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Silva Porto (1850-1893), por Varela Aldemira

2020, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes : Sociedade Nacional de Belas Artes

Galo, gravador do seu ofício, envolvido em delitos de moeda falsa. Volta e meia, Silvas e Carvalhos desafinavam a bater arames e latões no velho bairro, ainda restos da música dissonante dos caldeireiros e outra jolda vizinhando o vetusto Arco de Sant' Ana, ali perto, ao fundo da rua do mesmo nome. Alguns emigravam, bastando-se a si mesmos, como o João da Silva Carvalho, tio do futuro pintor, pela segunda vez a caminho do Rio de Janeiro, em 1866. Os que ficavam, lá se iam governando, sóbrios nos haveres, os indispensáveis que não são abastança nem miséria, nunca emprestando para não ter que pedir, às vezes, em momentos críticos, algumas juras e promessas à padroeira Senhora da Silva, «de rosto terníssimo», rainha coroada, o Menino ao colo, «alta estatura no altar mais alto da Sé». Vai daí, o honrado artífice, engenhoso nos metais, inventivo nas ideias, herdeiro nos brios e razões dos «ciclopes da Bainharia» garrettiana, baptiza os dois filhos, o António e a Adelina Branca, avessando o patronímico Silva Carvalho para Carvalho da Silva; depois retoca a operação adicionando-lhe o Porto. Neste congeminar, o capricho do humilde mecânico foi ao encontro (se não imitou) do sertanejo António Francisco Ferreira da Silva, que, no Brasil, por alturas de 1836, acrescentara ao Silva o Porto, este sim, em lembrança saudosa da sua terra longínqua, de caminho anulando os mal-entendidos com outros Silvas emigrados. Em 1850, ano do nascimento do pintor, o obstinado africanista Silva Porto, estabelecido no Bié, era falado com admiração pelos patrícios nas baiucas húmidas da longa Rua dos Mercadores, continuação das íngremes Bainharia, Souto, Pena Ventosa e mais vielas escoando fadários até à beira Douro. Mutatis mutandis, o bom latoeiro pensou: se não evito as confusões, antes quero a minha gente com o nome do pioneiro, exemplo de valor e de sacrifício que honra os Silvas no sertão. E lança no seu caderno o assento do Antoninho, nascido «numa segunda-feira, às 8 horas da manhã», riscando, alterando, a mão obedecendo insegura ao facataz da sua crença.

SILVA PORTO 1850-1893 por VARELA ALDEMIRA Coleção Obras de Varela Aldemira (1895-1975) SILVA PORTO 1850-1893 por VARELA ALDEMIRA Coleção Obras de Varela Aldemira (1895-1975) FICHA TÉCNICA TÍTULO Silva Porto 1850-1893 AUTOR PROPRIEDADE CIEBA: Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes Universidade de Lisboa Largo da Academia Nacional de Belas-Artes 1249-058 Lisboa, Portugal Varela Aldemira Coleção Obras de Varela Aldemira, coordenada por João Paulo Queiroz TEXTOS DE Varela Aldemira Isabel Sabino João Paulo Queiroz EDIÇÃO Centro de Investigação e de Estudos em Belas Artes (CIEBA) e Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) CAPA Silva Porto. "Fábrica de papel, Vizela" (c. 1885). Estampa LXXVIII, com o título "Casa vermelha" DESIGN Tomás Gouveia ISBN 978-989-8944-29-0 DEPÓSITO LEGAL 467936/20 IMPRESSÃO E ACABAMENTO ACD Print TIRAGEM 500 exemplares Nota do editor sobre a presente edição: O texto reproduz a edição original, Realizações Artis, publicada em fascículos, colecionáveis para encadernação, concluídos em 1954. A notação ortográfica é a original. As estampas reproduzem as mesmas pinturas e desenhos dessa edição, tendo-se atualizado as imagens para a reprodução a cores — eram então impressas a preto e branco, na maioria. Foi excluída a estampa CIV, por Varela Aldemira, em nota final à edição dos fascículos ter considerado que a pintura representada não é afinal de Silva Porto. A disposição da edição — capítulos, secções, capitulares, e estampas em pós textual — foi também mantida. 6 LUÍS VARELA ALDEMIRA (1895-1975): NOTA BIOGRÁFICA ISABEL SABINO 8 VARELA ALDEMIRA: A COLEÇÃO ISABEL SABINO 10 NOTA SOBRE O LIVRO SILVA PORTO POR VARELA ALDEMIRA JOÃO PAULO QUEIROZ 12 SILVA PORTO: 1850-1893 VARELA ALDEMIRA LUÍS VARELA ALDEMIRA (1895-1975): NOTA BIOGRÁFICA ISABEL SABINO Natural da Galiza (Allariz, Orense) e órfão de pai aos 7 anos, Luís Varela Aldemira vem com 10 anos, por indicação médica, viver em casa de um tio, junto da estação de Santa Apolónia. Ali, a vizinhança do Museu Militar e da sua extraordinária coleção de arte marca-lhe o destino. Nas Belas Artes, Columbano atribui-lhe a classificação mais alta dos últimos tempos no final do Curso Especial de Pintura em 1919 mas, pouco depois, uma zanga do mestre devida a um diferendo estético afasta Varela Aldemira do ensino artístico (Columbano era dado a ataques de ira nem sempre justos, como conta Manuel Teixeira Gomes, Presidente da República Portuguesa de 1923 a 1925, nas suas Cartas a Columbano de 1932 — que Aldemira, aliás, refere no Antelóquio de A Pintura na Teoria e na Prática, p. II). Durante quinze anos, é desenhador científico de histologia e fisiologia num laboratório da Faculdade de Medicina com Celestino da Costa, Mark Athias e Joaquim Fontes. À noite, retoca fotografias na oficina de gravura do Diário de Notícias. Depois da aposentação e morte de Columbano, é extinta a sua 7ª Cadeira (de Pintura) na Escola de Belas Artes de Lisboa. Em 1934, Veloso Salgado e Carlos Reis estão de saída das restantes 5ª e 6ª Cadeiras (de Pintura) e, por recusa do desejado Sousa Lopes, empenhado na carreira artística, Varela Aldemira, naturalizado português anos antes e recém casado, é chamado por José de Figueiredo para um lugar provisório na 5ª Cadeira. O concurso aberto para lugar efetivo na 6ª Cadeira (a que Aldemira não concorre) é ocupado por Henrique Franco de Sousa (um dos Cinco Independentes) mas, em 1942, este desiste do lugar quando lhe é atribuída uma bolsa do Instituto de Alta Cultura e Varela Aldemira passa a acumular ambas disciplinas. Em 1946, o júri constituído por professores efetivos da escola e representantes da Junta Nacional de Educação considera os seus 12 anos de funções interinas e decide nomeá-lo por distinção para o lugar efetivo da 5ª Cadeira, evitando a experiência anterior de um concurso que poderia premiar a qualidade artística em detrimento do perfil pedagógico. Na escola, diversamente dos seus mestres, Aldemira não tem atelier, embora ali exerça plena atividade lectiva e complementar (aulas práticas e teóricas, cargos, júris, pareceres, reformas, etc.). Por várias vezes acompanha alunos nas Missões Estéticas de Férias da Academia Nacional de Belas Artes. 6 Publica textos de diferentes extensões e mais de uma dezena de livros, é autor de inúmeras comunicações e convidado para o Colloquium Internacional de Estudos Luso-Brasileiros na Biblioteca do Congresso (Washington, 1950). Também vogal efetivo e Vice-Presidente da Academia Nacional de Belas Artes, Presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes, membro do Conselho Superior de Belas Artes e da Junta Nacional de Educação e bolseiro do Instituto de Alta Cultura em Espanha, França e Itália, é ainda agraciado como Oficial de Ordem Militar de Santiago da Espada (1944). Aposenta-se em 1965 da Escola Superior de Belas Artes. Com diversos prémios artísticos em Portugal e no estrangeiro, há obras suas no Museu de Arte Contemporânea (Museu do Chiado), Museu da Cidade, Museu Grão Vasco e Biblioteca Almeida Moreira (Viseu), Museu José Malhoa (Caldas da Rainha), Museu Abade de Baçal (Bragança), Museu Santos Rocha (Figueira da Foz), Museu de Martins Sarmento (Guimarães), Reitoria da Universidade de Coimbra, Supremo Tribunal de Justiça, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, etc. 7 VARELA ALDEMIRA: A COLEÇÃO ISABEL SABINO Um dia, é invadido um “compartimento misterioso de um dos pátios dos franciscanos”.1 Entre os quatro culpados levados ao Conselho Escolar, Luís Varela Aldemira (1895-1975) decide não contar nada em casa sobre a suspensão de um mês com que é castigado. São os primeiros anos da República, e o jovem estudante de Pintura continua a sair e a regressar todos os dias às horas habituais, como se nada fosse. Passa esse tempo na sala de leitura da Biblioteca Nacional, nos pisos superiores da Escola, dando maior consistência à curiosidade e vocação literária que, em breve, manifesta em disciplinas de Belas Artes como História de Arte e História das Literaturas. De 1932 em diante, escreve cerca de quinze livros e inúmeros textos soltos. Hoje, ao republicar-se nesta coleção uma parte expressiva dos seus escritos, talvez renasça pela terceira vez o autor a quem nem sempre tem sido feita inteira justiça e que diz: “Em Lisboa nasci pela segunda vez, para ter o direito de ser português”2 Da Galiza para as imediações de Santa Apolónia, do Museu Militar para as Belas Artes no Chiado, da Escola Médica ao Diário de Notícias no Marquês de Pombal, de Alcobaça para Évora, Roma, Paris e Londres, os passos3 do entretanto naturalizado cidadão português Varela Aldemira deixam traços no que desenha, pinta e escreve. Assim o comprovam as obras em museus, o ensino em Belas Artes durante três décadas e os textos. É especialmente notável essa sua “pintura escrita” — termo com que ele mesmo designa a produção literária, na qual regista diálogos do real com a vida e a cultura e criação artísticas, entre a história, o quotidiano, o trabalho no ensino artístico, os relatos de testemunhos orais dos seus precedentes e as impressões pessoais. Memorial da Berlenga, um “primeiro escrito, desde que rascunho nas horas vagas por inveterado vício”4 , é redigido em 1932 durante dois meses nas Berlengas mas publicado mais de vinte anos depois, cedo revelando a matriz do que irá diversificar nos textos seguintes: a descrição e a memória, o estudo, a reflexão, o ensaio, a escrita fluída e erudita, sustentada por conhecimento clássico e contemporâneo, nervo e humor, intercalada por ilustrações e fotografias. 8 São títulos seus: A Arte e a Psicanálise (1935); Um Ano Trágico — Lisboa em 1836 (1937); Terceira Missão Estética de Férias. Alcobaça Ilustrada. Um Estudo Crítico / Programa / Relatório / Catálogo e Estampas (1940); Notas Sobre a Vida e a Obra do Pintor Veloso Salgado (1940); Columbano. Ensaio Biográfico e Crítico (1941); Estudos de Arte e Crítica (1942); O Pintor El Greco (1942); Itinerário Estético — A Caminho de Roma (1943); A Pintora Josefa Greno (1951); Homens e Livros (1952); Silva Porto (1954); Memorial da Berlenga (1956); Os Dois Cristos de Columbano (1957); Henrique Pousão (1959); A Pintura na Teoria e na Prática (1961); Influências e Originalidade da Pintura (1961); A Geometria Estética de Velasquez (1962); A Paisagem nos Cursos de Pintura (1963); A Questão das Cores Complementares (1965); Estudos Complementares de Pintura (1970); Pintura Naturalista (1974). Obras hoje fora de circulação normal e apenas existentes em bibliotecas e alfarrabistas, são textos que permitem compreender melhor o pensamento e o ensino artístico em Portugal e, sobretudo, povoar mais justamente um panorama frequentemente apresentado como estéril (porque nem sempre fixado na escrita), mas que tem constituído, de facto, conhecimento erudito específico, concreto e transversal sobre arte e crítica, pleno de referências, especialmente sobre pintura, pintores portugueses e outros, teoria de pintura, ensino de pintura. Neste caso (em que a escrita existe), e para quem goste de descobertas em compartimentos que, afinal, nunca foram tão secretos nem tão franciscanos como se imagina, a possibilidade de leitura aqui fica, devolvendo à luz um autor que, afinal, parece ter sido suspenso por mais do que um mês apenas por abrir uma porta num território em tempos vedado. 1 Varela Aldemira (1952), Homens e Livros, p. 27. 2 Varela Aldemira (1956), Memorial da Berlenga, p. 192. 3 Em nota biográfica sobre Varela Aldemira. 4 Varela Aldemira, Nota Preambular de Memorial da Berlenga, p.7. 9 NOTA SOBRE O LIVRO SILVA PORTO, POR VARELA ALDEMIRA JOÃO PAULO QUEIROZ 1. UM TRABALHO INOVADOR Não haja equívocos. A obra monumental de Varela Aldemira, "Silva Porto," publicada originalmente em fascículos semanais pelas Realizações Artis, para comemorar o centenário de nascimento de Silva Porto, é ainda hoje incontornável. Atendeu, é certo, a um contexto preciso, mas revela ainda todo um conjunto de investigações com a marca iniludível de Aldemira: perfeccionistas e muito minuciosas, tanto biográficas como históricas ou, também, iconográficas, feitas a partir de visitas aos acervos, consultas a colegas, alunos, e colecionadores, a que se acrescenta a inovadora pesquisa de mais informação junto das coleções de desenhos, por exemplo, ou de cartas e outros documentos. Os arquivos paroquiais de nascimento foram desbravados, os diplomas foram cuidadosamente aferidos, esclareceram-se erros de longa data ("Porto" não é pseudónimo artistico, é decisão dos pais na pia batismal, ao contrário de erros ainda hoje repetidos) e aclararam-se inúmeros dados históricos sobre o seu exacto percurso académico, os seus professores, mestres, influências, e também os pequenos enredos que a memória viva de então ainda foi capaz de fazer chegar ao seu autor, através dos conhecidos e alunos de Silva Porto, e dos que com ele privaram. Não sendo uma fonte primária, esta obra de Varela Aldemira constitui uma referência incontornável e insubstituível, e ainda hoje. É também exemplo de um pensamento sobre arte que não coincide com o do historiador — nem ele o pretende — mas que se assume como o discurso de um artista, e de um exigente professor de pintura, de um Académico e de um investigador de iconografia e de composição, portador de uma perspectiva muito próxima da plasticidade e da vivência artística na prática, transportando assim também as experiências e os conhecimentos fora do alcance da maioria dos investigadores teóricos. Sempre na primeira pessoa, de qualidade literária e irrepreensível, eis um ponto de vista privilegiado sobre os movimentos e as vanguardas, do realismo e do impressionismo, do ar livrismo, que Silva Porto encarnou no tempo "exacto." 2. SILVA PORTO Silva Porto trouxe novidade, logo pela extensão da sua formação artística especializada, pela sua inserção social marcando a formação de uma classe que conduz os seus destinos através da educação — a Associação Industrial Portuense (hoje Associação Industrial Portuguesa) e a sua primeira e pioneira Escola Industrial, — estruturada segundo os princípios de ensino mútuo — e também pela sua liderança, segundo uma ética do trabalho enquanto 10 professor, assim como pela extensão da sua intervenção cívica — ao fundar movimentos e associações com a influência do Grémio Artístico — isto claro está para além do seu contributo revolucionário na pintura portuguesa da segunda metade do século XIX. Frequenta a Escola Industrial Portuense desde os 12 anos de idade, no contexto da ascensão de uma nova classe, contemporânea da revolução industrial. Ao mesmo tempo, inicia a frequência da Academia de Belas Artes. Todos os cursos são frequentados: desenho histórico, escultura, arquitetura, anatomia, para depois se dedicar ao último curso da especialização, a pintura histórica. Irá também conseguir adicionar a esta formação extensa e completa um período adicional de 5 anos como pensionista do Estado em Paris e em Roma. A maior parte da sua vida é passada a estudar e a aperfeiçoar as suas capacidades como artista. Morrendo aos 42 anos, a sua vida é curta, mas a sua obra é imensa: centenas de desenhos e pinturas constituem um legado impressionante de inovação plástica. Introduz a prática exigente do ar livrismo acompanhada de uma ética de humildade, e de trabalho, como talvez não tenha sido vista nas gerações anteriores. Para além destes aspectos, há a notar os seus contributos para a institucionalização de uma associação da importância do Grémio Artístico (a futura Sociedade Nacional de Belas Artes), com as quais a sua influência se estenderá muito para além da morte, durante décadas, em Portugal. A interpretação das suas obras e a sucessão de gerações mais ou menos conservadoras aliadas a uma valorização do ruralismo — que foi apanágio do sequente Estado Novo — veio introduzir um quase constante ruído que perturbou longamente a inteira recepção da sua obra. Cumpre talvez, mais tarde do que nunca, empreender uma releitura informada e atualizada, contextualizadora, apta a enquadrar a novidade de Silva Porto e a atualizar sua recepção. Os tempos são muito exigentes — os desafios ambientais e de sustentabilidade, em 2020, recordam a oportunidade de uma releitura do mundo, ou seja, da natureza, ou melhor, da nossa relação com os referentes, afinal o grande tema de Silva Porto, desde sempre na sua obra. Referências QUEIROZ, João Paulo (coord.); Tavares, Cristina Azevedo; Pinho, Elsa Garrett. Beirão, Sara. (2020). Os 500 desenhos de Silva Porto na coleção SNBA. Lisboa: Sociedade Nacional de Belas Artes e Câmara Municipal de Lisboa, 418 p. ISBN: 978 989 998 2239 SILVA, Raquel Henriques da (1993) Silva Porto, 1850-1893: Museu Nacional Soares dos Reis. Lisboa Instituto Português de Museus, 651 p. ISBN 9729577595 11 Desenho 12 SILVA PORTO 1850-1893 VARELA ALDEMIRA PARTIU, tão novo… quebrada a paleta no auge da sua mestria de pintor! Sabia achar a nota dramática da vida, da luta, da natureza, vendo justo e, ao mesmo tempo, o lado poético. Foi um modesto, um brando, um bom... GABRIEL PEREIRA — 3 DE JUNHO DE 1893 S EMPRE nos pareceu embaraçoso narrar a vida deste artista, chefe de escola e fundador de grémios associativos, homem de influência e notável prestígio, amado no seu tempo, lembrado pelos tempos fora, mas de relevo geográfico apagado, quase inexistente. Examinando o que se publicou de maior vulto acerca de Silva Porto, os elementos de que todos nos servimos por determinantes ocasionais, nota-se a ausência de acidentes ou incidentes objetivos no desenrolar dos sucessos experimentados pelo indivíduo, de modo a interessarem o crítico e o historiador. Seria assim, na realidade? Habituámo-nos a considerar este pintor uma bonança espiritual permanente, um refractário a impertinência estranhas, o refúgio, o abrigo que melhor aguentou a prova das humanas tempestades. Mas a vida é luta, para ser vida, e sem luta não há biografia nem raconto digno de memória. Abundam as criaturas vegetando invulneráveis ao atrito dos acontecimentos quotidianos, sem incomodar o próximo, conformistas, neutrais, obedientes aos costumes, a paz da consciência nas horas de vigília ou durante o sono. Tais virtudes pertencem a Silva Porto, pessoa branda, pacata, regrada e, no conceito de um seu amigo, sabendo achar o drama e a luta na natureza evocada e recriada, embora o paisagista, ausente da sua própria biografia, nos esconda a razão idiossincrática dessas lutas vividas ou imaginadas. A tradição deu-nos um Mestre sem o bastão de comando da sua mestria, inovador ousado que não dirige mensagens, não escreve panfletos, não dispara um dardo nem fere por actos e palavras qualquer adversário. Em Abril, o mês da Senhora do Bom Conselho, chega do estrangeiro um artista desconhecido, despercebido, enigmático, e a capital abre-lhe as portas sem o buzinar de trombetas que derrubem as muralhas da indiferença. E, na verdade, o seu triunfo é completo, tão rápido como milagroso. Dois aspectos mal definidos no jogo dos sentimentos permaneceram contraditórios, o do homem e o do artista; um, fisicamente igual ao mais comum, o outro, acusando o iniciador, revolucionário, instituidor, o arauto excepcional de um novo credo estético, alma exuberante, indómita, num corpo débil para a conter. Depois, em plena glória, longe da velhice que os 13 anos não justificam, o pintor fecha os olhos no seu leito burguês e abandona este mundo, silencioso como viveu, sem cerimónias espectaculares, desinteressado, austero como um varão de Plutarco. Porém, nesse contraste do homem e da sua obra, e justamente por isso, custa acreditar na isenção absoluta das contrariedades demoníacas, os conflitos morais sofridos por um Sequeira, um Soares dos Reis, um Columbano e tantos outros isolados, amargando os seus problemas, reagindo contra o meio ambiente. Julgamos ter existido, na curiosa antinomia silvaportiana, um quadro de sintomas sonegado pela morte prematura ao exame dos contemporâneos, na maioria das vezes os menos indicados para apreciar os fenómenos do seu tempo. A luta na individualidade do paisagista existiu, misteriosa, subtil, dramática, e reconhecemo-la no seu rosto, que parece simbolizar o génio da melancolia: é o litígio entre o homem simples, taciturno, solitário, desambicioso, na aparência vulgar, e o artista com obrigações irremovíveis perante o público. É a angústia dos que recebem a glória do mundo, mau grado seu, e lutam com o mundo na defesa dessa glória, titãs vencidos pelos deuses, os interesses criados, as opiniões tumultuárias e contraditórias. Vamos tentar a determinação do caso por uma análise ímparcial e atenta, socorridos de elementos até hoje inéditos, das circunstâncias que enobreceram a missão de um grande pintor entre os pintores portugueses. A NTÓNIO Carvalho da Silva Porto nasce a 11 de Novembro de 1850, na Rua da Ponte Nova (uma lápide sobre o n.º 50 recorda o acontecimento) freguesia da Sé, catedral da cidade do Porto, sendo baptizado em pleno coração do burgo no dia 24 do citado mês. Seus pais: «António da Silva Carvalho, natural desta Sé, e Margarida da Silva Carvalho, natural de Santo Ildefonso». Avós paternos: «Alexandre António de Carvalho e Maria Emília da Silva, maternos: Manuel Pinto da Fonseca e Luísa Josefa de Freitas». Foram padrinhos António José de Carvalho e Margarida de Macedo, moradores na Bainharia. Nenhum dos progenitores, padrinhos e testemunhas do baptismo usou o apelido Porto; e aqui temos a primeira rectificação a fazer na biografia corrente, obra de informações distraídas, copiando-se umas às outras segundo o uso e o costume. Atribuiu-se ao pintor, atingida a idade madura, o «acrescentamento» do nome Porto aos apelidos, por moto próprio, devido ao seu «orgulho bairrista». Todavia, repare-se, antes de acrescentar, inverteu-se a ordem da apelidação; o Silva ficará depois do Carvalho, pormenor que nos aguçou a suspeita de uma origem estranha ao bairrismo orgulhoso, na manobra onomástica. Sem quebra de patriotismo, o artista desardiloso, enconchado na sua modéstia e timidez, não perderia os vagares em tais ideias especulativas, embora se considere o tímido um parente próximo do orgulhoso. O nome completo, tal como se regista na história da Arte portuguesa, não surgiu depois de «feito homem», como se escreveu; brotou logo a seguir ao baptismo, treze dias depois da criança nascida, em obediência a um desses propósitos peculiares no foro intimo das famílias. Estabelecido na Rua da Bainharia, a famigerada viela dos estojeiros e antigos fabricantes de bainhas de armas, o pai Silva Carvalho, latoeiro e cinzelador, houve-se com uns parentes em desaguisados por via da semelhança dos nomes, participando nessas sensaborias o concunhado Francisco António 14 Galo, gravador do seu ofício, envolvido em delitos de moeda falsa. Volta e meia, Silvas e Carvalhos desafinavam a bater arames e latões no velho bairro, ainda restos da música dissonante dos caldeireiros e outra jolda vizinhando o vetusto Arco de Sant’Ana, ali perto, ao fundo da rua do mesmo nome. Alguns emigravam, bastando-se a si mesmos, como o João da Silva Carvalho, tio do futuro pintor, pela segunda vez a caminho do Rio de Janeiro, em 1866. Os que ficavam, lá se iam governando, sóbrios nos haveres, os indispensáveis que não são abastança nem miséria, nunca emprestando para não ter que pedir, às vezes, em momentos críticos, algumas juras e promessas à padroeira Senhora da Silva, «de rosto terníssimo», rainha coroada, o Menino ao colo, «alta estatura no altar mais alto da Sé». Vai daí, o honrado artífice, engenhoso nos metais, inventivo nas ideias, herdeiro nos brios e razões dos «ciclopes da Bainharia» garrettiana, baptiza os dois filhos, o António e a Adelina Branca, avessando o patronímico Silva Carvalho para Carvalho da Silva; depois retoca a operação adicionando-lhe o Porto. Neste congeminar, o capricho do humilde mecânico foi ao encontro (se não imitou) do sertanejo António Francisco Ferreira da Silva, que, no Brasil, por alturas de 1836, acrescentara ao Silva o Porto, este sim, em lembrança saudosa da sua terra longínqua, de caminho anulando os mal-entendidos com outros Silvas emigrados. Em 1850, ano do nascimento do pintor, o obstinado africanista Silva Porto, estabelecido no Bié, era falado com admiração pelos patrícios nas baiucas húmidas da longa Rua dos Mercadores, continuação das íngremes Bainharia, Souto, Pena Ventosa e mais vielas escoando fadários até à beira Douro. Mutatis mutandis, o bom latoeiro pensou: se não evito as confusões, antes quero a minha gente com o nome do pioneiro, exemplo de valor e de sacrifício que honra os Silvas no sertão. E lança no seu caderno o assento do Antoninho, nascido «numa segunda-feira, às 8 horas da manhã», riscando, alterando, a mão obedecendo insegura ao facataz da sua crença. P OUCO depois, a família abandona a morada da Ponte Nova, estaciona na casinha e oficina da Bainharia, onde a Branca vem à luz, dois anos depois do mano, e, subindo até mais próximo da Sé, instala-se na Rua de Santo António do Penedo (hoje Avenida Saraiva de Carvalho) numa pequena casa em frente à Viela da Cadeia. Aí decorrem a infância e a vida escolar do franzino António, dez réis de gente espevitada nos primeiros gostos e nas primeiras letras, indo à mestra, sobejando-lhe as ocasiões para fazer recados ao pai e auxiliá-lo nas tarefas metalúrgicas. De índole reservada, o catraio não se aproxima nem dá confiança à arraia miúda que formiga nas vizinhas Ruas Chã, Escura, dos Pelames, do Anjo, um marulhar de actividades humildes nos ofícios mais díspares: caixotarias, mercearias, funileiros, picheleiros, adelos, torneiros, vassoureiros, surradores, anzoleiros, sapateiros em algazarra babélica todo o dia e o melhor da noite. Nenhum dos misteres intrometidos desvia a atenção do pequeno latoeiro, com o sestro do rabisco nas folhas-de-flandres a denunciar inclinações naturais, as únicas brincadeiras, dispensadas outras folias. A baixa estatura, acentuando-lhe o aspecto de menino, também não o recomendava aos chisgaravis da sua idade. Uma amiga de infância, Laura Silva, proprietária estabelecida na Rua de Santo António, informou Reinaldo 15 Ferreira em 1934: «As nossas famílias eram muito íntimas; conheci o pintor, desde menina, mas ele era tão concentrado, tão estudioso, tão isolado na sua arte e no seu coração, que poucas palavras lhe ouvi. Quando pequeno, vinha a nossa casa todos os dias, entregar e receber o trabalho encomendado ao artista seu pai, e quedava-se calado». Com efeito, o rapazinho parece nada ficar a dever ao ramo dos Carvalhos falaciosos e truculentos, um deles, o avô paterno, azougado partidário do liberalismo cartista. O futuro pintor herdará dos Silvas o génio pundonoroso, circunspecto, e a vocação das artes em qualquer ferramenta, seja para armar um presépio, construir uma lanterna, abrir ornatos, trabalhar ao torno, ou, pelo canivete, transformar em objecto delicado o caroço de um fruto. Particularmente receberá da mãe a timidez, a saúde delicada, a estatura meã e o gosto pelo desenho, ela, exímia bordadora premiada pela Associação Industrial nas exposições de 1857 e 1861. O mestre latoeiro não cultiva somente a habilidade de mãos; também se preza de educador, severo nos princípios, transmitindo à sua prole virtudes rígidas inerentes ao trabalho, economia, dignidade, honestidade. Temos aqui (por deferência de Carlos Alberto da Silva Porto) uma folha de papel almaço pautado, contendo três exercícios de caligrafia, a data de 23 de Julho de 1862 e a assinatura: Antonio Carv. da S.ª Porto. O colegial ainda não fez doze anos, nada pode saber acerca do seu porvir artístico, ainda não está «feito homem» e assina como o autor de seus dias lhe indicou, para a vida e para a imortalidade. A folha preciosa apresenta três pensamentos desenhados por uma mão firme, letra garrafal, o ditado evangélico paterno, que ficará gravado na memória e no coração do futuro artista: 1.º Sê prudente em tudo o que fizeres, vagaroso em emprehender e firme em executar. Expõe-te a sofrer um damno, do que a ter proveito com... (incompleto). Cauteloso nos pensamentos e nas decisões, a prudência será luz na carreira do pintor; e, como o estoicismo é o amparo dos fortes, está dispensado o proveito adquirido sem honra nem merecimento. 2.º Ou não questioneis nunca, ou se alguma vez o fizerdes moderai vossos discursos, pesai vossas palavras, sede severos comvosco e com os outros tolerantes. Certamente, o António não é para questões, indulgente com os mais, exigente consigo; e mandará à tábua os conflitos falados ou escritos. 3.º É engano aceitar o q. se não pode satisfazer, porque receber um benefício é vender a liberdade e só della se não faz senhor quem... O menino suspende a escrita, assina e pousa a caneta. O terceiro doutrinal estava saindo um tanto confuso, mas entende-se e concorda com os anteriores: independência de carácter sem orgulhos antipáticos, esperando tudo do nosso esforço sem fiar nos Mecenas. A gratidão é um sentimento dos mais apreciados; ser escravo da palavra ainda é mais louvável, evitando a subserviência e o panurgismo inimigos da originalidade na criação artística. Em suma, é preciso na vida trazer as contas certas, as boas «contas do Porto», na honesta realidade da bolsa e da consciência que não temem porque não 16 devem, tudo isso que transparece nas sentenças enunciadas: bondade, verdade, beleza da justiça, a tríade estética de Baumgarten nas manifestações de um Ser único, perfeito, exacto. As lições do mestre ciclope não caem em cesto roto. Como todos os que falam pouco, o António ouve e observa atenciosamente; é activo, diligente, incapaz de leviandades, robustecendo pelo exercício a sua frágil constituição, habituado ao frio e ao calor, às dificuldades e aos êxitos, no fundo da timidez a ousadia espartana mais indicada para as realizações grandiosas. O rapaz dá mostras de ser um futuro engenheiro. Pois seja. Um pai de largas vistas não aceita vocações contrariadas, que só existem nos romances, e o seu filho, aprovado na instrução primária, completos os doze anos exigidos pelo regulamento, matricula-se na Escola Industrial, onde pontifica o professor Guilherme Correia. Numa pasta conservada na S.N.B.A., sucessora do Grémio Artístico, herdeiro desse espólio do seu primeiro presidente, ainda se encontram alguns debuxos de peças metálicas, parafusos, êmbolos, viaturas, maquinismos datados de 1864, segundo ano de frequência, junto dos respectivos diplomas de elogio. Na dita Escola, já integrada no Instituto Industrial, alfobre de estudos preparatórios para vários cursos a dar-lhe famas de «Academia Politécnica», o novo aluno, lesto e esperto, aprende desenho linear, geometria descritiva aplicada à indústria, topografia, ordens arquitectónicas, estereotomia e outras disciplinas correlativas. Ninguém adivinha um pintor de raça através dessas provas riscadas e aguareladas com precisão rigorosa, ou talvez o suspeitasse o professor Correia, indicando o discípulo a seu irmão João António Correia, conceituado mestre de pintura em São Lázaro. Na verdade, o garoto surge inscrito na Academia Portuense de Belas Artes, em Outubro de 1865, recolhendo à pasta os desenhos de ornato e figura do primeiro ano (aula de Almeida Furtado), o chamado «desenho histórico», trabalho incisivo, correctíssimo, impossível em precocidades hodiernas. Aos quinze anos, nenhum estudante do nosso tempo inquieto executaria aqueles mimos, nem às boas, nem a martelo. De dia e de noite, numa febre de produção obsessiva, surgem os estudos artísticos ao lado dos mecânicos, sistemática aptidão do voluntarioso jovem entre a Ciência e a Arte, entre o belo e o cálculo, vaga reminiscência de um espírito leonardesco do antigo Renascimento. A partir de 1868, cessam as corridas ao Instituto e a engenharia dá lugar à arquitectura, sob a direcção de Almeida Ribeiro, na Academia, acrescentando-se as modelações em barro, orientadas pelo escultor Fonseca Pinto: e, dentro de pouco, a pintura histórica, tendo a figura humana por objecto primacial de estudo. E porque não? As formas, as cores, as linhas, os volumes, tudo concorre para o mesmo fim, a beleza em múltiplas expressões plásticas. Não tardam a caminho da pasta os traçados arquitectónicos, as anatomias com a nomenclatura de ossos e músculos e uma infinidade de perspectivas. E os diplomas de elogio ao estudante polimorfo, animoso, aplicado, topa-a-tudo sem igual, atestam a rija persistência em praticar, conceber, fixar este mundo e o outro. A incursão pelas três artes, deve dizer-se, não foi estranha a outros escolares de mérito, como Soares dos Reis, Pousão, Sousa Pinto. Os cursos, mormente o de arquitetura, estavam longe da rigorosa especialização técnica 17 de hoje, isentos de matemáticas especulativas, das resistências de materiais, dos cálculos infinitesimais e outras transcendentes propedêuticas. Com umas luzes sobre estilos desenhavam-se, arquitectònicamente, edifícios, monumentos e motivos ornamentais; a pintura e a modelação obedeciam à sensibilidade peculiar de cada um, sem arqueologias e menos teorias. Mas, em verdade, nenhum dos mencionados se compara a Silva Porto em espírito de assimilação, frequentando as três artes com todos os genuínos ff e rr, ou seja, incluindo aprendizagem industrial, quatro cursos na carreira do estudante polimático, atento à disciplina, um pitagórico no silêncio que rodeou a sua tenacidade estudiosa e o seu bom comportamento. Na décima exposição trienal de São Lázaro, 1869, aparecem pela primeira vez ao público os trabalhos do aluno exemplar, onde se registam: seis provas do quarto ano de desenho histórico, sete modelações em barro, do segundo ano de escultura: duas estátuas, três torsos, uma cabeça e uma medalha; e do curso de arquitectura, terceiro ano: o projecto de uma igreja, «aprovado plenamente e digno de elogio em conferência geral de 31 de Agosto»; o projecto de um hotel, constituído pelas peças, fachada, corte e plantas de dois pisos; o projecto de monumento à Restauração de 1640, do qual existe na pasta um esboço, incluindo notas explicativas acerca das esculturas alegóricas; e mais projetos para escolas públicas, para um Banco, para um café-restaurante, todos acompanhados dos respectivos elementos desenhados e escritos. Em 1871 ainda caminham paralelos os estudos de pintura, escultura e arquitectura, esta do quinto ano, merecendo a nota de «vinte valores, ficando os seus trabalhos de exame na Academia, e resolvendo-se que fossem enviados à exposição de Madrid». Concluída essa especialidade, restam a pintura (alternando-se na cadeira os mestres Antonio Correia e Francisco Resende, o primeiro, um clássico ingrista, o segundo, um romântico intelectualista) e a escultura, ambas classificadas com dezoito valores; em 1873, o último, sòmente a pintura, distinguida por dezanove valores. Oito anos de labuta artística, descontados os preparatórios, e em todos eles a referência honrosa no apuramento das provas: «Julgado digno de elogio». Se desdobrarmos as matérias acumuladas, temos o seguinte resultado: Instituto Industrial, cinco anos; desenho histórico, cinco anos; arquitectura, cinco anos; escultura, cinco anos; pintura, três anos. Isto é, uma lucubração absorvente, o somatório específico de vinte e três anos, precisamente a idade do artista nesta altura da sua vida, laureado em tudo o que as duas Escolas lhe podiam dar; e, se mais houvesse, mais teria amanhado o António Porto, nome pelo qual era tratado o invulgar fura-vidas, homem valendo por cinco, sempre a estudar desde que abriu os olhos à luz do Mundo. Ainda não usa barba e o seu aspecto é dos mais sisudos, corpo de pouca altura, seco de membros, absalónicas farripas negras caindo sobre a testa, rosto de um moreno pálido, lábio inferior acusando ligeiro prognatismo, olhos escuros e a gravidade de um anabaptista fiel à regra do recolhimento, do mutismo inteligente e inflexível. Na sua idade, Corot ainda estava ao balcão da loja dos pais, sem decidir-se pela pintura, o que só lhe aconteceu aos vinte e seis anos, depois de prometer e hesitar, como Geffroy observou: toujours le travail secret se trame dans ces cervelles hantées. Sorrindo pouco, meditam sempre, mesmo 18 quando parece que não pensam, evitando as palavras demasiadas e traiçoeiras. O taciturno sabe esperar a sua hora, sabe guardar um segredo, sabe outras coisas excelentes, não se importando de passar por tonto. E M que irá ocupar-se o portuense depois de formado? Os prémios e os maiores triunfos couberam à arquitectura. Será esta a profissão decisiva? Homem de conhecimentos politécnicos, entrincheirou-se no desenho, linguagem universal para muitas visões, contemplações e criações de sugestivas imagens. O desenho é um tesouro, a fonte, o corpo, diz Francisco de Holanda, da pintura, da escultura, da arquitetura, «a raiz de todas as ciências». Com essa virtude, Silva Porto está seguro, habilitado para as surpresas e contingências, mas não se resolve, não se bate por esta ou aquela arte e aguarda tranquilo, prudente como o pai lhe recomendou naquelas sentenças caligrafadas num caderno da meninice. Por outro lado, também reconhece que o esperar não significa quietismo, a modorra fiada no hipotético e delicioso maná do Céu. Meses antes da conclusão do último ano lectivo, anunciara-se a proximidade dum acontecimento na vida artística: os concursos para pensionistas no estrangeiro. Em que especialidade? Ainda não sabemos a especialidade, mas, seja ela qual for, o António não se impacienta e vai pondo os papéis em ordem. Abrangido pelo recrutamento em Junho de 1871, fica desobrigado em Março de 1873. Um alvará de folha corrida passado em 15 de Maio daquele ano apresenta os nomes do pai Silva Carvalho e do filho Carvalho da Silva Porto, moradores em Santo António do Penedo, onde mais uma vez se regista a alonimidade da apelidação. Finalmente, desvendam-se dois concursos, um de pintura histórica, outro de paisagem, e nada de arquitectura. Se a Tria Fata assim o manda, resta-nos obedecer. O primeiro desses certames é o mais apetecido, por se tratar de uma matéria adregada aos jovens pintores, garantindo ao vencedor o acesso à cadeira na Escola, quando o proprietário deixar vaga. Não faltam candidatos alvoroçados à pensão da pintura histórica, entre eles, Luiz Domingues (vindo de Lisboa), Teodoro Pinto, Álvaro Barroso Salazar, Santos Patoilo e um moço distinto, Marques de Oliveira, o de maiores esperanças. Ao outro concurso fazem caretas e comentários chistosos, pois na Academia «a paisagem não tem cadeira especial», uma das amarguras do vice-inspector conde de Samodães, lembrada superiormente nos seus discursos e petições. Não há paisagistas tripeiros entre os mestres e discípulos, dentro ou fora das aulas, mas a vis teimosa do conde insiste que deve haver, corra por onde correr, e para isso está aberto o concurso de uma bolsa. Silva Porto nunca pensara nessas divisões de especialistas, tendo chegado à pintura