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Publicidade e marketing na cultura digital

2023, Século XXI: A Publicidade sem Fronteiras? Vol. 7

Sumário PARTE 1: PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO, PUBLICIDADE CONECTIVA E MARKETING DIGITAL Publicidade conectiva: perspectivas conceituais Rodrigo Stéfani Correa Janderle Rabaiolli Estratégias emergentes em publicidade e marketing digital: inteligência e hiperconectividade no contexto da economia de dados Magno Medeiros Construção de planejamento estratégico para organização do terceiro setor: estratégias de marketing digital do Instituto Ecomamor Isabella Szabor Machado Mustafé Jordana Albino Oliveira Publicidade no Instagram: humanização e memória afetiva Lucilene dos Santos Gonzales Tatiana Cristina Molini PARTE 2: CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA, TECNOLOGIAS DIGITAIS E AGÊNCIAS PUBLICITÁRIAS Um olhar sobre a práxis criativa das agências de publicidade digital contemporâneas Maria Cristina Dias Alves Insights sobre a relação entre criatividade, eficiência da comunicação, tecnologia e dados no mercado de agências publicitárias goianienses Felipe Fulquim Letícia Segurado Côrtes Marina Roriz Yuri de Oliveira Buratto O sistema de setas e o plano comparativo: o uso de metáforas como técnica para a criação publicitária Janaína Vieira de Paula Jordão PARTE 3: CULTURA DIGITAL E INDÚSTRIA DO IMAGINÁRIO: CINEMA, AUDIOVISUAL E LITERATURA Cruella: as variações do mito do duplo na história de vida da personagem que escolheu ser uma anti-heroína Thalita Sasse Fróes Ana Cecília Faloni Borges A autorrepresentação do indígena no audiovisual: uma análise fílmica do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro Nágila da Silva Lopes Rafael Franco Coelho Correlação de fatores na composição de trailers de franquias cinematográficas Jaqueline Fischer Rafael José Bona O fim da eternidade, de Asimov, a cultura e o tempo na publicidade Dora Carvalho João Anzanello Carrascoza PARTE 4: ESTÉTICA E CULTURA DA CONVERGÊNCIA: NARRATIVAS, CONECTIVIDADES E CORPOREIDADES Kitsch, propaganda política e a estética do bolsonarismo Rodrigo Cássio Oliveira Comunidade kpopper e a popularização do gênero k-pop no Brasil: como as armys se conectam com o grupo BTS Wadna da Silva Coelho Jessica Caetano Santos Lara Lima Satler Publicidade e múltiplas possibilidades midiáticas: reflexões sobre o diálogo das mídias na cultura da convergência Ana Paula Mendes Pereira de Vilhena #Hugoyourway – corpos vitrínicos e ciborgologia em uma campanha da marca Hugo Boss Hélio Ricardo Rainho

Século XXI: A Publicidade sem Fronteiras? Vol. 7 Publicidade e Marketing na Cultura Digital Magno Medeiros Thalita Sasse Froes Rafael Franco Coelho (organizadores) Universidade Federal de Goiás Reitora Angelita Pereira de Lima Vice-Reitor Jesiel Freitas Carvalho Diretora do Cegraf UFG Maria Lucia Kons CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alexandre Tadeu dos Santos Profa. Dra. Ana Carolina Rocha Pessôa Temer Profa. Dra. Ana Rita Vidica Fernandes Profa. Dra. Andréa Pereira dos Santos Profa. Dra. Ângela Teixeira de Moraes Prof. Dr. Douglas Farias Cordeiro Profa. Dra. Kátia Kelvis Cassiano Profa. Dra. Lara Lima Satler Profa. Dra. Laura Vilela Rodrigues Rezende Profa. Dra. Luciene de Oliveira Dias Prof. Dr. Luiz Signates Prof. Dr. Magno Medeiros Profa. Dra. Nélia Rodrigues Del Bianco Prof. Dr. Ricardo Pavan Prof. Dr. Rodrigo Cássio Oliveira Profa. Dra. Rosana Maria Ribeiro Borges Profa. Dra. Simone Antoniaci Tuzzo Profa. Dra. Suely Henrique de Aquino Gomes Prof. Dr. Tiago Mainieri Publicidade e marketing na cultura digital vol. 7 Magno Medeiros Thalita Sasse Froes Rafael Franco Coelho (organizadores) 2023 © Magno Medeiros; Thalita Sasse Froes; Rafael Franco Coelho (org.), 2023 © Cegraf UFG, 2023 Capa Marcilon Almeida Revisão Lídia dos Santos Ferreira de Freitas Editoração eletrônica Allyson Moreira Goes Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) GPT/BC/UFG P976 Publicidade e marketing na cultura digital [E-book] / organizadores, Magno Medeiros, Thalita Sasse Froes, Rafael Franco Coelho. - Dados eletrônicos (1 arquivo : PDF) - Goiânia : Cegraf UFG, 2023. (Século XXI: a publicidade sem fronteiras? ; 7) Inclui referências. ISBN (E-book):978-85-495-0847-8 1. Publicidade e propaganda. 2. Marketing. 3. Comunicações digitais. 4. Mídia (Publicidade). 5. Comunicação e cultura. I. Medeiros, Magno. II. Froes, Thalita Sasse. III. Coelho, Rafael Franco. CDU: 659.1 Bibliotecária responsável: Adriana P. Aguiar / CRB1: 3172 Sumário Prefácio .............................................................................................................................8 Rogério Luiz Covaleski Publicidade, marketing e cultura digital em perspectiva interdisciplinar............................................................................................................12 Magno Medeiros Thalita Sasse Fróes Rafael Franco Coelho PARTE 1: PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO, PUBLICIDADE CONECTIVA E MARKETING DIGITAL Publicidade conectiva: perspectivas conceituais .........................................18 Rodrigo Stéfani Correa Janderle Rabaiolli Estratégias emergentes em publicidade e marketing digital: inteligência e hiperconectividade no contexto da economia de dados ....................................................................................................41 Magno Medeiros Construção de planejamento estratégico para organização do terceiro setor: estratégias de marketing digital do Instituto Ecomamor ................................................................................................ 77 Isabella Szabor Machado Mustafé Jordana Albino Oliveira Publicidade no Instagram: humanização e memória afetiva ..............108 Lucilene dos Santos Gonzales Tatiana Cristina Molini PARTE 2: CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA, TECNOLOGIAS DIGITAIS E AGÊNCIAS PUBLICITÁRIAS Um olhar sobre a práxis criativa das agências de publicidade digital contemporâneas .............................................................. 134 Maria Cristina Dias Alves Insights sobre a relação entre criatividade, eficiência da comunicação, tecnologia e dados no mercado de agências publicitárias goianienses .................................................................. 159 Felipe Fulquim Letícia Segurado Côrtes Marina Roriz Yuri de Oliveira Buratto O sistema de setas e o plano comparativo: o uso de metáforas como técnica para a criação publicitária....................................................... 188 Janaína Vieira de Paula Jordão PARTE 3: CULTURA DIGITAL E INDÚSTRIA DO IMAGINÁRIO: CINEMA, AUDIOVISUAL E LITERATURA Cruella: as variações do mito do duplo na história de vida da personagem que escolheu ser uma anti-heroína ..................................... 216 Thalita Sasse Fróes Ana Cecília Faloni Borges A autorrepresentação do indígena no audiovisual: uma análise fílmica do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro ................ 236 Nágila da Silva Lopes Rafael Franco Coelho Correlação de fatores na composição de trailers de franquias cinematográficas ................................................................................267 Jaqueline Fischer Rafael José Bona O fim da eternidade, de Asimov, a cultura e o tempo na publicidade .......................................................................................................... 295 Dora Carvalho João Anzanello Carrascoza PARTE 4: ESTÉTICA E CULTURA DA CONVERGÊNCIA: NARRATIVAS, CONECTIVIDADES E CORPOREIDADES Kitsch, propaganda política e a estética do bolsonarismo ................... 319 Rodrigo Cássio Oliveira Comunidade kpopper e a popularização do gênero k-pop no Brasil: como as armys se conectam com o grupo BTS.......................345 Wadna da Silva Coelho Jessica Caetano Santos Lara Lima Satler Publicidade e múltiplas possibilidades midiáticas: reflexões sobre o diálogo das mídias na cultura da convergência .........................370 Ana Paula Mendes Pereira de Vilhena #Hugoyourway – corpos vitrínicos e ciborgologia em uma campanha da marca Hugo Boss ............................................................. 385 Hélio Ricardo Rainho Prefácio Rogério Luiz Covaleski1 O pensamento epistemológico em torno de fenômenos cotidianos das relações, das experiências e das narrativas de consumo passa pela constituição de saberes científicos dos campos da Publicidade – objeto de estudo da área de conhecimento da Comunicação – e do Marketing – oriundo da Administração –, mas a transdisciplinaridade entre eles é indelével e inevitável. O que distancia a epistemologia do senso comum é a cientificidade do pensamento devidamente fundamentado na construção desse saber. Nesse sentido, a produção intelectual de viés teórico, articulada à prática organizacional e mercadológica, evidencia que o conhecimento acadêmico-científico não pode prescindir da observação e efetividade do que se pratica na esfera corporativa, e vice-versa. Assim, a chegada do sétimo volume da Coleção Publicidade Sem Fronteiras deve ser saudada. Nesta coletânea, Publicidade e Marketing na Cultura Digital, organizada pelos professores Magno Medeiros, Thalita Sasse Froes e Rafael Franco Coelho, a 1 Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. compilação de saberes está estruturada em quatro eixos e contempla quinze capítulos, relacionando, nas respectivas partes e textos, reflexões acerca do planejamento estratégico, da criação publicitária, da cultura digital e da cultura da convergência. O transbordamento dos fenômenos e objetos publicitários para outros territórios tem tornado suas fronteiras movediças e imprecisas, quando não indetectáveis ou, propriamente, inexistentes. Neste ano de 2023, por exemplo, completam-se 70 anos do mais emblemático festival da indústria publicitária, o Cannes Lions – que a bem da verdade, já há mais de uma década deixou de se identificar como um festival de publicidade para se redefinir como um evento que celebra a criatividade. Atualmente, conta com nove eixos de premiação (Craft, Experience, Engagement, Strategy, Classic, Health, Good, Entertainment e Titanium) e nada menos que 30 categorias (Brand Experience & Activation, Creative B2B, Creative Business Transformation, Creative Commerce, Creative Data, Creative Effectiveness, Creative Strategy, Design, Digital Craft, Direct, Entertainment, Entertainment Lions for Gaming, Entertainment Lions for Music, Entertainment Lions for Sport, Film, Film Craft, Glass: The Lion for Change, Health & Wellness, Industry Craft, Innovation, Media, Mobile, Outdoor, Pharma, PR, Print & Publishing, Radio & Audio, Social & Influencer, Sustainable Development Goals, Titanium). Tal arquitetura de premiações, que se modifica e cresce praticamente a cada edição do festival, tenta abarcar a diversidade de ações que marcas realizam para alcançar e engajar uma audiência dispersa e, por vezes, desinteressada no conteúdo publicitário, a fim de convertê-la em consumidores do que produzem e anunciam. Este contexto do ainda aclamado Sumário <<<<< 9 como grande palco da publicidade global se reflete também na diversidade de abordagens nas pesquisas científicas. A reflexão teórica sobre a prática publicitária vem se consolidando no Brasil, sobretudo no contexto da cultura digital, em grande parte graças às pesquisas acadêmicas empreendidas no país, que hoje conta com 57 programas filiados à Compós – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Destes, um terço surgiu ao longo dos últimos 10 anos, o que ajuda a demonstrar a crescente produção intelectual abordando temáticas e materialidades de estudo da área. No âmbito da graduação, iniciativas de pesquisa científica como as postas em prática pelos professores e professoras do Curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal de Goiás são louváveis e merecedoras de aplausos – e de leitura! E o melhor incentivo a quem produz conhecimento é saber que ele está sendo disseminado, servindo como fundamentação para outros estudos, como interlocução com os pares de investigação e como retribuição e esclarecimento à sociedade. O que a Coleção Publicidade Sem Fronteiras vem contribuindo para construir é uma epistemologia como concepção de um projeto educacional mais amplo, um paradigma teórico para o conhecimento científico dedicado à organização racional do saber para além dos limites históricos da publicidade estandardizada. Sabemos que a dinâmica e mutabilidade da práxis publicitária nem sempre se encaixa nessa estrutura conceitual, e ainda persistem visões críticas e olhares de desconfiança, inclusive entre investigadores da própria área de Comunicação, que não veem a publicidade como uma disciplina científica. O pensamento epistemológico que circula por esta coleção se Sumário <<<<< 10 preocupa em refletir, criticamente, sobre as bases teóricas e metodológicas que sustentam a produção do conhecimento em torno da publicidade, buscando decifrar as implicações desses fundamentos na forma como compreendemos e interpretamos essa publicidade desfronteirizada. Convidamos à leitura deste livro aqueles que queiram conhecer regiões não demarcadas, por onde a publicidade e o marketing na cultura digital estão circulando. Sumário <<<<< 11 Publicidade, marketing e cultura digital em perspectiva interdisciplinar Magno Medeiros1 Thalita Sasse Fróes2 Rafael Franco Coelho3 Os processos de plataformização, dataficação e transmidiatização transformam o mundo profunda e velozmente. As inovações tecnológicas digitais, principalmente a partir das últimas décadas, alteram o mundo do trabalho, modificam os modos de produção e consumo, transfiguram percepções e sensibilidades 1 Doutor pela USP, professor titular e ex-diretor da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). Docente do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM/UFG) e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH/UFG). E-mail: magno@ufg.br 2 Doutora em Letras e Linguística (UFG). Mestre em Comunicação (UnB). Professora do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Universidade Federal de Goiás. E-mail: thalita_ sasse_froes@ufg.br 3 Doutor em Comunicação Digital pela Universidade Autónoma de Barcelona e docente do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG. E-mail: rafaelcoelho@ufg.br espaço-temporais, enfim, afetam tudo em nossa vida: sociabilidade, comunicação, informação, cidadania, comércio, educação, saúde, arte, cultura, ciência, lazer e entretenimento. Desconstroem os pilares da Revolução Industrial, dando origem à Era Digital, com forte impacto em nossas relações sociais, econômicas, políticas e culturais. No contexto da Era Digital, como se situam a publicidade, a propaganda e o marketing? Independentemente da área de atuação – planejamento, criação, produção, mídia –, como essas disciplinas e práticas profissionais são impactadas pela cultura digital? Até que ponto os processos de midiatização e os recursos automatizados em banco de dados e em plataformas digitais afetam a comunicação, a produção, a criação, o consumo e a circulação de bens simbólicos? Quais as transformações provocadas pelas tecnologias digitais no fazer publicitário? Por que as mídias tradicionais vêm perdendo espaço e investimentos para as mídias digitais em face da acirrada concorrência da economia de dados e da atenção? Por que profissionais, pesquisadores, agências e organizações precisam conhecer e usar ferramentas e estratégias digitais para alcançar metas e objetivos com eficácia e eficiência? Essas perguntas são orientadoras do escopo do dossiê Publicidade e Marketing na cultura digital. Assim, a presente obra busca problematizar conceitos, teorias, métodos, linguagem, plataformas, estratégias, técnicas, criações, inovações, práticas e experiências de publicidade e marketing no contexto da cultura digital. Isso implica discutir, pesquisar e refletir sobre diversos temas correlatos: planejamento e gestão estratégica da comunicação digital; marketing e o consumidor digital; propaganda e cibercultura; web 3.0 e o sujeito multiteleinterativo; presença digital e inovações tecnológicas; landing pages Sumário <<<<< 13 e estratégias de conversão; mídias sociais digitais em contextos de crises corporativas; Comunicação Integrada de Marketing e experiências inovadoras; marketing orientado a dados; marketing digital e ações estratégicas para marcas, produtos e serviços; marketing de conteúdo, inbound e geração de leads; estratégias digitais emergentes de e-commerce; criação e design em publicidade e marketing digital; agências digitais e estratégias criativas; plataformização e datificação da publicidade e do marketing; publicidade display e anúncios gráficos na internet; tecnologias mobile e ambientes imersivos; inteligência artificial, automação de marketing e plataformas de busca; social media marketing; marketing de influência; marketing de performance; e-mail marketing; mensuração e avaliação em comunicação e marketing digital; entre outros. O livro está estruturado em quatro partes. A primeira aborda questões referentes ao planejamento estratégico, à publicidade conectiva e ao marketing digital. São quatro capítulos: “Publicidade conectiva: perspectivas conceituais”, de Rodrigo Stéfani Correa e Janderle Rabaiolli; “Estratégias emergentes em publicidade e marketing digital: inteligência e conectividade no contexto da economia de dados”, de Magno Medeiros; “Construção de planejamento estratégico para organização do Terceiro Setor: estratégias de marketing digital do Instituto EcomAmor”, de Isabella Szabor Machado Mustafé e Jordana Albino Oliveira; e “Publicidade no Instagram: humanização e memória afetiva”, de Lucilene dos Santos Gonzales e Tatiana Cristina Molini. A segunda parte trata de temas relacionados à criação publicitária e às tecnologias digitais no âmbito das agências publicitárias. São três capítulos: “Um olhar sobre a práxis criativa das agências de publicidade digital contemporâneas”, de Maria Cristina Dias Sumário <<<<< 14 Alves; “Insights sobre a relação entre criatividade, eficiência da comunicação, tecnologia e dados no mercado de agências publicitárias goianienses”, de Felipe Fulquim, Letícia Segurado Côrtes, Marina Roriz e Yuri de Oliveira Buratto; e “O Sistema de Setas e o Plano Comparativo: o uso das metáforas como técnica para a criação publicitária”, de Janaína Vieira de Paula Jordão. A terceira parte trabalha a cultura digital e a indústria do imaginário, abordando temas sobre cinema, audiovisual e literatura. São quatro capítulos: “Cruella: as variações do mito do duplo na história de vida da personagem que escolheu ser uma anti-heroína”, de Thalita Sasse Fróes e Ana Cecília Faloni Borges; “A autorrepresentação do indígena no audiovisual: uma análise fílmica do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro”, de Nágila da Silva Lopes e Rafael Franco Coelho; “Correlação de fatores na composição de trailers de franquias cinematográficas”, de Jaqueline Fischer e Rafael José Bona; e “O Fim da Eternidade, de Asimov, a Cultura e o Tempo na Publicidade”, de Dora Carvalho. Por fim, a quarta parte aborda a estética e a cultura da convergência, discutindo narrativas, conectividades e corporeidades. Também há quatro capítulos: “Kitsch, propaganda política e a estética do bolsonarismo”, de Rodrigo Cássio Oliveira; “Comunidade kpopper e a popularização do gênero K-pop no Brasil: como as armys se conectam com o grupo BTS”, de Wadna da Silva Coelho, Jessica Caetano Santos e Lara Lima Satler; “Publicidade e múltiplas possibilidades midiáticas: reflexões sobre o diálogo das mídias na cultura da convergência”, de Ana Paula Mendes Pereira de Vilhena; e “#HUGOYourWay - Corpos Vitrínicos e Ciborgologia em uma campanha da marca Hugo Boss”, de Hélio Ricardo Rainho. Sumário <<<<< 15 Este dossiê é o sétimo volume da coleção Publicidade Sem Fronteiras. Os volumes são organizados por professores(as) do curso de Comunicação Social, habilitação em Publicidade e Propaganda, da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). A seleção dos artigos ocorre a partir de chamada pública. A coleção vem sendo publicada regularmente desde 2012, sempre apresentando uma coletânea de textos referentes à produção docente do curso de Publicidade e Propaganda da UFG e de outras instituições, reunindo autores(as) de diversos estados brasileiros e de outros países. A proposta é refletir e analisar a prática da publicidade e do marketing na contemporaneidade. Vale ressaltar que, hoje, é improcedente pensar a prática dissociada da teoria, e vice-versa. Pela mesma lógica, é inviável e impertinente considerar a publicidade como uma área isolada. Ao contrário, há fértil diálogo com outras áreas do conhecimento, fazendo tensionar produtivamente temas concernentes à cidadania, à tecnologia, à cultura, à arte, ao cinema, à literatura, aos direitos humanos, ao marketing, às narrativas visuais, à gestão etc. Em outros termos: é impensável a postura acadêmico-científica fragmentária e sectária. Portanto, a nossa vocação é produzir, criar, refletir e analisar em perspectiva inter e transdisciplinar – pressuposto editorial da presente obra. Sumário <<<<< 16 PARTE 1: PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO, PUBLICIDADE CONECTIVA E MARKETING DIGITAL Publicidade conectiva: perspectivas conceituais1 Rodrigo Stéfani Correa2 Janderle Rabaiolli3 Introdução As atividades de pesquisa que originaram este texto desempenharam importante papel durante a constituição de nosso grupo de pesquisa e na organização interna de suas ações. No início dos trabalhos, em meados de 2020, em plena pandemia de Covid-19, com a intensificação das atividades de investigação e a contribuição acadêmica pela inserção dos estudantes de iniciação científica, iniciamos observações sobre o desenvolvimento tecnológico e a complexidade dos processos publicitários que permeiam o fazer técnico-profissional e a inserção de novos conhecimentos profissionais, em conexão com diferentes setores da sociedade. A partir de atividades de coleta sistemática de dados, a expectativa foi gerar aprofundamento teórico no campo publicitário em face a novas práticas profissionais e discussões em curso. 1 O presente texto foi apresentado oralmente, com publicação de resumo, no XI Propesq PP Light Plus – Encontro de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda, realizado no CRP/ECA/USPD, de 16 a 18/06/2021. 2 Professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rodrigo.correa@ufsm.br 3 Professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: janderle.rabaiolli@ufsm.br A partir disso, apresentamos reflexões sobre os horizontes que originaram o grupo e as pesquisas dele derivadas. De maneira pontual, neste texto, introduzimos a noção de publicidade conectiva, conceito que aglutina transformações recentes na publicidade, relacionadas com recursos tecnológicos, especialmente digitais e inteligentes, elementos que denotam incorporação de saberes, serviços profissionais e desenvolvimento criativo tensionados para prototipar modelos de negócios apoiados em recursos tecnológicos alinhados à contemporaneidade, bem como reflexões que cercam o assunto e produzem conhecimento científico. Partimos da proximidade entre publicidade e tecnologia, que afeta as instâncias de produção e circulação no campo publicitário. As mudanças, sob a perspectiva inicial da convergência midiática, inteligência coletiva e cultura participativa, nos levam a explorar conhecimentos inerentes às tecnologias conectadas às práticas publicitárias, nos níveis criativo, estratégico e de gestão. Em um contexto complexo e de imbricações entre linguagens e tecno-suportes, parece existir uma dialética marcária que aproxima: consumo e entretenimento; tecnologias inteligentes (inteligência artificial, algoritmos, aprendizado de máquina etc.) com sistemas de monitoramento de performance de marca; estratégias orientadas por dados relativos a comportamentos; dentre outras nuances que envolvem tecnologias contemporâneas e o campo publicitário. Diante disso, avaliamos ser importante a observação a partir do campo publicitário, por lentes próprias e específicas, relativas a conceitos, metodologias, competências e reflexões. Diante do exposto, buscamos, sobretudo, encontrar evidências que possam ajudar a constituir uma espécie de consciência conectada, algo que possibilite compreender não apenas as dinâmicas de mercado configuradas pela evolução tecnológica Sumário <<<<< 19 e pelo protagonismo da economia digital, como também de que maneira as diferentes formas de fazer publicidade requalificam suas disciplinas, incorporando competências imprescindíveis para pensarmos a ciência da comunicação e novos modelos que envolvem a criatividade e que possam servir à sociedade, com processos mais éticos e políticas informacionais transparentes. A estrutura do texto a seguir parte do contexto que envolve o campo da publicidade e propaganda para refletir e apresentar a noção de publicidade conectiva, as bases etimológicas do termo para, por fim, apresentar perspectivas que envolvem o trabalho do grupo homônimo ao termo e possíveis contribuições com estudos inerentes aos temas referidos. Contexto de reflexão Há muito tempo, publicidade e tecnologia mantém uma relação íntima de contato, quer seja pela proximidade atribuída pela popularidade da internet com as relações comerciais, como aconteceu no Brasil em meados de 1990, ou pelo aprimoramento recente dos recursos programáticos desenhados para as redes sociais digitais. Como enfatiza Dizard Jr. (1998), em sua obra A Nova Mídia, existe uma abrupta adequação dos meios com as novas tecnologias. O autor destaca, especialmente, que a inovação mais importante naquele momento [final do século XX] era em relação à distribuição de produtos de voz, vídeo e impressos num canal comum, muitas vezes em formatos interativos bidirecionais, delegando aos consumidores maior controle sobre quais serviços recebem, quando obtê-los e sob que forma, contrariando a lógica das mídias de massa tradicionais, como a televisão e o jornal. Em perspectiva, o consumidor e suas práticas de consumo alteraram o modo como as novas mídias configuram seus espaços Sumário <<<<< 20 de interação, requalificando outras práticas em torno de novos hábitos, o que origina a ideia do prosumer, trabalhada pelo escritor Alvin Toffler (1980) em seu livro A Terceira Onda. O termo relaciona-se ao indivíduo em nova condição social, que deixa de ter um papel passivo, de receptor da informação, interagindo e controlando suas ações em níveis mais elevados de experiência com os meios, ganhando relativa autonomia para cooperar com conteúdo próprio e, aos poucos, inserido na programação de mídias, em processos de cocriação e de outros modelos vigentes que podem ser revisitados no contexto atual em função de uma comunicação dialógica, que circula em tempo real e possui uma relação complexa de autoria. No momento em que a internet coabita o mundo da publicidade, se expandindo a partir de websites exclusivos para o comércio de bens e serviços, a exemplo das empresas como HotWired, Mercury Center e Internet Shopping Network, emergem distintos modelos comerciais de venda de anúncios publicitários, guiados por nós de interseção midiática ou links de páginas arquitetadas para o comércio, protagonizadas por empresas de grande porte, como AT&T, IBM, Microsoft, Amazon, entre outras. Os novos fluxos comunicacionais midiáticos e sua arquitetura de tráfego corroboraram para um processo de imersão das grandes marcas, vislumbradas por uma nova perspectiva de visibilidade e de possibilidades mercadológicas que deram início a uma nova era de formatos publicitários e, como sugere Pinho (1999), inaugurando o mais novo ecossistema midiático, denominado como ciberpublicidade. Desde então, podemos observar a ampliação de estudos e reflexões de ordem científica em torno desse assunto e que tem demarcado, intensamente, uma nova lógica de pensar, planejar Sumário <<<<< 21 e projetar publicidade, como uma espécie de amálgama de configuração midiática, aglutinando novos modelos criativos na elaboração de produtos publicitários e promovendo um novo sentido para o consumo. Nesse marco histórico, as agências publicitárias criam departamentos específicos de mídia digital, com o propósito de integrar estratégias do mundo on-line e off-line, uma percepção dualista que separa componentes da operação de espaços publicitários, na expectativa de compreender esse diálogo com a tecnologia. Design de interface, bancos de dados, sistemas de informações e janelas de anúncios programados por códigos de computação não apenas ressignificam os processos midiáticos, como também redefinem novos padrões de comportamento para o consumo. Em meados do ano 2000, Pierre Lévy já promovia reflexões importantes acerca do impacto das tecnologias sobre a construção da inteligência coletiva e das formas de comportamento social pela lógica de uma sociedade (cibercultura) condicionada pela técnica e por novos dispositivos de acesso à informação. O autor enumera pontos importantes como resultados de uma relação biunívoca entre sociedade e tecnologia, onde a primeira se constitui historicamente pela segunda, formando o ciberespaço como dimensão mediadora e essencial da inteligência coletiva e de novas redes de significação (Lévy, 2009). Não se opondo ao campo científico, o mercado da propaganda aumenta suas relações de aproximação com as tecnologias, na mesma medida que os smartphones imprimem uma atmosfera de ascensão do mundo digital para o senso comum, sugerindo um contato interacional profundo com as novas plataformas de acesso a conteúdo e, também, diminuindo as distâncias entre marcas e consumidores. As mídias integradas ao aparelho telefô- Sumário <<<<< 22 nico parecem potencializar a experiência do usuário com novas possibilidades de consumo (comunicação e interação), em que empresas como Facebook e Google adentram por uma sistemática de operação que, a partir de interfaces multimídia de produção coletiva, integram e convergem universos aparentemente tão díspares entre tecnologia e publicidade. As marcas precisaram se tornar relevantes no contexto em que o consumidor se torna autônomo. As empresas de comunicação publicitária, das quais as agências de publicidade são o maior expoente, também buscaram novas formas de interligar consumo com entretenimento. Novos modelos de remuneração pela conquista da audiência foram inseridos nesse contexto, proporcionando outros sentidos para a relação comercial entre agências e anunciantes, condições que evidenciam a ascensão da tecnologia também como novo operador das dinâmicas na atividade. Compreendendo um pouco mais sobre as aproximações do tecno com o público, entende-se que a dialética marcária desta simbiose define uma espécie de força de atração inerente, quando dois corpos possuem carga de sinais contrários e polos difusos, mas que ainda se conectam formando novos contornos, uma espécie de fisiologia que se materializa na cultura do consumo e se expande para as lógicas de produção de sentido. O fenômeno, como explicam Trindade e Rodrigues (2019), é parte das novas relações de midiatização: Se pensarmos as questões de participação, engajamento e modos de circulação, para além das estruturas, podemos avaliar pelas midiatizações as questões dos gradientes do tipo de participação e colaboração com ações de marcas, observando e analisando as estratégias e táticas, mas voltando Sumário <<<<< 23 por meio das mediações culturais a um processo em que a lógica mídia/marca constitui ou participa da moldagem das realidades e de seus sujeitos (Trindade; Rodrigues, 2019, p. 11). Com isso, a publicidade, em suas práticas de mercado e nos seus pressupostos teóricos, encontra no consumo o resultado de novos sentidos, expressos pelas práticas de produção e circulação da publicidade, em que se altera, sobretudo, a forma de criar conteúdo e a maneira como pensa o consumidor midiatizado. Na primeira década dos anos 2000, tornou-se nítida a intensidade com que aconteciam os relacionamentos no mundo do consumo com a tecnologia. Publicidade algorítmica e inteligência artificial, aos poucos, iam se inserindo nas práticas publicitárias, e, por mais que essa relação pareça complexa, na primeira década do século XXI tornou-se inegável a existência da mediação cultural por onde transpassa a tecnologia, reconfigurando a lógica de funcionamento dos novos canais de audiências. As mídias sociais digitais deram ar, corpo e forma para uma nova concepção de espaço interacional e, com a inserção de codificações computacionais, redes complexas de distribuição da informação e modos próprios de operação, contribuem para um novo habitat publicitário, ressignificando o expediente do trabalho nas empresas de propaganda e, por que não, no ensino em publicidade. Não é por coincidência que Henry Jenkins (2009) demarca essa colisão de episódios como um período profundo e prolongado de transição de mídias, que proporcionou mudanças em todos os níveis – econômico, social, cultural e político –, redefinindo o espaço das realidades e de seus sujeitos, como assinalado anteriormente. Essa nova realidade, muito provavelmente, está fundamentada também nas proposições do autor, a partir de Sumário <<<<< 24 três conceitos básicos: inteligência coletiva, cultura participativa e convergência midiática. Inteligência coletiva refere-se à nova forma de consumo, que se tornou um processo conjunto ou compartilhado e pode ser considerada uma nova fonte de poder. Cultura participativa é compreendida pela ideia do prosumer, quando o indivíduo deixa seu status de passividade diante das mídias e passa a adotar um comportamento diferente, colaborativo e até autoral, tornando-se catalizador de sua própria audiência. Já a convergência midiática relaciona-se ao cruzamento de mídias alternativas e de massa, que envolve múltiplos suportes e que impacta, sobretudo, na qualificação de novos espaços, que atribuem um sentido maior para as expressões de marcas e na produção criativa da publicidade. Conceituação do termo Neste contexto, cunhamos a noção de publicidade conectiva, conceito atribuído ao nosso grupo de pesquisa e que tem no seu significado a incorporação de conhecimentos adquiridos com as tecnologias, especialmente digitais e inteligentes, e que se juntam ou se conectam com as atividades publicitárias, em todos os níveis de operação: criativo, estratégico e de gestão. Inicialmente, apresentamos as origens etimológicas a partir de Derrick de Kerckhove (1999), que propõe a noção de inteligência conectiva – termo que parte da noção de inteligência coletiva, de Pierre Lévy –, uma inteligência como compartilhamento, típica da era dos meios que superam a unidirecionalidade, resultante de três grandes linhas de transformação: interatividade, hipertextualidade e conectividade. Tais transformações acontecem ao mesmo tempo e de forma interdependente. Sumário <<<<< 25 Minha esperança de nos reunirmos sob a bandeira da conectividade é colocar a transformação completa em perspectiva: a conectividade não é apenas o princípio orientador, mas parece ser o objetivo inerente do longo processo de auto-organização. Como explicamos a complementaridade das tendências em inovação, pesquisa e desenvolvimento, manufatura, marketing e mídia, organização do trabalho e comportamento governamental? (Kerckhove, 1999, p. 175, tradução nossa).4 Complementando a perspectiva, para o autor, conectividade “é a tendência de unir entidades separadas e sem conexões prévias por meio de um vínculo ou relacionamento” (Kerckhove, 1999, p. 176, tradução nossa).5 A internet colabora, significativamente, com essa tendência, facilitando a conexão de partes em um sistema integrado, no âmbito social tecnológico, em uma aceleração de sinergia do conhecimento, agora descentralizado, pela dinâmica que congrega indivíduos a indivíduos e, ao mesmo tempo, “amplifica a inteligência individual através das conexões, criadas e geridas por cada pessoa” (Rey, 2015). Em entrevista a Magalhães (2018), Kerckhove reitera que a noção de inteligência conectiva se relaciona à inteligência das conexões, sendo diversa, ampliada, compartilhada e hipertextual, típica da internet e dos algoritmos. Trata-se da mesma inteligência existente na realidade, mas classificada de maneira diferente e que tem como protagonista o smartphone, elemento que armazena informações pessoais e permite compartilhamento constante. 4 “Mi esperanza al reunirlos bajo al estandarte da la ‘conectividad’, es situar la transformación completa em perspectiva: la conectividade no sólo es el princípio que los rige sino que aparenta ser la meta inherente al largo proceso de la autoorganización. ¿Cómo explicamos sino la complementaridade de tendencias em innovación, búsqueda y desarollo, manufactura, marketing y medua, organización del trabajo, y comportamento gubernamental?” (Kerckhove, 1999, p. 175). 5 “Es la tendencia a juntar entidades separadas y sin conexiones previas mediante un vínculo o una relación” (Kerckhove, 1999, p. 176). Sumário <<<<< 26 Transformações recentes do campo publicitário nos fazem pensar na noção de conectividade como adequada à publicidade pela proximidade com campos díspares, que agora colaboram de maneira mais intensa com o campo em discussão e ganham relevância, especialmente vinculados a tecnologias e em uma confluência entre espaço físico e ambiente web. Nesse sentido, as conexões com outros campos, corroborando com Rey (2015), servem para amplificar o campo publicitário, que, por sua vez, é parte de um todo social que pode se desenvolver a partir das contribuições individuais (de campos distintos). Não há, contudo, como ignorar a possibilidade de riscos na conectividade, uma vez que artefatos tecnológicos, como os algoritmos, passam a guiar comportamentos, o que também coaduna com possibilidades dos estudos, especificamente relacionados à ética publicitária. Retomando a discussão de abertura do tópico, pelas lógicas criativas, a publicidade conectiva soma-se ao que Jenkins (2014) preconizou, em sua obra Cultura da Conexão, ao clamar pela necessidade de entendermos a produção e a circulação do conteúdo e as formas com que se espalham. Para o autor, esses aspectos são relevantes porque afetam a maneira com que os públicos interagem com a informação e porque isso implica em novas estratégias de circulação na mídia. Em seus textos, chama atenção para a rede mundial de computadores e sua relevância no contexto atual, tornando-se um campo complexo e desafiador para as práticas criativas de conteúdo publicitário, seja no planejamento da sua circulação ou nos processos criativos que se somam à necessidade de engajamento e conquista da audiência. Na amplitude das questões estratégicas, nos parece interessante investigar a experiência do usuário de mídia com essas novas plataformas de conteúdo, em face de relacionamentos marcados Sumário <<<<< 27 por humanização, transparência e individualização. Enxergar esses desdobramentos consiste em entender os componentes estratégicos a partir de incrementos tecnológicos que possibilitam atingir maior alcance pelos usuários das tecnologias, na perspectiva de promover maior atração e aderência em face de uma verdadeira contribuição com a qualidade de vida das pessoas e com a economia de recursos (tempo, trabalho, finanças). Por fim, a gestão das práticas publicitárias está imbricada nas necessidades da indústria de mídia, sendo perpassada pela ordem tecnológica, da aquisição de insumos e contratação de serviços ligados diretamente ao desenvolvimento de novos sistemas computacionais e dispositivos midiáticos. Como assinala Jenkins (2009, p. 62-63), A circulação de conteúdo de mídia dentro da cultura participativa pode servir a uma variedade de interesses, alguns deles culturais (como promover um dos sexos ou um artista), outros pessoais (como fortalecer os laços sociais entre amigos), ou políticos (como criticar a construção do gênero e da sexualidade dentro da mídia de massa) e econômicos (como os que servem às necessidades imediatas de indivíduos comuns, assim como aqueles que atendem às necessidades das indústrias de mídia). Não distante das questões tratadas por Jenkins, temos que mencionar ainda o avanço da publicidade para outros temas conectados à tecnologia, como a utilização da inteligência artificial (IA) no contexto disruptivo das estratégias publicitárias, concomitantes aos avanços das máquinas e algoritmos inteligentes que redimensionam o campo do trabalho, em alguns casos superando os humanos. Podemos falar, inclusive, dos sistemas de geolocalização, filtros de buscas, chatbots, algoritmos de relevância e reconhecimento de Sumário <<<<< 28 voz pelo uso do telefone celular, além de outros mecanismos que interferem diretamente na mediação e no nível de experiência do usuário com a máquina. Para Kaufman e Santaella (2020), ainda que esses recursos estejam sob a tutela quase que exclusiva dos profissionais de ciências da computação, é necessário enfrentá-los para que não fiquemos à mercê de previsões distópicas ou, então, para alertamos a sociedade sobre a importância de uma tomada de consciência acerca dos desafios envolvidos nos benefícios oriundos da IA e como devemos enfrentá-los. Na segunda década do século XXI, a convergência de diversas tecnologias − internet das coisas (IoT), blockchain, plataformas digitais, impressão 3D, robótica avançada, novos materiais, manipulação genética − permeadas pela IA, tem promovido resultados superiores a quaisquer previsões precedentes (ainda que aquém da ficção científica). As máquinas e os sistemas inteligentes estão executando tarefas que até recentemente eram prerrogativas dos humanos, em alguns casos com resultados mais rápidos e mais assertivos. Elas, porém, ainda estão restritas a prever cenários com base em grandes conjuntos de dados e a executar tarefas específicas, sob a supervisão direta dos especialistas em ciência da computação (Kaufman; Santaella, 2020, p. 3). Os vínculos que entrelaçam publicidade e tecnologia tornaram-se mais que inevitáveis, necessários e de suma importância para que não fiquemos reféns de uma abordagem dominante no campo da computação, marginalizando a visão publicitária como se fosse restrita à criação e circulação de peças publicitárias. O aprendizado pós-moderno nos revela que precisamos ampliar, sobretudo, nossa compreensão sobre o Sumário <<<<< 29 que é publicidade e seus alastramentos conceituais em função do atual crescimento do uso de dados, dos recursos de programação algorítmica e do desenho de sistemas de informação baseados em métricas/mecanismos de mensuração de resultados, que merecem uma ampla atualização. Diante deste contexto, inserimos o conceito de publicidade conectiva, de antemão, respeitando e absorvendo outros conceitos que foram adequadamente inseridos neste percurso evolutivo da publicidade e suas pesquisas. Quando compreendemos a publicidade enquanto objeto de análise, percebemos que sua estrutura se comporta como um elemento catalizador e responsável pela fusão de competências distintas, diferente da sua função inicial, como sugere Rogério Covaleski. Nasce daí o conceito de publicidade híbrida (Covaleski, 2010), que indica uma nova estrutura, transformada, que tem a possibilidade de promover uma relação mais abrangente a partir de elementos que se tornam únicos (transição e fusão). Para o autor, a publicidade híbrida assume algumas características especiais, entre elas: persuasão, entretenimento, interatividade e compartilhamento. Ressaltamos que a publicidade quando posta em diferentes dimensões nos permite explorá-la de forma mais significativa e plural, a partir de fatores que inserem novos olhares também pela maneira como discutimos e analisamos esse conjunto da obra. Na visão de Lipovetsky (2015), quando o autor expõe um tipo de sociedade classificada como hipermoderna, ressalta-se a ideia do declínio de grandes ideologias e utopias revolucionárias que surgiram desde o século XVII. Apresentando uma visão vanguardista dos desdobramentos publicitários, Clotilde Perez (2007) exalta o consumo, a moda, o bem-estar, o desejo e a vida privada Sumário <<<<< 30 como elementos intrínsecos ao que projeta Lipovetsky, trazendo, também, a ideia da hiperpublicidade (Perez, 2007), remontando às transformações do meio publicitário sobre a visão de novos comportamentos de consumo, o que possibilita a qualificação de nossa compreensão sobre as produções publicitárias. Dado o seu alcance simbólico, a hiperpublicidade torna possível vislumbrar a inserção de