãe doente: “Você vai visitar sua mãe não porque precisa, mas porque merece”. Cláudio Bezerra 171 São, portanto, a cumplicidade do olhar, a negociação de desejos, as gentilezas, os gestos, os elogios, as confissões, mas também as provocações, a tensão e a ansiedade que caracterizavam o erotismo no ato de filmagem do documentário de Eduardo Coutinho. Situações que eram vividas e provocadas por corpos, sobretudo, falantes, e que circulavam de um corpo a outro em um encontro presencial, marcado, exclusivamente, para se fazer um filme. Considerações finais O “documentário como encontro” de Coutinho tem semelhanças com o “cine-transe” de Jean Rouch (2011). O etnólogo e cineasta francês foi pioneiro na criação de um estilo de cinema do corpo e da palavra, que só era possível existir a partir da produção de um encontro entre quem filma e quem é filmado. Rouch acreditava que ele e seus interlocutores saíam necessariamente transformados desses encontros, e ainda ofereciam a possibilidade de o público participar desse processo, interagindo, por alguns instantes, com o momento da filmagem. Coutinho, no entanto, negava que as relações eróticas estabelecidas na filmagem de seus documentários fossem capazes de mudar sua vida, como disse no documentário de Carlos Nader. Para mim, não tem cine-transe nenhum. Eu continuo tão infeliz quanto antes. Mas aquela coisa, eu sei que foi um momento feliz, entende? E eu espero que o público que veja um dia, anos depois, veja e fale: porra, é um momento feliz! A afirmação contraditória expõe um traço de sua personalidade, como observa João Moreira Salles, amigo e produtor dos últimos filmes do cineasta, no encarte do filme de Nader: Coutinho era feliz nos filmes porque neles se sentida adequado, capaz e forte – “tudo ao contrário” dele, o homem “gauche”, frágil como uma pluma, vivendo com um fio de pulmão, duvidando da própria capacidade de prover a família, sempre à beira de uma gafe social, com uma inabi- 172 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho lidade crônica para os deveres da vida prática e as provações da vida doméstica, esse outro lar que, no caso dele, era repleto de dificuldades quase insuperáveis. Talvez por isso, em diversas ocasiões, Coutinho tenha declarado não ter interesse em reencontrar com quem participava de seus filmes. Já em 1999, quando lançou Santo Forte, disse não querer das pessoas nada além da relação durante a filmagem. “Eu filmo uma pessoa, ela me dá uma coisa maravilhosa; cinco minutos depois, é perigoso eu trombar com ela na rua e ela não me reconhecer” (Coutinho, 1999: 29). Com seu jeito um tanto cético de olhar para a vida, o cineasta temia quebrar o encanto daquele momento mágico em que, diante das câmeras, alguém era capaz de confessar ou mesmo inventar, de maneira peculiar, fragmentos de sua história de vida. É o que fica claro no depoimento dado à Carlos Nader (2013): Quando você volta e passa o dia junto, é rotina. Então, você acha até que essa pessoa humana, que você deve muita coisa a ela, porque te deu para o filme, quando você compara com teu personagem, ela é uma fraude. Ao contrário de Jean Rouch, que costumava não só reencontrar, mas também criar vínculos de amizade com seus interlocutores fílmicos, Coutinho raramente reencontrava com quem havia filmado. Entre as exceções, estão os participantes de Cabra marcado para morrer. Em particular, a protagonista Elizabeth Teixeira, com quem manteve reencontros ocasionais e contato telefônico permanente, ao menos uma vez por ano, no Natal. Se os encontros ou reencontros não mudavam em nada sua vida, ao menos lhe traziam felicidade momentânea. “O cinema é um exercício espiritual para mim. E é a coisa mais feliz que eu tenho na vida; quisera que outros momentos da minha vida tivessem isso”. (Coutinho, 1999: 26). Mas a interlocução atenta e simpática que Coutinho costumava praticar nos encontros de filmagem tinha um efeito catártico e transformador para muitos de seus interlocutores. Um caso emblemático declarado no próprio filme é o de Sílvia, em As canções. Ela canta a difícil música Retrato em branco e preto, de Chico Buarque e Tom Jobim. Em seguida, conta a história do Cláudio Bezerra 173 amor que viveu durante mais de trinta anos com o ex-marido, do namoro à separação definitiva. “A gente sabia que não ia dar em nada, não seria para sempre”, diz, parafraseando trecho da canção que o ex-marido dizia ser tema da relação deles. Ao final, Coutinho quer saber o que significou para ela cantar no filme. Sílvia responde, enfática: “Aqui! Foi para botar um feixe de ouro! De repente, contar para todo mundo que eu procurei outro caminho. Procurei, estou procurando, e quero, realmente.” Esse processo catártico, gerado no encontro de filmagem, foi reconhecido também por participantes de outros filmes de Coutinho, em matéria publicada na Revista O Globo, sete dias após a sua morte. Conhecida por cantar Me and Bobby McGuee, de Janis Joplin, em Babilônia 2000, a vendedora de livros Fátima Gomes Pereira (apud Dale e Kaz, 2014: 32), declarou: “Foi amor à primeira vista. Gostei do velhinho, daquele jeitinho, daquela fragilidade. Ele não aceitou o champanhe vagabundo, mas me tratou com muito carinho. Nasci para ser cantora. E o Coutinho foi o primeiro a me dar uma chance”. Para Geicy da Silva Bastos (apud Dale e Kaz, 2014: 32), de Edifício Máster, sua vida mudou depois da conversa com o cineasta: “O Coutinho me fez falar de algo que estava apagado. Eu achava a vida muito chata. Quando botei aquilo tudo para fora, achei que a vida passou a valer a pena”.Como se vê, à revelia do próprio Eduardo Coutinho, o cinema do corpo que ele praticou tinha também um poder transformador análogo ao “cine-transe” de Jean Rouch. E o jogo erótico da sedução, entre quem filma e quem é filmado, tinha um papel fundamental nesse processo. Referências bibliográficas Berg, J. (2015). Ele e eu. Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/questoes-cinematograficas/ele-e-eu/ Bezerra, C. (2014). A personagem no documentário de Eduardo Coutinho. Campinas: Papirus. Coutinho, E. (1999). Fé na lucidez. Revista Sinopse, 1(3), 20-29. São Paulo. _____ (2000). A palavra que provoca a imagem e o vazio no quintal. Revista Cinemais, 22, 31-72. Rio de Janeiro. 174 A justa distância onde as pessoas se amam ou se odeiam: a filmagem como ato erótico no documentário de Eduardo Coutinho _____ (2003). O documentário como encontro. Revista Galáxia, 6, 213-229. São Paulo. _____ (2005). Fala que eu te escuto. Revista Trip, 18 (138), 26-38. São Paulo. _____ (2012). Eduardo Coutinho por ele mesmo. Revista Continente, 137, 78-81. Recife. Dale, J. & Kaz, R. (2014). Retrato falado por quem foi ouvido. Revista O Globo, 30-35. Rio de Janeiro. Deleuze, G. (1990). A imagem-tempo, trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense. Rouch, J. (2011). A câmara como elo social: cinema-direto e cine-transe, trad. Marcelo Felix, in: COSTA, M. J., OLIVEIRA, L. M. (Orgs.). Catálogo Jean Rouch. (pp.55-59) Lisboa: Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema. Filmografia A família de Elizabeth Teixeira (2014), de Eduardo Coutinho. As canções (2011), de Eduardo Coutinho. Babilônia 2000 (2001), de Eduardo Coutinho. Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho. Edifício Máster (2002), de Eduardo Coutinho. Eduardo Coutinho, 7 de outubro (2013), de Carlos Nader. Jogo de cena (2006), de Eduardo Coutinho. O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho. Santo Forte (1999), de Eduardo Coutinho. Sobreviventes de Galiléia (2014), de Eduardo Coutinho. Últimas conversas (2015), de Eduardo Coutinho, Jordana Berg e João Moreira Salles. Cláudio Bezerra 175 O PROCESSO CRIATIVO DE WIM WENDERS: O ESPAÇO DOCUMENTAL À PROCURA DO TEMPO FICCIONAL Cristiane Wosniak Introdução Neste trabalho pretendo refletir sobre o espaço documental e o tempo na montagem na forma de filmar do cineasta Wim Wenders. No caso, trata-se de estudar o olhar de Wenders, ele próprio um criador de arte cinematográfica, sobre dois outros artistas. Para tal intento proponho-me evidenciar o seu processo criativo à luz de duas obras documentais que homenageiam personalidades reverenciadas pelo cineasta e que faleceram – coincidentemente – durante as filmagens: Pina Bausch1 e Nicholas Ray.2 A partir da análise de excertos de Nick’s Film – lightning over water (1980) e Pina (2011), obras wendersianas separadas no tempo por mais de trinta anos, pretendo traçar alguns conceitos e pensamentos recorrentes que encontram eco estilístico em sua filmografia, sobretudo nos documentários de homenagem. 1.   Pina Bausch (1940-2011). Diretora e coreógrafa do Wuppertal Tanztheater, Alemanha, desde a década de 1970. Em seu processo de criação artística a fusão entre os elementos da dança e do teatro são fundamentais. Seu mote estético é a relação tensiva entre homens e mulheres. Nesta busca pelas oposições nasce o corolário-chave da criadora vanguardista: a fragmentação e a repetição do gesto como geradoras da collage cênica. 2.   Nicholas Ray (1911-1979). Realizador, roteirista e cineasta estadunidense. Autor de obras consagradas no cinema clássico holywoodiano, tais como: The Lusty Men/Paixão de Bravo, codirigido por Robert Parrish (1952); Johnny guitar (1954), Rebel without a cause/Juventude transviada (1955), entre outros. Esta investigação encontra-se ancorada na assertiva de que as imagens cinematográficas tornam-se um veículo ou até mesmo um locus privilegiado de pensamento, sendo possível afirmar, portanto, que o estudo analítico e comparativo dos filmes de Wenders, assim como o acesso a seus textos reunidos na obra Die logik der bilder/A lógica das imagens3 (1990) e entrevistas/ depoimentos em variados suportes midiáticos, permitem um acesso particularizado ao seu pensar-fazer cinema. Apesar da resposta intempestiva de Wenders ao jornal Libération, em abril de 1987, em relação à teorização necessária para ‘fazer cinema’, quando afirma, “não tenho cabeça para teorias. Só raramente me recordo de alguma coisa que tenha lido” (Wenders, 1990: 12), é evidente que, enquanto artista realizador – pintor, fotógrafo, roteirista, cineasta – Wenders possui uma atitude diferenciada sobre o cinema que se fundamenta essencialmente em seu fazer processual artístico. Esta construção cinematográfica de cunho artesanal é descrita pelo diretor ao afirmar que o seu cinema teria uma forma específica: “a ‘forma’ é para mim, alguma coisa de visível, não pensável. Quando faço um filme, vejo muito e penso pouco. Pensamos durante a montagem...” (Wenders, 1990: 54). Sobre a questão do espaço documental e do tempo na montagem – aspectos relevantes neste trabalho – Wenders, que iniciou sua carreira como pintor, sempre salientou sua insatisfação com os intervalos entre um quadro e outro: “de um quadro para o outro faltava alguma coisa [...] eu pensava que faltava o conceito, a concepção de tempo. Quando comecei a filmar, ficava, em vista disso, como pintor do espaço a procura do tempo” (Wenders, 1990: 73). É sobre este ‘tempo ficcional no espaço referente do filme documental’ – elementos recorrentes na obra de Wenders – que a investigação, particularmente, recai. Entretanto, aspectos como o retrato de grandes paisagens em tomadas panorâmicas e a utilização de recursos tecnológicos híbridos 3.   Livro que consiste em uma compilação de textos, entrevistas, sínteses de conferências, anotações pessoais, sinopses e projetos de filmes, atribuídos a Wim Wenders e organizado por Michael Töteberg. As referências a essa obra, nessa investigação, seguem a edição de 1990, da Edições 70 – Lisboa/Brasil, cujos textos foram traduzidos por Maria Alexandra A. Lopes. 178 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional – imagens videográficas – em meio às imagens cinematográficas que focalizam a cidade como uma das protagonistas de seus filmes, também são levados em consideração ao longo do estudo. Cabe salientar que a hipótese defendida por Aumont em sua obra As Teorias dos Cineastas (2004), entende que “o cineasta é um homem que não pode evitar a consciência de sua arte, a reflexão sobre seu ofício e suas finalidades, e, em suma, o pensamento” (Aumont, 2004: 7). O referido teórico aponta que existem diferentes maneiras de fazer e tratar de teorias, mas o interesse nesta abordagem específica traz para a cena um artista/cineasta/realizador que faz de seu cinema/arte uma teoria sobre cinema/arte. Aumont ainda destaca: “o cineasta que se considera um artista pensa em sua arte para as finalidades da arte: o cinema pelo cinema, o cinema para dizer o mundo. É essa obsessão que me pareceu estar no centro da teoria dos cineastas” (Aumont, 2004: 8). Wim Wenders – Nick’s film: lightning over water e Pina Em 1981, Wenders dirige um filme documentário em homenagem a um dos cineastas que mais apreciava – Nicholas Ray – para o qual cria Nick’Film: lightning over water, lançado no Brasil como Um filme para Nick. Este documentário é resultante de uma iniciativa de Wenders que vai até New York, com uma equipe de filmagem, para conviver com Nicholas Ray, que se encontrava extremamente debilitado pelo câncer. A ideia era fazer um filme de ficção a respeito de um homem que antes de morrer pretende reencontrar sua autoestima. Wenders entrega inicialmente o processo de montagem para Peter Przygoda, mas esta versão enfatiza a doença de Nicholas Ray e, então, Wenders decide dirigir o filme ao mesmo tempo em que também ‘atua/performa’ nele, conforme sugestão de Ray. Cristiane Wosniak 179 O documentário filmado entre março a agosto de 1979 acompanha, nas cidades de New York, Poughkeepsie e Malibu, os últimos dias de vida do cineasta, suas conferências em faculdades, reminiscências fílmicas e sua luta para sobreviver à doença e ao esquecimento. Destaco ainda outro filme documentário de homenagem em que Wenders se reporta a um dos seus ídolos – Yasujiro Ozu. Em tributo a Ozu, Wenders viaja ao Japão e lá roda Tokyo-Ga (1985). Nos anos 1980, em pleno auge de sua carreira, cria os filmes que o notabilizaram, pelo sucesso de público e crítica: Paris, Texas (1984) e Asas do desejo (1987). No final da década de 1990, dá início a uma série de documentários que têm como tema o universo da música. Esta fase inicia-se com o documentário Buena Vista Social Club (1999), cujas imagens foram filmadas em Cuba e em 2003, um outro documentário sobre música é levado a termo: A alma de um Homem, que retrata a vida músicos de blues. Em 2011, cria o documentário Pina 3D, em uma homenagem à sua conterrânea. Em Pina, Wenders se apropria do recurso da voz-off4 e acima de tudo da voz dançante – evocada nos depoimentos corporalizados dos atores sociais bauschianos – pois os bailarinos focalizados em close-up jamais movem os lábios para falar qualquer frase. Todas as declarações são mediadas pelo corpo e pela dança. O cineasta faz uso de imagens de arquivos memoriais, vídeos e de encenação em locações e paisagens diversas na cidade de Wuppertal. Quatro obras coreográficas são selecionadas por Wenders para compor os quatro grandes blocos de seu filme. Das Frühlingsofer/Sagração da Primavera (1975), Café Müller (1978), Kontakthof/Pátio de Contatos (1978) e Vollmond/ Lua cheia (2006). A citação fílmica destas obras, assim como dezenas de inserções de imagens/trechos coreográficos em paisagens de Wuppertal e arredores – por procedimentos intensos de elipses temporais – permite que se reflita, no âmago do texto documental, a ficção e a própria memória. 4.  O recurso de voz-off a que me refiro é aquele, cuja fonte imaginária do som/voz está situada no espaço fora-de-campo; no espaço fora da tela. 180 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional Cabe salientar que a memória é um mote recorrente na obra wendersiana. Em 1982, quando questionado, no Festival Ladri di Cinema em Roma, Itália, sobre o papel da memória em seus filmes, alega: “todos os filmes começam com memórias, todos os filmes são também uma soma de muitas memórias. Por outro lado, muitas memórias nascem através dos filmes. (Wenders, 1990: 57). A questão ambígua entre realidade e ficção em seus documentários é assim encarada: “todos os filmes começam com uma memória ou um sonho, e os sonhos são também memórias. É assim que se começa. Depois, começa-se a filmar, quer dizer, sai-se e encontra-se uma determinada realidade. E depois é importante conceder mais peso a esta realidade do que à memória”. (Wenders, 1990: 57). Wenders - paisagens, espaços abertos, o tempo do corte e da montagem Wenders, em Nick’s film e Pina, cujas bordas fronteiriças entre realidade e ficção – (re)apresentação – são atenuadas, desnuda propositalmente, o procedimento de fragmentação e colagem. Ao priorizar a montagem de evidência5 em detrimento da montagem de continuidade, propõe com isso, os mesmos graus de realidade e (i)realidade, passado, memória e presente virtualizado, exponenciados pelo uso de planos, contraplanos e elipses temporais. Ao reunir provas, documentos, registros de vídeo, depoimentos e outros meios para a construção de sua particular voz documental/ ficcional, utiliza-as para (re)construir e atualizar sua perspectiva sobre as personagens biografadas e o universo artístico em que transitam e transitaram – presente atual e memória virtual – fabricando sua própria resposta poética sobre esse universo. O apelo ao sensível, em detrimento da retórica informacional, didática e histórica, torna-se evidente nessa forma de homenagem em que muitas vezes os atores sociais se vêm observando a si próprios enquanto performam em tempo alhures. 