depois de transitar por várias artes e várias técnicas, sem discernir as fronteiras dos valores genéricos, inexistentes na arquitetura, como ele próprio verificou ao tratar de igrejas, hotéis, escolas, o mesmo cérebro para toda a obra construtiva na esfera da sua actividade. A ocasião faz a inspiração. Paisagista ou retratista por desígnios imponderáveis do talento. E, em presença de uma escolha do terreno para a famosa justa, o candidato decide-se pela prova de mais probabilismo e menos chinfrim: a esquecida e desprezada paisagem. Fez a vontade ao vice-inspector, sem constrangimento nessa 19 escolha meditada por um metódico infalível, julgando toda a pintura uma arte figurativa, com ou sem paisagem, as dificuldades e proveitos existindo em qualquer dos lados. Assim, deixa a grande maioria dos colegas em São Lázaro, na peugada do Marques de Oliveira, ficando ele e o Artur Loureiro no Covelo, o ponto designado pela sorte no torneio de ar livre, um arrabalde pitoresco da freguesia de Paranhos, nas imediações do Campo Lindo e do Vale Formoso, lugares de poéticas remembranças. O Comércio do Porto, ao notíciar o início do concurso, disse que «a paisagem escolhida foi o Cabelo» cada um glosando a seu modo a imprevista gralha tipográfica «Dois paisagistas à força, ou de arrepia-cabelos». A PENAS dois em campo a simplificar o entendimento. Todavia, nunca faltam os quindins na mais perfeita e bem pensada estratégia. Uma diferença surgiu no local da operação paisagística, devido ao Loureiro, desconfiado e genica, embirrar com um pinheiro bravo que lhe empana a visão do conjunto. O camarada Porto não repara no obstáculo; ajeita o cavalete, ora aqui, ora ali, observando a várias distâncias o modelo vivo, a Natureza que deve ser interpretada e não copiada. «A paisagem que eu preciso não é a paisagem literal», dizia Delacroix em busca do melhor, do real, un vif sentiment de la nature. Ainda não o entendia assim o Loureiro incontemplativo e, na noite seguinte, de cumplicidade com o irmão José e um amigo, abate a machado a árvore quezilenta. Cerca de três anos mais velho do que o azougado antagonista, impermeável às arrelias, Silva Porto cala-se, não protesta contra o sumiço do inocente pinheiro. Não ficou «atónito e esbaforido», como se escreveu no prefácio de um catálogo em 1920. Fez-se Lucas, alguém nos observou, enquanto «o Artur, todo manto de seda, se fazia de novas». O esquecer é humano e o perdoar é dos deuses; sim, o alheamento propositado ou involuntário do Porto valeu por uma superioridade olímpica. O esboceto ou estudo prévio da quinta do Covelo é um quadrinho a lembrar Pillement, mais sóbrio nos efeitos, menos romântico, uma luz crepuscular de sol rasante acariciando arbustos, lombas e as pedras de um muro no primeiro plano. O pintor ainda ignora o segredo da mancha rápida, e faz o resumo de uma paisagem certa, difícil, um tanto fria, mas bem perspectivada, o suficiente para facilitar o desenvolvimento na operação seguinte, num dos quartos da Academia de São Lázaro. Esse trabalho e mais dois, um desenho do nu e a cabeça de cavalo, um penco bem parecido da Guarda Municipal, tendo principiado em Junho, arrastaram-se até Agosto, expostos de 12 a 26 ao público, ao juízo da crítica, antes de o júri se pronunciar, costume velho que o tempo condenou. Já se podem ver «as provas por que passaram os candidatos», informa o Jornal do Comércio. Os dois paisagistas afinam pela mesma craveira e merecem aprovação, embora se torne problemática a escolha de um para receber o pensionato. O Primeiro de Janeiro congratula-se pelo bom resultado, «tanto mais que não há aqui professor algum na especialidade de paisagem»; depois de elogiar o «sr. Porto», salienta o candidato Artur Loureiro, que «excede em muito o seu antagonista no modo como caracterizou o fim de tarde, hora escolhida pelos professores». De modo geral agrada o desenho das 20 «academias» e, quanto às provas do animal: «de muito merecimento, avantajando-se um pouco o sr. Loureiro; é de notar que este aluno apenas estuda belas-artes há quatro anos, o que não sucede ao sr. Porto, que vai para oito anos que frequenta a Academia». É interessante a ilação contraditória que Desenho daqui resulta: não se vejam defeitos nos dois artistas em causa, ambos em igualdade de circunstâncias, por ninguém lhes ter ensinado a matéria. No entanto, há um que tendo estudado menos, sabe mais do que o outro, a praticar anos dobrados. Transpira qualquer premeditação inconfessável nas folhas impressas. O Jornal da Manhã do dia 17, por exemplo: «Em pintura de paisagem sobressai o Sr. Artur Loureiro, mancebo estudioso a quem geralmente se atribui muito talento, pois conta apenas quatro anos de estudo na Academia e apresenta trabalhos de muito merecimento. O sr. Porto, se lhe é superior, deve notar-se que estuda há oito anos; esperamos que o júri, mais uma vez, faça justiça». Que significa isto? Desenham-se as primeiras rugas na fronte assombrada de Silva Porto, o grande impassível. É agora! Até aqui, lutara apenas consigo, no domínio dos conhecimentos e da perfeição no estudo. Agora principia a maior das batalhas com o semelhante, o seu igual na conquista da vitória. Aquelas notícias onde ressalta o favor do candidato mais novo, se por instantes quebram a serenidade do taciturno, ao mesmo tempo dão-lhe ensejo a um cuidadoso exame das suas forças, e não tardará que domine a situação. Primeiro, traslada as palavras do Jornal da Manhã para um pequeno álbum de apontamentos, ainda conservado na pasta; depois, com a data do mesmo dia 17, acrescenta: Sr. Redactor — Rogo a V. o favor de dar publicidade a estas linhas numa das colunas do seu muito lido jornal para tornar o público conhecedor d’um facto. Pela publicação destas linhas Sr. Redactor, desde já me confesso summamente penhorado, e sou — A.C.S.P.» É o aviso de uma carta enviada à imprensa; mas onde está ela, que não se descobre? É impossível concebermos um Silva Porto a escrever Comunicados ao sr. Redactor, à semelhança de qualquer chicaneiro reclamante, homem vacinado desde pequeno contra os dissabores das desilusões. O facto a revelar ao público seria este: eu estudei pintura durante três anos, e não oito, tendo destinado os cinco restantes ao estudo de outras coisas; logo, se em pintura sou superior ao meu colega, que estudou quatro anos, fico muito grato a essa opinião. Outro facto notável seria a denúncia da árvore subtraída pelo arteiro candidato, no local escolhido pelo júri. Mas, que ganharíamos em levantar poeira numa discussão azeda, envolvendo todos, culpados e sem culpas, nas mais desagradáveis consequências? Silva Porto recordaria, inconscientemente, a ética caligrafada onze anos antes pela sua mão. O pai, que lha ditou na 21 ciclópea oficina da Bainharia, alto, delgado, barbicha grisalha num queixo saliente, olhos como brasas na expressão muito semelhante do Vulcano da Fragua de Velazquez, um Silva pintado por outro Silva, esse bom pai repetiria ao filho os conselhos de sempre: «Sê prudente — expõe-te a sofrer — não questiones — severidade connosco e tolerância para os outros — pesa as palavras», poupa as cóleras; devemos ser económicos, até nas catástrofes. As linhas a enviar ao redactor não existem entre os apontamentos acima referidos, nem se publicaram no Jornal. A carta, se tomou a forma escrita, não seguiu o seu destino. Dominados os nervos nessa hora histórica da sua vida, o artista nunca precisará de afinar a caneta para protestos e polémicas inglórias; não sofrerá da mania da perseguição, nem perderá o aprumo em controvérsias mórbidas, esses venenos da intriga que um dia farão a desgraça de Soares dos Reis. O gesto mais frequente do futuro paisagista será o da brandura, a condescendência do justo que estima a trindade estética dos sábios: o bem, o verdadeiro e o belo, acima das questões efémeras e das subterrâneas maquinações. Consistirá a sua luta em defender-se do mal, sem o provocar, que não é o mesmo, fugir à luta, confiando na verdade liberta das dedicações menos puritanas. Não foi preciso esperar muito. Dois dias depois, acusado o professor Resende de ser o inspirador da propaganda noticiosa, aparece um desmentido no Janeiro, assinado por aquele artista. Em 24, acossado de Lisboa por um colega, defensor do candidato Luís Domingues, é o mesmo Jornal da Manhã que confessa as suas «pequenas relações de amizade com Loureiro, abstendo-nos por isso, de lhe engrandecer o incontestável talento», já engrandecido anteriormente por ele e por outros, afectos ao jornalista politico Urbano Loureiro, irmão primogénito do pintor. O erro da parcialidade caiu por si, não sendo necessário ao candidato Silva Porto demonstrar qualquer ressentimento desagradável. S OMOS chegados ao dia da classificação, na qual intervém todo o corpo docente da Academia, atribuindo dezanove valores a cada um dos dois pintores. Mas essa classificação é de carácter escolar e corresponde ao terceiro ano de pintura histórica, 1873, em que os dois estudantes se matricularam. Agora, sobre as mesmas provas, entre as quais há duas paisagens, é necessário desempatar, escolhendo o paisagista que no estrangeiro, durante cinco anos, estudará por conta do Estado. O problema continua bicudo e apaixonante. Na opinião de Resende, Comércio do Porto, a bolsa devia repartir-se pelos dois concorrentes, dividindo ao meio o tempo e o dinheiro; quanto ao valor dos rapazes, exclamava: «Que poderiam eles apresentar, se a Academia não tem no seu quadro um professor de paisagem?» A desculpa e o alvitre discordam e não colhem. A Escola tinha professores habilitados, um deles era o mesmo Resende, pintor de género e de costumes abrangendo a paisagem, a palavra pintura diz tudo; de contrário, para que se abriu esse concurso? O professor exagerava: «Quantas atribulações de espírito nestes angustiosos dias da elaboração do trabalho!». Apoquentadíssimos na descoberta dum paisagista, e ele estava perto, tão real e perfeitamente erguido como a torre dos Clérigos. E o retórico Resende divaga, não se arriscando: «Dous arrojos 22 de Génio; compreendemos estas duas vontades de ferro (os dois candidatos) tentando, no seu voo altivo, aproximar-se de Apolo». Mas nós carecemos de uma decisão. Qual dos dois pintores é o preferido, o de melhores garantias? Fala-se em segredo, tornando o ambiente abracadabro; há zunzuns acerca dos pinheiros do Covelo, os que se pintaram e os que não se encontram, nem pintados. A nova reunião do júri está marcada para o penúltimo dia de Agosto; entretanto, na véspera do julgamento, sucede o imprevisto. Uma vertigem assalta o Loureiro no seu voo apolíneo e, levado por um rebate de consciência, que fica bem a todos os homens e melhor ainda num rapaz de vinte anos, procura o colega, a quem confessa o seu acto arboricida e a intenção de desistir do concurso. A resposta de Silva Porto foi breve, pausada, tão nobre como aterradora: «— Não me digas isso a mim. Quero continuar ignorando». A renúncia do rival foi participada pelo próprio na secretaria da Escola. Mais tarde, sexagenário, Artur Loureiro contou a um amigo que o professor António Correia o abraçara pelo seu elevado gesto, mas guardou respeitoso silêncio quanto à reacção do condiscípulo: «— Não me digas...», sem lhe agradecer nem ficar a dever o que nunca pedira. E os dois continuaram de relações, as melhores que se consentem neste mundo de enganos. Os episódios sintomáticos à volta deste concurso, agora revelados nos seus pormenores essenciais, iluminam, no alvorecer de uma carreira, o perfil psicológico do nosso biografado. Em seu redor, e a seu favor, outros lutam incontinentes, bate-línguas acalorados no ralho traiçoeiro dos sentimentos. A luta do artista vencedor é a da constância imperturbável, serena, ponderada, o saber calar, argumento mais difícil do que falar bem, e o saber operar certo como um instrumento aritmométrico. Para os outros, o impulso trágico das paixões. Para ele, a afetividade filosófica, tácita, tranquila, o ânimo fortalecido na timidez, que não é a angústia do acanhamento, antes será a verdadeira taciturnidade que, em alguns homens, diz J. Joubert, é uma das maiores qualidades políticas e, neste caso, o sólido abrigo de um talento superior. Na conferência de 30 de Agosto fica «aprovado por unanimidade o único concorrente em paisagem». O pintor, escultor e arquitecto, de futuro será pintor, e, no género de paisagem, o único, o primeiro entre os portugueses do seu tempo, por determinação voluntariosa do artista, em perfeita harmonia com outras vontades, respeitador das leis divinas e humanas. A portaria de 18 de Setembro nomeia dois pensionistas no estrangeiro: Silva Porto e Marques de Oliveira. Seguem juntos para Lisboa embarcando, rumo a França, em 29 de Outubro. Qualquer equívoco nas repartições oficiais ocasionou um atraso na primeira mensalidade, como se depreende de uma carta de 11 de Dezembro, assinada pelo conselheiro António José Torres Pereira, enfermeiro mor dos Hospitais, director dos Negócios Administrativos do Ministério do Reino, na qual, em resposta a outra do pensionista, se diz estarem à disposição dos interessados, pela Agência Financial de Londres, as importâncias relativas aos meses de Novembro de 1873 até Junho de 1874 (à volta de 54.200 réis mensais). A demora, acrescenta o zeloso funcionário, foi por «não constar nesta Rep., nem o dia da sua partida, nem mesmo o da sua chegada a Paris». O conselheiro Torres Pereira morava no prédio junto ao Hospital da Ordem Terceira, frente ao pátio e 23 traseiras da Academia de Belas Artes. Do seu rancho de filhos faz parte a menina Adelaide, ao tempo com uns onze anos, onze inocentes e risonhas primaveras. Quem ousaria adivinhar? O pensionista de Paris, homem de contas certas, ao reclamar os dinheiros atrasados, dirigia-se ao seu futuro sogro. Por sua vez, o ilustre burocrata da capital, ao dar plena satisfação a um jovem artista seu desconhecido, estava escrevendo àquele que deverá ser um genro modelo. Q UANDO se pretende encarecer e distinguir o génio invulgar de una personalidade, é usual esta afirmação: «inconformado com os processos adoptados, insatisfeito com as orientações que lhe impuseram…» Ideia feita aplicada a esmo para justificar os que desesperam da originalidade, envolvendo neste anseio legítimo os pobres insatisfeitos que confundem revolução com reprovação. Silva Porto não escapou àquelas mesmas palavras matraqueantes nas monografias de artistas, mais ou menos mitrados, que não servem a placidez fleumática do pintor submisso, respeitador da ordem e do «manda quem pode», igual no comportamento do seu humor merencório ao paradigma rácico de outro Silva tripeiro, o Velasquez de avoengos portuenses. Agindo desde novos sem qualquer irrequietismo morboso, triunfando benquistos, ambos primaram pela bondade na apreciação de juízos problemáticos, os imprevistos por mais cruéis e hostis que fossem ao seu individualismo. Separados no tempo e no espaço, dir-se-iam rebentos naturais da mesma cepa: o auto-respeito delicado, a fidalguia de maneiras que esconde os melindres próprios e desculpa os alheios. Ambos acataram os preceitos da escolaridade constituída, não por fraqueza ou medo, mas por estímulos afectivos que são alimento e força pessoal da mesma timidez. Ao longo do seu caminho silencioso, macambúzio, Silva Porto evita as curvas perigosas e descobrirá um mundo original na sua arte, sem desesperos nem protestos recalcitrantes. Vamos acompanhá-lo, sentindo a escassez de referências à estadia do pintor no estrangeiro. Não cultivou a epistolografia, igual aos seus antepassados sob a influência das realizações práticas; e a documentação oficial dos dois pensionistas, Marques e Porto, que deveria existir no arquivo da Escola do norte, desapareceu, segundo nos informa o seu antigo director e prof. Joaquim Lopes. Certamente, houve cartas à família e a algum amigo, mas o que resta limita-se a breves e correntias informações de parco interesse para o analista do documento humano. Mas nem tudo se perdeu. Sabemos que o primeiro Natal longe da pátria, 1873, foi celebrado no quarto parisiense do futuro paisagista, onde se reuniram os colegas portugueses, incluso Vitorino Ribeiro, que transmitiu a notícia, cada qual contribuindo para as vitualhas, o Porto de honra à frente, as boas contas numa alegre e feliz consoada. Quanto aos estudos do novo bolseiro, arquivam-se os primeiros ecos no catálogo da 11.ª Exposição trienal da Academia portuense, 1874. Do aluno ausente em França exibiu-se um destacado conjunto de estudos: o desenho do modelo vivo, concurso para entrar na «Escola Nacional e Especial de Belas Artes de Paris»; outro desenho do antigo, sob a direcção de Yvon; a «Academia» do seu concurso no Porto para o pensionato; mais dois desenhos, um do quinto ano, 1870, digno do «primeiro prémio pecuniário»; e, para lembrar o estudante de escultura, figuravam três cabeças modeladas 24 do antigo, um «grupo» e duas estátuas do quinto e último ano com «elogio e louvor». Presenciando essas provas, alguém perguntou ao Samodães como poderia arranjar-se um paisagista sem pintar? «— Mas está aqui! Vejam isto!» — Efectivamente havia dois «estudos» a óleo, um de Fontainebleau e outro de Auteuil, árvores de tímida e conscienciosa factura, o balbúcio de uma promessa. O nosso pintor anda pelo famoso bosque, na esteira dos barbizonistas; talvez já cumprimentasse Millet na sua choupana. Talvez, mas ainda se coçava o queixo, duvidando do optimismo académico do vice-inspector de São Lázaro. A submissão de Silva Porto aos programas — obedece quem deve — reconhecemo-la, mais uma vez, na pasta que guarda as recordações da sua aprendizagem. Assíduo na Escola de Paris, como foi nas da sua terra, surge de novo o filé da matéria policórdia. Um dos estudos, 1874, é o desenho arquitectónico aguarelado, com a nota do lápis professoral: Il-y-a beaucoup de bon dans ce dessin — les ombres sont faites de sentiment — et nous n’en sommes pas encore aux voûtes. O exercício metia abóbadas; no seu querer e haver estava em causa a sensibilidade do artista, ainda convalescente das antigas bexigas doidas, o curso de arquitectura sem futuro, mas em breve atingirá a cúpula, o remate, a finalidade e coroamento emocionais da construção plástica. O censor observou na mesma prova: il faut noter les points accidentels des ombres. Quem diz sombras, implicitamente obriga a pensar na luz, origem de todos os fenómenos relativos à cor e ao claro-escuro, o acidental e o previsto, o casual e o terminante. Bon dessin é a rubrica de mais um estudo assinado em Janeiro do mesmo ano, o primeiro de pensionista. Noutra folha laboriosa, onde não falta o sentimento, quer nas linhas règuadas, quer sugeridas à mão levantada, o professor notou a desnecessidade de escrever «linha do horizonte» sobre a dita, e acrescenta: Dessin distingué à joindre aux Épures d’admission. O rapaz cumpre sem relutância; enfileira entre os escolhidos. Épure quer dizer obra concluída e asseada, em oposição ao devaneio ou improviso, tal a perspectiva a traço rigoroso de um cais do Sena, Notre Dâme ao fundo da composição, 3 de Abril de 1875, meticulosidade nas datas que o artista não adoptou nos óleos. O pensionista, élève de Mr. Cabanel, presença astral do mestre de modelo vivo, substituído à noite por Yvon, no desenho do gesso, vai em dois anos e continua trabalhando à régua e compasso na prancheta. Pròpriamente a pintura, pratica-a o aluno com os especialistas da paisagem, Groisseilliez e Beauverie, nenhuns fura-paredes no universo artístico, mas probos animadores da juventude académica. Entre os conhecimentos teóricos e científicos, a preferência está nas perspectivações, velho prurido nas suas curiosidades, um discípulo atento à voz de Leonardo: «o pintor, antes de mais nada, deve saber perspectiva». Na prova contendo uma escadaria, escreveu o professor: Très bonne étude. Voilá un dessin compris. Cependant les marches dégradent mal. Elle doivent diminuer en montant. O mestre exigente no dever, é animoso por devoção; outra folha com alguns «Princípios» da sedutora disciplina regista as palavras: Toutes les indications sont bonnes. Um desenho de sombras precisamente determinadas pelo teorema Desargues, o melhor amigo de Descartes, perspectivador metódico da échelle fuyant, conserva a nota breve 25 e categórica: c’est une bonne étude. Mais outro com este aviso inesperado: C’est tres bien, mais c’est trop travaillé au point de vue de l’artiste. Perder a sensibilidade é que não. Haja menos ciência e paciência, e mais verdade emocional. Maravilha-nos essa atenção docente a um modesto artista português entre quinhentos estudantes de pintura, a média desse curso, obrigados a frequentar as aulas de perspectiva, juntamente com outros tantos arquitectos e cenógrafos. Ensinava-se o pintor a ver justo através de ensaios representativos, visão que depois se integra no sentimento da simples mancha expressiva, que o público mal repara, julgando fácil o trabalho de uns minutos, síntese e resultado de muitos estudos experimentais. O deus da floresta, que Silva Porto vai espreitar e surpreender frequentes vezes, Millet, criador de um estilo inconfundível, confessou ao amigo Sensier: «Não sei como aprendi a perspectiva; habituei-me a ela e poucas vezes me engano, reconhecendo ser a pedra fundamental da minha obra. Sinto, exprimo, mas não posso demonstrar». Incutiu-lhe esse conhecimento, é sabido, o pintor de história Delaroche, muito naturalmente, sem incompatibilidades nem dogmatismos recalcados, antes pelo contrário, defendendo a sauvagerie de Millet contra os condiscípulos: «Façam como ele, e fazem bem; é claro, si vous pouvez». Mas ninguém aceita o que desagrada. Vitorino Ribeiro, frequentando o curso de Cabanel, observou algumas «partidas» de estudantes feitas a Silva Porto, irritados pela compostura sóbria do português, económico nos sorrisos, na camaradagem, «orçamentos regulados» que não permitiam comungar em bizarrias espaventosas. Segundo o mesmo informador, houve «castigos» cabanélicos aplicados aos perseguidores do caloiro. À parte qualquer exagero, acreditamos nos «orçamentos» do homem previsto e prevenido que vale por cinco, boémio a seu modo, que a pensão não era elástica para estouvamentos, «Façam como ele», seria a resposta, o indicado ralhete de ordem superior. Mais verosímil nos parece esta observação de Cabanel, igualmente transmitidas por Vitorino, depois de Silva Porto justificar uma longa ausência com os estudos de ar livre no Oise, à sombra de outro deus, Daubigny: «Faz muito bem dedicar-se à paisagem; mas cautela! Não abandone a figura que, na paisagem, é muito necessária.» O conselho trazia água no bico e não será desprezado; servia para todos os de Auvers, vila do Oise, a capital do ar-livrismo vigente. Em mais uma das folhas conservadas na pasta, escreveu o lápis do mestre; Exact! Uma legenda e um prognóstico. A palavra não significa apenas a correção, o rigor primoroso da metodologia formalista, É uma ordem e diz: basta! Deixemos o tira-linhas, o esquadro e exaltemos a verdade, au point de vue de l’artiste. Algo semelhante aconteceu ao inefável Corot, quando Michallon, paisagista «histórico», lhe pedia que fosse exact et ponctuel. Analisava-se a natureza através da pedagogia de atelier, a educação da vontade e do recolhimento, o silêncio de monge, mais do que um estudo de pintura. Morto aquele mestre, o discípulo vai parar às mãos de Vítor Bertin, velho satélite do pragmático David, e com este permanece o escrúpulo da verdade exacta, como eles a sentiam, uma verdade recta, embora idealista e sonhadora, que, vamos lá, tornou possível a arte original do atento e disciplinado Corot, estudando o ar livre sem disso fazer questão. E pontual em quê? Na obrigação de estar 26 em dia com as suas ideias, pois nada vale chegar a horas sem um propósito na mente. Pontualidade sem finalidade de pouco serve. L ANÇANDO um olhar à época, não é difícil conjecturar as andanças de Silva Porto na Meca das artes, através das preferências do seu espirito. O Salon de 1874, o terceiro do après-guerre, deu-lhe a conhecer os paisagistas e costumistas franceses ou afrancesados: Vibert, então na voga com teatralidade popular da sua «comédia na pintura», hoje apenas um nome no receituário dos vernizes; Pille, Edmond André, Roybet, de Beaumont, Fichel, Firmin Girard, o indefectível Delort, servindo-se da mão esquerda, depois de paralisada a direita, e outros pintores de género, italianos, espanhóis, de toda a parte pressurosos, não vá a sorte escapar-se por todas as mãos. Decorridos quarenta anos, a paisagem conquista uma especialidade independente, la peinture portraitiste de la nature, na revisão mais justa dos antecessores holandeses, Ruisdael, Hobbema, e os ingleses Constable, Turner, Fielding. Um novo culto e compreensão da árvore, outro sentimento da poesia na imensa orquestração dos verdes, prepararam em França o clima a Paul Huet, Th. Rousseau, Millet, Corot, os dois últimos relíquias da primeira geração de paisagistas, vivendo os instantes fugitivos do crepúsculo derradeiro. Continuaram o movimento da família pontifical os herdeiros Chintreuil, François Français e o maior de todos, Charles Daubigny, testa coroada entre centenas de cortesãos, habilidade vulgar de Lineu. Mas o nosso pensionista, depois de contemplar neste Salon o Corot do Souvenir d’Arleux, tons ambarinos da luz no ocaso, deveria pasmar ante os novos da terceira geração, numerosa, ambiciosa e avançando, diz Gonse, com o garbo e «a majestade de uma legião». Harpignies, antigo recusado, agora um corifeu medalhado, apresenta o seu Bords de l’Aumance, densos arvoredos espelhando-se nas águas adormecidas: Bernier e Defaux, contemplativos e refinados no charme; Lavieille, delicioso no seu prisma melancólico; Nazon, Jacomin, Dameron, poetas da hora cinzenta; Daliphard, a visão lutuosa no sentimental Cemitério na primavera, e Lapostelet, marinhista, Guillemet, Mouillon e Japy, da numerosa família corotiana; e os luminosos paisagismos nas cenas campestres do Lhermitte; e as belas praias do russo d’Alheim, os animais dos holandeses Mesdag e Mauve. E as amargas rêveries dos que não tiveram acolhimento oficial, abrem o 1.º Salon de independência em casa do fotógrafo Nadar, engrossando o berreiro de que a paisagem académica dos Bertin e dos Aligny estava suplantada, esquecida, ausentes os admiradores de outrora. O tempo marcha, a vida segue, os gostos evolucionam, mas ainda havia os saudosos da belle époque, reagindo, misantròpicamente sinceros, contra o alarde interesseiro dos tartaranhas ocasionais. Silva Porto observa o chorume artístico de uns, arregala o olho para o talento positivo de outros, convencido de que vale a pena ser paisagista, apesar da conversa fiada de muitas ideologias contraditórias, a crítica doutoral desnorteando os afoitos. O seu caso lembra o de Turner, homem de «orçamentos económicos», frase de Ruskin, uma qualidade prática a recomendar as qualidades artísticas, origem da fortuna e da categoria de primeiro paisagista inglês. Como ele, o portuense estudou perspectiva, arquitectura, reserva de cabedais 27 para o dia em que a pintura faltar à sua palavra, na inspiração do autor e na fé do público. Neste Salon de 1874 há um chefe a deslumbrá-lo, satisfeita a sua curiosidade ardente: Daubigny, le dieu Pan, o tudo e o todo na universalidade artística do ar livre, expondo uns Campos em Junho, a nota rútila das papoulas em flor, sem embargo do reverso da medalha, ciciado e escrito a respeito deste quadro: Son exemple n’est pas bon à suiDesenho vre. Ora essa! Então porquê? Próximo dos sessenta, depois de uma mocidade difícil e trabalhosa, Daubigny não estaria de pés para a cova, mas, vítima da glória e da sua hierarquia dominadora, esgotara-se, falto de centelha. As encomendas obrigam-no a repetir as mesmas águas, verduras, atmosferas, raramente a figura humana ou animalista. Como um agouro denunciado pela crítica, Silva Porto chegara no momento do terror pânico sobre os perigos e caprichos da fama, a que não permite servir dois Senhores a um tempo. Mesmo assim, depois de procurar o pintor das papoulas no seu confortável atelier dos Orfèvres, toma algumas lições do filho Karl Daubigny, encarregado de receber quantos batiam a porta do mestre inacessível. Oficialmente, o nosso pensionista nunca se dirá discípulo daquele afamado pintor, embora lhe saboreie a influência nos dois anos seguintes, por intermédio da obra mais representativa, e do próprio Karl, em intimidades e confidências nos segredos de ofício. Uma mancha de azuis enegrecidos, do filho Daubigny, dedicada à son ami Porto, descoberta e adquirida por Diogo de Macedo (Museu de Arte Contemporânea) documenta essa camaradagem artística no sortilégio dos empastes expressivos. De Janeiro a Fevereiro de 1875, sucumbem dois vultos incomparáveis da arte francesa, Millet e Corot. Muito se falou nesse ano de paisagens e de paisagistas! Silva Porto teve ensejo de admirar uma exposição póstuma do consagrado autor do Angelus, em benefício dos filhos na mísera orfandade. Que desacerto, Daubigny rico e Millet pobre! Na admirável mostra do pintor da vida rústica, moderno Poussin das pastorais transviado da sua Arcádia, figuras humildes sob a tirania da gleba, cabeças inclinadas na doce resignação de mansos cordeiros, citou-se a frase do artista acerca de um seu poente: «Desejaria que resultasse banhado de uma certa tristeza»; como aliás em todas as cenas observadas do natural e nas quais o artista expressa a sua melancolia e fatalismo, uma intensidade afetiva sem retóricos fingimentos. A esta lição de magistral intimismo não ficou alheio o pintor da futura Charneca de Belas, uma tela de «assunto feio, por ser lindo» à tristura dos seus olhos. O outro morto insigne, Corot, deu lugar a um eloquente conjunto de duzentas obras reunidas na Escola de Belas Artes, à parte os 28 estudos na venda efectuada no atelier do mestre desaparecido; e mais uma exposição no Hotel Drouot (catálogo de seiscentos números), atingindo essa liquidação perto de dois milhões de francos. Que prazer, estas retrospectivas! Mão-cheia de surpresas, soma de particularidades exemplificadoras de um espírito voluntarioso e fecundo, a Natureza acolhedora servida pela técnica sumária do noble et doux génie, um mínimo de efeitos sem recorrer aos vermelhos para incendiar os crepúsculos, sem necessidade do vento para agitar os arbustos e as nuvens, brancos de pérola da luz virgiliana, os valores justos congraçando as várias simpatias pela paisagem, mesmo a de Whistler, rebelde ao moderno «impressionismo, negação da luz». Pode situar-se neste ano aquele pequenino óleo, um riacho ladeado de árvores (Museu de Soares dos Reis) harmonia dos contrastes tranquilos, a presença corotiana no espírito do pensionista. A paz eliseia e a arte, que deviam andar juntas, nem sempre se encontram. No Salon de 1875, sem respeito pelas três pinturas de Corot, expostas e cercadas de crepes negros, observou Silva Porto as questiúnculas dos recusados e dos admitidos por favoritismo. Muitos quadros e muita tinta inútil, a habilidade na busca do pequeno sucesso, perseguindo os truques da «contrafação mecânica da fotografia». Temos o culto do morceau, glorificação do esboceto, da mancha, da pochade sem arcabouço para obras definitivas. E de quem a culpa? Do paisagista, evidentemente, menos do pintor de retrato, do compositor de painéis que não se limita a expor apontamentos. Com tantos e sérios intérpretes, é pena, diz Montaiglon, a paisagem perder-se na «improvisação vaidosa e fácil», para ser rápida e lucrativa. Nos mesmíssimos termos ouvirá Silva Porto a objurgatória de Fialho, num futuro ainda distante, ao que o artista responderá no mais profundo da sua alma: — Conheço o sermão, esse castigo de instituição bíblica, a luta dos que criaram fama e não têm direito a dormir. O pensionista que desenhou para quatro cursos, agora presta os seus cuidados à composição de figuras humanas e animalistas; observa os pormenores essenciais da complexidade de um assunto, compara as diferenças, gradua os contrastes, educa a memória visual, essa divina graça tão estimada por Millet e Corot, indiferentes aos novos doutrinadores, orelhas moucas à rebeldia dos Pissarro, Sisley, Renoir e parceiros, E se for perigoso o virtuosismo de Daubigny, temos o Louvre para os desfastios repousantes, onde o nosso artista realiza um adorável estudo da infanta Margarida de Velasquez, a sua homenagem ao Silva maior, e em recordação saudosa das duas Margaridas tripeiras, a mãe e a madrinha do pintor. Há uma baixa na Escola de Belas Artes, a morte do honrado Pils, consagrado pelo seu Rouget de l’isIe. Os bons, dizia-se nas aulas, vão-se embora, esquecidos e desiludidos. E para que serve o patriotismo histórico na pintura dos bons? É preferível a tal fadeur, contestavam outros, uma mancha naturalista dos novos. Montaiglon discorda e amaldiçoa a palavra «impressionismo», inventada há um ano pelos Monet, e Charivari, heresia prometendo tudo aos curiosos do achado, o quadrinho bugiganga em série, a pintura a eito, calculista, materializando o ideal, a fantasia criadora. Decorrida uma dezena de 29 anos, Silva Porto ouvirá, pela voz teócrata de Ramalho, idênticas censuras à obra fragmentada do Mestre, que responderá, concentrado no mais intimo das suas recordações: — Nada me ensina esse horóscopo, pesando sobre o homem desde o principio do mundo. Está dito. Pagarei as consequências de Chefe e os pecados do amadorismo alheio. Ao dar conta do recado como paisagista, o nosso pintor alheia-se quanto pode das questões hipercríticas. «Não vos preocupeis com doutrinas: caminhai para a frente, seguindo o vosso destino», recomendava Constable aos franceses de 1830. E foi para estes e seus discípulos que o pensionista dirige o olhar, abeirando-se dos Pelouse, Cassagne, Segé, quase todos gravadores, dominando a ilustração compensadora das invendáveis paisagens, notando, igualmente, as cenas de caça de Maxime Claude, o corotista Flahaut, o animalista flamengo Xavier de Cock; outro que tal, Lambert, e os admirados cães e carneiros de Schenck. Tanta variedade na mesma especialidade embaraçava até ao esgotamento. Que estaria reservado a essa invasão de lona pintada, incertos os favores do público e da crítica, a cotação dos artistas oscilando, contraditória, na Babilonia da arte? Um dos barómetros coevos, que melhor define a situação, é o artigo de Bonnafeé na Gazette des beaux-arts, fins de 1875, intitulado: Le pour et le contre. Tão actual e profético que ainda hoje se pode ler com verdadeira surpresa: «A nossa arte está condenada à morte por falta de génio criador … e o pressentimento deste desastre inquieta-nos. Acabaremos na miséria». O artigo frondeur e filosófico, um diálogo de oito páginas, concluía pela voz de um interlocutor optimista: «Não se deve desesperar do seu tempo nem do seu país. Ante os túmulos ainda quentes dos veteranos Millet e Corot, saudemos o exército que sabe combater até ao último cartucho». Nos cafetins e brasseries os estudantes portugueses ouviram do bom e do bonito a respeito do pour et le contre, tomado à letra ou explorado nas entrelinhas: — És a favor ou contra? — Perguntem isso ao maladroit Courbet, o processo da «coluna» às costas, ambicioso realista fazendo da arte um trampolim para a política. Assim desprezavam o exilado chefe de escola. C OM o sangue frio dos que não fervem em pouca água, perfeito e exact a seu modo, Silva Porto confessou nesta ocasião a Vitorino Ribeiro não perceber patavina de semelhantes discursos, preferindo à luta e desconcerto dos partidos um bom concerto musical: — Do que nós precisamos é ver; ao pintor basta-lhe a faculdade de ver. Quanto a ouvir, só por música, da melhor contextura sinfónica e bem orquestral. Sempre que os trezentos francos da pensão o permitiam, era aquele o seu lazer de maior aprazimento, à margem da pintura, e de preferência aos livros e jornais. Muitas vezes, dizia Ribeiro, surpreendemos o paisagista no seu trabalho, a trautear em surdina longos trechos de ópera. «É belo como Gluck!», frase habitual de Corot, preso ao motivo plástico, aos encantamentos e à musicalidade dos temas coloridos. Também o velho mestre arrumava os livros no atelier, como bibelots, sem os abrir, outras contemplações visuais e auditivas dominando o espírito do pintor. Foi com uma paisagem de melodias daubignianas que Silva Porto se estreou no Salon de 1876. Que longe estamos do improvisado artista da quinta do Covelo! Este quadro, Margens do Oise, é retintamente francês; horizonte 30 de brumas, águas cinzentas, verdes frios da manhã sob um céu rosado, no primeiro plano, um carro e duas figurinhas típicas no seu justo lugar. Depois de muito discutida a organização destes certames, uns alvitrando a conveniência dos Salons trienais ou bienais, outros insistindo pelo regime anual, resolveu-se a favor do último com uma cláusula: as obras apresentadas por cada expositor seriam duas, em vez das três costumadas. Mesmo assim, a invasão foi considerável; houve 43% de recusados, entre os quais Cézanne; alguns reuniram-se no Durand-Ruel, excepto Manet, independente de todas as independências, que preferiu expor no seu atelier. A tela do nosso pensionista é uma entre duas mil, impossível de se tornar reparada. E que admira? No mesmo Salon está um desconhecido, Gauguin, o futuro fundador da seita selvagista, que passa entre multidão como um João Ninguém. Estreias surdas, para desanimar o mais pintado, foram as de Millet e Diaz, este aleijado da perna, son pilon, como ele dizia, batendo o pau no soalho e a cara alegre. Outro dos grandes, mal colocado nas paredes, algumas vezes recusado, Corot, o do bom humor: — «Estou nas catacumbas, e graças….já não é mau». O nome no catálogo era um atestado e valia como figurar no rol das divindades; o resto não contava. Nesse ano observou-se que o melhor da paisagem ficava esmagado pelo retrato, pelas cenas históricas, decorativas e anedóticas, ou então, segundo Iriarte, les paysagistes se recueillent, fatigados, sem chispa renovadora. Ora a verdade é que a tela de Silva Porto honrava a escola francesa, ao lado do Harpignies, do Beauvais, do Hanoteau com o L’eau qui rit, título hiperbólico de um regato falando como gente, de tal modo se desejava «retratar a natureza». Mas a pintura, quando tiver alguma coisa que dizer, não precisa de legendas literárias, recurso artificial que o pensionista dispensa e detesta, evitando-o na futura carreira de pintor. Do mestre Daubigny, seul sur la bréche, interrogava-se que seria feito do seu Botin, o barco-atelier flutuante do Oise, em viagens poéticas da ilha Adam até Conflans, de Andelys até a ponte de l’Arche, o seu maior sucesso depois de 1859, consagrado o pintor dos verdes húmidos, nas margens de águas preguiçosas e nostálgicas. Noutro sector, o 2.