novas práticas profissionais por uma perspectiva macrocultural, em que percebemos o surgimento de mídias cada vez mais diversificadas, bem como o notório avanço da tecnologia e suas interfaces com o movimento do consumo cultural materializado, como a própria autora se refere quando discute a estética do consumo a partir do sistema publicitário (Perez, 2018). Para pensarmos na publicidade conectiva devemos considerar as noções anteriores que definiram a ideia de publicidade expandida e seu conjunto de textos definidos pelas autoras que operam o Observatório de Publicidade Expandida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que qualificam a publicidade contemporânea constituída por um novo tecido estrutural costurado pelas dinâmicas do advergaming, realidade aumentada, realidade alternada, native advertising, product placement, marketing ao vivo, marketing de influência e produção de conteúdo. A forma como a publicidade se conecta com diversas modalidades emergentes da comunicação mercadológica nos faz repensar a proposta de expansão para outras relações difusas e mais complexas onde a tecnologia adquire certo protagonismo. Em trabalho anterior (Burrowes; Rett, 2016) adaptamos essa proposta do campo expandido para redefinir os novos modos de comunicação de marcas como publicidade expandida. Assim como a escultura se apresentava a partir de certo momento pela Sumário <<<<< 31 negação – não-paisagem/não-edificado -, a publicidade vem se definindo negativamente como não-notícia/não-entretenimento. Mas as suas novas formas e abordagens exigem que saiamos da pura oposição, para compreendê-la em sua expansão, ou seja, em sua complexidade, acolhendo formatos indefinidos, intermediários, híbridos, com elementos tanto de notícia, quanto de entretenimento, sem por isso perder o caráter persuasivo (Burrowes; Rett; Machado, 2017, p. 8). Outra noção a ser considerada é a de publicidade inteligente (LI, 2019), definida como uma comunicação de marca centrada no consumidor, orientada por dados e mediada por algoritmos. Nessa concepção, segundo o autor, devem ser incluídos usos mais amplos da publicidade inteligente na prática, como o processo publicitário, a publicidade criativa ao consumidor e as recomendações patrocinadas em plataformas de varejo. Além disso, devem ser desenvolvidos mais estudos para uma teoria da publicidade inteligente, que penetrem em mais setores e práticas da indústria. A publicidade inteligente é vista como uma nova fase da publicidade digital, a terceira, antecedida pela publicidade interativa e programática, respectivamente. Na distinção em relação à publicidade convencional, a publicidade digital era, inicialmente, referida como publicidade interativa, justamente por sua natureza de mesma denominação. Na segunda fase, a publicidade programática acrescenta à interatividade o atributo da automação. Na terceira fase – a publicidade inteligente –, preservam-se os dois atributos das fases iniciais, com o acréscimo de novos atributos criativos à publicidade digital (LI, 2019), como: extração de dados de usuários conectados em plataformas e, com uso de inteligência artificial (IA), respostas às solicitações (voz ou texto) Sumário <<<<< 32 do usuário; avaliação das preferências de usuários a partir das interações com o conteúdo e posterior oferecimento de conteúdo personalizado; e rastreio de dados individuais sobre preferências de compras, o que permite personalização de ofertas de promoção aos usuários. Os estudos sobre inteligência artificial e publicidade, apresentados na Conferência Internacional sobre Ciência da Inteligência e o Desenvolvimento de Publicidade, realizada em 2018 em Xangai (China), apontam características ou atributos da publicidade inteligente a partir da análise de aplicativos baseados em IA: anúncios inteligentes personalizados a partir das necessidades e desejos do usuário; antecipar com precisão necessidades e desejos em diferentes contextos, com recomendações específicas; confiança como base do uso de dados, com exposição voluntária dos anúncios ao usuário; anúncios inteligentes residentes em aplicativos ou assistentes de voz, em vez de aparecerem, aleatoriamente, na tela do usuário, com menor intrusão da publicidade; quanto mais interações, maior o volume de dados para otimizar e atender o usuário, com vistas a um relacionamento da marca em longo prazo. O que nos instiga na perspectiva da publicidade conectiva, além das ponderações já trazidas por Li (2019), também são as lacunas de pesquisa relacionadas com a publicidade, identificadas em seus estudos, como: fatores que impulsionam a adoção de IA; impacto da IA na indústria publicitária; novos modelos com IA para branding e vendas; maneiras de previsão de necessidades e desejos do indivíduo com IA; lógicas da IA na criação de mensagens de marca; privacidade de dados; entre outros. Diante da amplificação das relações publicitárias com o mundo do consumo, vista sob as diferentes perspectivas descritas até o momento, e do incremento tecnológico, tais transformações Sumário <<<<< 33 notoriamente nos revelam um conjunto de desafios e oportunidades que se colocam diante de nossas pesquisas, no sentido de aprofundar e mapear como tais relações demarcam as práticas publicitárias e a inserção dos profissionais em uma nova economia hiperconectada. Em termos gerais, os novos contornos da publicidade contemporânea e suas reviravoltas impulsionadas pela tecnologia nos afetam em inúmeras direções, provocando o início desta investigação direcionada para a urgência de qualificarmos os principais movimentos transitórios da publicidade e a forma como são reportados nas pesquisas adjacentes ao termo publicidade conectiva, assim como entender os fatos narrados pelas mídias especializadas, na qualidade dos desafios e avanços do mercado publicitários, não apenas como fatos transitórios, mas como uma espécie de fusão e dinâmica de sentido da profissão. Perspectivas que envolvem a noção de publicidade conectiva A partir da conexão entre desenvolvimento tecnológico e práticas publicitárias, vislumbramos perspectivas inerentes à noção de publicidade conectiva, que envolvem os eixos determinantes no fazer publicitário – criativo, estratégico e de gestão – e relevantes para compreender a conjunção de fatores que, inegavelmente, nos conduzem para novos olhares, sobretudo pela influência de fenômenos tecnológicos, políticos, econômicos e estéticos, e permite a produção do saber científico na área. Cabe pontuar a abrangência das possibilidades de estudos e desenvolvimento ao universo phygital – integração dos mundos físico e digital –, permeado pela tecnologia, que pode nos fornecer alcance ampliado de um universo muito mais complexo e Sumário <<<<< 34 fluido, que se desenvolve a partir da difusão das ações tecnológicas e suas incorporações nas práticas de expediente profissional do publicitário e de tantas outras profissões inerentes. De certa forma, instigaram o início das nossas investigações, conforme delineado neste texto: a proliferação de softwares; a multiplicidade de plataformas; as incorporações de lógicas de operação baseadas em sistemas informacionais (big data); outras (tantas) relações que nos permitem prever reações e comportamentos sociais, imbricadas na fabricação industrial, e que, por sua vez, interferem nos métodos de concepção e de produção dos bens culturais. É da convergência dessas possibilidades que emerge o grupo de pesquisa intitulado Publicidade Conectiva, que se coloca como espaço privilegiado para observação desses fenômenos em estudos da área e no ensino de publicidade. As novas perspectivas do trabalho, permeadas pela ideia da inovação, da escassez do tempo e das necessidades no aprimoramento dos fluxos produtivos, nos fazem acreditar que existe também a renovação no conjunto de habilidades e competências do profissional publicitário, a partir do que se observam: metodologias inovadoras na gestão de projetos; profissionais autônomos (freelancers) que se conectam a outras cadeias produtivas (desenvolvedores de softwares); novos modelos e métricas voltados para mensuração de resultados; interpretação algorítmica; e gestão de tráfego. Apontamos algumas, entre inúmeras outras situações de mercado que, diante de uma nova lógica de circulação industrial que se infiltra e se intensifica em nosso cotidiano, merecem ser investigadas com maior afinco. A partir dos três pilares defendidos por Kerckhove (1999) – interatividade, hipertextualidade e conectividade –, em uma economia conectada, objetivamos compreender e produzir conhecimento Sumário <<<<< 35 acerca das dimensões criativa, estratégica e de gestão da publicidade, permeados pela lógica da inovação, vislumbrando capacitar futuros profissionais, agora estudantes do curso de Publicidade e Propaganda, para atuar na vanguarda e agregar valor à própria área como campo do saber. Por fim, em síntese, o que nos instiga é compreender como essas novas tensões tecnológicas amplificam o universo de atuação dos profissionais da comunicação publicitária e nos colocam diante da necessidade de mapear e discutir a sociedade do consumo, orientada por dados e mediada por algoritmos. Como área integrante da indústria criativa, pretende-se observar como a publicidade se desenvolve a partir das novas inteligências inseridas nas práticas produtivas e que são recomendadas nos processos impulsionadores da economia, em todos os seus setores: varejo, indústria, comércio e produção cultural. As perspectivas de pesquisa seguem o pressuposto de que a concepção metodológica deve ser rigorosa. Nesse contexto, nos trabalhos iniciais de pesquisa, adotamos duas perspectivas metodológicas: revisão sistemática de literatura (RSL) ou revisão sistemática (RS); e estudos de casos múltiplos. A Revisão Sistemática da Literatura (RSL) é considerada “uma técnica para identificar, avaliar e interpretar estudos ou pesquisas disponíveis e relevantes para uma questão de pesquisa específica, área temática ou fenômeno de interesse” (Maretti; Afonso Júnior; Costa, 2016, p. 85). Já o estudo de caso é uma investigação empírica que analisa um fenômeno contemporâneo em seu contexto, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente definidos (Yin, 2001). A conjunção contribui para imersão e reflexão no campo de estudo, tanto em pesquisas científicas quanto em práticas de mercado disponíveis em publicações especializadas na área. Ambas Sumário <<<<< 36 as perspectivas visam responder a um questionamento principal: como a publicidade se conecta com os temas tecnologia e inovação? As práticas do grupo, mesmo em uma fase considerada inicial, ancoram-se à indústria publicitária (como campo de observação para o desenvolvimento de novos processos e competências) e ao campo científico (princípios metodológicos, estado da arte) para compreensão das dinâmicas de interseção entre universidade e mercado, que, em nossa visão, não pode ser dissociada da compreensão das lógicas de inovação e transformação do ambiente publicitário. Esse arcabouço teórico-metodológico enfatiza a importância da existência de fortes interações entre as diversas pesquisas na área da publicidade e o comportamento das empresas de comunicação no desenvolvimento de novos conhecimentos científicos e tecnológicos, ferramentas que proporcionam um processo inovativo e de desenvolvimento de novos saberes. As contribuições preliminares dos nossos estudos, após uma etapa de coleta sistemática, agora em fase de análise de dados, envolvem constatações relativas a como a área da comunicação publicitária se movimenta na ótica da evolução tecnológica e, da mesma forma, como a literatura científica e seus pesquisadores se debruçam sobre o tema. Uma das principais evidências está na inclinação tecnológica dos serviços de empresas de mídia, que visam aprimorar a performance de coleta e interpretação de dados, com processos automatizados e ágeis que visam atender demandas em uma perspectiva social hipercompetitiva e que exige tomadas de decisão em tempo real. Ao mesmo tempo, um contexto perigoso também permeia o potencial tecnológico explorado, predominantemente, para direcionar oferta e monitorar, indiscriminadamente, a rotina das pessoas, quase como um controle absoluto das práticas pessoais Sumário <<<<< 37 e interativas. Fica evidente a lacuna de estudos relativos à ética quando relacionamos tecnologia, consumo e publicidade. Inquieta-nos e causa perplexidade, principalmente, quando observamos o avanço tecnológico diante de uma sociedade que se comporta de maneira egocêntrica e individualizada. Qual será o subproduto dessas evoluções tecnológicas? Nesse sentido, nos questionamos se, como sociedade, queremos máquinas interpretando ubiquamente conversas, interações, expressões de interesse; no sentido mais íntimo, adaptando nossas emoções para direcionar bens e serviços na perspectiva desenfreada do consumo. Referências BURROWES, P. C.; RETT, L.; MACHADO, M. Para ler a publicidade expandida: em favor da literacia midiática para análise dos discursos das marcas. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo-SP, 06 a 09 de junho de 2017. Link: https://www.docdroid.net/M5LvQ33/compos-machadoburrowes-rett-pdf#page=8 Acesso em: 9 dez. 2020. COVALESKI, R. Publicidade híbrida. Curitiba: Maxi Editora, 2010. KERCKHOVE, D. Inteligencias em conexion. Hacia uma sociedad de la web. Barcelona: Gedisa, 1999. DIZARD, W. P. 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Não se trata de apresentar um leque longo e exaustivo de estratégias, uma vez que existem numerosos caminhos e desafios a seguir, de modo que resultaria infrutífera qualquer pretensão de exaurir o tema. A intenção, pois, é selecionar estratégias emergentes que impactam profundamente a comunicação organizacional, em especial o marketing digital e o mundo publicitário. 1 Doutor pela USP, professor titular e ex-diretor da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). Docente do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM/UFG) e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH/UFG). E-mail: magno@ufg.br Dentre os temas que envolvem estratégias emergentes, abordaremos: anúncios gráficos na internet por meio do Google Ads, examinando formatos e funcionalidades; Publicidade Display, E-mail marketing, site, link patrocinado, banner e rich media; Marketing orientado por dados; Buzz Marketing; Marketing Viral; Landing Page no contexto do marketing 3.0; Marketing de Conteúdo; Inbound Marketing e o funil estratégico de conversão. Destarte, a intenção é discutir táticas, técnicas, aspectos, formatos, linguagens e vantagens diversas, analisando as trilhas adequadas ao planejamento de uma dada campanha; planejamento este que tensiona presença digital, hiperconectividade e inteligência estratégica no contexto da economia de dados. 2. Presença digital e planejamento da comunicação em rede Na Era da Informação, quem não tem presença digital acaba se tornando invisível perante o mundo globalizado. As organizações públicas e privadas que não constroem visibilidade e relevância perdem oportunidades de crescimento e de consolidação, consequentemente, deixam de expandir a quantidade e de aprimorar a qualidade de seus clientes, usuários e consumidores. Portanto, ficam excluídas do mercado e das relações corporativas com os diversos públicos de interesse. Enfim, uma empresa ou instituição que não tenha presença digital é como se não tivesse personalidade – endereço, sede, marca, posicionamento, canais de comunicação e relacionamento. Há, basicamente, três tipos de presença digital (Gabriel; Kiso, 2020): própria, quando há ativos digitais criados pela própria organização; gratuita, quando os ganhos ocorrem de forma orgânica; e paga, quando há investimentos no negócio com anúncios Sumário <<<<< 42 pagos, links patrocinados etc. De qualquer forma, a presença deve estar alinhada com o posicionamento de marca. Ou seja, tem que estar sintonizada com a identidade organizacional e a imagem institucional. E mais: a presença digital deve oferecer a melhor experiência possível entre público e organização/marca. Afinal, de que adiantaria uma empresa atuar em redes sociais, por exemplo, se a experiência do público no acesso digital for ruim ou desagradável? De que adiantaria ter site e blog se o internauta não consegue encontrar o produto ou o serviço que procura, ou se há problemas de usabilidade? Lembrando que usabilidade implica focar no usuário, ou seja, a prioridade é facilitar ao máximo as experiências do internauta diante de interfaces digitais. A presença digital pode se concretizar a partir de diversas possibilidades: perfis em redes sociais digitais (Instagram, Facebook, Twitter, Linkedin, Youtube, TikTok etc.), páginas web (sites, hotsites, portais, blogs), resultados de buscas orgânicas, links patrocinados, banners e anúncios pagos em grandes sites e portais, publicidade display, posts impulsionados, newsletters, games (advergaming), conteúdos de entretenimento (advertainment), aplicativos em dispositivos móveis etc. Não importa o canal, rede ou meio de comunicação, a presença digital pode gerar oportunidades ou ameaças; pode ser positiva ou negativa. Por isso, é preciso avaliar conteúdos, mídias e estratégias a serem utilizados. Por exemplo, empresas B2C (Business to Consumer) podem obter bons frutos no Instagram, enquanto empresas B2B (Business to Business) podem colher resultados mais satisfatórios no Linkedin. São possibilidades a serem examinadas caso a caso, conforme os dados, métricas e fatos que afetam o planejamento estratégico da comunicação digital. Sumário <<<<< 43 Para planejar, é necessário pensar, refletir, escutar, interagir e sintonizar-se com as necessidades, desejos e demandas do consumidor, usuário, internauta. Em seguida, avaliar objetivos, metas, públicos, estratégias, métricas e serviços on-line da organização e seu entorno no mercado e na sociedade. A partir daí, buscar consciência e diferenciação de marca, fomentar intenção de compra, estimular visitas, converter para usos e consumos. O trabalho de planejamento é sempre estratégico, pois pressupõe metas, objetivos, valores, táticas e técnicas operacionais de curto, médio e longo prazo (Lupetti, 2000); e induz a diversas perguntas básicas: Quem sou? Quem são os meus parceiros e concorrentes? Quais os meus públicos de interesse? O que busco? Quais os meus objetivos e metas? O que fazer? Como e quando fazer? Quais os prazos? Quais os orçamentos? Enfim, são questões imprescindíveis para se responder a outras indagações importantes: Quais estratégias? Quais meios de comunicação e redes digitais a serem utilizados? Que conteúdo publicar? Considerando que o mundo globalizado funciona em conectividade on-line, é preciso reconhecer que as tecnologias digitais transformam o cenário contemporâneo em uma verdadeira sociedade em rede (Castells, 1999). A globalização e a hiperconexão vêm reconfigurando, historicamente, o sistema e o funcionamento das mídias digitais, impactando linguagens, ambientes e redes (Martino, 2015). No âmbito das Assessorias de Comunicação Integrada, desenvolver ações articuladas e não fragmentárias requer planejamento na perspectiva comunicacional em rede, procurando orquestrar competências e habilidades que, juntas, proporcionam sinergia e interdisciplinaridade. Isso implica em uma concepção sistêmica em que há uma multiplicidade de pontos, cordas e conexões que Sumário <<<<< 44 atam, desatam e se entrelaçam, dialeticamente. Cada ação que afeta um dos fios ou um dos nós impacta toda a teia. Por isso, é preciso pensar as redes comunicacionais como comunicação organizacional em rede (Medeiros, 2013). 3. Estratégias emergentes em Publicidade e Marketing Digital O termo estratégia vem sendo usado de forma genérica como um conjunto de técnicas adotadas para se alcançar certos resultados. No entanto, é mais do que isso: estratégia implica planejamento, visão e ações integradas, visando alcançar metas e objetivos, notadamente, de longo prazo. Portanto, mais do que técnica aplicada, estratégia é inteligência em ação sustentável. Sendo assim, pensa o todo, e não apenas o fragmento. Trata-se de um processo amplo, abrangente, que busca soluções viáveis, pertinentes e inovadoras para o desenvolvimento de uma gestão racional e eficiente, que perdure e se sustente ao longo do tempo. Por isso, todo planejamento que se preze deve primar pelo raciocínio estratégico, compatibilizando valores, objetivos, técnicas, táticas, políticas, ações, atores, públicos e responsabilidades, e orientando a tomada de decisões (Schultz; Barnes, 2001). Comumente relacionado a operações militares, o termo estratégia, neste sentido, refere-se à arte da guerra e pressupõe ações coordenadas em face dos cenários projetados, visando alcançar a vitória almejada. De acordo com a Enciclopédia Intercom de Comunicação (2010, p. 483), estratégia é um conjunto de ações e decisões integradas que definem um rumo a seguir para se atingir os objetivos esperados, considerando-se os meios adequados para se concretizar tal fim. Sumário <<<<< 45 Segundo Whittington (2002), o conceito de estratégia possui quatro abordagens teóricas fundamentais: 1) a clássica, que é a predominante e concebe métodos racionais de planejamento em perspectiva tradicional; 2) a evolucionária, que se baseia no determinismo da evolução biológica, considerando o tensionamento constante entre a disciplina do mercado e a competitividade do capitalismo selvagem; 3) a processual, que pressupõe a construção gradual e falível das organizações e do mercado, frisando a natureza imperfeita e pragmática da vida humana; e 4) a sistêmica, que considera o sistema global e suas inter-relações dinâmicas entre os fins e os meios, entre os poderes e as culturas, enfim, entre os diversos elementos dos sistemas sociais. O planejamento estratégico deve partir de uma concepção abrangente e sistêmica, que supere a visão tecnicista, pontual e fragmentária da comunicação; é preciso adotar e colocar em prática o conceito de Comunicação Integrada de Marketing, que requer ações sinergéticas e orquestradas (Ogden; Crescitelli, 2008; Pinheiro; Gullo, 2005; Rocha; Trevisan, 2018; Sá et al., 2010). Na publicidade e no marketing, estratégia faz toda a diferença. É preciso agir estrategicamente, sempre. A mera aplicação de técnicas e táticas não é suficiente. É necessário, pois, planejamento estratégico para se lograr êxito em quaisquer empreitadas no contexto da Cultura Digital. Aqui, vamos sintetizar algumas estratégias digitais importantes no exercício profissional da Publicidade e do Marketing. 3.1. Anúncios gráficos na internet por meio do Google Ads Em 2018, o Google AdWords transforma-se em Google Ads, transformando-se na maior plataforma de publicidade da internet, com destaque para anúncios gráficos e links patrocinados. Sumário <<<<< 46 Atualmente, é a principal fonte de receita do Google. Em 2019, a corporação gerou mais de US$ 134 bilhões, representando 70,9% das rendas totais da empresa no mesmo ano. Em 2021, faturou mais de US$ 209,49 bilhões, segundo o site Statista.com. Principal concorrente do Google, o grupo Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp, dentre outras) também tem a sua plataforma de publicidade on-line: a Meta Ads. Ela vem se consolidando como gigante do marketing digital. Em 2019, a Meta Ads conseguiu ampliar em 35% as suas receitas, gerando um retorno de US$ 20,7 bilhões. Em termos de mecanismos de pesquisa, o Google é líder absoluto, com 93,37% de participação no mercado em todo o mundo (Statcounter, 2023). Segundo dados da Statcounter – Global Stats, em segundo lugar figura o Bing (2,81%), seguido pelo Yahoo (1,13%).2 Com liderança isolada, o Google aparece como o grande espaço da publicidade on-line e do marketing digital. Em paralelo ao domínio dos motores de busca, o Google Ads segue liderando no campo dos anúncios gráficos da Internet. Vale destacar os principais benefícios e vantagens dos anúncios gráficos do Google Ads: - Segmentação apurada: os anúncios são exibidos especificamente para pessoas que realizaram alguma busca no Google, utilizando palavras-chave (keywords) ou frases sobre produtos e serviços. Assim, os algoritmos do Google direcionam esses anúncios ao público-alvo de interesse, de forma certeira. A plataforma identifica interesses e exibe anúncios selecionados a pessoas que estejam navegando em websites, usando aplicativos ou mesmo assistindo a vídeos que estejam, direta ou indiretamente, relacionados a produtos e ser2 Statcounter – GlobalStats. Disponível em: https://gs.statcounter.com/search-engine-marketshare. Acesso em: 20 fev. 2023. Sumário <<<<< 47 viços potencialmente desejados. A segmentação pode ocorrer por tópicos e canais. O Google Ads possibilita selecionar algum tópico específico e os anúncios aparecerão em várias páginas sobre esse tema. Com efeito, se o seu interesse é por vinhos e cervejas, os anúncios serão publicados em sites que comercializam esses produtos. Portanto, escolhe-se onde a publicidade será exibida: em mecanismos de pesquisa, sites, portais, blogs, canais do YouTube etc. É possível segmentar por idade, localização geográfica, idioma e espaço de exibição. Também é permitido fazer a programação dos dias e horários preferenciais, bem como a frequência de exibição. Pode-se, por fim, selecionar os dispositivos: computadores desktop, notebooks, tablets e smartphones. - Gestão e controle: o Google Ads permite gerir com autonomia a publicidade on-line e o marketing digital. Com efeito, é possível assumir o controle e avaliação das estratégias adotadas, desde o orçamento até as métricas de retorno. O anunciante tem total controle sobre os valores investidos, podendo decidir o quanto será gasto por mês, por dia e por campanha. A cobrança pode ser feita quando o anúncio receber cliques (CPC); a cada 1000 impressões (CPM); quando for visualizado (CPV); ou quando ocorrer alguma ação ou conversão (CPA). Dessa forma, sabe-se com precisão o retorno sobre o investimento (ROI), contabilizando e avaliando as métricas pertinentes. É possível conhecer, por exemplo, quem clicou em um link ou banner e realizou alguma conversão no site (preenchimento de formulário, solicitação de informação, download de materiais, telefonema, encomenda, compra etc.). Com esses dados, pode-se mapear, identificar e acompanhar o comportamento digital das pessoas, a fim de exibir novos anúncios por meio de remarketing. Sumário <<<<< 48 Para avaliar o ROI, é preciso considerar diversas métricas. E uma das mais importantes é o CTR (Click Through Rate),3 que mede a taxa de cliques em um dado anúncio. O cálculo do CTR é simples: número de vezes que o anúncio foi clicado dividido pela quantidade de visualizações recebidas (impressões). Por exemplo: um link com 100 cliques e 10 mil visualizações tem CTR de 1%. Quanto maior a percentagem, maior é a eficiência da campanha de marketing. Essa métrica tem impacto também no ranqueamento de sites em pesquisas orgânicas, ou seja, uma página web com ótima taxa de cliques será impulsionada organicamente, tendo, por consequência, maior destaque nos motores de busca. - Custo/benefício: a relação custo/benefício do Google Ads é bastante favorável, uma vez que os custos com anúncios on-line são relativamente mais baratos e mais eficientes que em canais e formas tradicionais de publicidade. Ou seja, pode-se pagar menos e ter maior alcance e melhor retorno. - Interatividade: os anúncios gráficos oferecem maiores chances de interatividade, principalmente no formato de vídeo ou rich media. Ao entregar uma experiência digital aprazível, a taxa de cliques e o engajamento aumentam significativamente. Com efeito, obtém-se bons índices de CTA (Call to Action), isto é, o visitante se sente atraído e dá sequência ao processo de ligação e interação com a marca. Isso implica em fortalecimento e consciência de marca. - Visibilidade: com formatos dinâmicos e linguagens impactantes, os anúncios gráficos on-line têm maior visibilidade e impactam sensivelmente a relação entre os consumidores e as marcas. 3 Link: https://rockcontent.com/br/blog/ctr/. Acesso em: 20 fev 2023. Sumário <<<<< 49 - Alcance: enquanto os anúncios impressos dependem de mídias físicas, os anúncios gráficos on-line só precisam de uma conexão de internet para se difundirem massivamente, podendo até serem viralizados. Portanto, o alcance é bem maior do que o da publicidade tradicional, notadamente, a das mídias impressas. 3.2. Formatos e estratégias de anúncios do Google Ads É importante verificar que o Google Ads atua em três áreas: - Rede de Pesquisa: nesta linha de atuação, os anúncios (links patrocinados) aparecem nas plataformas de pesquisa do Google. - Rede de Display: nesta área, os anúncios gráficos são exibidos em sites, portais e blogs parceiros do Google. - Rede Discovery: aqui, os anúncios aparecem nas plataformas do Google, a exemplo do YouTube e do Gmail. Para cada uma dessas áreas, existem formatos adequados e estratégicos, conforme os objetivos de marketing digital estabelecidos no planejamento da campanha. Os anúncios expansíveis são aqueles que crescem para além de sua dimensão inicial, geralmente tomando a parte superior da tela a partir de uma ação do usuário – quando se clica/aperta ou quando apenas se passa o cursor do mouse sobre a imagem (mouse over). Às vezes a expansão ocorre automaticamente depois do carregamento da página, o que pode transparecer como invasivo, já que aparece “sem pedir licença”, isto é, sem nenhuma ação por parte do internauta. Há também os formatos intersticiais (Interstitial Ads), em que o anúncio aparece flutuando ou em tela cheia quando da transição entre conteúdos, geralmente mudanças de páginas web ou de fa- Sumário <<<<< 50 ses em games ou aplicativos em dispositivos móveis. Geralmente é usado como recurso interativo valorizando a experiência digital do usuário em smartphones e tablets. Neste tipo de aparelho, uma pessoa que decide rolar uma página web, caso queira, pode manter o anúncio fixo na tela. Os anúncios no formato lightbox combinam expansividade com criativamente luminosa. Quando expandidos, eles ocupam uma parte importante da tela com recursos de rich media. Assim, garante-se interatividade e ludicidade, podendo recorrer a vídeos, games, mapas, quizzes etc. Existem outros formatos singulares e complementares: MDE (Multi Direction Expandable), que é responsivo e inteligente, possibilitando expandir o anúncio em múltiplas direções, conforme o posicionamento da página web; Push-down, cujo anúncio expansível empurra o conteúdo do site para baixo; e o VPAID (Video Player-Ad Interface Definition), que define interfaces para anúncios em players de vídeo. O YouTube, por exemplo, possui player compatível com VPAID, permitindo que um vídeo altere as dimensões de exibição conforme o comando dos usuários. De forma suscinta, seguem alguns formatos específicos do Google Ads: - Anúncios na Rede de Pesquisa Google (Search Ads): no formato tradicional, aparecem nos resultados de busca a partir de palavras-chave escolhidas pelo anunciante. Têm títulos (30 caracteres), linhas de descrição (80 caracteres) e URLs. O objetivo estratégico é gerar cliques para o website definido, o que acaba ocorrendo em mais de 50% dos casos. Diferentemente de anúncios de display, a pesquisa é baseada numa Sumário <<<<< 51 intenção e, por isso, é importante direcionar essa demanda aos objetivos de marketing. - Anúncios na Rede de Pesquisa Google de Chamada (Call Only): neste caso, o título, que é gerado automaticamente, é o próprio número do telefone da organização. Com um clique, obtém-se o telefone de contato, levando à conversão. Estes anúncios também aparecem no motor de pesquisa a partir de palavras escolhidas pelo anunciante. - Anúncios na Rede de Pesquisa Google Dinâmico (DSA): com formato dinâmico, têm frase maior (até 57 caracteres). Surgem como título da página, capturando melhor o usuário para a conversão. Adequados para e-commerce, aparecem no motor de pesquisa a partir do conteúdo do site e não de palavras-chave. Para tanto, basta digitar uma palavra genérica do conteúdo do site. - Banners na Rede Display Google (GDN): tipo tradicional de campanha baseado em banners flexíveis quanto à dimensão e ao limite de texto. São objetivos estratégicos: impressões, cliques para o website e conversão. Há, ainda, a possibilidade de formatos dinâmicos com possibilidade de grande impacto visual, além de serem relacionados com remarketing. A plataforma disponibiliza uma ferramenta denominada de Google Web Designer (GWD), que pode ser utilizada para criação de banners em HTML5. Mas, para garantir maior atratividade, requer o uso estratégico de promoções e outros estímulos para ação imediata. - Anúncios Caixa de Luz na Rede Display Google (GDN Light Box): trata-se de banners com efeitos luminosos e expansíveis via mouse over, ou seja, quando se passa o cursor do Sumário <<<<< 52 mouse sobre a peça. Podem incluir vídeos, galerias de imagens, mapas etc. Têm ótimos resultados ao impactar esteticamente o usuário. - Anúncios Caixa de Luz em GDN Light Box Rich Media: Além de luminosos e expansíveis, os banners são animados e interativos e customizáveis por meio de HTML5. Podem ser adaptados a qualquer dimensão. São atrativos e muito impactantes, pois proporcionam ludicidade, interatividade e engajamento, objetivo estratégico para ótimos resultados. A Rede Display possui outros formatos interessantes: Ad Gallery, que permite fazer upload de imagens, editar textos e escolher templates; Aplicações (Admob), que possibilita exibir banners em aplicativos de dispositivos móveis; Gmail Sponsored Promotions (GSP Ad Gallery), onde os anúncios aparecem em caixas de e-mail na aba de promoções; e Gmail Sponsored Promotions (GSP HTML/Formulário), onde os anúncios são exibidos na caixa de Gmail com a permissão de se adicionar um formulário ou um mini website. Além das Redes de Pesquisa e Display, o Google também disponibiliza diversos formatos para a Rede Discovery. A seguir, sintetizamos alguns desses formatos: - Anúncios de visualização (YouTube In-Display): os banners ou vídeos aparecem à direita do vídeo principal, acima da lista de sugestões do YouTube. Em player maior, podem surgir abaixo. Como na maioria dos casos, o objetivo estratégico é gerar impressões, visualizações e cliques em links de website do anunciante. - Anúncios de vídeo em pesquisa no Youtube (YouTube In-Search): aparecem somente no motor de pesquisa do You- Sumário <<<<< 53 Tube, que é o segundo mais potente que existe (só perde para os motores do próprio Google). - Anúncios de sobreposição (YouTube Overlay): trata-se de banner ou vídeo semitransparente, que surge na parte inferior da tela. Tem ótima performance em virtude do alto número de visualizações do YouTube. É considerado um tanto invasivo, pois surge na tela sem nenhuma ação por parte do usuário. - Anúncios de vídeo ignoráveis (YouTube Trueview): são anúncios em vídeo que surgem automaticamente e podem ser ignorados após cinco segundos de visualização. Apesar do automatismo da transmissão, são menos invasivos, pois existe a opção de serem retirados da tela após alguns segundos de exibição ao clicar/apertar em “pular anúncio”. 3.3. Publicidade Display e Marketing Digital É impossível, hoje, pensar a publicidade e o marketing sem considerar a importância e o impacto das plataformas e das ferramentas digitais em todos os segmentos da vida contemporânea. Totalmente imersos na cultura digital, os consumidores submetem-se a uma lógica que concilia plataformização da vida e dataficação da sociedade. Ou seja: o consumo, a venda, a informação, o comércio, o entretenimento, a cultura, a educação, os serviços, as trocas simbólicas, enfim, todas as ações e operações sociais, econômicas, políticas, culturais e tecnológicas são processadas em plataformas digitais. Se queremos pedir um alimento, recorremos às plataformas IFood, Uber Eats, Rapi etc. Se queremos nos deslocar fisicamente, acionamos as plataformas Uber ou 99, e usamos o Waze ou o Google Maps. Se precisamos fazer uma reunião on-line, usamos o Meet, o Zoom, Sumário <<<<< 54 o StreamYard ou outras plataformas. Esses são apenas alguns exemplos de como o nosso cotidiano é profundamente permeado pela plataformização de demandas, necessidades e desejos. E tudo isso gera dados, estruturados ou não, que são armazenados, organizados e sistematizados em altíssima velocidade por servidores e fontes volumosas, a exemplo do Big Data (Nascimento, 2019). Essa economia de dados altera e transforma radicalmente a publicidade no contexto do marketing digital. Por isso, é tão importante conhecer e dominar as estratégias de marketing digital e e-commerce (Turchi, 2019). Nessa ambiência, desponta, estrategicamente, a publicidade display. Trata-se de publicidade on-line, na qual o anúncio gráfico (banner, vídeo, rich media) é exibido em uma página web de destino, geralmente no topo ou na lateral direita. É muito usada em campanhas de remarketing, possibilitando a divulgação recorrente de produtos e/ou serviços na internet. A publicidade display tem relação custo/benefício muito favorável, garantindo bons resultados em comparação com os formatos tradicionais, notadamente os impressos. Dentre as vantagens da publicidade display, podemos enumerar como principais: é atrativa, uma vez que estimula o interesse do usuário/consumidor, superando formatos publicitários tradicionais; é segmentada, pois permite focar apenas no público que realmente interessa, considerando características dos usuários (perfil socioeconômico e de consumo, localização, idioma etc.); é inteligente e interativa, porque estimula o conhecimento, desperta a curiosidade e promove a interação; é mensurável, possibilitando saber quantos e quais usuários foram convertidos e, a partir daí, obter dados sobre interesses, demandas, receitas, custos, eficácia de qualquer elemento do anúncio (mensagem, animação, imagens, áudio). Sumário <<<<< 55 O Google domina amplamente o mercado de publicidade display com sua rede de sites e portais credenciados. O seu display possui uma coleção de mais de dois milhões de sites, aplicações, vídeos, blogs e outras páginas web disponíveis para inserção de anúncios gráficos. Para administrar essa demanda, a corporação criou o Google Adsense, que é uma plataforma que gerencia a inserção de anúncios em sites parceiros, conforme as normas e formatos em vigor. Vale ressaltar as formas de pagamento da publicidade display, que podem ser as seguintes: 1) Custo por clique (CPC): é o custo médio pago quando o usuário clica no seu anúncio. Para calcular esse valor, é preciso dividir o total que foi gasto com o anúncio pelo quantitativo de cliques recebidos; 2) Custo por mil impressões (CPM): Estabelece-se um acordo prévio em que o anunciante pagará o determinado valor a cada vez que o anúncio aparecer 1000 vezes na página web; e 3) Custo por ação (ou por aquisição) (CPA): o anunciante pagará quando ocorrer alguma ação por parte do usuário (compra, reserva, locação etc.). Neste último caso, o pagamento só ocorrerá se o usuário vir, clicar no anúncio e executar alguma ação planejada. Além dessas formas, há também a taxa fixa, que consiste em um valor previamente acordado para pagar por dia, por semana ou por mês, independentemente dos resultados alcançados. 3.4. E-mail Marketing, site e link patrocinado O planejamento de uma organização pode incluir diferentes etapas e procedimentos, a começar pela seleção de mídias e canais onde se desenvolverão as ações propostas. Cada uma delas possuem vantagens e desvantagens, devendo a escolha basear-se em critérios, em consonância com o público-alvo e com outros Sumário <<<<< 56 aspectos importantes pontuados no planejamento estratégico da comunicação digital (Yanaze, 2011). A comunicação digital poderá compreender E-mail Marketing, sites, portais, links patrocinados, banners e rich media. O E-mail Marketing é uma das estratégias mais simples e mais eficazes para alcançar e segmentar os públicos-alvo. O bom e velho correio eletrônico possibilita contatar rapidamente pessoas que tenham relacionamentos ou que manifestem interesse no produto ou serviço da organização. Ao recorrer a bancos de pessoas previamente cadastradas, evita-se o spam. É recomendável evitar listas de e-mails piratas, que são baratas, porém são desatualizadas, inoportunas e inconvenientes. No E-mail Marketing, é indispensável recorrer a promoções, brindes ou prestação de serviços úteis, que permitam cadastramento dos usuários e potenciais clientes. E é obrigatório garantir a permissão para que os usuários se retirem de listas de e-mails, caso as mensagens lhes pareçam inconvenientes. Sites e portais, por exemplo, são a vitrine por excelência de uma organização, pois garantem fonte de informações, espaço de exposição de produtos e serviços, sistema de comercialização e canal de relacionamentos com os seus stakeholders. No entanto, criar um site é só o primeiro passo de qualquer projeto. Isso pois o site requer atualização constante com notícias, serviços e eventos de interesse dos públicos. Ademais, ele é importante para a consolidação da marca, razão pela qual o seu design e a sua arquitetura de informação devem ser funcionais, úteis e aprazíveis. Um bom site deve ser fácil de acessar (URL de fácil memorização) e de navegar (acesso em até três cliques), portanto, deve zelar pela usabilidade, cujo objetivo maior é focar no usuário, ou seja, facilitar ao máximo a sua experiência digital. Sumário <<<<< 57 Seguem outros elementos e características relevantes de um site notável: rápido para carregar (evite excesso de imagens e poluição informativa); ferramenta de busca interna; conteúdo denso e interessante; canal de relacionamento; interface visualmente impactante e funcionalmente simples; e fácil atualização (layout e design pré-definidos). Cumpridas essas exigências, é necessário executar estratégias de fidelização, usando cadastramento de visitantes e abertura a relacionamentos on-line. Afinal, “um indicativo importante da efetividade do site é o número de pessoas que o visitam, o percentual que se registra para obter mais informações e o percentual de visitantes que retorna ao longo de determinado período” (Yanaze, 2011, p. 482). Os links patrocinados são um bom recurso para tornar público um determinado produto ou serviço em meio ao turbilhão de informações on-line. Para tanto, usam-se palavras ou termos comprados que, quando digitados, trazem como resultado o link no topo ou em um lugar de destaque em plataformas de pesquisa, tais como Google, Yahoo e Bing. Cada clique dado nesse link é debitado no estoque de cliques contratado pelo anunciante. As campanhas de links patrocinados, portanto, são ótimas para promoção de vendas em motores de busca, mas são inadequadas para a construção de marca (Yanaze, 2011). 3.5. Anúncios impactantes na internet: banner e rich media O uso de banners é também uma opção interessante a ser considerada no planejamento comunicacional on-line. Para tanto, é necessário comprar espaço em um site ou portal com grande número de visitantes, de modo a ampliar a visibilidade da marca ou do produto/serviço anunciado. Com formato estático (imagem fixa) ou dinâmico (audiovisual), o banner chama a atenção Sumário <<<<< 58 de olhares, mesmo dispersos, e, por isso, é muito adequado para vendas e para a popularização da marca. As métricas comumente usadas são taxa de clicks e páginas visitadas. Se a escolha for impacto e interatividade, então o indicado será o rich media, que é considerado a evolução do banner (Yanaze, 2011). Trata-se de um anúncio com recursos digitais avançados, mesclando vídeo, áudio, efeitos visuais e outros elementos que incentivam os espectadores a interagirem e se envolverem com o conteúdo. São pequenos filmes, animações ou jogos com informações detalhadas sobre o produto ou serviço. Assim, é possível ao usuário brincar, interagir, jogar e se encantar, passando o cursor do mouse sobre o anúncio ou apertando/arrastando uma imagem ou objeto em um dispositivo móvel (smartphone). Mais que apenas gerar visualizações, o rich media pode transformar-se em game, porque opera com o lúdico por meio de sofisticados efeitos visuais e sonoros. Assim, ele busca alcançar o nível máximo do marketing digital: impacto estético, interação lúdica e consumo pelo sensível. 