5.  Em Nichols, B. (2012). Introdução ao documentário. Campinas-SP: Papirus, consta que a montagem de evidência se opõe à montagem em continuidade. Na montagem de evidência, “em vez de organizar os cortes para dar a sensação de tempo e espaço únicos, unificados, em que seguimos as ações dos personagens principais, a montagem de evidência organiza-os dentro da cena de modo que se dê a impressão de um argumento único, convincente, sustentado por uma lógica.” (Nichols, 2012: 58). Na montagem de evidência as tomadas podem ser feitas com intervalos de anos, em diferentes lugares e inserir no documentário imagens de arquivos de diversas fontes e matrizes, como é o caso dos dois documentários analisados nesta investigação. Cristiane Wosniak 181 O espaço documental, nesses instantes, é povoado poeticamente pelo tempo ficcional e memorial. Nicholas Ray, por exemplo, observa-se atentamente em um tela com projeções de vídeo (figura 01) e depois observa imagens de um de seus filmes (figura 02) mais famosos The lusty man (1952), que ocupa boa parte da narrativa documental wendersiana. Figuras 01 e 02 – espaço documental real/referente e tempo ficcional das imagens/arquivo Fonte: frames de Nick’s film Em Pina, os atores sociais, em atitude reverencial (figura 03), observam em uma tela ao fundo do quadro fílmico, uma imagem videográfica onde Bausch performa/dança Café Müller (1978), um dos marcos coreográficos do Wuppertal Tanztheater. Figuras 03 e 04 – espaço documental real/referente e tempo ficcional das imagens/arquivo Fonte: frames de Pina Os traços alternados de imagens em cores e em preto e branco na tela cinematográfica, são uma das particularidades do cineasta. Atesta Wenders: “eu acho o preto e branco mais realista do que a cor. O preto e branco pode ser colorido, e a cor pode ser uma ‘pintura a preto e branco’” (Wenders, 1990: 31). E no que concerne à realidade versus ficção, afirma: 182 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional A ‘realidade’. Não existe praticamente nenhum outro conceito que seja mais oco e inútil em relação ao cinema. Cada qual sabe por si o que isso quer dizer: a percepção da realidade. Cada qual vê a sua realidade, com seus próprios olhos. Vemos os outros, sobretudo as pessoas que amamos, vemos as coisas à nossa volta, vemos as cidades e as paisagens em que vivemos, vemos também a morte, a condição mortal dos homens e a efemeridade das coisas, vemos e experimentamos o amor, a solidão, a felicidade, a tristeza, o medo; em resumo: cada qual vê, por si mesmo, a vida. (Wenders, 1990: 86). Em Nick’s film, o espaço documental trata do mundo histórico/real/referente de Nicholas Ray em seu cotidiano e o intercala, por meio de variados jump‑cuts6 e elipses temporais, com imagens simbólicas – o cenário construído de uma cama hospitalar, Ray e um gato preto, o ‘barco chinês’ navegando solitário o rio Hudson, o vaso com as cinzas de Ray (figuras 05, 06 e 07) – ao mundo cinematográfico de um tempo ficcional. No documentário em questão, é o próprio Wenders – por meio de voz-off – que explica a (re)apresentação de Ray em uma cama hospitalar a receber a visita da filha, em seus últimos momentos de vida: “Nick e Ronee tinham trabalhado numa cena baseada em ‘Rei Lear’ de Shakespeare. Tínhamos construído um pequeno cenário. Mas, mais uma vez, a realidade foi mais forte do que a ficção em que queríamos transformá-la. Seria a última vez...” (Wenders, apud Nick’s film, 1980). Figuras 05, 06 e 07 – encenação-locação/imagens simbólicas Fonte: frames de Nick’s film 6.   Jump-cuts são cortes na edição de um filme que subtraem um período de tempo, ou alteram a ordem do tempo, mas mantém em cena o(s) mesmo(s) objeto(s), fazendo com que seja percebido uma espécie de salto proposital na sequência da imagem. Cristiane Wosniak 183 Em Pina, por sua vez, Wenders cerca o mundo histórico da artista da dança intervindo poeticamente sobre ele. A montagem em continuidade que opera de forma a tornar imperceptíveis os cortes entre as tomadas, facilitando a noção de verossimilhança narrativa, não tem prioridade nesse pensar-fazer cinema documental. Os quadros ou frames em Pina sucedem-se explorando ambientes não relacionados e sem uma sequência lógica espaço-temporal; podem tanto ser narrados/capturados em um palco/teatro (figura 08) – o que consiste na base cotidiana desses atores sociais, intérpretes de si mesmos no documentário – como podem deslocar-se para locações imprevisíveis (figuras 09 e 10), tal como requerem os pressupostos do Tanztheater Wuppertal, em suas inúmeras colagens e hibridações estéticas. Figuras 08, 09 e 10 – locações imprevisíveis/jump-cuts Fonte: frames de Pina O cineasta defende constantemente, ao longo de seus textos e testemunhos escritos, que em seus filmes as imagens parecem prevalecer sobre a narrativa sequencial. Em uma conferência, para um colóquio sobre técnicas narrativas, na cidade de Livorno, Itália, em 1982, Wenders admite que começou sua interação com as imagens por meio da pintura. Enquanto pintor, enfocava seu trabalho apenas no fator espaço, sobretudo paisagens e cidades. Mas, quando percebeu que seu trabalho como pintor não progredia, pois faltava-lhe a suposta ‘vida/ligação’ entre um quadro/imagem e outro, resolve dedicar-‑se à realização de filmes e aí encontra o elemento/fator que lhe faltava: o exercício do tempo. Dentre algumas reminiscências, o próprio cineasta comenta: “quando comecei a filmar, eu me entendia como pintor do espaço à procura do tempo. Nunca me ocorreu designar esse processo por ‘narrar’” (Wenders, 184 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional 1990: 73). O que Wenders parece destacar é a busca incessante pela ‘lógica de encadeamento das imagens’ no cinema. E admite que no pensar-fazer documentário esta questão é ainda mais complexa: “a montagem de um documentário – isto tornou-se-me, então, evidente – é muito mais complexa do que a de um filme de ficção. Reencontrar a lógica das imagens; dar-lhes uma forma que resulte numa unidade coerente, é muito mais difícil do que num filme de ficção” (Wenders, 1990: 139). Os constantes deslocamentos geográfico-espaciais na composição e montagem documental wendersiana exploram uma espécie de encenação-locação7 e nesse caso, como diretor, Wenders solicita explicitamente, e sem questões antiéticas envolvidas, que o ator social encene/atue em seu depoimento, no ambiente onde o sujeito que é filmado vive e constrói-se dia a dia como um personagem, mesmo que, nas tomadas para a câmera, as ações tenham sido ensaiadas. Wenders, aliás, desnuda os procedimentos de montagem nos sets, a passagem das falas, o posicionamento das câmeras e sistemas de captura de sons, muitas vezes, acompanhados de uma hibridação com imagens em vídeo (figuras 11, 12, 13 e 14). Figuras 11, 12 e 13 – construção ficcional criativa da realidade documental Fonte: frames de Nick’s film Em Nick’s film, o cineasta decide incorporar as bandas de vídeo registradas em Betamax por Tom Farrell. Numa das primeiras cenas, filmada em 35mm (figura 12) as imagens são apresentadas em campo/contracampo, em um 7.  Este procedimento é descrito em Ramos, F.P. (2008). Mas afinal... O que é mesmo documentário? São Paulo: Senac. Afirma o autor que “a encenação-locação distingue-se da encenação-construída pelo fato de a tomada ser realizada na circunstância de mundo onde o sujeito que é filmado vive a vida [...] A tomada realizada explora a fundo a tensão entre a encenação e o mundo em seu cotidiano.” (Ramos, 2008: 42). Cristiane Wosniak 185 ambiente fortemente iluminado e com cores nítidas. Entretanto, ocorrem imagens intercaladas, capturadas pelo vídeo e que permitem antever o ruído, a imperfeição do suporte (figura 11), reforçando a ficção da montagem. A ação performativa dos personagens nos dois documentários analisados é a encenação – limite de si mesmo – ou (re)apresentação no texto documental, mas a (re)presentação em si não é o foco principal. Nessa instância, portanto, os atores sociais encenam – documental e ficcionalmente – em seu próprio ambiente, trechos da história cotidiana da qual, de fato, fazem parte. Tanto em Nick’s film quanto em Pina o palco simbólico de um teatro (figuras 15 e 16), focalizado por uma câmera frontal em plongée, é utilizado como metáfora demonstrativa da ‘construção criativa da realidade documental’. Figuras 14 e 15 Fonte: frames de Nick’s film Figura 16 Fonte: frame de Pina O diretor salienta constantemente a sua ênfase na captura de imagens simbólicas: “no fundo, as imagens sempre significaram mais para mim do que as histórias; sim, as histórias não eram, às vezes, nada mais do que um pretexto para encontrar imagens.” (Wenders, 1990: 38). Estas imagens estão intimamente ligadas a paisagens, cidades, veículos de transportes variados... Como atesta o diretor: “as minhas histórias [filmes] começam sempre com lugares, cidades, paisagens ou ruas” (Wenders, 1990: 75). Em Nick’s film e Pina não é diferente. Ambos os documentários são povoados com imagens em tomadas panorâmicas e que se demoram sobre o espaço aberto e descortinado. As imagens que ‘abrem’ os filmes documentários em questão (figuras 17 e 18) mostram a face da cidade em que os artistas habitam e produzem sua arte. 186 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional Figura 17 – plano inicial/abertura de Nick’s Film Fonte: ( frame de Nick’s Film) Figura 18 – plano inicial/abertura de Pina Fonte: ( frame de Pina) As imagens panorâmicas em evidência salientam a imensidão da paisagem que se descortina aos poucos, deixando antever a cidade e seu coprotagonismo, durante a narrativa de Nick’s film (figuras 19, 20 e 21) e também em Pina (figuras 22 e 23). Figuras 19, 20 e 21 – paisagem aberta: cidade como coprotagonista da narrativa Fonte: frames de Nick’s film Figuras 22 e 23 – a paisagem aberta e a cidade de Wuppertal como coprotagonista da narrativa Fonte: frames de Pina Wenders, de fato, salienta sua predileção por paisagens e espaços abertos enquadrados de diversas maneiras em seus filmes: A paisagem tem, para mim, tanto a ver com o cinema! Quando trabalhei pela primeira vez com uma verdadeira câmera de filmar de 16mm, fiz uma gravação de três minutos, porque a bobina tinha a duração de três Cristiane Wosniak 187 minutos. É a gravação de uma paisagem. Coloquei a câmera e nada aconteceu. O vento soprava e as nuvens passavam, mas não aconteceu nada. Isto, para mim, era a continuação da pintura, um pintar da paisagem. Não queria ter ali ninguém [itálico meu], e ainda hoje, quando faço um filme, tenho a sensação de que me interessa mais o sol que se levanta sobre a paisagem do que a história que lá se passa: sinto, por assim dizer, uma maior responsabilidade perante a paisagem do que perante a história que lá coloco... (Wenders, 1990: 58). A partir deste raciocínio, observo que em muitas tomadas panorâmicas, nos dois documentários, inicialmente descortina-se a paisagem como um monumento à ‘natureza das coisas’ e somente mais tarde – nas frestas do tempo ­– um personagem é inserido no enquadramento, como se Wenders relutasse em ‘ter ali alguém...’ (figuras 24 e 25). Nos dois documentários, os longos travellings constantemente convidam o espectador a ir ao encontro das chamadas frestas temporais. Olha-se para o espaço documental frequentemente à procura de um tempo (in)determinado. Sobre esse olhar afirma Wenders: “é mais o olhar do que o transformar, ou mover, ou encenar que me fascina na realização. Que possamos descobrir alguma coisa [...] isto é que eu acho mais importante do que tornarmos nítida alguma coisa” (Wenders, 1990: 13). Figuras 24 e 25 – o espaço aberto, as frestas do tempo e a inserção posterior do personagem Fonte: frames de Pina Destaco o fato de que esta nitidez, atestada muitas vezes pelo enquadramento e pela montagem wendersiana é responsável por um dos momentos mais emblemáticos em Pina, como se observa na sequência a seguir, onde a 188 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional partir de um recorte, a posterior inserção de um personagem ­– carregando uma árvore ­– e a explosão imagética de uma paisagem que surge após um procedimento de jump-cut, acionam uma fresta espaço-temporal das mais intrigantes e artificiais na película (figuras 26, 27 e 28). Figuras 26, 27 e 28 – enquadramento e montagem: artificialidade/lealdade sequencial Fonte: frames de Pina Sobre esta ‘artificialidade sequencial’, destaca o cineasta: “acho sempre que é muito importante que haja uma lealdade relativamente à sequência do tempo, ainda que os assuntos sejam apresentados de modo artificial, ainda que não se trate, em absoluto de ‘realidade’.” (Wenders, 1990: 15). Como proceder para analisar a sequência dos planos nesta narrativa? Qual é a história por detrás destas imagens E isto importa para Wenders? Como salienta o diretor: “no fundo, as imagens sempre significaram mais para mim do que as histórias; sim, as histórias não eram, às vezes, nada mais do que um pretexto para encontrar imagens”. (Wenders, 1990: 38). A sugestão aberta, flexível e sem pressa para o olhar contemplativo das imagens cinematográficas em seus filmes, é ainda ressaltada na seguinte passagem: “há filmes em que podemos constantemente reparar em quaisquer pormenores que deixam sempre espaço livre para todo o possível e imaginário. Estes são, geralmente filmes cujas imagens nem sempre acarretam de modo imediato interpretações.” (Wenders, 1990: 13-14). ... as imagens não conduzem necessariamente a qualquer coisa; existem por si só. Julgo que uma imagem pertence sempre a si própria, enquanto que a palavra tende geralmente para um contexto, para uma história, justamente. As imagens não têm, quanto a mim, automaticamente a ten- Cristiane Wosniak 189 dência para se dispor numa história. Para funcionarem como palavras e frases, têm primeiro que ser ‘violentamente’ levadas a isso, isto é, manipuladas. As imagens [...] não querem levar nem transportar nada: nem mensagem, nem sentido, nem objetivo, nem moral. As histórias é que querem isso. (Wenders, 1990: 75-76). Wenders e a hibridação de imagens – cinema + vídeo Wenders, ao analisar sua filmografia, faz uma divisão rigorosa entre dois grupos de obras. Os filmes do grupo (A) são filmes em preto e branco que se baseiam em ideias, conceitos e sonhos do cineasta com estrutura cinematográfica flexível, sendo construído ao longo da película. Os filmes do grupo (B) são os filmes coloridos que se baseiam em roteiros/argumentos, romances pré-existentes com estrutura cinematográfica fechada. Além destes dois sistemas ou modos de pensamento ou ação cinematográfica bastante distintos, ainda encontram-se filmes que não se enquadram nessas categorias, como os filmes que mesclariam imagens em p&b em meio a imagens coloridas. Esta concepção parece acolher a excepcionalidade dos objetos empíricos dessa investigação. E por que me aventuro nesta afirmação? As fronteiras borradas entre os sistemas (A) e (B) insistem em trazer para Nick’s film e Pina o foco excepcional à regra sistemática wendersiana, por se tratarem de películas híbridas – tratamento em cor, além de p&b em alguns trechos e intenso uso de material videográfico – e por inverterem a perspectiva no quesito interpretação/(re)apresentação. Wenders afirma que no caso dos filmes da categoria (B), os atores representam papeis, figuras artísticas, “outros que não eles próprios” (Wenders, 1990: 79), enquanto no grupo (A) os atores sociais interpretam e se mostram a si mesmos. 