º Salon dos inconformistas, faltou Cézanne, la bête noire des collectioneurs, recusando-se a si próprio. A morte continua a sua ceifa, cabendo a vez ao Fromentin, artista pensador de cuja obra se faz uma retrospectiva, sem escapar o pobre Diaz, um dos que sacrificou nos bosques de Fontainebleau, amando os troncos Centenários: «Já viu o meu último tronco?», dizia o paisagista aos curiosos de novidades. A especialização, com suas fèzadas e maneirismos, teve ocasião de verificar Silva Porto no Salon de 1877: Desbrosses a espairecer entre montanhas e vales; Bernier rezando no silêncio das florestas; Herpin, daubignista, e Guillemet, corotista e muito hábil para abichar medalhas, ambos procuram na paisagem a «vida activa», colinas e vegetação em diálogo nos acidentes do terreno, opondo-se à natureza étouffée dos românticos retardatários. No fundo desta songamonga intelectual que nada tem a ver com a arte, o falso verniz descobria reminiscências de Millet, imitações do Pelouse, pastiches do Français, la personne terrestre do Harpignies, a natureza ciciando ao pintor os segredos da sua existência na marcha das estações. O nosso pensionista, de saturado, já não teria olhos para ver, nem pernas para aguentar o passeio de tanta 31 pintura; mas ainda apertou as mãos do Busson, encantado pela sua modéstia, do Vernier, do Veyrassat, do Adolfe Guillon e outros parceiros desse ano, expondo ao lado de muitos rebarbativos, os que só pintam a lua, minguada ou redonda, de ouro, de prata ou numa mystique pièce de cent sous (Duranty). Não lhe escaparam os contrários ao ideal daubigniano, os que consideram o homem e os animais figuras importantes na paisagem, de preferência o boi, criado em estábulos de luxo, como os do holandês Van Marcke, discípulo de Troyon, ou as vacas castanho-roxas de Barillot, ou o toiro assomadiço, bem plantado, predilecto de Bonnefoy, ou ainda, e estes de mais carácter, os bois do trabalho rural de Vuillefroy, observados na marcha, focinho pendente, olhos pestanudos traduzindo submissão à terra; belos exemplos na especialidade animalista, impossíveis de ultrapassar em apuramentos de visão plástica. Os impressionistas de 1877, os barras do mais além, agrupando-se pela terceira vez, sem êxito, passam despercebidos ao estudioso Silva Porto. Certamente, nunca os conhecerá. Aqueles expunham, segundo o crítico Roger Ballu, a «impressão do inverosímil», e os da Escola arquitectavam o quadro antes de o pintar, servindo-se de massas dominantes, de linhas combinadas para esse domínio, a «proporção» nos volumes, nos valores, nos efeitos, regras áureas de que resultam a unidade, o equilíbrio, o naturalismo da mestrança primitiva e de todos os tempos e lugares, incluso os orientais, e, entre estes, os japoneses; a verdade do natural e a naturalidade do verdadeiro, servindo tanto à ciência como ao belo, pois Natura non facit saltus. As conquistas na arte da paisagem estavam concluídas. Se por um lado, pointillismo, divisionismo e outras carreiras de pintores cientificistas intoxicados de Chevreul não comoveram o nosso pensionista, por outro lado, e sem grande esforço, não tardará em separar-se da influência do Daubigny, salvaguardando dois princípios fundamentais transmitidos pelo velho e experimentado pintor do plein air: Primeiro. É um erro levar telas de grandes dimensões para o campo, na crença ingénua de rivalizar com a natureza. — Repara, onde me levou o excesso de amor a verdade, dizia Daubigny ao filho, apontando o célebre quadro Champ de coquelicots, de mais de dois metros, feito dez anos antes: — «Tive de repintar em casa tudo quanto realizei d’aprés nature», Apontamentos no local, uma boa documentação para exercício da memória, mas o quadro é no atelier que se pinta. Manet e Degas, impressionistas, eram da mesma opinião, e não faziam segredo. Segundo. Nem sempre a natureza nos apresenta um assunto arrumado e perfeito. O génio do paisagista é que resolve, corrige, completa, acentua ou suprime até alcançar uma harmonia de seu agrado, sem recorrer a extremos absurdos semelhantes aos de Pelouse, que comprou árvores para depois as mandar abater. (O caso do jovem Loureiro em 1873). Silva Porto compreendeu os dois enunciados que pôs em prática nas paisagens do Oise, principalmente na tela do Lago de Enghien, reconhecendo neles a essência da Arte em todas as épocas e escolas. Depois veremos como se utiliza da verdade caligráfica, bien écrite, oferecida pela natureza ao pintor, 32 transfigurando-se em verdade artística por um processo afectivo de emoções e ensinamentos. Porém, um terceiro conceito do Senhor do Oise agradou menos ao portuense, e com razão. Ao copiar a tela daubigniana, Uma presa de água, verificou, nesse treino obrigatório do seu programa, a presença de uns bovinos sem qualquer interesse no quadro: animais verbo de encher, sumidos numa escala inferior à do tema paisagístico. E veio a explicação: Daubigny aborrecia as figuras, fraco desenhador sacrificando os seres vivos em benefício da paisagem. Quando terminava uma pintura a seu gosto era costume ouvir-lhe dizer, piscando o olho malicioso: Je mettrai lá une petite table. Assim designava as vacas e bezerros dos animalistas, umas «mesas» no prado, a paisagem guarnecida, «mobilada» com os indispensáveis patinhos nas águas dos seus múltiplos regatos. Nesta encruzilhada de vias estéticas, o discípulo reconheceu verdadeiro o conselho de mestre Cabanel, de que nunca se apartará: a figura é a personagem principal do quadro; ou ainda, empregando os termos do bom Millet: «Pintando um quadro de paisagem, pensareis no homem, na sua alegria ou sofrimento; pintando o homem, pensareis na paisagem». Quanto às cópias do aprendizado, Silva Porto inclinou-se para obras de outra significação, a Estalagem árabe de Delacroix, os belos animais de Troyon, a infanta de Velazquez, antes citada, e muitos outros apontamentos lançados nos álbuns rabiscados em todos os papéis caídos a jeito, instruindo-se pelo desenho, seguindo à letra o aviso de Harpignies, grande paisagista figurativo: Si vous passez deux heures à faire une étude, dessine une heure trois quarts. Desenhar e realizar bem leva tempo. Para a inspiração basta um quarto de hora, uns minutos, os segundos de um relâmpago; mas a obra não se corporiza sem o labor, estudo, as penas do trabalho. «Não se pinta com um suspiro», escreveu Poussin, experimentado nas agruras da obra concebida e longamente suspirada. Os estudos em Paris estavam praticamente concluídos para os dois pintores, Marques e Porto, que se comprometem passar em Itália os últimos meses do pensionato. Ao interesse espiritual, justificando a viagem, aliava-se, para o paisagista, a necessidade de respirar outros ares mais benéficos à saúde, ressentida pelos Invernos franceses e pelo saturnismo das tintas, ao que parece, obrigando-o a quarentenas maçadoras. Deve relacionar-se ao facto o episódio que ouvimos narrar acerca de uma nota de despesa, extraída de um caderno de Silva Porto, por azar caído nas mãos de um colega. A nota principiava por allumettes, incluía o azul da Prússia (um veneno) adquirido no Merlin, mais outras miudezas caseiras, até concluir: fille du pharmacien... 12 frs. Não tardaram os patrícios piadistas a explorar o achado, incitando o gastador económico a explicar o seu «orçamento» com a filha do boticário. Se não foi um santo impenetrável às tentações cupidíneas, ninguém conheceu homem mais prudente e discreto: — Fui à farmácia, disse como única resposta, receber tisanas, xaropadas, tratamentos, «sem nada ficar a dever». E abalaram para o sul, estagiando em Florença e Roma, aqui com mais demora, não sendo possível determinar o itinerário. Na capital do Cristianismo folgaram de surpresa com Artur Loureiro, ali residente e subsidiado pelo fidalgo Delfim Guedes, subsídio a que teremos de referir-nos, mais adiante. O clima artístico em Roma é o de Fortuny e dos pintores do rissorgimento, um 33 tanto alheados dos primitivos de grande estilo; prevalece a pintura de género, o pintoresquismo regionalista, algumas máquinas de composição histórica e um Pradilla, pensionista espanhol, a ensaiar a sua peça teatralmente paisagística, Joana a doida. Adaptado ao romanismo vigente, Silva Porto experimenta a pintura do nu (um óleo dessa natureza, talvez o único da sua autoria, demonstra a compreensão do assunto, em que não persistiu) e vai deliciando os olhos com os quadrinhos do animalista Filippo Palizzi, com o romântico Fontanesi, um substrato de Millet, com o Doménico Morelli, o fortunista de maior influência entre os italianos; mais o Cremona, Cortazzo, Pascutti (os dois últimos seus conhecidos de Paris) e uma geração de pintores equevos dos portuenses: Michetti, Segantini, Mancini, Bianchi, Ettore Tito, Sartório; grandes artistas da nova Itália de Cavour, unida e próspera nas manifestações da sua cultura. Mais objectivamente, que fazem os três pintores portugueses em Roma? Além das obras conhecidas, temos apenas duas notícias que incidem directamente sobre o nosso biografado; uma de transmissão oral, a outra por documento escrito. A primeira conta-se deste modo: Convidado o pintor Pradilla a visitar o atelier de Loureiro, na ausência dos dois colegas, o espanhol notou, curioso, algumas telas e tábuas de Silva Porto, arrumadas a um canto. Julgando aquilo obra do mesmo Loureiro, exclama o visitante, impensadamente: Pero hombre, esto me parece lo mejor de usted! Desfeito ali mesmo o engano, Pradilla não se perturba e felicita na pessoa do artista presente os companheiros «dignos uns dos outros». Também constou a possibilidade da cena ter acontecido entre o espanhol e Marques de Oliveira, o que nos parece improvável. Do incidente pícaro, imprevisto, resultou esta lição: o destino ratifica em Roma a sentença do júri portuense, no concurso de paisagem efectuado em 1873. Pradilla recomendara Nápoles e Capri aos colegas lusitanos, sugestão que aproveita Silva Porto, no seu transformismo de necessidade biológica; e ele aí vai, à faca-sola, sem esperar pelos camaradas indecisos. O pitoresco dos costumes, as figuras regionais inspirando confiança, um sol acolhedor, um céu azul como nunca vira deslumbram e animam o artista no seu estudo. A outra notícia, documental, confirma a primeira de modo indirecto e subjectivo. É a carta de Capri, 24 de Abril de 1877, dirigida ao Marques de Oliveira, em Roma (Diário do Norte — 10-11-1950). Silva Porto roga ao amigo o envio de toda a correspondência em seu nome: dispõe-se a permanecer na ilha dois meses e trabalhar nas pinturas, «seja o que for», da última remessa à Academia, beneficiando das vantagens oferecidas pelos modelos da terra, embora os motivos a recolher sejam «matéria» pouco variável. Com boa vontade sempre se «dará um jeito»; mas a sua tranquilidade leveda incerteza: «parece-me que estou desterrado». Pede ao colega uma resposta sem demora, para a ilha, «um paraíso» com bons ares, boa mesa, lindas vistas «que inspiraram tantos poetas como Virgílio, Tasso, Sannazaro e muitos (se for asneira deixa passar).» E não era asneira recordar tão insignes vates no doce enlevo da região vezuviana. Isolado do mundo, o epistológrafo nunca se mostrou tão exuberante como nesse dia de Abril mediterrânico, solicitando ao amigo novidades, «alguma coisa de aí ou do Porto» e que o previna no caso 34 de o Marques descer até Nápoles. Na realidade, alguma coisa parece bulir na consciência do artista. O melhor das cartas vem sempre no fim, e chegamos ao quid do problema neste pormenor do taciturno, nunca supérfluo em afirmações: «Recados ao Tavares e ao Director», duas pessoas que não tentámos identificar. Recomenda-se só a esses, e, logo a seguir, outro pedido fala-me do Loureiro. Poderia ter acrescentado: é preciso não perdê-lo de vista. «E enfim, termino a minha carta ao som da tarantela, e extasiado da natureza de Capri te aperta a mão / teu amigo e colega / Porto». Tal estava o pintor poeta?! Aquela ilha encantada era a do Axel Munthe, a da mornidão lazarónica, a bella Capri de raparigas ladinas como Gioia, de olhos negros, bons modelos para os pintores, excelentes cipriotas dizendo mal do Timberio e não explorando o hóspede: três pratos, vinho à discrição, tudo uma lira. Tudo ótimo e opino, menos o irregular serviço de correios que o doutor sueco dispensava, radiante: «No paraíso não há correio». Ora é isso mesmo que apoquenta o pensionista cumpridor, atarefado nos seus últimos estudos. Deseja o correio e escreve a sua carta mais notável, a pedir novas, do Porto, de Roma, do Marques … e: Fala-me do Loureiro. São belas as palavras de bom sentido; mais belo ainda o sentido oculto das palavras. É escusado aplicar a lente psicográfica àquela frase, voz ansiosa, aparentemente natural, mas agitando-se no papel com o desassossego de uma cifra secreta. O rival no mesmo ofício é indispensável à sua vida; a bem ou a mal é um amigo. Prestara-lhe um grande serviço no concurso do Porto, ao renunciar em seu beneplácito; depois outro, em Roma, no exame a que se submeteu, espontâneamente, sem premeditação, classificado a seu favor pelo Pradilla. Mas ainda precisa dele, do colega, para outro obséquio enorme a obter em Lisboa, como adiante veremos, pois o tempo e os homens trabalham em benefício de quem sabe esperar. Se é incerta a estadia de Marques de Oliveira em Capri, nessa ocasião, de seguro, ao contrário do que já se escreveu, Pousão e Silva Porto não acamaradaram na ilha. Só depois do último regressar, Pousão arribou a Capri, onde reconheceu os modelos que pouco antes serviram o seu antecessor. O retorno de Itália dos pensionistas teve lugar em fins de 1877, com demoras erradias por Veneza, Milão, Lago do Como e regiões próximas. Pela XII Exposição trienal portuense, 1878, temos referências de Silva Porto, que acusa uma Menção em perspectiva, 1875; um desenho du plâtre do curso de Yvon, outro do modelo vivo na aula de Cabanel certificam a frequência regular da Escola. Dos envios constavam as duas grandes paisagens do Oise (uma delas admitida no Salon de 1876) e a cópia de Daubigny, Uma presa de água no Daufiné, às quais nos referimos antes; um efeito de manhã em Auvrai, uma Planície e mais três esboços paisagísticos encerram a fase daubigniana. Como remessas do ano de 1877: Entrada de uma aldeia, Traje de Capri e uma Marinha, as duas últimas do período italiano. Trabalhos de características, processos e feições destacadas, não parecem do mesmo autor, mas justificam plenamente o caminho percorrido, a evolução de um temperamento exact nos resultados, sério, criterioso nos propósitos e na obra que resulta de um dever cumprido. 35 N A primavera de 1878, Silva Porto, Marques e Loureiro estão em Paris. O primeiro expõe no Salon a sua Fiandeira napolitana, o mais belo dos estudos de figura ao ar livre realizados pelo artista em Itália. Dois acontecimentos o surpreendem na vida artística francesa: o triunfo de BastienLepage, com Les Foins, uma realidade na pintura de cavaDesenho lete, diferente de outros realismos, a temática rural dignificada por um grande mestre e celebrada pela crítica, sem discrepância. E o passamento de Daubigny, chorando pelos puristas da paisagem. O nosso pensionista já se despedira do seu Deus e da sua arte, em sua vida; prestou-lhe a última reverência na hora dos crepes. Mas havia a Exposição Universal, 1878, que distraiu os melancólicos e agitou curiosidades. A arte portuguesa, chefiada por Lupi, teve a representação apenas de onze nomes, entre os quais Silva Porto, citado por um correspondente do Jornal da Noite: «Há igualmente um quadro do Sr. S. Porto (?), uma menina com trajo à italiana que quebrou a sua bilha. A composição é boa». O ponto de interrogação significa a estranheza do nome, um artista português desconhecido em Lisboa. O «discípulo de Cabanel e Groisseilliez» morador no Boulevard Montparnasse, 81, apresentava um óleo, no estilo e nas qualidades de factura, irmão da Fiandeira, no Salon, mas a menina da bilha, Un petit malheur, segundo o catálogo, foi notada de preferência à anterior. É a rapariguinha triste, de pé, a mão esquerda coçando a nuca, uma escudela partida no chão, o único quadro de acento anedótico, por assim dizer, na carreira do pintor. Realmente, a composição é equilibrada, simplezinha, um modelo que pousa alheio de ideias preconcebidas, citando a Gazette (uma das quatro citações da pintura portuguesa — Lupi, Loureiro, Leonel, Porto) com o título menos ambicioso, La cruche cassé. Outra reportagem de Dubosc de Pesquidoux: M. Porto est bien de son pays, et sa toile sent le Portugal comme son nom. Aqui está uma saudação de gaulês calembur, acertando o alvo quando o autor menos cuidava. De facto, os óleos de Itália traduzem uma instintiva e antecipada nostalgia do sol e dos ambientes luminosos da terra portuguesa, que o artista sente, paradoxalmente, sem a ter visto ainda com olhos de pintor e da qual vai ser, preparado e emancipado de estrangeirismos, o mais genuíno e operoso intérprete. Dubosc elucida o seu público a respeito destes expositores: «saíram da nossa escola e são discípulos dos nossos mestres»; Sentindo Portugal, como estamos vendo nos últimos óleos do pensionista, tendo-se encontrado a si mesmo. Acerca da rapariga da tijela, acrescentava o crítico: est maçonée autant que peinte: l’auteur se sert d’une truelle, nom d’un pinceau, toutefois sa figure a de l’action. Exagerou, sem querer. A pasta cromática, efectivamente, não é de pincelada corrida; as camadas sobrepõem-se, 36 espessamente ou por esfregaços, dispensada a espátula, e a figura respira calma, apenas a «acção» abstracta do modelo que trai a obrigação da pose. Uma vez chegado o quadro ao Porto, designar-se-á A Tijela partida, título menos dramático, como indicara a Gazette, não obstante se ter escrito, induzidos por aquela «ação» imaginária: «A rapariga, no sobressalto angustioso do primeiro momento, ficou como fulminada…». Pelo contrario, é a pintura candura de uma ragazza inocente, sem outro sentimento além do que revela a expressão discreta dos valores e dos tons harmoniosos. Estamos em fins de 1878; o pensionato de Silva Porto e Marques de Oliveira está virtualmente concluído. O paisagista termina algumas telas, entre as quais A Seara, última prova, a mais representativa de todas as suas pinturas francesas. Chegou a hora das despedidas, um passo grave na existência do nosso biografado, de particularidades estranhas a esclarecer. Em Setembro, quem parte para Lisboa em grande velocidade é o Loureiro; os outros ainda não se resolvem. Porque sucede assim? Silva Porto conhece o motivo, mas a sua técnica do silêncio impede-o de se manifestar e não prepara o regresso. Vai ao Salon de 1878; vai, mas não é certo que fosse expositor, pois o catálogo editado por Dumas não inclui o seu nome. De peito feito, mais esclarecido e experimentado, ainda lhe é permitido admirar o enorme contingente de paisagistas na sua fidelidade aos ribeiros, florestas, pastagens, a multiplicidade de aspectos bucólicos no prosaico século XIX. «Depois de Ingres, a paisagem» é o pregão axiomático dos que olvidaram a receita do mestre, quanto ao desenho, la probité de l’art. A crítica desse ano censura os carneiros de Vayson por ocuparem na tela demasiado espaço, com outras cruezas de menos idealismo, defeitos que, recordam os exigentes, evitou Paulo Potter, glorioso precursor dos animalistas de temas rústicos, defeitos que mais tarde Silva Porto procura evitar no Conduzindo o rebanho, o seu canto do cisne, não inferior a Brascassat na compreensão anatómica dos bichos, mais naturalista do que Charles Jacque, o último que resta da patriarcal Barbizon. E, quando em Lisboa, um dia ainda afastado, Silva Gaio e outros caírem sobre as pastorais silvaportianas, acusando-as de incompletas, ausentes de espiritualismo, o pintor dirá, recuando na memória das suas lembranças: — Bem sei. Já conheço o anátema do ideal contra o real e vice-versa, a luta da nossa verdade contra a certeza dos outros, a crença ingénua do artista nas virtudes da simpatia. O homem dos orçamentos equilibrados aproveita as últimas economias flanando pela Bélgica, onde contemplou a pintura rubenesca e, por estranho que pareça, presta homenagem em Waterloo ao grande vencido, aguarelando um apontamento, La butte du lion. Ainda lhe sobraram tempo e dinheiro para visitar a Holanda, a Inglaterra, a ver museus, monumentos, pára aqui, coca ali, manchando tabuinhas na boite à pouce, e perde-se-lhe o rasto, havendo rumores de ter visitado em Espanha o pintor Plasencia, artista do seu agrado na última Universal de Paris. Mas a volta a penates é um problema curioso, que pede outro capítulo para seu esclarecimento. 37 V AMOS retroceder na ordem cronológica, para examinar desde Lisboa, sob outro ângulo, os movimentos do pensionista cumpridor e o seu admirável instinto da oportunidade, na hora exacta do regresso. Mas antes, um pequeno aviso prévio. Na resumida biografia que Ribeiro Artur publicou sobre Silva Porto, 1889, encontra-se a seguinte informação peremptória: «Nomeado, pelo conde de Almedina, professor da Escola de Belas Artes». Vivos naquela data os interessados, levou-se o asserto do biógrafo à conta de favor gratuito e louvaminheiro para o titular. Ninguém repetiu e relembrou o certificado do publicista, esquecido pelos eruditos posteriores, cientes de que a assinatura, lançada em qualquer despacho oficial, não teria passado de mera formalidade burocrática, sem valor para o artista e sem prestígio para o nobre funcionário. Pois aquela «nomeação», podemos dizê-lo hoje, afoitamente, deve-se à exclusiva iniciativa de Almedina, um gesto autoritário contendo as responsabilidades inerentes à ousadia do acto. Honras e responsabilidades que o futuro lhe está devendo. A asseveração de Ribeiro Artur corresponde ao sentido dos termos empregados, como vamos demonstrar, salvo o ligeiro pormenor do fidalgo ainda não ser conde à data da vinda do novo professor. Depois do frustrado concurso de paisagem no Porto, 1873, o pintor Artur Loureiro reanima-se e vem a Lisboa, no ano seguinte, disputar outra bolsa, com Malhoa por competidor. Pela segunda vez, o portuense «empata» na classificação, anulando-se o concurso, entretanto, o pintor distrai-se na galeria da Academia lisboeta, onde faz algumas cópias, travando relações com um amador de trinta anos, discípulo de Anunciação, a estudar na mesma pinacoteca. O amador é Delfim Deodato Guedes, formado em Direito, homem de estirpe e pintor de somenos, bigodes à Napoleão III num tipo curioso de Mecenas em abrolho, por várias vezes encontrado nestas devassas da vida artística contemporânea e, neste momento, sob uma feição de tal modo inesperada, que nos cativa e surpreende. A vinda do Loureiro até Lisboa parece obra de fadas. Aqui se lhe depara o seu abre-te-sézamo: o generoso fidalgo paga em libras as cópias do esperançoso artista, enfarpela-o no seu alfaiate e dá-lhe guia de marcha para Itália, gozando uma bolsa igual a dos pensionistas oficiais. Pela leitura da sina nas vocações artísticas, Deodato Guedes julga ter no Loureiro o feliz hereu da cadeira de Anunciação, futura vaga que a Academia se abstém de considerar urgente, antecipando-se ao Estado na experiência e fabrico de um novo paisagista. Decorrem dois anos até ao encontro em Roma, 1877, dos três portuenses, facto já relatado. Feliz com a sua sorte grande, o bolseiro do protector mefisto põe os colegas ao corrente dos seus projectos: a cadeira de paisagem ainda não existe nem há esperanças de que venha a criar-se na Escola do norte; logo, só temos a de Lisboa, para a qual me estou habilitando. Depois intervém o Pradilla naquela cena de inesperado elogio a Silva Porto; este, ora contente, ora apreensivo, segue viagem, escrevendo de Capri ao colega Marques a célebre carta: Fala-me do Loureiro. Os três pintores voltam a reunir-se em Paris no momento em que a portaria de 1 de Agosto de 1878 abre concurso para pensionista de pintura de paisagem na Escola de Lisboa. Delfim Guedes ordena o regresso imediato do Loureiro e a sua apresentação no concurso: Se perderes, pensa o inteligente doutor, é porque não progrediste nestes dois anos e pico de pensão, e 38 voltas para o Douro; se ganhares, tanto melhor, e o Estado que te sustente. Loureiro apresentou-se: «regressou de propósito» (Ocidente 1-4-1879). Agora, sem ninguém atinar como, nem por que bulas, Silva Porto está de relações com Delfim Guedes, desde longe, não se tendo conhecido antes. Admitimos a hipótese do Loureiro ter feito as apresentações por escrito ou pessoalmente, durante uma provável visita do fidalgo à Exposição Universal. Seja como for, esses entendimentos enigmáticos na história do nosso biografado significam, da parte do taciturno, o perfeito conhecimento da vida, a subtileza dos que militam e se escudam na ciência do homem. Em 12 de Outubro, pela manhã, três sujeitos graves, apessoados, julgam as eminências da Tapada da Ajuda, estando num lugar inculto de zambujeiros. Depois de muito vistoriar em redor, feita longa troca de impressões, retiram-se pelo mesmo caminho, discretos juízes de campo na missão de escolher terreno para uma desafronta em duelo. Eram eles Tomás de Anunciação, Vítor Bastos e Miguel Lupi, membros do júri para o próximo concurso de pintura. O relatório inédito de onde extraímos estas notas acrescenta que, no dia 24, novamente presentes na Tapada os referidos professores, compareceram os concorrentes, Loureiro, Columbano e Condeixa. Da cartola de um dos membros do júri, o candidato mais novo, Condeixa, tira à sorte o ponto, dos três propostos, saindo o que indica o convento da Penha ao longe; recomenda-se aos jovens artistas que o «quadro de paisagem pintado do natural», nas dimensões de um metro por setenta e cinco centímetros, deve principiar no dia seguinte. Do concurso faziam parte mais duas provas: um desenho de modelo nu e uma cabeça de cabra, a óleo, como a paisagem. Um caso sério, estas competições em fins do século passado. Na véspera do inicio dos trabalhos surge uma novidade: o decreto de 23 de Outubro (insistimos nas datas) que nomeia vice-inspector da Academia Delfim Deodato Guedes, tomando posse no dia 30, em cuja sessão o aclamam Académico Honorário. Preenchia-se a vaga do marquês de Sousa Holstein, falecido em 30 de Setembro. Ao candidato Loureiro, olhado como intruso nos corredores de S. Francisco, tudo é fácil, de pedir por boca; o seu protector dirige os destinos da confraria, garantindo-lhe o talento afinado e refinado em terras estrangeiras, a que se juntam os atestados entregues na secretaria: um de aprovação e elogio da Escola do Porto; outro do pintor Pradilla, passado em Roma, acusando grandes progressos em paisagem; outro de bom comportamento, do encarregado de negócios na capital italiana; outro, do director da Escola de Paris, afirmando que seguiu com assiduidade os estudos ali ministrados; outro, do professor Cabanel, dizendo que «só tinha a fazer elogios» ao zelo do estudante. Com uma papelada deste quilate, esmagando os dois concorrentes mais novos, ainda por viajar e mal saídos da casca, a luta era desigual, maquiavélica, preparada pelo instinto de Deodato, Deus ex machina no poleiro de vice-inspector. Agora, sim: não pode haver «empates». A situação inusitada, anormal, dará lugar a dois acontecimentos de peso: uma polémica e a morte imprevista de Anunciação; que por sua vez originam esta consequência: o acesso de Silva Porto ao professorado. E tudo devido a ideia fatalista que trouxe Loureiro a estes desafios de Lisboa. Mas a tal consequência, por muito inopinada, não resulta com o alheamento budista, 39 digamos, do pintor ainda em França. Pelo contrário, as relações obscuras do paisagista com Delfim Guedes deixam de ser mistério depois de nomeado o vice-inspector, e quem o prova é um quadro, um esplendido óleo acabado de chegar, do qual se ocupa A Arte, dirigida por Sousa de Vasconcelos e patrocinada pelo fidalgo académico ( Janeiro de 1879): «O paisagista Sr. Porto, que tem enviado excelentes trabalhos de Paris à Academia portuense, remeteu últimamente para Lisboa um quadro representando uma napolitana a fiar, que revela grandes qualidades no distinto estudante como pintor de género. É um quadro de escola realista, representando a natureza sem artificio de espécie alguma, e recomendando-se pela correcção de desenho, frescura de colorido e largueza na maneira de pôr a tinta. Vê-se que é um trabalho saído de uma escola bem dirigida, onde os discípulos não perdem o seu tempo a fazer cópias, mas sim o ganham a estudar do natural. O quadro teve a honra do figurar no último Salon». A notícia sobre a pintura da Fiandeira é mariolinha e deliciosa para quem está no segredo dos deuses. Que motivos desviaram para Lisboa este quadro, um dos mais belos do pensionista, em vez de seguir o rumo da Escola de São Lazaro, a que devia pertencer? O feliz proprietário, embora não se indique na revista, é o vice-inspector, tecendo as melhores ausências do artista, bom pintor de figura que não copia estampas. E... se falha o Loureiro no concurso, já temos alguém especializado e diplomado, em magnificas relações com a Academia, para suceder ao monótono ensino de Anunciação. Os trabalhos do concurso de paisagem, concluídos em fins de 1878, só em princípios do ano seguinte se expõem ao público. O autor dos avinagrados Ortigões e temível foliculário, Urbano Loureiro, actua desde o norte junto de Ramalho, «o seu antigo mestre de francês», a favor do mano pintor. Efectivamente, no Diário da Manhã de 14 de Fevereiro, um folhetim de Ortigão aprecia as provas, manifestando o seu entusiasmo pelo maior dos três concorrentes, o Loureiro. Juiz antes do júri se pronunciar, o escritor não só escolhe o artista seu preferido, como criva de saborosa pilhéria os professores académicos, em especial o pobre Anunciação, «requinte de convencionalismo», entre muita doutrina estético-filosofal e vasta nomenclatura de sumidades, de Leonardo até Zola, passando por David e Courbet. E temos a polémica. Miguel Lupi resolve dar troco ao gigante da crítica nacional, em defesa do convento, usando argumentos frouxos que mais agravam a situação. O notável panfletário insiste contra a pintura de «árvores de chocolate, convencional como imitação da natureza», uma paisagem da fase antiga de Anunciação. Da réplica e contra réplica, quatro encíclicas ramalhais e outras tantas jeremiadas do Lupi, resultou este paradoxo: sem razão, ou com as razões de leigo, o brilhante farpeador venceu pela crueldade impertinente da sua prosa; ao passo que o indignado professor, fraco esgrimista da pena, não convenceu da sua justiça o respeitável público. E era tão fácil! Um pouco mais de serenidade, e teria descoberto o calcanhar vulnerável de Ortigão: o conhecimento livresco e superficial dos assuntos, sob a capa aliciante dos tropos literários. Este exemplo acerca das cores prismáticas: «a cor verde e a cor amarela são complementares, isto é, são de tal natureza física, que reunidas uma à outra reconstituem a cor branca». Além de não vir a propósito essa lei, mal digerida no Helmholtz, para explicar uma paisagem do Loureiro, o enunciado é menos 40 exacto, não há cor branca sem os raios vermelhos, impossíveis no verde e no amarelo. Também do couteau à pallete (espátula) o crítico traduziu faca, simplesmente, e então é vê-lo na catequese mirabolante sobre as belezas da nova «pintura à faca», etc. Tanto barulho para quê? A manifesta desigualdade de condições dos concorrentes à bolsa de pintura era o motivo, havendo um artista com excepcionais virtudes atestadas no estrangeiro onde se aperfeiçoara; pensionista antes de o ser. Mas, se os regulamentos não previram o lamentável berbicacho, restava dar o prémio ao artista merecedor, sem desviar a questão para outros fins, sem ofender velhos mestres, agora à mercê dos fogosos teorizantes. Quem teve maior culpa neste embate de paixões e desmedidos interesses? Ninguém. O mundo e o tempo, dirigindo a metafísica dos sentimentos, ou a lógica dos acontecimentos, propiciaram o clima a um Silva Porto, homem avesso a lutas declaradas, em breve senhor da praça que o destino lhe reserva. Entretanto, chega novo presente, constando nas aulas e ateliers estar na posse de Delfim Guedes mais uma pintura do pensionista, prestes a regressar: é a paisagem Ao pôr do sol, largamente apreciada e discutida pelos professores da Academia, incluso o misantropo Anunciação, que, sobre ela, instado a manifestar-se, repetiu a frase muito sua, na voz o tom esmaecido de um crepúsculo vesperal: «Não sei nada, e já é tarde para aprender». L UPI é substituído no júri por Ferreira Chaves, a seu pedido, alegando ter-se manifestado publicamente a favor do candidato Condeixa. (Conferência de 21 de Fevereiro). Cinco dias depois, aparece o relatório com o resultado da votação, ou a soma dos valores de cada um dos membros do júri, atribuídos a cada uma das três provas de cada concorrente: Loureiro, 127 valores: Condeixa, 120 valores; Columbano, 90 valores. Assinaram o documento, que por uma unha negra deu o triunfo a Loureiro, os vogais do júri, Anunciação, Victor Bastos e Ferreira Chaves, secretário e relator, sendo votado por quinze esferas brancas contra oito negras, na sessão de 3 de Março. O vice-inspector, na presidência, votaria em caso de empate, que não sucedeu; mas nunca se reconhecerá devidamente a parte notável que da vitória do «realismo» cabe a Delfim Guedes, daí por diante castigado por Rafael Bordalo e, caso estranho, pelo próprio Ramalho. Também o académico paisagista, que levou paternalmente os candidatos do concurso à Tapada, indicando-lhes o ponto a traduzir do natural, também esse professor, imolado na polémica estúpida, colaborou, rubricou e votou a escolha do pensionista vitorioso, sem merecer os améns e o respeito da crítica farpeadora. Em boa e sã consciência, Anunciação poderia dizer a si mesmo: — Enquanto o paisagista aprovado não completar o seu tirocínio no estrangeiro, terei cinco anos para me afeiçoar à ideia inexorável de transmitir a outro os meus poderes. — Mas não. Nem cinco anos, nem cinco meses, nem cinco semanas. O seu herdeiro é outro, obedecendo as leis da causalidade, já pronto, equipado, esperando o sinal em terras de Espanha. O articulista Rapin (Rangel de Lima), em A Arte de Março, indigna-se contra as oito bolas pretas, oito confrades sem respeito pelo voto de Anunciação, e o velho Mestre atordoa-se, já não sabe que pensar de tantos dissabores e 41 contradições; aprovara o candidato reclamado pela crítica, a crítica à sua própria pessoa, e essa isenção admirável desgostou oito camaradas, oito amigos, agora inimigos: — Não posso mais; falta-me a paciência e a santidade — dizia o antigo renovador da paisagem, amargurado, vivendo de saudades, mais avelhantado do que os sessenta e um anos permitiam. Em 17 de Março, o pintor «individualista» assistiu à sua última conferência académica, olhos mortiços, o espírito arredio e desconfiado, mal tomando conhecimento desta notícia acabada de chegar (A Arte): «Silva Porto enviou de Paris ao Sr. Delfim Guedes um quadro de paisagem que é mais um documento do muito que vale tão prometedor artista». Descreve-se a pintura, um arvoredo escuro recortando-se na atmosfera nebulosa, uma lagoa com patos, excelentes miragens, verdade na perspectiva, no tom dos verdes, na transparência das águas e harmonia da composição. A notícia termina: «O sr. Porto regressa brevemente a Portugal. Temos nele um artista que há-de dar honra ao País». Mais uma mensagem estupenda, a teoria do demiurgo desconhecido, já em Castela, impassível e não apático, a intuição guiando-lhe os passos e o crédito, o eu esperançado no padrinho de Lisboa, pois quem não o tem morre mouro, o Deodato dos bons ofícios que vai escrever direito por linhas tortas. A pintura vinda de França é o conhecido Lago de Enghien, região de cercetas e outras aves palmípedes do Seine-et-Oise, no vale de Montmorency, a tela mais daubigniana do pensionista que, desviada da rota portuense, veio dirigida ao vice-inspector da capital. O quadro ressurtiu na hora crítica, divinatória, mais familiarmente, no momento psicológico, reunidos os académicos para a sessão regulamentar do dia 17. Cada um admirou a seu modo as belezas da pintura recém-chegada, pronunciando-se vários madrigais aos atractivos dessas águas sulfurosas, a doze quilómetros de Paris, o refúgio predilecto de Talma, a estância para enfermos e para os noivos em lua-de-mel; e o nosso D. Pedro e D. Maria II, diziam os franceses, esperaram ali, e não esperaram em vão, une couronne dans cette riante vallée. Anunciação observa, ouve mudo, uma angústia dolorosa espelhada na fronte. Pedem o seu parecer autorizado e o mestre arrisca ligeiros reparos à nebulosidade do céu, sendo-lhe contestado, respeitosamente, que era tal qual essa atmosfera de sortilégio, onde as fadas esvoaçam de noite «formando nós de doçura aos jovens esposados»: — Não digo que não; poderá ser assim — concluiu o velho paisagista, torturado — mas o meu humilde «realismo» é de Caneças, terra soalheira, ares lavados, gente sã, maneiras francas, sem lugar para bruxas, nem bruxedos. Delfim vale por diligência, argúcia, velocidade; e Anunciação pensa chegada a hora de prestar contas ao seu Criador, depois de bem cumprir, e muito sofrer, julgando-se um estorvo neste mundo ingrato. O seu sucessor, desejado pelos de fora e pelos de dentro da Academia, já não era o moço Loureiro do recente bota-fora, mas outro, antecipando-se com as credenciais da sua «realista» pintura, arte da «verdade prometedora», um artista «honroso para a Nação, prestes a chegar, segundo as notícias académicas. E o honrado professor, na intranquilidade dos últimos dias, murmurava: — Será bom acabar, é tempo de acabar! — Sempre ríspido com o aluno António Ramalho, no dia 2 de Abril mostrou-se afável, de uma delicadeza estranha e desconhecida «durante a meia hora de lição, a última, em despedida misteriosa, porque, 42 na seguinte noite, o ilustre animalista caiu fulminado pela morte» (Monteiro Ramalho). Em que circunstâncias ocorreu a morte estranha? Abandonara cedo a aula no funesto dia 2, conta Zacarias d’Aça, mas voltou no dia seguinte, abusando das suas forças numa discussão (?) com Tomás da Fonseca, director do ensino, e outros colegas. «Notámos, num momento em que Anunciação falava com mais calor, uma vermelhidão súbita invadir-lhe a face, desaparecendo logo à nossa vista, sem ele se queixar. Despedimo-nos às três da tarde». O artista seguiu para o Bairro Alto, onde morava; um olhar triste sobre as colinas da cidade, desde São Pedro de Alcântara, e retira-se para casa, tremendo de arrepios. As duas irmãs, fiéis companheiras de muitos anos, embrulham o doente num cobertor, friccionando-o, chorosas e atarantadas: — Que tem a mano? — Não é nada — dizia ele para as sossegar, «sorrindo melancólico» — isto passa, está quase a acabar; será bom acabar! — Nosso Senhor! Que diz o mano?!... «Às nove horas e meia desse dia 3, aquele a quem na véspera, sem o suspeitarmos, déramos o último aperto de mão, jazia cadáver. Mais tarde, Calmels veio à Academia dar-nos a notícia: o pintor falecera duma congestão pulmonar». (Z. d’Aça). Uns falaram de síncope cardíaca, de apoplexia; outros, de envenenamento; nós diremos: intoxicação psíquica. Para a morte, que não se engana, as diagnoses são todas iguais, interessando-nos saber se valeu pena viver; e todos concordaram, impressionados por aquele trágico desenlace que o morto bem merecia o reconhecimento geral pelo seu elevado desinteresse, a admiração incondicional pelo seu inegável talento, o respeito unânime pela delicadeza do seu carácter. Delfim Guedes custeou e dirigiu o funeral; muitas lágrimas e discursos inflamados de saudade; promessas dum mausoléu no Alto de São João e da instituição dum prémio de pintura, com o nome do Mestre, que se cumpriram, votos de sentimento nas sessões académicas, e acabou-se. Outrora aclamado chefe e fundador de escola, Anunciação foi negado e abatido por um mundo estranho ao seu idealismo. Sucumbiu, disse Rangel de Lima, «porque a crítica moderna, por mais de uma vez, ao ocupar-se dele, foi severa. O artista que nunca pedira elogios, agora amofinava-se quando algum crítico lhe era desagradável, sobretudo nas referências a trabalhos antigos». Esse amigo aludia à impiedosa farpa das «árvores de chocolate», a pena última, obrigando a sofrer os que não solicitam favores, os de coração aberto, que dizem: se eu quiser não me ralo; e não resistem ao assalto inesperado dum desgosto. A crítica executou o pintor em nome de uma lei errada: o progresso; que, em matéria de arte, nada vale quando as obras resistem ao tempo e às modas, em estética, menos valioso, porque o «progresso» é instável e só ficam os temperamentos dignos de memória. Fala por Anunciação, recordando o homem e a obra, aquela peça do Museu de Lisboa, obra-prima da pintura portuguesa contemporânea, o Vitelo branco, malhado, pêlo sedoso que apetece afagar. Este irracional, obra incomparável na pintura animalista, crava-nos os olhos, intrigado, a consciência surpreendida no momento de uma dúvida inconsciente. As patas tremem, o corpo avança e recua, indeciso, o focinho erguido num mugido lastimoso, suplicante, a retumbar na floresta húmida e negra. Que terá ele, o bovídeo queixoso, força actuando dos abismos do instinto, representação 43 plástica dum sofrimento humano? Na sua obra admirável, Anunciação fez o auto-retrato de um grito insofrido, a pintura de um protesto contra o egoísmo e as contradições dos homens. Quando se lê na biografia breve de Silva Porto: «Pela morte de Anunciação foi nomeado professor…» não se imagina o drama oculto naquela frase correntia, agora posto em evidência, sem romancear, cingindo-nos a concomitância dos factos que o historiador nunca deve isolar do tempo e do ambiente. E pergunta-se: Foi por se ter retirado um, que entrou o outro, ou foi este que, para entrar, obrigou o primeiro a cair? Na complexa urdidura dos fenómenos colectivos, ideais sacrificados e renovados, a filosofia da história tem pano para todas as respostas. O chefe do romantismo morreu! Viva o chefe do realismo! Eis o segredo íntimo da ética e da estética silvaportianas, o cetro e o comando recebidos numa hora de inquietação, e dos quais teremos de dar contas ao público exigente e andrógino. A NTES da investidura há umas formalidades a cumprir. A sessão académica de 19 de Abril, 1879, é de luto e de votos de sentimento, com a declaração de estar vaga a cadeira de paisagem. O vice-inspector tem no bolso o nome do artista, o rei posto que sucederá ao rei morto, mas não o dá a conhecer; o caso ainda não está trabalhado interbastidores, e marca sessão para o dia 26. Tudo a postos na data fixada, com Delfim Guedes a presidir e o arquitecto António Gaspar a secretariar, compareceram os académicos, Tomás da Fonseca, Vítor Bastos, João Pedroso Gomes da Silva, João José dos Santos, Alberto Nunes e José Maria Alves Branco. Faltaram Miguel Lupi e Ferreira Chaves, precisamente os dois professores de pintura mais influentes e necessários para resolver um assunto grave da especialidade. O primeiro, aziumado, águia de asa ferida, nunca mais dará a sua colaboração à Academia; o segundo, por solidariedade com o colega, abstém-se de qualquer intervenção. A acta reza deste modo: «O sr. Presidente convocara a conferência extraordinária, para participar que havia proposto ao Governo o Sr. Antonio Carvalho da Silva Porto, pensionário que terminou os seus estudos de pintura de paisagem com aproveitamento no estrangeiro, para interinamente reger a cadeira que se acha vaga pelo falecimento do professor Tomás José da Anunciação.» O previdente vice-inspector tomara uma medida ousada, sem consultar a Academia, obrigando-a ao facto consumado. Quando e em que termos se urdiu a proposta suspicaz? Delfim significa diplomacia, uma ciência para bem dissimular, e uma arte de convencer sem compromisso. A proposta citada na acta existe e não existe, pois depende dos homens e da atmosfera respirável na conferência, a pintura representada apenas por Fonseca, aliás professor de desenho, que não se zanga, não se irrita para chegar saudável aos noventa anos, como o geronte seu pai: está isento das perturbações hepáticas de que sofre o Lupi, nem é praxista como o Chaves, os dois mestres pintores... ausentes da reunião. Tudo correu às mil maravilhas, depois de aplanada uma pequena dificuldade: «O Sr. Bastos, citando o art.