3.6. Marketing Orientado por Dados e a LGPD Planejamento estratégico envolve inteligência e análise de métricas, que antecedem as ações a serem desenvolvidas na publicidade e no marketing. O Marketing Orientado por Dados (Data Driven Marketing) consiste no tratamento analítico e sistematizado de dados, estruturados ou não, visando a tomada de decisões com a devida racionalidade, inteligência e eficiência. Segundo Nascimento (2019, p. 11), “marketing por dados procura entender o comportamento dos usuários para obter insigths e tendências, orientando-se por dados e números para então tomar melhores decisões em ações de marketing”. Esses números e informações (pesquisas, relatórios, estatísticas, métricas de sites, Sumário <<<<< 59 blogs, redes sociais) subsidiam com maior exatidão a análise dos processos mercadológicos e institucionais de uma dada organização, evitando prejuízos, erros de gestão e crises de imagem. De acordo com o Panorama do Marketing por Dados 2022, 79% dos profissionais de marketing tem dificuldades de trabalhar com métricas, embora lidem com a cultura de dados. A investigação revela ainda que os maiores desafios são: não saber quais métricas usar (29%) e não saber interpretar as informações (29%). Em relação ao uso e domínio de tecnologias, as áreas que mais precisam desses recursos para agilizar processos e tarefas são: tráfego pago (45%), social media (45%), geração de leads (40%), vídeos (38%), marketing de influenciadores (35%), SEO (29%) e Inbound Marketing (27%). Realizada pela Opinion Box, Buscar ID e Métricas Boss, a pesquisa entrevistou 601 profissionais do ramo em todo o Brasil (Panorama, 2022). Dominar as técnicas e os procedimentos do Marketing Orientado por Dados é, portanto, um grande desafio, hoje. Afinal, só conhecerá bem as tendências do mercado e o comportamento do consumidor quem trabalha nessa perspectiva, que combina três pilares: tecnologia, analytics e business. “Sem tecnologia, nada é possível no marketing por dados. Sem analytics, nada é transformado em informação. Sem business, nada podemos fazer com a informação” (Nascimento, 2019, p. 11). Assim, o Marketing Orientado por Dados interpreta e analisa as métricas coletadas em interações com os potenciais clientes, possibilitando saber (quase) tudo sobre suas preferências, motivações, comportamento on-line e relacionamentos sociais, econômicos, culturais e comerciais. A métrica LTV (Life Time Value), por exemplo, indica valores referentes ao consumidor durante o seu relacionamento de toda a vida com a marca. Tudo isso serve Sumário <<<<< 60 para orientar, estrategicamente, a organização quanto às estratégias de segmentação dos públicos-alvo, conversão e geração de leads, compra de mídia e criação publicitária. É importante ressaltar que o Marketing Orientado por Dados contribui para dois fatores complementares. Em primeiro lugar, diminui o Custo de Aquisição de Cliente (CAC), ao projetar uma estratégia certeira. Afinal, uma campanha assertiva é mais efetiva do que cinco genéricas. Em segundo lugar, aumenta o CTR (Click Through Rate), que é a proporção entre cliques sobre links e visualizações de páginas. Essa métrica permite avaliar o desempenho de campanhas, ajudando nas eventuais alterações de rota para aquisição de melhorias. Basicamente, há três tipos de dados: Primários (First Party), que são dados gerados em portais, sites e blogs, captados de seus consumidores por meio de formulários, cadastros, landing pages, CRM e outros sistemas informacionais; Secundários (Second Party), que são dados compartilhados entre organizações parceiras, cujas ações estão estrategicamente alinhadas; e Terciários (Third Party), que são dados fornecidos por corporações externas, provedores, data centers e empresas que coletam informações on-line ou off-line. De qualquer forma, vale salientar a importância do CRM (Customer Relationship Management) ou “Gestão de Relacionamento com o Cliente”, pois o sistema permite registrar e organizar todos os pontos de contato do consumidor com a empresa ou instituição. Há várias ferramentas e plataformas digitais para gerenciar, organizar, analisar e automatizar o Marketing Orientado por Dados, a exemplo do HubSpot, Google Analytics, Buzzsumo, Salesforce, Oracle etc. Dentre as diversas funcionalidades do marketing digital, há a opção de se criar uma persona apropriada para fazer as interações com o público-alvo da organização. Representação fictícia Sumário <<<<< 61 do consumidor ideal de um dado negócio, a persona é construída a partir de dados reais sobre o comportamento e as características dos clientes. Dessa maneira, as pessoas têm a oportunidade de “conversar” com a persona e estabelecer um relacionamento segmentado, descomplicado e personalizado. Outra funcionalidade relevante são as campanhas de marketing e remarketing digital (Faustino, 2019). O remarketing é uma técnica de publicidade on-line que exibe anúncios para os usuários que já tiveram algum tipo de contato prévio com a marca. Esse usuário é exposto novamente à marca, de forma personalizada, geralmente quando está pesquisando algum produto ou serviço de seu interesse, ou quando o consumidor adquire um produto, então são apresentados para ele outros itens similares, considerando as suas preferências de compra. Com efeito, as chances de conversão são maiores, pois são mais específicas e mais assertivas em conformidade com a estratégia de dados planejada. A cultura de dados, contudo, requer atenção quanto à Lei nº 13.709, de 14/08/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. No artigo 7º, a LGPD estabelece que o tratamento de dados pessoais só poderá ser realizado nas hipóteses que seguem resumidas: mediante o fornecimento de consentimento pelo titular; para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos; para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantido, sempre que possível, o anonimato dos usuários; quando necessário para a execução de contrato, a pedido do titular dos dados; para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral; para a proteção da vida; para a tutela da saúde; quando necessário Sumário <<<<< 62 para atender aos interesses legítimos do controlador; e para a proteção do crédito. O consentimento deverá ser fornecido por escrito ou por meio que demonstre a manifestação do titular. A LGPD determina, pois, que as informações coletadas pelas organizações sejam autorizadas pelo usuário com base em uma política de uso de dados. A lei prevê proteção especialmente aos dados pessoais sensíveis, isto é, informações “sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico” (BRASIL, 2018). O Marketing Orientado por Dados, portanto, precisa observar e respeitar a LGPD, visando proteger os dados pessoais dos usuários, evitando fins discriminatórios, ilícitos e abusivos. Cabe aos controladores, zelar pela qualidade dos dados coletados e observar os princípios da ética, da transparência, da segurança, da responsabilização e da prestação de contas. No mercado, há Plataformas de Gestão de Consentimento (Consent Management Platform/CMP), que dão suporte aos procedimentos técnicos e administrativos para garantir segurança e respeito à LGPD, dentre as quais podemos citar: Cookiebot, Quantcast, Onetrust, Trustarc e Crownpeak. Essas empresas gerenciam a política de proteção dos dados e fornecem as provas de consentimento por parte dos usuários. 3.7. Do Buzz Marketing ao Marketing Viral Uma estratégia mercadológica estridente reside no Buzz Marketing, popularmente chamado por “marketing de boca a boca”. Literalmente, o termo “buzz” significa zumbido, resultando na noção de multiplicidade de vozes e ecos que se espalham rapidamente e com grande alarde. Como no efeito “bola de neve”, o conteúdo é difun- Sumário <<<<< 63 dido exponencialmente, de pessoa a pessoa, com volume crescente nas redes sociais digitais e com grande impacto de reverberação. Assim, o Buzz Marketing consiste em ações estratégicas que induzem, incentivam, incendeiam e encorajam as pessoas a repassarem mensagens umas para as outras, gerando grande visibilidade do produto, serviço ou marca. Geralmente, carregam conteúdos impactantes e controversos, capazes de provocar exposição e influência na blogosfera midiática. Usa técnicas que induzem as pessoas a interagirem e a reagirem sobre conteúdos polêmicos, criando engajamento e, consequentemente, ampliando o consumo e as vendas. Além de conteúdos polêmicos, o Buzz Marketing pode gerar bom engajamento em assuntos relacionados a promoções, concursos, experiências satisfatórias, serviços úteis, negócios rentáveis, notícias espetaculares e impactantes, fatos inusitados e extraordinários, casos misteriosos e hilários etc. O efeito multiplicador desses conteúdos pode se ampliar intensa e velozmente, transformando-se em Marketing Viral. Neste caso, não importa tanto a qualidade da repercussão, mas a quantidade de pessoas atingidas em curto espaço de tempo. Ou seja: o alcance gigantesco nas redes sociais digitais passa a ser o imperativo dessa forma de ação estratégica. Segundo Turchi (2019), a classificação como viral ocorre em virtude do poder que esse tipo de marketing tem em repassar mensagens com muita rapidez para grande número de pessoas, tal como uma epidemia. Contudo, não se trata de spam, como ressalva a autora: Nem vírus nem spam e muito menos técnica de manipulação, o marketing viral é, na verdade, uma estratégia empregada para tornar algum assunto ou mensagem tão interessante, engraçada ou ins- Sumário <<<<< 64 tigante a ponto de levar as pessoas a, naturalmente, querer compartilhar aquilo com o seu grupo de relacionamento (Turchi, 2019, p. 91). Mais que simples divulgação massiva de promoções, o Marketing Viral caracteriza-se pelo repasse veloz, massivo e, sobretudo, espontâneo. E, por ser espontâneo, tem melhores resultados. “O elemento que aciona o gatilho viral pode ser tudo o que estimula sentimentos – nobres ou perversos – nas pessoas, ou ainda o humor” (Turchi, 2019, p. 98). Portanto, para trabalhar nessa perspectiva de irradiação exponencial, a mensagem potencialmente viral precisa mexer com sentimentos profundos, estimular emoções sensíveis e acionar uma multiplicidade de redes sociais digitais. 3.8. Landing Page no contexto do marketing 3.0 Uma das principais estratégias de conversão do marketing digital reside na landing page, que é uma página web onde o usuário ou consumidor aterrissa após clicar em algum link ou anúncio. Trata-se de uma estratégia interessante no contexto do marketing 3.0, pois foca no consumidor, entendido como um ser humano, portanto, sujeito ativo que busca satisfazer os seus interesses e demandas sociais, econômicas e culturais (Kotler; Kartajaya; Setiawan, 2010). A função da landing page é, portanto, atrair o público de interesse, gerar leads, promover conversão de visitantes e potenciais clientes. Ressalte-se que conversão é uma ação executada pelo visitante na landing page: busca de informação sobre produto ou serviço, procura por contatos, download de material, preenchimento de formulário, clique em algum anúncio, compra, venda, pesquisa, interação etc. Assim, os objetivos de marketing podem ser aquisição, conversão e retenção. Sumário <<<<< 65 A landing page deve seguir o padrão do anúncio clicado/ apertado, estabelecendo um “diálogo” entre as interfaces gráficas. Isso favorece a pregnância da identidade visual da marca e ajuda o usuário a se manter na trilha da conversão. Afinal, conversão implica persuadir o público a tomar ações previamente planejadas. No caso do ramo educacional, uma meta possível seria o usuário se inscrever em um curso ofertado pelo anunciante; no branding, promoção da marca; no e-commerce, venda de produtos/serviços. Segundo Gabriel e Kiso (2020, p. 337-39), para se alcançar bons resultados com landing page, é preciso adotar as seguintes estratégias e táticas: construa e mantenha páginas simples, sem pirotecnia; informe onde o visitante se encontra; ofereça múltiplos calls-to-action (incentivos para agir); teste os formulários antes de publicá-los, pois 30% se perdem no meio do caminho; teste múltiplas landing pages; reanalise sua encore page; não presuma que tudo esteja entendido sem obter o feedback; permaneça sempre on-line; e esteja sempre aberto a novos aprendizados. Por fim, o marketing 3.0 inverte a lógica estrita e unilateralmente vendedora, priorizando a satisfação do consumidor, considerando os seus desejos e valores como ser humano (Kotler; Kartajaya; Setiawan, 2010). 3.9. Marketing de conteúdo e produção de relevância nas plataformas digitais No mundo digital, não basta ter bons recursos tecnológicos se você não tiver conteúdo a ser apresentado. Não basta ter forma, sem substância. Não basta a vitrine, sem bons produtos. Mais que esqueleto e músculos, é preciso ter vida. É preciso ter alma. Uma organização, qualquer organização, não tem vida se não Sumário <<<<< 66 tiver conteúdo. Daí a importância estratégica em se investir em Marketing de Conteúdo. No Marketing de Conteúdo, é preciso exercitar diversos “c”: criar conteúdo com constância, consistência, colaborações coletivas e conhecimentos compartilhados. Além de dispor de bons sites, blogs ou perfis em redes sociais, é necessário produzir conteúdo em fluxo intenso e contínuo. Isso é constância. E deve-se produzir peças e campanhas de qualidade. Isso é consistência. De nada adiantará o esforço se uma organização não dispuser de canais que permitam a interatividade e feedback por parte dos públicos de interesse. Isso são colaborações coletivas. Por fim, para que haja desenvolvimento social, econômico, cultural, ambiental, científico, deve-se investir na produção de saberes e inovações. Disso derivam os conhecimentos compartilhados. Portanto, o Marketing de Conteúdo implica em processos criativos que permitam a construção de conteúdos relevantes, consistentes, atrativos e envolventes para os públicos de interesse (Gabriel; Kiso, 2020). Nessa perspectiva, ele garante credibilidade, edifica confiança e busca autoridade em um mercado de grande competitividade. O planejamento do Marketing de Conteúdo começa por responder a algumas questões importantes: Quais as metas da organização? Quais os objetivos? Que resultados se busca? A quem se dirigir? O que escrever/postar? Quando publicar? Onde publicar? Quais formatos usar? Existem outras perguntas que o planejamento haverá de suscitar. Afinal, o conteúdo não se refere exclusivamente aos interesses dos gestores, mas se relaciona, sobretudo, às demandas dos seus stakeholders. Portanto, a produção de conteúdo precisa gerar valor para os seus públicos. Sumário <<<<< 67 São objetivos estratégicos do Marketing de Conteúdo: fortalecer a identidade visual da marca; divulgar produtos, serviços e valores da organização; garantir visibilidade em fluxo contínuo; atrair a atenção dos clientes para lançamentos e promoções; abrir canais de relacionamento, interação e engajamento; e construir perspectivas de fidelização. Tudo isso pode ser concretizado, gradualmente, utilizando-se diversos tipos e formas de conteúdo: publicação de anúncios, campanhas e notícias em sites e blogs, postagens em redes sociais digitais, e-books, relatórios, vídeos, infográficos, podcast, apresentações, cases, e-mails, GIFs, banners, rich media, stories, reels etc. Contudo, é importante deixar claro que produção de conteúdo não equivale necessariamente a Marketing de Conteúdo. Todas as pessoas que lidam com comunicação produzem material, mas nem todas o fazem de forma organizada e sistematizada. Ora, Marketing de Conteúdo requer planejamento, expertise, inteligência, sensibilidade e conhecimento técnico e estratégico. Em suma, pressupõe e envolve estratégias digitais para atrair e cativar determinado público-alvo. Para tanto, existem canais de distribuição importantes, tais como: presença on-line visando a criação de conteúdos em diversos projetos web e aplicativos digitais; Social Media Marketing (SMM) para posts e interações em redes sociais; Search Engine Marketing (SEM) para mecanismos de pesquisa e técnicas de Search Engine Optimization (SEO); Marketing de Influência para atuação de influenciadores digitais; E-mail Marketing para execução de estratégias com uso de e-mails; e Inbound Marketing objetivando a atração e a conversão de navegantes/usuários (Gabriel; Kiso, 2020, p. 342-3). Sumário <<<<< 68 Ademais, para se ter ativos de marketing, é necessário ser proprietário da base de leads, pois assim se alcança certa autonomia em relação ao conteúdo e à gestão das mídias de divulgação, sem riscos de interferência e descontrole. O proprietário de um site tem controle da sua base de leads. A audiência, neste caso, é do site. No entanto, no caso do YouTube, por exemplo, quem controla a base de dados, o alcance e os algoritmos não é o proprietário do canal, mas o Google. Portanto, a rigor, a audiência não é do gestor de conteúdo, mas da Big Tech. 3.10. Inbound Marketing e o funil estratégico de conversão O Marketing de Conteúdo e o Inbound Marketing têm um ponto em comum: ambos usam estratégias de conversão. O primeiro busca cativar o olhar do usuário por meio da criação sistematizada e constante de conteúdos relevantes. O segundo procura atrair prospect, isto é, clientes em potencial. O conceito de Inbound Marketing se popularizou a partir de 2009, nos Estados Unidos, com o lançamento do livro Inbound Marketing: Seja encontrado usando o Google, a mídia social e os blogs, de Brian Halligan e Dharmesh Shah, fundadores da HubSpot. Vale frisar uma diferença básica: no marketing tradicional (Outbound Marketing) a organização procura o cliente genérico; inversamente, no Inbound Marketing, é o cliente possível que busca a empresa. Neste caso, desenvolve-se uma série de ações diretas objetivando gerar leads (contatos de possíveis consumidores, tais como e-mail, nome, telefone, perfil em redes sociais etc.). Para tanto, usam-se estratégias diversas de conversão em sites, blogs, portais, redes sociais digitais, buscadores, a exemplo do Google. Como um ímã, usa seu magnetismo para atrair visitantes e converter leads. A grande jogada é ser encontrado no turbilhão Sumário <<<<< 69 de informações on-line em ambiente mercadológico de alta competividade. A máxima do Inbound Marketing é, portanto, atrair contatos de pessoas pré-dispostas, gerar leads e buscar relacionamentos capazes de transformar visitantes em clientes. Por isso, o Inbound também é chamado de Marketing de Atração, ou, ainda, Marketing Receptivo (Halligan; Shah, 2010). Segundo Marques (2022, p. 26), o funil de conversão do Inbound Marketing possui cinco etapas fundamentais: atração, interação, conversão, vendas e fidelização. Essas fases processuais podem ser ilustradas no gráfico abaixo: Gráfico 1 - Funil de Conversão do Inbound Marketing Fonte: Elaborado pelo autor com base em Marques (2022). O primeiro passo ou etapa do funil de conversão consiste em atrair a atenção dos visitantes. Para tanto, é preciso publicar ou Sumário <<<<< 70 postar conteúdos relevantes e chamativos em sites, portais, blogs, redes sociais digitais, campanhas on-line, tráfego pago etc.; e, ainda, investir em técnicas de SEO (Search Engine Optimization), que contribuem para melhorar o tráfego orgânico de um site ou mídia digital e a sua classificação nos resultados de motores de busca, a exemplo do Google e do Bing. Na segunda etapa, busca-se interação, ou seja, os visitantes se relacionam nas redes sociais e nos espaços virtuais de conversação, emitindo comentários e trocando informações. Esse engajamento é importante para construir interações consistentes e viabilizar os passos seguintes do Inbound Marketing. Ainda de acordo com Marques (2020, p. 26), a terceira etapa/ passo consiste em converter leads, isto é, obter contatos qualificados dos potenciais clientes. Isso é possível por meio de landing page, formulários, call-to-actions, follow up, e-mail marketing, automação de marketing, atendimento off-line e plataformas de mensagens instantâneas. A quarta etapa é a das vendas, objetivo prevalente do Inbound Marketing. A venda decorre do êxito da conversão e pode ser operacionalizada por e-mail, na loja on-line ou mesmo física, e-commerce, ligações e atendimentos personalizados, além de ferramentas como o CRM (Customer Relationship Management), cujo sistema registra e organiza os dados dos consumidores de dada empresa. E, por fim, a última etapa do funil se resume em fidelizar o cliente. Isso requer cativar e satisfazer o consumidor, racional e afetivamente. Se o cliente teve um relacionamento aprazível com a empresa e uma boa experiência digital de compra, ele tende a voltar às compras. E mais: ele pode se engajar na divulgação da marca, do produto e/ou do serviço prestado. Esse seria o auge do funil de conversão. Depoimentos, indicações, pesquisas de satisfação, compartilhamento de avalia- Sumário <<<<< 71 ções positivas, newsletters, monitoramento de pós-vendas, tudo isso pode contribuir na fase final do funil de conversão. O Inbound Marketing requer o domínio de recursos tecnológicos e de métodos apropriados para segmentar e organizar a base de leads, direcionar e personalizar mensagens adequadas, automatizar o marketing, analisar e monitorar o processo de conversão e a jornada de compra no funil de vendas. Esse processo a análise de métricas (lead scoring) com uso de ferramentas diversas, dentre as quais MQL (Marketing Qualified Lead), SQL (Sales Qualified Lead), dentre outras. Considerações finais Conforme exposto, o planejamento estratégico é a base de êxito de qualquer ação ou campanha de publicidade e marketing digital. Sem um mínimo de planejamento, não é possível alcançar o nível desejado de inteligência hiperconectada no contexto da economia de dados. Uma economia que pressupõe conhecer, extrair, mensurar, controlar e analisar quantitativa e qualitativamente os dados estruturados ou não. Sem domínio científico sobre essas informações, respeitando-se a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), não se consegue alcançar resultados satisfatórios no âmbito da cultura digital. O planejamento em publicidade e marketing envolve diversos caminhos teórico-metodológicos, cuja inteligência está pautada no uso e aplicação de estratégias. Sem pretender esgotar as trilhas existentes, procuramos discutir alguns temas que pressupõem estratégias emergentes: anúncios gráficos na internet; formatos e funcionalidades do Google Ads; Publicidade Display, E-mail Marketing, site, link patrocinado, banner e rich media; Marketing Orientado por Dados; Buzz Marketing; Marketing Vi- Sumário <<<<< 72 ral; Landing Page; Marketing de Conteúdo; Inbound Marketing e o funil estratégico de conversão. Cada uma dessas estratégias possui características, funcionalidades e vantagens específicas. Portanto, devem ser apropriadas conforme as metas, os objetivos, a metodologia, o cronograma, o orçamento, dentre outros aspectos importantes da campanha planejada. Não há uma receita pronta e acabada. Cada caso indicará determinados tipos de desafios, assim como implicará em soluções específicas e contextualizadas ao cenário prevalente. Escolher quais as soluções estratégicas mais adequadas à publicidade e ao marketing digital é, pois, um trabalho minucioso de planejamento e inteligência, que envolve um gama considerável de métricas e variáveis em jogo no tabuleiro dos dados. A propósito, vale ressaltar que estamos ingressando na terceira fase da publicidade digital: a publicidade inteligente. Segundo Hairong Li, a publicidade digital possui três fases: publicidade interativa (interações marca/consumidor), programática (automação de processos) e inteligente (inteligência artificial - IA). Cada uma dessas fases preserva as conquistas das fases anteriores. Assim, a publicidade inteligente preserva a interatividade e a automação enquanto adiciona novos atributos inventivos à publicidade digital com o uso de plataformas e softwares, que permitem o uso da robótica para a aprendizagem de máquina (Machine Learning), reconhecimento de voz e visão, dentre outros recursos tecnológicos. O autor acrescenta: Por exemplo, o Google Assistant, lançado em 2016, pode puxar dados de todos os aplicativos do Google que um usuário utiliza com um único login, incluindo Gmail, Pesquisa, Mapas, Compras, Fotos, Calendário, Contatos e muito mais; e então usa Sumário <<<<< 73 tecnologias de IA como processamento de linguagem natural e aprende a realizar várias tarefas em resposta à solicitação de voz do usuário ou entrada de teclado (Li, 2019, p. 334, tradução nossa). A publicidade inteligente, portanto, aprimora os recursos de interatividade e automação, transformando essas tecnologias em “máquinas humanas”. Assim, tanto a publicidade quanto o marketing digital ganham terreno em termos de inteligência estratégica no contexto da economia de dados. Referências BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/ lei/l13709.htm. Acesso em: 31 ago. 2022. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ENCICLOPÉDIA INTERCOM DE COMUNICAÇÃO. São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2010. FAUSTINO, Paulo. Marketing digital na prática: Como criar do zero uma estratégia de marketing digital para promover negócios ou produtos. São Paulo: DVS Editora, 2019. GABRIEL, Martha; KISO, Rafael. Marketing na era digital: conceitos, plataformas e estratégias. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. HALLIGAN, Brian; SHAH, Dharmesh. Inbound Marketing: seja encontrado usando o Google, a mídia social e os blogs. Rio de Janeiro: Alta Books, 2010. Sumário <<<<< 74 KOTLER, P.; KARTAJAYA, H.; SETIAWAN, I. Marketing 3.0: as forças que estão definindo o novo marketing centrado no ser humano. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. LI, Hairong. Special Section Introduction: Artificial Intelligence and Advertising, Journal of Advertising, 48:4, 2019, 333-337. LUPETTI, Marcélia. Planejamento de comunicação. 5ª ed. São Paulo: Futura, 2000. MARQUES, Vasco. Marketing Digital de A a Z. 3ª ed. Braga: Edição Digital 360, 2022. MARTINO, Luís Mauro S. Teoria das mídias digitais: linguagens, ambientes e redes. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. MEDEIROS, Magno. Assessoria de Comunicação em rede e convergência de mídias. In: TUZZO, Simone A.;TEMER, Ana Carolina R. P. (org.). Assessoria de Comunicação & Marketing. Goiânia: Facomb/UFG, 2013. NASCIMENTO, Rodrigo. Marketing na Erado dos Dados: o fim do achismo. São Paulo: Évora, 2019. OGDEN, James; CRESCITELLI, Edson. 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Temos como ponto de partida que a comunicação organizacional “processa o fenômeno comunicacional dentro das organiza1 2 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás (UFG), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Política e Cidadania (CICLO/UFMT). Atuou como Coordenadora de Comunicação no Instituto EcomAmor entre fevereiro e junho de 2020. E-mail: szabor.isa@gmail.com. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Diretora de Relações Institucionais no Instituto EcomAmor. E-mail: jordana.oliveira@ ecomamor.com.br. ções e todo seu contexto político, econômico e social no âmbito do sistema social global, como fenômeno inerente à natureza das organizações e aos agrupamentos de pessoas que a integram” (Kunsch, 2017, p. 43). A comunicação do Terceiro Setor enfrenta desafios e tem potencialidades diferentes da comunicação empresarial e daquelas vinculadas aos poderes públicos. Os princípios nos quais as organizações do Terceiro Setor estão estruturadas – na resolução de problemas sociais, econômicos e ambientais existentes – requerem estratégias próprias, por terem como objetivo, sobretudo, a promoção da cidadania (Peruzzo, 2013) e a transformação social (Kotler; Lee, 2010). Na primeira parte do artigo, são apresentadas as bases conceituais para pensar a elaboração de uma Comunicação Organizacional Integrada (Kunsch, 2013, 2017) e um planejamento estratégico (Lupetti, 2000, 2010), com as especificidades das organizações do Terceiro Setor (Peruzzo, 2009; 2013). Entende-se que a presença digital é de extrema importância para a visibilidade, notoriedade e autoridade de uma organização, mas é um desafio para aquelas do Terceiro Setor (Nossa Causa, 2019), sobretudo por falta de recursos. Com a suspensão das atividades presenciais e diante da crise sanitária proveniente da pandemia de Covid-19, o meio digital tornou-se a principal forma de socialização e construção de redes, e, dessa forma, o planejamento estratégico voltou-se, principalmente, para a formulação baseada no marketing digital (Faustino, 2019). Há vasta literatura, produções e debates sobre as estratégias de marketing digital vinculadas à comunicação mercadológica e, por isso, deve-se ter em mente alguns cuidados ao elaborar tais estratégias na comunicação do Terceiro Setor. A comunicação rápida, fast (Terra; Prazeres, 2022), e a retórica baseada em gati- Sumário <<<<< 78 lhos mentais persuasivos (Amor Divino, 2020), como exemplos, podem não estar alinhadas ao propósito de tais organizações. Desse modo, na segunda parte do artigo, a partir de uma breve contextualização, são apresentadas estratégias de marketing digital pensadas para o Instituto EcomAmor, uma Organização da Sociedade Civil (OSC), onde as autoras atuaram na área de marketing e comunicação durante o primeiro semestre de 2020. Na época, no planejamento de comunicação, optou-se pela estratégia de marketing de conteúdo (Rez, 2016), na qual se apresenta a definição dos canais de comunicação, a elaboração da jornada do doador e do funil de doação, e o storytelling, em conjunto com algumas diretrizes de linguagem. Conceitos basilares para pensar o planejamento estratégico digital de uma organização do Terceiro Setor Para elaborar um planejamento de comunicação e marketing de uma organização, parte-se da concepção de “Comunicação Organizacional Integrada”, de Margarida Kunsch (2003; 2017). Tal base conceitual “permite ver como as organizações se manifestam quando precisam estabelecer relações confiantes com os seus diversos públicos” (Kunsch, 2017, p. 47). A autora estabelece a abrangência da Comunicação Organizacional Integrada em quatro áreas: “a comunicação administrativa, a comunicação interna, a comunicação mercadológica e a comunicação institucional” (Kunsch, 2003, p. 149). Kunsch (2017, p. 47, grifo nosso) assim as descreve: Para atingir seus objetivos institucionais e corporativos com o grande universo de públicos e com a sociedade, elas se valem da comunicação institucional. Quando necessitam interagir com seus empregados, promovem ações de comunicação interna. Para viabilizar seus processos comunicativos e Sumário <<<<< 79 o funcionamento organizacional no seu dia a dia não podem prescindir da comunicação administrativa. E, para atingir seus objetivos mercadológicos, utilizam a comunicação mercadológica. Pensar a “Comunicação Organizacional Integrada” significa pensar a construção da imagem e apresentação da organização de forma coerente, com objetivo de que todas as relações a serem estabelecidas, com os diversos públicos, estejam alinhadas e calcadas nos valores que orientam a instituição. A autora ainda destaca a necessidade de uma visão holística na prática da comunicação, ou seja, de uma “filosofia da comunicação não-fragmentada” (Kunsch, 2017, p. 47). Nessa perspectiva, as diretrizes da comunicação organizacional são divididas em duas grandes áreas fundamentais: a de relações públicas, que abrange as três primeiras (institucional, interna e administrativa); e a de marketing, que responde pela comunicação mercadológica. No caso de organizações do Terceiro Setor, Cicilia Peruzzo (2013) chama atenção para a compreensão das especificidades dos fundamentos teóricos desse tipo de comunicação organizacional, por se distinguirem daquelas da comunicação desenvolvida para empresas e poderes públicos. Segundo Peruzzo (2013, p. 104), a “razão de existir é diferente daquela que rege o mercado”, uma vez que a comunicação comunitária, popular ou alternativa (realizada por organizações sem fins lucrativos, movimentos sociais, segmentos populacionais organizados, e/ou de base popular) visa “ampliar e democratizar a cidadania e favorecer o desenvolvimento comunitário e da pessoa humana”. Peruzzo (2013, p. 98) ressalta a distinção do objetivo dos diferentes setores. Enquanto a comunicação empresarial visa o lucro, a do Estado exerce controle social, e o que está em jogo na comunicação Sumário <<<<< 80 do Terceiro Setor “é a realização dos interesses/ necessidades do outro, do(s) público(s), principalmente, do público destinatário, ou melhor, do público-sujeito e razão de ser da instituição, e não dela em si”. Com a mudança do viés e do objetivo, o relacionamento com o público também se altera, de forma que Peruzzo (2009), ao se referir ao público-destinatário, busca evitar o termo “cliente” ou “clientela”, pois acredita que “perde de vista a relação de reciprocidade requerida na comunicação do terceiro setor”. Quando se trata da comunicação nas organizações não governamentais de base popular, associações comunitárias e movimentos sociais, a autora elabora outra terminologia, a de Comunicação Mobilizadora, e estabelece o funcionamento da comunicação em dois níveis: a comunicação mobilizadora dirigida ao(s) público(s) beneficiário(s) – ou sujeito(s) – da ação, a qual se entrelaça às atividades concretas de promoção da cidadania, e a comunicação institucional, ou seja, das organizações para com os demais públicos e a sociedade, que envolve a reputação e o conceito (imagem) que se quer construir ou manter, em termos de identidade e ideário ideológico-político. São dois âmbitos bem diferentes, embora haja inter-relação entre os mesmos (Peruzzo, 2013, p. 99). Concorda-se com a autora em relação à cautela da mera transposição de práticas e processos da comunicação empresarial para a comunicação do Terceiro Setor. Contudo, observa-se a comunicação mobilizadora como acréscimo de categoria, sem desconsiderar a comunicação mercadológica, por notar suas potencialidades ao pensar na divulgação de produtos e serviços da organização, caso haja, assim como sua importância para a captação de recursos. Sumário <<<<< 81 De forma semelhante, Philip Kotler e Nancy Lee (2010) também diferem o marketing social do marketing comercial, e o marketing sem fins lucrativos do marketing do setor público. Segundo os autores, o marketing social “é um processo que aplica os princípios e as técnicas de marketing para criar, comunicar e fornecer valor a fim de influenciar os comportamentos do público-alvo que beneficiem a sociedade [...], bem como o público-alvo” (Kotler; Lee, 2010, p. 73). Assim, o marketing social se distingue dos outros, como apontam Kotler e Lee (2010, p. 76), por ter como objetivo a venda não de “produtos e serviços”, mas de “um comportamento desejado”, e por ter como objetivo principal o “ganho do indivíduo ou da sociedade”, não o “ganho financeiro”. Neste âmbito, a comunicação digital é uma estratégia do composto comunicacional da organização, como aponta Elizabeth Corrêa (2005), mas deve fazer parte de um plano de comunicação geral, logo, integrado. A autora ressalta que “não podemos falar em Comunicação digital organizacional sem compreender e conhecer o plano estratégico de comunicação global” (Corrêa, 2005, p. 101). Portanto, um planejamento de organização, sustentado em uma visão holística e integrada, prevê diretrizes, estratégias e ações, tanto off-line quanto on-line. Compreende-se o planejamento em três níveis hierárquicos principais: o estratégico, o tático e o operacional (Kunsch, 2003; Lupetti, 2000). Para Marcélia Lupetti (2000), um planejamento global da organização é elaborado no nível estratégico, e dele nasce um planejamento tático, e, assim, os planejamentos operacionais, como ilustrado na figura 1. Desse modo, de acordo com a autora, o planejamento de marketing situa-se somente no nível tático, estando o planejamento de comunicação em nível operacional, ou seja, a área de comunicação fica interligada e deriva do marketing. Sumário <<<<< 82 Figura 1 - Sistematização do planejamento global da organização e seus planejamentos táticos e operacionais Fonte: Lupetti (2000, p. 83). Em todos os níveis de planejamento, são definidos “objetivos, estratégias e táticas” (Lupetti, 2000, p. 84) – figura 2. Partindo das proposições da autora, os objetivos de comunicação são estabelecidos a partir dos objetivos de marketing. Com o objetivo de evitar possíveis ambiguidades e imprecisões conceituais, é importante destacar que os termos objetivo, metas, estratégias e táticas podem variar dependendo do autor e do contexto. Nesse sentido, para Lupetti (200, p. 85-86), o objetivo remete a uma descrição clara e precisa do que se espera alcançar a longo prazo, constituindo-se como a finalidade que se busca atingir, enquanto a meta corresponde Sumário <<<<< 83 aos objetivos de forma mensurável – abrange tempo, quantidade e valores. A estratégia “é o caminho que a empresa deverá percorrer para atingir seu objetivo”, de maneira geral, e, para atendê-la, são formuladas táticas, ou seja, um conjunto de ações específicas e detalhadas que devem ser tomadas para implementar as estratégias. Figura 2 - Sistematização dos objetivos, estratégias e táticas empresariais Fonte: Lupetti (2000, p. 84). Na concepção de Lupetti (2010), o planejamento estratégico de marketing envolve missão, objetivos corporativos, análise ambiental (macroambiente e microambiente), análise SWOT, seleção de mercados-alvo, posicionamento, objetivos de marketing, estratégias de marketing, resultados esperados, controle e avaliação. Já em relação ao planejamento de comunicação organizacional, a autora propõe as seguintes etapas: definição de missão; visão e Sumário <<<<< 84 valores voltados à comunicação, estabelecimento de filosofias e definição de políticas; determinação de objetivos e metas; esboço das estratégias gerais; relacionamento de projetos e programas específicos; montagem do orçamento geral; divulgação do plano estratégico da comunicação; implementação; controle das ações; e avaliação dos resultados. A visão de Kunsch (2003, p. 214) difere. Segundo a autora, as diversas áreas organizacionais podem abarcar todos os níveis hierárquicos. O primeiro nível hierárquico refere-se às “grandes decisões estratégicas”, que afetam toda a organização e abrangem uma visão do todo, de longo prazo e considerando tanto ambiente interno quanto externo. O planejamento tático, por sua vez, corresponde a uma dimensão mais específica e pontual. Consiste em um meio para implementação do plano estratégico, levando em conta os recursos disponíveis e os objetivos a serem alcançados a curto prazo. Por fim, o planejamento operacional corresponde à dimensão mais pragmática, a “instrumentalização e formalização” do processo, voltada para a execução e controle das ações, bem como a documentação do plano com cronograma de ações. Adota-se uma perspectiva híbrida das duas propostas. Considera-se que o planejamento estratégico global da organização suscita outros, mas não em níveis diferentes, como Lupetti (2000) apresenta. O planejamento estratégico da organização determina o planejamento estratégico de marketing e dele nasce o planejamento estratégico de comunicação, no entanto, todos no mesmo nível (o estratégico), uma vez que todos eles afetam a instituição como um todo e visam implementar ações com a mesma finalidade organizacional, porém, por caminhos específicos de cada área. Logo, como diz Kunsch (2003), cada área tem planejamentos nos três níveis hierárquicos. No nível estratégico, Sumário <<<<< 85 são formulados caminhos possíveis, de forma ampla, alinhados e mais próximos da visão global. O nível tático visa especificar e detalhar tais caminhos, de forma a tornar os objetivos mais tangíveis. Já o nível operacional, consiste nas ações práticas a serem implementadas, as operações concretas. O processo de planejamento, segundo Kunsch (2003, p. 218-219), abrange doze etapas: identificação da realidade situacional, levantamento de informações, análise dos dados e construção de um diagnóstico, identificação dos públicos envolvidos, determinação de objetivos e metas, adoção de estratégias, previsão de formas alternativas de ação, estabelecimento de ações necessárias, definição de recursos a serem alocados, fixação de técnicas de controle, implantação do planejamento, e avaliação dos resultados. Destacam-se, neste estudo, a parte dos objetivos, da formulação de estratégias e das perspectivas de ações (táticas). No contexto do Terceiro Setor, o meio digital é utilizado como importante canal de comunicação e marketing, segundo a pesquisa “Cenário da Comunicação no Terceiro Setor”, do Instituto Nossa Causa (2019). O relatório observa que 93% das organizações questionadas estão presentes nas redes sociais e que mais de 80% têm um site próprio. Contudo, quanto à produção de conteúdo on-line – dentre o envio de newsletters, a atualização no blog e a elaboração de materiais como infográficos e ebooks –, os percentuais são considerados baixos, ou seja, “uma grande parcela das organizações perde a chance de conquistar autoridade sobre assuntos de seu domínio e o público deixa de ter acesso a conteúdos de grande valor” (Nossa Causa, 2019, p. 21). Cabe ressaltar que, em relação às tendências em comunicação e marketing para o Terceiro Setor, para o ano seguinte à pesquisa, 6 em 9 respostas eram relacionadas ao meio digital – “redes sociais”, “foco Sumário <<<<< 86 no digital”, “produção audiovisual”, “WhatsApp”, “Inbound Marketing” e “aplicativos”. Desse modo, pode-se inferir uma mudança na percepção das organizações entrevistadas em relação ao cenário3 e à transição digital, sendo o meio digital um espaço a ser priorizado. Durante o início da pandemia de Covid-19, no ano de 2020, a construção de uma presença on-line passou de necessária para urgente, principalmente para empresas, setores públicos e organizações do terceiro setor que ainda não haviam feito tal movimento. Marcio Telles e Luiza Santos (2021) discorrem sobre a importância da presença digital neste período e apontam a necessidade da construção de uma exposição on-line significativa, apesar do enfrentamento de desafios diante da dinâmica das redes sociais, do constante e direto contato entre organizações e público, das interações em larga escala, e da disputa de espaço em um mercado saturado. Acrescentam-se aos desafios do meio digital, a produção quantitativa exacerbada de conteúdo para manipular o algoritmo das plataformas, o baixo engajamento orgânico como forma de instigar o impulsionamento pago de publicações, e a “aceleração social do tempo” das redes à “velocidade e o timing impostos pela rapidez – e ansiedade – das mídias digitais” (Terra; Prazeres, 2022, p. 9). Para construção de um posicionamento on-line, utiliza-se sobretudo o marketing digital. Nele, como aponta Paulo Faustino (2019, p. 20), “o conteúdo deve estar no epicentro de qualquer estratégia de marketing digital”. Assim, a formulação da construção de uma presença digital baseou-se no marketing de conteúdo, definido pelo Content Marketing Institute como “uma técnica que cria e distribui conteúdo de valor, relevante e consistente, para atrair e engajar uma audiência claramente definida, com o objetivo de encaminhar o cliente a tomar alguma ação que gere 3 Ainda segundo a pesquisa (Nossa Causa, 2019), muitas organizações reconhecem a importância da área de comunicação e marketing. Contudo, a estruturação e investimento são pontos que precisam ser fortalecidos nesse meio. Sumário <<<<< 87 lucro” (Rez, 2016, p. 16). Rafael Rez (2016) explica que é uma forma de tornar a marca uma fonte de conhecimento relevante, construir um relacionamento confiável, estar presente no processo de decisão, conhecer o público e compreender o que ele busca. É necessário ter em mente que, segundo Cláudio Torres (2009, p. 66), “quando falamos em marketing digital estamos falando sobre pessoas, suas histórias e seus desejos. Estamos falando sobre relacionamentos e necessidades a serem atendidas”, logo, com uma alta carga emocional. O marketing digital, em alguns casos, utiliza retóricas persuasivas, como gatilhos mentais (Amor Divino, 2020), estratégias de escassez, senso de urgência, voltados para a venda e lucratividade em larga escala. Como esses objetivos e táticas não fazem parte do escopo de atuação de organizações do Terceiro Setor, como supracitado, são apresentadas, no tópico seguinte, estratégias possíveis do marketing digital, tendo como estudo de caso o Instituto EcomAmor. Construção das estratégias e táticas utilizadas pelo Instituto EcomAmor Inicialmente, o planejamento estratégico global se configura como uma diretriz de instância superior para as organizações, uma vez que envolve a definição da missão, visão e valores da empresa, geralmente estabelecidos