190 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional A regra não parece se aplicar aos objetos dessa investigação. Em Nick’s film é o próprio Nicholas Ray quem ‘atua/performa’ frente à câmera, seguido por sua esposa, pelo ator/videomaker Tom Farrell, pela equipe de Wenders e pelo próprio diretor, que também performa em frente à tela, sendo ‘dirigido’ por Nicholas Ray (figuras 29, 30 e 31). Figuras 29, 30 e 31 – encenação, (re)apresentação e bastidores da filmagem Fonte: frames de Nick’s film Como informação paratextual e proveniente de fonte secundária, destaco que segundo Roberto Acioli de Oliveira (2009), o ator Farrell, tinha sido incumbido de registrar o processo de filmagem em vídeo e Wenders acaba utilizando essas imagens na segunda montagem. “Wenders, sem excluir as imagens de vídeo, restabelecia a ficção na base do projeto original. Substituiu o material em vídeo que insistia na doença de Nick, inserindo material que mostrava os bastidores das filmagens.” (Oliveira, 2009). Wenders discute essa opção em depoimento no livro de Michel Boujut, Wim Wenders: une voyage dans ses films (1986): Tom Farrel havia decidido registrar tudo em vídeo. Nenhum de nós imaginou que estas imagens poderiam servir. Mas durante a montagem, nos demos conta que o que Tom havia percebido, sem nenhuma limitação de espaço, de luz, de preparação, era mil vezes mais direto e mais verdadeiro que as imagens muito lisas, muito próprios do 35mm. O filme em 35mm ganhou em presença pela confrontação com o vídeo. É na combinação da crueza do vídeo e da superfície polida do 35mm que o filme se constitui. Na colaboração das duas fontes de imagens (Wenders, apud Boujut, 1986: 114-15). Cristiane Wosniak 191 Figuras 32, 33 e 34 – diálogo colaborativo entre duas fontes de imagens: cinema + vídeo Fonte: frames de Nick’s Film O diálogo colaborativo entre as duas fontes de imagens (figuras 32, 33 e 34), produziu um efeito híbrido inconfundível e proposital. Wolfram Schütte conduzindo uma entrevista, publicada no Frankfurter Rundschau, em 1982, pergunta a Wenders: “num momento em que o cinema como cultura da descrição e da narração, desaparece, em que a sua própria história cai no esquecimento, não será porém, especialmente importante recordá-la, conservá-la, talvez até manter-se-lhe de uma certa maneira fiel? Ou pensa que temos que dizer: isso agora é tudo passado? Devemos precipitar-nos todos para o novo, para o vídeo? [grifo meu] Wenders: Já houve alguém que o experimentou: o Godard. Temos que simplesmente aprender com isso...” (Wenders, 1990: 67). Considerações Finais A partir da análise dos excertos de dois documentários panegíricos foi possível refletir sobre algumas questões relacionadas à forma de filmar do cineasta Wim Wenders. Procurei evidenciar o seu processo criativo ancorando-me em seu pensamento contido em textos reunidos na obra A lógica das imagens (1990), além de entrevistas/testemunhos pessoais em variados suportes midiáticos, o que possibilitou um acesso pormenorizado ao seu pensar-fazer cinema pelo viés da Teoria dos Cineastas. O pensamento wendersiano em relação aos dois objetos empíricos desta investigação, parece valorizar o hibridismo em detrimento da unidade. Ao reinserir os objetos do mundo – imagens de arquivo videográfico, depoimen- 192 O processo criativo de Wim Wenders: o espaço documental à procura do tempo ficcional tos memoriais e afetivos – ao lado dos objetos significantes e poéticos per se, Wenders deixa antever o gesto cinematográfico da colagem e da montagem de evidência em detrimento da montagem de continuidade. Com variados e intensos procedimentos de elipses temporais e jump-cuts, o cineasta permite que se reflita, no âmago de seus documentários de homenagem, sobre a ficção e a memória/realidade; o atual e o virtual; a forma e a significação, explicitando em sua prática teórica uma espécie de tempo ficcional à procura do espaço referente na concepção de um filme documental. O apelo ao sensível, em detrimento da retórica informacional, didática e histórica, tornaram-se evidentes, em minha leitura, nessa celebração de um olhar sobre outros artistas colocado em prática cinematográfica e vice-versa. Tomar o processo criativo do cineasta Wim Wenders como uma possibilidade de produção de conhecimento foi o que pretendi na proposição de uma conexão descendente, do geral para o singular, partindo de uma interpretação particularizada e cuja autoria não pode e não deseja deixar de estar implicada na referida análise. Referências bibliográficas Aumont, J. (2004). As teorias dos cineastas. Campinas-SP: Papirus. Boujut, M. (1986). Wim Wenders. Une voyage dans ses films. Paris: Flammarion. Nichols, B. (2012). Introdução ao documentário. Campinas-SP: Papirus. Oliveira, R.A. (2009). Wim Wenders e o vídeo no cinema. Disponível em: http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2009/10/wim-wenders-e-o-video-no-cinema.html Ramos, F.P. (2008). Mas, afinal... O que é mesmo, documentário? São Paulo: Editora Senac São Paulo. Wenders, W. (1990). A lógica das imagens. Rio de Janeiro: Edições 70. Filmografia Nick’s film: lightning over water (1980), de Wim Wenders e Nicholas Ray. Pina (2011), de Wim Wenders. Cristiane Wosniak 193 LOS PRINCIPIOS CINEMATOGRÁFICOS DE ANDREI TARKOVSKI EN SU MEDIOMETRAJE DE GRADUACIÓN EL VIOLÍN Y LA APISONADORA (1960) José Seoane Riveira La música que Konrád prefería no sonaba para que la gente olvidara ciertas cosas, sino que despertaba pasiones, despertaba incluso un sentimiento de culpa, y su propósito era lograr que la vida fuera más real en el corazón y en la mente de los seres humanos. Sándor Márai Acerca de Andrei Tarkovski y la Teoría de los cineastas Tal y como señalan Rui Graça, Baggio y Penafria en su artículo acerca de los objetivos, las bases teóricas y la metodología que conforman la línea de investigación que unifica este volumen, la Teoría de los cineastas, uno de los propósitos capitales de la misma es “dar continuidad y visibilidad al pensamiento y modos de pensamiento de los propios cineastas” (2015: 24).1 Está claro que, tratándose de Andrei Tarkovski, poco habría que conseguir, a priori, en ese sentido: el cineasta ruso es autor de uno de 1.  Todas las traducciones de las citas de textos en otros idiomas que contiene este artículo son mías. Este artículo ha sido realizado bajo la financiación de la Junta de Castilla y León mediante una beca de contratación predoctoral de personal investigador cofinanciada por el Fondo Social Europeo y asociada al proyecto de investigación “Transescritura, transmedialidad y transficcionalidad: relaciones contemporáneas entre literatura, cine y nuevos medios (19802010)” (FFI2011-26511), del Grupo de Estudios de Literatura y Cine (GELYC) de la Universidad de Salamanca. los más conocidos, leídos y citados ensayos sobre cinematografía, Esculpir en el tiempo (2005), compendio de reflexiones y teorizaciones sobre su obra y sobre el propio carácter del cine. Sin embargo, y a pesar de que las ideas de Tarkovski han sido y son utilizadas muy a menudo no solo para estudiar sus películas sino para trabajar sobre variados aspectos del cine, el arte o incluso la filosofía, es necesario romper una lanza a favor del estudio de sus ideas para el análisis de su obra; y no solamente con el objetivo de comprobar si sus teorías alcanzan una realización óptima en la pantalla o no, sino para alcanzar un conocimiento más profundo del proceso creativo que permita deducciones más próximas a la realidad de la creación cinematográfica (Rui Graça et al., 2015: 29). En el caso de Tarkovski, poseedor, como se ha dicho, de un pensamiento artístico amplísimamente difundido (y analizado, contrastado, ponderado y criticado2), creo fundamental un acercamiento a su poética desde sus primeras obras, entre las que se encuentra El violín y la apisonadora (1960), ya que para ello, lejos de caer en la tentación del cotejo superficial de sus reflexiones escritas y su posible puesta en práctica en la creación artística, se precisa un giro que lleve al investigador a detectar técnicas, procesos, imágenes o, mejor dicho, síntomas que anticipen o ayuden a vislumbrar las constantes estéticas que luego intentaría desarrollar el director a lo largo de su obra fílmica y ensayística. Por otra parte, en el presente estudio no solo se tomará como objeto de análisis el documento audiovisual El violín y la apisonadora sino que también se tendrá en cuenta su guion literario, escrito por el propio Tarkovski en colaboración con Konchalovski y publicado en el volumen Andrei Tarkovsky. Collected screenplays (1999). En él se puede observar, del mismo modo que en el resto de sus guiones (pero más claramente, si cabe, por tratarse como se ha señalado de una película de graduación, de una obra de aprendizaje, de puesta en práctica de conocimientos adquiridos), el “excéntrico” proceso 2.  Véase, por ejemplo, entre otras numerosas publicaciones, Governatori, Luca (2003). Andrei Tarkovski. L’art et la pensée. París: Ediciones L’Harmattan, o Aumont, Jacques (2004). Las teorías de los cineastas. La concepción del cine de los grandes directores. Barcelona: Paidós Ibérica. 196 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) de redacción que el cineasta ruso seguía a la hora de crear sus guiones y los resultados finales de ese proceso, más cercanos muchas veces a géneros literarios como la novela o la poesía que a una herramienta concebida para facilitar el rodaje de filmes de ficción (Misharin, 2001: 48). Este artículo pretende, por lo tanto, seguir dos de las direcciones que plantea la Teoría dos cineastas como líneas de investigación: la de los conceptos de los directores presentes en sus propios filmes (Graça et al., 2015: 31), pero en sentido inverso: es decir, cómo se presentan prematuramente en El violín y la apisonadora conceptos e ideas que más adelante Tarkovski desarrollaría en clave teórica; y la de la relación del cineasta con su propia obra, en la vertiente que incide en cómo entiende el autor el proceso creativo y su relación con él (2015: 30): aquí se profundizará en las connotaciones líricas de su escritura guionística y su posterior traslado a la pantalla. El violín y la apisonadora: una película de graduación J. M. Gorostidi, en la presentación de la edición española de Esculpir en el tiempo. Reflexiones sobre el arte, la estética y la poética en el cine, atribuye a El violín y la apisonadora “un cierto tono poético que será visible en su obra posterior: el tratamiento del color, ciertas imágenes recurrentes –manzanas, lluvia, agua- (que) anticipan un poco su estilo” (2005: 14). Esta apreciación no por superficial deja de ser acertada; al contrario, alumbra una veta que podría resultar de enorme provecho para el estudio de las raíces de la poética tarkovskiana. Por otra parte, en el paradigmático estudio sobre su obra, Vida T. Johnson y Graham Petrie han calificado estilísticamente el mediometraje de graduación de Tarkovski como “más importante a la hora de mostrar lo que Tarkovski podía hacer en cuanto a la cámara, la edición, el sonido y la música si él quería, que por anticipaciones significativas de sus trabajos posteriores” (1994: 64), lo cual parece restar peso, al menos en lo que concierne al apartado formal, a esta primera película de Tarkovski. En cualquier caso, se observa cierta tendencia de la crítica a apuntar que en El violín y la apisonadora se encuentran algunos síntomas de su cine futuro, aunque siempre con reservas o sin un análisis detallado de los procedimien- José Seoane Riveira 197 tos técnicos mediante los que se narra la historia y su pertinencia a la hora de mostrar esas imágenes recurrentes o tenues anticipaciones de su obra posterior. En la película de graduación se muestra la historia de amistad entre un joven aprendiz de violinista y un obrero que conduce una apisonadora en las obras que se llevan a cabo delante del edificio del niño. La distancia aparente entre ambos personajes, que funciona como detalle a partir del cual Tarkovski intenta acceder a una idea más amplia3, se ve estrechada o directamente abolida mediante un momento único de comunicación no verbal gracias a la intermediación de la música. Esta premisa argumental está relacionada con el eje fundamental alrededor del que girará todo el proyecto cinematográfico del cineasta soviético: la creencia en un arte que “se dirige a todos, con la esperanza de despertar una impresión que ante todo sea sentida, de desencadenar una conmoción emocional y que sea aceptada” (Tarkovski, 2005: 61). Esta afirmación con respecto a la idiosincrasia del hecho artístico se transmuta argumentalmente en el entendimiento, por encima de condicionantes sociales, psicológicos o culturales, de un proletario ruso y un chiquillo de clase burguesa que ansía convertirse en violinista gracias a una forma artística: la música. Además del componente autobiográfico – Tarkovski empezó a estudiar música a los siete años (Tarkovski, 2015: 14) –, el ansia de expresión y comunicación mediante el arte se perfila como núcleo fundamental de su película de graduación en la Escuela de Cine; estos dos elementos serán constantes en la obra posterior del cineasta soviético. Por otra parte, es preciso preguntarse cómo traslada Tarkovski esta premisa argumental a la pantalla con las condiciones que un ejercicio escolar le imponía4. Si bien es cierto que una de las motivaciones para realizar un film de graduación es la de demostrar la cantidad y calidad de recursos técnicos 3.   En el documental A poet of the cinema (Donatella Baglivo, 1984), Tarkovski explica su inclinación hacia lo que él denomina “microcosmos” para, a partir de un detalle, alcanzar una idea universal o absoluta que sería equiparable a un “macrocosmos”. Esta poética que parte de lo pequeño para alcanzar lo absoluto está tomada de los haikus japoneses. 4.   Resultan interesantes al respecto los comentarios de Johnson y Petrie: las películas tenían que durar veinte minutos y ser filmadas en blanco y negro. El joven Andrei se saltó ambas condiciones y realizó un filme de cuarenta y seis minutos en color para el que además intentó contratar, sin éxito, a reconocidos actores profesionales del cine soviético de aquel tiempo (1994: 63). 198 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) que puede manejar el alumno, lo cual se nota en determinados procesos de montaje que Tarkovski no volvería a utilizar, también es cierto que todas esas técnicas se hallan en El violín y la apisonadora al estricto servicio de la diégesis; aunque el cineasta haya declarado que “en suma, (la película de graduación) fue un ejercicio de eclecticismo” (Gianvito, 2006: 3), es innegable que hay en ella muchos principios poéticos de los que no se desprendería nunca. Establecer una distinción clara entre fondo y forma no solo es poco productivo cuando se estudia en general el texto artístico contemporáneo sino que es inviable en la obra de directores como Tarkovski, incluyendo, aun a pesar de que se trata de su opera prima, este mediometraje de graduación. Proceso creativo e ideas artísticas a partir del guion literario Tarkovski ha señalado que el guion literario puede “interesar a los investigadores que se dediquen a estudiar la naturaleza de la creación cinematográfica, pero en ningún caso pretende ser un género literario independiente” (2005: 152). Sentencia, esta, que resalta una obviedad: aun a pesar de que numerosos guiones son publicados hoy en día en formato libro para el gran público, no existe como tal el género literario del guion. El guion literario es, entonces, una herramienta previa al rodaje de la película que tiene como objeto la ordenación de la historia en escenas (diferenciadas entre sí por el cambio bien de temporalidad, bien de espacialidad) para el desarrollo dramático de la trama a partir de la interacción dialogada (o no) de los personajes entre ellos y con el mundo. Como guion literario, obedece a unas normas más o menos estrictas de estilo y formato en las que no puedo detenerme con profundidad, pero que incluyen, entre otras, las prohibiciones de escribir cualquier cosa que el espectador no vaya a ver en la pantalla (pensamientos de los protagonistas, descripciones que se salgan del virtual encuadre, etcétera), hacer referencia al carácter visual de la futura película (es decir, escribir “vemos”, “se ve”, “la cámara enfoca”, y un largo etcétera), detenerse en descripciones detalladas e innecesarias de los decorados o los personajes que vayan más allá de las imprescindibles para la progresión José Seoane Riveira 199 dramática de la historia y la utilización del lenguaje con fines ornamentales o estéticos mediante la inclusión de, por ejemplo, figuras retóricas (McKee, 2009: 250 y ss.). Tarkovski entendía sus guiones como un material en constante cambio, una herramienta que, más que guiar, provoca la reflexión del cineasta y adolece de gran fragilidad ya que nunca puede considerarse como algo definitivo. En este sentido, su intención era la de conferir más espacio a la improvisación en el set de rodaje ya que, como él mismo afirmaba, “la vida es más rica que la fantasía” y es necesario disponer durante la grabación de la libertad adecuada para que surjan ideas espontáneas y originales (2005: 162,152). Sin embargo, en sus comienzos como autor escribía las escenas con muchísimo detalle aunque más adelante fuese cediendo en este aspecto. Un ejemplo muy claro es el guion del mediometraje que nos ocupa: trabajo en el que además era necesaria una demostración por su parte de talento y solvencia a la hora de configurar un proyecto cinematográfico de envergadura. Las obligaciones a las que lo sometía el VGIK, como las reuniones semanales con el comité de evaluación en los estudios o la explicitación de la banda sonora en el guion literario ejercen una influencia que no debe olvidarse a la hora de redactar el libreto, en cuya elaboración Tarkovski invirtió cerca de un año junto a su compañero y futuro director Andrei Konchalovski, que también colaboraría con él en La infancia de Iván (1962) y Andrei Rublev (1966) (Synessios, 1999: 3-6). Dadas las características de la obra que se disponía a realizar, Tarkovski abordó el guion literario de El violín y la apisonadora con un rigor y una profesionalidad exacerbados para asentar con garantías los cimientos de un posterior rodaje en el que ejercería por vez primera como director. El guion literario de este mediometraje comienza con una relación de todos los personajes (“Characters”) y una breve descripción de la función que cada uno llevará a cabo en la historia; una suerte de dramatis personae que no volvería a repetir en el resto de su producción guionística. Además, tras la lista de personajes relevantes se incluye otra en la que enumera e identifica 200 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) a los figurantes (“Others”); después, redacta una más con las escenas en las que aparecerán multitudes en el escenario bajo el título de “Crowd scenes” y, por último, otra en la que constan los cargos y nombres de las personas implicadas en la producción del filme (Tarkovski, 1999: 7). Este tipo de desglose se lleva a cabo, indudablemente y a pesar de cierta similitud con el teatro escrito, por