º 34 dos estatutos, disse que não sendo este artista (Silva Porto) académico de mérito, lhe parecia a nomeação menos regular, ao que o Secretário observou, que não havendo entre os membros do corpo 44 académico, pessoa competentemente habilitada para preencher esta lacuna, necessário era recorrer à nomeação de um artista que pudesse satisfazer este serviço. Pediu ainda algumas explicações o sr. Dr. Alves Branco, depois do que a conferência unânimemente aprovou a proposta que S. Exª havia feito». Os reparos do escultor Vitor Bastos e de Alves Branco, professor de anatomia, não abalaram a iniciativa da exclusiva responsabilidade do vice-inspector, que alcançou o voto unânime para uma situação de emergência, com a interinidade por salvaguarda: um professor à experiência. O aruspice Delfim profetizou bem; a sua proposta ao ministro foi enviada no próprio dia 26, o da conferência, com a data da véspera, evidentemente, assegurada a homologação académica. O seguinte ofício da Direção-Geral de Instrução Pública confirma o exposto: Il.mo Snr. Vice-Inspector da Academia Real de Belas Artes de Lisboa, / Fiz presente a S. Ex.ª o Ministro do Reino o ofício de V. S.a datado de 25 de Abril último, e S. Ex.ª ordena que, se a aula de pintura de paisagem, vaga pelo falecimento de Tomás José da Anunciação, não pode ser regida por nenhum professor proprietário ou substituto dessa Academia, e se não há entre os Académicos de Mérito algum habilitado que se preste à referida regência, encarregue V. S.ª provisòriamente, daquele serviço, Antonio Carvalho da Silva Porto, ùltimamente regressado de Paris, onde estudou com aproveitamento o género de pintura que constitui o ensino da cadeira vaga. / Deus Guarde V, S.ª Secretaria do Reino em 1 de Maio de 1879 /. António Maria de Amorim. O signatário é o conhecido bacharel em direito e agraciado funcionário dos serviços de Instrução e Belas Artes, para as ocasiões, um burocrata não-empata. E o novo professor onde está? Concluídos os estudos, os dois pintores Marques e Porto, sem pressas, gozam a primavera no pais vizinho até que, de repente, por espírito-santo-de-orelha ou por um aviso concreto de Lisboa, o paisagista separa-se do colega, atravessa a fronteira a marchas-forçadas e, depois de uma visita abscôndita a Delfim Guedes, na véspera de 26 de Abril, o dia justo, o dia exacto em que a Academia se reúne para aprovar a sua nomeação, surge na cidade invicta inesperadamente, com surpresa da família. O Comércio do Porto do dia 27 diz que já se encontram em São Lázaro as duas últimas provas de «aproveitamento do Sr. Silva Porto, que estudou paisagem no estrangeiro e que acaba de regressar por ter concluído o prazo de cinco anos de pensão». As duas pinturas chegadas de fresco eram a Tigela quebrada e a Seara, esta representando a perspectiva magistral de um campo de trigo, tela bem conservada (Museu Soares dos Reis) mantendo puras e inalteráveis as suas tintas. Para quem conheceu, cinco Desenho anos antes, a paisagem soturna e caligráfica do Covelo, o 45 quadro da Seara deslumbra e atesta sem equívocos o progresso extraordinário do artista na especialidade a que se dedicou. São de admirar as ervas e flores silvestres do primeiro plano, sugestivos efeitos impressionistas obtidos pelo relevo da pasta, sem exageros contraproducentes: sente-se a brisa acariciando a vegetação, o esforço dos que trabalham curvados sobre o restolho, a leveza dos matizes amarelos, uma doce atmosfera de nuvens esgarçadas. Esta paisagem dos arredores de Paris, pintada no regresso de Itália, possui uma luminosidade pouco francesa, com estrias e soluções técnicas ignoradas pelos Daubignis; a retina do artista trouxe delicadezas do sol mediterrânico, irmão do lusíada, peninsular e atlântico, e essa retina é só dele, Silva Porto, que se encontrou a si próprio e jamais será possível confundir. É original porque obedece ao seu temperamento educado na observação e no trabalho; é moderno porque vive no seu tempo, um dos primeiros paisagistas portugueses de ar livre, nomeado professor pela Academia de Lisboa por não «haver entre os seus membros pessoa habilitada que preencha a lacuna e se preste à referida regência.» Ele presta-se, cortês na sua discrasia tímida e recolhida. O pintor é o mesmo rapaz lacónico de outrora, algo modificado no seu físico: mais delgado, barba e pêra de homem grave, uma ligeira dilatação da órbita esquerda, talvez adquirida pelo esforço de dominar a luz nos estudos campestres. Habituou-se a semicerrar um dos olhos para as graduações oculares, em presença do motivo plástico; o outro órgão, devido as repetidas contrações do supraciliar, ergue-se num misto de atenção e espanto, característica fisionomia que nunca mais perderá. O Sorvete dedica-lhe a primeira página: «paisagista regressado de Paris e de Itália onde concluiu o curso de pintura com distinção». O festejado agradece e corresponde aos cumprimentos de amizade, sem quebra do mutismo habitual, esperando ansioso o correio de Lisboa. Em 2 de Maio, recebido o ofício da Secretaria do Reino, que confirma a nomeação proposta, Delfim Guedes manda avançar o seu pintor. Um dia basta para fazer as malas, as despedidas, e ala com armas e bagagens sobre a capital, o coração fechado a pressentimentos de mau cariz, que já de si é matá-los, segundo W. James, «assobiando para tomar coragem» na batalha da vida que nos espera, sedutora e desvairada». A Luta tripeira do dia 4 informa: Silva Porto «regressado há oito dias do estrangeiro» partiu para Lisboa, indo dizer-lhe adeus à estação vários amigos, entre eles, o conde de Samodães, Soares dos Reis e Pousão, que do colega aproveitará as informações do seu soggiorno em Capri. Depois do comboio partir, ouviu-se desabafar Samodães: — Ora vejam o que são as coisas: a capital nega-nos a cadeira de paisagem, e nós despachámos um paisagista para a cadeira da capital. — Será isto a lei das compensações? Pelo menos, fica provado o seguinte: não é a Escola que faz o artista; o artista é que faz e desfaz as Escolas. E Marques de Oliveira, o outro pensionista da mesma fornada de estudos? Arribou ao Porto umas semanas depois do seu companheiro, anunciando ter atelier na Rua do Bom Jardim, enquanto espera a vaga de Almeida Furtado, que se dará a seu tempo, 1881, mornamente, sem polémicas nem mortes violentas, não se dispensando o artista de provas públicas; catorze anos depois, transitará para a cadeira de pintura histórica, na vaga aberta por João A. Correia. O papel de «revolucionário» na pintura portuguesa de fins do século 46 XIX deve repartir-se pelos dois, Marques e Porto, ambos portadores de novidades, como Diogo de Macedo observou; mas, no sul, a missão do paisagista inovador transcende na vitória sem paralelo, a mais ruidosa e entusiasta, para tal contribuindo a inesperada nomeação de professor, mercê de um conjunto de circunstâncias que obriga a pensar em misteriosas forças telúricas ou na sabedoria da Musa Tácita para os maravilhosos oportunismos e existismos humanos. E o colega Artur Loureiro? Concluído o seu estágio em França, falecido o irmão Urbano, o seu segundo pai, preenchidos os lugares de Lisboa e Porto, caducada a proteção de Delfim Guedes, uma tremenda neurastenia, «caso estranho de esgotamento nervoso» em que interveio Charcot, arrastará o pintor até Melburne, no cabo do mundo, felizmente assistido pelo carinho da mulher australiana, sua esposa, ali praticando a arte, adquirindo prémios e prestigiando o ensino durante cerca de vinte anos. E M princípios de Maio anuncia-se oficialmente o advento de Silva Porto na capital, «depois de largo tirocínio que fez em escolas onde há bons métodos de ensino, devendo certamente saber aplicar esses métodos; e nós carecemos de quem saiba ensinar.» (A Arte) Essa esperança e confiança veemente prepararam a entrada do pintor, inimigo da presunção, mas apto a lançar um veni, vidi, vici austero, menos cesariano ou arrogante. Ele não foi o conquistado, nem ela, a cidade, submetida; decerto, para esse equilíbrio contribuiu a prudência, palavra sublime que lhe ensinaram a escrever aos onze anos, evitando orgulhos fatais ao recém-vindo num meio ignorado. Coincide a chegada do novo professor com o arrendamento do palácio das Janelas Verdes, para ali se recolherem as pinturas primitivas mal instaladas em São Francisco, a semente do actual Museu de Arte Antiga; dois acontecimentos de vulto na apagada vida artística nacional, o passado e o presente numa visão de ressurgimento, ambos devidos à tenacidade do vice-inspector da Academia. Mas, no que diz respeito ao «Senhor Porto», a curiosidade é enorme. Cem olhos espreitam o portuense nessa hora de expectativas sombrias, depois do acto corajoso de Delfim Guedes, que viu crescer o número dos seus inimigos, académicos e antiacadémicos, uns aprovando, outros rosnando pragas. O pintor, dizem, traz muitos quadros, uma paleta descomunal, um cachimbo exótico, bonitas polainas, «a sua nostalgia e bons métodos». Os métodos! Esse objecto é o que menos espaço ocupa na valise superabundante do novo Mestre. A sua regra é de acção silenciosa e menos reação, pois sabendo agir não há lugar para repreender. Antigo desenhador de quatro cursos, aprecia o valor da gramática informadora do mundo plástico, a mesma recomendada por Th. Rousseau a um discípulo: «Desenhe primeiro, ou julgará você que para ser paisagista não é preciso desenhar?» Porque meios e em que linguagem se fará entender Silva Porto no seu ensino? Muito simplesmente, pelo exemplo da própria obra inconfundível. Se pede ou exige, não ergue a voz. Pinta, deixa pintar e deixa-se ver pintar. Temos o professor interino na Colina Sagrada, e o artista que habita um quarto na rua dos Douradores, 113-1.º, situações provisórias nos dois lados. Entre o domicílio da Baixa e o alto de São Francisco, com pequenos desvios no trajeto, encontra-se o cenáculo da Rua do Príncipe, café, restaurante e 47 cervejaria, a brasserie semipacateira onde Silva Porto faz jeito ao seu hábito franco-cosmopolita da beira Sena. Dois indivíduos liamados, o académico e o pintor sem regimento, não sendo uma dupla consciência psicopaticamente irredutível, em ambos habita a pessoa correcta perante si mesma, perfeita nas suas obrigações com a sociedade, uma pluralidade espiritual que não atraiçoa a Escola nem desconsidera o mundo extra-escolar. Qualquer das duas partes dessa unidade sui-generis merece atenção, e vamos analisá-las; primeiro o funcionário ortodoxo, depois o seu contrário, o inovador heterodoxo. Avesso a protocolos, discussões didácticas, intervenções pedagógicas, o novo professor não se manifesta, talvez convencido de que basta a bondade atenta na aplicação dos regulamentos e compêndios. Na conferência seguinte àquela em que o paisagista foi nomeado, 19 de Maio, uma das faltas justificadas é deste teor: «O secretário declarou que o Sr. prof. Porto não podia comparecer, por se achar com os alunos no campo, estudando o natural.» Nem mais. A primeira gazeta do académico está assinalada por uma presença do pintor. Outro, na sua situação, iria agradecer aos seus pares nos termos do cerimonial corrente — o honroso lugar com que o distinguiram, prometendo tudo quanto em suas forças caiba para merecer a confiança nele depositada. — Aproveitando o Sol de Maio, o artista encara o problema mais urgente do mestrado: pega na caixa das tintas, no cavalete, no guarda-sol, enfia a trouxa a tiracolo e, seguido dos discípulos, busca o «motivo» e ataca-o, afoito, sem pieguices, à vista da rapaziada. Escolher o assunto, abordá-lo, savoir s’asseoir, como dizia Corot, eis o que faltava instaurar, certo, pontual, regulado pelo melhor meridiano; depois, no Café, prolongamento da aula ao ar livre, as peripécias do dia sobem de ponto, recordadas e discutidas. Dos três preceitos ou sintagmas, o do exemplo; o indutivo (ensinando pela crítica); e o da correção (exercício do aluno corrigido pela mão do professor), Silva Porto prefere, como dissemos, o de maior responsabilidade, o labor do exemplo, isto é, a prática do mestre guiando a prática do discípulo. Mas, para daí resultar bom proveito, é necessário que o exemplo da obra convença e conquiste as simpatias gerais. Ora, o êxito do artista foi absoluto, logo de começo, garantindo o êxito do professor. Era indispensável ainda um segundo atributo, o do homem, que tantas vezes, mercê de prejuízos orgânicos, atrai as qualidades da inteligência criadora. E o homem, pela ética já conhecida, uma autoridade sem ostentação, impessoal acima de questões pessoais, é semelhante ou superior ao artista. Todavia, não devemos exigir o que a sua fleuma se nega a dar. Quando surge pela primeira vez no sinédrio o «prof. Porto», conferência de 17 de Junho, a que presidiu Delfim Guedes, a esfíngica acta deixa-nos às escuras; nem saudações dos confrades, nem cumprimentos do neófito bisonho e antimesureiro. De futuro, tornando natural o eufemismo — brilhar pela ausência — o académico aparece nomeado ou para um júri, ou para uma comissão, o nome, apenas, sem caprichosos egotismos, mais acessível nos recintos extraclaustrais, anulada a desconfiança discente. António Ramalho, um dos alunos escarmentados de Anunciação, faz constar o seu júbilo: afinal, apesar dos títulos de viajado, o novo Mestre desconhece a petulância, é acolhedor, benigno quando discorda, no gesto e nas falas a modéstia que dá mais grandeza ao merecimento dos homens. 48 O cargo de professor de Belas Artes, nenhuma ucharia, dava direito a um atelier, portuguêsmente, oficina, a compensação mais estimada pelos mestres do cenóbio artístico, ali professando os dias, incluindo os domingos e santos de guarda (para a Arte não há descanso nem pecado) vantagens e regalias infelizmente perdidas. O atelier privativo de Silva Porto era um compartimento do pátio vizinho da actual Rua de Serpa Pinto, pequeno logradouro para estudos de animais, ao serviço da contígua aula de paisagem. (Actualmente, o recinto ajardinado serve de ingresso ao Museu de Arte Contemporânea). Nesse velho claustro da soledade, onde arrulham pombas e se ouvem os trémulos vocais dos ensaios em São Carlos, ali fronteiro, o pintor de profissão e músico de ouvido estava com Deus e os anjos, sem mais que pedir. Não faltaram colegas e admiradores curiosos a procurar o Mestre no seu refúgio: — saber como é, se fala bem, o que estará fazendo. — Um que bate à porta, de alto coturno, é o antigo farpeador de Anunciação. Na surpresa dos primeiros momentos, Silva Porto esquiva-se, confuso, quase aterrado. São uns demónios esses escritores públicos, assim designados, tanto no elogio como na censura, abatendo uns para exaltar outros, e não há que fugir a este mal necessário; mostra-se a ferramenta e o trabalho ao Papa da crítica nacional, sem expansões, que ele não gosta de pintores discursivos. Em Outubro de 1879, mal decorridos oito meses depois da trovoada polemística entre o realismo e o romantismo, o primeiro combatente, no mesmo local, Diário da Manhã, vem dizer-nos, para sossego da sua consciência, se valeu a pena terçar armas pela moderna pintura. O folhetim-entrevista, passado ao livro nas obras completas de Ramalho Ortigão, abrange umas dez páginas de reduzido interesse. Mas, se fizermos a leitura no mesmo número do periódico, temos a cor local de duas presenças antagónicas, o crítico e o artista críticado: «Fui ùltimamente em viagem de recreio à Academia das Belas Artes». O jornalista desenfastiado entra pelo Largo da Biblioteca, sorrindo às pinturas de santos e ascetas «semigóticos» do vestíbulo, na sua turra pegamassa do «convencionalismo do belo». Desce uma escada de pedra em caracol, de «setenta degraus», mal contados, pois são quarenta, nem mais um, e a escada ainda la está como a deixaram os frades. Avança pelo labirinto conventual até ao «quinteiro» onde se encontra a oficina, subindo dois estreitos lanços encostados ao muro. O professor recebe o visitante de paleta e pincéis na mão, sem gravata, o rosto queimado pelo sol das ultimas férias; e, no primeiro exame à modesta quadra, Ortigão repara «numa cadeira ocupada por um cachimbo e um exemplar do Mes Haines». Temos homem! A isca levanta o ânimo do crítico. Desculpando-se pela falta de cómodos, Silva Porto «meditava uma frase pacientemente encostado a parede, torcendo o bico da barba.» A frase não sai, a posição discreta do Mestre não se modifica à vista do inquiridor temível que lhe entrou em casa. O desalinho dos trastes, o ar abafado, o livro e o cachimbo ocupando a única cadeira, tudo parece bem ao esteta, quase resolvido a sentar-se sobre as teorias do apóstolo do naturalismo, se os olhos o não prendessem a uma pintura do cavalete, a Charneca de Belas, ainda por concluir, grande tela de mais de metro e meio de largo». (Rigorosamente, metro e meio, nem mais um centímetro). Segue-se a descrição da obra, soberba de perífrases e verbalismos borbotoantes. Encostado à parede, o artista continua 49 impassível, «pasmado», diz o crítico, «torcendo a ponta da barba, numa abstracção sonâmbula»; e o aplauso daquela pintura franca, ousada e forte não se faz rogar: «Tinha diante de mim um paisagista verdadeiro, o primeiro pintor português do tempo presente, um dos grandes modernos, um legítimo continuador da grande Desenho obra de Corot, de...», a mesma erudição de mosaico na farpa anterior contra o Lupi, Anunciação e a Academia. Não está arrependido de quanto dissera em Fevereiro, admira sem reservas no professor recém-chegado «o acanhamento de montanhês», as poucas falas, os seus «25 anos» (na realidade, vinte e nove) e todas as pinturas do atelier, «mais de duzentos quadros» (não passariam de cem). Desculpada a sua diplopia a respeito dos números, exacerbamento das imagens e das ideias, o folhetinista desenvolveu uma bela reportagem. Onde escreve acanhamento devemos ler timidez, não a do ressentido, medroso e acanhado por defeitos de educação. O filho de Silva Carvalho aprendeu com o pai a nada temer; medo, só da mentira e das correntes de ar. Mas, o que importa nas palavras de Ramalho é a bula abonatória do jovem artista, aprovado no exame de tão severo censor: «Sim, grande mestre e bom amigo, tu irás avante e triunfarás brilhantemente na vida, porque descobriste nos anos oscilantes da inexperiência o segredo de ser perfeito». O segredo da perfeição, achado nos anos da inexperiência!? Plus on avance, plus on trouve de difficultés. (Corot). O folhetim conclui incitando à compreensão dessa obra, ainda desconhecida do público, vibrante de cor e de luminosidades oftálmicas nunca sonhadas na pintura portuguesa; vaticina «rápida venda», rápida influência nos discípulos ansiosos de constituírem «uma escola nacional de pintura». Não tardará muito uma espécie de reconsideração do autor, pelo que fica dito. Silva Porto estava lançado aos quatro ventos da notoriedade por uma boa imprensa, um salvo-conduto que ninguém ousa discutir, sendo para estranhar a falta do agradecimento a Delfim Guedes pela vinda do novo mestre paisagista. Ficará ingratamente esquecido o autor da iniciativa, tão modesto como voluntarioso, salvo a referência esporádica de Ribeiro Artur, mais tarde, sem eco na memória dos contemporâneos. O entrevistador rejubilou com o bom preenchimento da vaga académica, porém, deixou-nos em branco no respeitante aos projectos e propósitos do artista consultado. Ir ao campo observar o natural (desenfreado cavalo de batalha bizantina) já se fazia entre nós, pelo menos, desde os Cinco em Sintra, de Cristino, sem falar de outros precursores e dos mestres que levaram à Ajuda os discípulos do último concurso de paisagem. Sem equívocos, ao pintor naturalista pouco importam as deslocações fora de casa ou entre quatro paredes, interessando-lhe, principalmente, a exteriorização do seu individualismo, a independência da sua visão, 50 outra expressão, outra sensibilidade, outra síntese diversas do formulário e da técnica anteriores. Quanto ao assunto, o tema em «plena luz, defronte do vivo», localizado de perto ou lobrigado ao longe, são questões simplistas, perogrulladas na mira de irritar o Lupi com as suas Lavadeiras do Mondego, pintadas em Lisboa, afinal, seguindo o exemplo do sempre citado Corot, senhor de apontamentos e recordações para realizar em França muitos dos seus óleos de Itália. Importa o resultado conseguido e não o processo, sujeito ao bom ou mau partido de quem o utiliza. Mas o ar livre do verdadeiro paisagista? Sim, senhor, uma prova de autêntico ar livre viu Ramalho na Charneca de Belas, tela de metro e meio, pintada num quarto da Academia, a mesma estufa acanhada de Anunciação, a natureza observada pelo mesmo sistema de trabalho (ó ironia do destino!) o pintor isolado, embora munido dos estudos prévios do natural. O farpeador compreendeu e não reagiu. O mais interessante reside no seguinte, de que ninguém fez reparo: a célebre entrevista não é o espelho exacto do atelier de Silva Porto, naquela tarde de Outubro de 1879; o resto, o melhor da conversa, veio muito depois, 1906, num artigo do mesmo autor sobre Malhoa. Por aí sabemos que o crítico levou «uma senhora» na visita ao novo professor, talvez a filha Berta, entendida em pintura, uma intérprete no encontro do artista e do escritor, que recordou: «o artista virgulava por glacis uma afinação de tons nessa paisagem sombria (Charneca), tristonha. quase dolorida, ao sol posto»; e a senhora pergunta ao pintor porque escolhera um ponto tão desabitado, triste, duro, ao que Silva Porto responde, «os olhos baixos, torcendo o bico da barba, na sua velada voz enrouquecida, mas concludente: escolhi este ponto feio porque o acho lindo». O episódio curiosíssimo, omisso durante um quarto de século, permite-nos algumas considerações sobre a génese da omissão e, ao mesmo tempo, captar um raio de luz ao esteticismo do pintor. Em primeiro lugar, apesar das birras contra o «convencionalismo», apenas aceitando a paisagem sur place, o crítico não pôde eximir-se ao louvor da Charneca, reservado qualquer reparo ao trabalho oficinal a que esteve sujeita. Tempos depois, anulado o recalcamento, esquecido o prejuízo inibitório, a recordação dos glacis salta ao bico da pena. Essa paisagem no interior, crime grave ao Ramalho de 1879, exigiu uma «afinação de tons», confessa o Ramalho de 1906; nada mais natural na prática do ofício, como Silva Porto reconheceu lá fora, junto dos paisagistas famosos. Graduase uma impressão recebida no local, sem inventar outra. Mas, perguntará o amador purista, porque não se faz tudo lá no sítio? E porque o quadro do plein air, submetido na sua feitura às contingências do céu descoberto, não é para ficar à chapa do sol, nem mesmo à sombra das árvores; o quadro vem do campo para uma sala, e, à luz do interior deve submeter-se a afinação, se o artista julgar necessário, particularidade surpreendida ao Mestre em 1879, que não veio a lume em sua vida por culpa da crítica supersticiosa. Não havia segredos de ofício (Columbano retratou o colega, estando este a retocar umas vacas no seu atelier) e mais ainda: o professor «acanhado» respondia «concludente» aos que sabem interrogar. Apenas se lamenta a falta dum registo dessas lições, o ideário artístico de Silva Porto, como se fez perante um Corot, um Millet, um Th. Rousseau, dos quais se arquivaram cartas, confissões, memórias de reconhecida utilidade e ensinamento. Finalmente, 51 os glacis aplicados à Charneca justificam a ruína actual da pintura, (Museu de Arte Contemporânea, estampa XXXIV) devido a dosagens contra-indicadas dessas velaturas com base na terra natural, nos amarelos indiano e de Nápoles de belas transparências, mais belas com o seductor e maléfico azul da Prússia; e tais patinados, a que não foi alheio o óleo sobreposto, calcinaram, enegreceram e oxidaram a obra de arte. O pintor respondeu bem à senhora visitante acerca da sua emoção ante a natureza, triste ou alegre, segundo o nosso estado de alma, fenómeno subtil conhecido pelos paisagistas antes de Amiel, o contemplativo misantropo. Ao escrever a Sensier, um discípulo de insatisfeitas curiosidades, explicou o bom Millet: Ce n’est jamais le coté joyeux qui m’apparait; je ne l’ai jamais vu. O artista nunca encontrara o efeito risonho, le plus gai, ou o mais lindo, na frase de Silva Porto; a serenidade dos espaços infinitos, o murmúrio abafado dos arvoredos, o silêncio dos campos, a paz dos humildes que labutam e penam sobre a Terra (Charneca de Belas) esse era o sonho permanente, realidade visível, rêverie triste, quoique bien délicieuse, insistia o paisagista de Barbizon. Quanto ao Mes Haines e o cachimbo francês, o primeiro não pedia releitura, e o segundo estava substituído pelo portuguesíssimo cigarro de onça. Que teria ensinado o livro ao pintor? Odiar? Não. A bondade zolaesca enche nessas páginas maior espaço do que os factos detestados: a obra podia intitular-se «Os meus amores», sem mais obrigações parafrásticas: Um dos belos conselhos do escritor aos pintores é o de renunciarem aos preconceitos político-sociais e outras indigestões da democracia proudhonesca. Sobre a famosa sentença para explicar a arte: «um pedaço da natureza visto através de um temperamento» plagiada pelo Fradique queiroziano, princípio adâmico servindo aos idealistas e realistas, bom para Zeuxis e para Cèzanne, não escapou à insatisfação de Zola: «O grande inimigo é o estilo próprio, a maneira de ver». O inimigo do temperamento é o próprio temperamento. Silva Porto encontrou nesse livro, além de muitos louvores aos homens probos, activos, na aparência tranquilos, sabendo que «a vitória custa os maiores sofrimentos», um autor sempre ao lado dos vencidos, mesmo generoso com o Doré romântico: «o lápis mais prodigioso que existiu, desenhando sonhos com a mesma fé dos que se ocupam de realidades». Evidentemente, para defender Manet, o crítico fulmina Cabanel, o mestre estimado e nunca esquecido do pensionista português, e, por efeito reflexo, ali estava o pintor da Charneca exaltado por um escritor que, meses antes, liquidara o pobre Anunciação. É dos livros! E por ser assim, exactamente assim, explica-se o «pasmo» do novo professor ouvindo o jornalista do Diário da Manhã, ouvindo mais do que falando, «a boca entreaberta», olhos e atitudes sonambúlicas. Mas o artigo foi lido e causou sensação. É a gloria. Não tardam os parabéns e as homenagens ao rei de uma Academia onde se negam a descobrir outros «realistas». Não será o céu aberto para o taciturno, indiferente à política artística, bom e generoso para conservadores e progressistas. Não será a paz nem a guerra, mas é ele, a timidez activa e «calada», a prudência no saber calar e no querer dizer, bem com os de fora, nunca mal com os de casa. Em Novembro o pintor visita a capela de São João Baptista, em São Roque, encarregado por Delfim Guedes de «restaurar os painèizinhos do modelo da capela», 52 então à guarda da Academia, constando da Notícia histórica de Sousa Viterbo que o restauro de Silva Porto se limitou a repintura de quadrinho do altar, o Batismo de Cristo, de tal modo se encontrava deteriorado, solução menos agradável aos arqueólogos do tempo. Para nós, hoje, o modelo no museu de São Roque guarda esta curiosidade rara: uma composição de Masucci pintada por Silva Porto. Não tarda a proposta que o nomeia «Académico de Mérito», 6 de Dezembro, votada por unanimidade, desaparecendo a porta falsa do seu ingresso no professorado, seguindo-se idêntica nomeação pela Academia portuense. As realidades academizantes fiam do fino. Em Janeiro de 1880, por ocasião da chegada a Lisboa de Alfredo de Andrade, «o primeiro realista português na pintura, autor do Paul, um dos melhores trabalhos modernos da galeria da Academia», apesar da qualificação, dez anos antes de pintor visionário e excêntrico, A Arte reivindica para os de São Francisco a honra dessa descoberta, igual à mais recente, a que revelou Silva Porto sem pedir vénia à crítica antidelfínica; e diziam a verdade. C HEGOU a vez da XII Exposição da Sociedade Promotora, a mais notável de quantas efectuadas nas salas da Academia, nunca poupada pelos descontentes ao envolver os dois organismos numa só entidade. A Delfim Guedes coube o ingrato papel de presidir ao trabalho organizador do Salão nacional, concorrendo os expositores Sousa Pinto, Pousão, Alfredo Keil, Ferreira Chaves, Marques de Oliveira, entre os principais, e os novos que barafustam no café da Rua do Príncipe, Columbano, Malhoa, Cipriano Martins, Henrique Pinto, António Ramalho, João Vaz, Cristino, Vieira, e as duas grandes novidades do ano: o francês Carolus Duran e o paisagista Silva Porto, «discípulo da Escola Nacional e Especial de Belas Artes de Paris, de Cabanel e Groiseilliez; e professor interino da Academia Real de Belas Artes» (Lisboa), exibindo vinte e nove óleos, entre eles, o maior, meses antes descrito por Ramalho, a Paisagem tomada na Charneca de Belas, ao pôr do Sol, assinada A. Porto, com o preço de 300$00 réis. Nas outras pinturas havia trechos de Colares, Ajuda, Póvoa de Varzim, Almada, Setúbal, no viço da primavera ou sob a luz quente do estio, provocando surpresa e admiração. O artista dava a conhecer a nossa terra servindo-se de motivos banalíssimos: uns Cardos, de simples interpretação, sugerindo, mais propriamente do que pintando, não irritam pela novidade do processo expressivo e convencem os vanguardistas e os da arte velha. — Precisávamos disto, como o pão para a boca, dizia-se; ele vê com olhos iguais aos nossos, e faz o que já devíamos ter feito. — Entravam no conjunto silvaportiano os estudos do tirocínio no estrangeiro, anteriormente mencionados, mais um Castelo de Passignano e a Calle de los panecitos, de Sevilha, óleos em tabuinhas de mancha sugestiva nos vagares pelas sete partidas, ambientes acolhedores da visão repousada e enternecida; francês em França, italiano e espanhol nos agros respectivos, de ora em diante será um lusíada, a retina vibrátil, doce nas contemplações, pujante e sincero nos empreendimentos. Uma paisagem de Colares estava oferecida a Ramalho Ortigão; O Lago de Enghien, a Fiandeira e um Pôr do Sol eram do vice-inspector. Ramalho e Deodato! Deus e o diabrete irreconciliáveis, alíquotas na vida do moço pintor, sem o dividirem na sua integridade, 53 lição moral de austero equilíbrio, na querela entre os homens. Por exclusão de partes, ficava-se devendo à Promotora académica (Delfim Guedes) a revelação de um temperamento original «na maneira moderna de pintar, com as suas belezas e atractivos». O farpeador, calando essa verdade, por um lado, fez a propaganda do artista, por outro. Implicitamente, credor do primeiro e do segundo, Silva Porto estreia-se perante o público, sob a pressão dessas duas atmosferas, e nunca uma estreia se efectuou tão auspiciosa no ambiente artístico nacional, sucesso rotundo nos aplausos, positivo no resultado prático das vendas, como o crítico prometera em Outubro passado. Depois de Carolus Duran, «cabe lugar de honra ao Sr. Silva Porto» (A Arte), nome pelo qual se torna conhecido, de futuro, substituindo-se nas telas o A. pelo S. Discute-se, perante a Charneca, o empaste sumário e a subtileza do toque, a cor do céu nos momentos fugazes do poente, o recorte dramático dos arbustos no horizonte, a qualidade dos verdes e das terras desmaiadas, o desenho breve das figuras, a harmonia dos tons associando-se para uma invulgar elegia rústica, efeito da natureza desolada e caliginosa, la belle horreur tão estimada por Diaz nos bosques de Fontainebleau. Alguém pergunta a Silva Porto, observando a pintura: — Neste descampado, porque não meteu o senhor uma árvore, ao menos? — Ali não havia árvores, responde o pintor. — Explicação de um tímido genial. Ele sabe quando deve ou não deve meter árvores no seu quadro, mas as razões seriam especiosas. Optou pelo didactismo mais ingénuo: devemos pintar o que se vê, embora o conselho igual a tantos baseados na boa sinceridade, não ensine ninguém a possuir talento de compositor. Somos fiéis ao que vemos, sentindo a verdade observada. O artista foi a Belas, pintou o que viu, uma Charneca, e até o que não viu, duas mulheres acarretando lenha, para as quais lhe acudiram reminiscências de França. A figura da direita tomou-a dum estudo de Barbizon, pertença, salvo erro, de José Rosas; e nessa atitude fez pousar aqui um modelo. Quer dizer: numa tarde triste dos arredores Iisboetas, o pintor sentiu a nostalgia de um entardecer de Millet, vendo um quadro, uma paisagem erma que resolveu pintar. Adapta-se ao assunto escolhido pelo artista a mancha larga e firme, sejam as Macieiras em flor, de Auvers, exuberância de matizes e aromas primaveris, ou nas paisagens de cá, gorjeios de sonoro cromatismo entre verduras bucólicas, sob um firmamento de glória e, ao mesmo tempo, «paisagem terrível em que as relações da perspectiva aérea quase contradizem as verdades matemáticas da perspectiva linear». (Ocidente). Em pouco menos de um ano é já notável a preponderância do Mestre no meio artístico: o exigente Ramalho faz tréguas na sua quezília com os «convencionais» de São Francisco, satisfeito por estes prolongarem o prazo da exposição até ao dia do tri-centenário de Camões, e escreve: «Um dos mais brilhantes espetáculos que pode apresentar o espírito artístico nacional... renovação extraordinária que tem o carácter de um verdadeiro renascimento, tem o brilho de uma aleluia... profunda influência benéfica que o professor Porto exerce na Escola sobre os seus discípulos Ramalho e Malhoa; uma direcção muito inteligente e dois talentos singularmente fortes». Confere-se ao Mestre a medalha de segunda classe, a mais alta classificação em pintura nesse ano, e D. Fernando adquire a Charneca para a sua colecção; ao sucesso não foi estranho o resultado material, compensador, 54 para ser completo, 730$500 réis de lucros, pequena fortuna sem exemplo em mostras de arte, um pintor mais feliz que o paciente Corot na sua primeira venda, aos 51 anos: «Até que enfim, vendi um quadro!». O festival camoniano, da responsabilidade organizadora de Ramalho, não dispensou os amigos artistas, nem estes podiam eximir-se à colaboração, cabendo em sorte ao pacifico e brando Silva Porto o projecto do Carro da guerra para o cortejo cívico: «Forte e elegante (António Maria), se fosse feito por qualquer ministério, talvez não fosse tão sólido». O paisagista limitou-se a desenhar um castelo ameado de escudos, pesado e baixo, um carro fleumático e relambório, cá-vou-eu, obedecendo às humanas convenções na arte, na política e nos festejos patrióticos. E o pintor mais discutido em Lisboa parece um desventuroso, ralado de sacrifícios no ano do seu primeiro grande triunfo, 1880, escrevendo ao amigo e colega Vitorino Ribeiro: «Eu por aqui vou vivendo de esperanças e dinheiro pouco». Mal comparada, dir-se-ia a mesma dor imaginária de Miguel Ângelo, rico, senhor de seis casas e sete quintas, não fiado da Glória e avisando a família de que «luta com a miséria». A economia previdente vive de olhos postos no futuro, e quem a pratica pensa nos outros, tratando de si. A constituição de um lar estava no temperamento do paisagista crematístico, afeiçoado às doçuras de uma existência regrada, e, para isso, o antigo arquitecto faz projectos calculados e orçamentados, avareza no trabalhar e gastar, diferente das unhas de fome na vulgar razão do amealhar. Em 25 de Abril, precisamente o dia da abertura da grande Exposição da Promotora, de que já nos ocupámos, o pintor dirige uma carta à sua prometida Adelaide Torres Pereira, «a linda menina que mora defronte», dizia-se no pátio da aula de paisagem, a filha mais distinta do conselheiro Torres, ilustre burocrata conhecido dos pensionistas. No canto superior da missiva, um raminho de flores impresso em relevo colorido precede as «duas palavras: amar e ser amado». A noiva está em Benfica: o artista não a esquece, apesar da distância impedir «contemplá-la maior número de vezes…. Hoje é a abertura da Exposição». que certamente impede a visita habitual, rogando desculpas. O acontecimento maior para o artista, mal aflora na austera e sucinta epístola: a Exposição, uma palavra só, tudo, e por ela sacrificar a vida inteira, sem faltar um ano à chamada. A doença e o luto pelo pai da noiva atrasam o casamento, efectuado dois anos depois. Por motivo de novo concurso de pensionistas, desfavorável a Columbano, desencadeia-se nova guerra contra a Academia, em Outubro de 1880. Ortigão e o panclasta Antonio Maria lançam impropérios ao organismo «morto», excluindo Silva Porto, «único artista vivo», com agravantes incompreensíveis para Delfim Guedes, que não presidiu nem votou naquele júri, o Delguim Fedes, vice-inspetor de costas largas, o justamente protector do paisagista vivo. A situação é desgostante e paradoxal, doendo àquele que, alheio a paixões, deseja ser amigo de uns, de outros, e de todos grato. Permanecerá sempre neutro, obra e graça da timidez, que noutro qualquer seria banal astúcia e nos Silvas é timbre de fidalguia, igual à do pintor andaluz de ascendência portuense, isento de represálias do seu rei, no regresso da visita ao Conde Duque, antigo prócer e seu amigo desterrado do paço. Escarnecido por adeptos de Silva Porto, sem nunca retirar a sua amizade ao professor, Delfim 55 Guedes é um milagre de rara isenção e nobreza de carácter. Decretando-se em Março de 1881 novas disposições sobre o ensino artístico, o paisagista recebe nesse ano a verdadeira Carta de nomeação «atendendo à proposta do vice-inspector». N ÃO se revelou bom profeta Alberto de Oliveira, quando escreveu a Columbano, estagiando em Paris (inédito do Museu de Arte Contemporânea): «a nomeação do Porto é por dois anos, não sendo de admirar que, findo esse prazo, o ponham no olho da rua». Tudo poderia levar a esse desfecho, na lógica peregrina dos acontecimentos; porém, o instinto prudencial do Mestre evitou esse desastre na sua carreira de «revolucionário» incombatente. Decorridos os «dois anos», a 1883, Delfim Guedes ratificará a sua confiança em Silva Porto, «nomeado definitivamente, em conformidade com o voto do Conselho Escolar», tomando posse em 1 de Julho. Concorreu à Exposição de Madrid, realizada por motivo do centenário de Calderón, 1881, com dez trabalhos seleccionados que lhe mereceram o hábito da Ordem de Carlos III, não se confirmando outra suspeita de Alberto de Oliveira, na sua correspondência aos amigos do Café Leão, que atribuía ao Delguim influências maléficas nas recompensas aos expositores de Madrid. Na realidade, o mundo é avaro de alegrias e compensações. Se aumenta o prestígio do Mestre, também aumenta a crítica sobre ele e o aristocrata Deodato, a quem se ficou devendo a nomeação do professor paisagista. Em Fevereiro de 1882, «o cornaca oficial da arte portuguesa», na expressão dos seus detratores, trabalha na fundação do Museu das Janelas Verdes, preside a Comissão executiva da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental, elabora novos inventários das pinturas primitivas, (1883 e 1889) rodeia-se de eruditos, arqueólogos e historiadores de arte para essas iniciativas, e os inimigos de tão patriótica acção, na imprensa e nas tertúlias artísticas, pertencem ao grupo de Silva Porto, uma mágoa para os dois, protector e protegido, ambos suportando-a com a melhor das fleumas. Em 6 de Abril explode a sátira ramalhal contra o decreto que dá o título de Conde de Almedina ao vice-inspector; e o circunspecto Ocidente informa acerca da nobre pessoa: «embora tenha cometido erros, como homem que é, e não infalível». Quais erros? Ignoramse, e certamente não foram palmares, ao lado das benemerências, a bem da Arte. Uma afinidade havia entre o fidalgo e o paisagista: nunca deram o flanco às verrinas, nunca ergueram a voz do despeito, cada qual a petrificação da alegoria ao silêncio, o indicador sobre a boca, uma espécie de melancolia jubilosa e sossegada, enquanto a caravana passa. Continuando a procurar a sombra do Mestre no ambiente académico, descobrimo-lo na conferência de 10 de Abril de 1886, onde o professor de paisagem manifesta, pela primeira vez, uma vontade e opinião registadas na acta. O caso respeita à discussão de um novo regulamento na altura de precisar as obrigatoriedades dos pensionistas no estrangeiro: «Silva Porto faz uma proposta de alteração: No 1.