pelo corpo diretivo. A partir dele, o planejamento de marketing e de comunicação, nos três níveis (estratégico, tático e operacional), é criado assumindo uma relação direta e alinhada com as demais áreas da organização. Nesse sentido, com base no planejamento estratégico global da EcomAmor, foi elaborado um plano de marketing contendo objetivos, estratégias, táticas e operações, bem como um plano estratégico de comunicação organizacional integrada. O processo de elaboração de tais planos é complexo e extenso, e, neste capítulo, Sumário <<<<< 88 será apresentado um recorte que foca no objetivo de marketing: captação de recursos financeiros através de doações de pessoas físicas. O marketing de conteúdo foi a estratégia adotada para estabelecer o posicionamento on-line da instituição enquanto promove visibilidade e constrói autoridade da marca. A partir dessa estratégia de marketing, uma das táticas adotadas foi a definição dos canais utilizados para construir tal posicionamento, e suas respectivas ações de comunicação – tópico detalhado no item a), abaixo. Outra estratégia de marketing implementada foi a elaboração da jornada do doador e do funil de doação, descritos no item b). Por fim, no item c), apresenta-se o processo de formulação da estratégia de storytelling, juntamente com suas respectivas táticas, como as diretrizes de linguagem. A tabela a seguir ilustra esses passos: Tabela 1 - Síntese dos planos de marketing e comunicação, estratégias e táticas do Instituto EcomAmor Plano de Marketing Plano de Comunicação Objetivos Captar recursos financeiros através Conseguir que pessoas optem de doações de pessoas físicas Estratégias - Marketing de conteúdo, jornada do doador e funil de doação - Mídias sociais - Campanha de doação para pessoas físicas - Storytelling Táticas Formular uma imagem de marca no meio digital - Definição de canais de comunicação digital - Definição dos temas, canais e ações, de acordo com os objetivos de cada etapa da jornada do doador e funil de doação - Estabelecer ações específicas de cada canal - Estabelecer diretrizes da linguagem por doações financeiras em vez de doações de tempo Fonte: elaboração própria. Sumário <<<<< 89 Antes de adentrar os detalhamentos, o primeiro movimento, que abre essa seção, contextualiza a organização no âmbito geral, abarcando sua origem, estruturação e campo de atuação, bem como a identificação das demandas e desafios a serem enfrentados em relação ao marketing e à comunicação. Breve contextualização O Instituto EcomAmor é uma Organização da Sociedade Civil (OSC) sediada em Goiânia, Goiás, que busca “conectar pessoas para a promoção de cidades sustentáveis por meio da educação socioambiental, da alimentação e da agroecologia a partir do Estado de Goiás”, como descrito em seu site institucional.4 Seu início data de 2016, com a criação de um grupo no Facebook para desenvolver um espaço de compartilhamento e trocas voltado para pensar soluções de segurança alimentar e promover hábitos alimentares mais saudáveis. No ano seguinte, pessoas dessa comunidade digital se uniram para criar uma horta comunitária em um terreno baldio na cidade. Em 2017, a EcomAmor iniciou a atuação junto às escolas públicas, implementando hortas escolares, e, em 2019, adotou a configuração mais próxima da atual, com a criação de um projeto anual de formação pedagógica em educação socioambiental, que envolve capacitação de pessoas educadoras e oficinas com estudantes em temas relacionados a hortas, práticas sustentáveis, alimentação saudável e o bioma Cerrado. No início do novo projeto do ano de 2020, intitulado “Seja Semente, Plante Amor”, a suspensão das atividades presenciais como forma de prevenção contra a Covid-19 levou à adoção da política de trabalho remoto para a equipe, e adequação do modus 4 Disponível em: https://ecomamor.org/quem-somos/. Sumário <<<<< 90 operandi da organização como um todo, sobretudo do uso do seu site, redes sociais e a expansão da presença digital, por ser o principal meio de contato social para divulgação do projeto, engajamento com a comunidade e prestação de contas. Em suma, baseado no planejamento estratégico da organização e análise situacional, foram observados dois problemas de marketing e comunicação. O primeiro diagnóstico foi o de que as pessoas ainda associavam a OSC “somente” à implementação de hortas, ou seja, ainda à atuação nos anos iniciais, e não percebiam a mudança da organização e seu foco na realização de projetos relacionados à causa da educação socioambiental de maneira mais integrada e abrangente, relacionada com outras práticas como alimentação saudável, sementes e compostagem. Desse modo, um objetivo de comunicação estabelecido foi criar uma imagem da organização, vinculada ao projeto de formação pedagógica socioambiental, por meio da divulgação do projeto vigente. Outro problema identificado era que a maioria das pessoas engajadas com a causa e com a organização optava pela doação de tempo de trabalho, ou seja, a participação de forma voluntária, em vez de doação de recursos financeiros. Assim, delineou-se, como um segundo objetivo: fazer com que o público-alvo fizesse doações financeiras, para que a organização conseguisse manter sua estrutura e equipe durante a instabilidade do período pandêmico e, a longo prazo, tivesse como fonte de recursos recorrente a doação de pessoas físicas. a) Os canais de comunicação da EcomAmor Para construção de uma presença digital, é fundamental a definição dos canais de comunicação com o público para distribuir o Sumário <<<<< 91 conteúdo e construir relacionamento. Apresenta-se, por um lado, como nível estratégico, por afetar o todo da organização, e, ao mesmo tempo, como tático, já que são descritas as potencialidades do uso como ferramenta de acordo com o objetivo e o momento da organização. Desse modo, o Instituto EcomAmor possui oito canais de contato com seu público externo: site, blog, e-mail marketing, newsletter “Semente”, perfis nas redes sociais Instagram, Facebook, Youtube e Linkedin, e grupos no WhatsApp. Abaixo, alguns estão apresentados de forma resumida. • Site institucional. Importante ferramenta na construção de credibilidade e legitimidade ao discurso da organização, por facilitar e centralizar informações institucionais. Possibilita disponibilizar dados sobre o histórico de atuação da organização, missão, visão, valores, os trabalhos e projetos realizados, a composição da equipe, e a publicação de artigos e notícias referentes à sua causa. O site é o local para dispor os formulários de captação de contatos, com landing pages vinculadas a materiais produzidos pela EcomAmor, como cartilhas e livros, e cadastro para receber informações pela newsletter. Ademais, constitui-se como forma de marketing para captação de recursos, por comunicar a transparência do uso de recursos (ABCR; ESPM; IPSOS, 2018), com a disponibilização de prestação de contas, relatórios anuais, auditorias e outros materiais. Também é no site que está localizada a página de doação, com depoimentos – estratégia de testemunho para dar credibilidade (Lupetti, 2000, p. 108) –, sobretudo dos beneficiários das ações do instituto, e o blog, descrito abaixo. Sumário <<<<< 92 5 • Blog. Vinculado ao site, o blog é um “canal barato, com alto potencial de conversão, sendo totalmente amigável aos mecanismos de busca, como o Google” (Rez, 2016, p. 141). Os artigos são um tipo de texto comum, a serem publicados como posts no blog, e, com as técnicas de redação da web com SEO5 (otimização para motores de pesquisa), aumentam a relevância e podem ser apresentados nas primeiras posições dos mecanismos de busca, sobretudo aqueles relacionados às palavras-chave da causa ou da organização. Outro ponto importante é que a produção de conteúdo para o blog representa a visão da organização sobre determinados assuntos, além de ser uma forma de registro de experiências, convites, cobertura de eventos, relatos de participantes das ações e demonstração de impacto social. • E-mail marketing e Newsletter. Derivado do inglês, newsletter significa “boletim informativo”. Correspondem às campanhas de e-mail marketing e são “utilizados para construir e manter relacionamentos fortes”, podendo fornecer “dicas úteis, informações relevantes e as principais notícias” (Rez, 2016, p. 145). Na EcomAmor, a newsletter, intitulada de Semente, foi pensada para ser encaminhada mensalmente para o público do Instituto – pessoas cadastradas pelo site, parceiros, banco de dados de processo seletivo, ex-voluntários etc. É uma estratégia voltada para automação (Rez, 2016; Faustino, 2019), com um e-mail de boas-vindas para novos cadastros, e conteúdo para nichos específicos de acordo com formulário preenchido, por exemplo, conteúdos relacionados ao grupo de estudos ou e-mails específicos Termo em inglês que significa search engine optimization. Consiste num “conjunto de várias estratégias e técnicas de otimização de sites ou blogs para que estes sejam mais facilmente entendidos pelos motores de pesquisa, como o Google, por exemplo” (Faustino, 2019, p. 52). Sumário <<<<< 93 para os doadores. Cabe destacar que a Semente mensal tem uma estrutura bem definida, para que se reconheça e se familiarize com a mensagem, baseada em um guia de comunicação elaborado por pessoas responsáveis pela área e pessoas que já haviam passado pela instituição, contendo diretrizes para sua montagem e escrita. • Redes sociais. A EcomAmor possui um perfil profissional nas redes Instagram, Facebook, Youtube e Linkedin, sendo a primeira a mais utilizada. No Instagram, adotou-se a estratégia de mudança de posicionamento, de meros registros para a produção de conteúdo. Os objetivos eram engajamento e alcance. Para isso, como diretrizes, iniciou-se uma criação voltada para posts informativos, com clareza e transparência, postagens de infográficos de resultados, dados sobre os problemas que a OSC buscava resolver, bem como posts interativos, com perguntas e marcações. As postagens eram replicadas no Facebook, enquanto o Youtube funcionava mais como repositório digital, de produções audiovisuais dos eventos realizados, informativos sobre os projetos, reportagens em que o Instituto participava, depoimentos de voluntários e beneficiários, e conteúdos institucionais. • WhatsApp. A plataforma é utilizada como canal de comunicação com o público externo por meio de dois grupos abertos: o grupo EcomAmor, voltado para o compartilhamento de conteúdos e notícias diretamente relacionados à causa da educação socioambiental, e um grupo informativo e de discussão, vinculado ao grupo de estudos com os membros participantes. Sumário <<<<< 94 b) A jornada do doador e o funil de doação Carlise Borges (2020) aponta caminhos possíveis para obter bons resultados nas mídias sociais – como o posicionamento da marca, resultado de longo prazo, e de conversão (como inscrição ou cliques no botão de doar), de curto prazo. A construção de uma presença digital e estratégia de relacionamento objetiva a lembrança da marca, e, para isso, Nascimento (2020) propõe uma sistematização da trajetória (ilustrada na figura 3, abaixo) que o usuário – o público – percorre, até realizar a ação desejada, seja cadastro, compra ou doação. Figura 3 - Jornada do usuário Fonte: Captura de tela, Módulo “Gestão de Mídias Sociais”.6 No primeiro momento, o objetivo é atrair o público, ocorrendo a exposição do possível usuário à marca, o conhecimento da existência da marca/organização. Iniciado o relacionamento com o público, o usuário começa a se identificar, reconhecer e lembrar da marca em situações que remetem à causa ou aos valores compartilhados, para depois investigar a veracidade do que a organização propõe. Por isso, no caso das organizações de Terceiro Setor, a transparência e as provas sociais são de suma importância para a confiança e conquista do público. A quarta 6 Módulo ministrado pela profª. Me. Carlise Nascimento, no curso Comunicação e Marketing do Terceiro Setor - Agente do Terceiro Setor, pela Fundação Escola Aberta do Terceiro Setor. Sumário <<<<< 95 etapa é marcada pela ação, o momento do tornar-se usuário para, posteriormente, se tornar um embaixador da marca, quando o engajamento e a divulgação se tornam espontâneos e orgânicos. Relacionado ao caminho do público à “jornada do consumidor”, há o funil de marketing. Faustino (2019, p. 37) discorre sobre o funil para vendas, estabelecendo 5 estágios (figura 4), como forma de gerar tráfego orgânico e construir um público engajado e leal à marca. Como as organizações do Terceiro Setor demandam estratégias diferentes das mercadológicas, baseadas nas etapas de decisão, a empresa Trackmob e o Instituto Nossa Causa (2019a, 2019b) elaboraram a “jornada do doador” e o “funil de doações”, que correspondem aos estágios que o possível doador passa antes de realizar efetivamente a ação, demonstrado de forma comparativa na figura 2, abaixo. Figura 4 - Funil de marketing x Funil de doação Fonte: Funil de marketing digital para vendas (Faustino, 2019, p. 37) e sistematização própria a partir dos e-books Funil de doações e Jornada do doador (Trackmob; Nossa Causa, 2019a, 2019b). Tendo como objetivo de marketing conquistar novas doações de pessoas físicas, a jornada de doação se configura como importante estratégia para criação de conteúdos, para compreensão do processo de decisão e desenvolvimento de táticas mais efetivas. Os materiais produzidos pela Trackmob e Nossa Causa (2019a, 2019b) Sumário <<<<< 96 apresentam as 4 etapas da jornada. Na primeira, de aprendizado e descoberta, a pessoa não tem conhecimento da organização nem está ciente da complexidade e especificidades da causa. Corresponde ao topo do funil, pela abrangência, ao englobar diversos tipos de pessoas. Ao se cadastrar, interagir e fornecer dados, a pessoa visitante passa a ser um lead, demonstrando que está interessada no conteúdo e deseja mais informações sobre a causa. Ou seja, reconhece o problema para o qual a organização propõe soluções e se engaja afetivamente. Pode-se chamar o lead de “sensibilizado”, por ser uma etapa em que a sensibilização é parte constituinte da estratégia de marketing de conteúdo, segundo o funil apresentado pela BeCause e a Resultados Digitais (2019, p. 11). No terceiro estágio, no meio do funil, o lead tem engajamento e se relaciona com os materiais da organização. Portanto, é um momento que se constitui como oportunidade de conhecer mais sobre o trabalho realizado pela instituição. A “consideração do engajamento” é o estágio de ponderar sobre a ação (BeCause; Resultados Digitais, 2019, p. 11). Neste, “o lead começa a considerar de que forma pode ajudar, procurando quais os meios que as organizações mais precisam de ajuda e que ele pode fornecer, se é doação monetária ou voluntariado, por exemplo” (Trackmob; Nossa Causa, 2019b, p. 11). O conteúdo apresentado foca no impacto social, nos depoimentos de pessoas beneficiárias e nos relatórios de prestação de contas, com indicadores para demonstrar como o apoio do doador é relevante, orientando sobre as formas como a organização precisa de apoio, assim como os meios pelos quais as contribuições podem ser realizadas. Por fim, a última etapa se refere à tomada de decisão de doar. Esta etapa se trata de convencer o lead a ajudar a organização, logo, se tornar um doador. Nesta porção do funil, a agência Be- Sumário <<<<< 97 Cause e a Resultados Digitais (2019, p. 12) apontam que o lead passa de “engajado” e se torna “mobilizado”; se estabelece uma “relação de confiança” e a organização sabe que pode contar com o apoio dele. “O que mais importa é a qualidade do relacionamento”, sendo importante estreitar e manter o vínculo com o doador, assim como informar e nutrir esse relacionamento. Cada estágio possui um objetivo específico e, por isso, também possui canais de comunicação, temas de conteúdo e táticas desenhadas para estabelecer um relacionamento com o doador para que este se engaje tanto com a causa quanto com a organização. No caso do Instituto EcomAmor, almeja-se que ele se engaje com a doação financeira. Considera-se que cada perfil da rede social tem uma abordagem diferente e a necessidade de diversos temas (Faustino, 2019). Diante do exposto, na tabela abaixo são descritas as táticas elaboradas para o instituto. Etapa Aprendizado e descoberta Reconhecimento Consideração Decisão da do problema da solução doação Objetivos Tabela 2 - Táticas elaboradas para EcomAmor, baseadas no funil de doação Despertar o interesse em conhecer o que uma OSC faz e quais os objetivos desta. Mostrar que é necessário lutar para transformar a realidade e isso começa a partir de pessoas que dividem o mesmo objetivo e se mobilizam para realizá-lo. Fornecer uma experiência agradável ao doador, a fim de Fornecer mais Construir mantê-lo sempre informações sobre a autoridade colaborando causa e a organização. no assunto Demonstrar que a e se tornando localmente. cada vez mais doação impactará na Mostrar que a admirador da causa e nos projetos contribuição será organização, realizados pela gratificante e os organização. para trazer recursos bem outros possíveis Manter contato com aplicados. doadores e a pessoa. sentir orgulho de fazer parte da transformação. Sumário <<<<< 98 Site/ plataforma Blog, e-mail de doação, e-mail marketing e redes marketing e redes sociais. sociais. Temas Sobre a OSC; Sobre a causa (problemas que soluciona); cultura de doar; impacto social. Impacto dos projetos; transparência (relatórios e prestação de contas); depoimentos. Táticas - Blog (artigos sobre papel e objetivos da OSC) -Landing Pages de cartilhas e produtos, em troca do cadastro das pessoas; - Redes sociais - conteúdo institucional e informativo, dados dos relatórios, fotos do projeto, e apresentação da OSC. Canais Blog, site e redes sociais. - Blog e E-mail marketing (mostrar, em -Blog (artigos sobre a números e causa, dados e fatos, fatos, como a a importância de organização atua uma doação e como na causa social, ela impacta na causa qual impacto social); que realiza e - Landing Pages os destinos da - Redes sociais doação); conteúdo sobre - Redes sociaiscultura do doar, dados conteúdo sobre o e números sobre o benefício direto problema que resolve da doação, uso e impactos do projeto. de depoimentos de voluntários e beneficiários. Agradecimentos; andamentos e desdobramentos da doação (bastidores). - Experiência na página de doação do site e na plataforma de doação; - E-mail marketing de agradecimento e automação das réguas de relacionamento; - Redes sociais - conteúdo com desdobramento da doação e andamento da campanha. Fonte: elaboração própria. c) O Storytelling e as diretrizes da linguagem Ao apresentar a instituição, os dados e números são importantes para demonstrar o impacto social, mas a ênfase deve ser nas pessoas que realizam o trabalho, como explica Marcelo Douek (2020). Logo, as pessoas devem estar no foco da narrativa – tanto o grupo destinatário como quem fala, as pessoas que formam a organização. O uso da estrutura de narrativa cria conexões afetivas e autênticas. “Contar histórias é sobre humanizar a comunicação” (Douek, 2020, s.l.). Sumário <<<<< 99 O storytelling consiste na utilização de narrativas para expressar a mensagem (Zozzoli, 2012), uma ferramenta de contar uma boa história, para gerar empatia com a audiência, que vai além de uma publicidade e dialoga com um contexto amplo (Carrascoza, 2014). As histórias geram identificação, e consequentemente, engajamento, conexão e mobilização. Como estratégia no marketing digital, o storytelling foi utilizado principalmente na construção de conteúdo nos Stories7 do Instagram. A narrativa, estruturada em início, meio e fim, auxiliava na produção de sentido para quem acompanha o perfil na rede social. O início era marcado pela contextualização, o meio por mostrar a ação da OSC na resolução do problema foco de sua ação, e o fim com a call to action (CTA), cumprindo o objetivo, que era chamar as pessoas para se engajarem na causa da educação socioambiental e realizarem uma doação. Ademais, a narrativa buscou destacar a importância das pessoas envolvidas no trabalho da organização e nas pessoas beneficiárias do projeto, logo, o foco nas personagens dessa narrativa. A fundadora da EcomAmor, Jordana Mendonça, foi destaque principal, contando a história que motivou a fundação da organização, e as pessoas beneficiárias (educadores e estudantes) também foram centrais na narrativa, por meio de relatos demonstrando o impacto positivo do projeto em suas comunidades escolares. Outro ponto de importância foi a reflexão sobre a pergunta de qual problema social e ambiental a OSC buscava solucionar por meio de seus projetos e ações e, a partir dessa criação e consciência sobre sua narrativa, sua causa e impacto local, deu-se consistência às estratégias de comunicação. 7 Agradecimento especial ao Afonso, responsável pelo grupo de trabalho de comunicação em 2019, que formulou a estrutura a ser realizada nos stories e estabeleceu tais diretrizes de linguagem. Sumário <<<<< 100 Cabe destacar que, na formulação da personalidade da marca no meio digital, algumas diretrizes de linguagem foram estabelecidas, ou seja, algumas táticas de comunicação. Para produção de conteúdo textual da EcomAmor nas redes, a preferência era por uma linguagem didática, acessível e não técnica, com uso de palavras femininas (como exemplo, a opção por “as pessoas voluntárias”, em vez de “os voluntários”, ou “a equipe”, no lugar de “o grupo”), e o uso de palavras positivas, otimistas e focadas na criação de soluções. Considerações finais Como exposto, o planejamento estratégico integrado busca estabelecer uma identidade e formas de se relacionar com todos os públicos envolvidos – fornecedores, colaboradores, equipe de trabalho, beneficiários e possíveis doadores, entre outros. O marketing digital é uma dimensão estratégica na construção de uma presença online relevante e coerente. Nela, o marketing de conteúdo foi um caminho possível para atingir o objetivo de marketing definido naquele momento, que era o alcance de doações financeiras de pessoas físicas. Cabe destacar alguns desafios que as OSCs enfrentam na prospecção de doadores pessoa física, como a consolidação de uma cultura de doar no contexto brasileiro para organizações que não sejam diretamente assistencialistas – já que a doação aumentou durante a pandemia, mas em situações e causas específicas (Lourenço; Lontra, 2022), principalmente para as organizações e projetos atuantes na linha de frente de combate ao coronavírus – concomitantemente com a descredibilização e desconfiança com as organizações do Terceiro Setor, advindos de um preconceito ultrapassado da sociedade. Ademais, a melhor Sumário <<<<< 101 estruturação da equipe de marketing e comunicação depende de um quantitativo amplo de fontes de investimento e receitas da instituição, gargalo das organizações de pequeno porte, como é o caso do Instituto EcomAmor. Ao observar o custo versus benefício das estratégias implementadas de marketing digital, o storytelling se adequava aos objetivos de comunicação estabelecidos, e da divulgação do projeto “Seja Semente, Plante Amor”, por mobilizar afetos e dialogar com a linha editorial pensada no planejamento estratégico. Cabe mencionar que a organização não dispunha de recursos financeiros que poderiam ser investidos nas novas estratégias propostas, portanto, uma boa organização e gestão dos recursos humanos, da equipe da área e da ajuda de voluntários, foi fundamental para que o planejamento fosse realizado. A outra estratégia, de marketing de conteúdo, por ser uma estratégia robusta – com abundante produção de conteúdo, de materiais e divulgação –, necessitou constantemente de reavaliação de sua efetividade e eficácia, sobretudo pelo tamanho da equipe, para otimizar os esforços e não haver sobrecarga. É importante apontar que, no caso de grupos enxutos, um mesmo conteúdo pode ser reformulado e adaptado para originar outros diferentes, para seus respectivos canais de comunicação, com o mesmo tom de voz, sem o fluxo de uma comunicação e marketing mercadológicos ou de organizações de grande porte. Apesar das distinções estruturais, observa-se que a comunicação empresarial e as outras vertentes do marketing apresentam potencialidades para formular um planejamento estratégico digital de uma comunicação do Terceiro Setor e do marketing social, com o devido cuidado para que não ocorra a mera transferência dos conceitos, mas uma adaptação a partir de boas práticas que podem Sumário <<<<< 102 ser emprestadas dessas outras vertentes. Não é o caso de descartar ou transpor os elementos, pelo contrário, nota-se o potencial ao utilizar as experiências mercadológicas para compor um repertório e um ponto de partida, como foi o caso da jornada do usuário para a jornada do doador, e do funil de marketing para o funil de doações. Não foram apresentados dados quantitativos referentes à campanha neste estudo, pois eles não são os indicadores utilizados para as métricas de efetividade. Diferentemente do meio mercadológico, no contexto do Instituto EcomAmor, a construção do planejamento estratégico de marketing e comunicação voltado para a campanha de captação de recursos de doadores de pessoas físicas representa um importante passo na formalização e estruturação da área dentro da própria organização. Todas as etapas, desde os bastidores da campanha (como as pesquisas que subsidiaram o diagnóstico e as estratégias, bem como as constantes reuniões com a equipe e feedbacks coletivos), até a implementação, o monitoramento e a avaliação das estratégias, foram significativos por prover parâmetros, possibilitar a redefinição de rotas e vislumbrar novas alternativas de marketing e comunicação com desdobramentos a médio e longo prazo. A elaboração do planejamento estratégico apresentado trata-se de um início de relacionamento com os doadores, de registro e fortalecimento da área dentro do contexto organizacional, e de construção, que tem gerado resultados até os dias atuais. O intuito é registrar e compartilhar o processo, para abrir o diálogo e as trocas de experiências, observando formas de lidar com os desafios e as potências da comunicação e do marketing para organizações de diferentes portes, sobretudo no meio digital, ditado por outro ritmo. Sumário <<<<< 103 Referências ABCR – Associação Brasileira de Captadores de Recursos; ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing; IPSOS. Práticas de marketing e comunicação para a captação de recursos: organizações do terceiro setor brasileiro. ROCHA, I.; NAKAGAWA, M. (Coord.). Online, 2018. Disponível em: https://sinapse.gife.org.br/download/ praticas-de-marketing-e-comunicac%CC%A7a%CC%83o-para-a -captac%CC%A7a%CC%83o-de-recursos-organizac%CC%A7o%C C%83es-do-terceiro-setor-brasileiro. Acesso em: nov. 2022. AMOR DIVINO, M. D. do. O uso dos gatilhos persuasivos no marketing digital e as emoções como âncoras da persuasão. 220. 266 f. Tese (Doutorado) – Curso de Estudos Linguísticos, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020. BECAUSE; RESULTADOS DIGITAIS. Marketing digital para ONGS: como o Marketing Digital pode impulsionar transformações sociais. E-book, dez. 2019. 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Com o início do isolamento social proveniente da pandemia de Covid-19, as empresas precisaram inovar para se manter nessa nova realidade: as que já possuíam presença digital ampliaram a sua comunicação por meio desses canais, e algumas que nem existiam no mundo on-line agilizaram esse processo. 1 2 Pós-doutora em Publicidade e Propaganda pela Universidade de São Paulo. Livre docente pela UNESP. Doutora, mestra e graduada em Letras pela UNESP Assis. Docente da pós-graduação stricto sensu e da graduação da UNESP Bauru. Mestra em Comunicação Midiática pela UNESP Bauru. Graduada em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel e licenciada em Letras Português e Italiano pela Universidade de São Paulo. É neste contexto que a micro marca Sr. Bacana de Bauru nasceu. Lançada uma semana antes da pandemia, logo teve de se reinventar para esse novo contexto, usando como plataforma a mídia social Instagram. Para se diferenciar no mercado de commodities, apostou na memória afetiva do avô acolhedor e bem-humorado, que vende caldo de cana e água de coco há 30 anos na cidade. O percurso metodológico se iniciou com a fundamentação bibliográfica sobre marca, publicidade e mídia social Instagram para uma descrição analítica da história e comunicação da marca no seu primeiro ano de existência, em que, na pesquisa netnográfica, foram explorados todos os 131 posts, sendo 92 artes estáticas, 16 vídeos de IGTV, 23 vídeos reels e 142 stories de destaque, além da entrevista com o idealizador e gestor da marca, Kelvin de Almeida, neto do Seu Waldemar – o Sr. Bacana. A metodologia descritiva funde-se à analítica, embasada em teorias que explicam o relato cronológico das publicações no Instagram e mídias tradicionais – todas espontâneas. Optou-se por esse percurso porque explica a evolução da estratégia de comunicação da marca neste período de um ano, de 8 de março de 2020 a 8 de março de 2021, em que identificamos três fases do Sr. Bacana: 1) lançamento da marca; 2) conexão com a marca; e 3) a marca como influenciadora digital e o aumento exponencial de seguidores, chegando a quase 30.000. Mídias sociais: comunicação mercadológica e humanização da marca A sociedade moderna é caracterizada pelo consumo de massa e pela “era da marca” (Lipovetsky, 2007, p. 26). Muito mais do que o pontapé inicial para a construção da identidade de um produto, a marca é a conexão simbólica entre a empresa e os seus produ- Sumário <<<<< 109 tos, além daquilo que oferece de intangível: sua ideologia, seus princípios e valores, e as pessoas para as quais se destina (comunidade da marca). O discurso publicitário atua, ideologicamente, em três dimensões que se conectam com a marca: na criação da relação entre anunciante e público; na construção da imagem do produto; e na concepção do consumidor como membro de uma comunidade (Carvalho, 2001). A comunicação mercadológica adequada por parte do anunciante está na base da construção e transmissão da sua identidade, produzindo uma imagem positiva da marca, e uma relação proveitosa, amistosa e humana com o público. Principal ativo das empresas, a marca se preocupa quanto à sua reputação perante os consumidores e se empenha para a manutenção da sua imagem positiva nas interações que acontecem nas redes sociais digitais. A comunicação publicitária já passou por várias fases em seu processo de evolução. A fase massiva procurava uma grande abrangência de público; a comunicação segmentada focava os indivíduos com um mesmo perfil de comportamento de consumo; e a comunicação personalizada buscava a qualificação total do público-alvo. A comunicação digital/virtual propicia agora a soma dos três momentos anteriores, permitindo que se atinja, concomitantemente, um público amplo, segmentado e qualificado (Costa; Covaleski, 2014, p. 18). As redes sociais na internet surgiram com o propósito de conectar pessoas. Os usuários estão nas mídias digitais para serem vistos, se relacionarem, se inspirarem, informarem e explorarem novas informações, relacionamentos e entretenimento. O sujeito busca fazer parte da sociedade em rede ao se representar nela Sumário <<<<< 110 (Recuero, 2009). No entanto, conforme o seu uso foi se popularizando, as empresas também passaram a marcar presença e perceberam que elas poderiam ser excelentes canais de comunicação, relacionamento e vendas com os seus públicos. A construção de um perfil de atuação das marcas nas mídias sociais é apenas um dos aspectos a serem considerados na utilização da identidade da marca, que envolve ações planejadas de marketing, relacionamento com os colaboradores internos e externos, decisões de parcerias e produtos (Costa, 2016). A atuação das empresas nas mídias sociais deve estar de acordo com sua ideologia corporativa, e o sucesso nesse meio vai depender da sua transparência e conduta ética, já que os consumidores têm acesso a diferentes meios de informação para verificar sua coerência entre seu discurso e ações. Segundo estudos da Deloitte (2010 apud Costa, 2016), a primeira motivação para as marcas utilizarem as mídias sociais é aumentar a reputação da marca e, em seguida, gerar mais marketing boca a boca. Por isso, as marcas demonstram interesse central em estabelecer uma identidade a ser expressa nas diversas interações nas mídias sociais, o que norteia o tom e o estilo das publicações, defendendo-se de acusações e reclamações e monitorando comentários. Nesse mesmo estudo, observou-se que 27% dos internautas das mídias sociais estão nas redes para interagir com as marcas que tendem a utilizá-las como plataformas de relacionamento, e não apenas como um canal de publicidade. A publicidade, neste cenário midiático complexo, é fundamental para difundir os símbolos marcários, principalmente nas mídias sociais, onde se apela ao engajamento dos consumidores Sumário <<<<< 111 através dos recursos da própria plataforma, como curtir, comentar, compartilhar e o uso de hashtags. Os usuários assumem que são muito mais influenciados a comprar pela opinião de outros usuários do que pelo discurso das marcas. Nas interações on-line, transparece o desejo de pertencer a um grupo, seguir tendências e publicizar o consumo. Nas mídias sociais, 93% curtem marcas que admiram, a maioria para manifestar apoio, e 48% disseram que passaram a admirar mais as marcas após acompanhá-las pela rede social. Assim, considerando que os consumidores têm maior poder de emissão e produção de conteúdos, a relação entre as marcas e os clientes nas mídias sociais pede mais do que publicidade e propaganda, pede comunicação e relacionamento (Costa, 2016). Para isso, segundo essa autora, é interessante manter um relacionamento nas mídias sociais baseado na credibilidade e quebra de hierarquia, interagindo como os usuários de igual para igual, com uma comunicação empática, rápida e transparente, havendo, em casos de falhas, um pedido de desculpas, em vez da dissimulação e indiferença. Todas essas ações de comunicação e diálogo humanizam a marca, que entende os afetos e sentimentos do público. A humanização do discurso das empresas nas diversas mídias emerge como uma forma de aproximar corporações e consumidores com vistas a manter a imagem da marca. Trata-se, portanto, de uma estratégia mercadológica que vai além da obtenção do lucro na venda dos produtos, mas que percebe a possibilidade de valorização da marca através das relações (Costa, 2016, p. 304). Sumário <<<<< 112 Humanizar as marcas envolve adquirir a condição humana de assumir a falibilidade inata ao ser humano, mostrando-se mais afáveis, sociáveis, compreensivos; humanizando-se na maneira de informar e seduzir o público através do humor e da criatividade, que podem ser proporcionados pelo entretenimento e pela diversão. Publicidade e Instagram Assim como o Facebook e o Twitter, o Instagram faz parte das chamadas redes sociais digitais, que são sites e aplicativos que permitem a conexão, interação e compartilhamento de conteúdo entre os usuários (WU, 2019). Rede dedicada exclusivamente às fotos e aos vídeos, o Instagram classifica-se como uma Rede Social de Mídias Visuais (WU, 2019), onde o usuário pode ter uma conta gratuita, seguir e ser seguido por outros usuários e postar de modo público ou privado, fotos e vídeos, além de poder realizar transmissões ao vivo. De acordo com pesquisa da Hootsuite 2021, a plataforma possui mais de 1 bilhão de usuários em todo o mundo, o que permite dizer que 1 a cada 8 pessoas possui um perfil na rede. Desses, 99 milhões são brasileiros, o que coloca o Brasil em terceiro no ranking de usuários, perdendo apenas para os Estados Unidos e Índia. Dados do Business Manager do próprio Instagram mostram que em Bauru são 190 mil usuários. O Instagram, mídia digital em ascensão, como comprova a pesquisa Covid-19: O que o Brasil está assistindo nas plataformas digitais (2020), teve no país o maior número de engajamentos durante o isolamento social: aumento de 93% de interações e o dobro de visualizações, quando comparado ao mesmo período do ano anterior na plataforma. Sumário <<<<< 113 Ela também foi a primeira rede social nativamente móvel (para smartphones e tablets) e, apesar de hoje permitir visualização pelo desktop, seu formato continua sendo próprio para dispositivos móveis. É a rede social das imagens, mais voltada para fotos e vídeos de boa qualidade, atrativos e instantâneos, como diz o próprio nome da plataforma. Assim que estreou, fez bastante sucesso com o público jovem, porém, mais de dez anos após seu início, possui público bastante diversificado e é ideal para o engajamento de marcas bem visuais e que se relacionam com nichos, como as microempresas. A pesquisa Instagram no Brasil 2021 aponta que, no país, 84% dos usuários “logam” diariamente e mais da metade deles entram na rede mais de uma vez ao dia. Outro dado de destaque é que no início da pandemia o uso da plataforma aumentou 72%. Já a pesquisa As tendências das mídias sociais para 2019 apontou que o brasileiro gasta, em média, 53 minutos nessa rede social, cujo engajamento das marcas é 10 vezes maior do que nas outras. Ela também é considerada mais informal, divertida e ideal para mostrar o dia a dia e os bastidores. Os stories (histórias, na tradução livre para o português) permitem a publicação de fotos e vídeos curtos – gerados e gravados direto no aplicativo – que desaparecem 24 horas após a publicação. O recurso, conhecido como ephemeral messaging, permite que seus usuários compartilhem de forma instantânea imagens de seu cotidiano, com a possibilidade de aplicação de alguns filtros ou de inscrições sobre as imagens ou vídeos divulgados, como caracteres de texto e rabiscos a mão livre (Ferreira; Constantino; Lima, 2017, p. 152). Sumário <<<<< 114 Desde o seu surgimento, a ferramenta vem inovando em suas propostas. Acrescentou funções como o zoom, boomerang, stickers, menção de outros usuários, mensagens diretas e filtros. Também virou alvo das empresas para divulgarem suas marcas através de influenciadores e na forma de anúncios pagos diretamente em seus próprios perfis comerciais. O IGTV (ou TV do Instagram) é uma seção de vídeos de maior duração, funcionalidade que é o foco dos influenciadores para conteúdos mais elaborados e também para divulgação das marcas para publicidade. Entre as atualizações mais recentes, incluem a transmissão ao vivo, a criação do Direct, que funciona como um chat e o IGTV, lançado em 2018, que consiste em uma plataforma nova para vídeos verticais. Funciona de maneira similar ao YouTube, onde se permitem publicações de no mínimo 15 segundos e de no máximo de 10 minutos de duração, além da possibilidade de interação entre a pessoa que publica e os demais usuários que a visualizam (Costa; Covaleski, 2014, p. 6). O recurso prioriza a verticalização dos vídeos, que é o modo como se enxerga a tela do celular, diferente do modo horizontal das outras telas, como televisores e computadores. E essa linguagem audiovisual permite a humanização da marca, capacidade da marca de demonstrar que adquiriu condição de ser humano (com suas qualidades e defeitos) e o quanto ela se mostra sociável, afável, compreensiva, boa, empática, generosa, humilde, flexível, bem-humorada, madura, com caráter e humana. O seu Instagram é a sua vitrine. Mas essa vitrine não tem nada a ver com o que você vê Sumário <<<<< 115 nos corredores de um shopping. Não é apenas para expor os seus produtos ou serviços, e sim para revelar a sua produção de conteúdo, o seu posicionamento, as transformações, os benefícios e soluções que o seu produto ou serviço levam aos seus clientes (Munhoz, 2020, p. 14). Na era do marketing 4.0 (Kotler, 2017), o consumidor demanda facilidade e velocidade de informação e comunicação, que agora integram marketing tradicional e digital, gerando valor à marca perante o mercado, por meio do marketing de conteúdo, da interação, do relacionamento com o consumidor, em um processo de compra ainda mais personalizado. Essa convergência visa aumentar a conexão e o engajamento dos clientes com a marca e a sua defesa, com a produção e divulgação de conteúdo útil e relevante na internet para atrair a atenção e conquistar o consumidor on-line. Seu Waldemar: o rosto e a voz da micro marca Sr. Bacana Antes de apresentar a marca Sr. Bacana, é preciso identificar Seu Waldemar de Almeida, segundo seu neto e idealizador da marca, Kelvin de Almeida (2021). É um senhor de 87 anos que, após 27 anos de dedicação à antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, se viu desempregado e com seis filhos para criar. Isso aconteceu em 1989, ano em que decidiu comercializar caldo de cana e água de coco no centro de Bauru, onde ficou por 30 anos, até o início da pandemia. Em sua Kombi amarela, comercializou a bebida, faturando de R$30,00 a R$50,00 por dia em valores atuais, até que, em março de 2019, Almeida, empreendedor, designer e seu neto, fez um post em seus stories do Instagram e Facebook apresentando a garapa do seu avô. A ação consistiu em pedir que, na compra do Sumário <<<<< 116 caldo de cana, as pessoas mencionassem que haviam visto o post na internet para ganhar um “chorinho” da bebida. Para Seu Waldemar, a internet “era papo furado” do neto e não via possibilidades de mudar o seu negócio. Entretanto, a quantidade de pessoas que apareceram e falaram que era por causa da “internet do neto” surpreenderam o garapeiro, que passou a acreditar no poder do meio digital. Seu Waldemar era, até então, apenas mais um dos vendedores ambulantes de produtos commodities da cidade de Bauru. Mas, depois desse experimento bem-sucedido, finalmente o avô permitiu que o neto reformulasse seu modelo de negócio, que passaria a ter nome e embalagem personalizados, além de outras estratégias que transformaram sua atividade de moer cana na marca Sr. Bacana. Para a identidade conceitual da marca, Almeida (2021) criou um layout “premium”, que incluiu logotipo, papelaria, rótulos, embalagens, aventais, personalização da Kombi e um carrinho – loja móvel para uso em feiras de condomínios e em diferentes pontos da cidade. Segundo o neto, a origem do nome do Sr. Bacana está ligada a três características: referência a milionário, apelido carinhoso que Seu Waldemar atribuiu ao Kelvin por trabalhar demais e acreditar que isso o deixaria rico; referência a pessoa agradável; e inserção do nome do produto – cana. A cor verde faz alusão aos produtos naturais comercializados – cana e coco – e ao poder da transformação da natureza, que de uma semente se transforma em uma planta comestível (Almeida, 2021). O desenho estilizado do Sr. Bacana, fumando um cachimbo e segurando várias canas-de-açúcar embaixo de um portal, remete a uma parede da casa do avô. Sumário <<<<< 117 O perfil do Sr. Bacana traz sua marca, seu segmento, o ator da marca Seu Waldemar como Sr. Bacana, seu diferencial, sua localização (Bauru-SP), o apelo à compra, e o link direto para o WhatsApp da marca, facilitando as vendas. Reapresentar essas bebidas, o caldo de cana e a água de coco, mas principalmente o caldo de cana que é uma bebida muito nostálgica e muito barata sem valor agregado e o posicionamento da marca é mostrar que existe sim um valor agregado, que é intangível, que é uma memória afetiva, mostrar a melhor versão que essa bebida tem, através de um design contemporâneo, uma embalagem bonita, da qualidade, principalmente higiene, se você for no centro da cidade não consegue encontrar um garapeiro que apresente um padrão de higiene, então a ideia é reapresentar esse produto contando uma história, que é a história do meu avô (Almeida, 2021). A estratégia da marca Sr. Bacana é, portanto, remeter à memória afetiva do público, imaginário coletivo ou individual, que desperta recordações criadas por meio de emoções, sentimentos tocantes e momentos que, de alguma forma, nos formam como indivíduos (Rochneski, 2018). O Sr. Bacana, um avô bem-humorado que mói cana e fura coco, nos transporta ao passado, ao aconchego da família, à nostalgia de um tempo bom. Essa estratégia de ressignificar os modelos tradicionais de publicidade nas mídias sociais, de despertar a memória afetiva do público com um avô “bonachão”, oferece um produto da infância, facilita a conexão e a empatia com a mensagem da marca. Sumário <<<<< 118 O foco da marca é a figura do meu avô, não a comunicação dos produtos que são commodities (cana e coco), a estratégia é adicionar significado ao produto e como ele era