el carácter escolar del trabajo: el hecho ya mencionado de que nunca se volviese a incluir una página similar en el resto de sus guiones, firmados ya como director profesional, no deja lugar a la duda. Para la segmentación de escenas en un guion literario clásico se tiene en cuenta, en primer lugar, si se trata de una escena en exteriores o en interiores; en segundo lugar, la designación del espacio en sí donde se desarrolla la acción; y por último, el momento del día en que ocurre la escena en la diégesis (en formato consensuado, siempre en mayúsculas, un encabezado de escena podría ser: “1. Ext. Parque - Día”). El violín y la apisonadora, aunque obviamente esté lejos de seguir este tipo de formato cerrado (que no deja de provenir de la escritura de guiones a nivel industrial y de tener su origen, como podrá intuirse, en el cine clásico de Hollywood), es el guion de Tarkovski que más se asemeja a este molde de la guionística cinematográfica. Los planos en él están numerados y agrupados en unidades mayores que indican si el escenario es exterior o interior, lo cual se volverá a cumplir solamente en La infancia de Iván, en Andrei Rublev y, en menor medida, en Solaris (1972) (ya que en esta última se utiliza un sistema de numeración por “Reels” o carretes, tal y como se dividen, por ejemplo, los diarios cinematográficos de Jonas Mekas). El cineasta soviético fue progresivamente liberándose de las convenciones técnicas del guion literario para terminar escribiendo El espejo (1975), Stalker (1979), Nostalgia (1983) y Sacrificio (1986) según una lógica casi puramente narrativa que más se aproxima a la prosa novelística en su apariencia que a una herramienta de rodaje en la que lo más importante es la claridad: desde una posible venta a la productora hasta la propuesta de papeles a los actores, un guion literario debe mostrar de forma sencilla la estructura de la trama, los personajes que intervienen en ella y los escenarios donde se rodará. El mismo Tarkovski señalaba: José Seoane Riveira 201 Al principio, al elaborar el guión de dirección, me esforzaba por ver en espíritu una imagen bastante exacta de la futura película, incluso de su puesta en escena. Hoy, en cambio, tiendo a desarrollar tan sólo una idea bastante aproximada de la futura escena o plano, para que puedan éstos surgir luego en el rodaje con mayor espontaneidad. Pues las circunstancias exteriores en el lugar del rodaje, el ambiente, el estado de ánimo de los actores, todo eso lleva a soluciones nuevas, originales, inesperadas. (2005: 153). La intención de Tarkovski de dejar lo más cerrada posible la construcción futura de la película en el guion va, como se ha señalado, diluyéndose en el tiempo, y un buen ejemplo es la progresiva desaparición de la numeración de las escenas. En su mediometraje de graduación, la presión para tenerlo todo prefijado por parte de la escuela y su inexperiencia provocaron que se esmerase, junto a Konchalovski, más en el respeto a los objetivos primordiales de la redacción guionística que en la apertura a una posible experimentación o inspiración posterior en el rodaje. Otro síntoma que apunta a la presencia de un comité evaluador es que Tarkovski incluya en cursiva, al final de la descripción de cada escena, algunas frases que aportan información sobre la banda sonora. Sin embargo, no siempre se cumple solo ese objetivo (como se ha indicado, explícitamente requerido por parte de la escuela), sino que también se aprovechan esas líneas para hacer consideraciones sobre los estados psíquicos de los personajes o las implicaciones emocionales de algunos pasajes dramáticos: 29 Una calle junto a un cine. Mañana. Exterior. Justo a la vuelta de la esquina, Sasha se detiene y abre el estuche con el corazón hundido. El violín está intacto. Yace sobre terciopelo suave, luminoso y hermoso. Travelling hacia atrás. Sasha suspira, cierra la tapa, reajusta su arco y camina por la calle. 202 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) Sonidos de la calle, impregnados por los pasos de Shasha en el asfalto. Cuando Sasha comprueba si el violín está intacto, este parece decirle: ¡Oh, fue tan aterrador al principio! ¡Pero todo está bien ahora, no te angusties! (1999: 14). La explicación del significado de la “mirada” del violín en términos emocionales se sale de la descripción de la banda sonora que en este guion se incluye en las líneas cursivas bajo cada escena. El todavía aprendiz de cineasta deja patente, al escribir de esta forma, la línea de pensamiento acerca de la dirección de actores que luego explicará en sus reflexiones teóricas: un actor de cine, a diferencia del actor de teatro, no debe comprender su papel globalmente para enlazar sus estados psíquicos a través de las distintas escenas, sino que es responsabilidad del director el condicionamiento psicológico del actor hacia los determinados estados que él considera oportunos para cada momento (2005: 167-169). En el guion literario de su película de graduación ya comenzaba a redactar instrucciones para el actor, en este caso mediante una indicación musical en la que escribe lo que “parece” que un violín le está diciendo al protagonista. En esta frase subyace, además, la identificación de la música con un lenguaje transmisor de emociones. El violín “dice”: “al principio fue aterrador pero todo está bien ahora, no estés afligido”. La utilización de la música (y de la parte del guion literario asignada a fijar las instrucciones para la banda sonora) ofrece “la posibilidad de dirigir los sentimientos de sus espectadores en la dirección que (el director) pretende conseguir, ampliando sus relaciones para con el objeto que se le presenta de forma visual” (Tarkovski, 2005: 186). Este detalle de su escritura, además de funcionar como instrucción para el actor, se encuentra alineado con la que él consideraba la misión del arte y que explicó en innumerables ocasiones: “Explicarse a sí mismo y simultáneamente a todos los demás para qué vive una persona” (Gianvito, 2006: 127). José Seoane Riveira 203 Tarkovski aboga también por el poder absoluto (o por un poder lo más amplio posible) del director sobre el resto del equipo de colaboradores para culminar lo que él entiende como el verdadero arte cinematográfico; en aras de que toda una amalgama de profesionales se centre en la idea del director, señala que “se pueden mover montañas si se consigue que las personas que colaboran en realizar una idea (…) pasen a formar algo así como una familia, animados por una pasión común, (ya que) la escena es algo orgánico” (2005: 165). Este entendimiento de su profesión lleva indudablemente a sacar dos conclusiones: la primera es que Tarkovski entiende el cine como una expresión personal, única, de la sensibilidad del director; la segunda es que la principal tarea del director es la de guiar a sus colaboradores y sus diversos talentos hacia la consecución de la idea primigenia del autor. Este credo le llevó, a lo largo de su carrera, a muchos conflictos con productores, guionistas, actores, directores de fotografía y operadores de cámara5, pero también le ha hecho conseguir logros poéticos especialmente característicos. Uno de ellos es la inexpresividad o apatía que define a muchos de sus personajes: en El violín y la apisonadora, los profesores del VGIK criticaron su trabajo como director de actores por no lograr que sus personajes tuviesen personalidades agradables, a lo que él replicó: No puedo usar lenguaje esquemático. No puedo escoger un héroe positivo a través de una realidad positiva y hacer que la gente se enamore de él instantáneamente. Creo que no es profundo, no es lo suficientemente serio; el arte no debe ser creado de esta manera, no es real. (Synessios, 1999: 6). Tarkovski mostraba ferozmente su preferencia por la interpretación alejada de todo método analítico que lleve al actor a transmitir, de forma “externa”, sus emociones al espectador; esto es, para él, un método propio del teatro que nada tiene que ver con los “estados momentáneos” que el actor debe 5.   Buenos ejemplos de ello son su conflicto con el actor Donatas Banionis, que interpretó a Kelvin en Solaris (Tarkovski, 2005: 173); con el diector de fotografía sueco Sven Nykvist durante el rodaje de Sacrificio (Nyvkist, 2009) o con el operador de cámara Vadim Yusov cuando le propuso el proyecto de El espejo, en el que el operador ruso rechazó trabajar (Tarkovski, 2005: 163). 204 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) alcanzar en cada plano cinematográfico. Más tarde, en sus reflexiones teóricas, Tarkovski elogiaría la dirección de Robert Bresson en Mouchette (1967) debido precisamente a la manera en que la actriz protagonista muestra su mundo interior al espectador sin apoyarse en una realidad esquemática o positiva, ni en comportamientos de heroína sino en la cotidianidad de una experiencia profundamente “humana”: ¿Se le puede ocurrir a alguien que en esta película la protagonista haya pensado en el público siquiera un segundo? ¿Y que haya pensado en cómo comunicarle la “profundidad” de lo que ha vivido? ¿Acaso muestra al espectador lo mal que le van las cosas? No, no lo hace nunca, ni en un solo momento. Ni siquiera se le ocurre que su vida interior pueda ser objeto de observación o dar testimonio de algo. Está viviendo en su mundo cerrado, profundo, concentrado, y nos fascina precisamente por eso. (2005: 182). Anticipación de sus postulados teóricos en el filme Ya se ha señalado que para la crítica y para el propio Tarkovski, El violín y la apisonadora constituyó una suerte de entrenamiento “ecléctico” en el cual el joven aprendiz de director debía mostrar sus habilidades a los evaluadores del VGIK. A partir del análisis de algunos fragmentos del guion literario se ha visto, sin embargo, cómo en él se anticipan conceptos teóricos que más adelante marcarían su producción y que el propio cineasta desarrollaría por escrito en su obra ensayística. Los elementos precursores del estilo tarkovskiano “maduro” que Sean Martin identifica en El violín y la apisonadora son: el agua en varios contextos (como aguacero repentino, en un vaso, en charcos, en el río, en un grifo abierto), los espejos (reflejo caleidoscópico de la ciudad en el cristal de un escaparate; reflejo del protagonista, una primera vez, y de su madre, en otra ocasión, en un espejo de la casa), y la confluencia de ambos en la escena central del filme en la que la luz se refleja en un charco e ilumina la bóveda bajo la que Sasha toca para Sergei (2005: 59). Sin embargo, sería más específico definir los dos primeros elementos, el agua y los espejos, como motivos re- José Seoane Riveira 205 currentes (añadiendo tres más: las manzanas, la leche y los árboles), y como técnica de iluminación por manchas la reflexión de la luz en el agua para el modelaje o el resalte de ciertos escenarios o detalles de los mismos. A través de estos rasgos estilísticos y algunos más cobran fuerza ciertos postulados teóricos de Tarkovski, con sus aciertos y sus contradicciones. Para extraer algunas conclusiones al respecto, creo adecuado ajustar el análisis a la secuencia central del concierto que da Sasha a Sergei debido, en primer lugar, a su importancia como situación clave del filme, señalada por la crítica pero también por el propio director (Synessios, 1999: 5) y, en segundo lugar, por el número de técnicas cinematográficas que reúne y que reflejan algunas de las teorías tarkovskianas posteriores acerca de la construcción de la imagen. Para ello optaré por un análisis interno de la imagen y el sonido, que entiende el cine como un medio de expresión y se centra en el espacio fílmico ya que este nos permite conocer el modo en que el realizador lo concibe (Penafria, 2009: 7). Tarkovski escribiría, años después, sobre la imagen cinematográfica que “cuando un pensamiento se expresa a través de una imagen artística, quiere decir que se ha encontrado una forma que expresa del modo más adecuado posible la idea del autor, su tendencia hacia un ideal” (2005: 127). Esta reflexión sugiere que el lenguaje cotidiano es una manipulación de la realidad que la adapta a un nivel lógico, racional, y que no puede en ningún caso transmitir un pensamiento de la misma forma que la imagen artística debido a la condición prerracional y sensorial de esta última6. Siguiendo este mismo planteamiento, las consideraciones sobre los procesos de grabación y montaje de Tarkovski se posicionan en contra de la manipulación de la realidad por parte del equipo y alude a las secuencias del gallo y de la imprenta en El espejo como ejemplos de mala praxis: el hecho de haber sido rodadas a cámara lenta para sugerir el estado de ánimo de la protagonista al espectador de forma, considera él, externa a la propia imagen “recogida”, 6.  Para profundizar en estos conceptos, véase González de Ávila, Manuel (2010). El arte y el cine, entre la transcripción y la reescritura (Por una semiótica transversal). En J. A. Pérez Bowie (Ed.), Reescrituras fílmicas: nuevos territorios de la adaptación (pp. 103-119), Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca. 206 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) pudo provocar que el receptor de la obra se fijase más en el proceso de realización que en los estados emocionales que podían provocar las imágenes (2005: 133-135). Las contradicciones teóricas de estas reflexiones son evidentes: el cineasta se refiere a la imagen fílmica como si esta existiese por sí misma o, al menos, como si su “nivel de procesamiento” determinase la “verdad” que en ella pudiese residir. La creencia, de corte inmanente, de que en la naturaleza o en la realidad existe por sí misma una poesía que el director debe recoger para mostrar la verdad de la vida se antoja ilusoria, debido a la propia identidad fotoquímica de la cámara cinematográfica o a la consciente selección del encuadre mediante el objetivo, por ejemplo (Pérez Bowie, 2008: 64-65). Estos puntos ciegos de la teoría tarkovskiana pueden entenderse mejor a partir del repaso de algunas técnicas narrativas utilizadas en la escena de Sergei y Sasha, en la que la manipulación forzada del encuadre y el montaje por parte del director es notoria. Sasha y Sergei se encuentran sentados a la hora del almuerzo en una suerte de pasaje abovedado entre la calle y el patio interior del edificio donde vive el niño y en el que trabaja el obrero; pasaje abovedado en cuyas paredes inciden los reflejos del sol que rebotan en un charco de la calle. Después de beber un poco de leche fresca (otro elemento que cobraría importancia en la posterior producción tarkovskiana) y de compartir unos trozos de pan, Sergei responde algunas preguntas que le formula Sasha acerca de la guerra de la que es veterano para después pedirle al niño que toque algo con su violín. El chiquillo accede a la petición del obrero y da un pequeño concierto de varios minutos; Sergei lo escucha maravillado y los reflejos del agua se multiplican en todas las superficies de la escena, desde los techos hasta los personajes y los objetos. El primero de los elementos de la poética madura de Tarkovski identificado por Gianvito es el agua. Si bien su presencia constante en las imágenes ha sido señalada por la crítica como uno de los rasgos que más adelante marcarían su producción, su uso en esta escena no es, en ningún caso, similar al que más adelante le daría en su obra. Aquí, el agua, aparte de funcionar José Seoane Riveira 207 como catalizadora de la iluminación por manchas que adorna el espacio, cumple una función eminentemente narrativa. El director intercala, espaciados a lo largo escena, tres planos detalle de una gota rompiendo el reflejo que se ve en el charco (un árbol frente al bloque de apartamentos). El primero, mientras comparten el pan y la leche, justo en el momento en que el rugido atronador de un avión militar rasga el cielo, funciona como detonante que provoca que Sergei recuerde la guerra; el segundo, cuando Sasha está a punto de empezar su concierto pero un niño del barrio se acerca indiscretamente a observar a los protagonistas y retrasa el comienzo de la música, indica la presencia de un agente negativo para el joven violinista ya que suele sufrir las burlas habituales de sus vecinos; y el tercero, cuando Sasha termina su interpretación, da por finalizado el entendimiento íntimo entre ambos personajes. Los tres insertos de los planos detalle del charco cumplen la función narrativa de interrumpir el curso natural de la escena, de la relación afectiva que se desarrolla entre ambos protagonistas, y los tres vienen acompañados por aspectos de su vida que los atormentan: la guerra en el caso de Sergei, los insultos de los otros niños en el caso de Sasha, y, finalmente, el término de la conexión absoluta a la que llegan los personajes por medio del arte. Esta subordinación del agua a objetivos narrativos no se volverá a repetir en la filmografía tarkovskiana: él mismo declaraba, tras realizar Nostalgia en 1982: “En mis últimos trabajos creo que todo está expresado de forma más sencilla que en mis primeras obras” (Gianvito, 2006: 121). Tarkovski ha repetido en muchas ocasiones que él utilizaba la lluvia “como un ambiente estético que marca el desarrollo de la acción” (2005: 236), no como un elemento narrativo que anticipe o sirva como detonante de determinados diálogos o situaciones. Parece clara, entonces, su postura teórica: el grado de lo que él denomina “verdad”, “poesía natural” o “esencia de la imagen” es inversamente proporcional al uso expreso que el director hace de las técnicas narrativas para provocar determinados efectos en el espectador. Es decir: cuanto menos manipule el material rodado el director mediante la acción de la tecnología 208 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) (ralentizaciones), la dirección de actores (escenas sobreactuadas) o el montaje (función narrativa de los elementos de la imagen, como acabamos de ver), más libremente se enfrentará el espectador a la película y menos “dirigida” o “manipulada” será su experiencia estética. Esto no quiere decir que esa verdad o poesía existan ahí fuera, como parece, en ocasiones, postular el director soviético, sino que tiene que ver, fundamentalmente, con el respeto intelectual al espectador y con una inclinación absoluta hacia la sencillez y la transparencia del arte. Tarkovski aboga por una puesta en escena lo más natural posible, lo más cercana posible al “realismo psicológico” para no caer en la manipulación intelectual de los elementos profílmicos ni del montaje. Su inflexible separación entre cine y literatura (Tarkovski, 2005: 201), su oposición a las teorías del montaje intelectual de Eisenstein por “frías y cerebrales” (Gianvito, 2006: 136) o su ya mencionada admiración por la dirección de actores de Robert Bresson apuntan en el mismo sentido. La poética tarkovskiana es una poética de la sencillez: En el rodaje de mi próxima película me esforzaré aún más por conseguir planos verídicos, convincentes. Partiré para ello de las impresiones inmediatas en los exteriores, en cuyas peculiaridades también quedan grabadas las consecuencias del paso del tiempo. El realismo es una forma de vida de la naturaleza en el cine. Cuanto más naturalista es la naturaleza que se introduce en un plano, tanto más dignidad tendrá esa imagen: dar alma a la naturaleza resulta algo connatural en el cine. (Tarkovski, 2005: 235). De este modo, y a pesar de que la crítica lo ha intentado y lo intenta frecuentemente,7 no creo necesaria la búsqueda de una dimensión simbólica (en cuanto a cifrado de conceptos por medio de la imagen) de los elementos recurrentes del cine de Tarkovski como el agua, los caballos, el fuego, los árboles o la niebla. Él mismo ha señalado, en relación a esto: 7.  