º ano, aos desenhos de paisagem deve acrescentar-se e de animais. No 2.º ano, aos estudos de pintura de paisagem deve também acrescentar-se e animais. No 3.º ano, em lugar da cópia de um quadro, Estudos de figura em costume e de animais do natural. No 56 4.o ano, em lugar de um quadro de paisagem, um quadro de costumes ou animais». Aprovou-se, como não podia deixar de ser, e sem discussão, a norma adoptada pelo Mestre, o sistemático conteúdo figurativo de especialidade de paisagem, como praticaram Anunciação e os antigos românticos ouvindo a flauta de Pan nas poéticas Geórgicas, hoje o pífaro ou a gaita de beiços do zagal nas telas do hodierno e não menos poético bucolismo. Mas, o humanista pintor era de humaníssima caridade ao pronunciar-se em júris e comissões, tendo na massa do sangue o preceito evangélico: Não julgues para não seres julgado. O experimentado desenhador de quatro cursos servia a natureza, o modelo vivo no seu arraial de estudos exigindo de si mesmo o que desculpava nos outros; e nunca a brandura do professor sofreu maior provação como uma vez, em assembleia de pareceres discordantes. Ganhar um debate importa pouco, se não o ganhamos com razão. O seu critério acerca do perfeito paisagista aprovara-se, como dissemos, sem luta, sem debate, e com razão à farta. Que resultou na prática? Dois anos depois, 8 de Março de 1888, a conferência académica aprecia as provas dos candidatos a pensionistas no estrangeiro, resolvendo aprovar, em pintura histórica, Veloso Salgado, por unanimidade: dezasseis votos, entre os quais o de Silva Porto. Sobre o concurso dos paisagistas, o parecer Desenho do júri classificava as provas de Carlos Reis, o melhor dos três concorrentes, da seguinte forma: pintura de paisagem, dezasseis valores; desenho de figura, nove valores; e o parecer concluía: «nenhum está em circunstâncias de ser aprovado para pensionista». Assinavam Tomás da Fonseca, Silva Porto e Simões de Almeida, relator. O destino revelara-se duro, incoerente. Depois de oito anos de hosanas ao professor da cadeira de paisagem, não se apurou um discípulo capaz de suceder-lhe? Realista na pintura e realista no sentido politico hoje aplicado à palavra, Silva Porto aceita a vida como ela é, desgostosa ou benfazeja, mas, seguindo a ética do pai na antiga oficina da Bainharia (Expõe-te a sofrer) tenta dar um passo a favor do discípulo, mesmo à custa dos seus puritanos princípios: «O sr. Silva Porto, membro do júri, entende que a prova de paisagem é a mais importante, e por isso o concorrente estava no caso de poder ir aperfeiçoar-se no estrangeiro». Demonstrara lealdade com o júri, assinando o parecer condenatório, e brandura com um discípulo, ao declarar verbalmente que a paisagem importava mais do que o desenho de figura; mas castigava-se a si próprio, abdicando do seu programa ali mesmo aprovado dois anos antes. Simões sustenta a classificação negativa do parecer, vingando os seus judiciosos considerandos: quem não sabe desenhar uma figura é um paisagista incompleto. Assunto arrumado, os dois professores de opinião divergente, o pintor e o estatuário, continuam amigos. Iam juntos pintar para 57 o campo, disse-nos o escultor Simões Sobrinho. Nem faccioso, nem fanático, Silva Porto leva como pode a dificuldade tirânica de servir dois amos, conciliar dois senhores: o coração a dizer sim, a razão a dizer não. Contraditório? Sabe-se lá o que é uma contradição nesta vida de trágicas surpresas. Pouco depois, repete-se o concurso de paisagem que melhor habilitado, aprova pensionista no estrangeiro Carlos Reis, Abril de 1889, contra a declaração de voto do professor Ferreira Chaves, desta vez apologista do concorrente Luciano Freire. A esse respeito disse Monteiro Ramalho, seis anos mais tarde, ocupando-se da sucessão de Silva Porto na respectiva cadeira: «Guiava-o então a influência do mestre afetuoso, que se apaixonou, vencendo a tímida isenção de contemplativo, avesso a lutas ásperas das vontades e fez valer o seu apoio declarado, quando viu Carlos Reis envolvido numa intriga de sacristia, que poderia impedi-lo de ir ao estrangeiro, como pensionista do Estado». Temos que esclarecer. O homem contemplativo, toda a vida o mesmo lutador sem paixões, não podia mudar com essa ligeireza, negada por La Rochefoucauld ao avisar-nos «do perigo, se tentamos repreender ou corrigir a timidez» de quem nasceu tímido. O lamiré do Monteiro, mal informado, teve origem na caracterologia do discipulado em redor do Mestre da paisagem. Um dia, alguns alunos de Ferreira Chaves desertam da aula de pintura histórica, seduzidos pela novidade, a magia, o exemplo da arte silvaportiana. Inteligente, não sendo um criador fecundo, mas prestigiado pela vitória do seu discípulo Veloso Salgado, o professor Chaves pensou que, se havia o direito de mudar de mestre, também seria para desejar uma responsabilidade fundamentada no proveito da mudança. — Cá vos espero na volta, — e não tardou em verificar-se haver mais imitadores paisagistas do que autênticos discípulos, esquecidos do preceito de bem compor, bem construir, bem observar, tomando o resultado pela causa, copiando «belos borrões» sem a experiência do Mestre, que desenhou parafusos aos doze anos antes de chegar ao impressionismo aliciante da sua pintura. Os professores Chaves e Simões defendiam o ensino e o ideal do verdadeiro paisagista representado na Escola por Silva Porto; defendiam o próprio colega contra os que descansavam na sua proverbial brandura. A isto se reduz «a intriga» que não era de comadres ociosas, mas de princípios afectados pelo choque de razões na vida dos princípios. Conclusão: o método do exemplo (Silva Porto), para não se tornar imetódico, deve amparar-se nas subtilezas indutivas (Simões), e em normas disciplinares (Chaves) graduadas segundo os casos, as tendências, o momento. E o mesmo dizemos para qualquer metodologia artística, mais do que nenhuma, sujeita a constantes revisões. O BSERVÁMOS o professor no âmbito restrito das suas funções docentes. Mas, para «revolucionar», na verdadeira acepção artística, é necessário outra coisa, e ninguém melhor do que Silva Porto corresponde, na álgebra dos sentidos, no momento exato da sua acção inovadora, fora dos muros académicos, a parte mais original do seu complexo dualista, que nos dará, longe da Escola onde ninguém é profeta, o verdadeiro homem e o verdadeiro chefe de escola. Recuemos até ao ano da chegada do Sr. Porto. Nem boémio, nem valdevinos, o pintor adquiriu o hábito da cavaqueira 58 ordenancista, ouvindo mais do que falando, até cair na cervejaria Leão, como sopa no mel, o poiso dos artistas e dos escritores na Lisboa de 1880. O novo freguês ocupa o lugar de honra à mesa de alguns discípulos, contrafeito, agnóstico nos gastos. Anfitrião na presidência sem outros encargos onerosos; e dos consagrados oficialmente em São Francisco, é o único recebido pela consagração extra-oficial ou antiacadémica da Rua do Príncipe. Nas aulas, Silva Porto está no seu quartel de inverno; no campo, se o tempo o permite, os alunos encontram o professor do exemplo na mais arejada das suas lições, umas e outras rematando no Café, pela noite dentro, aproximação inócua e fraternal de um sonho de arte. É a «revolução», da qual será legítimo esperar o máximo proveito, para ser vitoriosa. — É o nosso Divino Mestre! — exclama Monteiro Ramalho, ante as escusas do homem sem culpa de ter vindo na hora do resgate, o momento da salvação das almas perdidas do ideal artístico. Os apóstolos instruídos para a verdade no cenáculo, ou peripatetizando nas surtidas pelas azinhagas do termo lisboeta, cometeram apenas uma falta. Privaram-nos do registo autêntico dessas doutrinas e ensinamentos, decerto exteriorizados na pintura do professor, esquecida a teoria, que não prejudica a prática e ambas se completam. Falta o evangelho técnico e estético do realismo na centena de artigos escritos pelos confidentes de Silva Porto. Que disse o Mestre teantrópico, durante anos, aos discípulos e admiradores? A primeira vez que se escreve «Grupo do Leão», Dezembro de 1881 (Z. Segredo, Diário da Manhã) salvo erro, o Chefe é reconhecido deste modo: «Silva Porto está à mesa, um pouco curvado, a serenidade honesta e grave, a barba cuidada como a de um médico». E pronto. A imagem segredada não chega para o retrato íntimo do «revolucionário». Ramalho Ortigão apresentara-o meses antes, no mesmo jornal, «calado», o riso e o sorriso banidos da sua pessoa, e assim parece ficar eternamente. Ninguém o interroga, tímidos fracos em presença da timidez-ousadia do Mestre acessível, frequentando um botequim, descido à rua sem desdouro dos pergaminhos académicos. Podia dar leis se quisesse, escreveu Ribeiro Artur, pois «adivinha-se-lhe um fecundo borbulhar de ideias sustadas, receoso, e que a sua palavra hesitante, abalada, nos rouba nos momentos de maior expansão». Mas, por sua culpa ou por descuido de outros, embora expansivos, faltam essas ideias com força de lei, esses pensamentos seleccionados para uma crestomatia de genuína feição silvaportiana. Ribeiro Cristino, o mais pedagogo dos artistas do Grupo, deixou-nos este esclarecimento: «Silva Porto sempre pronto a aconselhar quem se lhe dirigia, sem vaidade; foi mesmo esse, talvez, o principal motivo da grande influência que exerceu». Um taciturno aberto, pelos modos, pronto a explicar-se quando alguém o abordava em assuntos da sua profissão, o mistério da simplicidade no exercício do conhecimento inteligente; o espírito magnânimo e bondoso no homem sabedor, eram as causas primaciais do seu enorme prestígio. Vai ao Café apertar a mão aos camaradas, ouvir este e o outro, confessando-se e confessando-os, mas o erudito Cristino não adiantou mais acerca das doutrinações apostólicas do Divino Mestre. Entre os literatos e jornalistas tertulianos, Fialho, Monteiro Ramalho, irmão do pintor, Emídio de Brito Monteiro, Mariano Pina, Abel Botelho, havia um rapaz esgrouviado, barbirruivo, para alguns, louro de todo, o frenesi da 59 crítica, do periodismo e das invenções gráficas a inquietá-lo junto dos artistas plásticos; era Alberto de Oliveira, o demónio simpático do Grupo, setubalense trazido pela mão de João Vaz, um dos indicados para nos deixar as memórias do cenáculo, se a política lhe deixasse o talento sossegado. Numa carta (3-VII1881-arquivo do Museu N. de A. C.) dirigida a Columbano, no seu tirocínio em Paris, diz o Oliveira: «A propósito de música, manda dizer-te o Porto que vás aos concertos do Pas de Loup, que, creio, começam em Novembro, onde por 75 cêntimos ouvirás musica como ainda não ouviste. Diz mais que quando tiveres dez francos disponíveis vás ao Bosque para ver homens bem vestidos. Alem destes dois conselhos, pelos quais não te leva nada, manda-te muitas saudades». Tinha razão Vitorino Ribeiro nos seus informes de Paris; o paisagista viageiro conhece os itinerários do ritmo nas linhas, a gama instrumental das cores e dos sons, o bom gosto dos tafuis rompendo finas caxemiras no Bois, e qual a moeda pagante desse gozo e felicidade sedativos, pois de graça nada se alcança e o dinheiro basta havendo «orçamentos regulados». — E sempre às ordens, conclui o antigo pensionista, cofiando a pera de «médico», nada lhes levo pela consulta, visto a amizade não ter preço. Magnífico tema do «calado», e grande noite à mesa simpósica fora do plebeísmo anedótico, se houvesse um cronista para tudo relatar. Um crónicon ia havendo, hipotético órgão do Grupo, citado por Ribeiro Artur ao recordar o fogoso entusiasmo de Alberto de Oliveira «chegando ao excesso de publicar um perfumado jornalzinho de arte, a Chronica Ilustrada», de que saíram quatro ou cinco números, raríssimos nas colecções dos bibliófilos. O «excesso», igual a exagero, mesmo num pequeno jornal, sua «gravura química» a ilustrá-lo, inspirava-se na Vie Moderne, grande revista que o louro Oliveira exalta à mesa dos «conspiradores», escrevendo aos ausentes a pedir inéditos, sem prometer remunerar «por enquanto». Lá se conseguiram, alem do noticiário curto e anónimo, umas amostras de Fialho, Teófilo Braga, Teixeira Gomes, sendo omisso quanto à personalidade e horas canónicas do Mestre. Do «proprietário e director» do folheto não se encontra, nem se descobre, em nenhuma outra publicação, artigo seu assinado, prosa ou verso. Um acabado sonhador, este «jornalista» diletante, sem um programa fixo onde corporize o seu dinamismo. Mas uma ideia nova, inédita, borboleteando no ar fumarento da cervejaria, cai na mão presta do moço sem ideias originais, não a larga, e por ela, a sedutora ideia, vivendo só para ela, o Oliveira da Chrónica falida terá o seu nome na história da arte contemporânea: O Grupo vai afinar por outro diapasão, outra música, ou sejam as exposições de arte anuais. D EPOIS do recente êxito de Silva Porto na Promotora, a paisagem ganhou importância e será uma especialidade de futuro na vida artística portuguesa, à margem da questão acerca de realismo ou academismo, que não estava em causa, havendo na tertúlia sincréticos e simpatizantes de qualquer dos ismos. Não se tratava de arvorar a bandeira de uma nova cartilha plástica, mas de expor a obra feita segundo o estilo e os processos de cada um, a ânsia de pintar igual à febre de mostrar e vender. Nesse ano, 1881, Silva Porto concorrera à trienal da Academia portuense, com cinco óleos, e também ao Centro Artístico do norte, remetendo sete pequenos quadros, fruto de 60 peregrinações pelo Buçaco, Póvoa, Alfeite, Colares, Vila Franca de Xira, e um Caminho da Fonte dos Amores, de Sintra. Ao costume parisiense da brasserie, o paisagista trouxe outro, o salonismo, ou a salonitite, palavras ainda não dicionarizadas, o hábito croniqueiro de apresentar a obra ao público, em prazo fixo; e, bem incubada a ideia no Leão, o Chefe acarinha-a prometendo novos quadros para já, se fosse preciso, abelha operária que desconhece a fadiga. E para já não se admitindo a espera de três ou quatro anos pela Promotora nas mãos do tradicionalismo, embora as críticas do tempo à antiga Sociedade pequem por apaixonadas e menos justas. Sem dúvida, uma mostra trienal não satisfaz a incessante produção de pintores naturalistas: mas, os promotores de São Francisco argumentavam: este organismo, não sendo constituído apenas por paisagistas, deve ter em conta a escultura, a arquitectura, a pintura de retrato, o quadro histórico e outras artes decorativas, que não se improvisam nem justificam Salões de doze em doze meses, admitindo o propósito de marcar uma evolução ou um progresso, em cada certame. (O tempo deu razão a esta tese). Posta assim a questão, e não foi outra, temos dois Homens para a resolver: Silva Porto e Delfim Guedes, ambos servindo interesses contrários. E a solução é fácil. O primeiro amansará os rebeldes do Café Leão, acompanhando-os na iniciativa exposicional, independente de hierarquias e etiquetas oficiais; o segundo, preocupado com a criação do Museu das Janelas Verdes, atento à oportunidade política da grande Exposição Ornamental que justificaria o Museu pela revelação de um inestimável repositório de arte do passado (o futuro assim o demonstrou) estaria liberto de obrigações concernentes à Promotora, da sua presidência. A infelicidade de Delfim Guedes, tomado como o inimigo número um do Grupo, consistiu no erro histórico dos contemporâneos divorciarem dois acontecimentos simultâneos e diacrónicos. E o erro estremou os campos: o primeiro indivíduo será o Mestre da Boa Nova, que redime os pecados da moderna pintura nacional; ao segundo, a injustiça dos apedeutas nega-lhe o amor desinteressado pelas «velharias» museográficas, incluso o direito de ter descoberto e trazido para Lisboa o mais divinizado pintor vivo: Silva Porto. E os dois, de condição social oposta, mas idênticos em perfeita e sã deontologia, assemelham-se no sacrifício à deusa Angerona, a divindade sem templo, advogada dos taciturnos estranhos ao mundo falacioso, na aparência timoratos, no íntimo a perseverança dos fortes sem fumos de arrogância. Na ocasião em que esmorece o alor do Oliveira para a efémera Chrónica, projecta-se o primeiro Salão do Grupo, início das periódicas exposições colectivas. Em que salas, postas de lado as da Promotora inacessível? O jovem rubiáceo multiplica-se em esforços procurando instalações, imprimindo os catálogos, os anúncios, os convites, incansável, amigo dos seus amigos e dos «petits Salons portugueses», única alegria compensadora do mal sucedido «jornalzinho». De 1881 a 1889, duração temporal do Grupo, estampa-se na capa dos oito catálogos o nome do publicista expedito e expletivo nas honras da casa. Não escreve prefácios, não assina críticas; serve os artistas por outros meios e mais um, apresentando-os segundo a fórmula recente: «Catalogue illustré, contendo reprodução em fac-simile, segundo os desenhos originais dos artistas, publié sous la direction de F. G. Dumas». Em Lisboa, a mesma prosaica francesia, com a derivante final: 61 «publicado por Alberto de Oliveira». Encabeçando o frontispício, a designação «Quadros modernos», usada na Chronique des Arts pelos colecionadores e negociantes: «Tableaux modernes de artistas contemporâneos, desde Ingres até Daubigny», considerando-se anciens os do século XVIII para trás. Um catálogo, nestas condições sumárias, qualquer expositor o faz; porém, os artistas com mais que fazer, deixam o encargo à devoção editorial do Oliveira, acertado nessa única aventura publicitária, «a bela obrinha do belo rapaz», dizia-se, ao admirá-lo embevecido com as tiragens especiais em papel do Japão, da China, Whatman, velino, prodigalidade fantasista, animada e mimada de criança grande. Para as exposições explosivas da gente nova, estabeleceu-se o Inverno, pelo Natal, respeitando as Primaveras da Promotora, caso ela resolvesse mostrar um ar da sua graça. Deste modo, o primeiro Salão dos «nove rapazes independentes» abriu a 15 de Dezembro de 1881, na Sociedade de Geografia, Rua do Alecrim, uma salinha cedida por Luciano Cordeiro, vergado às instâncias do Oliveira, após este comentário: — Visto isso... estando nós em boas Desenho relações com o Silva Porto do sertão, não devemos recusá-las ao Silva Porto dos quadros. — Nove pintores, o Mestre incluído, com Ramalho, Vaz, Malhoa, Pinto, Martins, Vieira, Cristino e Girão, os quatro primeiros constituindo o prato de resistência no banquete exibitório, força viva no esteio de outras mais modestas. Observado à distância em que nos encontramos, espanta o excelente acolhimento dispensado a essa mostra de arte numa sala exígua, mapas geográficos pendentes, uma grande esfera armilar ao canto do aposento invadido. Os óleos apertam-se entre cartografias descoloridas, ou pousam em cavaletes de campo, ajoujados sob o peso das molduras, dois quadros em cada suporte de hastes caniçais, recebendo a luz baixa e enviesada das janelas. Porém, a surpresa do bazar transfigurou o acontecimento: os expositores pintavam naqueles mesmos cavaletes de campanha, artistas dissidentes de formalismos, sem reparos à improvisação do certame, visitado aos magotes, a quadraria ameaçada de ir a terra ao descuido da menor rasteira. Fervem as perguntas, os encómios e as críticas. «De quem dissidem os rapazes, se eles são os únicos paisagistas vivos depois de Anunciação?» (Ortigão). O sucesso, explicou Cristino, «foi também motivado pelo formidável reclamo dos camaradas literatos na imprensa diária, fazendo constar, aliás erradamente, que a iniciativa era um combate à Academia, fazendo Silva Porto parte dela como professor!?, exagero ofensivo em que nenhum dos expositores pensava». Alimentara esses boatos o insurrecto Oliveira, volta e meia chamado a ordem quando descobria as rémiges de politico militante. D. Fernando, o rei artista, apanhado a gancho na Rua do Alecrim, visitou a exposição, distribuiu parabéns e comprou pinturas, broas natalícias 62 que inauguravam venda directa entre o artista e o público. Por coincidência, o regozijo de Delfim Guedes não foi menor: uma élite de estudiosos luziu durante várias semanas no palácio das Janelas Verdes, ali se verificando outro resgate de pecados contra o belo «ornamental», uma lição de elevada cultura artística a que não faltaram os emboras da imprensa pelo êxito dos organizadores. As «dissidências» do outro lado faziam parte da propaganda, um brado ao mundo de cem cabeças tremulentas e distraídas, sem razão para a Academia «empalidecer», como Mariano Pina prognosticara. Ela e o professor Silva Porto catequizam sem egotismos, realismo aqui e realismo acolá, amigos na discrepância ou na semi-sinceridade dos meios que levam aos bons objetivos. No primeiro Salão de Inverno, chamemos-lhe assim, o catálogo acusa vinte quadros do Mestre, saborosas manchas de pequenas dimensões colhidas em Belas, Setúbal, Mondego, Póvoa, Minho, Arrábida, e ainda um resto de cativantes recordações de França e de Itália: a sugestiva Cancela vermelha, de Barbizon, duas marinhas de Veneza, uma Cabeça romana, um S. Constanzo e outra cabeça, de Capri, óleos bem citados por Monteiro Ramalho, crítico oficial do Grupo e anunciador de «um renascimento na pintura», em especial no género paisagístico do quadro de cavalete. As tabuinhas e telas de palmo do grande inovador, comovido verismo de um sonho panteísta, obedecem à recomendação de Goethe a Eckermann: «trabalhe só pequenos assuntos; a poesia de momento, fundamentada na realidade». Óptimo consenso e bom sistema, quando o homo faber não se sistematiza por um elastério de pequenos assuntos a multiplicar os pequenos poetas. E não tardam os «paisagistas» candidatos a matrícula na Rua do Príncipe, avalanche de «dedicadas adesões» que comprometem, reverso da medalha de uma boa iniciativa, a luta do Bonnafeé em le pour et le contre. A salutar influência de Silva Porto não irá, diz Fialho, degenerar em influenza epidémica? Depende da qualidade do amadorismo, que já se manifesta, concorrente, recomendado e estimulado por vários meios. Volta a pôr-se o problema: Se a Promotora aceitasse os Salões anuais.... Não aceita. Precisamente, um sector da crítica francesa acaba de alvitrar Salon bienal ou trienal, em vez do infernal de todos os anos (o alvitre não pegou), e os de cá, na velha orientação, julgam estar no bom caminho, dispensadas as balbúrdias e os interesses materiais do exibicionismo. Não desiste o Grupo dos seus propósitos, lamentando apenas a mofina sala da Sociedade de Geografia, quadros à mistura com os atlas rebarbativos, e as aborrecidas alusões ao longínquo homónimo do Mestre: — dois pioneiros na douta Sociedade, à frente da civilização, o da pintura e o do Bié — . Entretanto, obrigam à cisma os anúncios do leilão da Rua dos Mouros, no Bairro Alto, feito pelas irmãs de Anunciação, e as reprimendas ao facto do Museu ainda não ter adquirido as «excelentes obras do infortunado animalista». Os admiradores do chefe romântico lembram ao chefe do naturalismo, professor interino, que nada fez no capítulo de animais para justificar a cadeira de paisagem, ainda provisória. Abranda a má-língua contra o vice-inspector, elevado a Inspector pela nova reforma, apaziguamento secundado por João Vaz, o novo professor de Delfim Guedes, agora com o fraco das marinhas, a sua rabeca de Ingres na vida oficial. O novo domicílio de 63 Silva Porto é na Travessa da Estrela, 38,1.º andar, um sítio mais ventilado e, por acaso, muito próximo da rua onde faleceu o sacrificado antecessor no magistério. As suas visitas ao Café são mais curtas, o último a chegar e o primeiro a ir à deita, ao soar das onze, o corpo exigindo cautelas, prestes a despedir-se de solteiro. A segunda exposição do Grupo, 1882, teve lugar nas salas do Comércio de Portugal, Rua de São Francisco, daí em diante o local preferido, a dois passos da Academia. Acrescentam-se aos nove mais dois artistas, Columbano, um pintor de futuro, e Figueiredo, o «pinturinhas» sem futuro, dois novos que se detestam, caso vulgar semelhante ao de Cézanne e Degas, pessoas e obras contraditórias no cerne da família impressionista. Silva Porto assina vinte e um óleos de um pitoresco inexcedível, sobre os quais todos os olhos se inclinam na mais enternecida e devota contemplação. Destaca-se a tela de um metro, Lugar de Arnelas, Douro, e outra de igual dimensão e maior importância com três vacas leiteiras, Na arribana; além de dois estudos, Uma vitela e a Vaca barrosã, a sua estreia na pintura de animais, estreia e surpresa merecedora de variada discussão. Uns evocam Rosa Bonheur, Troyon, Van Marcke, os melhores especialistas que não recusariam, afirmava-se, assinar a obra do nosso pintor de costumes rústicos. Outros, de cariz menos lisonjeiro, lamentam as vacas desta arribana por sofrerem mau trato, deformadas no seu escorço arbitrário. principalmente a da esquerda, «metida em perspectiva» de flagrante aberração fotográfica. Se esses bichos são dignos de Troyon, aduzia alguém, será o pintor da última fase, vitima do sucesso até ao laisser-aller do comerciante sem mãos a medir. Por seu lado, o defensor ofícioso, Monteiro Ramalho, alega uma «importuna doença» que teria prejudicado o Mestre dos erros de desenho: «Não lhes parece bem! E então? Uma pessoa também se impacienta com a maçada de fazer tudo bem feitinho». Ao argumento sem grandiloquência sobrepunha-se a questão de outra gravidade: «As impiedosas feras agarraram-se tenazmente ao pobre Silva Porto, e, por entre uivos ferozes, querem mostrá-lo num caminho lamentável de decadência». Acusação chocante em 1882, na maturidade do artista criador, impiedosa, sim, por ser profética, a verificar-se nos próximos cinco anos. No segredo dos corrilhos, as «feras» aventam zanguizarras deste género: — Pinta os animais amarrados — não estuda o movimento das figuras — não sabe compor, limitando-se ao esboço ampliado. É o látego vingador do antigo animalista que pintou o famoso Vitelo branco, impecável naturalismo de um Troyon dos bons tempos, o daquele novilho sem cabresto, liberto de humanas prisões, o instinto soberano do mais angustioso mugido revelado numa prova de suculenta plasticidade. Ao pintor das vacas mansas na arribana, focadas pelos quartos traseiros, contestam a sua teantropia, homem pouco divino no mestrado, os «desfalecimentos deploráveis» prejudicando o deus em pessoa. Estavam quites, na severidade do julgamento, o artista e o seu protector: ao Delfim também não se perdoa a recente coroa de conde. Mas o discutido sucesso não foi ladro e trouxe rendimento para ser sucesso; 53 quadros vendidos no segundo Salão animam as hostes do agrupamento. Mal sanadas as «cólicas», doença de raiz parisiense, irmã do salonismo, e antes do encerramento da exposição, 64 o activo paisagista leva outras pinturas, novos improntos de saboroso virtuosismo plástico, adquiridos às rebatinhas, o próprio comprador estabelecendo o preço. Se o artista gosta de ser adulado, o público não gosta menos, quando o convencem do seu bom juízo nos negócios; mas não passou em claro o desprendimento crematonómico de Silva Porto ao atribuir-lhe esta frase: «Então acham que devia pedir mais dinheiro por um quadrinho tão pequeno?» — É mercantilista, ripostaram; avalia a pintura pelo tamanho e sacrifica a Mercúrio em prejuízo da perfeição. — As mesmas palavras servem ideias várias. Pequeno em volume, pequeno em esforço; dura pouco o que se faz rápidamente, trabalho reduzido, «pequeno» de preço e de mérito. Ao utilitarismo da época quadravam as modernas concepções técnicas, a pochade ao alcance das mãos talentosas e do comprador, breves soluções, graça espontânea na pincelada solta e resoluta. Ortigão aprecia as actividades de Alberto de Oliveira no Diário da Manhã, a propósito deste Salão: «Elegância pitoresca de um artista pobre... ele e o criado Manuel, da Cervejaria Leão, representam a única instituição séria de Belas Artes que temos hoje em Lisboa». Como sempre, o humorismo do estilo escamoteia a lógica doutrinal: «Ao Oliveira se deve inteiramente o grande sucesso com interesse extraordinário que despertou no público a nova exposição, por todos os meios da publicidade instigada, anúncios, notícias, reclames, percorrendo dia a dia as redacções de todos os jornais com a relação dos visitantes, a conta dos quadros vendidos, os nomes dos compradores, organizando e fazendo imprimir à sua custa o catálogo ilustrado.» E sem abandonar a sala de manhã até às completas, para atender, explicar bem a coisa aos fiéis e beneméritos da arte. De facto, era assim o prestimoso Oliveira, sem prejuízo da sua bolsa, manda a verdade que se diga; a venda do catálogo garantia o custo; de contrário, uma percentagem sobre a receita dos quadros amortizaria a diferença. Também não resultou muito católico o louvor ao propagandista atribuindo-lhe «inteiramente» o grande êxito do Salão; e com respeito ao professor interino, inseguro no cargo, causou estranheza e aborrecimento o seguinte trecho: «Na Academia de São Francisco, por justos motivos, escasseia a todo o momento o ensino; na Academia da Rua do Príncipe nunca escasseia o pão e há mesmo subsídios para o queijo. E eis aí o que faz Manuel», o criado que fia, etc. O folhetim do plumitivo contraditório, sempre farpeador no elogio ou na trepa, esquecera o panegirico de há dois anos acerca do novo mestre, que pelo visto, não ensina na Escola, nem no Grupo. «Vivo de esperanças, murmurou ele, mas naquela mesa, e em qualquer parte, nada tomo fiado». A génese da ambígua e desconfeita crítica descobriu-se uma noite, quando o louro Oliveira, ar de bom-serás, apresentou a novidade em pleno Symposium: o desejo manifestado ao «organizador» por umas senhoras respeitáveis, entre as quais Berta Ortigão, de expor no próximo certame grupista. Tudo ficou perplexo! Era o amador, o inimigo que um dia dará cabo do Grupo. Consultado, o Mestre encolhe os ombros. Que resolva o Oliveira, menino bonito de gorra com o crítico; mas qualquer resposta, um sim ou um não, é coisa medonha. Muda-se de assunto à palestra. Silva Porto regista outra morada, na Travessa do Corpo Santo, 29-3.