apresentado, trazendo a figura do avô como elemento principal da marca, por conta disso trazer a memória afetiva e transformá-lo em avô de todo mundo, mostrá-lo como um cara acolhedor, uma pessoa simpática, que é como ele é mesmo (Almeida, 2021). A marca conta a história do seu avô e sua parceria com o neto, que é grato pela sua dedicação à família, neto que sente prazer em repassar esse amor e tradição às futuras gerações. Almeida, em 2020, não só lançou a marca em parceria com o avô, mas também se inseriu na logística do negócio, envasando o produto nas novas embalagens, auxiliando nas vendas on-line, e entregando para os clientes em domicílio. Ou seja, o neto é também o administrador do negócio. Após análise exploratória dos posts, stories e reels da marca Sr. Bacana, além do aparecimento em mídias espontâneas locais e nacionais, observamos três momentos de evolução da marca e suas estratégias de comunicação e vendas. Lançamento da marca - 08/03/2020 a 05/05/2020 A identidade visual da marca foi lançada no Instagram3 em 08/03/2020, assim como seus valores, suas novas embalagens, a Kombi envelopada e a personificação da empresa pelo Seu Waldemar, Sr. Bacana, o avô garapeiro. Com o início da pandemia, a marca deu uma pausa nas suas atividades para se reinventar: lançou o serviço de entrega em casa, apresentou a sua história e a Sra. Bacana. A alma da marca é 3 https://www.instagram.com/senhor_bacana/ Sumário <<<<< 119 a relação de amor do neto pelo avô e vice-versa, a luta diária para manter a família com seu trabalho honesto, valores com os quais o público se identifica. Seu Waldemar, o ator da marca, aparece pela primeira vez para protagonizar muitas histórias bem-humoradas, posts com argumentos racionais sobre seus produtos, seu valor nutricional, os endereços dos pontos-de-venda, cardápio com preços e a entrega em domicílio. Além de seduzir o consumidor com argumentos emocionais, com sugestões deliciosas de consumo dos produtos e o brinde de palitos de cana-de-açúcar, que remete à infância no interior. A marca Sr. Bacana lança mão de funcionalidades do Instagram para interagir com o público, com perguntas nos stories e solicitação de marcação de amigos para propagar a marca. Com o delivery, os pedidos são pelo direct (mensagem privada do Instagram) ou pelo WhatsApp. E como não atender a um “pedido de vô”? Gradualmente, a marca se coloca em posição de igualdade com seu público, que agora também tem poder de decisão sobre ela, ao ser consultado, por exemplo, sobre qual modelo de uniforme deve adotar. O propósito da marca Sr. Bacana é apresentado: vai além de vender caldo de cana e água de coco, é o de transferir a experiência, a história de vida desse avô para o neto, que tanto o admira. Nasce uma marca que vende produtos commodities de uma forma afetiva, que remete à nostalgia de uma geração passada, que quer ser perpetuada pelo jovem neto. O primeiro story da marca traz o Seu Waldemar, o próprio Sr. Bacana, convidando os seguidores a conhecerem o delivery da empresa. A marca é humana, tem voz e rosto. Sumário <<<<< 120 A marca também traz conteúdos sobre a história da matéria-prima, cana de açúcar, e informa os benefícios do produto, argumentos racionais para convidar seus seguidores a marcarem um amigo que gosta da bebida, ou seja, a propagarem a marca voluntariamente. A nova “economia afetiva” incentiva as empresas a transformar as marcas naquilo que uma pessoa do meio da indústria chama de “lovemarks” e a tornar imprecisa a fronteira entre conteúdos de entretenimento e mensagens publicitárias. Segundo a lógica da economia afetiva, o consumidor ideal é ativo, comprometido emocionalmente e parte de uma rede social. Ver o anúncio ou comprar o produto já não basta; a empresa convida o público para entrar na comunidade da marca (Jenkins, 2009, p. 47). No fim dessa primeira fase, a Sra. Bacana também é apresentada ao público, a avó que também ajuda no negócio, explica a estratégia da marca no Instagram, mas que, acima de tudo, forma com o Sr. Bacana um casal feliz, simbolizando segurança, amor e aconchego familiar. Conexão com a marca - 6 de maio de 2020 a 30 de outubro de 2020 Decorridos dois meses de campanha, a marca Sr. Bacana alcançou 1.000 seguidores, o que indica que houve identificação do público com suas mensagens. Marcam esta fase: parcerias com celebridades da cidade; autoridades em nutrição explicando os nutrientes e usos funcionais desses alimentos; presença na mídia espontânea local na TV Tem (Revista de Sábado e Tem Notícias), na TV Record Paulista, no Jornal da Cidade e no portal Solutudo; Sumário <<<<< 121 além do primeiro evento e comentários positivos dos seguidores sobre o produto e o propósito da marca. A estratégia da marca Sr. Bacana de conquistar lovemarks e moldar a sua reputação, constrói-se pelas interações com o cliente, por meio de uma comunicação humanizada, sem hierarquias, com um ator da marca que cativa o público com suas histórias. Storytelling consiste em, como o próprio nome indica, «contar uma história», ou seja, dar forma ao conteúdo seguindo um tema ou uma determinada «voz». Pretende transportar o consumidor, criar na sua mente uma imagem vívida sobre a marca, produto, serviço ou conteúdo (Afonso; Borges, 2013, p. 188). O Instagram é a mídia social adequada para pequenas histórias, rotina da atividade profissional do Sr. Bacana, os bastidores da marca, o dia a dia dos atores, e curiosidades do passado das personas (recurso do #tbt que permite postagens de algo que dê saudade às quintas-feiras), como a informação sobre como Seu Waldemar escolhe seus fornecedores há 30 anos, todos pequenos produtores em sítios locais que permitem a visitação e a verificação da procedência. A marca ganha visibilidade e conquista dois espaços de mídia espontânea na emissora de televisão líder de audiência, TV TEM, afiliada da Rede Globo nas regiões de Bauru e Marília, Sorocaba e Presidente Prudente. Ambos os programas mostram como o Seu Waldemar reinventou seu modelo de negócio durante a pandemia, criando a marca Sr. Bacana. Essa visibilidade e reputação trazidas pela mídia tradicional TV reforçam que a revolução dos meios pós-massivos não representa o fim dos meios massivos, mas a sua transformação; a Sumário <<<<< 122 estrutura dos meios de comunicação de massa é importante para formar o público, dando-lhes um sentido de comunidade e pertencimento local (Costa, 2016). (...) as mídias tradicionais mantêm posição de destaque em credibilidade. Ainda que em constante mudança e em evolução tecnológica, os consumidores se mantêm fiéis a determinados hábitos e comportamentos, o que confirma a força da TV como um dos principais meios de comunicação, mesmo na era da conectividade”, explica Giovana. Nesse contexto, a diretora da Kantar IBOPE Media ressalta a importância dos veículos de comunicação produzirem conteúdos que realmente chamem a atenção de seus públicos. Destacou as produções locais e o jornalismo, que é âncora para consolidar a importância da televisão em sua posição destacada (SERTSC, 2019). Ao ser divulgada em um telejornal e um programa de entretenimento, ambos locais e mídias espontâneas, não pagas pela marca, conteúdos de interesse do público e não em forma de publicidade tradicional, a marca ganhou a credibilidade e o status de que o meio TV se reveste. A abordagem humorística nas postagens inclui memes viralizados que fazem sucesso entre o público jovem e o Seu Waldemar, como a dança “os 4 caras que as minas se amarram”, trilha sonora e coreografia que foram amplamente interpretadas na rede social Tik Tok e que migrou para o Instagram – este vídeo teve 7.000 visualizações. A marca sugere formas de consumo de seus produtos para o público que busca uma alimentação natural e saudável. Equilibra, por- Sumário <<<<< 123 tanto, argumentos lógicos e emoção para persuadir o consumidor, combinando lógica e emoção, realidade e fantasia (Costa, 2016). A razão de ser do branding é alimentar o poder das marcas e ter um impacto significativo na sociedade, mais do que apenas no mercado, e isso só é possível quando é bem claro qual sentimento a marca desperta e quais são seus valores intangíveis (Troiano, 2017). Pelos depoimentos do público do Sr. Bacana, a marca transmite alegria, nostalgia, dicas para uma vida saudável e leve, evocando momentos nostálgicos e transformando hábitos e costumes de seus clientes e consumidores, que agora consomem a água de coco e caldo de cana porque essa marca adquiriu relevância em suas vidas, ou seja, o Sr. Bacana compreendeu os sentimentos de seu público. Marcas com alma contam histórias e geram engajamento (Telles, 2010): Seu Waldemar conta como passou de empregado da Cooperativa Noroeste a comerciante no Ceasa, até montar sua primeira barraca de caldo de cana. Para se diferenciar de outros vendedores desses dois produtos commodities (caldo de cana e água de coco), a marca Sr. Bacana apela às emoções. O apelo emocional é o diferencial da marca Sr. Bacana, que estabelece contato com os consumidores por esse recurso ilimitado (Jenkins, 2009). A história de Seu Waldemar com a sua esposa, de um casamento feliz e duradouro, remete à mitologia moderna do amor e do happy end (Morin, 1977), imagens concernentes à vida prática e imaginária do seu público que se identifica e se projeta nessas histórias. Com o sistema de entrega em casa, o lucro com as vendas aumentou 400% em três semanas, sendo necessário contratar um entregador, e passando, em três meses, a 1.200% de resultado da Sumário <<<<< 124 gestão da comunicação no Instagram e estratégias mercadológicas. E a marca Sr. Bacana revela todo esse trabalho ao seu público, que também ajuda a construir esse seu empreendimento. A marca como influenciadora digital - 31 de outubro de 2020 a 8 de março de 2021 De 3.000 seguidores, neste período, a marca Sr. Bacana passa a ter cerca de 30.000, após aparecer no programa de TV aberta Globo, Caldeirão do Huck, programa com audiência nacional, em 27 de fevereiro de 2021. Ganha status de marca influenciadora digital (Terra, 2021), que passa a divulgar micromarcas da cidade e região, inseridas em histórias que mostram o lifestyle, uma rotina simples, apostando sempre no bom humor. Para se tornar referência é preciso ter um público assíduo nas mídias sociais, para que os seguidores se sintam representados e criem o sentimento de identificação. Com esse poder de representatividade, as marcas locais fazem parcerias com a marca Sr. Bacana, usando-a como um meio entre o consumidor e um porta-voz da marca, facilitando a maneira de negociar (Freitas, 2020). Engajamento, alcance e relevância são os aspectos principais para caracterizar um usuário da rede ou uma marca como influenciador digital. A audiência, ou seja, o número de seguidores os categoriza. Para Piza (2016), “um indivíduo torna-se influenciador quando consegue manter uma audiência cativa por um período constante, ou seja, quando as variáveis alcançam relevância e ressonância e articulam-se entre si”. O Sr. e a Sra. Bacana, como microinfluenciadores (Kuak, 2020) com alcance regional ou local, possuem grande confiabilidade e Sumário <<<<< 125 relevância por sua proximidade com seu público e vivência da mesma realidade, o que proporciona a eles um maior engajamento. A reputação da marca na mídia social Instagram credencia seus atores a recomendar marcas locais, como a empresa Massas Dona Thereza, pastifício de Macatuba, na região de Bauru, e Ceará Magazine, loja bauruense de enxovais, além de outros comércios locais que presenteiam o casal com seus produtos publicizados no perfil. Se os seguidores são coprodutores da divulgação da marca, Seu Waldemar compartilha com eles seu sucesso nesse empreendimento, instaurando o humor quando se posiciona como autoridade, não só na arte de produzir caldo de cana, mas como empreendedor bem-sucedido nas suas estratégias de comunicação e vendas. O vídeo foi visualizado 5.878 vezes. A Sra. Bacana como microinfluenciadora também divulga a empresa Confiança Supermercados, rede bauruense de supermercados, que possui sete unidades em Bauru e mais cinco em cidades do interior do estado de São Paulo. Acontecimentos familiares, como a comemoração das bodas de platina, 65 anos de casados, reafirmam os mitos do amor, da felicidade e do happy end (Morin, 1977), “a prova de que a felicidade é possível”, mesmo com uma vida simples, mas em família – o avô que conta histórias em uma mídia social com funcionalidades audiovisuais; a combinação perfeita para o arquétipo do avô, cujas imagens são de natureza coletiva: entre os arquétipos junguianos, representa o inocente (natural e bondoso) e o bobo da corte – espírito extrovertido, que ri de si mesmo (Jung, 1942, apud Mark; Pearson, 2001, p. 18). Sumário <<<<< 126 Segundo seu neto (Almeida, 2021), a estratégia da marca se ancora sobre estes dois arquétipos. A essência da marca relaciona-se ao valor de uma vida simples, mostrando a casa deles do jeito que é há anos, a forma como os avós se vestem, sem nenhuma produção, mensagens sempre bem-humoradas, provocando o riso e a empatia nos seus seguidores. Os avós de 30.000 seguidores têm responsabilidade social e o posicionamento político claro: são a favor da ciência. Essa credibilidade dos atores influencia positivamente seu público a uma atitude construtiva socialmente, ou seja, essa marca promove produtos e serviços próprios e de outras empresas locais, mas também se preocupa com o bem-estar coletivo. Considerações finais Em uma experiência inédita, a marca Sr. Bacana, para se destacar no negócio commodity bauruense de venda de caldo de cana e água de coco, é personificada por um avô que ainda trabalha e tem muita história para contar, sempre com bom humor, um lifestyle simples e com um casamento longevo. Esse avô conhecido na cidade remete à memória afetiva do avô de todos, que sempre aconchega e está bem-humorado. No contexto pós-massivo, o idealizador da marca, Kelvin de Almeida, transformou a atividade do seu avô, Seu Waldemar, um senhor de 87 anos, em uma marca com alma digital, tendo como principal canal de comunicação e vendas a mídia social Instagram. Com a vantagem de ter 30 anos de tradição, adotou uma estratégia para reinventar os negócios do avô e dar continuidade à empresa. A alma da marca é um gesto de amor e gratidão do neto ao Seu Waldemar por sua luta para cuidar da sobrevivência da família Sumário <<<<< 127 e perpetuar essa tradição cultural para outras gerações. É uma marca genuína, com propósitos bem definidos, e com os quais o público se identifica, se diverte e se encanta. Essa sensação de nostalgia, ouvir histórias de um tempo bom em que a vida era mais tranquila, aproxima os clientes da marca, pois o Sr. Bacana é uma pessoa simples, transparente ao dialogar com seu público, que informa a todos sobre a condução do seu negócio, pede opinião sobre decisões da empresa e aceita desafios engraçados propostos pelo neto. Essas intenções da marca Sr. Bacana convergem com o Instagram, já que essa mídia social oferece funcionalidades como os stories e os reels, cuja linguagem audiovisual é perfeita para despertar sensações sentimentais não apresentadas até então por nenhuma rede social. Com alma digital e produtos que remetem à nossa infância, a marca Sr. Bacana representa uma fusão entre o tecnológico e o tradicional, tem rosto, voz e história de vida. Sua comunicação mercadológica é humana, empática, dialógica, fugindo aos cânones tradicionais da publicidade intrusiva e apelativa. Os clientes optam por seguir a marca, querem se relacionar e se divertir. A página da marca no Instagram conseguiu tamanho destaque a ponto de gerar mídias espontâneas, como jornais impressos, telejornais locais e participação no programa Luciano Huck, da TV Globo. Tamanho alcance e engajamento contribuíram para que a marca se tornasse promotora de várias marcas do comércio local, alçando-se ao status de marca influenciadora digital de produtos alinhados com sua proposta de uma alimentação saudável e natural, devido à credibilidade e reputação alcançada em um ano de vida. Sumário <<<<< 128 Em tempos de economia afetiva, os consumidores querem imergir no universo das marcas através de narrativas que instiguem a busca por experiências satisfatórias, ao mesmo tempo que se envolvem emocionalmente com os produtos que consomem. O público busca autenticidade e verdade, como o Sr. e a Sra. Bacana, avós como nossos avós. Enfim, a marca Sr. Bacana na plataforma Instagram é um exemplo da oportunidade de consolidação das mídias sociais como ferramenta de comunicação publicitária, com estratégias digitais criativas e diversificadas. Na cultura pós-massiva, o paradigma é a conexão entre marcas e pessoas, e, para se manter sustentável nesse cenário, é preciso inovar e ter uma identidade, imagem e reputação humana, flexível, ética e verdadeira. Referências AFONSO, C.; BORGES, L. Social Target: da estratégia à implementação. Rio de Janeiro: Top Books Editorial, 2013. ALMEIDA, K. Entrevista via WhatsApp. Bauru, 12 mai. 2021. CARVALHO, N. Publicidade: a linguagem da sedução. 3.ed. São Paulo: Ática, 2001. COSTA, S. A. Publicidade e sociedade de consumo. In: BEZERRA, Beatriz Braga (org.) Publicidade e consumo: entretenimento, infância, mídias sociais. Recife: Editora UFPE, 2016. COSTA, S. A.; COVALESKI, R. A humanização do discurso das marcas diante das novas experiências de consumo. 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Sumário <<<<< 132 PARTE 2: CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA, TECNOLOGIAS DIGITAIS E AGÊNCIAS PUBLICITÁRIAS Um olhar sobre a práxis criativa das agências de publicidade digital contemporâneas1 Maria Cristina Dias Alves2 Tempo de incertezas As transformações no trabalho das agências de publicidade têm sido cada vez mais aceleradas, seja no próprio modelo de negócio, fluxos e organogramas, seja em relação à indefinição do que é ser publicitária ou publicitário hoje. Exercitei um olhar atento para esses movimentos, uma vez que vivenciei muitos deles no meu próprio fazer como criativa publicitária em agências, inquietação que me levou à pesquisa de doutorado e, mais recentemente, de pós-doutorado. Na primeira, objeto deste texto, realizei uma pesquisa de cunho etnográfico em três modelos de agências brasileiras: tra- 1 Texto similar foi publicado em periódico da área, revisto para esta publicação com atualizações e novos aportes. 2 Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde é docente do curso de graduação em Publicidade e Propaganda. Publicitária e integrante dos grupos de pesquisa (CNPq) Comunicação, Consumo e Arte, da ESPM/SP, e GESC3, da ECA/USP. E-mail: crisdias@usp.br | crisdays@gmail.com dicional, digital e colaborativa3 para acompanhar de perto os processos criativos das duplas de criação, além de localizar o papel dos profissionais junto à ação dos dispositivos tecnodiscursivos no que conformam homogeneidades, metodologias e controle. Me ative à observação participante, além de entrevistas em profundidade. As observações e análises foram realizadas na perspectiva da interação, cuja gramaticalidade permite categorizações de processos e distinção de modelos de negócio a partir de um quadro teórico que abarca os conceitos de dispositivo (Foucault, 2000; Deleuze, 2009; Agamben, 2011), de mediação (Lopes, 2018; Mártin-Barbero, 2009) e de midiatização (Braga, 2012; Véron, 2014; Hjarvard, 2012) nos procedimentos de trabalho. Situo a organização agência de publicidade e seus processos de trabalho, como o uso de aparatos técnicos (as máquinas e os sistemas), as divisões dos departamentos (físicas e organizacionais), os processos comunicacionais publicitários e os procedimentos, as reuniões de briefing, enfim, o organograma e fluxo de trabalho – que ocorre em um espaço físico específico –, como constituintes dos dispositivos, sejam discursivos (como as nomeações de departamentos e cargos), de tecnicidade, de controle, de criatividade e de produtividade, cujas práticas constituem os sujeitos e a própria organização. Desse modo, investiguei também a presença dos dispositivos nas práticas dos profissionais4 de criação, conformando circuitos (Braga, 2012a) a partir de diferentes suportes, sejam analógicos ou digitais, para alcançar um contrafluxo ad infinitum por meio 3 Foram pesquisados três modelos de agências, entre as 20 maiores do país, localizadas no maior mercado nacional, que é a cidade de São Paulo: uma tradicional, originalmente voltada para a mídia off-line; uma digital, com trabalhos para as mídias digitais, redes on-line e projetos de e-commerce e, enfim, uma colaborativa, modelo híbrido de negócio publicitário que congrega várias atividades afins. As agências, clientes e nomes dos profissionais não foram divulgados por acordo de confidencialidade (Alves, 2016). 4 Utilizo o gênero masculino dada a presença maciça desses profissionais da criação e, principalmente, à confidencialidade exigida na pesquisa. Não se trata de um juízo de valor. Sumário <<<<< 135 do engajamento de consumidores, um dos imperativos da publicidade contemporânea. Para (Braga, 2009), a midiatização é um novo processo interacional de referência, movimento que vai das estruturas a processos, e de instituições (ou grupos delas) para uma classe de atividades, sistemas processuais e não estruturais: “é preciso pensar que os processos geram estruturas tanto quanto as estruturas se realizam em processos” (Braga, 2006, p. 30). Nesse sentido, os dispositivos midiáticos são produtos e, ao mesmo tempo, produtores de transformações, implicam na autonomia de emissores e receptores, modificam e distorcem sentidos, bem como a relação espaço-tempo: “os fenômenos midiáticos são uma precondição de sistemas sociais complexos, e por isso a midiatização possui tanta importância quanto estes” (Verón, 2014, p. 14). Verón se volta à análise da sociedade em vias de midiatização desde os anos de 1990, por considerá-la muito mais complexa do que as anteriores, devido à institucionalização da mídia e as consequentes mudanças sociais. Para o autor, a midiatização faz parte da continuidade histórica de fenômenos midiáticos e não em decorrência da modernidade. Seria uma consequência, sim, da nossa capacidade de semiose (Verón, 2014, p. 14), considerando a midiatização a partir de uma tradição social-construtivista, como Braga (2012) e Fausto Neto (2010). Já Hjarvard (2012) considera a midiatização um processo macrossocial (comparada ao processo da globalização) instituído por uma lógica da mídia: “ modus operandi institucional, estético e tecnológico dos meios, incluindo as maneiras pelas quais eles distribuem recursos materiais e simbólicos e funcionam com a ajuda de regras formais e informais” (Hjarvard, 2012, p. 64-5), uma tradição institucionalista. Sumário <<<<< 136 A partir dessa lógica, o autor distingue midiatização direta e indireta, diferenciação que permite compreender modos de interação. Há midiatização direta quando determinadas atividades são transformadas na interação com os meios, como acontece com o uso de aplicativos de videoconferência e ainda serviços on-line de bancos, entre outros. Já na midiatização indireta, são os mecanismos midiáticos e os símbolos que influenciam as atividades, ao criar contextos culturais. Há, ainda, a intertextualidade entre meios e instituições (Hjarvard, 2012, p. 67, 68); como exemplo, temos as séries criadas e produzidas em diversos países, acessíveis nas plataformas de streaming, que influenciam a apreensão das práticas socioculturais de tantas e tão diferentes culturas. Em minhas pesquisas, considero a midiatização como um instrumento heurístico para analisar processos, como sugere Braga (2012), não a dissociando das mediações comunicativas da cultura, de Mártin-Barbero (2009), que há anos sinaliza as transformações culturais a partir de uma visão contrária ao pensamento único que faz da tecnologia “o grande mediador” entre as pessoas e o mundo (Lopes, 2014). “O que está aí implícito é a recusa do sentido instrumental de tecnologia tão sedimentada nos estudos de comunicação” (Lopes, 2018, p. 21). Nesse sentido, o adensamento da mediação da tecnologia a torna estrutural para Mártin-Barbero, resultando em novas percepções, novas linguagens e sensibilidades, como se referem Pienz e Cenci (2019). A proximidade entre ambos os conceitos também é apontada por Barros (2012, p. 88), sendo as mediações comunicativas da cultura voltadas às interações sociais que ocorrem pela mídia, e a midiatização da cultura para as práticas sociais decorrentes da lógica da mídia. Sumário <<<<< 137 Midiatização é um conceito sensibilizante em torno do qual vários pesquisadores se reuniram, interessados em uma investigação empírica da importância do papel que a mídia desempenha na transformação da cultura e da sociedade. [...] Sob esse ponto de vista, o termo midiatização refere-se a um discurso aberto e contínuo de teorização sobre transformações sociais e culturais em relação à mídia e às comunicações (Hepp, 2020, p. 15, tradução nossa). A escolha pela aproximação entre mediação e midiatização possibilita observar e classificar a interação em processos de trabalho, ou seja: os modos de fazer das duplas de criação compostas por redatores, diretores de arte e, inclusive, programadores, combinados a outras conexões, implicadas nas anteriores, mas nem sempre percebidas. O excesso de informações fragmentadas na rede on-line acelera processos, permite acesso a tudo por todos e muitos profissionais não se dão conta do caráter plurissígnico da publicidade, conformado em procedimentos sistêmicos. Uma agência digital entre as agências de publicidade Para dar conta das classificações dos tipos de agências de publicidade digitais contemporâneas, realizei uma pesquisa exploratória sobre formatos e fluxos de trabalho na qual foi possível distinguir dois tipos: agências prestadoras de serviços de comunicação por meio de plataformas digitais, games, aplicativos e criação de peças diversas para a rede on-line; e as que executam serviços de TI (tecnologia da informação), gestão de dados e marketing digital, ainda que essa terminologia não comporte a abrangência dos possíveis serviços prestados. A revisão bibliográfica permitiu compreender modelos distintos de negócio das Sumário <<<<< 138 agências digitais, sem, contudo, encontrar estudos conclusivos do campo da comunicação. Essa incerteza decorre das definições do tipo de trabalho que essas agências realizam, cuja consolidação tem sido alterada com a ascensão das empresas de tecnologia à categoria de agências digitais, como ocorreu com a Accenture, ao adquirir a New Content, no Brasil, e a Droga 5, de Nova Iorque, entre outras empresas, se tornando a maior rede de agências digitais do mundo (Isto É Dinheiro, 2021). A inconclusão sobre esse modelo de agência fez com que meu olhar se voltasse para o fim dos anos de 1990, quando as empresas de computação, especializadas em sistemas de automação ou de multimídia, realizavam a maioria dos serviços para a internet. Apenas em 1994, as primeiras peças publicitárias brasileiras começaram a ser criadas, com a chegada das empresas de pesquisa on-line e os chamados buscadores, que atraíram consumidores ávidos por encontrar na web os sites de empresas e realizar compras, como relata Pinho (2000, p. 192, 193). Entretanto, foi preciso um ano para que as empresas se interessassem pela visibilidade proporcionada pela web, por ser considerada um sinal de “modernidade”, escreve o autor. Na agência digital pesquisada, há departamentos específicos do universo digital, como os de TI, o de projetos, e, inclusive, de e-commerce, e, ainda, outros que são formados à medida que os processos de trabalho requerem novas competências, tal como ocorreu no departamento de mídia com a chegada dos profissionais de BI (business intelligence), de performance e os analistas de mídias sociais. Essas denominações trazem normatizações que, por sua vez, remetem ao conceito de dispositivo, localizado num jogo de poder, “as estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (Foucault, 2000, p. 140) – poderes e Sumário <<<<< 139 saberes que seriam uma terceira dimensão no espaço interno do dispositivo, essa “máquina de fazer ver e de fazer falar”, segundo Deleuze (1999, p. 156), que o localiza nos regimes de enunciação, do que é visível e do que é enunciável, implicando em linhas de força. Um exemplo singular é o uso frequente da palavra task na agência digital, ao contrário de job (termo utilizado para nomear os pedidos de trabalho de agências de publicidade). Na comparação da definição de ambas as palavras, verifico que task (tarefa) tem um caráter mais prático, refere-se à realização de um trabalho ou empreitada num determinado prazo. Já job (trabalho), traz sinônimos que valorizam o fazer, tanto manual como intelectualmente. Essa pequena distinção de terminologia faz emergir as linhas de visibilidade e de enunciação sobre as quais se refere Deleuze (1999), imanentes em cada dispositivo, e que relaciono ao fazer técnico das agências digitais. Outro exemplo são os dispositivos de controle, como os relatórios de timesheet para medir o tempo de trabalho dos profissionais na realização das tarefas, por hora-homem,5 presentes também em outros modelos de agência, antes preenchidos no papel e entregues uma vez por mês e, agora, controlados, diariamente, por sistemas de trabalho informatizados. Há quatro divisões de trabalho na criação desta agência digital, segundo o diretor de criação: as plataformas, que são portais e hubs, ou seja, as estruturas; a propaganda, como hot sites, campanhas, display, banners e pop ups; e, ainda, social media, app e ferramentas. Para realizar esses trabalhos, a criação é dividida em dois grupos, sendo um de criação (equipe sênior), denominado demandas da propaganda, e outro de produção criativa (demais criativos plenos ou júniores). 5 Os custos por hora-homem constam nas tabelas de preços de serviços fornecidas pelas associações das agências, como ABRADI e SINAPRO (SINAPRO SP, 2022). Sumário <<<<< 140 É comum que a equipe de produção criativa dê andamento a um trabalho já iniciado, como também observei na agência de modelo tradicional (Alves, 2016), na qual os assistentes ou equipes de júniores tocam o trabalho idealizado pelos seniores. Algumas peças são criadas pelos redatores seniores e diagramadas por diretores de arte da produção criativa, como os textos para blogs de clientes e posts, devido a um padrão preestabelecido e por ser um trabalho recorrente. Segundo um dos redatores, são quinze posts por mês, em média, para cada cliente, com informações para a criação de conteúdo alimentadas pelo atendimento/planejamento. Pode acontecer, ainda, de alguns trabalhos serem feitos pelas duplas seniores, mesmo as devolutivas (refrações). Isso depende de cada caso e do peso do trabalho, como foi observado no modelo de briefing visualizado, em que há um valor atribuído a cada trabalho de acordo com o grau de importância: ouro, quando são de alta importância para o cliente e a criação deve ser mais detalhada, incluindo planejamento; prata, para projetos do dia a dia; e bronze, para criações simples e rápidas. Apesar da distinção de um trabalho mais técnico, como a criação de sites e até de plataformas de e-commerce, o departamento de criação da agência digital é bastante valorizado, como também acontece na agência de modelo tradicional. Não verifiquei, entretanto, o mesmo encantamento com programadores e profissionais de TI, que, na agência tradicional, são considerados gênios (Alves, 2016, p. 80). Na agência digital, esses profissionais ficam em uma sala separada e sob a supervisão do departamento de projetos, uma função mais técnica, talvez pela origem da agência, 100% digital. Por outro lado, há relevância do departamento de mídia, responsável pelas estratégias que acompanham os movimentos dos consumidores na rede on-line. Conforme o relato Sumário <<<<< 141 informal do diretor de criação, “ele é o cara”, aquele que sabe das coisas e cuja importância é asseverada pelo próprio responsável do departamento. Acrescento às observações da tese, alguns dos achados da pesquisa de pós-doutorado (Alves, 2021), em que também discuto os novos cargos e departamentos em ascensão, devido à proliferação da mídia digital e das redes sociais. Alguns não pertencem a um departamento específico nas agências, até mesmo em relação ao espaço físico no ambiente de trabalho, como acontece com os profissionais de conteúdo (content). Uma breve pesquisa exploratória, nos sites das 10 maiores agências do Brasil em 2021, revela as seguintes denominações para os departamentos de conteúdo e de dados, seja para a mídia, seja para o planejamento: VMLYR: connections; Ogilvy: PR e influencer/data intelligence; Africa: CCC Effectiveness (culture insights, comms plannings e content tendencies); WMccann: conteúdo (community manager) e influenciadores; Artplan: conteúdo/storytelling, inovação e creative data/ métricas social learning; Publicis: conteúdo, social e influencer e social intelligence; TalentMarcel: conteúdo e BI e inovação; e, por fim, DPZT: comunicação, engajamento e influencer, e mídia/BI. Há uma crescente indeterminação, tanto nos modos de trabalho, quanto nos formatos de negócio da publicidade, em que agências têm incorporado novos departamentos para lidar com os dados e as possibilidades de expansão de serviços com o uso da tecnologia (big data e inteligência humana).6 6 “A Africa acaba de aumentar sua capacidade ferramental por meio de duas novas soluções integradas ao seu portfólio. A Omni, que se coloca como uma plataforma de marketing de precisão, auxiliando estratégias de mídia, e a Q, que combina big data e inteligência humana para quantificar e prever mudanças culturais”. Disponível em: https://bit.ly/3h9EHv8. Acesso em: set. 2022. Sumário <<<<< 142 Um processo, as mediações, a midiatização Além das entrevistas realizadas,7 a escolha pela observação participante em todas as agências possibilitou seguir de perto alguns processos de criação e estar presente em reuniões de briefing e de brainstorming, uma vez que o investigador “acompanha e vive (com maior ou menor intensidade) a situação concreta que abriga o objeto de sua investigação. [...] Seu papel é de observador” (Peruzzo, 2003, p. 11). A minha experiência em agências (por ser redatora e diretora de criação) permitiu participar, inclusive, de um dos trabalhos, distribuídos a todos os redatores num esforço conjunto para resolver um problema de criação de nomes para um novo aplicativo de uma instituição financeira. Descrevo aqui o processo de criação de uma landing page para portadores de cartão de crédito dessa mesma empresa, que propunha a transferência de pontos para o programa de milhagem de uma companhia aérea parceira e, desse modo, possibilitava o up grade no cartão de fidelidade da companhia. O diretor de arte selecionou algumas referências de imagens, que buscou na internet e, junto ao redator, traçaram um caminho criativo bastante gráfico, que deu início ao rascunho da peça. Nesse fazer da dupla, observo um caso de midiatização direta, desde a pesquisa de referências na rede, intercalando a todo o momento o processo criativo; e indireta, pela maneira pela qual discutiam o trabalho, fazendo emergir a materialidade discursiva das representações culturais, tanto do produto, quanto do target: “formas diretas e indiretas de midiatização muitas vezes operam em 7 Considerando todo o corpus, realizei vinte e cinco entrevistas (gravadas em áudio) com trinta profissionais: criação, atendimento, planejamento, mídia, produção, programação, projetos e relações públicas. Sumário <<<<< 143 combinação, de modo que nem sempre é fácil distingui-las” (Hjarvard, 2012, p. 67), como descrevo a seguir. O diretor de arte rascunhou em um papel algo que considerava representar visualmente o up grade de pontos. Associou-o a pequenos círculos, muitas bolinhas, que juntas formavam um avião, para que o correntista pudesse interagir com a imagem: assim que passasse o mouse sobre as bolinhas poderia arrastar a imagem, transformando-a em um avião completo. A solicitação de que o cliente interagisse com a peça foi sugestão do próprio diretor de arte e não do cliente, o que exigiu um trabalho a mais. Nesse caso, o diretor de arte aproveitou as possibilidades da plataforma, tendo em vista chamar a atenção do correntista de uma maneira mais lúdica, sedutora e convidativa. Já o texto da landing page (não revelado devido ao acordo de confidencialidade) era simples e informativo, referia-se apenas à troca da milhagem. Isso porque, segundo o redator, era voltado a um cliente especial, de maior poder aquisitivo/faixa etária e requeria certa seriedade. A mensagem da peça só se revela com a ação do consumidor, ou seja, além da associação por semelhança – bolinhas = pontos –, a interação propõe outra associação, por causa e efeito – movimento = avião –, remetendo à ação do consumidor de trocar seus pontos para realizar uma viagem. Esse tipo de estratégia suasória já ocorria nos anúncios do início do século passado, cuja mensagem se completava a partir da ação do consumidor, como o da Casa Mangueira, que convidava o leitor a encostar o nariz na linha para ver o chapéu sobre a cabeça do personagem, um elemento de persuasão a mais (Carrascoza, 1999, p. 166-167). A mudança, na contemporaneidade, recai sobre o suporte e o modo de abordar o consumidor, um caso de midiatização que, como escreve Verón (2014), torna os processos mais acelerados e complexos. Sumário <<<<< 144 Questionei se esse processo de criação se repetia sempre e o redator disse que considera antes o tipo de trabalho e o prazo, como nesse caso: tinham apenas três horas para criar a peça e, então, focaram somente no que precisava ser informado. Porém, devido à animação proposta pelo diretor de arte, o layout exigia mais tempo e o trabalho ficou pronto apenas no fim do dia seguinte. Para conseguir adiar a entrega, a dupla chamou o atendimento para ver o rascunho da peça antes, que gostou do resultado e conseguiu mais prazo com o cliente. Como pude observar em outros trabalhos, tem sido comum a escolha dos criativos de priorizar uma direção de arte fun e interativa, e um texto verbal mais informativo. Em sua maioria, como e-mails, banners e posts, uma boa ideia conta, mas também importa a forma de trabalhar a informação da melhor maneira para atingir o público certo. A interação é pressuposta, principalmente, quando são peças digitais impulsionadas para um target específico, como os clientes de instituição financeira e, desse modo, a participação do consumidor já é esperada. O diretor de criação considera o trabalho de criação publicitária mais “artífice do que artístico”, como também se refere Washington Olivetto (Carrascoza, 2003), e afirma que as novas tecnologias não mudaram esse processo, mas, sim, a maneira de compartilhar o trabalho, armazená-lo e alterá-lo, criando uma falsa ideia de que tudo pode ser mexido por todos, e não, necessariamente, pelo profissional criativo, como apontado em um dos trechos da entrevista (Alves, 2016, p. 173): “os processos criativos são basicamente os mesmos. Acontece que as coisas eram mais manufaturadas, então, saiam peças únicas [...] mais arte do que aquilo, que é uma coisa que está dentro do computador [...] que todo mundo pode trocar, mexer” (Diretor de Criação [redator], agência digital). Sumário <<<<< 145 Nesse sentido, os dispositivos técnicos conformam ausência de controle não apenas na circulação (Fausto Neto, 2010), expectativa da lógica produtiva do polo da emissão, mas que se dá antes, na própria agência, no percurso da enunciação publicitária (Trindade, 2007), especificamente, no momento de aprovação dos trabalhos. O fato de que “todo mundo pode trocar, mexer” resulta em um esgarçamento das fronteiras também entre a agência e o cliente, intensificados durante o período da pandemia, em que muitos processos ficaram mais acessíveis (Alves, 202, p. 174). Os dispositivos técnicos tornam evidentes os limites do poder, que só pode ser capturado por outro dispositivo e, desta feita, um novo saber, que parece ser dominado pelas agências digitais: “quando lá, em 1960, no Mad Men, a agência tinha o cliente na mão por deter todo conhecimento, hoje, eu acho que o digital assume um pouco esse papel, e esse papel eu não sei se ele a curto prazo consegue se soltar, porque, de novo, é muito rápido” (Planejamento Jr., agência digital). A valorização do trabalho do criativo é percebida na agência digital, tanto por parte do presidente, como pelos demais departamentos. O atendimento salienta a importância do texto verbal, que considera essencial em uma ideia. Já o planejamento refere-se a um trabalho conjunto, no qual se apresenta insights para as equipes de criação, que são o início das grandes ideias. Existem ainda os casos de retroplanejamento, quando o processo começa na criação (que recebe a solicitação do briefing, juntamente com os demais departamentos), e se realiza toda a campanha antes, então, o planejamento faz o caminho inverso, elabora a defesa para validar o conceito e as ideias da campanha, como também observei na agência tradicional e nas entrevistas realizadas no pós-doutorado (Alves, 2016; 2021). Sumário <<<<< 146 Essa valorização da criação decorre da capacidade de gerar ideias, contar histórias e mobilizar consumidores para curtir e compartilhar as narrativas das marcas. Estendem essa participação para além do simples curtir, como salienta o diretor de criação: “eu sou redator, eu sei fazer história, sei o poder do storytelling, sei fazer e gosto de fazer. E, na oportunidade, não deixo de fazer coisas como se fosse um filme de propaganda. Mas esse é um dos recursos, não é nem o mais importante” (Alves, 2016, p. 174). Os aparatos técnicos permeiam o dia a dia da criação (nessa e nas demais agências pesquisadas), seja na busca de referências, no compartilhamento de ideias ou mediando a feitura do trabalho por meio de diferentes softwares. É a mediação da tecnicidade, não como instrumento, mas própria da estrutura da cognição e do dia a dia, como escreve Lopes (2018a, p. 58) ao se referir à atualização do mapa das mediações de Mártin-Barbero “conduzindo a um forte borramento das fronteiras entre razão e imaginação, saber e informação, arte e ciência, saber especializado e conhecimento comum”. Nessa agência digital, as equipes se comunicam constantemente via chat e, quando a dupla precisa discutir o trabalho (brainstorming), às vezes o faz na sala mesmo, em um bate papo em que redator e diretor de arte rascunham no papel ou trocam referências. Outras vezes, as equipes se apartam para conversar em um ambiente aberto, que fica no topo da casa, um jardim no mezanino com mesas e cadeiras. Há interação presencial e também mediada pela máquina, com profissionais de outros departamentos. Em minha pesquisa de pós-doutorado (Alves, 2021), realizada durante o período de isolamento decorrente da pandemia de Covid-19, pude observar que esses processos de interação mediados se tornaram lugar-comum, tanto que, em Sumário <<<<< 147 muitas agências, o sistema home office foi mantido mesmo com a liberação do uso de máscaras, ficando o trabalho presencial reservado a poucos dias (Sacchitiello, 2022). Outra caraterística observada no dia a dia desses profissionais foi o uso de fones de ouvido. Um dos redatores entrevistados relata que a trilha sonora muda dependendo do tipo de peça ou campanha: “determinadas músicas me deixam no estado criativo que preciso para escrever esse tipo de linguagem, de texto [...] ou, então, se preciso escrever dez e-mails MKT, coloco música eletrônica... que acelera e vamos lá. Quase como se fosse máquina” (Alves, 2016, p. 175). Há certa desvalorização do próprio trabalho, ao ser comparado a uma máquina de fazer e-mails, naturalizando a pressão por produtividade e eficiência. Há dois tráfegos na agência, o da criação e o de TI, que executam a organização do fluxo de trabalho, o cronograma, o controle dos recursos e a interface com o departamento de projetos por meio de um sistema, cujo acesso me permitiu ver alguns trabalhos, com apresentações já criadas, e também o encaminhamento das campanhas, até a execução final. Na maioria das vezes, ao assistir as apresentações de planejamento e de criação, notei que pouco diferem, com exceção de ações propostas para ambientes de e-commerce. E, do mesmo modo que ocorre na agência tradicional, há solicitações de clientes que não explicitam, necessariamente, que tipo de peça/campanha deve ser criada (Alves, 2016, p. 175). Quero divulgar um produto novo, pensem pra mim. Então, aqui a