Para una interpretación simbólica de la obra de Andrei Tarkovski, véase el libro de Tejeda, Carlos (2010). Andrei Tarkovski. Madrid: Cátedra. José Seoane Riveira 209 El simbolismo es una noción demasiado estrecha para mí, porque los símbolos están ahí para ser decodificados. Pero una imagen artística no puede ser decodificada. Es un equivalente del mundo en que vivimos. La lluvia en Solaris no es un símbolo, es sólo la lluvia que crece en importancia para el héroe en un cierto punto. No simboliza nada. Expresa algo. Esa lluvia es una imagen artística. (Gianvito, 2006: 122). Aunque la crítica también haya señalado que sus declaraciones se contradicen porque afirman que la Zona de Stalker equivale a la vida en sí misma o que el acto de regar el árbol en Sacrificio es un símbolo de fe (Martin, 2005: 34-35), hay que apreciar que Tarkovski entiende la idea de símbolo a partir de las teorías metafísicas de Ivanov, que postulan lo siguiente: El símbolo solo es verdadero como tal cuando en su significado es inagotable e ilimitado, cuando en su lenguaje secreto (hierático y mágico) expresa alusiones y sugerencias de algo inefable que no se puede expresar con palabras. (Tarkovski, 2005: 128-129). Esta afirmación nos conduce inexorablemente a su fascinación por la perspectiva icónica proveniente de la pintura ortodoxa8. La justificación de esta perspectiva (plana y sin profundidad, de figuras alargadas y alejadas de toda intención mimética) se encuentra en que lo divino no puede representarse con las proporciones clásicas renacentistas ya que el icono religioso debe constituir una puerta hacia el misterio. ¿Qué es, entonces, el “alma” de la naturaleza a la que hacía mención Tarkovski? Esa dimensión divina, mistérica, que se revela mediante su recreación en la pantalla; lo que ocurre es que siempre será una impresión de realidad y siempre se conseguirá mediante procedimientos técnicos: como señalaba Bazin, surte más efecto la inclusión del murmullo de una rama para la percepción de todos los bosques que la recreación minuciosa de uno artificial (1990: 188). El realismo o el naturalismo a los que hace referencia 8.   Véase, para el caso de la aplicación de la perspectiva icónica a la película Stalker, Peydró, Guillermo (2013). Pervivencia del icono: La perspectiva invertida en el cine ruso contemporáneo. Goya, 344, 264‑275; o para su utilización en Nostalgia, Seoane Riveira, José (2015). Poética del rostro en Nostalgia de Andrei Tarkovski. El monólogo de Andrei Gorchakov. Comunicación, 13, 62-72. 210 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) Tarkovski están más cerca del realismo psicológico, de una poética de la experiencia sensible que de la mera reproducción exacta de las condiciones naturales; no en vano, en uno de los primeros cuadernos de su diario se lee: “Dostoievski es el sentido de todo lo que me gustaría hacer en cine” (2011: 12). Volviendo a la película, hemos visto que la crítica ha mencionado los encadenados, la técnica caleidoscópica de la escena del escaparate o el montaje mediante planos y contraplanos como rasgos que no volverían a darse en toda su obra9. Sin embargo, al analizar con detenimiento la construcción gramatical de la escena de Sasha y Sergei, cuya conversación está montada, efectivamente, mediante el uso de planos y contraplanos, puede observarse una tendencia a la construcción del espacio fílmico que apuntaría a sus técnicas posteriores. Los primeros planos de los protagonistas, lejos de responder a la convención, contienen movimientos de cámara aproximativos o circulares y técnicas de enfoques o desenfoques en varias ocasiones antes del corte al contraplano, de forma que agrandan el espacio y confieren profundidad a la imagen haciendo visibles elementos del decorado tan relevantes como una cerca enrejada o la propia apisonadora, con todo lo que ello implica de cara a una futura concepción del cine como “escultura del tiempo”. Bajo la superficie del montaje, esto es, la construcción “tradicional” mediante la concatenación de planos y contraplanos de la que se sirve el joven director ruso en su película de graduación, se esconde una semilla de algunos conceptos cruciales para no solo el análisis de la obra tarkovskiana sino para el entendimiento del cine moderno: la imagen-tiempo que Deleuze designa como figura de ruptura entre el cine tradicional de Hollywood y el cine moderno. El filósofo francés señala que Tarkovski, en su teoría acerca del tiempo cinematográfico, presenta una confrontación entre el plano y el montaje, optando él por el tiempo interno del plano y no por el tiempo creado a partir de la concatenación de imágenes. Sin embargo, en esa afir9.   Quizá todavía en La infancia de Iván, pero no más adelante. José Seoane Riveira 211 mación, continúa Deleuze, se omite el hecho de que el tiempo se “sale de los límites del plano” y de que “el montaje mismo opera y vive en el tiempo”; por lo tanto, termina Deleuze, se consigue hacer efectiva la imagen-tiempo controlando las relaciones de fuerzas que se establecen entre los planos a partir del montaje (1987: 65-66). ¿No se presenta, en la conversación entre Sasha y Sergei, un primer ejemplo de este manejo de fuerzas, de esta creación de la imagen-tiempo a partir de la manipulación mediante el montaje de las tensiones temporales del plano? Tarkovski diría, hablando de El espejo, que le costó mucho encontrar fragmentos documentales de la historia de Rusia cuyo tiempo interno se asimilase al tiempo interno de los planos de ficción en la película (2005: 155-156). En este fragmento de su película de graduación, el cineasta soviético intenta crear lo que Deleuze denominó posteriormente “situación óptica y sonora pura” (1987: 13) mediante los movimientos de cámara y la profundidad de campo: no solo los bustos de Sasha y Sergei mantienen una conversación que hace avanzar su relación en lo que sería una clásica escena de la imagen-movimiento, sino que los espacios circundantes adquieren un estatus temporal mediante la banda sonora (goteo de agua, ruido de la calle, eco de sus voces) y la profundidad de campo (gradación de zonas según su iluminación: pasaje abovedado en el que ocurre la conversación, apisonadora aparcada en el patio bajo el sol, árbol y edificios al fondo de la calle). Todo ello, unido a los movimientos circulares de la cámara alrededor de los personajes o a la técnica del enfoque-desenfoque (Sergei habla de la guerra, por ejemplo, pero vemos al fondo a Sasha afinar su violín y detrás de él apagarse el sol ante el inicio de un espacio enrejado bajo el túnel), hace posible que “el espectador y los protagonistas impregnen medios y objetos con la mirada (…), vean y oigan cosas y personas para que pueda nacer la acción o la pasión, irrumpiendo en una vida cotidiana preexistente” (1987: 15). 212 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) Conclusión Tarkovski dice en el documental A Poet of the Cinema (Donatella Baglivo, 1984) que en sus películas se mueve “del mundo externo al mundo interno de los hombres”. Esta afirmación viene a recuperar la cita con la que se abre este texto, extraída de la novela El último encuentro de Sándor Márai: “su propósito era lograr que la vida fuera más real en el corazón y en la mente de los seres humanos”. Andrei Tarkovski, cuyo objetivo fue también ese que indica Marái acerca de la música, diseñó El violín y la apisonadora desde el guion literario hasta el montaje final teniendo en cuenta determinadas normas impuestas, pero eso no le impidió reflejar en cada nivel de elaboración del filme varias de las claves que ya guiaban su poética y que más adelante desarrollaría en forma teórica y perfeccionaría en la práctica cinematográfica. El análisis de un fragmento del guion literario revela la concepción que el joven cineasta tenía de él como herramienta al servicio del rodaje en la que, al principio de su carrera, dejaba la descripción de las escenas lo más detallada posible; sin embargo, como se ha indicado, con la experiencia iría cediendo progresivamente a la libertad y la improvisación hasta casi convertir sus guiones en películas noveladas. Este impulso de apartarse de la norma se vislumbra en detalles de El violín y la apisonadora que, además, descubren otras ideas teóricas del cineasta: la utilización de la descripción sonora de la escena para dar “voz” a un objeto musical, con todo lo que ello implica para el actor que interpreta (entendimiento de la actuación en cine) y para sus ideas sobre la misión del arte. En cuanto al filme, la atención detallada a la escena clave del concierto de Sasha muestra que, más allá de contener motivos que se repetirán a lo largo de la filmografía tarkovskiana como el agua, el árbol o la leche, su utilización de la primera obedece a objetivos puramente narrativos, lo cual no será característico del resto de su obra. Por otra parte, lo que a priori podría parecer una concesión a la narrativa cinematográfica clásica, la construcción de la conversación mediante el uso frecuente del plano y el contraplano, José Seoane Riveira 213 contiene una semilla de lo que más adelante será la característica fundamental de su cine y de su pensamiento: la elaboración del cine a partir del modelaje del tiempo y sus ritmos en las velocidades internas de los planos y en el posterior montaje. El violín y la apisonadora es, por todo ello, un mediometraje de graduación que, aunque no haya acaparado excesiva atención por parte de la crítica, presenta muchos rasgos interesantes a partir de los cuales puede entenderse con mayor profundidad el pensamiento y la obra de Andrei Tarkovski. Este artículo no agota, ni muchísimo menos, las posibilidades del film en este sentido, sino que reivindica el estudio detallado de sus muchas aristas (y también del resto de su obra temprana: de sus cortos como estudiante y de sus relatos o poemas de juventud10). Quizá Tarkovski, a pesar de lo que habitualmente se dice, dirigió a lo largo de su vida ocho películas y no siete: El violín y la apisonadora debe considerarse, sin lugar a dudas, la primera de ellas. Referencias bibliográficas Aumont, J. (2004). Las teorías de los cineastas. La concepción del cine de los grandes directores. Barcelona: Paidós Ibérica. Bazin, A. (1990). ¿Qué es el cine? Madrid: Ediciones Rialp. Deleuze, G. (1987). La imagen-tiempo. Estudios sobre cine 2. Barcelona: Paidós Ibérica. Gianvito, J. (2006). Andrei Tarkovski. Interviews. Jackson: Mississipi University Press. González de Ávila, M. (2010). El arte y el cine, entre la transcripción y la reescritura (Por una semiótica transversal). En J. A. Pérez Bowie (Ed.), Reescrituras fílmicas: nuevos territorios de la adaptación (pp. 103119), Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca. 10.   Véase el interesantísimo estudio introductorio de José Manuel Mouriño a Tarkovski, Andrei (2015). Escritos de juventud. José Manuel Mouriño y Andrei Arsenévich Tarkovski, eds. Madrid: Abada Editores. 214 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) Gorostidi, J. M. (2005). Presentación. En A. Tarkovski, Esculpir en el tiempo. Reflexiones sobre el arte, la estética y la poética en el cine (pp. 13-23), Madrid: Rialp. Governatori, L. (2003). Andrei Tarkovski. L’art et la pensée. París: Ediciones L’Harmattan. Graça, A. R.; Baggio E. T. y Penafria, M. (2015). Teoria dos cineastas: Uma abordagem para a teoria do cinema. FAP. Revista Científica, 12 (EneroJunio), 19-32. Johnson, V. T. y Petrie, G. (1994). The Films of Andrei Tarkovsky: A visual Fugue. Bloomington: Indiana University Press. Márai, S. (2004). El último encuentro. Barcelona: Salamandra. Martin, S. (2005). Andrei Tarkovsky. Harpenden: Pocket Essentials. McKee, R. (2009). El guion. Sustancia, estructura, estilo y principios de la escritura de guiones. Madrid: Alba Editorial. Misharin, A. (2001). Sobre la sangre, la cultura y la Historia. En J. Rodríguez (Ed.), Acerca de Andrei Tarkovski (pp. 44-53), Madrid: Ediciones Jaguar. Nyvkist, S. (2009). Culto a la luz. Madrid: El Imán. Penafria, M. (2009). Análise de filmes - conceitos e metodologia(s). Paper presentado en el IV Congreso SOPCOM, UBI, Covilhã. Pérez Bowie, J. A. (2008). Leer el cine. La teoría literaria en la teoría cinematográfica. 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Filmografía Andrei Rublev (1966), de Andrei Tarkovski. A poet of the cinema (1984), de Donatella Baglivo. El espejo (1975), de Andrei Tarkovski. El violín y la apisonadora (1960), de Andrei Tarkovski. La infancia de Iván (1962), de Andrei Tarkovski. Mouchette (1967), de Robert Bresson. Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovski. Sacrificio (1986), de Andrei Tarkovski. Solaris (1972), de Andrei Tarkovski. Stalker (1979), de Andrei Tarkovski. Walden (Diaries, Notes and Sketches) (1969), de Jonas Mekas. 216 Los principios cinematográficos de Andrei Tarkovski en su mediometraje de graduación El violín y la apisonadora (1960) MATÉRIA E MEDIDA: A CONCRETIZAÇÃO DO PENSAMENTO EM PETER KUBELKA Lucas Baptista Em 60 anos de carreira, Peter Kubelka compôs uma filmografia de aproximadamente 60 minutos. Isso significa que, no caso de um ritmo absolutamente regular de trabalho, Kubelka teria composto menos de quatro fotogramas por dia. A taxa de compressão pode ser surpreendente à primeira vista, mas é perfeitamente coerente com as ideias expostas pelo cineasta austríaco durante sua trajetória. A partir dos anos 1950, Kubelka elaborou seu pensamento em uma série de comentários dispersos em forma de textos, palestras e análises de suas obras. Seu método envolve o controle ao nível do fotograma e a atenção às relações entre som e imagem, e na base de sua formação está uma definição do cinema como uma arte a ser aproximada da música e da arquitetura através de uma composição rigorosamente estruturada por regras e medidas precisas. Herdeiro e apreciador das vanguardas dos anos 1920, Kubelka eventualmente se aproximou de um movimento nos EUA cujo percurso foi paralelo ao seu: os críticos e cineastas que gravitaram ao redor da revista Film Culture e de seu editor, Jonas Mekas, com quem Kubelka colaborou na fundação do Anthology Film Archives.1 Como outros artistas na tradição do cinema 1.  