º uma fuga do Bairro Alto, nervosismo de sofisticas realidades ambientais. O 65 trabalho de sol a sol afasta-o dos amigos, preferindo ao serão o conchego do lar onde não falta o amor. Se comparece às reuniões, o artista anula-se, rosto cor de cera, ouvindo sem alegria as vozes cruzadas de pareceres controversos. Quando se aproxima o Natal recobra ânimo e pergunta se estão preparados para a exposição, a sua lotaria, único vicio e doença certa, a salonistica francesa implantada no Chiado com o seu real prestígio. Em Fevereiro de 1883 morre Lupi, grande pintor e grande mestre, «opiniático e perseguidor», na frase dum cronista, naturalmente, perseguidor por ser perseguido, mal com os homens por amor da Academia, mal com a Academia por amor da Arte. Desaparece o único obstáculo sério à nomeação do paisagista como professor efectivo. E STAMOS no terceiro Inverno. O catálogo não adopta o designativo «Grupo do Leão», vulgarizado por Mariano Pina, na impossibilidade de se fixar rigorosamente os artistas que frequentam a mesa pontifical. A colheita de Silva Porto cresceu para trinta óleos, entrando, no cômputo do eufórico lirismo plástico, Matozinhos, Vizela, Avintes, Frielas, Ribatejo, até ao Algarve. O pintor insiste com as vacas, desta vez enxotando-as do estábulo comprometedor; Na pastagem (Coleção dos Patudos, est. XLVIII) aparecem duas ruminantes e um vitelo, dispostos sem caprichosidades de composição. Quando o artista procedia aos acabamentos deste animalismo, no atelier, surgiu o amigo Columbano a retratar o mestre na intimidade da operação, coisa vulgaríssima no mundo da arte, embora o feito revelado ao público servisse de prova zoila contra o desnatural procedimento do ar livrista na oficina. As vacas e o vitelo respiram menos mal fora da arribana, mas não se acredita; o pintor não viu, não sentiu, nem estudou a cena campestre. E foi mais longe, trazendo ao desafio da crítica uma pintura de metro e meio de largo, Os bois em movimento, resposta às censuras do Salão transacto. Eis senão quando, intervém o farpeador tremebundo: «Tem obrigação de intervir», na sua faena rezingona: «Severas contas a ajustar» que empalidecem os desprevenidos. Que sucedeu? Que deseja o senhor crítico nesta sua casa? — É que isto sai das marcas; avançam os discípulos e estacionam os mestres, mau sintoma, diz ele, haver só estudantes, mas se aprenderem a ensinar, depois progridem no saber. Em sua opinião, o Grupo está destinado a substituir os Governos e as Academias que não fazem escolas de arte, mas, se temos o Grupo, falta a escola, e não havendo autoridade nem escola, reina a indisciplina do «talento anárquico». É difícil entendê-lo no seu didactismo implexo e empanturrado: «a presente exposição revela um incontestável aperfeiçoamento reflexo sem aumento de elevação no nível geral do todo». (!?). Só os expositores percebem o galimatias, piscando o olho uns para os outros, marotos egoístas tratando da sua glória exclusiva sem dar lugar aos discípulos no ambicionado Salão. — Pois tenham a subida fineza de esperar; chegará a vez a todos. Ramalho considera Silva Porto igual aos de Paris, de Roma, de Londres ou de Berlim, pintor das quatro capitais do mundo artístico, mas com ele, e por isso mesmo, «há contas mais severas que ajustar. Tínhamos direito a receber pelo menos um quadro e recebemos trinta estudos. É pouco». Mas estão ali Os bois, um quadro grande. «Nessa tela consideramos pintadas apenas as cabeças 66 de animais, conduzidos por uma hipótese de vaqueiro, e a paisagem que estofa os bois é uma improvisação... Quem pintou com tanto zelo a Arribana da exposição anterior assumiu uma responsabilidade que este quadro está longe de satisfazer». E recomenda aos do Grupo mais desenho, lembrando-lhes as obras primas dos Museus estrangeiros. Tal qual o Chaves e o Lupi no psaltério escolar de São Francisco: — o borrão sem a bitola, sem o nível e a basezinha não é pintura. — Muito mudado está o homem de há três anos, quando exaltou o novo professor contra o convencionalismo académico! E o artista seria o mesmo? Era o mesmo, no ofício de expor a obra, «expondo-se a sofrer», sofrimento doloroso, superior ao da fome, da sede e de outras necessidades materiais: um expositor intrigadíssimo por via do gado vacum, o seu tema. Fora ou dentro do curral, eis o grave da questão. A pintura de Os bois (colecção do Dr. Henrique de Vilhena est. XXXVI) documenta o artista obediente às lições da crítica, um bem ou um mal que muitas vezes escapam ao nosso determinismo. Depois dos comentários desprimorosos às três vacas do ano anterior, dòcilmente presas à manjedoura, o animalista atacou a inversa do problema: três bois soltos num lameiro avançam para nós, em escorços de flagrância discutível, o ambiente estremenho indicado no fundo sumário, visíveis o busto e os cotovelos do boieiro num plano secundário. Pelas suas dimensões, a tela requer os tratos de oficina, o busílis do pintor quando lhe faltam os recursos indispensáveis. A luz da paisagem, não sendo idêntica à das figuras, revela um desencontro no horário do astro rei, que o Josué da paleta não corrigiu, sendo fácil insinuar-lhe a trucagem fotográfica para as deambulações figurativas. «Alguns trechos daqueles animais ficaram maçados e as paisagens são caóticas, as atmosféras opacas, sem espaço iluminado», linguagem do Monteiro, passa-culpas do artista amigo: «Um pintor perfeito não é impecável, tendo forçadamente de completar estes dois quadros (o dos bois e o do vitelo) dentro dos limites acanhados do atelier». Cá está a antífona-indulgência que nada resolve. No entanto, Silva Porto progride na sua crença bem-intencionada, e no mesmo laboratório fatalista de Anunciação. Ainda não decaiu, adorando os belos esfregaços, a maestria dos empastes, os que seduzem o pincel e a retina, vigiado pelos fantasmas do seu destino dramático: a crítica e o malogrado antecessor no mestrado. A primeira decreta sem discretear na sua opinião bifronte, elogiando hoje o que malsinou ontem, e vai de errar o artista transigente que abdica do seu talento sazoado. O segundo espectro é, na verdade, o autor do romântico Vitelo branco, mais vivo na sua impressionante anatomia, outro naturalismo maravilhoso e não superado. Mas neste mundo que ralha de tudo, ainda há espíritos simples no gosto, em descaso dos sicofantas do belo contraditório. Os bois malqueridos encontraram um apreciador tolerante na pessoa do doutor Luís Jardim, futuro conde de Valenças, que comprou o quadro pela bonita soma de 500$00 reis, triunfo positivo, em contrapartida da campanha criticista. Daqui em diante não se perdoam essas invejadas transacções do pintor realista, a sua conta bem dura no ajuste de contas. O preço dos Bois, diz Ortigão, «é precisamente o dobro da quantia por que foi adquirido o Touro de Paulo Potter no século passado». Salta aos olhos o cutiliquê do mau contabilista. Que importa ao negócio presente o bambúrrio comercial do século 67 anterior? Veja-se a cotação do holandês no momento aproximado em que se discute, e teremos, por exemplo: Uma pastagem de P. Potter, vendida em 1868 por 112.000 francos; mais de vinte contos em moeda portuguesa do tempo. Ao lado desta avaliação do clássico animalista, é modestíssimo o preçário do nosso pintor. «Silva Porto tornou-se concentrado e meditativo, sem ares de triunfador estouvado», elucida nesta ocasião o Monteiro. Tornou-se? Não foi outra coisa desde que nasceu, agora mais fleumático, desconfiado de todos e de si mesmo, à mercê dos triunfos flutuantes e dos homens que não perdoam a outrem uma camisa lavada. Aquele que há quatro anos, ao entrar em Lisboa o artista, lhe augurou «rápidas e seguras vendas», é hoje o primeiro a exigir «severas contas» ao pintor que vende razoàvelmente. Se o estímulo não recompensa o mérito, é mau sintoma; se o talento vive ao abrigo da protecção mecenática, temos o spiritus tenebrarum na carreira do artista, acrescentam os amigos fazendo cruzes ao «diabinho negro do Negócio na religião de Silva Porto, a caça ao pataco, a arte posta em curée ou em almoeda, o comerciozinho do adorável e ignóbil Moloch». Que diz o Chefe a essa literatura manda-chuva? Nada. O fundador do salonismo entre nós recordava, triste, o que presenciara em Paris, «o bom e o mau trezentas vezes maior», murmurava ele, arregalando o olho esquerdo castanho escuro; «e loucura grande é pretender endireitar o mundo. Fica sempre mais torto». — Em todo o caso, vamos dar recado ao Oliveira para abrandar os seus ofícios de marchand de tableaux. S EGUIU-SE o XIII da Promotora, Alma mater, 1884, o considerado Salão Nacional onde se fazem representar os artistas do Grupo, colaboração modesta, as energias reservadas para os certames do seu particularismo. Com dois óleos sòmente, Silva Porto fica na penumbra, esquecido ante os nímios azedumes e susceptibilidades de uma «sala de recusados», todos nesse ano mais individualistas, cada qual um génio incompreendido. Só ele, Chefe de escola, amigo que desconhece inimigos, se abstém das freimas entre o academismo e o arlivrismo, neutral como Erasmo no conflito da Igreja e da Reforma. Mas que diferença, entre o seu primeiro triunfo de há quatro anos, badalado por Ortigão nestas mesmas salas, e o desapercebimento de hoje, com duas bichezas modestas e sem destaque para o mercador de telas! O próprio Monteiro eufémico mal o distingue, registando as vacas que «prendem fracamente», e os bois, «obra prima, muito simples demais». Contudo, o professor interino ganhou uma batalha: o indefectível conde de Almedina Desenho deu posse ao proprietário 68 efectivo da cadeira de paisagem. Agora, até ao fim da vida, que não será longa, vai perseverar no animalismo, vai combater as arguições anunciaçónicas, os penosos avantesmas, sem tréguas na sua mística de expositor. No quarto Salão natalício, vinte e seis óleos de Silva Porto ressumbram verduras primaveris, a urze e a giesta por caminhos de aldeia, veigas idílicas, águas marulhantes, engenhos rústicos, o rosicler das manhãs sobre os povoados, quando não a luz a jorros ou o crepúsculo vespertino nos umbrosos Moinhos de Cascalheira, em Vizela (est. LI) oferecido a Abel Botelho. Uma senhora vestida de escuro num barco de passagem, característico de Avintes, No Areinho (Museu de Soares dos Reis, est. XLV) a esposa do artista, nova companheira destas jornadas, modelo precioso e prestável nas poses de figuras circunstanciais da paisagem, ou no exercício de retratos íntimos. Neste ano há um simpatético centro de parede, tela de dois metros, a mais avantajada nas dimensões e no lado que provoca: A Salmeja, expressão inusitada obrigando a perguntas. O pintor diz baixinho aos amigos: É o quadro grande que me pediram, e não apenas «estudos». — Na realidade, a pintura contém os requisitos indispensáveis ao verdadeiro quadro: o tema ou a tese, a alma ou a emoção, o equilíbrio construtivo ou a composição. De origem obscura é a voz do seu título: talvez do sagma, carrego das albardas, ou do árabe sóllema, armadilha de fueiros nos carros para resguardo da palha, xelmejar, ou sonda de psalmear, remember dos cânticos de louvor na usança monacal de David ou de algum rei Vamba. Mas nós estamos no Paço do Lumiar, onde o artista veraneia, (casa modesta por 18.000 réis anuais) e reproduz o que se vê na rolda das suas preferências, sem cuidar da simbólica. O alfacinha ignorava o vocábulo; salmeja, no termo de Lisboa significa o acto de acarretar cereais para a eira, costume sem idade, já velho no tempo dos Mouros, esses avós do actual saloio, como recorda mestre Aquilino. Verbo obsoleto, revivido por uma obra prima sem antecedentes na pintura portuguesa, anda de boca em boca ao morrer o ano de 1884, glosa vernácula salmeando o quadro que melhor resume o esteticismo silvaportiano. (est. LII). Felizmente bem conservada no Museu da capital, A Salmeja ainda resiste à observação exigente. Episódio simples, num campo raso depois de ceifado, sob os ardores do sol de Julho. Dois pobres seareiros, o mais idoso em cima do carro ajustando os molhos, enquanto o outro, ágil manata seco de carnes, ergue no forcado os feixes num ritmo de suaves cadências. A junta de bois castanhos é perfeita alegoria da paciência cornúpeta; humildes amigos do seu dono e nossos amigos, esperam com assombrosa naturalidade, ruminando de olhos langorosos, as cabeças guarnecidas de penduricalhos desbotados, o focinho lustroso, habituados ao calor e submissos à tortura do mosquedo, esperando sempre, até ao fim do mundo, sem protesto. À volta do motivo predominante da composição, estende-se o terreno onduloso pisado de estreitos regos, hastes secas das gramíneas tombadas, o restolho curto, o vermelho de algumas papoulas perdidas na imensa gama dos amarelos. A pasta gorda imprime relevo à palha ceifada, adoçando-se nos longes perspectivados, no arvoredo minguo de seiva e no sul plúmbeo ensombrado de farrapos de nuvens. É inegável a autonomia da arte portuguesa neste quadro étnico, associados os dois elementos nacionais, a terra e o homem que rega a terra 69 com o suor do seu rosto. A paisagem é mais do que fundo acessório; traduz a flagelação do calor tempestuoso em dias de canícula, a freténica sonatina da cigarra a hora da oftalmia cáustica sob um céu de chumbo ou, como diria o Fialho dos Ceifeiros, o azul pardo sem amenidades colorindo «uma paisagem de orgulhosa majestade nos efeitos de claro-escuro selvático». Tudo isso nos é transmitido por incidentes subtis da mão segura, fogosidades do pincel certeiro, aqui macio, além impetuoso, a impressão e a expressão justas, como na roda lamacenta do carro, disco inteiriço, plasmado de um jacto. E para alcançar esta síntese admirável, que longo caminho percorrido! À excelente visibilidade aliou-se o estudo da farta experiência, imaginação e precisão baseadas na sabedoria do desenho, a verdadeira linguagem do pintor e seu léxicon sentimental. Uma análise objectiva de A Salmeja poderá dissentir do grande espaço perdido à volta das figuras, na sua economia de pouco mais de um palmo. De facto, meia tela pertence à atmosfera celeste, diminuindo a escala dos personagens. É ainda um resto da aprendizagem com os últimos barbizonistas de que o pintor não ousa libertar-se. O bom Cabanel recomendara ao discípulo: «Não esqueça a figura, que na paisagem é muito necessária». Por sua vez, sentenciou Daubigny: «De duas uma: ou paisagista ou animalista». Deste vago conflito, Silva Porto tomou o essencial para o seu individualismo conciliador e, quando põe de lado os «estudos», os queridos «tableautins», faz a paisagem grande e à francesa, isto é, incluindo as figurações sem esquecer outro personagem de real importância no quadro: o infinito dos horizontes, a imensidade abençoando a messe, alimento dos homens desde os tempos adâmicos, área inútil, necessária ao silêncio musical desta arquitectura sentida e pensada no atelier, sem intuitos pedantescos. Silva Porto vitorioso reafirmou o título de Mestre paisagista original, emudecendo os manes de Anunciação e a impertinente e prematura «decadência». E o seu corajoso esforço mereceu o devido premio: O visconde de Franco adquiriu o quadro pelo preço do catálogo, 600$000 reis. Da Salmeja há exposta no quarto Salão uma pequena «filha amável». A Singelada, outra designação de ressaibo pastoril e arcádico, exemplo de probidade nas legendas, uma palavra só para a mesma junta de bois, um singel, um par na volta da faina, seguido do guardador vigilante. Monteiro Ramalho exulta: «Viva Pan! E deixem-me desabafar, berrar entre a multidão de sisudos; a paisagem é hoje o verdadeiro, o lógico fim da arte e explica-se tanto como a florescência heróica da estatuária grega». Na llustração, de Mariano Pina, outra redundância optimista: «Hoje, quem souber pegar num pincel, pode ter a certeza de que há-de viver da sua arte em Portugal, sem procurar nicho oficial.» Assim pensam muitos aspirantes esdrúxulos a famas e riquezas de Golconda; todos os pincéis se agitam ao sabor da emulação salonista, que aumenta, cresce, avança e afronta o Grupo soberano. Mal se clausura a exposição da retumbante Salmeja, irrompe nas salas do Comércio de Portugal um enxame varejeiro de petimetres e seus «discípulos», a sombra de M. Augusta Bordalo, expositores a capricho e sem catálogo, respirando «espertamente o ar ainda choco do entusiasmo dos nossos bons pintores». Ao tomar conhecimento da notícia, Monteiro tranca-ruas avança até lá, «sôfrego, esfandegado, beliscado, 70 espicaçado, atanazado por uma curiosidade invencível»; e foi às do cabo, atribuindo aos usurpadores «propósitos cavilosos», chamando-lhes nomes à boca grande: «interlopes» (entrelopo-de-contrabando), coisas, coisas na luta pela vida, trinta por uma linha no entrepósito das artes «revolucionadas» pelo meigo espírito silvaportiano. P ARA memória do Grupo, surge o painel onde os componentes imortalizam as suas efígies, Abril de 1885, por obra e graça do génio de Columbano. Os retratos são catorze, mais um do que na ceia rabínica, entrando na conta o Manuel Fidalgo, servidor e «benfeitor» dos apóstolos. Os olhos convergem para a imagem do Divino Mestre, quase ao centro da mesa, ombros estreitos, pêra negra, o tédio na máscara de quem abomina o mundo, ausente o prazer da vitória alcançada há poucas semanas. É um vencido, descontente na luta do pró e do contra, solidário entre colegas, solitário nas ideias, o supraciliar esquerdo erguido numa interrogação penosa. A respeito desta soberba galeria de retratos, nada mais teríamos de acrescentar ao sobejamente conhecido, se não surgisse uma dúvida ùltimamente ocorrida em letra de forma. Para quebrar o enguiço dos treze dissemos nós em 1941, o autor da pintura ecuménica introduzira outra cabeça à laia de figa, aceitando, inseguros, o esquema numerado e lacónico de Ribeiro Cristino: depois do número treze cabendo ao Manuel, criado de suíças inconfundíveis, o catorze pertence ao «Dias, outro criado» na suma leonina. Actualmente, com a tela exposta no Museu, em boa hora património do Estado, discutiu-se a identificação do insondável Dias que não havia fundamento para estar ali outro criado além do Manuel, estimadíssimo assistente do Grupo; que o suposto Dias não tem cara nem atributos de criado podendo ser muito bem um artista ou escritor do tempo; que o rosto-amuleto do catorze é uma hipótese supersticiosa para a banal intromissão de mais um criado. Esta é a lógica de probabilidades dedutivas, apenas durável até surgir a lógica de inferência ou induzimento provado. Ora, o esquema de Cristino apareceu por alturas de 1914, estando vivos muitos do Grupo, entre eles Columbano, e ninguém contestou os nomes apontados por quem fez parte da tertúlia, conhecida como os dedos da sua mão. Todavia, uma indiciação mais importante obriga-nos a manter irrevogável o laconismo do vero Cristino, a que juntamos a nossa «superstição» de 1941, isto é, a imagem adventícia, a segunda, a contar da direita alta, não é de nenhum artista, como todos desejaríamos, e continua sendo o Dias, certeza absoluta de uma figura-exorcismo na respeitável milícia dos escolhidos, e a ver vamos: O novo Café do Leão de Ouro inaugurado em sábado de Aleluia, abriu as portas à imprensa, nas vésperas, com cerveja à discrição. O Diário Ilustrado de 17 de Abril: «representa o Grupo do Leão, belos retratos dos onze artistas que compõem este grupo». Onze artistas contou o repórter, sem errar, acrescentando o Oliveira, arauto do simpósio, e o Manuel, e o Dias, temos os catorze da conta ritual. O Diário de Notícias, de 16, referindo-se aos trabalhos decorativos da nova «sede das conspirações artísticas», cita os nomes de dez retratados, esquecendo o de Cipriano Martins talvez por ser o único ausente da colaboração nas restantes paredes: «Columbano pintou-os a todos numa 71 tela originalíssima, com Alberto de Oliveira, e os criados que os servem». Sublinhámos a última frase, que admite, sem hesitações, mais de um criado. O painel erguia-se esquerda da entrada, depois transitando para o lado oposto, e na primitiva posição se observa a gravura do Ocidente, do mesmo Cristino, reproduzindo o interior do estabelecimento e dois criados a servirem a freguesia, o Manuel de barbaças laterais e outro de faces rapadas, o Dias. Volta o Notícias no dia 20 à pintura dos retratos: «Os decoradores daquela casa, incluindo o autor do quadro, o Alberto de Oliveira e os três criados da casa», sublinhámos. Mais uma vez, o pobre do Martins não é reconhecido, tomado por um terceiro criado, o que encosta a cabeça ao Dias, no painel que o pintor realiza «sem titubear, concebido e executado com a rapidez do relâmpago». Mas temos aqui, bem explícito, o Correio da Manhã, de 14, em síntese: «O quadro, verdadeira obra-prima de originalidade, com figuras cheias de vida; Silva Porto, o seu ar taciturno, Columbano no seu tipo misterioso … e outros, dos quais se destaca o Manuel, criado predilecto do grupo. Há espontaneidade, despreocupação, desinteresse, sem o cuidado de agradar». E, textualmente: Eram treze a princípio, mas o medo era fatídico e chamou-se, então, um outro criado, que terá o prazer de passar à posteridade junto com a tela de Columbano.» Outro criado, o catorze, a cabeça-esconjuro na história da celebrada pintura: Dias, outro criado, escreveu Cristino no seu depoimento vivido, para não pecar contra a falta de oportuna identificação escrita, e da qual não temos o direito de duvidar. Resta-nos saber por que razão se escolheu o Dias e não um intelectual para as honras exorcistas. Temos uma explicação baseada no que ouvimos pessoalmente a Columbano, durante o nosso curso, a propósito de modelos que pousam e dos que não sabem pousar: Por lhes escassear o tempo, os artistas do Grupo emprestaram apenas as cabeças, em poses de «relâmpago», e alguns nem sequer pousaram. Um «empregado do Leão», disponível durante as obras da casa, serviu de manequim permanente, no atelier, sem arredar pé de dia e de noite, um duplo, como se diz em linguagem de cinema, encarregado de substituir o verdadeiro actor em lances de secundária maçadoria. Esse «empregado», de frontal perscrutador, o catorze contra-malefícios, é o Dias, servidumbre exemplar que salvou o painel da crise de tempo; a gratidão de Columbano retratou-o «para a posteridade», próximo da sua pessoa, do esfíngico autor que vira as espaldas ao importante Manuel, gabarola dos bifes fiados, e acabou-se o mistério. No dia 20, o suplemento literário do mencionado Correio da Manhã insere um suculento artigo de Fialho, tão desconhecido que parece inédito: «Café Leão de Ouro — Museu Nacional de pintura aberto a toda a hora do dia e da noite, na Rua do Príncipe». Sobre o painel de Columbano, resumindo: «É o mais surpreendente trabalho que o vigoroso espanhol (lembra um dos grandes pintores espanhóis este Columbano Bordalo!) tem lançado ao cavalete… No quadro passou por certo o génio dos bêbados de Velasquez». Salienta as poses principais, entre elas a do auto-retratado, «exactamente como ele passeava este inverno pelas ruas de Lisboa, sobretudo cor de mel, chapéu alto sobre os olhos». E acerca de Silva Porto: «O Cristo daquela ceia chocarreira não sorri, e parece longe, entre a face gordalhuda de Ramalho e um jornal de 72 gravuras que lhe impinge o Alberto de Oliveira, imerso na doce melancolia poética que ninguém lhe arranca, e com o espírito flutuando em mundos cor de safira e luar! Columbano gastou vinte dias a pintar este quadro de catorze figuras em natural, maravilhoso, obra-prima que fere súbito o espectador e jamais se esquece». O crítico ainda não é o cáustico Fialho de Os gatos, mas no seu rasgado elogio tem preferências de bom entendedor; só reconhece oito dos artistas retratados, calando discretamente os de Pinto, Cristino e Martins, os mais modestos, aceitando o número sem reparos à indicação anterior do «simpático cronista», seu colega de redacção. Durante meio século, sob as abóbadas daquele museu de livre trânsito existiu, entre as pinturas oferecidas pelos artistas com «desinteresse nabábico», um óleo de Silva Porto, não dos mais favorecidos pelo lugar, nem pela luz dos bicos de gás, O Quinteiro, tomado em Carriche, árvores de fruto entre olivedos dramáticos, troncos de braços despidos e suplicantes. «Tudo ali parece transido e sofredor», diz o espírito vidente de Fialho na sua crónica, diagnóstico sagaz, o melhor formulado por um contemporâneo que compreendeu a natureza íntima do pintor: «Neste jardim das oliveiras da melancolia nostálgica, duas cabritas avançam as cabeças mefistofélicas... Aquela paisagem é o artista vegetalizado; paisagem contempladora, imóvel sob um céu grosso de nuvens, parece ter saudades da primavera que se foi, sem esperança na eflorescência da primavera que há-de vir». Denuncia-se a meta final do artista consagrado, doente, a face amarela como um círio de altar. I CONOGRAFADO o Grupo no retábulo columbanesco onde não falta um Dias, o Dies Irae arrenego de amadores filisteus, é quando os resolutos «interlopes» disparam golpes magicados pela moral do sapateiro de Braga. O Jornal do Comércio, de 22-IV-1885, informa: «Algumas damas da nossa mais distinta sociedade resolveram, antes de partir para as suas estações balneatórias, organizar um pequeno Salon», que admitia aguarelas, óleos, desenho, escultura e faiança, no salão nobre do Teatro de D. Maria II, a inaugurar pela rainha «a pedido das gentis artistas». Elas aí estão! Discute-se o despique desta concorrência macaqueante dos artistomaníacos, ausente o Mestre da mesa cenacular com a desculpa dos afazeres, dos achaques e da distância, outra vez morador no Bairro Alto, Rua Nova do Loureiro. Evita o colóquio atritivo e, se intervém, é para deitar água na fervura do caso feio do amador, repelido à outrance pelos seus camaradas. E o amador não desiste, impacto, obtusângulo: «Grupo da loja do Povo — Exposição de Pintura organizada por Adolfo Greno, Augusto Gameiro e Barradas», Eles aí estão, dirigidos por uma trindade pategónica, cuja primeira pessoa invoca o título de «antigo pensionista do Estado». O dito Grupo apresentaria a sua merca durante dois domingos no Rossio, estabelecimento do Grandela que, além dos quadros, «venderá nesses dias gravatas e balões», Diário de Notícias-17-V-1885). Um aviso de 31 de Maio, afixado à porta da loja: «Tendo-se vendido no primeiro domingo mais quadros do que se esperava, não se realiza hoje a exposição que se anunciou. Esgotada a fazenda, taipais corridos até nova remessa. Será isto a anarquia, prenúncio do Ramalho, ou a influenza, prevista por Fialho? Seja o que for, urge tomar uma resolução contra 73 o desaforo de confeccionar quadros, em vez de os pintar. Finalmente, abateu a juba do Leão inconcusso, permitindo a entrada a dezassete expositores no Inverno de 1885, incluindo um escultor, no catálogo do Oliveira, em vez de «Quadros modernos» a epígrafe mais genérica: «Arte moderna». Os famintos de glória, «arrogante quadrilha» na saborosa frase Desenho do Monteiro, invadem a torre de marfim erguida pelos nove, as senhoras na contradança para lustre dos vernissages à francesa, praxe que faltava ao salonismo da moda. Muitos parabéns recíprocos entre colegas e amigas da expositora Berta Ortigão, na cerimónia inaugural em presença de D. Luís, D. Maria Pia, D. Fernando, protectores atenciosos do animado movimento artístico. O Mestre compareceu, infalível; pintar sempre e expor é a cátarsis da sua dolência orgânica, levando à parede trinta e dois óleos da safra anual, «multidão de pequenas paisagens de Vizela, Golegã, Cete, Leça, Barreiro, Camarate; atmosferas soalhentas ou avemarias melancólicas, um cruzeiro no adro da velha igreja, o perfil branco do campanário de Vila Franca de Xira (est. LXXII), penedias musgosas, nesgas de mar longínquo em praias de pescadores. O som e os aromas andam no espaço por sortilégio da cor metamórfica; ouve-se o badalar dos sinos, sente-se o cheiro do rosmaninho, do mosto, das maresias. A sensibilidade do artista viajor percorre os ásperos montados, as luminosas azinhagas, vielas e valados; aqui, uma varanda a sangrar de vermelho; além, um trecho de planície ribatejana ou o vulto de choupos e amieiros esguios com animais passando na relva. Para a descasca, imagem de lavradeira moça sobraçando canas de milho, atitude serena de vestal inconsútil; Costume espanhol, expressiva cabeça mantilhada de rendas claras; O álbum, recolhido intimismo de duas senhoras, a esposa do artista e uma amiga folheando páginas ilustradas (mais conhecido por Conversando). Na pintura de interior, Silva Porto vence a timidez, garboso na presença de modelos familiares, os de casa e os de particular aproximação, o campónio humilde, a mansa bestiagem que não recusa a pose, amigos sem exigências para o caso de o retrato ficar menos «parecido». O seu quadro de fundo no quinto Salão, Campinos, perspectiva de largas espaçosidades, é a resposta do pintor aos que lhe arguiram a «queda para os bois e vacas». Também pinta cavalos, três solípedes em poses díspares, implantação repousante de figuras, a boiada ao longe, os vastos ares ocupando na tela cinquenta por cento da superfície. Sem o entusiasmo do ano anterior, a opinião foi benévola ao quadro, onde apenas se nota a ausência da personagem importante de A Salmeja, o carme da emoção vivida, o valor da cor. Aqueles homens garridos, parados, montando almatrixas de peles, jaqueta a tiracolo, lembram comparsas aguardando o sinal de entrar em cena. D. Luís adquiriu os 74 Campinos (atualmente no palácio ducal de Vila Viçosa) pelo preço de 600$00 reis, as leis da produção e do rendimento em perfeita crematonomia artística. Os jornais ocupam-se da chegada do sertanejo Silva Porto e da sua curta visita à metrópole, aos 68 anos, tendo 46 de África. Um amigo inquiriu do possível parentesco entre as duas pessoas ouvindo-se do pintor esta resposta secante: «Nem parentes nem parecidos, a não ser pelo gosto de sermos bichos do mato». Modéstia excessiva, acrescentou Caetano Alberto, 1886, «ocultando-nos sobriamente os seus dados biográficos». O tímido encontra a felicidade na sua introspecção construtiva, pensamento escutando as vozes do mundo; modéstia catalítica, a necessária para uma ação de presença. Do mesmo Alberto e da mesma data (Ocidente) há esta curiosa observação: «A sua vitória, tão gloriosamente alcançada, é prova do seu valor, que não teve que lutar contra a concorrência, mas contra uma coisa mais assustadora e invencível, a indiferença». A vitória do Chefe de escola foi rápida lutando contra uma pequena indiferença; mas veio o momento, igualmente rápido, da maior luta, o da responsabilidade do vitorioso perante a «concorrência» messiânica, agora sim, disputando-lhe a glória alcançada, exigindo do triunfador novos triunfos e heroicidades sempre mais e cada vez perdoando menos. Em Junho do citado ano, na Avenida que rompera o Passeio Público, inaugurou-se um depósito de faianças da fábrica das Caldas, dirigida por Rafael Bordalo. Oito artistas do Grupo, incluindo o Mestre, expõem trabalhos de pintura, aos quais se juntam alguns de Anunciação, «homenagem devida» ao malogrado pintor animalista. Um desses óleos, Ovelhas e carneiros, merece atenções especiais; uma novidade antiga que ressuscita: obra-prima da arte nacional, que o Museu ( já instalado nas Janelas Verdes) deve adquirir». Na homenagem reparadora havia um propósito sub-reptício: — Temos pintores de bois e cavalos, mas ainda está para vir um que nos dê carneiros retratados como estes — Acusaram Rafael de ter pregado uma partida ao Grupo desprevenido, chamando à vida aquele de quem «dissidiram» para ter direito a viver. Silva Porto compreende as reações à sua fama, cedo alcançada: Eles têm razão, desabafou com a esposa, contemplativo e contemporizador; faltam os lanígeros na minha pintura, e o meu próximo grande quadro será de ovelhas». A influência do paisagista fundador está patente no sexto Salão do Natal, 1886, com dezoito expositores, quase um grémio. Monteiro dá por paus e por pedras, «indizíveis circunstâncias» calando-lhe a fúria: «os batalhantes salões nacionais animaram o amador a crescer, a instalar-se e tomar posse». A produção do Mestre, reduzida a catorze pinturas, favorece as condescendências; Margens do Nabão, tábua de prodigiosa simplicidade e frescura tonal, oferecida a Columbano; Efeito de luar, no Tejo, recordação de um género cultivado em França pelos neo-românticos, em que o nosso pintor não insistiu, nocturnos desnaturais, pelo regular, concluídos à luz do dia. Um quadro de metro e meio de largo, A volta do Mercado por uma azinhaga dos arredores lisboetas, o Sol a pino, de rachar pedras, «sol de enxofre», como diria Van Gogh, é mais uma vitória de Silva Porto, a de maior plenitude na maneira de sentir a verdade em termos de boa pintura. 75 Uma família de gente campesina em burros chouteiros, ajoujados, avança de frente pela estrada fulva. Na moça do rancho, mais destacada, reconhecemos a enternecida expressão de um rosto familiar do artista. Os modelos observados ao ar livre respiram uma iniludível autenticidade, controlada depois no atelier, em cujas paredes colgavam os arreios dos animais e outros adereços da comparsaria paisagística. A ida para o negócio foi de madrugada, pela fresca, mas a luz da volta é coisa séria, brasa viva que deslumbra, cega e sufoca. O pintor que desterrou a sensualidade da sua obra, extasia-se, voluptuário, na interpretação dessa tempestade luminosa; não pinta o Sol, mas as suas ardências alucinantes; não pinta o calor, mas o tormento do meio dia, a hora do repouso à sombra, para muitos, menos para esta saloiada ambulante, suando entre as piteiras da berma fustigada pelo mosquedo, E o azul? Nunca Silva Porto nos dera, nem tornará a repetir, um céu de etéreas e fantásticas graduações, ondas tremulinas do espaço, azul profundo no zénite, oscilante e morno na descida para o horizonte de turquesa pálido. Não há violetas nas sombras, em tons justapostos para uma irisação lumínica; bastam a cor local e um jogo de valores no âmbito do claro-escuro perspectivado. Depois de A Salmeja, esta segunda obra-prima, felizmente bem conservada na pureza das suas tintas (Museu de Lisboa), completa a lição do génio paisagístico na arte de um pintor que só pinta o que vê. Mas não haja ilusões! Esse realismo está calculado e meditado como desejaria um Leonardo, zeloso da Divina Proportione nas leis de bem compor. Observemos a estampa LXIV para esta sumária análise. Temos um friso; o agrupamento horizontal numa tela horizontal é o partido de composição mais difícil, aqui solucionado por um motivo centrípeto e predominante no arabesco das formas, no dinamismo das linhas, um auxílio para os olhos do observador e isolarem da árida e ingrata horizontalidade. Os quadrúpedes movimentam-se, pachorrentos, e as figuras principais escondem as secundárias, segundo a velha regra que determina, na combinação das imagens, adivinhar o invisível pelo visível. Cinco labruscos realçam a composição, número ímpar, o amado dos deuses, unidade indivisa e hostil monotonia, essa inimiga maior da beleza perfeita. Dois homens e três mulheres ocupam o centro do quadro (não o centro matemático, cadeia paralisante), os sexos intercalados deste modo, admitindo o sinal Δ para a mulher, e o + para o homem: Δ + Δ + Δ . A alternância fica bem numa estilização geométrica, que não é o caso onde se representa um aspecto fortuito da vida objetiva e quotidiana, sem lugar para a simetria estática, outro inimigo impossível no quadro. Os pormenores variados das primeiras imagens, uma mais relevada, o pitoresco de outras que se intrometem e espreitam em planos secundários, concorrem para destruir a banalidade simétrica. Frisante, nesta admirável conjuntura, e o cão na vanguarda dos jericos, distraído na rota, um verbiage a mais na simpática e bem falante pintura. No entanto, observando melhor, o rafeiro é o contrapeso necessário à estabilidade da máquina composicional, estabilidade comprometida pelo burro da esquerda, que avançou demasiado, na pressa de chegar a casa. E o cão sábio intervém: risca uma linha, corta os sulcos do caminho e as diagonais das sombras nele projectadas, desviando-se para a direita, em sentido oposto ao da burricada, contrariando-a, dissonância 76 preciosa ao discurso musical das formas. Agitação, contraste, vida, o duelo perpétuo na idiossincrasia do movimento. Nesta prova, Silva Porto articula o vocabulário resumido de um desenho certo, uma cor justa, e seria despropósito exigir-lhe explicações profundas sobre as qualidades e defeitos de um trabalho: «encolhe os ombros, soltando imperceptível monossílabo». (Ribeiro Artur) Porém, a lição do professor do exemplo é indubitável na eloquente pintura de A volta. Se tentarmos alterar a trama compositiva, isolando qualquer figura, a integridade das outras ficaria prejudicada por uma desarmonia de partes litigantes, tal o fenómeno do cálculo aritmético, em que a unidade absoluta só admite como divisor a própria unidade. Daqui estabelecemos a seguinte lei: — Se, de uma composição dividida, resultam divisões perfeitas, essa composição é imperfeita na sua unidade, — Outras virtudes do quadro: a linha do horizonte não corta a pintura em duas partes iguais, severo preconceito contra a monotonia; as duas ribanceiras alinhadas, horizontalizadas (outra simetria), combatem-se por vários sinais, arbustos dissemelhantes em qualquer dos lados da estrada, a luz e a cor favorecendo o seu discrime: o burro e os seirões da esquerda, em tons claros, realçam pela sombra das terras; em contraposição, o asno da extrema direita é negro, recortado pela claridade do fundo. As personagens caminham todas de frente, grave monismo, aliás sem prejuízo, devido às vestimentas, ao físico, às idades e aos escorços divergentes, sendo de notar, para abono assimétrico, aquela saloia da extrema direita, a única de cabeça voltada, mulher de Lot na ancestral curiosidade feminina, sob o Céu do fogo sodomita. E o espírito não descansa nesta batalha dos contrários, para que a beleza resulte intangível, inefável e vitoriosa. No animado jogo de oposições diatemáticas, salientam-se na Volta os dois enormes guarda-sóis dos feirantes, um azul e outro de vermelho incandescente. Dois objetos. A paridade é indesejável à boa composição, mas quando houver de ser, avisam os antigos tratadistas que sejam ímpares os números das duas metades. É o caso: um e um igual a um. Ainda não satisfeito, o artista destes mistérios intuitivos e especulativos ataca a monotonia servindo-se de um recurso: o olivedo cinerário do último plano aproxima-se, compacto, e entra na escala dos dois citados volumes, outro para-sol à cabeça da terceira mulher, a distraída lotiana, três formas de acentuado e proporcional contorno, Numero Deus ímpare gaudet, o equilíbrio, a variedade na unidade da harmonia perfeita. Um azul e um vermelho, dissemos, duas cores não complementares, sem discrepância, tal o exemplo de Veronese e Rubens, desconhecedores da verdade científica para triunfar no colorido pela verdade artística. Aquele vermelho do pano agreste sofre exaltações alaranjadas por influência azulina das gamas atmosféricas, e não perde a qualidade vermelha na aproximação dos arbustos verdes. No entanto, reconhecendo o embaraço da umbela azul, em xeque perante os azuis celestes, o pintor inteligente degradou-a por uma repintadela escura, sabido que o negro e o branco acompanham docilmente a escala cromática (Essa repintura final gretou por reacção da pasta subjacente). Eis o quadro mais belo na pintura de ar livre do último século. A volta do mercado entusiasmou o público das artes pela simplicidade do seu flagrante naturalismo. Silva Porto «faz o que lá está e pinta como vê», 77 virtude insuficiente para as longas dores de uma obra submetida aos olhos da razão e do sentimento, a ciência de bem realizar. O professor «possui vasta instrução e conhecimentos que dão grande autoridade à sua opinião no que respeita à arte». (Ribeiro Artur). Era senhor de uma didáctica incorruptível e premente: sensibilidade e bom senso, o coração e a lei para uma opinião, dificilmente verbalizada pelos contemporâneos do artista, entre os quais um, recentemente, aludiu aos «métodos pedagógicos do revolucionário. Ao contrário de quase todos os outros professores, distanciados do nosso convívio, falava aos alunos, e no descanso do modelo vinha conversar e fumar um cigarro com os mais velhos». Mas essas falas, essa opinião, essa pedagogia, àparte o cigarro? «Pedia desculpa quando dissentia, corrigindo qualquer trabalho escolar, dizendo: «Parece-me assim... mas se não vê, não faça». E por aqui se ficou o sóbrio informador. Corrigindo um estudo académico, tendo o modelo à vista, o professor do exemplo ensina o aluno a proporcionar e compreender a exactidão das formas, independentemente das maneiras de ver. Se nessa altura da inexperiência do candidato lhe dissermos: Se não se vê, não faça; é o mesmo que abandoná-lo à própria cegueira, em vez de lhe abrir os olhos, guiando-o no campo da sua visão. Uma vez, indo desenhar Silva Porto e o conde de Ficalho, botânico eminente, fora do atelier, o segundo tomou para lição um arbusto, que traduziu com laivos de fitólita pesquisa. Apreciando o estudo do discípulo, o pintor comentou: «Está muito bonito, mas não é o que lá está». Ignora-se a resposta do conde. Dizem que sorriu, conspícuo, e talvez argumentasse: — Se eu vejo assim, é porque isto também lá está. — De certeza, revelando aos outros o seu modo de ver, o professor não bulia com o temperamento dos que viam diferente, limitado nas suas contemplações, igual ao Constable, quando dizia: «O artista deve admirar a natureza com pensamentos modestos». Mas nessa timidez ou modéstia, vulgarmente chamada douta ignorância, ou antes, ignorância metódica levando por ínvios caminhos à sabedoria sistemática, havia conceitos, processos, regras de ofício e de experiência feita. Quem viu pintar Silva Porto? Muitos, sem dúvida, alguns encantados por fumar na companhia do Mestre e exteriorizando os ensinamentos recebidos na prática silenciada. O professor Simões de Almeida (tio), quando da sua aposentação, deu-nos um valioso esclarecimento: O paisagista, em frente da sua tábua, principiava por manchar, indistintamente, ora um pedaço de atmosfera, ora um trecho de terreno, os pincéis divagando no toque, um incidente aqui, um pormenor acolá, a espátula que intervém e raspa tudo. Pequeno intervalo para queimar um cigarro ou petiscar do farnel, bicar da saborosa pinga, e a tarefa recomeça, vagarosa e resignada. Um leigo que surpreendesse o artista nestes preparos tomá-lo-ia por um aficionado a brincar com as tintas. Subitamente, as pinceladas imprecisas e difusas conjugam-se por uma espécie de milagre técnico. O quadro está pronto, sopro gnóstico de uma impressão segura e repentista de quinze minutos decisivos; mas esse repentismo, dizia Corot ao discípulo Damoye, é devido à «insistência permanente no mesmo estudo, única maneira de aprender; o resultado de profundas observações é que nos dá a pochade bem entendida». Simões acompanhou um dia o artista em digressão desenfastiada pelos subúrbios lisboetas. Escolhido o sítio, o escultor e amador 78 de pintura abancou primeiro, enquanto o colega, alheado, desapareceu da sua vista. Passada meia hora, Simões descobre Silva Porto a vinte passos de distância, concentrado numa tela que lhe pareceu extraordinária à sua inexperiência de paisagista aprendiz: o pintor associara a dois motivos dispersos da natureza, no mesmo quadro, tendo-se deslocado de um lugar para outro, consoante o tratamento exigido por cada um dos pontos. Os dois elementos paisagísticos reduziam-se a um, sem atraiçoar as duas verdades: a local ou real, e a invenção artística. «Senti-me envergonhado, confessava o escultor, quando vi o meu trabalho proficiente, certíssimo, mas seco e banal, submetido ao que lá estava, tendo ele, no mesmo espaço de tempo, realizado uma autêntica criação. Era assim o naturalismo do professor de paisagem, que a pecha comodista formulava, «pintando tal qual se vê». O sistema conheceu-o junto dos franceses do après nature, e não era novo, salvo o estilo pessoal. As abelhas de hoje fabricam o mel como as abelhas do tempo de Homero. Na Royal Academy, os mestres contemporâneos de Constable advertiam nas suas lições que a pior forma de estudar a natureza era a «servil imitação de um determinado lugar», princípio fundamental reconhecido por todos os especialistas, seja o Deperthes, na sua Théorie du paysage, 1818: «Ao pintor de países compete a eleição dos motivos, fixando-os num conjunto agradável». Este agradável, ou o belo ideal, não se ensina nem se descreve. Pertence ao substrato do génio ou do talento de cada um, fora das habilidades oficinais, e deste modo se justificam a reserva, a prudência nas falas de Silva Porto, sem propósitos secretos na sua lição subjectiva, sentida, pensada e demonstrada com o mínimo alarde de conhecimentos. Obras são amores; A volta do mercado é o arquétipo de uma vontade emocional, comunicativa e lúcida na sua eternização, como ponderou o bom Ribeiro Artur: «Eram as suas telas que mostravam aos discípulos feições conhecidas e amadas e, vendo-as, eles compreendiam as palavras de ensino do mestre», quando aptos a entender e sentir a sensação. Je ne suis qu’un tas de cendre, respondeu Diaz aos paisagistas que lhe pediam conselhos: «Procurem nas minhas pinturas; talvez achem por aí algumas pepitas de ouro». Retomando o fio biográfico: Como vai o espírito da classe? O guia na marcha do Grupo, o destemido Monteiro, ao expressar o seu azedume contra as abusões do amador, aconselha medidas drásticas para deter o inimigo: «bicho daninho que enreda, fura e estraga, falso entendedor perigoso e altaneiro». Já é tarde. No principio, só com nove, Ortigão acusou-os de avarentos no ensino e no auxílio devidos aos que começam. Hoje, o Grupo é falanstério, um grupão gozando a bondade enternecida de Silva Porto: — Será justo repelir o amor que nos dedica o amador? — Monteiro não se conforma, nem se cala: «O amador é um cogumelo de má casta, assoberbante e venenoso, uma peste, um destroço, um tropeço, um lacrau, herva ruim!» Um mata-mouros na presença do seu Messias, filho do homem que detesta a guerra entre os homens, um rei que não é deste mundo, prestes a despedir-se das almas desavindas! Em Junho de 1887, a Promotora realiza a XIV e última exposição, à qual Silva Porto envia três óleos: Manhã em Vizela, Na Ceifa, e um Campino no seu cavalo baio, trotando de frente num terreno estremenho de pouca vegetação. 