gente pode pensar em qualquer coisa pro digital. Então, você vai fazer... a gente sugere que você faça um aplicativo, a gente sugere que você crie um site, a gente sugere faça uma ação nas redes sociais ... ele deixa ... existem muitos Sumário <<<<< 148 briefings abertos. Pode ser que venha um briefing aberto com alguma coisa que ele queira fazer. A concorrência está fazendo isso também, quero isso... faz parte do trabalho oferecer outras coisas e avaliar o próprio pedido dele (cliente), mesmo. Às vezes ele pode estar enganado achando que essa é a melhor forma de resolver o problema, mas não é (Diretor de Projetos, agência digital). Esse posicionamento quanto ao tipo de peça a ser criada, característico de processos midiatizados, altera e é alterado pelos demais processos. Na agência digital, a solicitação é aberta para ideias que possam aflorar do briefing, na resolução de problemas, aproximando os criativos de profissionais de TI, com novos espaços para o programador nas equipes de criação, como observei na agência tradicional (Alves, 2016). O que interessa é a ideia: “acho que a tendência é que dentro da área de criação, de concepção, você começa a envolver outros profissionais de tecnologia também. [...] Existem programadores que já são programadores criativos, o cara é diretor de arte, mas gosta de programação” (Diretor de Arte, agência digital). O planejamento aponta a relevância do departamento de mídia, como também o fez o diretor de criação, seja por meio dos analistas de BI (business intelligence), que conseguem traduzir dados do comportamento do consumidor para orientar novas ações, além da possibilidade de monitoramento e métricas. Trata-se de um dispositivo de controle no polo da recepção: “eu consigo ter, através de tecnologia, uma mescla do que o que o cara está fazendo na loja, quando ele está com o smartphone dele” (Planejamento Jr., agência digital). Como aponta Van Dick (2017, p. 47), “as companhias de mídia social monetizam os metadados ao reprocessá-los e vendê-los para anunciantes ou companhias de dados”. São esses Sumário <<<<< 149 dados que alimentam as equipes, do planejamento à criação, que se reúnem para traçar caminhos nos quais a mediação humana e a dos meios têm uma relação recíproca, não excludente. Os processos criativos têm início na compreensão do briefing e do principal problema de comunicação a ser resolvido. Depois, buscam referências na arte, no cotidiano, tendo como principal fonte a internet, onde se atualizam sobre diferentes assuntos, entre eles a própria tecnologia. A midiatização direta e indireta permeia todo o processo criativo, na relação espaço-tempo da contemporaneidade em busca de referências, tantas e tão dispersas que os profissionais criam arquivos pessoais on-line, um vasto arquivo de associações possíveis para ser utilizado no momento certo. Ao citar o terceiro mapa de Mártin-Barbero, Lopes situa a identidade da comunicação, que antes “era achada nos meios e, hoje, ela não se dá somente nos meios. A comunicação ocorre na interação que possibilita a interface de todos os sentidos, portanto, é uma intermediação, que é um conceito para pensar a hibridização das linguagens e dos meios” (Lopes, 2018a, p. 56). Os conceitos criados, contudo, nem sempre dão origem a textos verbais e visuais, como vídeos, anúncios ou posts, mas a ações que possam ser publicizadas (Casaqui 2011), com ou sem mídia. A propagação sob diferentes impulsionamentos se reflete na ausência dos departamentos de mídia em algumas agências, como observamos na de modelo colaborativo, pertencente à pesquisa. Essa tendência, que aparece agora no Brasil, já foi incorporada em vários países, cujas agências trabalham conjuntamente com birôs de mídia ou em ações de earned media (mídia orgânica), prioritariamente. O trabalho solitário é comum, principalmente quando envolve posts criados pelo redator e ilustrados por diretores de arte, Sumário <<<<< 150 similares à prática jornalística na qual matérias são acompanhadas por fotos ou desenhos. Outras vezes, as imagens sugeridas pelos diretores de arte suscitam assuntos, como no caso de posts temáticos. Ao relatar seus processos criativos, o diretor de criação diz trabalhar sozinho para ter ideias, e depois as discute com as equipes. Esse profissional tem passagens por várias agências no Brasil e no mundo e há anos trabalha sozinho, exclusivamente em agências digitais (Alves, 2016, p. 179): “Há muitos anos que eu não trabalho em dupla, eu continuo acreditando que a dupla é uma boa unidade de criação, mas já penso em uma dupla alargada, hoje, trabalhando com o digital, penso que a dupla mais alargada, com planejamento e tecnologia” (Diretor de Criação [redator], agência digital). Escrever ou desenhar as primeiras ideias à mão é uma prática recorrente entre os criativos e os caminhos começam a ser traçados já nas reuniões de briefing. E, apesar de a criação não ter metas a cumprir (como ocorre com o atendimento, por exemplo), há casos em que os jobs são propostos pela criação, que provoca inputs com vistas à renovação da comunicação e maior produtividade, prática adotada pelo diretor de criação. Há predisposição para um trabalho compartilhado entre os profissionais de criação, de coautoria, somatória de ideias, com créditos divididos no caso de uma campanha de sucesso. Essa integração almejada contrasta com a necessidade de reconhecimento individual e que permite a ascensão profissional, como pude acompanhar pela ansiedade do diretor de criação, à espera pelos resultados de uma premiação na qual havia inscrito várias ações, ou no relato do redator, desanimado por saber que não ganhou nenhum troféu no Cannes Lions, uma das premiações mais cobiçadas por agências e anunciantes. Sumário <<<<< 151 Considerações sobre o impermanente Ao acompanhar o dia a dia dessa agência digital, selecionada entre as maiores do país, foi possível evidenciar a emergência de um dispositivo tecnocriativo, que leva em conta o controle da mídia e a capacidade de rastrear os consumidores na rede para alimentar as ideias da criação. A lógica algorítmica permite, pela combinação de dados acumulados sobre os consumidores, contar boas histórias para cada perfil comportamental, em caso de campanhas, buscando “disrupção” e experiências com a marca nos meios digitais em suas formas de contato. Essas análises se tornaram ainda mais consolidadas na atualização da pesquisa, no pós-doutorado (Alves, 2021), por ser condição sine qua non do trabalho publicitário na atualidade. Do mesmo modo que na agência tradicional pesquisada, há midiatização direta e indireta em quase todos os processos e departamentos – na criação, especificamente, desde as pesquisas de referências até os modos de fazer e à integração entre departamentos e profissionais, na combinação face a face e mediada. Como exemplo de midiatização indireta, ressalto a maneira pela qual os criativos lidam com as representações do target advindas das narrativas dos media (Hjarvard, 2012, p. 68), uma vez que os qualificam nas escolhas que fazem em pesquisas de referências e os trazem nos mood boards das campanhas. Os fluxos de trabalho ora são lineares ora não, quando há alterações no encaminhamento dos projetos a partir de insights da criação (em vez de começar pelo planejamento). A criação é valorizada e respeitada pelos profissionais de todos os departamentos, por ser a responsável pela magia, como se referiu o diretor de criação. Observei, também, certa acomodação dos criativos em Sumário <<<<< 152 relação a procedimentos de trabalho já utilizados, por já terem resultados positivos na conversão de consumidores. Realizei uma síntese das principais características da agência digital (quadro 1) e o que sinalizam, como os procedimentos semissistêmicos gerenciados por programas informacionais e controlados por dois tráfegos, de projetos e de criação, além de relatórios de timesheet. Porém, algumas vezes, podem ser considerados sistemas proforma, cujo controle visa simplesmente dimensionar o volume de trabalho, prazos e custos. Ressalto que nessa agência digital ficam evidentes os níveis hierárquicos, mas a liderança pode ser compartilhada, uma vez que os fluxos são de fácil controle. Quadro 1 - Pontos-chave da análise da agência digital Fonte: Elaborado pela autora. Sumário <<<<< 153 As ações do consumidor nas mídias digitais e nas redes on-line têm promovido uma reação das agências, de diferentes modelos, para ampliar a prestação de serviços de comunicação por meio da tecnologia, o que requer aproximar sistemas informacionais e inovações técnicas da criação de campanhas, permeadas por ações que visam a interação com o consumidor. Nesse sentido, o que era evidência nessa primeira pesquisa se tornou procedimento padrão na maioria das agências, como observei no pós-doutorado (cuja publicação está em processo). Esse movimento fez surgir novos cargos com denominação incerta – consumer insights, data insights, behavior insights, ou ainda intelligence insights –, somados às escutas da rede por meio de softwares, ou mesmo prestadores de serviço especializados, com o objetivo de predição de comportamentos (Kotler; Kartajaya; Setiawan, 2021). Por isso, essas são considerações inacabadas, pois muitas transformações acontecem agora enquanto escrevo, o que me move a observar os processos de trabalho com vistas a novas análises críticas. A relevância desses novos departamentos nas agências e nos anunciantes, por exemplo, se dá não somente pela questão das métricas e da segmentação do target, mas pelo olhar de comportamentos, já que os dados extraídos dos milhões de metadados das redes sociais não revelam quase nada se não houver uma base analítica crítica, que requer uma visada qualitativa, como aponta Van Dijck (2017, p. 46-7). Neste texto, pude trazer algumas observações e análises da agência digital (recentemente incorporada por um grupo internacional), na qual o movimento por interação está na origem, intensificado com o domínio mais técnico da programação e do comportamento do consumidor, em um mundo cada vez mais dataficado, cujo controle me pareceu naturalizado, inclusive dos próprios processos de trabalho e dos trabalhadores. Sumário <<<<< 154 Referências ALVES, M. C. D. Da big idea ao big data: processos criativos das agências de publicidade na era do pós-tudo. Relatório de pesquisa de pós-doutoramento, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP, 2021. ALVES, M. C. D. Mediações e os dispositivos dos processos criativos da publicidade midiatizada: vestígios e perspectivas. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2016. AGAMBEN, G. ¿Qué es un dispositivo? Sociológica, ano 26, nº 73, mai./ago., 2011. BRAGA, J. L. 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Este contexto, aliado ao uso de tecnologias de Inteligência Artificial, ao aparecimento de outsiders no mercado, com tecnologias que favorecem a entrega de mensagens direcionadas aos públicos, a proliferação de canais e custos crescentes para conseguir cobrir audiências, a queda na capacidade de atingir espectadores, a transformação nos hábitos de mídia, a queda dos índices de audiência e, também, da atenção, ao redor do mundo, têm exigido que o mercado publicitário repense sua estrutura. 1 Universidade Federal de Goiás, Graduando, felipe.fulquim@discente.ufg.br 2 Universidade Federal de Goiás’, Mestre, leticiascortes@ufg.br 3 Universidade Federal de Goiás, Doutora, marinaroriz@ufg.br 4 Universidade Federal de Goiás, Graduando, yuriburatto@discente.ufg.br Sendo assim, as agências de publicidade e a propaganda vêm sendo demandadas para se atualizarem, se quiserem se manter competitivas. O espaço para o mindset da publicidade tradicional, focado em atingir enorme volume de pessoas, a partir de contextos muitas vezes irrelevantes aos olhos da maioria, vem diminuindo (Zeeng, 2021). Para que essa atualização aconteça, muitas agências têm feito movimentos de transformação digital (Rogers, 2017), abarcando tanto seus processos quanto a própria cultura organizacional. É uma nova forma de pensar, baseada na digitalização de processos e no uso de dados, fazendo uso de um mindset data driven, que se refere ao uso de “métodos científicos, processos e algoritmos para extrair conhecimento deles, sejam estruturados ou não” (Paixão; Siqueira, 2021, p. 6). Dentre os procedimentos que já começaram a ser automatizados, destacam-se as campanhas digitais, que, a partir de processos de automação, criam e gerenciam peças dinâmicas, gerenciam testes sozinhas e seguem aperfeiçoando, em tempo real, interfaces; a elaboração de relatórios e dashboards, alimentados automaticamente e capazes de demonstrar, por exemplo, o investimento do cliente versus o da concorrência; performances de campanhas em tempo real; o atendimento e as interações em redes sociais, feitas por inteligência artificial; e a entrega de análises automáticas de aspectos criativos em vídeo, feitas frame a frame, capazes de gerar insights valiosos para serem utilizados nas campanhas em curso e acumuladas para mudanças nos materiais futuros (Navarro, 2021, sp). Há também a automatização de catálogos, folhetos, anúncios e cartelados, cabendo à agência a criação da campanha. Sumário <<<<< 160 Mas, e em relação ao mercado goianiense? Como os dados transformaram as agências publicitárias goianienses? Como vem acontecendo o uso de dados? Essa nova realidade leva as agências a reestruturarem seus papéis? Para tentar responder a estas e outras questões, foi desenvolvido o projeto de pesquisa “A relação entre criatividade, eficiência da comunicação, tecnologia e dados no mercado de agências publicitárias goianienses”, realizado por docentes e estudantes bolsistas do curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da Faculdade de Informação e Comunicação, da Universidade Federal de Goiás. Para desenvolver o estudo, utilizou-se a pesquisa bibliográfica atrelada à pesquisa qualitativa. Na primeira etapa de pesquisa bibliográfica, buscou-se compreender os conceitos principais relacionados à pesquisa, como: ciências de dados para um mindset data-drive; a transformação digital nas agências publicitárias e a inteligência estratégica como mote de sua atuação junto aos clientes; as mudanças no ambiente das agências em um cenário de transformação digital; e como os dados podem impactar os processos criativos. Diante dessas referências, foram estabelecidas as pautas iniciais da coleta de dados da pesquisa, de abordagem qualitativa. Esta foi estruturada com a realização de entrevistas em profundidade (com o aval do Comitê de Ética), com seis agências de publicidade, dos mais diversos tamanhos e faturamentos, em Goiânia, no período entre 22 de outubro e 9 de novembro de 2021. As entrevistas contaram com profissionais5 de diferentes áreas, tais como gestão, planejamento, criação e estratégia, e tiveram como objetivo descrever o momento em que se encontrava o mercado goianiense de publicidade em relação ao uso de tecnologias da 5 Aqui descritos como Entrevistado Agência 1 a Entrevistado Agência 6. Sumário <<<<< 161 informação. Buscou-se também compreender como as possíveis transformações, advindas do uso dessas tecnologias, impactavam no desenvolvimento de processos profissionais típicos do fazer publicitário. Diante dos dados levantados pela pesquisa, foi possível construir três insights sobre como a transformação digital tem modificado o mercado publicitário goianiense. O primeiro deles diz respeito à compreensão de como o fazer publicitário se estruturava antes do digital ter se tornado tão presente no cotidiano das agências e como ele se alterou ao longo do tempo. Em relação a isso, a pesquisa demonstrou que a publicidade é um exercício contínuo de interpretação da sociedade e da comunicação. Sendo assim, ao imaginarmos as agências de publicidade pré-avanço do digital, encontramos formas de se trabalhar a comunicação mercadológica em muitos aspectos diferentes daquelas que temos hoje. Em relação à construção de campanhas, por exemplo, as entrevistas demonstraram que estas comumente estavam pautadas numa única ideia central, que era derivada para todas as peças a serem utilizadas. A ideia era pensada e desenvolvida em vários formatos, como roteiro para televisão, spot, outdoor etc. Cada um carregava consigo a mesma mensagem, no entanto, eram veiculados em locais diferentes, direcionadas para um público de massa. “Antes eu resolvia a minha vida com roteiro de TV de uma campanha, fazia um anúncio, fazia um outdoor, fazia um spot, essa era a campanha grande de antigamente, né?” (Entrevistado Agência 5). Nesse sentido, o criar publicitário estava ligado ao desenvolver um conceito central e ao derivar da peça principal para as peças secundárias da campanha. Uma mesma ideia replicada para diferentes veículos compunha a campanha publicitária. Sumário <<<<< 162 Outra questão identificada era o prazo que o publicitário tinha para a elaboração das campanhas. Campanhas com maior peso ou maior volume de investimento, por exemplo, entravam nas agências com períodos que permitiam ao publicitário pensar e amadurecer ideias, adaptando-as às demandas. Quando eu começo em propaganda, a gente ainda tinha aquela coisa de fazer um spot, um filme para televisão e um anúncio, pra, pra jornal. E, e era isso que a gente fazia, era isso que a gente criava. Ficava ali, às vezes, uma semana, 10 dias, até 15 dias, um mês, fazendo isso (Entrevistado Agência 4). Um outro aspecto que chama a atenção no fazer publicitário de outrora é quanto ao uso de dados. As pesquisas indicaram que, em tempos analógicos, o uso de dados existia, mas de maneira limitada. As fontes de informação estavam ligadas, principalmente, àquelas repassadas pelo cliente, através do briefing, por informações captadas pela própria agência, e, quando havia orçamento, desenvolviam-se pesquisas de mercado, que serviam para balizar e reforçar os rumos das campanhas. Neste ponto, destacou-se o fato de que nem todas as agências eram capazes de contratar institutos de pesquisa, ou que nem todas as campanhas permitiam essa aquisição. Antigamente a gente tinha alguns poucos institutos de pesquisa, principalmente falando aqui de Goiânia, né? É, as pessoas, os anunciantes, não procuravam investir muito, né, nisso porque não entendiam como um investimento muito importante, né? Então a pesquisa que a gente fazia como criativo, às vezes era uma pesquisa interna, própria, né? (...) Antigamente tinha muito isso (Entrevistado Agência 5). Sumário <<<<< 163 Na tentativa de superar a limitação de acesso a dados, muitas agências efetuavam sua própria coleta de dados, através de pesquisas de campo, como aprofundamento de briefings com clientes, clientes-ocultos nas lojas dos clientes, entrevistas com profissionais, coleta de dados em pesquisas já disponíveis, dentre outras técnicas. É… a gente estuda, é.. faz a gente usar dados secundários de pesquisa mesmo de outras fontes para fazer essas análises e a gente usa dados que, às vezes, a gente chama de levantamentos internos porque a “Agência” não é empresa de pesquisa, então quando o cliente tem potencial e a gente acredita que tem abertura. A gente sugere um instituto, dependendo do problema que ele tem, né? A gente sugere um estudo de pesquisas, às vezes vai pra frente, às vezes não, se ele não faz a pesquisa, a gente faz algumas, alguns levantamentos internos para nos guiar para sair da minha bolha, da bolha do atendimento e a gente escutar um.. a gente faz um.. às vezes cliente oculto por metodologias que a gente trouxe da própria faculdade, né, que a gente estudou algumas abordagens de pesquisa, então a gente faz um cliente oculto, a gente faz às vezes questionários com uma amostra menor, a gente vai pra rua mesmo fazer questionário, é… a gente faz algumas entrevistas até com interno, colaborador, ou com a própria, algum dos pontos principais da empresa, né dos cabeças da empresa, então a gente faz as nossas, a gente dá nossos pulos pra ter, para ajudar a fazer um diagnóstico melhor formatado (Entrevistado Agência 2). Sumário <<<<< 164 Isso nos leva a uma realidade em que não podemos falar em ausência de dados, mas sim em uma limitação de acesso aos dados. Os processos de coleta de dados e aquisição de pesquisas pareciam não ser tão acessíveis às agências. Para muitas delas e dependendo do trabalho a ser executado, restava o acesso aos dados possíveis. Nesse contexto de acesso limitado a dados, o departamento que mais tinha proximidade com esse universo, segundo indicam as pesquisas, era o planejamento. Se, de um lado, a maior parte dos departamentos da agência tinham acesso limitado a dados, a relação entre dados e departamento de planejamento, quando existente, era bem mais próxima. Cabia ao departamento buscar informações, pesquisas, levantamentos que pudessem contribuir no processo de construção da campanha, delimitando aspectos como posicionamento e perfil de públicos a serem atingidos. O planejamento era responsável por traduzir os dados que chegavam à agência em insumos para o processo criativo. De tais dados, o planner traçava um objetivo, o conceito geral da campanha, o posicionamento a ser trabalhado, o público, além dos direcionamentos criativos a serem trabalhados. Um verdadeiro briefing criativo. “O planejamento já vinha com a definição” (Entrevistado Agência 2). “E aí a gente pega... aí pega todos esses dados, toda essa parte de pesquisa, e a gente tem que materializar desde o primeiro passo, ali, desde conceito, criar branding, desenvolver campanha” (Entrevistado Agência 5). Em consequência dessa realidade, as agências acabavam por desenvolver uma relação muito particular entre dados e criatividade: a experiência do profissional de publicidade e o feeling se tornavam instrumentos auxiliares no processo criativo. O uso de dados existia, como visto, mas de forma limitada. Junto aos dados Sumário <<<<< 165 disponíveis, destacava-se o feeling criativo do publicitário, que unia as percepções levantadas pelos dados acessíveis à expertise de outros trabalhos, o know-how de outros mercados, o repertório cultural da agência. “Antes, a gente baseava a publicidade muito em resultados de pesquisas, quando acontecia, e muito no feeling, né? Na experiência do cliente, na experiência do redator, por exemplo, falando nessa parte de criação” (Entrevistado Agência 3). Neste sentido, as campanhas eram criadas de modo muito mais intuitivo, dando às chamadas duplas de criação6 liberdade para elaborar peças baseadas em sua própria interpretação do problema. Tal forma de produzir acabava por dar ao departamento de criação um protagonismo nas agências publicitárias. As grandes ideias, as grandes sacadas eram valorizadas e ajudavam não só a destacar marcas/produtos/serviços no mercado, como também, construir a fama de profissionais e agências. Ah, no início dos anos 2000, depois dois… até 2000. Sei lá, 2010 por aí. Os dados, eles eram um pouco diferentes, as campanhas um pouco diferentes, as campanhas eram mais intuitivas, a criação tinha um protagonismo grande nas agências, era como? Eh… os anos 90 e 80, era como os magos da criação, né? As pessoas que saíam com uma ideia que as pessoas chamavam isso de talento, vocação, e hoje esses grandes artistas da propaganda, eles deixaram de existir, eles perderam protagonismo porque hoje a criação, a intuição, ela precisa ser calçada com dados (Entrevistado Agência 6). 6 O departamento de criação era formado pelas chamadas duplas de criação: redator, responsável pela criação de textos publicitários, e diretor de arte, que elaborava os layouts. Às duplas cabiam o bem mais precioso da agência: a elaboração da campanha criativa. “Antes o que eu fazia com uma dupla, né? As agências, antigamente, você tinha agências pequenas, assim, que eram icônicas conhecidas nacionalmente, né?” (Entrevistado Agência 6). Sumário <<<<< 166 Um outro aspecto interessante a ser destacado está relacionado à avaliação das campanhas. Se a limitação de acesso aos dados acontecia na criação de campanhas, também os dados eram escassos para avaliação dos resultados. Que era uma dor que os clientes tinham antigamente: - Nossa eu vou investir aqui 28 mil num anúncio de domingo de manhã? Mas, assim na prática qual que é o retorno que isso vai ter para mim, né? Qual é o ROI? Como que eu vou mensurar isso? (Entrevistado Agência 1). Os indicadores e métricas de avaliação tendiam a se limitar, na maior parte das vezes, aos dados de vendas. Caso o fluxo no ponto de venda ou as próprias vendas aumentassem após a execução da campanha, significaria que o trabalho publicitário havia surtido efeito. “Talvez ali você sente que teve um aumento nas vendas, né? Ou num objetivo que tinha ali de marca ou de institucional, de share of mind e tudo mais, mas especificamente ali você não tinha essas métricas, né?” (Entrevistado Agência 5). Um outro marco relativo ao fazer publicitário analógico são os processos utilizados. Estes se caracterizavam como lineares e unidirecionais. Um pedido de trabalho, ao dar entrada na agência, ia sendo repassado, departamento a departamento, com cada um deles desenvolvendo unicamente as atividades que lhes eram próprias, tal qual uma linha fordiana de produção. “Era muito confortável, né, eu executar a minha parte, e passava pra segunda caixinha que executava a parte dela” (Entrevistado Agência 3). A linearidade está ligada ao fato de que o pedido do cliente chegava à agência, era repassado através de um briefing pelo Atendimento, caminhava para a área de Planejamento, responsável pelo desenvolvimento da estratégia da campanha, seguia Sumário <<<<< 167 para o departamento de Criação para a elaboração dos conceitos criativos e peças, ao Mídia para elaboração do plano de divulgação, e retornava ao profissional de Atendimento, que se reunia com o cliente para aprovação. Uma vez aprovado, voltava ao Atendimento, que encaminhava para a Produção/Execução. No processo ainda é possível encontrar o profissional do Tráfego, responsável pelo controle dos prazos e tarefas executadas. O trabalho publicitário dentro das agências era pensado de forma que cada área executasse seu papel, e, ao final, o produto fosse entregue ao cliente. Cada departamento era responsável por um pedaço da resolução do problema. “Sim, era a operação, eu sempre achei, eu não sei se porque eu estava na criação, então quando chegava em mim, já era assim: faça um banner, faça um outdoor, faça sei lá, sabe, faça um spot, então eu acho que vinha mais pronto assim” (Entrevistado Agência 2). Esse modo de fazer publicidade, no entanto, começa a mudar com a incorporação do digital. Com sua chegada, os processos são gradativamente reestruturados dentro das agências. Inicialmente, as mídias digitais e seus processos criativos são tratados como se a agência tivesse um novo produto a oferecer, específico, isolado do off-line. Um produto que exige uma estrutura própria, separada. Nesse sentido, passam a existir agências e equipes focadas no on ou off-line. A gente viveu por muito tempo essa divisão, né? A gente já teve o braço que era só o braço digital, chamava o Jogo da Velha. E daí foi a primeira agência digital da cidade, se eu não me engano, primeira, segunda, daqui. E aí, sempre tinha essa divisão (Entrevistado Agência 5). Sumário <<<<< 168 No entanto, essa forma de tratar o digital dura pouco tempo e acaba por evoluir. O online ganha espaço no mercado, maior relevância e passa a ser tratado como um elemento integrado. On + off. A escolha do ambiente se torna estratégica. A agência se torna única, fazendo uso de diferentes meios. A gente não faz mais essa separação internamente, tanto que a gente evita falar off ou on, porque hoje é uma coisa só. Hoje a gente tem uma verba para poder trabalhar as campanhas, o que é uma decisão interna. Porém o off não morreu, o off não vai morrer, eu acredito que são alternativas e acho que cada dia que passa o profissional de comunicação que se especializa e que tem experiência nisso vai ter mais condições para dizer assim. Vamos atacar no digital, vamos atacar 30% no digital ou 70% off porque cada problema é um problema. Por isso que tem estratégia, eu acho que é estratégia definir isso (Entrevistado Agência 6). Outro ponto que se destaca é que a estrutura digital, gradativamente, se transforma, em muitas agências, na mídia central para qual são criadas as peças, não em termos de custo de produção e veiculação, mas em relação ao volume de peças e atividades desenvolvidas. Mudou a perspectiva tanto na agência quanto a perspectiva do cliente em relação ao digital, antes era só um social media pequenininho, né, numa agência que era ele que tomava conta do digital. Hoje, a gente tem uma equipe de 57 pessoas para cuidar do digital (Entrevistado Agência 6). Novos profissionais são contratados, inclusive novos perfis profissionais são assimilados à área. “Então, a gente tem departamento Sumário <<<<< 169 de áreas mais voltadas para o digital, é… quanto em perfis de profissionais, a gente está indo... eu acho que a gente está esbarrando um pouquinho na TI, já sabe trazendo um perfil de profissionais de TI hoje” (Entrevistado Agência 2). Nesse movimento em que o digital ganha espaço, credibilidade e volume nas agências, os processos publicitários sofreram transformações. Um dos aspectos que se destaca é o ligado às performances de campanhas. Feedbacks e resultados, que antes levavam dias, semanas ou mesmo meses para serem registrados, quando verificados, são examinados, na condição atual, em tempo real, levando à reestruturação imediata de campanhas. Existe um dinâmico real time, alterado minuto a minuto, que precisa ser acompanhado pelos publicitários. “Essa mensuração é em real time assim... acontecem ajustes da campanha com a maior velocidade possível. Nossa agência trabalha com esse timing, traz soluções e agrega no departamento de mídia. Hoje temos outro modelo de mindset” (Entrevistado Agência 6). Como consequência dessa nova dinâmica, há uma mudança de foco na comunicação. De um retorno concentrado em prazos mais longos, devido ao feedback imediato atual, a comunicação passa a ser analisada sob a dimensão do curtíssimo prazo. A todo momento podem surgir novas oportunidades de conteúdo a serem produzidos. “Hoje a gente tem um departamento dentro da nossa agência que é praticamente de criação orgânica, ou seja, pessoas que ficam focadas no que tá rolando nesse exato momento na internet, para propor ao cliente ações em tempo real” (Entrevistado Agência 1). Para acompanhar tal dinâmica, há a necessidade de se ampliar a quantidade de profissionais dentro da agência. Departamentos ligados à comunicação digital passam a ser maiores e mais robustos devido à quantidade de materiais que o meio exige. Sumário <<<<< 170 Vamos combinar aqui que um post é um anúncio, então tem cinco anúncios dentro de um carrossel, dentro da estratégia da (agência) para um lançamento de um.. de um empreendimento, né? Mas vai ter carrossel demais gente, então assim, é carrossel, é post, é vídeo animado, é muita coisa. Então, hoje a quantidade de designer, diretor de arte, dentro da agência, de redator, é infinitamente maior. Então, hoje, as agências, elas estão com uma estrutura muito inchada (Entrevistado Agência 6). Para além de exigir uma maior demanda de trabalho, a chegada do digital requererá que os profissionais se atualizem constantemente, para conseguirem se manter atuais no mercado. Por possuir um timing de atualização muito rápido, devido à chegada de novas tecnologias, ferramentas e modos de atuação, o digital exigirá dos publicitários uma nova dinâmica de aperfeiçoamento profissional: tudo muda, o tempo todo. Cabe ao profissional acompanhar, acessando as mais diferentes fontes de informação. A gente dá alguns inputs de cursos... principalmente no digital, né, que tem uma coisa muito de formação que não é uma formação de faculdade, né? É uma formação que vai desde cursos curtos até estudar tutoriais, até um fazer mesmo na prática, fazer cursos de ferramentas (Entrevistado Agência 2). Outra grande transformação que o digital trará é a decadência da “única grande campanha”. Pelo que a pesquisa demonstrou, a campanha única de ontem será destrinchada em várias campanhas menores, direcionadas a objetivos, públicos e canais específicos. As entregas são escalonadas e o volume de materiais maior. “E aí sim, eu vivia essa época, e fazer um... aquele anúncio de um puta Sumário <<<<< 171 valor para o cliente, tipo, muda valor pra gente e tudo mais. Hoje, você tem que fazer 45 posts num dia” (Entrevistado Agência 1). Como consequência, o processo criativo parece ter sido afetado. Não existe mais a grande peça, da qual derivam todos os demais conteúdos. Peças são criadas em volume, atendendo a demandas específicas. “Então (...) como exigir criatividade em todo o post e exigir que um negócio, que tem um valor de horas maior, tem o mesmo valor de um negócio que a gente tinha valor de mês. É uma luta” (Entrevistado Agência 1). Para dar conta de todo esse volume a ser criado, o elemento direcionador das campanhas serão os insights. Com a chegada do digital e a incorporação das métricas trazidas pelas ferramentas, aliadas a maior facilidade de coleta e análise de dados, parece ter sido reduzido o peso da experiência do cliente, da agência e do feeling, como elementos exclusivos e determinantes para elaboração de campanhas. Dados vêm se mostrando como o centro da tomada de decisão. São eles que parecem permitir à agência conhecer os hábitos de públicos consumidores, direcionar motes criativos e indicar temas a serem tratados pelas campanhas. Então dentro do nosso negócio a gente tem lá um departamento, são três pessoas que a gente chama, é integrado ao departamento de inteligência de planejamento, que ficam pesquisando o tempo todo ali para entender o que está rolando. Então, o papel das pessoas é ver de fato quais são os trending topics do momento, o tempo todo, para poder saber o que a gente pode propor para os clientes que faz sentido (Entrevistado Agência 1). Sumário <<<<< 172 Nesse ponto, a criatividade muda de significado. Criatividade passa a ser tratada como uma forma de gerar resultado para o cliente. Eu faço portfólio ou eu dou resultado para o cliente? É uma luta constante isso. Ainda mais do ponto de vista do criativo, que é aqui a minha área. É, e aí você tem que entender que a criatividade é trazer resultado, né? A criatividade não é produto final. A criatividade é processo. Quando a gente começa a entender isso numa agência, que criatividade é processo, não é produto final, aí você é, contamina a agência como um todo de uma forma mais criativa, né? Como que esse dado aqui pode trazer uma ação legal e estratégica para essa situação? (Entrevistado Agência 3). Sob essa nova concepção, as ideias, que antes estavam concentradas, prioritariamente, na dupla de criação, passam, com a chegada do digital, a ser uma responsabilidade conjunta com outros profissionais da agência. A gente diz que a criação, ela, hoje, divide o protagonismo com o profissional de estratégia. Então, não é mais aqueles grandes astros da criação que são os grandes nomes das agências. Hoje, eles dividem a criação, divide com a estratégia isso, né? (Entrevistado Agência 5). Essa nova concepção impactará diretamente na remodelação de processos internos nas agências. Se nas agências tradicionais a produção publicitária é estruturada a partir de um modelo tradicional, linear, e que cada membro da equipe desenvolve seu trabalho em etapas subsequentes, a mentalidade data-driven transforma o processo de produção de ações publicitárias em um Sumário <<<<< 173 modelo colaborativo, ativo e integrado, que envolve não apenas os profissionais da agência, mas também o cliente. Para além disso, há a integração do cliente ao processo. Não cabe a ele apenas o repassar de informações para confecção do briefing pelo Atendimento. “Hoje você tem que viver o negócio do seu cliente. Tem que estar lá todo dia, você tem que conversar com você, não dá mais para você fazer reunião mensal de correção de rota, não. Vive todo dia. Entra todo dia, conversa direto” (Entrevistado Agência 1). Internamente, toda a equipe da agência passa a trabalhar de forma integrada para solucionar a “dor’ do cliente. Os dados não estão mais restritos ou não são prioridade de uma determinada área. Existia, é, um ciclo, né: atendimento, tráfego, diretor de criação, definição de mídia, tudo mais. Hoje quando entra uma demanda, né, que vai envolver a agência como todo, ela não fica mais, é presa na situação, na relação atendimento, é criação, neste primeiro momento. Ela já é aberta para agência como um todo. Então, chegou um cliente, chegou uma demanda nova, uma, um projeto de projeto diferente, a gente convoca toda a agência tanto mídia on, quanto mídia off, quanto o social mídia, quanto o redator off, o diretor de criação, e a gente consegue contar um pouco desse processo pra, pra que aquela campanha, ela saia mais plural possível, né? (Entrevistado Agência 3). Nessa mesma direção, em termos de relações entre os departamentos de uma agência, estes passam a atuar de modo mais integrado e horizontal entre si. Deixa de existir a sensação de que há departamentos e profissionais mais ou menos importantes dentro da agência. Sumário <<<<< 174 Então, não tem essa coisa de um é astro e o outro não né, só na “ralação”. A gente é uma equipe, as coisas só funcionam porque a equipe trabalha junto, eu acho que isso já melhorou também. Então, assim, mudou desde a dinâmica interna dos departamentos de uma agência até os papéis dos meios em que a gente pensa na definição da estratégia em si né [...] (Entrevistado Agência 2). Essa mudança parece levar a relações mais colaborativas dentro do universo publicitário. Agências mais próximas ao digital tendem a levar seus profissionais a trabalharem mais integrados na execução de projetos, além de valorizarem e buscarem a humanização das equipes. Na (nome da Agência) é, uma coisa que eu falo isso há muito tempo, que a ideia é, eu sempre fui contra essa coisa de quem é o dono da ideia. A ideia é de quem? Né, então, eu gosto muito desse movimento coletivo e a gente sempre foi uma agência muito horizontal, né? Então, portas abertas todo mundo fala com todos. Eu percebo aí que uma coisa se conecta a outra, para que esse mundo matemático, que esses caras funcionem, tem que trazer também o lado das Humanas. E mais do que nunca a gente tem que saber trabalhar em equipe. Isso é verdade. Isso não é clichê. Isso não é balela. A gente precisa saber trabalhar em equipe mais do que nunca. As nossas melhores campanhas têm fichas gigantescas com pessoas de todos os departamentos trabalhando junto. É esse, esse, esse podcast, vocês vão ver ele falando sobre isso. É o jeito que a gente trabalha. Se eu faço reunião aqui no Teams {Microsoft} com 10 pessoas, 8 pessoas, para falar de uma campanha. Cada um dá, cada um na sua área e todo mundo Sumário <<<<< 175 contribuindo. Então essa, essa, ao mesmo tempo que a gente tem é a programação chegando forte racional, a humanização se faz muito presente. E sai na frente quem humaniza. Quem, quem tem esse relacionamento melhor. Quem trabalha melhor as pessoas (Entrevistado Agência 4). Um outro ponto que merece atenção especial em relação às transformações é a remuneração das agências. Ao olharmos para o passado, é possível identificar que a incorporação do digital, do ponto de vista da remuneração, foi conturbada, uma vez que, durante muito tempo, as entregas digitais foram oferecidas aos clientes como “brindes” extras das campanhas off-line. Como consequência, os produtos digitais das agências tendem a ser vistos como produtos menores e desvalorizados. Olha, quantos e quantos clientes durante muitos, muitos anos a (nome da agência) deu o digital... é... como se fosse assim, né? Você sabe muito bem disso. “Olha, nós vamos cobrar tanto pelas campanhas off e o digital a gente vai dar para vocês”. Um grande erro que a (nome da agência) e uma infinidade de outras agências por inteiro, porque o valor sobre o digital hoje ele é mal percebido (Entrevistado Agência 6). Para além da cobrança em relação aos materiais digitais, a inclusão do digital dentro da publicidade alterou também as formas de remuneração: fees e BVs - Bonificação sobre Volume de mídia. Por muitos anos, uma parcela significativa dos clientes remunerou suas agências a partir de um pagamento mensal, conhecido no meio publicitário como fee. Trata-se de um valor de remuneração, acordado entre agência e cliente, que define uma taxa fixa, um preço único, cobrado pelos serviços de publicidade. Sumário <<<<< 176 Esse valor é flexível, variando conforme o montante de serviços prestados ao cliente e sendo acordado via contrato. Para os clientes, o fee mensal foi, durante muito tempo, uma das principais formas de remuneração das agências. Diante do crescimento dos modelos digitais de comunicação, percebe-se que vem ganhando espaço no mercado uma outra dinâmica de remuneração, atrelada a projetos. Os fees existem, são praticados pelos clientes/agências, mas vêm sendo cada vez menores, vinculados às atividades básicas. Atividades extras são contratadas por projetos. Eu sinto que antigamente, e o que é um contrato, né? Uma definição prévia que vai acontecer no período. Como que eu faço contratos hoje com o mercado mudando dia após dia, né? Então isso é um complicador. Então, hoje, a agência, a (Agência 03) a maioria de seus clientes trabalha com fee específico. Clientes que tem a veiculação em mídia existe aquela remuneração, né? Aquela... aquela porcentagem. Só que a grande maioria dos clientes trabalha com o fee reduzido e paga por projetos separados, para que a partir daí a gente comece a dar valor para o que vai além do básico (Entrevistado Agência 3). Outra forma de remuneração comumente utilizada na publicidade é o BV - bônus de veiculação. O BV de mídia refere-se a um benefício cobrado por agências de comunicação, referente a 20% dos investimentos realizados em mídia numa campanha publicitária. Trata-se de uma comissão paga às agências, pelo veículo, pela comercialização de espaços publicitários, numa determinada mídia. Essa prática de mercado se destacou por anos como forma de remuneração. Sumário <<<<< 177 Na atualidade, o BV de mídia ainda é considerado uma forma de remuneração das agências. No entanto, vem perdendo espaço. Com a chegada do digital e com a possibilidade de diversificação de mídias cada vez maior, o BV deixa de ter potencial para ser uma grande forma de remuneração das agências. Outro aspecto que justifica sua perda de valor para as agências é que as decisões de mídia são tomadas cada vez menos referenciadas nos índices de audiência (grandes geradores de fee), e mais ligadas aos objetivos esperados e à forma como os meios on e off farão parte de uma dada campanha. Diante da perda de espaço dos formatos tradicionais de remuneração, emerge, no contexto digital, cada vez mais, a remuneração por projetos. A gente não atende governo. Então… a gente tem, a gente trabalha muito por projeto, nem fee. A gente tem alguns, tem cliente de fee mas é um formato que eu acho que tá… não tá.. não.. é um formato que tá muito, já foi muito mais pesado dentro da carteira daquele cliente de fee, mas hoje realmente por projetos (Entrevistado Agência 2). Para além das novas formas de remuneração, um outro aspecto que sofrerá o impacto da chegada do digital é o salário dos publicitários. Com o passar dos anos, demonstra a pesquisa, vêm ocorrendo um achatamento da remuneração dos profissionais. Tal fato vem acontecendo tendo em vista a necessidade de maior contratação de pessoal para atuação nos meios digitais. Com um maior volume de pessoas dentro da agência, há mais profissionais para dividir os lucros, tornando, consequentemente, os salários mais baixos. Sumário <<<<< 178 Hoje, as agências, elas remuneram conforme os contratos. Como eu disse para vocês, as agências, elas não conseguem ser pequenas mais. As agências tão grandes. O que antes era dividido com 10-15 pessoas, hoje é dividido por 40. Os salários estão achatados. Hoje as pessoas que entram nas agências até elas construírem a sua carreira, começaram a falar com propriedade, entenderem, ficarem, passarem por todo esse processo que esse processo de início de formação, elas ganham pouco (Entrevistado Agência 6). Como consequência dos baixos salários pagos, há uma tendência nas agências de alto turn over.7 “A rotatividade das agências aumentou demais da época que eu entrei no mercado. Muito, muito, muito (Entrevistado Agência 3). O alto turn over, por sua vez, impacta a partir de dois movimentos contrários: de um lado, há a