O Anthology Film Archives foi fundado em 1970 como “um centro internacional de preservação, estudo e exibição de filme e vídeo, com foco particular em cinema independente, experimental e de vanguarda”. Além de Mekas e Kubelka, fizeram parte da equipe de fundadores Stan Brakhage, Jerome Hill e P. Adams Sitney. Kubelka foi também o responsável por conceber o cinema onde seria exibido o repertório que os organizadores chamaram de “Essential Cinema”. O “Invisible Cinema” de Kubelka refletia experimental, Kubelka tratou os próprios filmes como objetos de estudo, e a criação como um trabalho laboratorial. Como outros nomes da vanguarda americana, ele defendeu que é nos materiais concretos da arte que devem ser encontrados os princípios e parâmetros composicionais. O desenvolvimento gradativo de sua filmografia se torna assim análogo ao desenvolvimento de um pensamento sobre o filme como um todo: sobre como uma visão de cinema toma corpo e revela seu propósito através da apropriação dos meios cinematográficos. A definição dos materiais Kubelka é um cineasta cuja inclinação modernista é evidente em suas declarações. Como os representantes do modernismo, se dispôs a encontrar os pontos axiomáticos de sua arte; como eles, considerou ainda que tais postulados devem ser erigidos primeiramente sobre as condições materiais envolvidas. É a partir desse contexto que deve ser lida uma de suas mais importantes afirmações, de que o cinema não é caracterizado pelo movimento: “Cinema é a projeção de fotografias – o que significa imagens que não se movem – em um ritmo muito acelerado.” Ainda que a impressão de movimento tenha sido a razão para a criação da tecnologia fílmica, este permanece apenas um caso especial; uma análise empírica do dispositivo cinematográfico não revela como decorrência o movimento, mas “a rápida projeção de impulsos luminosos” (Kubelka, 1987: 140). A chave do cinema como arte seria, então, a modulação dos impulsos luminosos sobre a tela. Conforme a película é colocada perante a luz e projetada sobre a tela, pode‑se moldar a forma da luz, dando a ela uma dimensão no tempo. A película, em si, é o modo de conservar e preservar essa temporalidade luminosa: é na película, portanto, que o cineasta deve trabalhar. as preocupações expostas em seus filmes e textos; algumas delas são comentadas por Annette Michelson em “Gnosis and Iconoclasm: A case study of cinephilia”, October, n. 83 (1998), pp. 3-18. As informações sobre o Anthology Film Archives encontram-se no próprio site da instituição em: http://anthologyfilmarchives.org. 218 Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka A segunda afirmação crucial de Kubelka diz respeito à maneira como o cinema seria articulado. Ele reconhece que existem diferentes concepções acerca do tema; Eisenstein, por exemplo, defendeu que a articulação se encontra na colisão entre dois planos. Kubelka discorda de Eisenstein, e propõe que não é entre os planos, mas entre os fotogramas que ocorre a articulação fílmica. O plano, de modo estrito, é nada mais que uma sucessão de fotogramas que se assemelham entre si – isto é, onde as “colisões” são dissolvidas dentro de uma margem contínua. Assim como o movimento, o plano é um caso especial. O trabalho de criação no cinema, se levado às últimas consequências neste sistema, deve ocorrer na escolha dos fotogramas, e na ordem de sua disposição. Em busca de forma e ritmo O primeiro dos filmes de Kubelka em que este pensamento é aplicado diretamente é Adebar (1957). O contexto da produção é característico de sua obra: tendo recebido como encomenda a filmagem de dançarinos no cabaré homônimo, Kubelka decidiu seguir não as exigências comerciais, mas suas próprias diretrizes estéticas. Após acumular o material filmado – pessoas dançando, sob diferentes ângulos e distâncias – ele buscou um princípio de organização que pudesse superar o mero registro da ocasião. Ele descreve algumas de suas preocupações à época: Adebar foi meu segundo filme. Até então eu só havia visto, fora de minha visão pessoal, o cinema comercial tradicional [...]; e eu tinha uma profunda insatisfação com o propósito do cinema. Eu sentia falta de uma forma satisfatória. Nessa época eu já tinha a impressão de que o cinema poderia me dar qualidades e belezas que as outras artes eram capazes de alcançar. Eu vi quão bela era a arquitetura clássica; eu vi templos gregos e a arquitetura renascentista. Eu havia estudado música e sabia sobre as estruturas rítmicas na música e sobre o fantástico deleite temporal com o qual a música pode lhe capturar. Mas no cinema não havia nada! Quando se considera o tempo em que o filme ocorre (um filme normal, narrativo, bom ou ruim), é um tempo que não possui forma; Lucas Baptista 219 é muito amorfo. Então eu quis criar algo que pudesse estabelecer para meus olhos um tempo harmônico, como a música estabelece um tempo harmônico, rítmico, medido para o ouvido. (Kubelka, 1987: 144-145). O argumento em questão é direcionado contra a crença na fotografia e no valor da “representação do mundo real”, seja pela fidelidade de reprodução visual, seja pela reconstituição dos movimentos. Kubelka defende que, quando uma arte busca apenas espelhar a natureza, ela não possui valor. Seguir absolutamente a natureza, por sua ótica, é estar desprovido de articulação. A natureza é vista aqui como completamente amorfa, aberta a todo tipo de interpretação, mostrando e possibilitando algo diferente para cada pessoa. Se o objetivo é a articulação e exposição de uma forma através dos materiais da arte, a noção de representação fiel à natureza é inútil. Para contornar este problema, ele decide, em Adebar, “destilar do visual e amorfo mundo externo algo harmônico” (Kubelka, 1987: 145). Deixando de lado a fidelidade fotográfica à realidade, ele se volta ao movimento e às formas gerais da imagem, não aos seus detalhes. Todos os planos consistem de pessoas dançando, mas a fotografia tem seu contraste elevado, de modo que vemos apenas silhuetas sobre um fundo neutro. Na faixa sonora há uma música tribal, com um motivo repetitivo tocado por uma flauta. P. Adams Sitney descreve a lógica estrutural do filme: O início e o final de cada movimento é uma imagem estática. Cada corte passa de uma imagem positiva para uma negativa ou vice-versa. Assim, uma imagem estática positiva se torna um movimento negativo que se torna um movimento positivo... Existem 16 planos diferentes, quatro movimentos diferentes, neste filme de um minuto e meio. Cada movimento é repetido pelo menos uma vez, mas nada acontece como antes. Uma comparação pode ser feita com as estruturais musicais de Anton Webern. (Sitney, 1964: 49). A comparação com a música é significativa por ser uma arte onde a noção de harmonia alcançada por elementos claramente definidos é parte fundadora da disciplina estética. Assim como o compositor musical opera com a 220 Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka redução de todas as possibilidades sonoras a um universo de doze intervalos, Kubelka busca reduzir seu universo visual a certo número de eventos, que ele então poderá catalogar e organizar. É este o tipo de pensamento que ele diz faltar ao cinema, e que possibilitariam lei e ordem: “A composição é justamente uma multiplicidade de tais regras que são ali dispostas e que se relacionam umas com as outras de uma forma que tenham de se relacionar, seguindo leis derivadas do meio de expressão” (Adriano & Vorobow, 2002: 22). Kubelka apresenta em Adebar apenas o contorno das ações, e rebate cada uma delas com seu inverso, seja em escala, em cor, em direção, ou movimento. O término do filme coincide com o final das variações: não há qualquer progressão ou desenvolvimento. Se o filme descreve alguma coisa, é algo como a estrutura abstrata que possibilitou a organização do material. É nesse sentido que sua concepção de harmonia se torna mais clara, tendo como referência as proporções pitagóricas da música clássica ocidental e das arquiteturas grega e renascentista, onde as medidas estão implicadas diretamente no sentido geral. É também o que o leva a chamar seus primeiros filmes de “cinema métrico”. Lei e ordem são as bases da criação O segundo filme métrico de Kubelka é Schwechater (1958). Assim como Adebar, Schwechater surgiu através de uma encomenda: um comercial de cerveja em que o cineasta foi obrigado a filmar determinadas cenas. As alterações no material são o que constituem a verdadeira composição do filme, e é sintomático que elas não tenham qualquer relação direta com as intenções iniciais do trabalho. O que era de seu interesse, novamente, não era o conteúdo das imagens, mas a “energia visual” que poderia criar a partir delas. Não o movimento ou a realidade, mas a forma, o processo que atravessa o material fílmico e que lhe dá um sentido particular. O argumento de Kubelka retoma a batalha entre o meio de expressão e a realidade, onde a realidade é vista como excessivamente complexa e desarticulada. É neste ponto que o meio de expressão deve ser capaz de superá-la; Lucas Baptista 221 não pela beleza ou pela vitalidade da reprodução visual – nisso ele diz que há apenas perda na imagem fílmica –, mas por uma espécie de filtro, por uma estrutura. Este filtro advém do que Kubelka acredita ser a verdadeira força do cinema: entregar informações a cada 1/24 de segundo. Novamente o fotograma é eleito como a unidade básica, na qual o cineasta deve se concentrar. A estrutura sobreposta por ele ao material de Schwechater é descrita como sendo semelhante à de certos eventos naturais. Um exemplo seria um riacho: ao observar um riacho, pode-se ver bolhas d’água, feixes de luz, formas que parecem esculpidas, mas que logo se dissolvem para nunca mais retornar. Outro exemplo seria uma nuvem: ao observar uma nuvem, percebe-se que ela tem uma forma semelhante à de um cavalo; mas ela logo se altera, e passa a assemelhar-se a uma árvore, ou uma casa. Outros exemplos, como uma chama, ou o vento que balança uma árvore, mostram que sempre ocorrem mudanças na natureza, mas que tais mudanças são estruturadas de maneira exata. O riacho é regido por leis; quando uma bolha surge e desaparece, existem fatores envolvidos, como a velocidade da água, o leito do rio e a direção do vento. São princípios análogos que Kubelka diz ter incluído em Schwechater: Eu tive como material básico um filme de dois minutos. Então eu o dispersei em vários elementos. Um minuto era a duração que eles queriam. Isto é exatamente 1440 fotogramas. Havia dois sons, um agudo e um grave. Na faixa sonora pode-se ver dois tipos de ondas exatamente regulares, senóides. A regra geral é a alternância entre imagem e não-imagem: um frame preto, um frame com imagem; dois fotogramas pretos, dois fotogramas com imagem; quatro fotogramas pretos, quatro fotogramas com imagens, etc; um-um, dois-dois, quatro-quatro, oito-oito, dezesseis-dezesseis, trinta e dois-trinta e dois, etc. Quando se tem trinta e dois fotogramas pretos, há um ponto de descanso. (Kubelka, 1987: 154). O controle dos fotogramas em Schwechater atinge um novo estágio. Se em Adebar a filmagem era recombinada para abstrair a representação tradicional, Schwechater abstrai o próprio movimento que caracteriza o plano. 222 Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka Se visto como uma série de fotogramas dispostos linearmente, as proporções descritas por Kubelka tornam-se mais reveladoras. Há um crescendo de intervalos, até que se atinge o final do ciclo com o “ponto de descanso” representado pelos fotogramas pretos e pelo silêncio. O conteúdo dos fotogramas – uma mão segurando uma caneca, mulheres bebendo cerveja – é dificilmente perceptível, mas a densidade que resulta do surgimento e da desaparição dos fotogramas, breves como estes sejam, é o que dá o caráter rítmico ao filme. Em Schwechater, pode-se perceber o quanto o controle material de Kubelka se dá no plano temporal, priorizando as coordenadas rítmicas. Uma estrutura de luz e som, escuridão e silêncio O terceiro filme métrico de Kubelka, e seu passo mais extremo em direção à abstração visual, é Arnulf Rainer (1960). Assim como nos dois filmes anteriores, a origem está inscrita no título. O filme originalmente seria um documentário sobre o pintor austríaco Arnulf Rainer, também responsável por financiar a obra. Após as filmagens, Kubelka mais uma vez buscou modos de estruturar o material, mas agora não mais preso ao que havia filmado: ele decidiu utilizar, em vez de imagens fotográficas, fotogramas completamente brancos e pretos. Dois elementos sonoros foram somados à sua escala: silêncio e ruído branco (a soma de todas as frequências sonoras), de modo a haver certa equivalência entre os elementos visuais e sonoros. O aspecto mecânico do dispositivo cinematográfico, representado mais diretamente pela cintilação da projeção, é tornado um aliado na composição deste que é amplamente considerado o pioneiro dos flicker films. Arnulf Rainer é uma etapa lógica da concepção que Kubelka desenvolveu em Adebar e Schwechater: o cinema como uma arte essencialmente rítmica e harmônica. O ritmo como o controle das medidas temporais, e a harmonia como o manuseio preciso dos elementos sob regras recorrentes – ambos são reduzidos aqui à mais pura materialidade luminosa e sonora. Se Adebar renuncia à organização linear dos planos, e se Schwechater renuncia à ilusão do movimento, Arnulf Rainer renuncia completamente à imagem. Partindo Lucas Baptista 223 da película projetada, Arnulf Rainer atinge o que parece ser o grau zero da criação cinematográfica como interpretada por Kubelka, a ponto de ele afirmar que “aconselharia todo jovem cineasta a fazer um filme como este”, para desenvolver “uma noção de ritmo, e uma apreciação por luz e som” (Sitney, 1964: 50). Arnulf Rainer parte, então, de quatro fitas de filme: uma completamente branca, outra completamente preta, outra completamente coberta por ruído branco, e outra por silêncio. A composição é caracterizada pelos modos com que Kubelka efetua as diferentes combinações entre elas. O processo da criação envolveu o que ele chamou de a descoberta das “leis naturais” do material: testes em looping de certos padrões, de modo a conhecer cada um deles, percebendo suas particularidades. Uma possibilidade seria a alternância entre um fotograma preto e um fotograma branco, o que seria o elemento “mais forte”, com maior contraste e tensão; mas também são possíveis combinações de dois fotogramas pretos e dois brancos, três pretos e dois brancos, etc. As mesmas possibilidades se encontram na relação entre som e imagem: pode-se repetir os fotogramas pretos enquanto o ruído e o silêncio se alternam rapidamente; também se pode alternar rapidamente os fotogramas preto e branco enquanto o som é mantido; etc. Como diferentes intervalos musicais, tais padrões levam a sensações específicas, de modo que a organização dos padrões no filme equivale à organização de sensações – sensações que já se encontram potencialmente no material. A ordem possui um equivalente também em uma notação desenvolvida por Kubelka, onde cada elemento tem sua respectiva descrição, de modo que a obra pode ser perfeitamente reconstruída caso as cópias deixem de existir. Dentro deste universo, existem dois limites, um máximo (a alternância constante entre preto e branco, ruído e silêncio) e um mínimo de intensidade (o que seria uma série contínua de fotogramas negros e silêncio). Partindo da definição de Kubelka, Arnulf Rainer toca nos limites materiais do cinema. O filme contém os pontos mais extremos da escala de luminosidade e ruí- 224 Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka do, bem como os pontos mais extremos das relações entre imagem e som. Entre o fotograma branco e o fotograma preto, entre o ruído branco e o silêncio, estão todos os filmes possíveis. A medida da metáfora Em Unsere Afrikareise (1966), Kubelka se viu novamente com um filme de encomenda, desta vez o registro de uma viagem à África por comerciantes austríacos. Assim como nos outros filmes, a encomenda serviu apenas como o ponto de partida para que o material fosse gerado e, posteriormente, à parte das intenções iniciais, Kubelka pudesse organizá-lo conforme seus objetivos. Mas, se nos filmes anteriores o interesse pela imagem fotográfica era cada vez menor, em Afrikareise há uma aceitação da imagem, e mesmo da imagem contínua, realista, em movimento, como um elemento a ser articulado. Kubelka dedicou-se durante meses à construção de um “vocabulário” derivado do filme, um arquivo com todos os elementos existentes. Três horas de imagens foram desmembradas em planos, e cada um dos planos foi catalogado e indexado por seus parâmetros básicos. O mesmo foi realizado com as 14 horas de som, transcritas foneticamente em um caderno. Após um mergulho no material, Kubelka pôde então memorizar os elementos e imaginar suas combinações possíveis. Ele enfatiza novamente a relação com a música e a arquitetura ao dizer que a estrutura fílmica deve ser incorporada mentalmente, como se memoriza uma música ou as dimensões e proporções de um edifício. A lógica por trás deste procedimento é a mesma da ordem de sensações presente em Arnulf Rainer: se cada evento cria uma reação no espectador, por mais simples que esta seja, a combinação dos elementos pode criar complexos de sensação e emoção, e a organização do filme deve ser uma correspondência estrutural da trajetória desejada, a movimentação do “mecanismo emocional”. (Mekas, 2000: 286-298). Uma operação crucial na construção dessa estrutura é o encontro entre a imagem e o som: o momento em que ambos parecem ocorrer em sincronia. Kubelka comenta uma ocasião que presenciou na África, em que as pes- Lucas Baptista 225 soas de um vilarejo estavam reunidas numa planície para um evento que envolvia uma série de danças tradicionais. Quando a tarde chegou ao fim, todos pararam, observando o pôr do sol. Enquanto a imensa bola de fogo se aproximava da linha do horizonte, todos permaneceram estáticos, em silêncio, até o momento em que o sol tocou o horizonte, ao que o chefe do vilarejo bateu pela primeira vez em seu instrumento de percussão. Kubelka descreve este como um momento de êxtase, algo que lhe pareceu tão antigo quanto a humanidade. O motivo da sincronia já se fazia presente em Arnulf Rainer, quando a equivalência