79 O público repara na insistência do bestiário, não levando a bem esta pintura de brochadas rápidas, incisivas, sem retoques e pouco acabamento, a fuga velazquenha nos quadrúpedes palacianos, a mesma hesitação entre dois impulsos ate se fixar uma atitude cinética. (Museu de Lisboa-est. LXXII). No ajuste das pernas cavalares, o animalista ouviu o diálogo de dois contornos dinâmicos sem decidir-se por algum: o solípede vibra, cachapim, na tremulina impressão visual do pintor, e ninguém perdoa o «não acabado, do preguiçoso e pusilânime», tomando por descuido esse improviso técnico do Mestre sabedor, «feito à última hora, para honrar a exposição e os discípulos». (Ocidente). E mais ainda: «O modelo ressente-se de não ser um campino autêntico». Os incorruptíveis Eacos insinuam falsas interpretações com os modelos pagos à hora no pátio da Academia. Efectivamente, para este equitador, Silva Porto serviu-se do Guilherme, o porteiro, do nosso conhecimento em sua vida avançada. O homem, antigo varredor de feiras, nunca cortou as suíças, a pedido do paisagista, e figurou na Volta do Mercado, montando com perfeição e realista competência. O desnorteamento crítico apressa o fim da Promotora e do Grupo, ambos na agonia da saturação. Em nenhum deles o Mestre glorioso consegue audiência absoluta, não obstante a sua fé salonista. No mesmo ano envia cinco paisagens a exposição do Ateneu do Porto, merecendo de Manuel Rodrigues este inesperado reparo: «tendência do artista para o negro, tons fúnebres ensombrando atmosferas e vegetações. Na Capela de Cete falta a tonalidade da natureza minhota. Desenho Rápida decomposição das tintas na Manhã em Vizela, que dir-se-ia ter a existência de um século, de tal modo enegreceu». E pede desculpa ao «distintíssimo artista» por ter usado da sua habitual sinceridade. O pintor dos vibrantes cromatismos assiste, no apogeu da carreira, à lenda que empresta às suas pinturas a decomposição de obra morta, lenda negra atravancando a legenda áurea do grande naturalista. Houve, de facto, algumas decepções, a mais destacada, já o notamos, na Charneca de Belas, não por culpa do negro, mas devido a outros agentes, entre eles o branco de chumbo, a céruse, depois substituída pelo óxido de zinco. É manifesto o exagero dessa «ruina», natural em obras de outros pintores da mesma época e das gerações seguintes, para a qual contribuem agentes físicos e químicos alheios à técnica, raios solares, humidades, gases mefíticos, etc. Uma causa involuntária surgiu ao encontro das más conservações dos colecionadores da pintura de Silva Porto: o esgotamento físico do artista, contribuindo para as «alterações» psicotécnicas, a retina doente, a que voltaremos a referir-nos, 80 se houver espaço. Na segunda quinzena de Dezembro e, como sempre, na sede do Comércio de Portugal, abriu o sétimo Salão; mais expositores, mais escultura, arquitetura, desenho, aguarela, e «muita variedade» que pasmou os ortodoxos da ideia grupal, troçando do Alberto de Oliveira por ter impresso no catálogo, pela primeira vez, «Grupo do Leão». Com os Gomes, Gredos, Bastos, Vilaça e companhia, onde foi parar o Grupo!? Chocado pela «invasão tartárica», Monteiro Ramalho nega-se a escrever a sua crítica. Falecera em Tomar, professor da Escola Jacome Ratton, um dos primeiros Leões, o modesto Cipriano Martins, ausente do catálogo sem qualquer referência saudosa. Todos, mais ou menos dedicados ao ensino oficial e particular, deram a mão aos discípulos, galgando as paredes sem critério de selecção. A dignidade artística da Promotora, dizia-se, apesar das birras e preconceitos de escol, está vingada. — E se nós «desencorajássemos as artes», como pede o Degas? — Concordo, agrega o Monteiro acusa-cristos: este ano abstenho-me de rezar missa nesta paróquia. Com dezoito quadros, entre eles a Entrada para a eira, oferecido a Abel Botelho, a Azenha, das margens do Ave (Museu de Lisboa) e O amor na aldeia (Museu do Porto), tela com mais de um metro de largo, rodeada de pequenas manchas, Silva Porto ocupa diminuto espaço na crítica, as atenções distribuídas por muitos galfarros expositores. E não foram amigáveis as poucas palavras dedicadas ao «idílio convencional», duas figuras em costume do guarda-roupa folclórico (est. LXXV). Neste par de amorosos presumidos falta a sutileza da touche destra conseguida nos tipos regionais de Itália, um hiato nos recônditos misteriosos do carisma emocional, e, na verdade, anúncio traiçoeiro da decadência, assoprado há cinco anos, parece confirmar-se. O cansaço do Mestre não será fortuito, mas teimosamente orgânico: e se uns perdoam e desculpam, outros há, tremendamente ímparciais, exigindo «severas contas» ao homem que não errou as suas na conquista da glória, bem cedo alcançada. Silva Gaio (Um ano de crónica) assaca ao pintor de tão profunda influência «uma iniludível responsabilidade, a que nunca poderá furtar-se o revolucionário fecundo que foge a essa responsabilidade em O amor na aldeia, um quadro denotando a falta, não só de qualidades que nunca revelou, mas de algumas já reveladas». A dolorosa catilinária podia recambiar-se à procedência. Responsabilidade, revolução, força idiólatra de super-homem não se entendiam com o artista, HomemAnjo na consciencialização da santa modéstia de um Rilke. O casuísta de tricas críticas aventava: «pintura feita a correr para não faltar no seu lugar de honra, artista negligente, imperfeito, incompleto, o interesseiro a dominar o idealista, e a prova está em que não tem sido apreciado... não vê o drama nos seus assuntos». É triste! Não vê o drama o pintor dos dramas íntimos, sem palavras. Quem acusa não é o Gaio, não. É o suicídio psicológico de Anunciação, pecado mortal às costas do realismo paisagesco; são os ressentimentos simplécticos dos passadistas e presencialistas, vingando o mártir do romantismo na pessoa viva de outro mártir. E sempre com a mesma espada bicúspide: a crítica do sim e do não. E tão novo, com 37 anos! Símbolo do não ressentido, Silva Porto aceita o drama na chã filosofia de cautelosas reações, murmurando ao ouvido de um parente: «Dizem que já 81 não sou revolucionário. Ainda bem. O que eu queria, agora, era ser pintor. Talvez consiga.... se Nossa Senhora da Silva me ajudar». Talvez conseguisse renovar-se, abdicando do salonismo que propaga a peste do criticismo. Mas o jogador ama e vive para a sua paixão. No ano seguinte, lá vai o paisagista ao Ateneu portuense, com quatro pinturas, destacando-se a Ribeira do Caruncho, em Queluz, um boi vigiado pelo campónio. O cronista Rodrigues assinala desta vez «esplendor de dotes», virando o bico ao prego: «O gris acha-se banido, e ainda bem». Se por grisados se trata de cinzentos azulinos, eles abundam na grande paleta anacreóntica de suavidades líricas embora não seja fácil determinar a natureza das tintas pela crosta que ficou das últimas misturas. Há vermelhos, azuis, terras, ocres, amarelos, e o negro de menos. À simples vista desarmada, não aparecem os verdes puros da bisnaga, que resultariam da composição ocasional na paleta, preceito corotiano; o azul da Prússia, se existe, entra no concerto dos ultramarinos e dos cobaltos. A falta dos verdes de tubo regista-se por umas notas manuscritas do artista, junto das respectivas amostras, aguareladas, numa pasta de família, destacando as seguintes: azul da Prússia com amarelo índio: (na mistura, o tom é um verde pardo). O mesmo azul com vermelho índio: (violeta abatido). Com goma guta: (verde discreto). Com terra de Siena; (verde indeciso). Com carmim (lilas «smorzado»). Com sépia (verde cinza da oliveira). A insistência do mesmo azul era de aceitar na aguarela, de qualidade garantida pelos ingleses, como a experiência nos tem demonstrado. Na paleta do óleo, Silva Porto não abusou dele. Na grande Exposição Industrial de Lisboa, 1888, as duas obras capitais, A Salmeja e A volta do Mercado, deslumbram pela beleza incomparável da sua luminosidade, ainda hoje de letífica vibração cromática, e reafirmam quanto a pintura de ar livre ficava devendo ao Mestre inovador. Triunfara em duras batalhas. Porém, o mundo voltou a face; os antigos discípulos já são mestres com «discípulos», terríveis competições multiplicando os interesses, os gostos, as rivalidades na evolução dos costumes, de pouco servindo a defesa do leão Monteiro: «Críticos desalinhados, que já consideram decadente o robusto mestre paisagista.» Infelizmente, é certo. O vencedor está vencido, a saúde longe de robusta, apenado por cuidados domésticos (um filho de cinco anos doente, três já falecidos, de tenros dias), falta de tempo e «sossego para as coisas artísticas.» Um dos enfados imprevistos é a medalha de ouro adjudicada na Exposição Industrial. Ninguém acusou o pintor de se ter premiado a si próprio, mas, tendo feito parte do júri, deu lugar a este melindre exteriorizado numa caricatura dos Pontos nos i i «Toma lá dá cá — Silva Porto, membro do júri, dá a medalha de oiro a Nunes Júnior, expositor; Nunes Júnior, membro do júri, dá a medalha de oiro a Silva Porto, expositor». — Até o Bordalo, tão amigo... desabafou em Carnide, onde convalescia de um ataque ictérico. Ao receber a segunda medalha no Salon, Corot apercebeu-se do compromisso: «É preciso trabalhar e pintura melhor, para não dizerem que rouba a medalha». Reanimado, o nosso Mestre comparece no oitavo Salão, o derradeiro do Grupo, constituído por dezassete expositores. Cresceu a escultura, retira-se a aguarela, aumenta o pastel; o prestígio de Josefa Greno afasta três concorrentes, Maria Augusta, Helena Gomes e Berta Ortigão. Desertaram de 82 propósito ou por acaso, diz Monteiro, «certos artistas dispensáveis e outros de grande marca». Silva Porto mostra uma coleção limitada de nove «obrinhas primorosas e preciosas» do seu jeito visual: Volta para a arribana, vaquinha leiteira conduzida por jeitosa rapariga; outra Volta do Mercado, estudo para a tela do mesmo título, duas moçoilas, dois burros albardados, seirões pendentes e as agrestes piteiras no ar abafado; motivos da Estrada de Santa Elói, outros, não menos sugestivos, Caminho da Seara e Ponte velha. A mesma embriaguez da luz, a mesma ternura pelas cenas de gente simplória, com alguma fadiga na temática, no espírito da factura invariável e na desacomodação cromática, de que é exemplo a Volta para a arribana (colecção Patudos), um trio de cores, o negro da vaca, o amarelo do lenço na cabeça da mulher e o vermelho do peito sem gradações, berrando ao desafio; os tintas não alteraram. Mais uma vez o pintor faltou a promessa dos carneiros e ovelhas. Preferível seria um repouso, difícil de aceitar em temperamentos que só descansam no trabalho. Em Novembro de 1889, vésperas do acostumado Salão, surgem notícias inopinas: «Resolveu-se desta vez transferir a exibição para o mês de Março». (Ocidente) Metido em copas, o Oliveira mal se justifica, sorumbático: — Dezembro é inconveniente para ver quadros: os dias pequenos, humidades, o frio... O tempo gasta os homens e os ideais. Outrora, o Natal e Ano Bom aguardavam-se com entusiasmo exposicional; uma energia calorosa, galvanizando as vontades durante oito anos, paralisou e gelou em Dezembro de 1889, não sendo estranhas a essa frieza, possivelmente, as desinteligências de Rafael Bordalo com Melício, proprietário director do Comércio de Portugal. Segue-se o ultimatum inglês. Oliveira anda pelos comícios da propaganda republicana, outros «quadros modernos» do seu panorama revolucionário: fugido à rusga policial, não comparece no Leão, outra gente na mesa simposíaca. Terminaram as exposições do Grupo; mas Silva Porto, salonista de antes quebrar, manda ao Ateneu portuense, 1890, cinco óleos, dos quais Condução de cabrestos tem por figura principal o Campino de 1887, com mais cavalos, bois, umas Saloias «admiráveis de rendu» ( João Chagas), as infalíveis piteiras, o mesmo horizonte célico do pintor introverso, longe de outros problemas sociais e artísticos, perto de casa e da sua dor hipocondríaca. No depauperamento prematuro a preguiça do estômago está na razão inversa do trabalho sedentário, nervos vivos num corpo desfalecido por indigestões e obstipações. A vaga dos suicídios não lhe é indiferente: César Machado, Camilo, Soares dos Reis, o fim trágico do sertanejo Silva Porto, o pioneiro, agouro do vanguardista conservador que abriu novos caminhos à pintura nacional. Ao sucumbir, o Grupo deixa uma ideia viva, a ideia oportuna dos artistas se associarem em termos legais. Depois das primeiras conversas na residência de Abel Botelho, ao Caldas, e da reunião na Academia a que presidiu, repare-se bem, o Inspector «inimigo» conde de Almedina, na presença de uns quarenta interessados, aprovaram-se os estatutos para o Grémio Artístico, legítimo sucessor do antigo Grupo. Entre os membros dos primeiros corpos gerentes eleitos destacavam-se: presidente da Assembleia Geral, Ramalho Ortigão, que se retirou pouco depois, sem aquecer o lugar; presidente da Direcção, Silva Porto: segundo secretário, Alberto de Oliveira: presidente do Conselho Fiscal, conde de Almedina, a personificação da verdadeira fidalguia. 83 Sans rancune, ele abre as portas aos seus velhos detractores; consente as exposições nas venerandas salas de São Francisco, oferece 100$00 réis para as primeiras despesas, facilidades e gentilezas que lhe conferem, imediatamente, a categoria de «1.º sócio benemérito». Também a família real envia um conto de réis para auxílio da instalação, sendo o monarca nomeado presidente honorário, a rainha sócia honorária e, além de compradores, expositores nos certames a efectuar. Perdoados os pecados mútuos, congraçados os ânimos aliquantas e maniáticos, era chegada a paz prometida pelo Divino Mestre. Mas, no reino dos eleitos está escrito haver um anjo rebelde arvorando o non servian discordante. O «secretário» Alberto de Oliveira recusa a colaboração e o novo cargo, boémio inconvertido a ordens estatutárias, mais tarde o açoute dos couceiristas na Galiza. Em Agosto de 1890, Silva Porto dirige uma carta a Marques Guimarães, pintor encarregado das exposições na capital do Norte (publicada por Joaquim Lopes), informando, depois de acusar o recibo de uma conta liquidada, atento ao deve e haver: «Quanto à exposição nada está resolvido… mas penso que se poderá fazer; é cada um ir preparando-se, e à última hora se resolverá... Não tenho visto o Alberto de Oliveira. Estou no Paço do Lumiar há dois meses, e raras vezes vou a Lisboa». Nenhuma alusão ao defunto Grupo e ao nascente Grémio. O que interessa ao salonista obstinado é a exposição que deverá fazer-se; todos a postos e amanhã veremos. Os serviços do Oliveira invisível estão dispensados. De futuro, os catálogos aumentam de formato, de páginas, de gravuras, sem a responsabilidade supérflua de um editor. E a Promotora? A antiga Sociedade hiberna, esquecida pelos sócios, todos partícipes do Grémio, um paradoxo escapado ao Nordau. Os homens são os mesmos e, na Promotora, respeitam o credo de um Salon em prazo dilatado; no Grémio, concordam e concorrem à exposição anual, reflexo do panorama sociopolítico: monarquistas de manhã e republicanos à tarde, classicistas na Promotora e realistas no Grémio, menu a dois carrilhos, inaceitável, vamos lá, à coerência inconformista do Oliveira arredio. E diga-se de passagem: quando o Grémio cair em circunstâncias idênticas às do falecido Grupo, a velha Promotora será chamada para, com o seu auxílio, se erguerem os alicerces de uma nova associação, a actual S.N.B.A., que também herdou e sofre daquela raiz oitocentista, elevada a potência dos muitos grupos independentes, expositores ubíquos, apresentando a obra artística ora num, ora noutro grupo, partidários de elástico partidarismo no desagregado colectivo, outra história que não cabe nos limites da que estamos tratando. Nos três anos que lhe restam para viver, o «Fundador número um» dará bons conselhos aos agremiados «em poucas palavras, timidamente, em ar de lembrança, mas conhecendo muito bem as coisas e os homens». (D. José Pessanha). Todos umas jóias, tratados separadamente; reunidos para deliberar e legislar, o presidente Silva Porto não encontra pessoas mais estranhas e complicadas debaixo da rosa-do-sol. Aos frequentes abalos sísmicos da classe cujo epicentro reside em susceptibilidades delicadíssimas, o Fundador inostensivo opõe a sua voz conciliatória: Haverá júris para seleccionar e classificar, uma virtude que faltava nestas obrigações para com o público. A exposição iniciática de 1891, nas salas de luz zenital da Academia, foi 84 acontecimento assinalado por uma abertura realenga. Cinquenta e cinco concorrentes e mais de duzentas obras eram o índice respeitável do quanto evolucionara o salonismo português. Consagrado por duas medalhas de prata na Promotora, pela de ouro na Industrial e pelo prestígio de primeiro presidente, o Mestre honra o seu lugar no Grémio com quinze pinturas, das quais a paisagem minhota de águas remansosas, Moinho do Gregório, título eufónico de tonadilha grata, é um dos quadros que ficaram na dupla memória visual e auricular. O pintor faz parte da meia centena rateada no elogio: «Avaro do seu melhor ouro (Zacarias d’Aça) dá-nos os trocos miúdos do seu belo talento». À porta da venda, na estrada de Torres, agita os críticastros do fasto e do nefasto. Tudo bem pintado, o campónio de varapau, as albardas, a árvore tristonha, o céu de ardósia, mas «a carroça é tão limpinha e tão nova que perde o interesse». Perfeitas as cabeçadas, as guiseiras e outros arreios sugestivos, menos os machos, sem o relevo que lhes devia dar a presença do natural, devido ao autor se poupar no tempo e na atenção devidos.» A estrada de Torres, a venda, a carreta de toldo azul, as cavalgaduras maquinaram-se no pátio de São Francisco, mediante um rápido esboço dos carrejões, tomado no verdadeiro local. Culpa-se o inculpável processo técnico, quando outro não existe na arte de pintar, mas a tarde estática na manutenção da chama recriadora é o verdadeiro despeso a lamentar. Um pálido optimismo manifesta Ramalho neste primeiro Salão: «Aprende-se finalmente a desenhar — finalmente parece-me que há uma arte e uma escola», sem aprovar nem desaprovar o seu colega nos corpos gerentes. E torna o Zacarias retórico: «Tem gozado todas as honras e proveitos, porém o público, que lhe tem sido fiel, sentiu-se desta vez um pouco abandonado pelo objecto do seu culto, da sua adoração». O artista goza, sofrendo como Job, ignorando o paciente a que santo encomendar-se neste mundo de perpétuo descontentamento. Ainda há fidelidade e direitura na adoração de dois ou três amigos, entre tantos cafajestes, e o pintor vende os quadros mais discutidos aos que não provam das migas especulativas, guiando-se por alguma teoria kantiana, a verdade na natureza e a verdade na sua estética, uma razão pura no primeiro caso, uma razão prática no segundo. A rainha adquiriu À porta da venda, por 450$000; e as pitonisas da moral artística repontam contra essas famas do «proveito honroso». Sem tir-te nem guar-te «o público exige telas capitais», obras fenómenos, outra coisa alem das meras paisagenadas. Quem é esse público, e que se entende por obral capital? Fialho intervém no debate (Vida Irónica), sem aziúme, arguto e penetrante. Concorda na pouca expressão da «recovagem» e destaca as delicadezas do Caminho de Coimbrões, os casebres, as veigas e frondes, a Cancela de Serreleis, idílios de enternecido populismo, a loiraça de saia vermelha no Guardando o gado, roca a cinta, enquanto as reses petiscam na bouça. Nenhum gesto declamatório e marcial, observa o crítico, nessa temática tranquila, a «ausência de assunto» numa paisagem límpida, modesta de enfeites e de imaginação, falando baixo e acertado como o seu autor, «um espírito e um coração de infinita suavidade». Mas a pintura à maneira taxativa dos «reprodutores mazorros» de céus, águas, campos e ruas, esquecidos do idealismo, do sofrimento e do êxtase, fatiga os frequentadores de salões. Pedem-se mais verdades estimáveis, as da natureza, e em especial 85 as do artista. Porém, é um erro aguardar do pintor elegíaco as transcendências de um epopeico miguelangelismo. Apareceu já feito com a natural virtude, e a «fisionomia imutável da sua primeira exposição, sempre uniforme, sempre ele mesmo», alvo de admiradores entusiastas a que se juntaram outros, sem tom nem som, «exagero incondicional do elogio e do servilismo dos pasticheurs». Provou que sabia pintar, exercendo o mister como sabia, e essa glória defende-a o astro de brilho sem vanglória, sem intenção de magoar os asteróides na sombra, como Fialho reconheceu, melhor do que nenhum da mesa sinédrica do Leão, ouvindo o pintor «num ou noutro breve dito, o filete de humor risonho que aviva de escarlate» a reserva habitual do misólogo. Na pasta da S. N. B. A. há um exemplar da fotografia de Benarus, vulgarizada em calendários do tempo: o artista enrola o cigarro, de pé, abstracto e letífero, rosto macerado, a pupila baça fixando o horizonte longínquo, o jaquetão escuro em desalinho, homem acabado aos quarenta anos. Um intervalo nos certames públicos, um interregno para repouso do organismo e do espírito estariam indicados ao génio da emoção doente. Mas quem se atreve a dar tais conselhos ao reinol do salonismo por ele estatuído e oficializado? Idealizar os temas, como desejam os aborrecidos de «realismos» seria impor outros hábitos e outra vida a um temperamento intransigente à novidade. Chegara ao ponto nevrálgico do malogrado Anunciação: «Não sei nada, e já é tarde para aprender». O pintor naturalista experimentou o nu sem convicção, envergonhado como Cézanne em presença dos modelos. Fez retratos de parentes e amigos, o mais importante, da mãe de Luís Roxo, num saboroso fortunismo italianizante. Todavia, em qualquer dos géneros, o paisagista estava ultrapassado por António Ramalho, Columbano, Malhoa, Salgado e seus discípulos. Nenhum dos grandes do antigo Grupo, menos Silva Porto, se confinou ao quadro de cavalete, e todos, mais o Vaz, se entregaram a trabalhos decorativos em palácios nacionais, edifícios públicos e particulares. Uma única tentativa nesse aspecto de actividades sucedeu com as duas invenções, Costumes portugueses e, Costumes espanhóis, um par de telas ao alto, pertença de Policarpo Anjos. Desanimado com o resultado, o artista de inibições psicológicas ante a obra de encomenda, não insistiu; estava escrita a sua limitação aos proventos ocasionais do quadrinho de expor, com os modelos humildes e pacíficos da vida rural, junto de quem perdeu o medo (Manuel Penteado). Medo? Sim, agora dão esse nome àquele sentimento traduzido em obras de arte singular, ousadia celebrada pelas trombetas do sucesso em 1880, ao regressar de França, O professorado oficial e particular, obrigações prementes, as importunas dores abdominais e exacerbantes debilitam o homem impávido que, pela segunda vez, abandona o Bairro Alto em troca da Rua Pascoal de Melo, longe do foco miasmático da sua antiga «revolução». Por esses dias, um acontecimento vincou-lhe a fácies: chegara a Lisboa, entre nénias de pesar, o corpo do infeliz sertanejo, «mártir de alma amargurada», na urna que vai seguir para o norte. Pelas artérias do percurso, um mar de coroas ondulantes, segue o modesto ramo de flores naturais com estas palavras: «A Silva Porto, homenagem de respeito e veneração do Grémio Artístico». Que estranho e presago ladário! Mais franzino, cozido às paredes, o professor não 86 descansa, das aulas para o atelier, daqui para casa, de casa para as lições solicitadas por amadores, segundo as suas notas: «ordenado da Escola, 47.470 — renda de casa Travessa da Estrela) 75.000, o semestre — lições, 18.000 a dúzia». Regressara novamente ao Bairro Alto, para o n.º 10 do rés-do-chão de outro prédio, na mesma rua onde antes morara, hoje de Luísa Todi. Casas de aluguel só de uma banda, correndo do lado sul o muro de uma construção fechada e tumular que separa a Travessa da vizinha Rua dos Mouros; a sombra de Anunciação estará presente nos últimos dias do seu herdeiro paisagista. Nascera o filho Carlos Alberto, aumentam os cuidados, outros encargos de generosidade: — Ora viva Desenho o nosso Chefe! — saudação de um colega prazenteiro e obsequioso. — Deixe-se disso — responde o Mestre. — Sou um pobre chefe de família, lá isso sou! Mais uma exposição no Ateneu do Porto, 1892; quinze óleos do professor de cá, mas as honras da festa cabem ao professor do Norte, Marques de Oliveira, com o Esperando os barcos. O nosso animalista tem no atelier o pequeno e cativante òleozinho de um pequeno rebanho conduzido por um pequeno pastor (colecção dos Patudos), tenros anhos numa paisagem lastimosa, envolvida em sombras crepusculares, quadro admirável que o artista pensa desenvolver nas terras do Lumiar, às voltas com os carneiros do «compadre Mequinho»; mas custa a decidir-se. Acaba de perder sua mãe, falecida em Março, o anjo bom dos êxitos artisticos, na mocidade escolar. N O segundo Salão do Grémio, 1892, há doze pinturas do Mestre, «vagos instantâneos», e a inesperada Cabeça de camponesa (adquirida por D. Carlos — palácio de Vila Viçosa), casto sorriso num adorável tipo de raça, a Gioconda portuguesa dos apreciadores sinceros. Fialho gabou sem rodeios essa flor silvestre, «a gulodice rara da exposição», e a beleza-graça noutros motivos do privilegiado mundo microcósmico do pintor intimista: Lugar do prado, a Rapariga a dobar. Da paleta alta, em vez dos esperados cordeiros, avulta a Barca de passagem, longal de dois metros, obra de atelier, evidentemente, baseada num estudo colhido em Serreleis, na última vilegiatura minhota, em companhia amiga de Ribeiro Artur. Seria esta a «obra capital»? A pintura abarrota de predicados e possui de inédito umas águas límpidas de surpreendentes cintilações nas miragens. Há figuras para justificar a composição fluvial, um carro de bois, arvoredo esfumado, céu, uma paisagem ridente aos olhos do grande público estranho a maravalhas hiperestáticas — Eu de pintura não percebo, mas gosto disto. — A Barca, ainda mal batida pelas ondas 87 da opinião, achou dono na pessoa do doutor Rebelo da Silva, por 700$000, pagos em prestações. Vendeu-se o quadro por bom preço? Não tardam os fiscais percebedores, os publicanos cobrando a taxa dos defeitos na pintura, defeitos que são do artista, e possivelmente da língua critiqueira, exercida nas salas da exposição, com reflexo nas gazetas. O painel, dizem, é a celebre Salmeja reeditada com variantes: lá estão o carro de palha, a junta de bois, as duas figuras humanas, sendo aqui a principal uma moçoila fincada na longa vara, sob a atmosfera opaca e álgida. A diferença não absolve o pintor que se imita a si mesmo, como Daubigny e Troyon no final da carreira. Talvez o defeito seja outro, consistindo nas duas técnicas adoptadas pelo pintor, duas respostas na mesma carta, dois processos, o áspero e o doce na junção desaconselhada pela experiência. A timoneira da jangada, vestida pelo regionalismo de Viana, infinitas delicadezas no desenho, toques miniaturais na modelação do rosto, não suporta o alto-relevo da palha de milho à sua volta, estrambote de amarelos gordos e espessos da antiga Salmeja, uma concessão à crítica de exigências românticas, ou a tentativa de expressar o amor de duas causas pelo casamento de dois ideais. Porém, a gnose do naturalismo espontâneo no quadro de 1884 cedeu aqui ao estudo cauteloso de quem receia enganar-se. «A barqueira sabe ligeiramente a Academia», observou Fialho, atento a essa Madona fruste, pintura oficinal, híbrida, de que não sofrem as obras anteriores, concebidas na mesma fonte de Castália, onde nesta hora correm as últimas gotas do sentimento. A boa crítica não distingue o amigo do adversário, e por isso, ou contra isso, assemelha-se a hidra policéfala. O António Maria da 2.ª série, filho bastardo do anterior não perdoa-vidas, diz do Grémio: «Não há faúlha de originalidade naquelas salas». O grande pintor português do nosso tempo, acrescenta Fialho, «se já nasceu, com certeza não está na exposição», e aponta na Barca os belos efeitos do burgau marginal, menos os reflexos da água e «os bois de cartão» a boiar numa paisagem enorme de céu e nuvens, «Ainda não é o quadro que esperamos do reformador da pintura nacional»... Apesar de tão inópia auspiciação, o Mestre recebe a Medalha de Primeira Classe, e o discípulo Malhoa recusa a Segunda insígnia atribuída ao seu Marquês de Pombal, «o maior painel feito até hoje em Portugal» ( João Sincero). Retirado na sua aldeia, Monteiro Ramalho confessou a um jornalista, 1934, recordando a filáucia, os amofinamentos, a mexerufada daquelas pugnas artísticas: Silva Porto foi de todos o mais combatido, e o próprio Malhoa se mostrou hostil, arrependendo-se pouco depois. Foi violentíssima a reacção contra o paisagista, mas eu defendi-o sempre». O delito do primeiro medalhado era o mesmo de 1888, inevitável, como tudo o que sucede por imposição dos fados: ele participava do júri, e em boa ética não devia receber prémios. A poucos meses do fim, sem um dracma de orgulho, esmorecidos os optimismos da «eliseia mocidade» expressão do suspeito Fialho, ao Mestre de vida periclitante não lhe interessavam as calorias de um galardão a mais ou a menos. Se o pintor estava no júri, é porque isso interessava ao Grémio que o elegeu; e quem premiou, ao abrigo regulamentar, foi o parecer de três artistas do júri, Simões de Almeida, Condeixa e Alberto Nunes, na ausência do colega, que 88 poderia enjeitar a mercê honorifica se não houvesse no gesto outra espécie de orgulho condenável. Numa distribuição de prémios, em que os contemplados recebiam salvas de palmas no momento da chamada, Silva Porto assistia ao acto solene, distante, mergulhado num sonho letárgico. Chegada a sua vez aplaudiu, maquinalmente, julgando tratar-se de outro artista; mas, ao reparar nos olhares mofareiros da assistência, caindo sobre a sua pessoa compreendeu o engano, sem resistir à perturbação: «Nunca eu tivesse lá ido, confessou em casa, agora o Rafael vai caricaturar-me: um pintor a dar palmas aos seus penduricalhos». Ao renhir incoercível dos oficiais do ofício, com um Pedro que nega o Mestre e depois se arrepende, a críticofobia exigindo «o quadro capital» com a intimação de quem pede a bolsa ou a vida, o salonista responde mais definhado, amarelo de febres pictóricas: «Talvez para o ano, se não me faltarem documentos». Por documentos entendia os estudos do natural, à semelhança do Eça no desabafo com Teófilo: — Faltam-me teses, que o processo já eu tenho como ninguém. O panfletário de Os Gatos analisa superiormente o caso do pintor, nesse ano da discutida Barca: A fórmula imutável de pintar só o que se vê, «deu de si todo o discipulado de Silva Porto, uma marca de fábrica por dezenas de oleografias neutras», ausente a fantasia criadora para salvar o «temperamento zolaísta», mau temperamento na maioria das vezes, copiador, repetidor de naturezas moribundas, apatia deliquescente incapaz de rasgar caminho, hostil à imaginação, à «sugestão emotiva, que a gente surpreende em telas antigas, mesmo más». O censor apostrofava a «pintura de palmo para ganhar a vida», a hipertrofia exibitória dos Salões, individual e colectiva, desconhecida dos antigos padre-mestres. Do flagelo que alastrou, continuado pelos abstractistas de hoje em substituição dos paisagistas reformados, Silva Porto não teve culpa, embora na realidade, contribuísse para ele sem altiveza assoberbante, quando o clima era favorável num terreno adubado pelo esteticismo contemporâneo. E o nosso pândita já não pode mudar o mórbido estado de coisas. Ser-lhe-ia preciso uma nova vida, que foge a olhos vistos, preferindo entregar-se à morte que liberta. «Tem o ar de um Cristo que tivesse pedido feriado na ceia dos apóstolos», essa figura de contemplativo endovélico no painel do Leão, e naquela pintura de Carriche, Horto das oliveiras da paixão silvaportiana, o mal francês do salonismo enraciné iludindo os feriados, o repouso, as dietas contra as «cólicas». Em Janeiro de 1893 previne o pai dos quadros despachados em «grande velocidade» para a exposição do Ateneu (o seu último envio), a guia endereçada ao Marques de Oliveira pelo homem de boas contas: «está tudo pago». Dessa mostra efectuada em Março faziam parte umas Margens do Ave, nos tons dilúculos da madrugada, a Volta do trabalho, uma junta de gado minhoto e o seu pegureiro, Na eira e Cavalos bebendo, do Ribatejo. Algumas vagas apreciações de cortesia: — Parece-me que já vimos isto — Mas é do bom — Mas não é novo — O bom é sempre novo — Amanha discutiremos isso. Esgotados os assuntos na paleta baixa do artista, parecia ter-se esgotado a aceitação e benevolência dos apreciadores. É ocasião de rectificar o equivoco de um Silva Porto lendário pintor por 89 atacado, atribuindo-lhe «trezentas ou quatrocentas telas, que deixou» (D. José Pessanha e M. Penteado), número medro, cada qual aumentando um ponto no cômputo, «quatrocentos ou quinhentos quadros» (Fialho) cifras astronómicas para tão curtos anos de profissão, excluído do rol os exercícios do estudante de quatro cursos, incontáveis esboços, rabiscos. apontamentos de álbum conservados em pastas de valor documental. Pròpriamente de pinturas, o elastério de trezentas a quinhentas é demasiado. Na grande exposição póstuma de 1894, bem catalogada por D. José Pessanha, não se conseguiu reunir duzentos óleos. Recentemente, ao comemorar o centenário do nascimento do artista, efectuaram-se três exposições: uma no Museu de Lisboa outra no Porto e a terceira na S. N. B. A. perfazendo o total de 206 quadros. Alguns desta ultima recolha, eram duvidosos, e outros nitidamente fraudulentos encontrámos em colecções particulares, que nos permitem considerar Silva Porto o pintor português mais falsificado. A base para um inventario quase perfeito encontra-se nos catálogos da Promotora, Grupo do Leão e Grémio Artístico, só esses, não incluindo os de outros certames, onde o artista reexibia a obra sobrante. Ao reexpor, quer em Lisboa, quer no Porto, por vezes alteravam-se os títulos, sendo espinhoso identificar algumas pinturas, devido àquela circunstância e ao ficto de haver dimensões idênticas, sem qualquer data nos trabalhos. (Conseguimos datar os principais, que não oferecem dúvidas). Também aconteceu ao autor repintar quadros antigos, modificando-os, tal o das Lavadeiras da Ajuda, exposto a primeira vez em 1880 e reformado anos depois. Compare-se a respectiva gravura do Ocidente, daquele ano, com a deste álbum (est. XXXV) até hoje inédita: uma figura de costas desapareceu na variante final, submersa por nova tinta, facilmente reconhecida a luz rasante. O exemplo não se repetiria frequentemente, nem por ele devemos generalizar. Certo é que a soma das obras genuínas de Silva Porto, arquivadas nos catálogos dos três organismos citados, não passa de 239, o suficiente para um pintor de cavalete ocupar os treze anos da sua curta vida de expositor e professor. Adicionemos os estudos, alguns por assinar, abandonados no atelier (leilão em Dezembro de 1893, na Academia, para efeito de herança, que rendeu cerca de 1.000$000, tendo o Grémio adquirido alguns óleos e uma pasta de recordações) arredondando para 270, e ficamos a meio caminho dos fabulosos «quinhentos quadros». Obras a mais, e também alguma anomalia de somenos, imprevista, inconscientemente trágica, a paleta do avesso esculpida no monumento em Benfica. Não consta que o pintor sofresse de aquíria, ou empunhasse as tintas na destra, pintando com a sinistra. É a paleta símbolo da via negationis, um dos caminhos teo-filosóficos que levam à ideia de Deus. V OLTANDO à história que nos ocupa. O terceiro Salão 1893, setenta e sete expositores e cerca de trezentas obras, escandaliza Fialho. Que faz o júri contra esta subversão? «O Grémio deixa aos curiosos o furor de se exibir nestes congressos de arte, onde ninguém progride e quase, quase todos retrogradam». Apenas nove óleos de Silva Porto: umas Ceifeiras, do Lumiar, Os moinhos da Confraria, nas Caldas das Taipas, e a tela maior, dois metros de largo, Conduzindo o rebanho, figuras de grandeza natural: um pastor, carneiros, ovelhas, uma mulher atrás do burro alforjado. 