valorização dos profissionais que já estão estabelecidos nas agências, que passam a receber mais como forma de retê-los no local de trabalho; e, de outro, cresce a dificuldade de contratação de novos profissionais, tendo em vista que muitos optam por atuarem como freelancers, já que a renda, nestes casos, tende a ser maior. Você tem muito mais renda complementada, é mais fácil ter ainda... complementar como freelancer do que antigamente. O que a dificuldade da nossa contratação muitas vezes, a gente tem que contratar alguém, o salário é x. Com freelancer eu faço duas vezes. E aí eu não tenho condição de... de... concorrer com isso (Entrevistado Agência 1). Outro insight interessante trazido pela pesquisa é em relação a como vem acontecendo o uso de dados pelas agências de publici7 Rotatividade; mudança de emprego. Sumário <<<<< 179 dade locais. Com a chegada de novas tecnologias, que facilitaram e baratearam o acesso aos dados, a prática de uso de dados pelas agências vem sendo incrementada. O que se percebe em relação à mentalidade data-driven e às agências publicitárias é que, ao longo dos anos, gradativamente, as agências vêm fazendo cada vez mais uso de dados e a sua incorporação vem afetando os processos publicitários. Se, anteriormente, os dados se limitavam aos dados fornecidos pelos clientes, como dados de venda, de mercado e de pesquisas, hoje as agências contam cada vez mais com dados gerados pelas tecnologias de informação e comunicação, sejam no cliente, sejam na própria agência. De um lado, as agências vêm acessando, com muito mais presença, os indicadores que antes eram exclusivos dos clientes. De outro, se, anteriormente, os dados estavam limitados às estatísticas de vendas, por exemplo, hoje diversas novas fontes de informações são incorporadas ao processo. Redes sociais, e-commerce e softwares de gestão são cada vez mais utilizados pelas agências. Temos uma super integração com nossos clientes de onde capturamos os insights em um processo identificando, por exemplo, os produtos que ele tem no estoque, ou com os lançamentos, em um processo contínuo de criação de leads. Um exemplo seria de um cliente de imobiliária que temos. Existe um processo de tratamento de dados que saem de um departamento que foi criado dentro da empresa onde os dados são tratados e encaminhados para um setor de corretores para que eles possam transformar isso em vendas. E, assim, no retorno para nós dentro do funil, sabemos quanto entrou e quanto saiu, e assim nossos criativos trabalham para melhorar ou não as estratégias. Então é muito louco isso, né? (Entrevistado Agência 5). Sumário <<<<< 180 Os dados não são mais restritos àqueles disponibilizados pelos clientes. As próprias agências têm investido na produção de seus dados e insights. Agências têm buscado tecnologias, como softwares de captação de dados, de gestão de leads, de performance, dentre outros, que permitem gerar insights, por exemplo, sobre as campanhas em desenvolvimento. A gente tem também ferramentas do Analytics mesmo pra gente tirar relatório de mídia digital, né? Tipo de.. para mais a análise estratégica, né? E pós campanha, que ajuda a gente, que são dados que a gente usa pra campanhas futuras para continuidade, para mudança de estratégia, né? (Entrevistado Agência 2). Os dados coletados auxiliam no conhecimento de hábitos de públicos consumidores, direcionam motes criativos e indicam temas a serem tratados pelas campanhas. São, também, considerados fundamentais para a elaboração de planejamentos e estratégias de comunicação. “Hoje, a gente tem um departamento dentro da nossa agência que é praticamente de criação orgânica, ou seja, pessoas que ficam focadas no que tá rolando nesse exato momento na internet para propor, ao cliente, ações em tempo real” (Entrevistado Agência 1). Então, dentro do nosso negócio a gente tem lá um departamento, são três pessoas que a gente chama, é integrado ao departamento de inteligência de planejamento, que ficam pesquisando o tempo todo ali para entender o que está rolando. Então, o papel das pessoas é ver de fato quais são os trending topics do momento, o tempo todo, para poder saber o que a gente pode propor para os clientes que faz sentido (Entrevistado Agência 1). Sumário <<<<< 181 Dados de performance de campanhas, por sua vez, servem para dimensionar e reorientar campanhas publicitárias. Observar o desenvolvimento das campanhas publicitárias permite analisar o que funcionou e o que não funcionou numa ação publicitária, quais aspectos foram mais favoráveis/desfavoráveis à realidade de uma marca, possibilitando ajustes tanto na rota estratégica quanto na criativa, ao longo do caminho. É… hoje, por exemplo, a nossa equipe de planejamento, ela.. ela ganhou uma.. uma nova cadeira que chama performance. Então, esse profissional de performance ele, além de ajudar o planejamento a ter esse, esse briefing, do reason to believe, de caçar, essa..esse.. na raiz, esse insight para criação, ela também dá, mune a gente de dado mesmo do que que aconteceu com a nossa campanha. Então essa foi uma das grandes mudanças pra gente, é ter essa nova cadeira que chama performance (Entrevistado Agência 6). Neste ponto, o foco está em consertar desvios, visando melhorar os resultados a serem alcançados. Então, se alguma coisa não tá performando, a gente cancela, suspende, lá na programação. E os que estão dando certo a gente faz outras coisas parecidas. Opa, então vamos tentar abordagens semelhantes para melhorar a performance. E, no final, é... passa régua, é feito esse relatório e é compartilhado com a criação, e a gente discute sobre título, sobre composição, sobre direção de arte, sobre argumento. Oh, isso aqui pode ser melhor. Isso aqui foi legal. Isso aqui foi bacana. Vamos manter. Num processo de muito mais envolvimento, assim, Sumário <<<<< 182 e que tem, eu acho assim, é bem mais, eu acho que, gasta mais energia da criação e exige áreas que a gente não usava antes (Entrevistado Agência 4). Os dados de performance também permitem a mensuração dos retornos alcançados. É, hoje a quantidade de dados que a gente tem das redes é absurda, e a gente precisa levar isso em consideração. Não só, é, o dado da rede, né, mas o dado da nossa peça, né, que eu acho que é uma coisa muito louca. Que isso é muito interessante (Entrevistado Agência 4). Em decorrência da incorporação desses novos dados à rotina publicitária, e da natureza do dado digital, que consegue ser verificado em tempo real, campanhas que antes levavam dias, semanas ou mesmo meses para serem avaliadas, têm suas performances acompanhadas minuto a minuto. Essa realidade acaba por exigir, por um lado, a disponibilização de equipes dirigidas à reestruturação imediata de campanhas, mas, acima de tudo, por outro lado, uma mudança de mindset. Essa mensuração é em real time assim, acontecem ajustes da campanha com a maior velocidade possível. Nossa agência trabalha com esse timing, traz soluções e agrega no departamento de mídia. Hoje temos outro modelo de mindset (Entrevistado Agência 3). Porém, vale a pena ressaltar que a incorporação dessa nova prática, de uso mais frequente e aprofundado de dados, para a construção das propostas de comunicação, não é um movimento pronto, consolidado. Pelo contrário, está acontecendo, sofrendo vai e vem constante, dependendo do cliente, dos dados disponíveis, e Sumário <<<<< 183 variando de agência para agência. “Ah eu acredito que a gente está em trânsito com isso aí” (Entrevistado Agência 2). É encontrada também em diferentes graus de maturidade. Independentemente do tamanho da agência, existem estágios mais ou menos avançados em relação ao uso de dados. E, neste processo, muitas não tiveram escolhas, precisaram se adaptar a qualquer custo. O que eu te falo, Marina, é que eu tenho uma hipótese, eu acho, e as outras agências também estão trabalhando com dados em níveis... é... é... diferentes do da (nome da agência), eu acho que hoje a (nome da agência) por ser uma agência grande, né, com grandes clientes, a gente tem contas que não são só de Goiás, né, que elas alcançam o país, então a gente não teve escolha (Entrevistado Agência 6). Outras tantas são afetadas pelo nível de maturidade data-driven que o cliente se encontra. Clientes com maior maturidade em relação a uma cultura de dados, acabam direcionando as agências a adentrarem mais rápido e intensamente neste universo. A gente cresceu meio que junto, né, junto com.. com a mudança de digital. O cliente começou a abrir as suas portas por digital, a gente foi junto querendo também participar sobre isso. Então eu acho que de mãos dadas a gente tem muita abertura com os nossos clientes, então a gente que mudou a perspectiva, tanto na agência, tanto a perspectiva do cliente em relação ao digital (Entrevistado Agência 6). Uma vez que a mentalidade data-driven esteja instalada, os feelings, tão valiosos e estimados no passado, vão gradativamente dando espaço para os insights, ideias resultantes da análise e do Sumário <<<<< 184 monitoramento dos dados coletados pelas agências. “Então, hoje a novidade que os dados trouxeram pra gente, foi, é (...) também foi uma novidade para o anunciante, pro cliente. Então o cliente aos poucos foi entendendo que a gente sai do layout, tinha que sair do... do Indesign e ir para o Excel” (Entrevistado Agência 6). Diante de todas essas transformações no ambiente, nas estruturas e nas relações das agências publicitárias goianienses, é possível observar um terceiro insight: as agências que estão conseguindo se adaptar a uma realidade digital tendem a reestruturar seu papel diante dos players do mercado. Agências que passam a fazer uso mais estratégico de dados, e, gradualmente, vão se reestruturando, tendem a, gradativamente, irem ganhando mais autoridade no processo publicitário, porque deixam de ser percebidas como “criadoras de anúncio” para serem compreendidas como parceiras estratégicas de negócio. A agência vira uma consultoria porque você começa a ter muita inteligência de dados e do negócio do cliente. O cliente não me chama mais: “faz esse layout, põe amarelo., põe verde, aumenta isso, aqui põe estrelinha”... tem essa parte também, mas hoje o negócio quando chama, (entrevistado), a estratégia é para a gente discutir isso. Nesse nível (Entrevistado Agência 6). Se, durante muito tempo, o valor da publicidade esteve associado à criatividade entregue nas campanhas, se cabia às agências produzirem ideias e agenciarem meios de comunicação para a veiculação das peças e anúncios, esse não parece mais ser a forma exclusiva pela qual o valor se constrói, atualmente. O nome “agência” já não faz mais sentido, mas já não faz um tempo e agora cada vez faz menos Sumário <<<<< 185 a gente não agencia nada. É.. Nós vamos sim rabiscar estratégias e criativos para cliente, então a gente precisa entender de levar estratégias. As agências precisam levar cada vez mais para os seus clientes estratégias e ideias criativas para que eles tenham algum resultado no momento muito mais competitivo (Entrevistado Agência 1). Há um movimento de repensar o valor da publicidade, de modo que cada vez mais as ideias criativas tendem a estar alinhadas à estratégia. A agência começa a caminhar para ser mais estratégica e integrada, em todas as suas áreas. Referências NAVARRO, Victória. Criatividade escalável: o que as agências já automatizaram. PROXXIMA. 10 Fev. 2021. Disponível em https:// www.proxxima.com.br/home/proxxima/noticias/2021/02/10/ criatividade-escalavel-o-que-as-agencias-ja-automatizaram.html?utm_source=ActiveCampaign&utm_medium=e mail&utm_content=%5BNews%5D+Criatividade+escal%C3%A 1vel%2C+Novos+recursos+do+Instagram%2C+Google+Analyti cs+%234%2C+etc&utm_campaign=News+04%2F03. Acesso em: 18 mar. 2021. PAIXÃO, Elisa; SIQUEIRA, Rafaela. Mindset Data Driven para iniciantes. Cortex Intelligence: 2021. KOTLER, Philip; KARTAJAYA, Hermawan; SETIAWAN, Iwa. Marketing 5.0: tecnologia para a humanidade. 1ªed., Rio de Janeiro: Sextante, 2021. MORAIS, Felipe. Transformação digital: como a inovação digital pode ajudar seu negócio nos próximos anos. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. Sumário <<<<< 186 ROGERS, David. Transformação digital: Repensando o seu negócio para a era digital. 1. ed. São Paulo: Autêntica Business, 2017. ZEENG. Análise da presença digital das agências no Brasil. Disponível em: https://zeeng.com.br/como-performam-as-agencias-no-ambiente-digital/. Acesso em: 27 mar. 2023. Sumário <<<<< 187 O sistema de setas e o plano comparativo: o uso de metáforas como técnica para a criação publicitária Janaína Vieira de Paula Jordão1 Introdução Existe uma quantidade razoável de publicações que tratam da criação publicitária, que ajudam os professores a trabalharem com os seus alunos os mais diferentes desafios durante a disciplina. Muitos dos professores desta área são contratados justamente por já terem trabalhado no mercado, e Petermann, Hansen e Correa (2015) já alertaram para a possibilidade de um processo de duplicação do mercado em sala de aula, inibindo a maximização da capacidade inovadora que o trabalho mais livre dentro do ambiente universitário poderia ter. Notei também que diversos livros que falam sobre criação publicitária fazem uma espécie de mapeamento de diferentes peças publicitárias e as categorizam por estilo, mostrando aos criativos “como” se pode criar: com humor, emoção, argumentação, uso de testemunhais, escolha de um inimigo etc. 1 Doutora em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, Mestre em Comunicação pela Faculdade de Informação e Comunicação da UFG e professora de Redação Publicitária no curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda da FIC/UFG. E-mail: janainajordao@ufg.br. E como são incontáveis os exemplos, muitas vezes ficamos navegando entre uma infinidade de anúncios, sem ter a menor ideia de como começar um. Ou seja, muitas vezes a literatura traz um viés institucionalizado do que é considerado bom, e não exercícios que busquem o lado lúdico da criação, para citar a diferenciação feita por Petermann, Hansen e Correa (2015). Ao longo dos anos, como professora de Redação Publicitária, também observei que muitas vezes, ao fazer o brainstorming, os estudantes tendiam a pensar em um conceito, e a quantidade de ideias era, em grande medida, variações daquele mesmo conceito, o que me instigou a pensar em uma técnica de brainstorming que tirasse os estudantes da zona de conforto das ideias mais óbvias e os estimulasse a forçar o pensamento em sentidos diversos, nas oposições, nos exageros e nas metáforas. Foi assim que comecei a elaborar o Sistema de Setas, que, apesar do nome, não tem nada de fechado, pois é mais uma técnica para geração de ideias, e não para enquadrá-las, ou seja, não é um manual de criação publicitária. Na hora de criar, tudo é válido, e quanto mais habilidades, melhor e mais versátil será o criativo. Estou tão somente propondo mais uma técnica para ajudar o estudante ou profissional a sair da folha em branco, com uma técnica para estimular a criação de uma maior quantidade de ideias. Obviamente não saí do zero. Levo sempre em consideração o que disseram os autores que buscaram entender a criatividade em geral, como Ostrower (2008), e a criatividade aplicada à publicidade, como Barreto (2004) e Carrascoza (2008), que iluminou um tanto mais o processo criativo na publicidade ao falar sobre associação de ideias. O autor apoiou a sua argumentação em Aristóteles e em David Hume para pensar nas associações, que podem ser feitas por semelhança, contiguidade e contraste (posteriormente substituído pela associação por causa e efeito, Sumário <<<<< 189 por Hume). Assim, ainda segundo o autor, quando olhamos para uma tela em que há́ uma paisagem, associamos por semelhança a uma paisagem real; quando pensamos em um apartamento de um determinado edifício, podemos pensar em outros existentes, o que se dá por contiguidade; e se pensamos em um ferimento, podemos pensar na dor que ele causa. Mas um pensamento comum à maioria dos autores é: criar é associar ideias, relacionar impulsos da intuição e conhecimentos, diferentes fenômenos de modo novo, e só é possível fazer isso quando há repertório, experiências e referências a priori não relacionadas para serem associadas. De um ponto de vista teórico mais associado à formação de conceitos e associações na vida cotidiana, utilizarei a teoria de Moscovici (2011) sobre representações sociais, com ênfase no processo de ancoragem, e também o uso das metáforas, a partir de Lackoff e Johnson (2003), e também de Ricoeur (2015). Como resultado, mostrarei trabalhos de alunos da disciplina de Redação Publicitária 1, que utilizaram o Sistema de Setas como uma técnica de brainstorming. As teorias do cotidiano As representações sociais são um conceito desenvolvido por Moscovici (2011), que dizem respeito às teorias do cotidiano, que vamos formulando e reformulando ao longo da vida. É como uma organização mental em que categorizamos os fenômenos que nos aparecem, no sentido de tornar familiar o que não nos é familiar. Tais representações são um sistema de valores, ideias, crenças, ideologias, conhecimentos e práticas, que estabelece uma ordem que possibilita a orientação das pessoas no mundo, e a comunicação entre elas, fornecendo-lhes um código para nomear e classificar os vários aspectos da vida. As representações são formadas diante dos nossos olhos, pela mídia, nos locais públicos e nos processos Sumário <<<<< 190 de comunicação, que nunca ocorrem sem uma transformação. Por isso, as práticas na vida cotidiana que se tornam senso comum são o material prototípico para o entendimento das representações sociais, pois o senso comum, assim como a ciência, é uma forma de compreender o mundo e de se relacionar com ele. Segundo o autor, existem dois processos geradores das representações sociais: a ancoragem e a objetivação. Darei mais atenção aos processos da ancoragem, uma vez que o intuito deste artigo é propor o uso de ideias que estão “ao redor” de um determinado atributo de uma marca, serviço ou produto. A ancoragem é a lenta assimilação de conteúdos e a influência sobre eles dos valores de referência para a criação de novas percepções/ conhecimentos. “É quase como que ancorar um bote perdido em um dos boxes” (Moscovici, 2011, p. 61) da nossa memória, ou seja, escolhemos um paradigma preexistente para estabelecer uma relação positiva ou negativa com algo que está sendo categorizado no momento. Fazemos isso o tempo todo, seja com pessoas, seja com estilos de música, arquitetura etc. Ao ouvirmos uma música com sonoridade “estranha”, por exemplo, tentamos encaixá-la em alguma das categorias musicais que fomos conhecendo com o tempo, como forma de compreender a realidade e saber como lidar com ela, como agir. Nomeamos e somos nomeados. A ancoragem, portanto, diz respeito à rede de significações que envolve o que está sendo observado, o que vai mediar as relações entre grupos com valores similares ou distintos (Moscovici, 2011). Já a objetivação é o momento da materialização das representações, pois se transmuta o que está na mente em algo que existe no mundo físico, ou seja, se torna real um esquema conceitual. A ancoragem, assim, é voltada para dentro, relacionada à memória, e nela está sempre se colocando e se tirando as coisas/pessoas/ grupos classificados e rotulados, enquanto a objetivação é volta- Sumário <<<<< 191 da para fora, para os outros, para reproduzir as representações no mundo exterior (Moscovici, 2011). Trazendo este raciocínio para a criação publicitária, podemos pensar nas ancoragens e nas categorias que já temos criadas como forma de brainstorming. Por exemplo, se formos pensar na palavra “belo”, é possível, conscientemente, mapear na nossa memória em quais categorias ela está inscrita: na arte, em pessoas, em atitudes, em paisagens, na moda etc. Ou seja, abre-se um universo (individual, mas construído socialmente) de possíveis associações de ideias que podem se tornar conceitos de campanhas, uma vez que está posta a relação entre elas. Pensamos, assim, que as ancoragens podem ou não ser metafóricas. No último caso, a ancoragem se dá pela aproximação de características em comum pertencentes a domínios diferentes para a compreensão de um deles. As metáforas A essência da metáfora, segundo Lakoff e Johnson (2003), é entender e experienciar um conceito em termos de outro e que, para além de ser uma questão de linguagem, a metáfora é pervasiva na vida cotidiana, tanto em pensamentos quanto em ações. As categorizações, por assim dizer, são uma das mais importantes ferramentas para tentarmos compreender o que ainda não conseguimos entender na totalidade, como nossos sentimentos, experiências estéticas e práticas morais, ou seja, uma forma de compreender o mundo. Ou, como pensa Moscovici (2011), a partir da abordagem das representações sociais, as ancoragens, como dissemos, são uma maneira de fazer o não familiar se tornar familiar. Para Lakoff e Johnson (2003), nosso sistema conceitual é metafórico por natureza, ou seja, ele estrutura como nós percebemos, pensamos e fazemos dentro de uma determinada cultura. O autor cita o exemplo de como conceituamos, metaforicamente, Sumário <<<<< 192 tempo como dinheiro (tempo é dinheiro), ou uma discussão como guerra, batalha: isso implica que a discussão é pensada em termos de ganhar ou perder, deixando de lado o aspecto de cooperação para o entendimento de ambas as partes na discussão. Ou seja, a metáfora é mais que a escolha de palavras, mas também estruturação, entendimento e performance. Contudo, a metáfora não é somente utilizada de acordo com o nosso sistema conceitual já estabelecido (as ancoragens já objetivadas e legitimadas), mas também como uma nova maneira de entender nossas experiências. Ou seja, é possível que criemos uma nova metáfora, como no caso de dizermos, por exemplo, que as teorias clássicas são pais de várias crianças, a maioria delas brigando entre si incessantemente (Lakoff; Johnson, 2003). Quanto à questão da similitude entre dois domínios, fator fundamental para a ocorrência da metáfora e, por conseguinte, da comparação, Lakoff e Johnson (2003) afirmam que se escolhe um atributo que faz a relação entre os dois domínios, deixando outros de fora. Categorizamos com foco em certas propriedades que satisfazem nossos objetivos. Podemos dizer que o amor é arte ou é guerra, a depender do que estamos querendo dizer ou como conceituamos o amor, de acordo com as nossas experiências. Assim, para haver uma metáfora, sempre utilizamos duas ideias: a de origem e a de outro domínio, ligadas por alguma similaridade preexistente (Ricoeur, 2015; Lakoff; Johnson, 2003). Em outras palavras, a metáfora é uma figura de substituição, em que um termo substitui o outro por analogia (Vanoye, 2007). Quando dizemos que “Maria é uma onça”, transferimos uma característica do animal (braveza, por exemplo) para Maria, definindo-a. Há, pois, uma representação social já consagrada pelo processo de ancoragem que liga o animal à característica de bra- Sumário <<<<< 193 veza. E, depois, pelo processo metafórico, que liga a característica de braveza à Maria. Onça e Maria, portanto, compartilham uma semelhança. A dinâmica da metáfora, segundo Ricoeur (2015), repousa, assim, na percepção da similitude entre as duas relações. Entretanto, se dissermos que “Maria é como uma onça”, faremos, explicitamente, uma comparação. As comparações são “em certo sentido (...) metáforas, pois são sempre formadas por dois termos” (Ricoeur, 2015, p. 44). Segundo o autor, comparação e metáfora apenas diferem uma da outra pela presença ou ausência de um termo de comparação (...). Aos olhos de Aristóteles, a ausência do termo de comparação na metáfora, não implica que a metáfora seja uma comparação abreviada (...), mas, ao contrário, que a comparação é uma metáfora desenvolvida. A comparação diz “isto é como aquilo”, a metáfora diz “isto é aquilo” (Ricoeur, 2015, p. 46). Sendo assim, a única coisa que difere a metáfora da comparação é a forma com que as apresentamos. Ambas expressam uma semelhança entre dois domínios distintos, porém, a comparação é um desdobramento expresso da metáfora e a ela é subordinada. Dizendo de outra forma, na metáfora, há uma comparação, só que não enunciada. Para o objetivo deste capítulo, a comparação será tomada como método de criação publicitária, ora associando domínios que já estão ancorados no conhecimento e na cultura, ora forjando comparações com outros domínios que, a priori, não tenham relação com o objeto da criação. O Sistema de Setas São inúmeros os caminhos que os criativos têm para seguir na hora de criar uma peça publicitária. Segundo Hansen (2015), o brainstorming é o momento em que proliferam inúmeras ideias, Sumário <<<<< 194 na busca da descoberta de dizer uma mesma coisa de diferentes maneiras, ou seja, parafraseando o briefing. Em Jordão (2017), propus o uso do que chamo de Sistema de Setas, como uma técnica a mais para fazermos esta paráfrase de forma criativa. No Sistema, há dois planos: o Consumo (abaixo, em amarelo) e o Comparativo (em azul), ambos seguindo as quatro direções propostas. Para o propósito deste capítulo, vou apenas citar o Plano Consumo, me aprofundando no Plano Comparativo, em que as analogias e metáforas são utilizadas. Figura 1 - o Sistema de Setas Fonte: elaboração da autora. O primeiro passo para a utilização do Sistema de Setas é a escolha de um atributo a ser trabalhado, uma qualidade do produto ou serviço; extrair a informação principal do serviço ou produto ou o seu principal benefício. Tentar colocar muitas qualidades em um só anúncio faz com que ele perca força ou clareza (Barry, 2012). Sumário <<<<< 195 Isso geralmente vai ser definido no briefing. Por exemplo, uma marca de cola pode querer vender o atributo da força, da durabilidade, da versatilidade etc. Cada um desses atributos vai gerar um sistema diferente e, por isso, é importante escolher um só e expandir o raciocínio criativo para as diferentes direções. Como dissemos, há dois planos no Sistema: o relacionado ao consumo e outro comparativo. No Plano Consumo, o uso do produto ou serviço é literal na ideia (ainda que nela haja exagero). Por exemplo, uma pessoa entra em combustão por ingerir uma pimenta. Ainda que estejamos exagerando no efeito (combustão), há o consumo (ingestão) do produto. Já o outro plano é o Comparativo, foco deste capítulo, em que não vemos o consumo em si, mas utilizamos de analogias, metáforas e comparações com outros universos não relacionados com o uso do produto, mas com o seu atributo. No caso da pimenta, podemos pensar que ela seja tão quente como a paixão ou mesmo como o inferno. Estimula-se, neste momento, a abstração sobre o atributo, tanto no sentido denotativo quanto conotativo, e o questionamento: o que mais é quente? No que se refere às direções do Sistema, continuemos com o exemplo da pimenta, cujo atributo principal seja ser “quente”. Em ambos os planos, nos dirigimos para quatro direções: acima – o exagero do atributo que queremos anunciar do produto (quente); abaixo – o exagero do antônimo do atributo (frio); esquerda – ausência do uso do produto e, consequentemente, do seu atributo (sem graça); direita – presença do uso do produto (temperado). Ou seja, acima e abaixo contamos com o exagero. À esquerda e à direita, fazemos uma relação de antes e depois. Quente, frio, sem graça e temperado podem ser trabalhados tanto relacionados diretamente com comida (Plano Consumo) quanto podemos levar essas características para universos metaforicamente relacionados (Plano Sumário <<<<< 196 Comparativo). É neste ponto que lançamos mão das comparações: é quente como o inferno. É frio como um ditador. É sem graça como uma piada de mau gosto. É temperado como um flerte. Se pensarmos que para cada direção do sistema podemos fazer um brainstorming específico, teremos no mínimo oito ideias para começar. Para ilustrar essa diferença entre o Plano Consumo e o Plano Comparativo, trouxemos o anúncio abaixo da Volkswagen, cujo objetivo é vender a tecnologia de assistente de estacionamento. A ideia consiste na mudança de lugar do motorista para o porta-malas do carro, evidenciando que ele tem muito mais controle sobre a manobra. O consumo do produto é literal na ideia (ainda que nela haja exagero). O uso ou não uso do produto, portanto, é explícito. Figura 2 - VW Park Distance Control Fonte: Já no exemplo abaixo, da mesma marca, o objetivo é similar ao do primeiro anúncio: ajudar o motorista a estacionar. Só que, nesse caso, não há sequer a presença de um carro. Há a comparação Sumário <<<<< 197 com o universo da construção, em que se mostra o perigo de não ter conhecimento do que está logo atrás. Não vemos o consumo em si, mas utilizamos de analogias, metáforas e comparações com outros universos não relacionados com o uso do produto, mas somente com o seu atributo. O uso ou não uso aqui é implícito. Figura 3 - VW Rear Assist Fonte: A grande diferença, portanto, entre os dois planos – Consumo e Comparativo – é que a ideia criativa estará mais próxima do uso/não uso do produto ou serviço no primeiro caso, e mais próxima do domínio metafórico ao qual ancoraremos a nossa ideia, no segundo caso. Sumário <<<<< 198 Figura 4 - Os domínios dos Planos Consumo e Comparativo Fonte: Elaboração da autora. Segundo Sullivan (2008), as metáforas são um poderoso meio de comunicação na publicidade. O autor cita o exemplo de um anúncio para o jornal The Economist em que há somente um buraco de fechadura e a assinatura. Ou seja, passa de forma simples a imagem de que é possível, com o jornal, enxergar de perto os segredos do mundo corporativo. A força disso está no fato de que “buraco de fechadura” já é um conceito que existe na cabeça do leitor (ancoragem já existente) e é ele quem vai fazer a ligação entre este conceito e a marca. Como já foi dito, nosso foco neste capítulo é trabalhar a parte comparativa/metafórica do Sistema de Setas.2 Retomando o raciocínio, depois de escolhido o atributo com o qual queremos trabalhar, podemos navegar no Sistema de Setas em diferentes direções: vertical (exagero) e horizontal (antes e depois). Assim, temos: - Seta Comparativa para cima: mantendo a ideia do exagero, agora o criativo poderá avançar em analogias e metáforas para representar a qualidade escolhida (o que mais no mundo, na vida, tem essa qualidade?). Para facilitar, pode-se usar como gatilho a expressão da comparação: “é como”. 2 Para a leitura sobre o Plano Consumo, ver Jordão (2017). Sumário <<<<< 199 - Seta Comparativa para baixo: novamente, utilizamos a técnica “é como”. A diferença é que vamos pensar aqui numa característica que é oposta ao atributo escolhido e exageraremos. Percorremos as direções na vertical – a do exagero. Agora é hora de pensar nas direções da horizontal. Apesar de muitas vezes uma ideia poder ser localizada nos eixos vertical e horizontal, idealizamos este último para nos incentivar a pensar em situações de antes/depois, ou seja, sem e com o uso do produto. É basicamente pensar nos efeitos da ausência ou da presença do produto. Quando utilizamos o termo “situações” é porque também estamos buscando estimular ideias para materiais audiovisuais. Uma pergunta que pode estimular o raciocínio no eixo horizontal é: o que acontece quando não se usa / se usa o produto ou serviço? O produto é tão (qualidade) que sem ele/com ele acontece determinada coisa. - Seta Comparativa para a esquerda: aqui estamos pensando em situações em que ainda não há o uso do produto ou serviço. Nesse caso, vamos pensar em situações não relacionadas ao produto em si, mas em situações de outros domínios semânticos em que a ausência do atributo se faz percebida. - Seta Comparativa para a direita: aqui vamos representar situações em que há o efeito do uso do produto ou serviço. Faremos a comparação entre o atributo com o qual estamos trabalhando e semelhantes consequências em outros domínios. Sumário <<<<< 200 Em sala de aula Uma vez ministrado o conteúdo em sala de aula, os estudantes receberam briefings a partir dos quais teriam que criar peças utilizando as metáforas como caminho criativo no brainstorming. A ideia era sempre pegar o atributo do produto e relacioná-lo com universos diferentes do universo literal do consumo deste produto. Por exemplo, no caso de uma supercola, se o atributo definido é força, a abstração deveria ser feita para além de anúncios que trabalhassem objetos de casa quebrados (Plano Consumo), mas fazendo associações com universos semânticos distintos (Plano Comparativo) em todas as direções do Sistema de Setas. O brainstorming, portanto, começaria com a pergunta: o que é absurdamente forte? (cima); o que é o oposto de força e como podemos exagerar? (baixo); o que acontece quando não temos força? (esquerda); o que acontece quando a temos? (direita). Há uma grande quantidade de ideias desenvolvidas pelos estudantes, mas utilizei como critério anúncios com layout para facilitar a visualização e a compreensão das ideias. Para cima, em que exageramos o atributo do produto, destacamos os seguintes anúncios. No exemplo abaixo, o atributo trabalhado foi a força do produto, em que a estudante fez a associação forte como um tubarão. Sumário <<<<< 201 Figura 5 - Black + Decker Fonte: elaboração de estudante.3 Já no anúncio abaixo, para marca de absorvente íntimo, o atributo trabalhado foi a questão do bloqueio. À época, um navio havia encalhado no Canal de Suez e as estudantes usaram o acontecimento para ilustrar o conceito, como uma comparação ao atributo do produto. 3 Estudante: Graziela Gondim de Carvalho Sumário <<<<< 202 Figura 6 - O.B. Fonte: elaboração de estudantes.4 Em um outro exagero para a Super Bonder, as estudantes utilizaram a referência da Pangeia para retratar o atributo – a força da cola. 4 Estudantes: Isabela Holanda e Barbara Martins Sumário <<<<< 203 Figura 7 - Super Bonder Fonte: elaboração de estudantes.5 Ainda na vertical, mas agora para baixo, exageramos no oposto do atributo do produto. Nos dois exemplos abaixo, o atributo utilizado para a supercola foi a força. Pensando no oposto do atributo, temos a fragilidade, de forma que a casa pode ser levantada por balões. 5 Estudantes: Natália Lis de Araújo Pereira, Verônika Lúcia Vieira de Almeida e Vitória Laís Almeida Magalhães. Sumário <<<<< 204 Figura 8 - Super Bonder UP Fonte: elaboração de estudantes.6 Da mesma forma, o exagero abaixo foi feito ao associar a fragilidade (oposto do atributo) ao nariz “descolado” da Esfinge de Gizé. 6 Estudantes: Natália Aguiar dos Santos e Ana Beatriz Caldeira Pitta Lima. Sumário <<<<< 205 Figura 9 - Super Bonder Esfinge Fonte: elaboração de estudantes.7 Focando agora nas direções horizontais, começando pela direita (presença do atributo), o conceito para a supercola no anúncio abaixo foi trabalhado a partir da própria denominação do produto: uma cola que cola mais que as outras, uma supercola. No exemplo abaixo, cola até marcas rivais. Outros exemplos surgiram na sala, como políticos inimigos unidos, como Bolsonaro e Lula, e a associação entre a cola e o amor de mãe, que não desgruda. 7 Estudantes: Natália Aguiar dos Santos e Ana Beatriz Caldeira Pitta Lima. Sumário <<<<< 206 Figura 10 - Pepsi-Coca Fonte: elaboração de estudantes.8 Já para um ventilador, as estudantes escolheram o atributo de diferentes velocidades e utilizaram o famoso penteado do Donald Trump, que vivia às voltas com as ventanias. Não há o uso do ventilador, mas a relação criativa é feita com o vento e o atributo do produto, que são as diferentes velocidades. 8 Estudantes: Giuliano Dalla Mutta Martins, Rafaella Sousa dos Passos e Ana Lívia Bueno Ribeiro. Sumário <<<<< 207 Figura 11 - Britânia 3 velocidades Fonte: elaboração de estudantes.9 Indo para a esquerda, em que há a ausência do atributo, a estudante criou um anúncio para um detergente, cuja qualidade é proporcionar limpeza. Na ausência da limpeza, há a sujeira e a comparação desta com uma assombração deu o tom criativo para o anúncio. 9 Estudantes: Isabela Holanda e Bárbara Martins Sumário <<<<< 208 Figura 12 - Minuano Fonte: elaboração de estudantes.10 Já no exemplo abaixo, o atributo cola (aqui, sua ausência) foi utilizado pelos estudantes no sentido figurado: o que não cola, o que não é convincente. 10 Estudante: Graziela Gondim de Carvalho. Sumário <<<<< 209 Figura 13 - Super Bonder cantada Fonte: elaboração de estudantes.11 Ainda no mesmo sentido, os estudantes trabalharam abaixo o conceito a partir de um pedaço da obra A Criação de Adão, de Michelângelo. 11 Nicole Aguirre Calazans, Sandy Silva Brito, João Henrique Alves do Nascimento. Sumário <<<<< 210 Figura 14 - Super Bonder Pieces. Fonte: elaboração de estudantes.12 12 Estudantes: Lucas Oliveira Serra Pinto Soares e Ketlyn Lins. Sumário <<<<< 211 Como dito antes, o objetivo deste exercício não é encaixar peças publicitárias nas diferentes direções do Sistema de Setas. Alguns alunos sentem dificuldade em saber se determinada peça estaria para baixo ou para a esquerda. E isto é uma questão que considero muito importante: a utilidade do sistema é somente para gerar uma boa quantidade de diferentes ideias, e não as enquadrar em alguma direção. Em outras palavras, a técnica é o ponto de partida, e não o objetivo a ser alcançado. Se assim o fosse, estaríamos colocando mais uma dificuldade para a criação, em vez de torná-la mais versátil e livre. Conclusão O objetivo deste artigo foi apresentar o Plano Comparativo do Sistema de Setas e sua aplicação em sala de aula. Parto da premissa de que a qualidade na criação publicitária somente será alcançada por meio da quantidade de ideias no brainstorming. Vivemos em uma época de intensa troca de informações e temos a publicidade muito presente nas nossas vidas. Parece, portanto, um desafio para o criativo criar algo inovador. Mas a criatividade do dia a dia não está em inventar a roda, mas sim, dentro dessa miríade de informações, fazer associação entre elas para a criação de peças inusitadas e criativas. Quanto menos repertório tem o criativo, menos associações vai conseguir fazer. A criação publicitária não é um processo passivo, como muitos costumam pensar, por exemplo, ao se dizer no cotidiano da criação a frase “me veio uma ideia”. Pelo contrário, a criatividade é um processo ativo e treinável. Por isso, a importância que atribuo ao brainstorming. Pensando nisso, desenvolvi o Sistema de Setas não como um manual ou um circuito fechado. Ele é tão somente um gerador de ideias em diferentes planos (Plano Consumo e Plano Compa- Sumário <<<<< 212 rativo) e em quatro direções distintas. No plano Consumo, o uso do produto acontece; já no Plano Comparativo, a associação de ideias é feita a partir do atributo do produto em comparação a outros domínios semânticos. Quanto às direções, navegamos na vertical (exageros do atributo e de seu antônimo) e na horizontal (ausência x presença). Alguns alunos, como dito anteriormente, sentem alguma dificuldade de diferenciar a direção da esquerda com a de baixo, mas tal dificuldade não se torna relevante para o processo, porque o Sistema não é um jogo de encaixar as peças nas diferentes direções ou planos, mas sim uma etapa inicial da criação publicitária, para a geração de ideias diferentes, e não variações do mesmo conceito. Um brainstorming rico de ideias tem mais chance de ser criativo. E o uso consciente das metáforas, com a ancoragem do atributo do produto com outros domínios semânticos, tem me ajudado em sala de aula a estimular uma maior liberdade e criatividade dos estudantes na hora de sair do papel em branco. Referências BARRETO, R. M. Criatividade em propaganda. São Paulo: Summus, 2004. BARRY, P. The advertising concept book: a complete guide to creative ideas, strategies and campaings. New York: Thames & Hudson, 2012. CARRASCOZA, J. A. Do caos à criação publicitária: processo criativo, plágio e ready-made na publicidade. São Paulo: Saraiva, 2008. Sumário <<<<< 213 HANSEN, F. A criatividade em jogo: paráfrase e polissemia no processo de produção do discurso publicitário. Revista Rumores, n. 18, v. 9, Jul/Dez, 2015. JORDÃO, J. V. P. Formas, não fôrmas: o Sistema de Setas como mais uma técnica de associação de ideias para o ensino de criação publicitária. Curitiba: 40° Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom, 2017. LACKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 2003. MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. 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Estella x Cruella: a dupla face de uma anti-heroína Lançado em 2021, simultaneamente nos cinemas e no canal de streaming Disney+, o filme em live-action – Cruella – narra a história de uma jovem criativa, inteligente e determinada, capaz de assumir riscos e transgredir regras para realizar o sonho de se tornar estilista. A trama, que se desenrola em Londres, em meio à atmosfera Punk Rock dos anos 1970, foi apresentada originalmente no livro The Hundred and One Dalmatians (Smith, 1956), em seguida, nas animações 101 Dálmatas (Geronimi; Luske; Reitherman, 1961) e 101 Dálmatas: a aventura de Patch em Londres (Kammerud; Smith, 2003), e, posteriormente, nas adaptações em live-action 101 Dálmatas (Herek, 1996) e 102 Dálmatas (Lima, 2000). 1 Doutora em Letras e Linguística (UFG). Mestre em Comunicação (UnB). Professora do Curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal de Goiás. E-mail: thalita_sasse_froes@ufg.br 2 Graduada em Publicidade e Propaganda (UFG). E-mail: ceciliafaloni@egresso.ufg.br Sob a direção de Craig Gillespie, roteiro de Jez Butterworth e Dodie Smith, e interpretado por Emma Stone, Emma Thompson e Joel Fry, o filme destaca o conflito entre as duas personalidades opostas – Estella x Cruella. Substituindo a vilã unidimensional das versões anteriores, a personagem, considerada cruel e vingativa, descobre-se marcada por traços que a aproximam tanto do bem quanto do mal – seu caráter dual transita constantemente entre os aspectos socialmente aceitos e não socialmente aceitos. Semelhante à tendência identificada, no século XXI, em várias produções cinematográficas, quadrinhos, desenhos animados e séries, Cruella recebe destaque ao assumir o papel da protagonista representando uma anti-heroína. Segundo Baranta (2015), o anti-herói é uma categoria de personagem que perturba e, ao mesmo tempo, cria empatia, conciliando defeitos e qualidades, que podem ou não ser equivalentes aos do público. Nesse sentido, Vogler (2006) acrescenta que o anti-herói não deve ser compreendido como o oposto do herói, mas como um tipo especializado dele. Para o autor, existem dois tipos de anti-heróis: O Anti-herói ferido pode ser um cavaleiro heróico numa armadura enferrujada, um solitário que rejeitou a sociedade ou foi rejeitado por ela. Esses personagens podem acabar vencendo, e podem ter, o tempo todo, a solidariedade total da platéia, mas aos olhos da sociedade são foras-da-lei [....] Com frequência, trata-se de homens honrados, que se retiraram da corrupção da sociedade e agora operam na sombra da lei, como detetives particulares, contrabandistas e jogadores. Amamos esses personagens porque são rebeldes e torcem o nariz à sociedade, como gostaríamos de fazer. O segundo tipo de Anti-herói se aproxima mais Sumário <<<<< 217 da ideia clássica do herói trágico. São heróis com defeitos, que nunca conseguem ultrapassar seus demônios íntimos, e são derrotados e destruídos por eles. Podem ser encantadores, alguns podem ter qualidades admiráveis, mas o defeito ganha no final (Vogler, 2006, p. 58). A empatia pelo anti-herói pode surgir porque, ao contrário do herói comum, ele não é uma versão melhorada do ser humano. De acordo com González (1994), o anti-herói permite que o público conheça a sua verdadeira personalidade, cuja imagem contrasta e confronta com aquela que ele próprio tenta construir e mascarar diante das pessoas. Ao tentar equilibrar suas possibilidades perante uma sociedade que conta com poderosos recursos para mantê-lo marginalizado, o autor observa que o anti-herói é instável e incapaz de amar ou de sentir emoções fortes, bem como de vincular sua personalidade a alguma ideia ou ideal de conduta. O anti-herói é uma figura não convencional, que erra e acerta, independentemente das suas vontades. Nessa perspectiva, González (1994) compreende a figura do anti-herói como um produto das condições sociais e seus crimes como uma forma de crítica social; isso porque, ao negar os valores consagrados pela sociedade, o anti-herói demonstra seu ressentimento e pessimismo em relação ao mundo. A agressão e a vingança, contudo, não tem como objetivo destruir o outro, e sim criticar e satirizar a sociedade contemporânea. No livro Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura europeia, Brombert (2002) ressalta que, no período entre 1830 e 1980, surgiu na Europa um novo tipo de herói com o intuito de recuperar ou reinventar o significado da tradição heroica. O autor identifica que, em uma época marcada pela desordem, a natureza moral do herói não apenas se tornou objeto de muita Sumário <<<<< 218 discussão, bem como os antigos modelos heroicos deixaram de ser considerados relevantes. O esforço para ajustar o novo tipo de herói aos contextos vigentes transformou-se em uma tendência complexa e muito difundida. O herói negativo, mais vividamente talvez do que o herói tradicional, contesta as nossas pressuposições, suscitando mais uma vez a questão de como nós nos vemos ou queremos ver. O anti-herói é amiúde um agitador e um perturbador. A concomitante crítica de conceitos heroicos subtende estratégias de desestabilização e, em muitas obras [...] comporta implicações éticas e políticas (Brombert, 2002, p. 15). Ao estabelecer novos valores, o anti-herói rejeita os modelos heroicos anteriores, transmitindo, portanto, uma mensagem de rebelião contra a autoridade ou a ideologia estabelecida. Sob esse prisma, é possível observar a dificuldade do anti-herói em viver de acordo com as expectativas convencionais, o que, por sua vez, não significa que esse tipo de personagem deva ser identificado necessariamente como fracassado. De outro modo, ao desafiar os preconceitos vigentes, o anti-herói apresenta coragem suficiente para criticar o status quo, examinando e denunciando questões morais, sociais, políticas e culturais. Em consequência, a coragem do fracasso passa a ser experimentada como uma forma de afirmação da honestidade; isso porque, inconsciente de sua própria coragem e totalmente inabilitada para se ver em qualquer “papel”, menos ainda no papel heroico [...] a consciência de sua fraqueza é sua verdadeira força [...] a tocante aceitação do insucesso e dos limites humanos, o valor da prisão da vida interior, o amor à fragilidade humana, a desesperada vontade e bravura de aceitar Sumário <<<<< 219 a vida [...] a fraqueza pode ser transformada em força, como a negação pode ser convertida em afirmação (Brombert, 2002, p. 22-23). A evidente natureza perturbadora da figura do anti-herói, entretanto, não é capaz de suprimir suas potencialidades. Nessa perspectiva, Vogler (2006) afirma que é devido à sua teimosia e à sua recusa de amoldar-se aos valores do mundo, que o anti-herói reconhece suas fraquezas e, em vez de ignorá-las ou escondê-las, assume sua condição humana, sua fragilidade e vacilações, seus medos e angústias. Nesse sentido, apenas a aceitação de si mesmo pode libertar o indivíduo para alcançar um novo nível de consciência. 