entre luz e som era uma das possibilidades. Da mesma forma, em Afrikareise o encontro entre os dois sentidos, entre o olho e o ouvido, tem importância fundamental. A natureza se apresenta unicamente através de eventos sincrônicos: quando o leão ataca, ele ruge; quando ele caminha, seus passos são ouvidos. Mas a grandeza do cinema, para Kubelka, não é que se pode repetir a naturalidade da imagem e do som, mas que se pode separá-los e reuni-los. A confirmação do som pela imagem, ou da imagem pelo som, é apenas um caso especial; Afrikareise lida com ele pontualmente, mas também com outros casos, como a imagem que precede um som, o som que precede a imagem, um elemento que contradiz o outro, ou que parece fazer um comentário irônico. A dedicação de Kubelka às leis estruturais o leva a considerar que toda imagem deve necessariamente ser pensada em relação às imagens anteriores e posteriores; o mesmo é válido para o som, pois ambos são tratados com a mesma importância. O resultado é uma escala que vai da independência total dos sentidos à sua fusão sincrônica. A realidade representada em Unsere Afrikareise parece trazer uma dimensão de sentido ausente nos filmes métricos, o que leva Kubelka a considerá-lo um de seus filmes “metafóricos”. As “sensações ordenadas” em Arnulf Rainer não possuíam outro equivalente que não os impulsos cognitivos causados pelas freqüências rítmicas, sônicas e luminosas; mas cada evento e cada corte em Afrikareise atravessam um contexto cultural e lingüístico que inevitavelmente reverbera sobre a estrutura da composição. É reveladora a análise feita por Kubelka no documentário de Martina Kudlacek (Fragments 226 Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka of Kubelka, 2012), onde o cineasta se põe a rever o filme repetidas vezes, indicando e comentando cada aspecto nos mínimos detalhes. Ele aponta como o movimento de cabeça feito por uma jovem é interrompido por um corte, mas o movimento do plano seguinte (um homem que sobe num camelo) completa o anterior; como as palavras são isoladas e dispostas sobre ações que parecem ser aleatórias, até que um gesto repentinamente justifica o som pelo contraste. Em cada uma dessas ocasiões os comentários sugerem que a montagem atingiu um patamar mais elevado, como se não houvesse qualquer desperdício ou gesto fora do controle criativo. Kubelka parece se colocar como o espectador ideal de suas obras, e é nesse sentido que ele defende a revisão e o estudo dos filmes, como se fossem partituras, e como se a extrema dedicação e o rigor composicional devessem encontrar um correspondente no espectador. *** Nas décadas seguintes, Kubelka produziu apenas três filmes: Pause! (1977), Dichtung und Wahrheit (2003) e Antiphon (2012), este último um complemento a Arnulf Rainer, onde luz e sombra, som e silêncio têm suas posições invertidas. Ainda que tais filmes (assim como seu primeiro, Mosaik im Vertrauen, de 1955) também exibam suas preocupações usuais, são os três filmes métricos e Afrikareise que Kubelka retoma e destaca constantemente. Nesse período, ele se dedicou a palestras que integram seu pensamento sobre o cinema a uma concepção mais ampla da história da arte. Exemplos envolvendo artefatos primitivos, e principalmente a noção da gastronomia como uma das artes são recorrentes em suas apresentações. Sua interpretação da gastronomia, ou o que ele chama de “metáfora comestível”, retoma algumas de suas preocupações como cineasta.2 O registro mais extenso dessas atividades se encontra no já citado documentário Fragments of Kubelka que, ao contrário da concisão característica de seu tema, possui mais de quatro horas de duração, sendo um acúmulo 2.  Em um texto publicado na revista Film Culture, Kubelka comenta as diferenças entre os tipos de massas italianas como verdadeiras composições, numa espécie de morfologia gastronômica. Ver “Pastario or Atlas of Italian Pastas”, Film Culture, n. 77 (outono de 1998), pp. 1-6. Lucas Baptista 227 de entrevistas, diálogos, análises e trechos de palestras, buscando delinear ao menos o perímetro das preocupações de Kubelka.3 Não apenas os filmes servem como objetos e pontos de partida, mas também suas refeições e coleções de objetos; ainda assim, o que permanece constante é sua preocupação com os motivos expressos em sua obra fílmica. A figura do cineasta como alguém em constante reflexão sobre a arte, e cujos materiais parecem intercambiáveis para seus propósitos, é sugerida também em Restoring ‘Entuziazm’ (Joerg Burger e Michael Loebenstein, 2005), em que Kubelka é mostrado em uma mesa de montagem, comentando seus critérios para a restauração do filme de Dziga Vertov – critérios praticamente idênticos àqueles utilizados na composição de seus filmes, em especial no que diz respeito às relações entre som e imagem. A cada exposição de suas intenções, o que se torna claro é que o ato de fazer um filme pode ser uma espécie de encarnação do pensamento. O cineasta, em suma, pensa por seus filmes: eles são a cristalização de uma consciência sobre a arte, através dos meios da arte. Uma consequência disso é que a descrição do processo criativo se torna análoga a uma investigação teórica sobre as possibilidades da arte. A retórica típica das vanguardas pode inicialmente sugerir que as ideias de Kubelka valem apenas para seus próprios filmes; mas o caráter teórico de suas reflexões é enfatizado caso elas sejam vistas em relação ao pensamento de outros cineastas, que buscaram resultados completamente diversos, porém atravessaram alguns dos mesmos princípios estéticos. Pensemos na experimentação dos cineastas soviéticos com a montagem, como o “efeito Kuleshov”, uma espécie de teorema criador de sentido, ou as dimensões rítmicas e intelectuais exploradas por Eisenstein: a generalização efetuada por Kubelka da concepção de Eisenstein parece ocorrer também em sua redução dos experimentos de Kuleshov ao solo cognitivo, com o flicker film. Pensemos também em Robert Bresson, que argumentou por um cinema em que as relações entre sons e 3.   Outros registros podem ser encontrados nos seguintes endereços online: Peter Kubelka at Drawing Room (2012), em https://vimeo.com/45572792; Metric Cinema and “Monument Film” (2013), em https:// vimeo.com/70027329 228 Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka imagens seriam a principal fonte de sentido4; um cinema narrativo, voltado para adaptações literárias, mas que ainda assim parece se basear em estruturas de montagem e no constante contraponto entre o visual e o sonoro.5 Nesses casos, como em cineastas que estiveram mais próximos de Kubelka (Stan Brakhage, Hollis Frampton, Paul Sharits), há um interesse comum pelo funcionamento da máquina cinematográfica, e pelos resultados abertos por uma negação do realismo naturalista ou da montagem invisível. A disposição pedagógica de Kubelka é encontrada mais explicitamente em suas palestras e entrevistas, mas o que encontramos em sua obra fílmica é o mesmo caráter inquisitivo, sobretudo no modo como ele aborda cada oportunidade como um verdadeiro problema composicional, algo a ser resolvido ou sintetizado pela investigação empírica do material e pela dedução conceitual dos propósitos estéticos. Acompanhar o pensamento desenvolvido em seu discurso é como acompanhar uma investigação científica, a elaboração de uma terminologia e de um método para recriar o processo interno que gerou uma série de objetos fílmicos. Seus filmes são, de fato, objetos – foram feitos, tomaram esforço físico, e são inclusive expostos em instalações para que suas proporções sejam visíveis além da linearidade da projeção. Não é casual que o cineasta se refira a suas escolhas como “descobertas”, ou que diga ter descoberto “leis próprias do material fílmico”. Os objetos deixados por ele pelo caminho, altamente elaborados e peculiares, são a prova de que alguém interferiu no campo de possibilidades da matéria do cinema. Seus resultados, vistos ou não vistos, são parte do cinema: são literalmente fatos cinematográficos. Kubelka, de uma só vez, cria e reflete sobre suas próprias obras, e o horizonte de sua carreira parece ser o ponto de encontro de dois impulsos: o ponto em que a prática e a teoria encontram-se em sintonia. 4.   Ver, por exemplo, algumas das observações de Bresson em suas Notas sobre o cinematógrafo (São Paulo: Iluminuras, 2005) que possuem curiosas semelhanças com o pensamento de Kubelka: “Filme de cinematógrafo em que as imagens, como as palavras do dicionário, somente têm força e valor pela sua posição e relação” (p. 22); “Imagem e som não devem se ajudar mutuamente, mas que eles trabalhem cada um à sua vez numa espécie de revezamento” (p. 52); “Submeter o conteúdo à forma e o sentido aos ritmos” (p. 57). (Tradução de Evaldo Mocarzel e Brigitte Riberolle.) 5.  Para uma interpretação do cinema de Bresson e sua relação com a montagem “geométrica” de Kubelka, ver P. Adams Sitney, “The Rhetoric of Robert Bresson”, in The essential cinema (Nova York: Anthology Film Archives, 1975). Lucas Baptista 229 Referências bibliográficas Adriano, C. & Vorobow, B. (2002). Peter Kubelka: A essência do cinema. São Paulo: Babushka. Kubelka, P. (1998). Pastario or Atlas of Italian Pastas. In: Film Culture, n. 77, outono. ____ (1987). The Theory of Metrical Film. In: Sitney, P. A. (Ed.), The Avant‑Garde Film: A reader of theory and criticism. New York: Anthology Film Archives. Mekas, J. (2000). Interview with Peter Kubelka. In: Sitney, P. A. (Ed.), Film Culture Reader. Nova York: Cooper Square. Sitney, P. A. (1964). Kubelka Concrete. In: Film Culture, n. 34, outono: 49. Filmografia Mosaik im Vertrauen (1955) – 35mm. Adebar (1957) – 35mm. Schwechater (1958) – 35mm. Arnulf Rainer (1960) – 35mm. Unsere Afrikareise (1966) – 16mm. Pause! (1977) – 16mm. Dichtung und Wahreit (2003) – 35mm. Antiphon (2012) – 35mm. Outros Restoring ‘Entuziazm’ (2005), de Joerg Burger e Michael Loebenstein. Fragments of Kubelka (2012), de Martina Kudlacek. 230 Matéria e medida: A concretização do pensamento em Peter Kubelka Resumos / Abstracts DA MONTAGEM NUCLEAR AO KYNORAMA: EXPERIÊNCIAS DE TRANSBORDAMENTO COM GLAUBER ROCHA Érico Oliveira de Araújo Lima Resumo: Glauber Rocha deixou em alguns de seus filmes e de seus escritos algumas pistas do que seria uma montagem nuclear, como operação capaz de estilhaçar a estrutura do filme e convocar o espectador a percorrer uma obra por múltiplas entradas. Meu intuito, neste texto, é seguir algumas dessas trilhas deixadas pelo realizador, em diálogo também com o montador Ricardo Miranda, que trabalhou com o diretor em A idade da Terra (1980). Esse filme será, com efeito, o material privilegiado para pensar a possibilidade de uma teoria singular do cineasta Glauber Rocha, exposta, a um só tempo, de modo tão concreto nas formas fílmicas e de modo intuitivo e pouco sistemático em outras fontes. Essa leitura se complementa ainda pela tentativa de cotejar uma teoria da montagem nuclear ao projeto de um Kynorama, sustentado por Glauber no final de sua vida: um cinema integral e espacial, do holograma e do transbordamento da tela. Palavras-chave: montagem nuclear; Kynorama; foguete; caleidoscópio. Abstract: Glauber Rocha left in some of his films and texts some clues of what he would call a nuclear montage, an operation able to shatter the structure of a film and invite the spectator to experience the work through several ways. My goal is to follow some of those clues and, also, put them in dialogue with editor Ricardo Miranda, who worked with Rocha in A idade da Terra (1980). This film will be the main source to think the possibility of the existence of a peculiar theory by filmmaker Glauber Rocha, presented both in the materiality of his films in such a concrete way as well as in an intuitive and unsystematic way in other formats. This objective of mine is complemented with the intention of establishing a relationship between nuclear montage and the project of Kynorama, thought by Glauber at the end of his life: a spatial and integral cinema, made of holograms, exceeding the screen itself. Keywords: nuclear montage; Kynorama; rocket; kaleidoscope. SYLVIO BACK E O CINEMA “DESIDEOLOGIZADO” Rosane Kaminski Resumo: As ideias do cineasta brasileiro Sylvio Back expressam-se, ao menos, de três maneiras: a) por meio da crítica cinematográfica; b) por meio de filmes; c) por meio do discurso acerca dos próprios filmes e dos propósitos do fazer cinematográfico. Neste texto, discute-se as variações do discurso de Back sobre seus filmes, a maneira como buscou situá-los frente à cinematografia brasileira, e o seu pensamento acerca de um possível “cinema desideologizado”. Palavras-chave: Sylvio Back; cinema brasileiro; “cinema desideologizado”. Abstract: Brazilian filmmaker Sylvio Back expresses his ideas in at least in three ways: a) through his film criticism; b) through his films; c) through discourses about his own films and about the point of movie-making. In this text, I will discuss the changes in Back’s discourses about his own films, the way he sought to situate them before the Brazilian cinema, and his thoughts about a possible “unideologized cinema”. Keywords: Sylvio Back; Brazilian cinema; “unideologized cinema”. 232 O CINEMATÓGRAFO DE EUGÈNE GREEN Pedro de Andrade Lima Faissol Resumo: O conjunto de filmes que integra a obra do cineasta Eugène Green reflete um pensamento muito coeso. Seus livros dedicados ao cinema ajudam a delimitar a gênese do seu pensamento. Segundo Green, a vocação do cinema – ou, como diz, do cinematógrafo – consiste em captar reflexos do Inteligível a partir da fidelidade à matéria filmada. Nesse artigo, pretende‑se explicitar as bases teológicas e as implicações estéticas de sua reflexão cinematográfica. Palavras-chave: cinematógrafo; Eugène Green; teologia; estética; teoria. Abstract: Eugène Green’s filmography reflects a very cohesive thinking. His books on the nature of cinema help highlight the genesis of his thought. The purpose of cinema – or the cinematograph –, according to his view, is meant to capture reflections of the Intelligible after a strict adherence with the matter. Throughout this text, I aim to explain both the theological basis and the aesthetic implications of his cinematic thought. Keywords: cinematograph; Eugène Green; theology; aesthetics; theory. DO CINEMA AOS FILMES: A SEMIOLOGIA GERAL DA REALIDADE DE PIER PAOLO PASOLINI Marcelo Carvalho Resumo: O intuito deste trabalho é mapear algumas das principais propostas de Pier Paolo Pasolini sobre o cinema expressas em Empirismo Herege: a noção de “realidade”, a langue cinematográfica e a parole fílmica, a teoria do plano-sequência, a semiologia geral da realidade, entre outras. Nosso objetivo é o de recompor a argumentação pasoliniana em um percurso didático, tendo em vista a evolução de suas ideias a cada novo texto. 233 Palavras-chave: Cinema; Pier Paolo Pasolini; Semiologia geral da realidade; Langue/Cinema; Parole/Filme; plano-sequência. Abstract: This text aims to map some of Pier Paolo Pasolini’s major meditations concerning cinema in Heretical Empiricism, namely: the notion of “reality”; cinematic langue and filmic parole; long take theory; general Semiotics of reality, and so on. My purpose is to revisit the Pasolinian debate, through a didactic path, taking account of the evolution of the ideas contained in each text. Keywords: cinema; Pier Paolo Pasolini; general Semiotics of reality; Cinema/ Langue; Film/Parole; long take. SÍNTESE E FRAGMENTO: OS DESENHOS DE S. M. EISENSTEIN Fabiola Bastos Notari Resumo: Serguêi M. Eisenstein, cineasta russo-soviético reconhecido internacionalmente por seus filmes – finalizados, censurados ou inacabados. Serguêi M. Eisenstein, pesquisador e professor, na teoria da montagem se consagrou como um dos maiores teóricos da linguagem cinematográfica. Eisenstein, admirador das artes com apetite insaciável por informações e experiências, enfim, desenhista. Nesse texto, busca-se refletir sobre a produção gráfica eisensteiniana – desenhos, croquis, esboços, anotações e story-boards – introduzindo o leitor às possíveis relações existentes entre essa produção e a linguagem cinematográfica. Palavras-chave: Serguêi. M. Eisenstein; desenho; teoria da montagem; Teoria dos Cineastas. Abstract: The Soviet filmmaker Sergei M. Eisenstein was internationally renowned for his films – finished, censored and unfinished. Sergei M. Eisenstein, in the capacity of researcher and teacher of the montage theory was enshrined as one of the greatest theoreticians of cinematic language. In 234 addition, “Eisenstein”, an admirer of the arts with an insatiable appetite for information and experience, was, ultimately, a designer. In this text, I seek to explore Eisenstein’s graphic production - drawings, sketches, notes and story-boards - introducing the reader to the possible relationship between this kind of creative production and film language. Keywords: Serguei M. Eisenstein; drawing; montage theory; Filmmakers’ Theory. CONSTRUIR O CINEMA A PARTIR DAS SUAS MARGENS – UMA ANÁLISE SOBRE O MOVIE JOURNAL, DE JONAS MEKAS Rafael Valles Resumo: Neste artigo busca-se analisar fragmentos da coluna Movie Journal, escrita por Jonas Mekas e publicada no jornal Village Voice, entre os anos de 1958 e 1971. O artigo assume como objetivo refletir sobre o quanto esses textos contribuíram para a construção das convicções cinematográficas de Mekas e como, a partir do Movie Journal, o cineasta se insere num contexto de afirmação do cinema underground americano nos anos 1960. Palavras-chave: cinema; cinema underground; Jonas Mekas. Abstract: This article intends to analyze the column Movie Journal fragments, written by Jonas Mekas and published in the Village Voice newspaper, between 1958 and 1971. The article intends to reflect on how these texts contributed to the construction of cinematographic convictions of Mekas and how, from the Movie Journal, the filmmaker is part of a statement in the American underground cinema context of the 1960s. Keywords: cinema; underground cinema; Jonas Mekas. 