90 Até que enfim!, exclama-se no primeiro momento. Cá estão eles, os velocinos de Anunciação! Agrupamento concepcional de perspectiva impecável; espaços bem doseados, os vazios reduzidos ao mínimo, acroamática desobriga, penitenciando-se o pintor dos defeitos de algumas composições anteriores. Será assim? Parece haver dúvidas. O críticador difícil carrega o sobrolho e pergunta onde pára a inspiração dos artistas de há sete anos: muita pinturinha breve, «a ronha sob o para-sol de nomes feitos, sem a educação do atelier». Os borregos da tela máxima de Silva Porto acusam a engrenagem de peças anteriores: a mesma azinhaga de silvedos, piteiras e oliveiras, as noas do sol de Agosto em cenários símiles de antigas impressões rurícolas. Assim não vale! Ao paisagista e animalista de tão assinaladas aptidões «é justo exigir de quando em quando um quadro de mestre, uma obra de fôlego que o artista, com uma cobardia singular, evita de ano para ano, preferindo viver do prestígio que se fez na esperança desiludida sempre do público, e adiando para as Calendas a apoteose suprema a que tem jus». É desanimador! Os mansos cordeiros tão ciosamente esperados não conseguem aplacar os sedentos de novidades, e todos à uma, em melopeia ensaiada, a pedir contas ao pintor, que as tem limpas e certas, e... cáspite! O Conduzindo o rebanho achou comprador na pessoa culta de Aires de Campos, futuro conde de Ameal, por 700$000, outra compensação prática do regenerador da pintura portuguesa, homo economicus de fama e fazenda, aura e ouro em felizes concúbitos. Havia garantias prestadas aos pintores, «garantias sonegadas aos melhores dos seus modernos escritores» lembra o ressentido Fialho na crónica dedicada à exposição. E como tal, o mundo de confusas polivalências faz amargar o êxito do bom pintor, solipsista das boas e más horas, entregue à musa da ternura, da bondade e da tolerância, virtudes do platonismo fechado a expansões indeiscentes. Em conversa ele está ouvindo, Harpócrates taciturno com um dedo sobre os lábios. «Apenas no receio de parecer monótono, se lhe obtém esta palavra ou aquela, numa voz de colegial que não soube a lição. O certo porém é que ninguém melhor a conhece (a lição) que ele. Esse espírito concentrado irisa-se todo de sagacidades singulares; e contemplativo, prefere os cantos da natureza onde tudo seja quieto, pouco passeado, de uma cor sossegada e de uma quase casta melancolia». Os primeiros devotos de Silva Porto amaram a pureza da sua obra, sem artifícios de espécie alguma. (Fialho, em 1885). Depois entendeu-se que o naturalismo do pintor era verdadeiro, mas banal; perfeita, mas pueril; honesta, mas adormecida de idealismo. Se trabalha no atelier, esquece as realidades do ar livre; se realiza no campo, falta o estudo embalado pelo sonho da oficina. E a tortura da alheia intolerância não larga o pintor exigindo o grande, o apoteótico, a capital pintura nunca vista, o quadro que ninguém verá. No seu último ano, o artista suspeito de ignávia excede-se no arranco supremo, outros dois metros figurativos, uma composição fechada, sem espaços dispersos na boa política do paisagismo, e temos Conduzindo o rebanho, magnificência do verismo pictórico, a derradeira lição do Mestre infatigável. «Mas o assunto sacrifica-se às dimensões da tela. Se estivesse mais alguns dias no atelier, o artista atenderia melhor o acabamento, principalmente nas ovelhas do 1.º plano». (Ocidente). Eles é que sabem, raciocinando cerca das operações 91 do espirito, quase sempre irracionais e misteriosas. Figuras pequenas em telas vastas é mau; o contrário também não é bom; o acabamento perde a graça e a improvisação é um recurso habilidoso. Tudo aborrece na feira dos mitos contraditórios, tudo cansa, a beleza e o feio, a arte e a destarte, a alegria e o desprazer. Todos esperavam dele uma obra que fosse a síntese das raras qualidades do seu enorme talento, um trabalho de fôlego, que ficasse como um monumento da sua glória». Palavras de Ribeiro Artur, as mesmas de Fialho, todos apostados em repreender o professor que sabia a lição, em exigir do talento mais talento, do trabalho mais trabalho, da glória maior glória. O artista pensaria de igual modo? «Pensava, mas as dificuldades…», a família, a saúde precária, as obrigações docentes esmagam os devaneios de arte. Nas críticas, mais literárias do que artísticas, não se deu uma explicação técnica para justificar o desagrado do quadro de fôlego frustrado. A explicação compete-nos, que para alguma coisa serve o tirocínio na religião do atelier, com os seus dogmas e as suas penas. Naquela pintura do ano letal encontra-se a chave do segredo que o artista levou para a sepultura. Entretanto, observemos Conduzindo o rebanho, grande obra «insuficiente» para monumento da glória do autor. O pensamento nasceu na prancheta do arquitecto, rigorosamente, podendo servir de exemplo em qualquer tratado de composição, e corresponde à unidade perfeita dos números primos, o belo por relações matemáticas, como desejaria Lucas Paccioli, regras invisíveis aos profanos. mesmo acroáticas para os iniciados em pintura. O partido do triângulo, ou pirâmide davidiana no agrupamento figurativo, encarece o sentido esquemático das diagonais: ao espaço do céu à esquerda corresponde o terreno livre à direita baixa; os olivedos no ângulo superior direito, em exacto diapasão com os silvedos à esquerda inferior. O peso da pirâmide gravita aos pés dos animais, a sua base, mas a ordenação axial dos volumes deslocou-se do centro da tela, no propósito de evitar a rígida simetria. A presença do pastor à esquerda indica o desvio do eixo perpendicular, obtendo-se o equilíbrio pelo princípio da balança romana: a massa dominante, ou seja o condutor do rebanho, descentralizado, recebe o contrapeso dos carneiros à direita. Ao contrário dos óleos anteriores, cuja superfície vaga rodeia as figuras, diminuindo-lhes a escala e a importância, aqui, para a vista do observador, há somente duas portas de escape, as indispensáveis, de maneira a não dispersar a atenção, nem fatigá-la: são os dois ângulos antes referidos, a atmosfera da esquerda e, na sua diagonal, o piso liberto em baixo. Na articulação deambulatória, os animais não apresentam duas posições idênticas; movimento diferençado nas patas e no jogo de outras linhas cruzadas, visíveis e ocultas, ascendentes e descendentes, ângulos de todas as grandezas destruindo as paralelas e o estatismo nesta combinação, onde não se abandona ao acaso o mínimo pormenor; a vara de comando aos ombros do maioral, uns centímetros a mais ou a menos na sua inclinação, seria um desastre no arabesco da estrutura. Ainda de notar: o rosto do moço pastor dirige o olhar para a sua esquerda, ao qual responde o da mulher, pela direita, fechando o centro do quadro, que, afinal, não está vazio, forma alada do sentimento comum a duas almas. A calça e um pé do homem, entre a velosa tropa, revelam a sua estatura, firme no piso, deliberação inteligente para não amputar o primeiro personagem 92 da cena, que nos daria o aspecto desagradável dum tronco humano sobre o lombo dos animais. Digna de reparo é a majestade imperturbável do carneiro idoso, dirigindo a caminhada, perfilado, sisudo, autoritário dentro e fora do bardo; e o rappel desse perfil, no ângulo oposto da base da pirâmide, antítese harmoniosa daquela ovelhinha mordendo a erva da valeta, o contraposto no adágio preciosíssimo da marcha para o aprisco. E em todo o conjunto impera a regra áurea sobre o equilíbrio das formas, a diversidade unitemática dos valores plásticos, sonoros, ecos, estribilhos, o andante cantável da mais bela pastoral na arte portuguesa. Melhor do que em nenhuma obra antecedente, Silva Porto demonstra aqui não estar aprisionado ao conceito de «pintar o que lá está», sabendo distinguir a decruagem antropomórfica da realidade e o vero espiritualismo de outras realidades. Sabia a lição e deu-nos o conhecimento da sua derradeira lição. Mas... Quantos mas, semeados na vida heróica do insigne pintor! A sensibilidade de Fialho, instrumento afinado e delicadíssimo entre todos os críticos de arte do seu tempo, acusa uma reacção que não podemos desprezar: «Conduzindo o rebanho passa por ser uma das coisas capitais de Silva Porto». Sem dúvida que passa, «Toda a figuração da cena é escrupulosamente composta do modelo» Oh, se é! «Tudo exacto». Exactíssimo. Agora, «se fotografarmos a tela, não apuramos se a máquina apontou a um quadro, ou a uma cena natural... O artista abdicou do eu sonhante, para nessa obra depor apenas como uma testemunha ímparcial». É o maior louvor ao quadro, elogio e aprovação aceite pelo grande público. Todavia, quando a multidão aplaude, segundo Preault, a élite retira-se. São os quintessenciados no belo das artes que protestam, aborrecidos da tirânica «natureza empalhada»; não querem o pincel «enfeudado à realidade», e reagem contra «a letra morta no sacerdócio do ideal». A contra-revolução atinge o antigo revolucionário, um pioneiro caído na desgraça de conservador. Não é justo, continua Fialho, incomplacente, «deixá-lo dormir nas fáceis gloríolas do quadrinho. Era tempo de nos dar, em três ou quatro telas típicas, as grandes comoções da nossa vida rural, as divinas núpcias e segredos íntimos da terra». Sintomática, esta severidade do grande prosador enfermiço, um irmão (sete anos mais novo) do pintor acusado de produzir uma literatura fragmentada, defeito que não perdoa ao artista do quadro de cavalete. Se a questão se limitava a quatro telas, estaria resolvida, seleccionando A Salmeja, A volta do Mercado, A Barca e Conduzindo o rebanho, o mais típico realizado até então no género paisagístico. Ao ver um quadro, dizia Stevens, pintor belga, «é preciso que não haja a suspeita de o artista se ter auxiliado da fotografia». Esse escrúpulo de há sessenta anos desapareceu. Em ocasiões difíceis o internacional Henrique Medina manda o fotógrafo à frente dos pincéis, antes de retratar os seus modelos, encantados por não sofrerem o martírio da pose. O resultado é que importa, e por ele responderemos, sejam quais forem o meio e o caminho trilhados para atingir um fim superior. No tempo de Silva Porto, a insinuação da fotografia era corrente na crítica de arte, sem causar ao paisagista dores de cabeça, sabendo que, contra o talento e a educação estética, não há recursos artificiosos que valham. Ainda se encontram, entre velhos papéis, algumas provas que o Benarus fornecia ao pintor, a mais frisante dizendo respeito a 93 uma delida cena de campinos. Pelo que objectivou a máquina, com as suas aberrações, labilidades, anquiloses, cacofonias plásticas, e o que está expresso em pintura, seleccionado e animado pela arte, existe o abismo que separa o dia da noite. O génio da beleza emotiva e construtiva é impossível ao olho mecânico, humano ou artificial. Que vemos nós em presença do Conduzindo o rebanho? De uma tese antiga, os carneiros e ovelhas de Anunciação, surgiu o quadro focando, não um instantâneo (movimento parado, notou Rodin, em casos semelhantes), mas a transição conjunta de atitudes, uma parte do que foi, descobrindo-se a parte do que será, fenómeno intuitivo de Anunciação ao abrigo da suspeita de industrioso fotografismo. Justamente nesses dias, a propósito da galeria de D. Fernando, a leiloar, ou já leiloada, erguem-se vozes a favor do «saudoso idealista, que vergonha é não estar ainda no Museu». Está hoje no Museu de Lisboa, além do consagrado Vitelo, um carneiro prodigioso, arrancado, dir-se-ia, ao tempo em que os animais falavam. O confronto ordenado pelo destino, naquela hora, agiganta a alma do que morreu de amor pelo seu idealismo: o Perdido do rebanho era um drama da terra à flor das mãos inspiradas, a natureza rude e sentimental sonhada em Caneças: ao passo que o ovelhum planturoso, escorreito, sem bodum, dirigido pelo pastor do Lumiar, refratário ao suor e ao surro, pousou para as lentes «sem responder à ginecologia esplêndida do húmus». (Fialho). Aceitamos as divergências provocadas pelo Conduzindo o rebanho, sem acordar perfeitamente com a sua crítica. Desagradou a última grande pintura de Silva Porto, não por ser exacta, realista, espectacular, fotográfica. Que motivo houve para o desagrado? Desagradou a falta, naquela perfeita teatralização, da pintura protagónica, o estilo de ressonância plástica. A pintura fugiu da bela composição, onde o colorido atónito é a negaça mais imprevista e dramática do notável colorista; um quadro pintado, em vez da pintura num quadro. Indefectível, devendo tudo à eucologia de quanto seus olhos adoravam, o artista aos quarenta e dois anos está cego, a retina doente para a visão irisada; essa progressiva insuficiência e desacomodação no sistema óptico a custo se dominam nas três telas maiores de 1893, (Museu de Soares dos Reis) Ceifeiras, Os moinhos da Confraria e Conduzindo o rebanho, do qual salientamos o rigor clássico na ciência de bem conceber e bem construir. Vive do desenho e de um claro-escuro favorável à reprodução pela estampa, mas a cor prismática das antigas louçanias de frutidor não respondeu ao desenho acromático: azuis uniformes e alvadios, amarelos e castanhos caducos, terras monocórdicas, brancos anémicos, verdes moribundos, as cores sem cor de um sol álgido, enfadonho, iluminando um cenário oleográfico. Que longe estamos da ígnea fosforescência da Volta do Mercado! Ali se encontra natural exemplificação de lord Rayleigh sobre a difusão da luz solar pelas moléculas de azoto e oxigénio; a nossa mão pode entrar sem obstáculos na tela imaterializada, espaço celeste de partículas difusantes que não existe nas últimas pinturas, os olhos do observador tropeçando no azul estagnado e frio. A composição do Rebanho revestiu-se dum colorido mnemónico, psiquicamente daltónico, de pouco servindo os estudos prévios do natural, les gammes du paysagiste, o fundo de reserva na biblioteca de atelier do pintor, como seja o pequeno óleo (Patudos), adorável ensaio pastoril de tons húmidos, harmonias subtis que se perderam no recesso convencional 94 do quadro definitivo. Compare-se o saudável colorido da Seara, 1878, com os amarelos das Ceifeiras, 1893, reveladora xantopsia da retinite atrófica ou degenerescência binocular, (os olhos do artista o denunciam nos últimos retratos) tensão algo penosa na sensibilidade para discriminar nuances, diferenciar valores, ocasionando as repintadelas prejudiciais à frescura dos efeitos. Apenas na mancha incompleta, último suspiro do pintor, Macieiras em flor, da Ameixoeira, excelente por não ter sofrido arrependimentos de pincel, os azuis e os verdes cantam subindo de tom, belo ársis do adeus ao mundo iluminado das coisas e dos seres. O desapego involuntário ou forçoso da realidade, a indiferença pelos modelos enobrecidos por uma memória original, ou ainda por contrariedades da visão enferma, tudo pode sublimar o pintor antiformalista, seja ele um Greco, um Goya, um Millet, cegos para o servilismo da cópia e da imitação, vendo com os olhos fechados o mundo interior e vastíssimo das suas imagens. O caso do nosso paisagista é diverso, por óbvias razões de ambiente, de natureza funcional e de trabalho involucrado em sacrifícios que roubam o prémio do entusiasmo e da alegria fecundante. O S que recusaram aceitar a decadência do pintor, sem ter em conta as datas nos trabalhos indatados, atribuíram o sintoma especifico às tintas adulteradas, sem reparar nas culpas de alguns coleccionadores. Basta citar a Barca de passagem, actualmente com uma chaga do lado esquerdo, a toda a altura da tela, devido a água que recebeu dum telhado roto; e água mole em tinta dura, tanto bate até que fura. Mas a estes desastres, o vulgo deu preferência a outro: os quadros de Silva Porto murcham, desafinam, perdido o frescor vivaz em consequência dos materiais ordinários que neles intervieram, ideia feita, desmentida pela Seara de Paris e pelas duas obras-primas, A Salmeja, 1884, e a Volta do mercado, 1886, perfeitamente sãs de corpo e de alma descontada a pátina do tempo, comum em todas as pinturas. A partir da última data, com os mesmos elementos técnicos em uso, a emoção declina, arrastando na queda a paleta discromatosa e sincopada. Há poucos anos sucedeu este episódio singular: Um pintor e professor diplomado em Lisboa, ao visitar o Museu do norte, estranhou desagradàvelmente os quadros da última fase de Silva Porto, que lhe parecia denunciarem a criminosa abstergência de qualquer lixívia aplicada à beleza das pinturas, sem acreditar no ingénuo mote do envelhecimento das tintas. E o visitante, arrastado por uma sinceridade impulsiva, culpou os conservadores do Museu pelas «caiações dos céus» e outros desacatos irrespeitosos de lesa-arte. Feito o alarme na imprensa, os responsáveis garantiram que no tratamento das telas não houve retocadores nem lavagens abusivas, e tudo sossegou, voltando o problema à situação anterior: a incurável atonalidade dos pigmentos pobres, na sua origem. Dias depois, apreciando o incidente junto do saudoso director, Vasco Valente, chegámos a esta conclusão: Em primeiro lugar a desaconselhada selecção dos quadros naquela sala, por motivos de ordem sentimental, irremovíveis na ocasião, contribuía para desfavorecer a personalidade do artista. Em especial, quanto ao prejuízo artístico de algumas pinturas, a responsabilidade não cabia ao pasmo das 95 tintas, nem aos restauros impericiais. Valente dizia-nos: «Estes céus de algodão em rama são obra do pintor de ar livre que pintou no atelier». Não acreditava, como nós, em pseudas «alterações». Porém, o antigo apriorismo do atelier não resolve a questão, e neste ponto discordávamos. E como a Seara, A Salmeja e A volta do mercado, telas paradigmas da factura inalterável do artista, são o labor inspirado e vitorioso do atelier, onde não falta a luz e a cor da natureza em santa homilia com as luzes do discernimento, somos levados a reconhecer as nervosas deficiências retinianas nos trabalhos seguintes, sofrimento comparável ao de Beethoven, surdo para as harmonias sonoras no auge da carreira. É discutível a diagnose deduzida a posteriori, mas ninguém pode embargar os dois elementos de exame fundamental: as pinturas de fácil cotejo e o tipo biológico do artista, um asténico chupado de carnes, doendo-se de cólicas espasmódicas, irradiações viscerais complicadas por intoxicações, as anemias ictéricas, talvez de origem saturnina, a bilirrubina na circulação e, por diadexia, os transtornos oculares da discromatopsia, aqueles amarelos crus de mal humorada impregnação neutralizando outras cores, saturação aqui, desaturações além, tendência para branquear os tons luminosos, revérberos funéreos nos arvoredos, castanhos atupidos, azuis lívidos. A oftalmologia, à qual não recorreu o doente, poderia corrigir o mecanismo defeituoso da visão, sem eficácia desde que não se abolisse o tabaco, o café, álcool e outros veículos nocivos contrariando a medicação. De tanta importância como a íris e o cristalino afectados, são a memória, a atenção, os automatismos psicológicos lesados que, na destreza manual, acusam a parexia do extensor comum dos dedos. Não é só o colorido que falta no Rebanho; a pincelada acusa a timidez do toque, uma pasta hesitante sem o vigor, o fogo emotivo de outrora, mantendo-se lúcida a inteligência da sua magistral composição. O problema resume-se nisto: a decadência artística de Silva Porto era o reflexo da sua ruína física, ambas interdependentes; e o facto de não se admitir uma morte próxima, na curva da meia idade, aos 42 anos, levou a crítica a não suspeitar, nem desculpar uma obra plástica de abatimentos crepusculares, ao contrário da decadência artística de Veloso Salgado, em pleno vigor das suas faculdades, precedendo muitos anos o termo de seus dias. O homem dos «orçamentos equilibrados» reconhece o deficit na alquebrada saúde, dissimulando-o no refúgio do seu isolamento. Na rua evita os encontros, o coco pardo enterrado até aos olhos de esclerótica amarelada, o mesmo chapéu que Luciano Freire lhe colocou num retrato pós-morte; e, nas galafuras das reuniões de classe, não se dá por ele, enconchado na sua misologia «Talento profundo e calmo, triste como a sua face e a sua palestra», escreveu o médico de clínica estética, Fialho, o melhor auscultador das traições hepáticas do grande paisagista: «nunca uma obra disse melhor do caráter e estado de um artista; ombros estreitos, os olhos descidos, dá a impressão de quem vai, apoquentado, pedir espera de uma velha conta». Sim, era o ajuste do «quadro capital» que ainda não pintou, credor dum pincel rebelde e da neuro-retinite traindo a vontade. E a conta desairosa não espera. Em 4 de Maio nasce uma menina no lar da Travessa da Estrela, a Maria 96 Irene, que viverá poucos meses. De sete filhos, sòmente dois atingem a maioridade. (Carlos Alberto é o único, felizmente vivo, a quem prestamos a homenagem da nossa gratidão). Participando aquele nascimento a Ribeiro Artur, o artista escreve, apreensivo: «a maldita cólica não o deixava» partilhar no júbilo de um novo ser a que dera vida. O bom amigo Ribeiro surpreendera no paisagista ternuras embevecidas pelas crianças, melancolia generosa do proliferador inexplícito, ao abeirar-se dos inocentes. Mas a doença vai fechar os olhos ao pai, depois de os ter velado ao pintor, antecipando-se à breve partida da sua menina. Na tarde do dia 8 sobe a Misericórdia, mais fatigado e cainho. Os últimos raios de sol douram o casario em anfiteatro, descendo ate à Baixa, o matizado panorama que se avista de S. Pedro de Alcântara. A mesma despedida de Anunciação à cidade antagónica, à mesma hora e no mesmo Iugar; o mesmo lamento à Jerusalém orgulhosa, quando o Mestre o contempla do alto da colina, segundo o artista São Lucas: «Se ao menos neste dia conhecesses ainda o que te pode trazer a paz; mas não, por ora tudo está encoberto aos teus olhos». Ao entrar na residência, o pintor deixa a porta aberta; e quem se introduz, seguindo-lhe as pisadas, é a Ceifeira ruim, teimando em não largar a presa, dócil Isaac disposto ao sacrifício na idade em que muitos erguem a cabeça para recomeçar. No dia imediato regista-se a falta do presidente no Grémio. Não comparecerá jamais na colectividade onde medram azedas beldroegas, demitindo-se uns, reclamando outros novas reformas, gente melindrosa impossível de associar, seja qual for a lei estatuída. Depois chega à Escola um atestado do doutor Joaquim Teotónio, padrinho da esposa do professor, diagnose tocando uma typhlite, doença fora de moda pela descoberta de outras, as múltiplas afecções do cécum. Aqui tiveram remate as cólicas recidivantes, dor crónica do angustioso desamparado de alívios panaceicos. Se nos dias melhores «não tocou tambor à porta da sua barraca» (Z. d’Aça), o pintor da natureza silenciosa, exemplo de mansuetude e austeridade pitagórica, olvida os agravos e perseguições para entregar a alma, abençoando os infiéis com a ternura mística do perdão. Às onze horas da noite de um de Junho, fixando o cortinado do quarto sob a fascinação duma luz interior, o moribundo solta um balbucio agónico: «Está ali uma figura... paisagem linda!...» Impressiona o seu rosto calmo e desfigurado, dizem. Beatitude e transfiguração. O Chefe de comando suave, revolucionário na ordem, fundador na disciplina, entra sem arrebatamentos apocalípticos na imortal sobrevivência. «A notícia causou-nos um certo assombro». (R. Artur). Ninguém esperava que semelhante tiflite pudesse matar, ainda longe dos anos patriarcais, um pintor de invulgar ascendente na Arte portuguesa, carvalho de minga raiz batido pelos ventos impiedosos de todos os quadrantes. Do infausto decesso poderia repetir-se o que Jules Dupré escreveu na morte de Corot: «Será difícil substituir o artista: o homem nunca será igualado». Uma carta do punho do conde de Sabugosa, da Casa Civil do rei, entregue pessoalmente à viúva, manifestava as condolências do Paço: «E agora que o pincel descansa da faina que tanto honrou a sua memória, é-lhes grato pensar que, se o pintor infelizmente desapareceu, resta-lhes em algumas telas, que têm a fortuna de possuir (os monarcas), a mais pura expressão da sua personalidade 97 artística». Às onze horas do dia 3 saiu o féretro, acompanhado a pé pelo conde de Almedina, sócios do Grémio, professores, alunos, académicos, alguns discursos magoados evocaram o «sacerdos magnus» desaparecido, flores de retórica junto das flores naturais, coroas em forma de paleta, uma do rei e da rainha na vanguarda do funeral, coroa régia de artistas transportada por colegas artistas, «preito de grande importância e louvor geral». Informações zoratas disseram, iludindo a confiança dum redactor, que o modesto enterro de Silva Porto encontrara o do toureiro José Peixinho no Cemitério Oriental, manifestação monstro do «ídolo popular vencendo o grande artista» na sua parcimónia obituária (O Século 11-XI-1950). Intrigados, sabendo-se que o toureiro faleceu cinco meses depois do pintor, quisemos ouvir pessoalmente a prova presencial do choque necrolátrico: Lembro-me bem!..., e o ancião evocou-nos o sucesso curiosíssimo. Construira uma síntese por associação de dois fatos fusionados, independentes no espaço e no tempo, mas sobrepondo-se, como duas imagens díspares impressionadas no mesmo cliché, jogo psíquico das três relações da memória activa: similaridade, contraste, contiguidade. — Eu vi, Deus me salve, com estes olhos… — E convencem um tribunal e o juízo da História: e não mentem as venerandas testemunhas oculares, persuadidas de que a coisa é assim, de tal modo a imaginação abala as montanhas do raciocínio. E quem sabe!? Na contagem impossível do tempo infinito, que significam cinco meses ou cinco segundos? O incidente tomado à letra avisa-nos da relatividade das homenagens, sem aferição quanto ao número e qualidade dos epicedios. Desenho No passamento do artista bastou a presença eloquente dum coração compungido, o do inspector Almedina, irmão Dióscoro emudecido naquela exteriorização dos sentimentos, a saúde fraca, poucos dias lhe restando para se juntar ao amigo de gemelga condição, e pelo qual batalhou certo ao defendê-lo na Academia. No bairro da Sé do Porto, o rijo latoeiro Silva Carvalho, viúvo há um ano, escreve no seu livro de notas: Faleceu Meu filho Antonio Carvalho da Silva Porto... (A data, a cidade, o local do último sono do pintor) sem comentário à singeleza dum nobre sentimento. O corpo ficou em jazigo da família Torres Pereira, até ser trasladado, no terceiro aniversário da morte, para o mausoléu erguido por subscritores, a curta distância e fronteiro ao de Anunciação. Dois obeliscos módicos, uma paleta em relevo na pedra de cada um, legendas face a face, antagonistas desconhecidos em vida, agora unidos pelo repouso na fraterna supervida, como Millet e Th. Rousseau, lado a lado no humilde cemitério de Chailly. 98 B ASTOU esse inesperado correr de cortina sobre a existência do moderno varão de Plutarco, precocemente envelhecido no sacerdócio do trabalho, para todos se curvarem, lamentando a dramática renúncia. Todos fizeram acto de arrependimento, o opinioso médio e os de magister Opinião. Resumiremos nos dois principais os seus termos lapidares que nos recordam a parábola do fariseu e do publicano na oração do Templo. Ramalho: — Obra colossal, a deste adorável artista, que teve pesadas e longas horas de amargura. Ouvi acusarem-no de negligente, decerto um equívoco de apreciação. (Segue um truísmo teorético e snobe para justificar o equívoco… dos outros). Silva Porto foi o divino Garrett da pintura portuguesa, de tal modo fez compreender e amar a terra da sua pátria. E com esta palavra deponho, comovido, sobre o seu túmulo a coroa que lhe deve a gratidão nacional. Fialho: — Se me enganei, se fui ardoroso nos meus panfletos era devido à impaciência, ao receio de, sendo tão curta a vida, ver parada essa admirável virgindade do melancólico panteísta, na ascensão ao sublime. O monumento a erguer-lhe deve ser discreto, como a sua glória cândida e a natureza íntima do seu carácter; uma efígie simples, perto de nós, perto dos olhos, perto da boca, para beijar essa boca pura que não exerceu opressões ao legislar sobre estados de alma, e dizer-lhe, todos os dias: Adeus, querido Mestre! Foi este, em verdade vos digo, o que saiu justificado da palinódia no Templo. Aquelas palavras ardentes, gritos da alma abrasada pelo Sol da justiça, premiaram na morte a vida do Pintor-Honesto, ens realissimum que nunca fugiu à crítica nem recusou a luta contra o mundo e contra si mesmo, a luta superior à vitória do homem, a luta que conduz à recompensa mais bela da vida sem fim, a paz na gloriosa eternidade. 99 I. Quinta do Covelo (1873) Museu Nacional Soares dos Reis 0,82 x 1,13 II. Cabeça de Cavalo (1873) Museu Nacional Soares dos Reis 0,78 x 0,63 100 III. Margens do Oise (1876) Museu Nacional Soares dos Reis 1,38 x 1,88 IV. Entrada de Aldeia (Normandia) (1876) Museu Nacional Soares dos Reis 0,40 x 0,32 101 V. VI. A fiandeira napolitana (1877) Museu nacional de Arte Contemporânea 0,95 x 0,60 A tigela partida (1877) Museu Nacional Soares dos Reis 0,76 x 0,49 102 VII. A tigela partida — Pormenor VIII. Lago de Enghien (1877) Museu Nacional de Arte Contemporânea 0,69 x 1,00 103 IX. X. Perfil (mulher do artista) (1882) Museu Nacional Soares dos Reis 0,18 x 0,10 Retrato da irmã do artista (1871) Col. Particular 0,450,62 104 XI. Paisagem de Auteuil (1874) Museu Nacional Soares dos Reis 0,56 x 0,46 XII. Infanta Margarida — estudo — cópia de Velasquez (1875) Col. Particular 0,36 x 0,44 105 XIII. Estudo de paisagem — Barbizon (1875) Museu Nacional Soares dos Reis 0,54 x 0,74 XIV. Macieiras em Flor Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,37 x 0,56 106 XV. Árvores floridas — França (1876) Museu Municipal de Gaia 0,31 x 0,49 XVI. Manhã no Oise (1876) Museu Nacional Soares dos Reis 0,75 x 1,30 107 XVII. Manhã no Oise — Pormenor XVIII. Planície Normandia) (1876) Museu Nacional Soares dos Reis 0,70 x 1,20 108 XIX. Paisagem (Marne) (1876) Museu Nacional Soares dos Reis 0,41 x 0,66 XX. Paisagem (França) (1876) Museu Municipal de Gaia 0,26 x 0,45 109 XXI. Paisagem (França) (1876) Museu Nacional Soares dos Reis 0,44 x 0,70 XXII. Nu (Itália) (1877) Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,47 x 0,97 110 XXIII. A cancela vermelha (1878) Museu Nacional Soares dos Reis 0,175 x 0,180 XXIV. Napolitana (1877) Museu Nacional Soares dos Reis 1,13 x 0,59 111 XXV. Napolitana — Pormenor XXVI. Compondo as redes (1877) Museu Nacional Soares dos Reis 0,60 x 1,20 112 XXVII. Compondo as redes — Pormenor XVIII. Rapariga romana (1877) Museu Nacional Soares dos Reis 0,22 x 0,16 113 XXIX. XXX. Uma rua (Itália) (1877) Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,24 x 0,39 Interior da capela de S. Marcos em Veneza (1878) Col. Particular 0,48 x 0,30 114 XXXI. Mulher da Bretanha — estudo (1878) Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,37 x 0,54 XXXII. Barcos do Douro (1884) Col. Particular 0,26 x 0,19 115 XXXIII. A seara (1878) Museu Nacional Soares dos Reis 0,79 x 1,40 XXXIV. Charneca de Belas (1880) Museu Nacional de Arte Contemporanea 0,85 x 1,50 116 XXXV. As lavadeiras (Ajuda) (1880-1885) Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,33 x 0,55 XXXVI. Os bois (1883) Col. Particular 1,50 x 1,00 117 XXXVII. Casario (Itália) (1878) Museu Grão — Vasco — Vizeu 0,18 x 0,12 XXXVIII. Interior de igreja (Itália) (1878) Col. Dr. Anastacio Gonçalves 0,18 x 0,29 118 XXXIX. Vendedeira de laranjas (1881) Col. Particular 0,32 x 0,43 XL. Vaca vitelo (1882-1885) Museu Biblioteca Almeida Moreira — Viseu 0,20 x 0,13 119 XLI. Paisagem Col. Particular XLII. Retrato da mulher do artista (1883) Colecção particular 0,78 x 1,20 120 XLIII. Praia do Norte (1884) Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,315 x 0,550 XLIV. Vacas na arribana (estudo) Col. Particular 0,35 x 0,54 121 XLV. No areinho — Douro (1884) Museu Nacional Soares dos Reis 0,37 x 0,55 XLVI. Os bois Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,38 x 0,56 122 XLVII. Lugar de Arnelas — Douro (1882) Col. Eugénia Relvas — José Relvas 1,00 x 0,60 XLVIII. Na pastagem (1883) Col. Eugénia Relvas — José Relvas 1,00 x 0,66 123 XLIX. A moliceira Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,40 x 0,53 L. Estudo Col. Particular 0,315 x 0.215 124 LI. Os moinhos da Cascalheira (Vizela) (1884) Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,56 x 0,37 LII. A salmeja (1884) Museu Nacional de Arte Contemporânea 1,37 x 2,08 125 LIII. A salmeja — Pormenor LIV. Barcos Museu Nacional Soares dos Reis 0,21 x 0,32 126 LV. Ponte Velha (1884) Museu Nacional Soares dos Reis 127 LVI. Retrato da senhora D. Sousa Roxo (1885) Col. Particular 0,78 x 1,20 128 LVII. O Quinteiro (Carriche) (1885) Col. Particular 129 LVlll. Estudo para “O quinteiro” (1885) Museu Grão Vasco — Viseu 0,46 x 0,33 LXI. Campinos — Pormenor 130 LX. Campinos (1885) Fundação da Casa de Bragança 1,50 x 1,20 LIX. Cabeça de Napolitana (1877) Museu Nacional Soares dos Reis 0,18 x 0,10 131 LXlll. O álbum (1885) Col. Particular LXIV. A volta do mercado (1886) Museu Nacional de Arte Contemporânea 1,10 x 1,50 132 LXII. A esposa do artista (estudo para “O álbum”) (1885) Museu-Biblioteca Almeida Moreira 0,1 x 0,18 133 LXV. A volta do mercado — Pormenor LXVI. Margens do Nabão (Tomar) (1886) Museu Nacional de Arte Contemporânea 0,37 x 0,56 134 LXVII. Praia de Setúbal Col. Particular 0,50 x 0,40 LXVIII. Macieiras em flor (1893) Museu Nacional Soares dos Reis 0,45 x 0,55 135 LXIX. As saloias (1886) Col. Particular 0,32 x 0,43 LXX. Lugar do Cacém (1887) Col. Relvas 0,55 x 0,37 136 LXXI. Macieiras em flor Museu Grão Vasco — Viseu 0,32 x 0,40 LXXII. Torre de igreja — Vila Franca de Xira (1885) Col. Relvas 0,31 x 0,21 137 LXXIII. Campino (1887) Museu Nacional de Arte Contemporânea 1,20 x 0,76 LXXIV. Póvoa de Varzim Museu Nacional Soares dos Reis 0,20 x 0,31 138 LXXV. O amor na aldeia (1887) Museu Nacional Soares dos Reis 1,00 x 1,26 LXXVI. O amor na aldeia — Pormenor 139 LXXVII. Azenha (Margens do Ave) (1887) Museu Nacional de Arte Contemporânea 0,37 x 0,51 LXXVIII. Casa vermelha Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,31 x 0,21 140 LXXIX. Alpondras Museu Nacional Soares dos Reis 0,32 x 0,55 LXXX. Paisagem Museu Nacional Soares dos Reis 0,37 x 0,56 141 LXXXI. Azenha Museu — Biblioteca Almeida Moreira — Viseu 0,21 x 0,31 LXXXII. Volta para Arribana (1888) Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,56 x 0,42 142 LXXXIII. Condução de cabrestos (1890) Col. particular LXXXIV. Paisagem — estudo Museu Nacional de Arte Contemporânea 0,14 x 0,26 143 LXXXV. António, filho do artista (1890) Col. Particular LXXXVI. Margens do Douro (Avintes) (1883) Col. D. Maria Mendes Leal 0,32 x 0,54 144 LXXXVII. Paisagem Fluvial Museu Nacional Soares dos Reis 0,45 x 0,55 LXXXVIII. A queima do Alcatrão Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,42 x 0,55 145 LXXXIX. Paisagem invernosa — Estudo Museu Nacional de Arte Contemporânea 0,26 x 0,49 XC. Barcos — Póvoa de Varzim Museu Nacional Soares dos Reis 0,41 x 0,55 146 XCI. Conduzindo o Rebanho (estudo) Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,56 x 0,38 XCIl. Lugar da Estalagem — Vizela (1885) 0,56 x 0,38 147 XCIll. Perfil (retrato da esposa do artista) (1889) Col. Particular 0,22 XCIV. A porta da venda — 1891 Palácio de Vila Viçosa 0,98 x 1,22 148 XCV. Moinho do Gregório (Minho) (1891) Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,56 x 0,42 XCVl. Paisagem (estudo) Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,25 x 0,47 149 XCVII. Vindima (estudo) Museu Nacional de Arte Contemporânea 0,41 x 0,56 XCVIII. Praia da Póvoa Col. Dr. Anastácio Gonçalves 0,33 x 0,49 150 XCIX. Moinhos da Confraria (Caldas das Taipas) (1893) Museu Nacional Soares dos Reis 0,90 x 1,20 C. Rapariga a Dobar (1892) Col. Particular 0,24 x 0,31 151 CI. Estrada de Santo Eloi (arredores de Lisboa) Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,31 x 0,21 CII. Cabeça de camponesa (1892) Palácio de Vila Viçosa 0,32 x 0,25 152 Clll. Recanto de aldeia Col. Eugénia Relvas — José Relvas 0,31 x 0,21 153 CV. Margens do Rio Ave (1892) Museu Nacional de Arte Contemporânea 0,26 x 0,36 CVI. Barca de passagem (Minho) (1892) Col. Particular 2,00 x 1,30 154 CVII. Pormenor do estudo para a “Barca de passagem” (1891) Col. Particular 0,55 x 0,40 CVIII. Lugar do Prado (Minho) (1892) Col. Particular 0,53 x 0,43 155 CIX. A caminho da escola (estudo) Col. Particular 0,45 x 0,62 CX. No montado Museu Nacional Soares dos Reis 0,20 x 0,31 156 CXI. Ceifeiras (Lumiar) (1893) Museu Nacional Soares dos Reis 0,90 x 1,20 CXII. Seara (estudo) Col. Particular 0,26 x 0,16 157 CXIII. Margens do Tejo Museu Nacional Soares dos Reis 0,42 x 0,56 CXIV. Conduzindo o rebanho (1893) Museu Nacional Soares dos Reis 1,60 x 2,00 158 CXV. Conduzindo o rebanho — Pormenor CXVI. Conduzindo o rebanho — Pormenor 159 Luís Varela Aldemira (1895-1975) foi pintor, professor e investigador, Presidente da SNBA (1932), Vice-Secretário da Academia Nacional de Belas Artes, e eminente Professor de Pintura na então Escola Superior de Belas Artes. Diz Isabel Sabino: “É especialmente notável essa sua ‘pintura escrita’ — termo com que ele mesmo designa a produção literária, na qual regista diálogos do real com a vida e a cultura e criação artísticas, entre a história, o quotidiano, o trabalho no ensino artístico, os relatos de testemunhos orais dos seus precedentes e as impressões pessoais.” São títulos seus: A Arte e a Psicanálise (1935); Um Ano Trágico — Lisboa em 1836 (1937); Terceira Missão Estética de Férias. Alcobaça Ilustrada. Um Estudo Crítico / Programa / Relatório / Catálogo e Estampas (1940); Notas Sobre a Vida e a Obra do Pintor Veloso Salgado (1940); Columbano. Ensaio Biográfico e Crítico (1941); Estudos de Arte e Crítica (1942); O Pintor El Greco (1942); Itinerário Estético — A Caminho de Roma (1943); A Pintora Josefa Greno (1951); Homens e Livros (1952); Silva Porto (1954); Memorial da Berlenga (1956); Os Dois Cristos de Columbano (1957); Henrique Pousão (1959); A Pintura na Teoria e na Prática (1961); Influências e Originalidade da Pintura (1961); A Geometria Estética de Velasquez (1962); A Paisagem nos Cursos de Pintura (1963); A Questão das Cores Complementares (1965); Estudos Complementares de Pintura (1970); Pintura Naturalista (1974).