235 DIREÇÃO DE ELENCO, ATUAÇÃO E CONSCIÊNCIA FÍLMICA DOS ATORES: AS REFLEXÕES DE VSEVOLOD I. PUDOVKIN Riccardo Migliore Resumo: Apresentamos as discussões do cineasta V.I. Pudovkin, autor do livro Film technique and film acting (técnica cinematográfica e atuação fílmica), do qual consideramos principalmente a segunda parte, referente à atuação cinematográfica. A relevância do texto de Pudovkin deve-se ao fato deste cineasta ter acompanhado a transição do teatro ao cinema e, ainda, do cinema mudo ao sonoro, tendo, portanto, como realçar as diferenças entre os dois tipos de atuação. Segundo o cineasta, o ator de cinema deve ter plena consciência das especificidades técnicas do meio fílmico, de maneira a desempenhar o seu papel da melhor forma. Por outro lado, o diretor deve encontrar maneiras para auxiliar o ator a interiorizar e interpretar a “imagem” do filme de maneira integral. É a partir desta dupla perspectiva que discutimos algumas das mais importantes ideias deste cineasta. Palavras-chave: cinema; ficção; Pudovkin; atuação; direção. Abstract: I present the discussions of the filmmaker V.I. Pudovkin, author of the book Film technique and film acting, of which I consider mainly the second part, related to the cinematographic acting. The relevance of Pudovkin’s text is due to the fact that this filmmaker has witnessed the transition from both theater to cinema, and from silent to sound cinema, therefore highlighted the differences between the two types of acting. According to the filmmaker, the film actor must be fully aware of the technical specificities of the film medium in order to play his/her role the best way. On the other hand, the director must find ways to help the actor internalize and interpret the “image” of the film as a whole. It is from this double perspective that I discuss some of the most important ideas of this filmmaker. Keywords: cinema; fiction; Pudovkin; acting; directing. 236 A JUSTA DISTÂNCIA ONDE AS PESSOAS SE AMAM OU SE ODEIAM: A FILMAGEM COMO ATO ERÓTICO NO DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO Cláudio Bezerra Resumo: Este artigo discute o encontro de filmagem como ato erótico no documentário do cineasta brasileiro, Eduardo Coutinho. De acordo com os caminhos metodológicos da Teoria dos Cineastas, são adotadas, como fontes de pesquisa e argumentação, as entrevistas concedidas por Coutinho em periódicos, livros e filmes, além dos seus próprios documentários. Palavras-chave: Eduardo Coutinho; documentário; erotismo; cinema brasileiro. Abstract: I discuss the encounter that occurs during the shooting as an erotic act in the documentary of the Brazilian filmmaker Eduardo Coutinho. According to the methodological paths of the Filmmakers’ Theory, Coutinho’s interviews in periodicals, books, films and his own documentaries are the sources of research and argumentation. Keywords: Eduardo Coutinho; documentary; eroticism; Brazilian cinema. O PROCESSO CRIATIVO DE WIM WENDERS: O ESPAÇO DOCUMENTAL À PROCURA DO TEMPO FICCIONAL Cristiane Wosniak Resumo: Neste trabalho pretendo analisar algumas questões relacionadas à forma de filmar do cineasta Wim Wenders. Estudar seu processo criativo à luz de obras como Nick’s Film – lightning over water (1980) e Pina (2011) tem por objetivo traçar alguns pontos recorrentes em sua filmografia documental de homenagem. Palavras-chave: documentário; teoria; processo criativo; Wim Wenders. 237 Abstract: In this text I intend to examine some issues related to Wim Wender´s shooting style. Studying his creative process in Nick’s Film – Lightning over water (1980) and Pina (2011) aims to draw some recurring points in his homage-documentary filmography. Keywords: film documentary; theory; creative process; Wim Wenders. LOS PRINCIPIOS CINEMATOGRÁFICOS DE ANDREI TARKOVSKI EN SU MEDIOMETRAJE DE GRADUACIÓN EL VIOLÍN Y LA APISONADORA (1960) José Seoane Riveira Resumen: El violín y la apisonadora (1960), mediometraje de graduación de Andrei Tarkovski para la Escuela de Cinematografía de Moscú (VGIK) en la que se formó como cineasta, revela muchas pautas estéticas a partir de las que más tarde Tarkovski construiría su pensamiento explicado, en su mayor parte, en el ensayo Esculpir en el tiempo. Este artículo se aproxima a algunos de los principios configuradores de esa poética a partir el estudio del guion literario del filme y del análisis de su secuencia central. Palabras clave: Andrei Tarkovski; Teoría de los cineastas; El violín y la apisonadora, Esculpir en el tiempo; estética cinematográfica. Abstract: The violin and the steamroller (1960), the film that Andrei Tarkovsky shot for his graduation at the Moscow School of Cinematography (VGIK) where he studied filmmaking, reveals many features from which Tarkovsky would build later his thought which is explained, mostly, in his famous essay Sculpting in Time. I address some of his poetic principles studying the screenplay of this film and analyzing its central scene. Keywords: Andrei Tarkovsky; Filmmakers’ Theory; The violin and the steamroller; Sculpting in time; cinematographic aesthetics. 238 MATÉRIA E MEDIDA: O PENSAMENTO CONCRETIZADO DE PETER KUBELKA Lucas Baptista Resumo: Este artigo busca apresentar as reflexões do cineasta austríaco Peter Kubelka, seus argumentos e suas aspirações, principalmente através da relação estabelecida com suas obras. O desenvolvimento da filmografia de Kubelka e a gradativa evolução de suas ideias são considerados aqui como necessariamente complementares: os filmes como cristalizações de uma consciência sobre a arte, através dos meios da arte. Palavras-chave: Peter Kubelka; composição fílmica; cinema experimental; teoria de cinema. Abstract: The purpose of this article is to present some of the reflections made by Peter Kubelka, his arguments and aspirations, establishing relations with the films themselves. The development of Kubelka’s work and the gradual evolution of his ideas are considered here to be of a complementary nature: the films as crystallizations of a consciousness projected on the artform, through its own means. Keywords: Peter Kubelka; film composition; avant-garde film; film theory. 239 Autores Érico Oliveira de Araújo Lima Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, mestre pelo Programa de PósGraduação em Comunicação da UFC, na linha de pesquisa de Fotografia e Audiovisual e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, na linha de Estudos do Cinema e do Audiovisual, em regime de cotutela com a Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Realizou a curadoria das Mostras: Dramaturgias do Comum no Cinema Contemporâneo (2015) e Adolfo Arrieta e o Deslumbre do Real (2016 – junto a Jorge Polo e Petrus de Bairros), ambas na Vila das Artes, em Fortaleza. Junto a Lara Vasconcelos e Roberta Félix, foi um dos curadores da exposição “Uma mostra sem qualidades”, no Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar, em Fortaleza. Desenvolve, atualmente, projeto de curso formativo intitulado “O cinema e a experiência da vizinhança”. E-mail: ericooal@gmail.com Rosane Kaminski Professora nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil. Doutora em História, tendo defendido a tese intitulada A poética da angústia: história e ficção no cinema de Sylvio Back, anos 1960-70. Graduada em Artes Visuais e pesquisadora na área de História e Imagens. Autora de diversos artigos e capítulos de livro sobre cinema brasileiro. Organizadora dos livros Imagem, narrativa e subversão (2016); Arte e Política no Brasil (2014); e História da Arte: encontros disciplinares (2013). E-mail: rosane.kaminski@gmail.com Pedro de Andrade Lima Faissol Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), sob orientação do Prof. Dr. Cristian da Silva Borges, com pesquisa intitulada O milagre filmado – problemas de representação no cinema. Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP com dissertação intitulada: A natureza eloquente – um estudo sobre o cinema de Eugène Green. Bolsista CAPES no Doutorado e no Mestrado. Bacharel em Comunicação Social (habilitação Cinema) pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Diretor e roteirista dos curtasmetragens Homem (2008), Coração (2009) e Reconciliados (2013). E-mail: pedrofaissol@gmail.com Marcelo Carvalho Doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com estágio doutoral na Université Sorbonne Nouvelle (Paris 3) sob a orientação do profº Philippe Dubois (cursos realizados com apoio de bolsas CNPq e Capes). Especialista em Arte e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e em Comunicação para o Terceiro Setor pela Universidade Cândido Mendes (Ucam-Rio). Bacharel em Cinema e em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor de capítulos, entre outros, nos livros Cinema/Deleuze e L’idiot du village mondial: les citoyens de la planète face à l’explosion des outils de communication. É co-diretor e co-roteirista do filme de média-metragem Chão de Estrelas. Tem artigos publicados em diversas revistas científicas de Comunicação como E-Compós (Compós-Brasília), Galáxia (PUC-SP), Em Questão (UFRGS), Contemporânea (UFBA), In Texto (UFRGS), Significação (USP), Razón y Palabra (México) etc. E-mail: marcelocarvalho.0001@yahoo.com.br 242 Teoria dos cineastas, Vol.1 - Ver, ouvir e ler os cineastas Fabiola Bastos Notari Artista visual e pesquisadora. Doutoranda em Literatura e Cultura Russa no Departamento de Letras Orientais (DLO/FFLCH/USP) com bolsa FAPESP, mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM/ASM) e bacharel em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Leciona História da Fotografia e Fotomontagem no curso superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, coordena o Grupo de Estudos Livros de artista, livros-objetos: entre vestígios e apagamentos na Casa Contemporânea e é uma das gestoras do Gravurar, espaço voltado às artes gráficas localizado em Santos-SP. http://lattes.cnpq.br/1828197136276074 E-mail: bionotari@gmail.com Rafael Valles Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS). Bolsista CAPES, orientando pela Profa. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind, tendo como projeto de tese intitulado Por uma poética da recordação: uma análise sobre as tensões entre história e memória nos filmes-diário de Jonas Mekas. Mestre em Cinema Documentário pela Fundación Universidad del Cine (FUC-Argentina). Atualmente é coordenador do Grupo de Estudos Cinesofia (PPGCOM-PUCRS) e integrante do Grupo de Pesquisa em Cinema, Audiovisual, Estética, Comunicação e Política Kinepoliticom (PPGCOMPUCRS/ CNPq). Documentarista, docente, escritor e pesquisador em cinema documentário, filme-ensaio, relatos de cunho autobiográfico e cinema latino-americano. Em 2014 publicou o livro Fotogramas de la memoria – Encuentros con José Martínez Suárez (INCAA/ENERC - Argentina). http:// lattes.cnpq.br/4162227794822787 E-mail: ra.valles@hotmail.com Autores 243 Riccardo Migliore Doutorando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal da Paraíba. Bolsista CAPES, orientando pelo Prof. Dr. Luiz Antonio Mousinho Magalhães, com o projeto de tese: Ghost Dog e a poética do outsider no cinema de Jim Jarmusch. Membro do Grupo de pesquisa em ficção e produção de sentido (PPGL-UFPB). Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba, foi orientado pelo Prof. Dr. Bertrand de Souza Lira. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Realizador audiovisual, com destaque para o prêmio de melhor média metragem na 6ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos na América do Sul. Entre as publicações acadêmicas, destaca-se o livro: Documentário e mise en scène: um estudo analítico sobre três clássicos do cinema não-ficcional (2015) pela editora NEA-Omniscriptum (Alemanha). http://lattes.cnpq.br/9234079277003814 E-mail: tanofb@gmail.com Cláudio Bezerra Doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professor de cinema e televisão da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), e coordena o Curso de Especialização em Estudos Cinematográficos na mesma instituição. Integra o grupo Mídia e Cultura Contemporânea da UNICAP, onde desenvolve pesquisas sobre documentário e história e estética audiovisual. Publicou os livros: A personagem no documentário de Eduardo Coutinho (Papirus, 2014), Tejucupapo – História, Teatro, Cinema (Bagaço, 2004), O documentário em Pernambuco no século XX (FASA, 2016) e Transgressão em 3 Atos: nos abismos do Vivencial (FCCR, 2011). Como documentarista, realizou, entre outros documentários, Alexina – Memórias de um Exílio (2012) e Onildo Almeida – Groove Man (2016); e foi assistente de direção de Eduardo Coutinho em A Família de Elizabeth Teixeira (2014) e Sobreviventes de Galiléia (2014). E-mail: claudiobezerra05@gmail.com 244 Teoria dos cineastas, Vol.1 - Ver, ouvir e ler os cineastas Cristiane Wosniak Doutora em Comunicação e Linguagens (linha: Estudos de Cinema e Audiovisual) pela UTP e Mestre pelo mesmo Programa (linha: Cibermídia e Meios Digitais). Especialista em Artes (FAP) e graduada em Bacharelado e Licenciatura em Dança (PUC-PR) e Ciências Biológicas (UFPR). É professora Adjunta na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) campus de Curitiba II/Faculdade de Artes do Paraná onde leciona para os cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança e Bacharelado em Cinema e Audiovisual. Líder do Grupo de Pesquisa CINECRIARE/Unespar/CNPq (Cinema - criação e reflexão) e membro do GP GRUDES/UTP/CNPq (Desdobramentos Simbólicos do Espaço Urbano em Narrativas Audiovisuais). Pesquisa temas relacionados à semiótica, cinema, audiovisualidades, videodança e convergências midiáticas. E-mail: cristiane_wosniak@yahoo.com.br José Seoane Riveira Diplomado en Magisterio por la Universidade da Coruña (2010), licenciado en Comunicación Audiovisual (2012) y Máster en Literatura Española e Hispanoamericana (2013) por la Universidad de Salamanca. Actualmente realiza su tesis doctoral bajo la dirección del Catedrático José Antonio Pérez Bowie en el área de Teoría de la Literatura y Literatura Comparada de la Universidad de Salamanca y becado por la Junta de Castilla y León. Además, produce trabajos de investigación en el campo del cine lírico, especialmente sobre las relaciones entre el cine y la literatura en la obra del director ruso Andrei Tarkovski. Ha sido colaborador habitual en los suplementos culturales Culturas y Fugas, de La Voz de Galicia, con reseñas literarias y crítica cinematográfica y de series de televisión, así como en otras revistas y páginas web sobre arte. También ha colaborado en medios radiofónicos como crítico de cine y fue responsable durante cinco años del programa de cine La cineteca, de Radio Universidad de Salamanca. E-mail: seoaneriveira@usal.es Autores 245 Lucas Baptista Cineasta, crítico e pesquisador. Graduado em Cinema pela Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro (2009), onde realizou dois curtas-metragens, Um conto em branco (2007) e Ano zero (2009). Mestre em Meios e Processos Audiovisuais, pela Universidade de São Paulo (2014), com uma dissertação sobre o realismo e o formalismo em duas tradições críticas. Atualmente, desenvolve uma pesquisa de doutorado sobre o espaço e o tempo na composição fílmica, na Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Cristian Borges e com apoio do CNPq. Desde 2014, atua também como membro do corpo editorial da revista online Foco. LABCOM.IFP COMUNICAÇÃO, FILOSOFIA E HUMANIDADES UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR GP CINECRIARE CINEMA criação e reflexão “Teoria dos cineastas” é a designação que adotamos para a proposta de compreender o cinema a partir dos cineastas tendo como objetivo principal refrescar a teoria do cinema à luz do discurso e da práxis dos cineastas. No âmbito desta abordagem, o investigador privilegia os materiais vindos dos próprios cineastas: filmes, livros, manifestos, cartas, entrevistas, ou outra documentação verbal ou escrita. E, ainda que muitas investigações na área de cinema tenham já citado ou parafraseado, em especial, os “grandes cineastas”,o que a "Teoria dos cineastas" pretende é tornar esse procedimento numa aposta consciente e sistemática. Em "Ver, ouvir e ler os cineastas" o leitor encontra, justamente, uma aproximação à reflexão dos cineastas. São disso exemplo: a discussão de conceito dos próprios cineastas, a relação com outros cineastas (por exemplo, realizador e montador), a leitura atenta de manifestos ou a exposição e discussão de pensamentos que revelam coerência reflexiva entre o discurso verbal/escrito e a práxis artística. Em parceria com: Organização: LABCOM.IFP COMUNICAÇÃO, FILOSOFIA E HUMANIDADES UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR TEORIA DOS CINEASTAS GP CINECRIARE CINEMA criação e reflexão