2. Cruella de Vil: “eu sou mulher, me ouçam rugir” As mulheres que se recusam a viver os modelos socialmente pré-estabelecidos são sempre questionadas pelos seus atos e, muitas vezes, independentemente do que fazem, são culpabilizadas e julgadas pela sociedade. Segundo Castellano e Meimaridis (2018), a figura da anti-heroína simboliza características opostas àquelas esperadas, como por exemplo, a delicadeza e a submissão. A anti-heroína é representada, geralmente, como uma figura à frente do seu tempo, marginalizada, insensível, agressiva e falsa, capaz de neutralizar os valores morais e satisfazer seus impulsos sentimentais e sexuais. Desse modo, a imagem da mulher dócil e frágil é substituída por uma personalidade forte e intensa e a anti-heroína se transforma em uma mulher difícil de ser compreendida. Todavia, a tendência em associar o feminino ao lado sombrio, negativo e imperfeito não é exclusividade dos tempos atuais. Desde o período medieval, na Europa, a mulher estava em uma posição de sobredeterminação, sendo considerada, por natureza, enganadora, mentirosa, trapaceira e sedutora. É possível notar Sumário <<<<< 220 que, nessa época, as imagens de santidade e bruxaria estavam relacionadas, principalmente, às mulheres. Nas mais diversas formas narrativas, elas representavam, com frequência, feiticeiras, bruxas ou fadas malvadas. Sob esse prisma, o discurso misógino é tão persistente na Idade Média que a uniformidade de seus termos fornece uma ligação importante entre este período e o presente, impondo ainda mais o assunto porque, como veremos, tais termos ainda governam (conscientemente ou não) as formas pelas quais é concebida a questão da mulher - tanto por mulheres como por homens (Bloch, 1995, p. 14). Segundo Novaes (2003), atualmente, a valorização da obediência, da pureza e da submissão, por exemplo, como virtudes básicas de todas as mulheres, confirma o ideal feminino consagrado pela tradição da dupla natureza atribuída à mulher ao longo da História. Isso porque, de acordo com a autora, no tempo presente, ainda é possível encontrar a imagem dual da mulher representada como a mãe/madrasta, a fada/bruxa ou a mocinha/vilã. Torna-se pertinente ressaltar que, esta última carrega em sua representação o estereótipo da mulher carnal, imoral, fútil, inconfiável. O motivo disso, é o fato de carregar as características sociais consideradas reprováveis para a mulher na sociedade da dominação masculina, patriarcal, tais como liberdade sexual, ambição, autonomia e vaidade adulta. Como um reflexo no espelho, a vilã é o desvio da luz. Ela representa a sombra, o erro, o vício, o mal que deve ser subjugado, punido e exorcizado [...] enfim, ela é a outra face da mulher idealizada e personifica os maiores temores da sociedade patriarcal (Oliveira, 2007, p. 68). Sumário <<<<< 221 Cruella de Vil aparece pela primeira vez no livro infantil 101 Dálmatas (1956), da escritora inglesa Doddie Smith. Egoísta, extravagante, egocêntrica, malvada, impiedosa, perversa e, por fim, cruel, a vilã deseja matar 99 filhotes de dálmatas com o intuito de confeccionar um casaco de pele. Após as diferentes adaptações realizadas em quase meio século, os Studios Disney apresentaram, em 2021, um filme em live-action contando a origem da personagem. Cruella de Vil surge como protagonista e, de modo surpreendente, a narrativa sobre a sua história de vida transforma a vilã em uma anti-heroína: Cruella apresenta a juventude rebelde de uma das vilãs mais sofisticadas do cinema, a lendária Cruella de Vil. Ambientado na Londres dos anos 1970, em plena revolução punk rock, o filme acompanha uma jovem trapaceira chamada Estella, uma garota esperta e criativa determinada a alcançar o sucesso no mundo da moda. Ela se torna amiga de uma dupla de ladrões que apreciam a sua malícia, e juntos eles constroem a vida nas ruas de Londres. Um dia, o talento de Estella chama a atenção da baronesa von Hellman, uma lenda da alta-costura chique e esnobe [...] Mas esse relacionamento dá início a uma série de acontecimentos e revelações que levam Estella a abraçar seu lado perverso e se tornar a maligna e vingativa Cruella.3 Forte e não convencional – apaixonada por moda, inteligente e amável, e, ao mesmo tempo, rebelde, agressiva e vingativa –, a personagem, desde a infância, mostra-se dotada de uma personalidade paradoxal, resultante da combinação de duas naturezas opostas, as quais estão representadas nas cores do seu cabelo, metade 3 Sinopse oficial do filme em live-action – Cruella (2021). Disponível em: www.disneyplus.com/pt-br/ movies/cruella. Acesso em: 1 set. 2022. Sumário <<<<< 222 preto/metade branco. Ao transitar por suas duas personalidades distintas, a protagonista apresenta-se claramente cindida, o que, por consequência, instaura na narrativa fílmica a manifestação do mito do duplo.4 Sob esse prisma, Nicole Bravo ressalta que, desde a Antiguidade até o final do século XVI, esse mito simboliza o homogêneo, o idêntico: a semelhança física entre duas criaturas é usada para efeitos de substituição, de usurpação de identidade, o sósia, o gêmeo é confundido com o herói e vice-versa, cada um com sua identidade de própria. A tendência à unidade prevalece também quando um personagem desempenha dois papéis. A partir do término do século XVI, o duplo começa a representar o heterogêneo, com a divisão do eu chegando à quebra da unidade (século XIX) e permitindo até mesmo um fracionamento infinito (século XX) (Bravo, 1997, p. 263-264). Dos gêmeos descritos pelas narrativas míticas e literárias ao duplo do século XX, significativas foram as mudanças na concepção do duplo como forma de atender às demandas e inquietações do ser humano. Ao longo dos séculos, foi possível encontrar diversas vertentes do mito do duplo, contudo, coube ao escritor romântico alemão Jean-Paul Richter, em 1796, cunhar o termo Doppelgänger. De acordo com Nicole Bravo (1997), o termo pode ser traduzido por “duplo” ou “segundo eu”, com o sentido de “companheiro de estrada”, “aquele que caminha ao lado”. Nessa pers4 Em seu verbete publicado no Dicionário de Mitos Literários, Nicole Bravo esclarece que sua “análise leva em consideração tão-somente obras do Ocidente, das quais este é um dos grandes mitos. Mito que demonstra uma afinidade particular com um gênero literário – a ficção fantástica – e se prolonga na ficção científica. Mas o mito do duplo é também muito bem representado nas artes plásticas (a arte medieval som seus seres de duas cabeças, o maneirismo, o surrealismo) e na arte cinematográfica. Estamos diante de uma figura ancestral que na literatura terá sua apoteose no século XIX, na esteira do movimento romântico, embora o mito ainda seja bastante produtivo no século XX” (Bravo, 1997, p. 261). Sumário <<<<< 223 pectiva, a autora considera o alter ego como uma das primeiras manifestações da figura do duplo. A dualidade que marca a identidade da garota pode ser nitidamente observada por meio da relação mãe/filha. Catherine, com frequência, incentivava a filha a escolher a personalidade Estella em detrimento da personalidade Cruella. No entanto, desde criança, a personagem não demonstrava preocupação em agradar a opinião alheia. Ao ver uma peça de roupa costurada de modo pouco convencional, Catherine reprova a atitude da garota: “Que cruel! Seu nome é Estela, não Cruella”. Diante da excêntrica criação, Catherine carinhosamente se esforça para orientar a filha de acordo com os padrões socialmente aceitos e compartilhados: “Olha! Esse não é o padrão. Você tem que seguir o padrão, amor. O jeito certo”. Na escola, a garota apresentava grande dificuldade no convívio com as outras crianças. Em função desses problemas, Catherine decide levá-la para Londres com o objetivo de recomeçar a vida, permitindo que a filha cresça em um ambiente mais criativo. Durante o percurso, Estella, inquieta e curiosa, desobedece às ordens da mãe e acaba presenciando o assassinato de Catherine. Embora as circunstâncias e os detalhes do crime não fiquem evidentes, Estella sente-se responsável e culpada. Isso porque, de acordo com as suas próprias palavras, “a garota gênio vira uma garota tonta, que causa a morte da mãe e acaba sozinha”. Desamparada, Estella não tem outra opção além de seguir adiante. Em Londres, a personagem conhece dois garotos órfãos – Jasper e Horace – e nessa amizade encontra o apoio que precisava para se adaptar à nova realidade. O trio passa a viver de pequenos golpes e furtos, mas a protagonista não se esquece do seu sonho de se tornar uma estilista de sucesso. Estella, então, começa a trabalhar na Li- Sumário <<<<< 224 berty, uma renomada loja de roupas. Ela realmente tenta se ajustar ao novo trabalho, mas, insatisfeita com as ordens do chefe e acreditando que seu valor não estava sendo reconhecido, dá vazão à sua natureza transgressora, desrespeitando as orientações recebidas. O comportamento rebelde da personagem permite que a Baronesa von Hellman – importante referência no mundo da moda – perceba a qualidade do seu trabalho. Reconhecida tanto por seu talento quanto por sua personalidade extremamente rígida, a baronesa é uma grande inspiração para Estella. A personagem começa a trabalhar com Von Hellman e, paulatinamente, consegue conquistar sua confiança. O talento de Estella e a dedicação ao trabalho, em pouco tempo, transformam a jovem no braço direito da grande estilista londrina. Entretanto, o esforço para atender às extravagâncias da baronesa não é suficiente para que Estella consiga ser reconhecida por seu talento. Mesmo diante de vários acertos, Von Hellman se mostra cada vez mais rigorosa, inflexível e controladora: Você não deve se importar com ninguém. Porque as pessoas são obstáculos. Se ligar para o que o obstáculo quer, seu fim chegou. Se eu ligasse para qualquer pessoa ou coisa, eu poderia ter morrido igual a tantas mulheres brilhantes, com uma gaveta cheia de genialidades e com o coração repleto de amargura e dor. A decepção com a baronesa, somada à grande insatisfação com as condições de trabalho, parecem sufocar o talento de Estella. Contudo, ambas não são suficientes para fazer emergir o ódio contra Von Hellman; tal sentimento eclode apenas quando a jovem descobre que a baronesa está de posse do colar de sua mãe. Estella, então, questiona a baronesa sobre a origem da joia e recebe uma resposta nada agradável. Isso porque, von Hellman, Sumário <<<<< 225 de certa forma, acusa Catherine de roubo ao afirmar que a sua joia havia sido finalmente recuperada. Estella reconstrói as lembranças da noite em que sua mãe morreu e conclui que a baronesa é a verdadeira responsável pela morte de Catherine. A raiva e o ódio transformam-se em um combustível para o desejo de retaliação que passa a dominar a vida da jovem estilista: “Dizem que existem cinco estágios do luto. Negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Eu gostaria de acrescentar mais um. Vingança”. Nesse momento, as duas naturezas opostas que coexistem na figura da protagonista desdobram-se em duas personalidades distintas Estella/Cruella. A jovem estilista opta por viver uma vida dupla: de um lado, Estella, vítima das circunstâncias; de outro lado, Cruella, obcecada pela vingança. Ao contrário da manifestação do eu em que Estella e Cruella coexistem como faces meramente opostas, a partir desse momento, Estella e Cruella se desdobram em personalidades distintas, instaurando a manifestação do mito do duplo. Cindida e fragmentada, a protagonista inicia um constante movimento de substituição de uma personalidade em detrimento da outra. Isso porque, à rotina diurna de Estella em seu trabalho ao lado da baronesa, se sobrepõe a rotina noturna de Cruella, dedicada ao impiedoso plano elaborado para destruir a reputação de Von Hellman. De acordo com a jovem estilista: “Cruella ficou muito tempo escondida. Agora é a Estella que fará aparições especiais”. Cruella transforma-se em Cruella de Vil – um trocadilho, relacionado ao termo “cruel” e à palavra “devil”, extraída do carro Panther de Ville, roubado por Horácio. Ávida por vingança, Cruella de Vil inicia uma frenética batalha contra Von Hellman. Disposta não apenas a chamar a atenção para o seu trabalho, mas, principalmente, a destruir a reputação de sua, agora, maior Sumário <<<<< 226 adversária, Cruella provoca grande perturbação nos desfiles da consagrada estilista londrina. De modo surpreendente, Cruella de Vil se torna o novo nome no mundo da moda. Decidida a aniquilar o ego de Von Hellman, a jovem estilista desejava “pegar as coisas que ela mais amava: seu negócio, seu status, sua confiança”. Contudo, seu maior trunfo está diretamente relacionado ao desaparecimento dos dálmatas de estimação da baronesa – o que se justifica tanto pelo apreço de Von Hellman por seus cães quanto pelo fato de eles estarem, indiscutivelmente, envolvidos no assassinato de Catherine. Diferentemente das razões da conhecida vilã Cruella de Vil, presente na história de 101 Dálmatas, essa foi a justificativa encontrada no filme para excluir por completo o tema relacionado aos maus-tratos dos animais, uma vez que a atual perspectiva dos Studios Disney está alinhada às discussões politicamente corretas. Com a ajuda de seus amigos, Cruella consegue raptar os dálmatas e, como parte da sua vingança, faz a baronesa acreditar que os cães foram sacrificados para a fabricação de um casaco. Isso pois, os dálmatas foram utilizados como fonte de inspiração para a criação mais importante da jovem estilista. Furiosa com o estratagema de Cruella de Vil para arruinar seu desfile, Von Hellman é obrigada a assistir à sua derrota. Ao voltar para casa para comemorar seu sucesso, Cruella descobre que a baronesa mandou capturar seus amigos, Jasper e Horário, como forma de retaliação. Não satisfeita, Von Hellman decidiu incendiar o local em que o trio vivia. Cruella, no entanto, consegue escapar da emboscada com a ajuda de John – o mordomo da baronesa, que se revela um grande aliado da jovem estilista. John é o responsável por entregar à Cruella o colar de Catherine que ela tanto procurou em meio aos pertences da baronesa. A joia Sumário <<<<< 227 guardava um importante segredo: Catherine é a mãe adotiva de Estella, enquanto Von Hellman é sua verdadeira mãe biológica. John confessa à Cruella que salvou sua vida quando ela nasceu, pois a baronesa ordenara ao mordomo que matasse a criança. A grande estilista londrina tinha receio de que sua carreira de sucesso pudesse ser comprometida pelo exercício da maternidade. Sensibilizado, John é incapaz de cumprir a ordem da baronesa e decide entregar Estella aos cuidados da amorosa Catherine. Ao conhecer sua verdadeira história, a jovem estilista – ressentida e furiosa – decide dar continuidade à sua vingança contra Von Hellman. Ao encerrar sua conversa com John, Cruella afirma que: Hoje foi um dia confuso. A minha inimiga é a minha verdadeira mãe. E ela assassinou a minha outra mãe. Você devia ter receio. Não tinha? De que eu acabasse igual a ela. Uma psicopata. Isso explica todos os “não faça isso”, “tente se encaixar” e tal. “Ame-a até que ela mude”. Imagino que fosse um plano. E eu tentei. Eu juro que eu tentei porque eu amava você. O problema é que eu não sou a doce Estella. E eu tentei muito. Eu nunca fui. Meu nome é Cruella. Muito brilhante, um pouco má e só um pouquinho maluca. Não pareço com ela. Eu sou melhor. Enfim, eu vou nessa. Há muito o que vingar, retalhar e destruir. Mas eu te amo. Para sempre. Nesse sentido, McKee (2013) afirma que uma protagonista só se torna fascinante e convincente se possuir um antagonista capaz de manter o enfrentamento constante. É justamente por meio da relação conflituosa com a baronesa e dos traumas resultantes dessa relação que a jovem estilista se humaniza. Suas atitudes, entretanto, não são romantizadas, uma vez que os episódios traumáticos de sua vida não são apresentados com intuito de justificar suas intenções e seus comportamentos não socialmente aceitos. Sumário <<<<< 228 Ciente das consequências de todo seu estratagema, Cruella assume a repercussão de seus atos, pois, segundo a jovem estilista: “o bom das pessoas más é que você sempre esperar que elas façam algo…. Bem mal”. Sua estratégia cruel consiste em desestabilizar a baronesa Von Hellman, não apenas tomando o seu consagrado lugar no mundo da moda, mas também assistindo à sua prisão e se apropriando de tudo o que lhe era mais valoroso – como a mansão e os dálmatas de estimação. Cruella de Vil consegue resgatar seus amigos Jasper e Horário, ambos presos sob a acusação de matar os dálmatas da baronesa. Em seguida, a jovem estilista se reencontra com Anita, sua amiga de infância, e Artie, um amigo com incrível senso para moda, e os convence a participar de seu novo plano para se vingar da baronesa de modo ainda mais impiedoso. A genialidade de Cruella parece não impor limites para a conquista de seu objetivo – destruir Von Hellman. A jovem estilista chega ao ponto de simular a sua própria morte – de modo nitidamente semelhante ao assassinato de Catherine – com o intuito de incriminar a baronesa. Seu ardil serve também como uma oportunidade para que Cruella possa matar simbolicamente Estella – uma personalidade se impõe em detrimento da outra. O eu aniquila uma parte de si mesmo e o desdobramento nitidamente identificado na figura do duplo é suprimido em definitivo, já que uma personalidade determina o fim da manifestação da outra. Isso pois a libertação do duplo, conforme as palavras de Bravo (1997), é um acontecimento capaz de anunciar ou prever a morte do indivíduo, seja real ou de modo simbólico. Filha legítima da baronesa, Cruella de Vil toma posse de sua herança após a prisão de Von Hellman. Tal fato torna-se evidente quando a jovem estilista se muda com seus amigos – Jasper e Sumário <<<<< 229 Horácio – para a mansão Hellman Hall e retira as letras M A N da palavra Hellman no portão da entrada principal, onde agora se pode ler: Hell Hall – expressão traduzida para o português como Mansão do Inferno. Repleto de aspectos simbólicos, o novo nome da mansão não apenas realça os atributos da personalidade da jovem estilista Cruella de Vil, mas, especialmente, sugere suas intenções futuras: Desde muito cedo eu percebi que via o mundo diferente dos outros. Incluindo a minha mãe. Não era ela quem eu desafiava, era o mundo. Mas claro que ela sabia disso. Era o que a preocupava. Como é que dizem? Eu sou mulher, me ouçam rugir. Sob esse prisma, torna-se pertinente ressaltar que a expressão escolhida por Cruella de Vil para se autorrepresentar – “eu sou mulher, me ouçam rugir” – sugere importantes aspectos simbólicos. A expressão tem origem na canção I Am Woman, escrita pelos músicos australianos Helen Reddy e Ray Burton, no início da década de 1970. Em pouco tempo, a música se transformou em uma grande referência para o movimento de libertação das mulheres, provocando reflexões sobre a desigualdade de gêneros, os direitos das mulheres, o empoderamento feminino, dentre outros temas relevantes. Nesse sentido, a discussão sobre o caráter psicopata da personagem encontra um efervescente contexto cultural capaz de sustentar as escolhas de Cruella de Vil. O constante paradoxo entre os aspectos socialmente aceitos e os aspectos não socialmente aceitos – que caracterizam a figura do duplo Estella/Cruella – instaura um notável embate contra os valores estabelecidos pela sociedade da época. Embora a jovem estilista revele traços compatíveis com um transtorno de personalidade como a Psicopatia – identificada Sumário <<<<< 230 por alterações no comportamento como falta de empatia, afeto e/ou remorso além do gerenciamento inadequado da raiva – Cruella de Vil é a voz contestadora, nitidamente ambientada no cenário da cultura Punk Rock, que invade a cena londrina por volta dos anos 1970. Provocativa, Cruella costuma dizer que “‘normal’ é o mais cruel dos insultos”. Sua personalidade – menos perturbada que perturbadora – tem o claro propósito de abalar as sólidas estruturas, rompendo as regras vigentes e ultrapassando os limites predeterminados. Sempre disposta a desafiar as convenções sociais, a jovem estilista é uma personagem avessa aos padrões, aos modelos e aos estereótipos. 3. Cruella de Vil: uma mulher marcada pelas vicissitudes da vida Cruella de Vil pouco se assemelha à imagem das grandes heroínas representadas nas narrativas produzidas pelos Studios Disney. Distante das referências das heroínas capazes de feitos extraordinários transcendendo a bravura, a nobreza, a força ou a coragem das pessoas comuns, a jovem estilista não possui atributos para superar de forma excepcional um problema com dimensão épica. Cruella de Vil é uma personagem forte e intensa, no entanto, suas realizações não são necessariamente memoráveis. Suas intenções, suas motivações, suas ações e seus sentimentos parecem aproximá-la das questões que assolam a condição humana. Imersa no cotidiano londrino da década de 1970, Cruella, entretanto, carrega em si a marca de um ser humano dividido. Desde o nascimento, seu cabelo metade branco/metade preto evidencia a cisão do eu. Sua personalidade é resultado da combinação de duas naturezas opostas: uma socialmente aceita e Sumário <<<<< 231 outra não socialmente aceita. Tal divisão pode ser justificada em função da dificuldade do indivíduo em “assumir a responsabilidade de certos atos do seu ego, transferindo-a a um outro Eu, um duplo, que personifique o próprio diabo ou que seja criado por um pacto diabólico” (Rank, 2014, p. 57). Desse modo, a protagonista transita entre a sua personalidade Estella – socialmente aceita e adaptada às convenções – e a sua personalidade Cruella – questionadora das regras, dos padrões e dos modelos socialmente compartilhados. A solução para esse conflito interno emerge quando a jovem estilista decide sacrificar Estella em detrimento da ascensão de Cruella. Isso porque, a fim de se proteger das perseguições do seu outro “eu”, o indivíduo assassina a figura do duplo, consumando o que Rank chama de suicídio indolor. De acordo com o autor, a dificuldade do indivíduo em enfrentar o medo da morte cria uma ilusão inconsciente de separação, a qual torna possível a libertação, sem causar dor no seu verdadeiro “eu”. À medida que o paradoxo Estella/Cruella se dilui em função da supressão da primeira pela segunda, Cruella consegue tomar posse da manifestação do eu assassinando Estella simbolicamente. Rosset (2008) acredita que, ao tentar matar o duplo, o sujeito está matando a si próprio ou àquele que ele tentava e queria ser, porque quem morre é o eu original, não a cópia. Para o autor, a maior angústia não parece diretamente relacionada ao medo da morte, mas sim ao medo da não existência, ao medo de saber que não se viveu. Diferentemente de outras possibilidades de manifestação do fenômeno do duplo, a protagonista não se desdobra em um outro eu – ela já nasce marcada pela cisão Estella/Cruella –, o que torna complexa a distinção entre o eu original e o outro eu. Entretanto, ao eliminar a figura do duplo, a jovem estilista, a um só tempo, re- Sumário <<<<< 232 cusa a imagem da heroína Estella e se transforma na anti-heroína Cruella. Embora seja movida pelo sentimento de ódio e pela necessidade de vingança, Cruella de Vil é nitidamente reconhecida como uma mulher marcada pelas dores e vicissitudes da vida. A personagem vivência o dilema do anti-herói, que, segundo Brombert (2002), vive dividido entre a liberdade e a necessidade, ao se responsabilizar por transmitir uma mensagem de rebelião contra as autoridades ou as ideologias estabelecidas. A principal causa da inquietude que caracteriza a jovem estilista é justamente o conflito entre a liberdade de uma nova visão de mundo e a necessidade de acomodação aos costumes e às tradições vigentes. Forjada pelo confronto entre os desejos internos e as expectativas externas, Cruella de Vil consubstancia, por meio da figura do duplo, as transformações e os questionamentos do mundo em que vive. Em consonância com as reflexões de Nicole Bravo (1997, p. 281) sobre o mito do duplo, é possível perceber que o problema que então se coloca é: “como consegue a pessoa aceitar-se e ser ela mesma na sociedade”. Nessa perspectiva, a cisão da protagonista, menos patológica que pedagógica, tem como objetivo reverberar tanto o dilema entre a liberdade e a necessidade que assolam a anti-heroína, quanto o conflito entre os desejos internos e as necessidades externas que configuram o tempo e a sociedade em que ela vive. O duelo entre as duas naturezas opostas Estella/Cruella, na verdade, atua como um importante catalisador da discussão sobre o papel da mulher na efervescência da cena londrina dos anos 1970. Desse modo, Cruella de Vil se afasta da vilã e, ao mesmo tempo, se transforma na anti-heroína que escolhe o caminho não socialmente aceito como forma de denúncia das feridas das mulheres do seu tempo. Sumário <<<<< 233 Referências BARANTA, Pedro Alexandre de Almeida Lima Fernandes. Anti-heróis no cinema: cinema audiovisual – 2014/2015. Dissertação (mestrado em Som e Imagem), Escola das Artes – Universidade Católica Portuguesa. 2015. BLOCH R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. BRAVO, Nicole. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Trad. Calos Sussekind et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, pp. 261- 288. BROMBERT, Victors. Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura europeia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. BURTON, Ray; REDDY, Helen. I Am Woman. Austrália, Capitol: 1972. 3:04 min. CASTELLANO, Mayka; MEIMARIDIS, Melina. Mulheres difíceis: A Anti-heroína Na Ficção Seriada Televisiva Americana. Porto Alegre: Revista Famecos 25, no. 1, 2018. COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos e arquétipos. São Paulo: DCL, 2003. GONZÁLEZ, Mário M. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994 MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba: Arte & Letra, 2013. OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao Quadrado: as representações femininas nos quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895 a 1990). Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. Sumário <<<<< 234 RANK, Otto. O duplo. Trad. Mary B. Lee. Porto Alegre: Dublinense Ltda, 2014. ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. SMITH, Dodie. The Hundred and One Dalmatians. Reino Unido: Heinemann, 1956. VOGLER, Cristopher. A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Filmografia CRUELLA. Direção: Craig Gillespie. Produção: Kristin Burr, Andrew Gunn e Marc Platt. Estados Unidos: Walt Disney Pictures, 2021. 134 min, cor. OS 101 DÁLMATAS (Original: 101 Dalmatians). Direção: Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wolfgang Reitherman. Produção: Walt Disney. Walt Disney Productions, 1961. 79 min, cor 101 DÁLMATAS II: A Aventura de Patch em Londres (Original: 101 Dalmatians II: Patch’s London Adventure). Direção: Jim Kammerud e Brian Smith. Produção: Walt Disney. Walt Disney Productions, 2003. 74 min, cor 101 DÁLMATAS (Original: 101 Dalmatians). Direção: Stephen Herek. Produção: John Hughes e Ricardo Mestres. 1996. 103 min, cor 102 DÁLMATAS (Original: 102 Dalmatians). Direção: Kevin Lima. Produção: Edward S. Feldman, 2000. 100 min, cor. Sumário <<<<< 235 A autorrepresentação do indígena no audiovisual: uma análise fílmica do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro Nágila da Silva Lopes1 Rafael Franco Coelho2 Introdução A atual pesquisa é o estudo da formação dos estereótipos a respeito da imagem dos indígenas, com ênfase no Aldeamento Tapuio,3 abordando também a contribuição do audiovisual para a permanência ou quebra de estereótipos, partindo da análise do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro. O objetivo central deste trabalho é a desconstrução dos estereótipos presentes no imaginário nacional a respeito da imagem do indígena e de sua cultura no audiovisual. Para atingir o objetivo da pesquisa, perpassaremos pelos objetivos específicos, sendo 1 Graduada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Goiás (UFG). 2 Doutor em Comunicação Digital pela Universidade Autónoma de Barcelona e docente do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG, e-mail: rafaelcoelho@ufg.br. 3 Conforme as normas da ABA de 1953, os nomes das etnias indígenas levam letras maiúsculas no início e não flexionam nem em número e nem em gênero. Usa-se as letras K, Y e W do alfabeto Inglês e também um conjunto de sons: TS, TX, SH etc. eles a discussão teórica da formação dos estereótipos no imaginário nacional, o estudo da formação do aldeamento Tapuio, e a análise do documentário produzido pelos indígenas Tapuio com auxílio da diretora Flávia Neves e equipe. Trata-se de um filme-carta, que foi produzido inteiramente pelos indígenas Tapuio, com o apoio da produtora Kam Filmes, no interior do estado de Goiás. Esta produção colaborou com a quebra de estereótipos presentes no imaginário nacional, inseridos desde o mito de fundação do Brasil, que difamam a imagem dos povos originários. Um dos principais motivos que levaram à escolha do presente recorte foi a necessidade de um maior estudo a respeito das narrativas cinematográficas produzidas pelos povos indígenas que, quase sempre, não são porta-vozes de sua própria história, caso do povo Tapuio, que, desde a fundação de seu aldeamento, teve sua cultura e identidade usurpados pelos não indígenas. Porém, o que mais moveu a busca pela desconstrução de todos os estereótipos presentes no imaginário foi a procura pela minha aceitação em ser uma Tapuio miscigenada que, mesmo não carregando características tradicionais e tendo, desde o meu nascimento, contato com a sociedade externa, travei uma batalha constante em me reconectar com meus antepassados para assim contribuir com as futuras gerações. Autores como Ivânia dos Santos Neves discorrem a respeito da construção dos estereótipos na imagem do indígena, assim como Rosa Bernardo, que estuda a relação entre a representatividade e a representação do indígena no audiovisual. Durante a pesquisa, percorremos o caminho de construção, perpetuamento e desconstrução dos estereótipos indígenas por meio da ferramenta do audiovisual, apoiando-nos em autores relacionados, Sumário <<<<< 237 para realizar uma análise fílmica com interesse de determinar fatores como a reafirmação da identidade, origem do aldeamento e conservação da cultura, associando aos estereótipos presentes no imaginário nacional. O principal método de estudo aplicado no desenvolvimento da pesquisa foi a análise fílmica, recurso adotado para que um reconhecimento fosse realizado sobre o documentário Amanajé, o mensageiro do futuro. Segundo Mombelli e Tomain (2014, p. 3), a análise “equivale à descrição dos planos, das sequências, dos enquadramentos, das cenas, dos ângulos, dos sons, da composição de quadro, para depois ser reconstruído por meio da compreensão dos elementos decompostos- isto é, a interpretação”. Para haver um maior embasamento de toda a análise, foi necessário um vasto levantamento bibliográfico. A série documental Amanajé, o mensageiro do futuro foi dividida em 13 episódios, sendo cada um de uma etnia específica. Por questões de identificação, o quarto episódio da série foi o escolhido, e este passará por uma análise detalhada, seguindo o pensamento de Penafria (2004) a respeito dos conceitos e metodologias da análise fílmica, abordado aqui o entendimento de análise interna ou externa. Seguindo o segundo conceito, o filme é considerado pela analista como “o resultado de um conjunto de relações e constrangimentos nos quais decorreu a sua produção e realização, como sejam os seus contextos sociais, culturais, político, econômico, estético e tecnológico” (Penafria, 2014, p. 4 apud Mombelli; Tomaim, 2014, p. 4). 1. Estereótipo e Representatividade As características fenotípicas ou culturais nos distinguem. O estereótipo estaria diretamente ligado à distinção entre etnias “in- Sumário <<<<< 238 feriores” ou “superiores”. O pensamento em questão está completamente equivocado. Porém, o estereótipo é algo que já está enraizado em nosso ser desde a nossa formação e, com o passar dos anos, continua sendo reforçado, mesmo que de forma inconsciente. 1.1. A construção do estereótipo no imaginário nacional A comunicação tem se modificado de diversas formas para tentar englobar as várias representações cobradas pela sociedade. Porém, alguns povos sempre foram mal retratados ou expostos de forma imprecisa pelos meios de comunicação, tais como os povos indígenas, que fazem parte da parcela da sociedade que sempre foi traduzida de uma forma “inverídica”, não somente no âmbito comunicacional, mas também histórico. As cartas e as imagens resultantes das expedições marinhas, as principais mídias do início do século XVI, deram início ao agenciamento das formas simbólicas sobre estes povos. A nudez e a antropofagia ganharam muito destaque, pois era necessário inventar um indígena selvagem, desprovido de racionalidade, a fim de que toda a sorte de desrespeito aos direitos humanos fosse justificada (Neves, 2009 apud Neves, Corrêa, Tocantins, 2013, p. 5). Em pleno século XXI, os estereótipos criados pelos conquistadores ainda permanecem em nossa sociedade, porém, presentes em outros meios de comunicação. Para alguns, o estereótipo é uma forma de valorização de sua cultura, ou seja, por ter determinada cultura, um povo se torna “melhor” do que o outro. Esse pensamento foi aplicado durante anos a civilizações, como as dos povos originários, que são vistos como “selvagens ou desprovidos de intelecto” somente por terem costumes distintos dos “tradicionais”. Sumário <<<<< 239 Os estereótipos são um reflexo do nosso corpo social e, como exposto, a autorrepresentação e a representatividade sempre impactaram grupos específicos, como os indígenas, justamente por serem retratados de forma inverídica por meios literários, cinematográficos, entre outros. Apesar do crescente debate acerca dos estereótipos e representações, os indígenas ainda se encontram na posição de objeto de estudo científico ou selvagem, e não como pesquisadores e cidadãos, e, como tal, têm direito a terem acesso a vestimentas, tecnologias e a quaisquer progressos adquiridos pela sociedade externa. Segundo Bosi (1977, p. 95 apud Bacegga, 1977. p. 98), existe “um processo de facilitação e de inércia. Isto é, colhem-se aspectos do real já recortados e confeccionados pela cultura. O processo de estereotipia se apodera da nossa vida mental”. Como discorrido anteriormente, o perpetuamento dos estereótipos em nossa sociedade é uma escolha inconsciente ou consciente, como um mecanismo de diferenciação e hierarquia entre povos. O “processo facilitador” (BOSI, 1977) age diretamente na formação do imaginário nacional, utilizando-se da desinformação da população a respeito dos povos originários. Sendo assim, o estereótipo não se dissocia do imaginário nacional. Suas definições ou estudos estão sempre em sintonia. As sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro…O imaginário social é constituído e se expressa por ideologias e utopias… [e]...por símbolos, alegorias, rituais, mitos (Carvalho, 1987, p. 11 apud Serbena, 2003, p. 5). Na sociedade brasileira, a formação dos estereótipos estaria ligada a dois principais fatores: o fator social e o fator colonizador. Sumário <<<<< 240 O fator social é distintivo entre povos e o fator colonizador é responsável pela inserção de pensamentos preconceituosos. Um dos pilares da construção e perpetuamento dos estereótipos em nosso imaginário está ligado diretamente às retratações do passado. Porém, um dos fatores que prolongam a permanência dos estereótipos em nosso imaginário seria a representação inverídica do indígena no audiovisual. Mesmo com o decorrer dos anos, e com diversos mitos do descobrimento sendo desconstruídos, observa-se a permanência de pensamentos inseridos no contexto do século XVI. Um dos agentes que atuam no perpetuamento desses estereótipos é o audiovisual, mais especificamente no estilo documentário. A representação do índio brasileiro nos suportes iconográficos, literários, fotográficos e cinematográficos, desde o descobrimento do Brasil até a atualidade, incorre, algumas vezes, nos mesmos erros: idealizações da imagem do outro ou reprodução de estereótipos (Berardo, 2002, p. 61). Em seu artigo, Berardo (2002) apresenta algumas imagens do clássico filme brasileiro Iracema, a virgem dos lábios de mel. Desde o início de sua análise, a autora deixa claro que a imagem do indígena sempre esteve representada de forma inverídica. Muitas vezes, por falta de conhecimento ou mesmo de pesquisa por parte dos cineastas, “os cineastas reproduzem os mesmos erros dos primeiros etnógrafos e constroem uma ideia genérica sobre o índio brasileiro” (Berardo, 2002, p. 64). Além da imagem romantizada da mulher indígena, o filme reproduz a imagem idealizada do indígena. Sendo indivíduos que ainda detém um fenótipo padrão, como lábios de mel e cabelos Sumário <<<<< 241 negros; povos que nascem e se criam em locais paradisíacos e que não progridem com o decorrer dos séculos. O imaginário das sociedades que produzem esses filmes, assumindo um caráter pejorativo, de uma autorreflexão através do outro. Assim, o índio no cinema aparece como um elemento “bom para pensar”, ou melhor, como um elemento que tem funcionado como repositório de imagens que dizem respeito mais a nossa própria sociedade, daqueles que olham e reconstroem esse passado indígena, do que propriamente às sociedades que aparecem imaginadas na tela (Cunha, 1999, p. 2 apud Souza, 2016, p. 30). Outro elemento que esteve presente nas retratações realizadas pelos não indígenas é a nudez. Ela está ligada diretamente à sexualização não somente do corpo feminino, mas também masculino. Carvalho e Neves (2015) estudam a retratação de embranquecimento do corpo indígena nas telenovelas brasileiras. Em seu estudo, houve uma análise de dois personagens marcantes no audiovisual brasileiro. Porém, traremos o exemplo mais recente, o personagem Tatuapu, da novela “UGA UGA”, do ano de 2000. Sumário <<<<< 242 Figura 1 - Personagem Tatuapu: Novela UGA UGA Fonte: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1675659526276146-cenas-danovela-uga-uga Em um primeiro momento, diversos fatores na construção do personagem podem ser explorados. Inicialmente, a escolha por um ator não indígena e que não carrega nenhum fenótipo ou ascendência indígena, reforça ainda mais os padrões impostos pela sociedade. “Os cineastas reproduzem os mesmos erros dos pintores etnógrafos e constroem uma ideia genérica sobre o índio brasileiro” (Berardo, 2002, p. 64). Esse mesmo fato ocorre quando se trata da escolha e retratação das mulheres indígenas, que, além de terem os corpos sexualizados, geralmente, são interpretadas por atrizes brancas. O Sumário <<<<< 243 exemplo que Carvalho e Neves (2015) traz em seu texto é a personagem Serena, da novela “Alma Gêmea”, do ano de 2005, onde a atriz Priscila Fantin, que também não carrega nenhum traço ou ascendência indígena, protagonizou uma mulher indígena, doce e sem muito conhecimento da sociedade externa. Figura 2 - Personagem Serena: Novela Alma Gêmea Fonte: https://emais.estadao.com.br/galerias/tv,8-vezes-em-que-atores-brancosinterpretaram-personagens- de-outras-etnias,26934 O fato de ser um ator ou atriz que não representa os indígenas contribui para ironizar o personagem e descredibilizar a imagem do indígena, pois as vestimentas, a fala e os comportamentos, como dito anteriormente, reafirmam a retratação inverídica do indígena. Esta representação, feita pelo não indígena, implica diretamente na perpetuação do ideal do “bom selvagem”. Observa-se a ironia em algumas cenas, quando retratada a fala do personagem. Como descrito por Neves (2013, p. 14), “A dificuldade com a língua é uma recorrência entre os personagens indígenas e ao mesmo tempo em que representa a ingenuidade, também reforça um discurso de limitação cognitiva”. Sumário <<<<< 244 Além das características físicas, vestimentas e fala nada coerentes com os povos indígenas brasileiros, as mulheres são retratadas a partir da visão do colonizador, que via a nudez indígena como um “convite” à sexualidade. Os corpos nus eram vistos como algo escandaloso, como escreveu Pero Vaz de Caminha em sua carta: “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas” (Terra, 2002 apud Carvalho; Neves, 2015, p. 89). A imagem do indígena passa por uma total descaracterização e começa a ser uma reprodução constante dos estereótipos, tendo como resultado a ideia de estar a favor das transgressões perpetradas contra o povo indígena. Os casos citados anteriormente não detinham um estudo prévio a respeito das diferentes culturas que englobam os povos indígenas brasileiros. Muitas vezes, os indígenas brasileiros são representados como os índios norte-americanos. Como afirma Berardo (2002), que analisa a obra Iracema, a virgem dos lábios de mel, existe uma reafirmação dos estereótipos já presentes em nosso imaginário e um comparativo com outros indígenas. O filme tenta passar a imagem do índio que o público está acostumado a ver nas produções norte-americanas que sempre invadiram o mercado brasileiro, numa generalização “universal” da figura indígena. As diferenças culturais são desprezadas e não apenas entre as diferentes etnias das comunidades indígenas brasileiras, mas também em nível internacional, como se Apaches e Sioux norte-americanos fossem clonados em série (Berardo, 2002, p. 65). A generalização do indígena brasileiro, transmitida através do audiovisual nos últimos anos, é um forte mecanismo para a perpetuação dos estereótipos. O despreparo de muitos cineastas Sumário <<<<< 245 ao realizarem uma representação inverídica, recai nos mesmos erros cometidos pelos primeiros responsáveis por retratar a imagem do indígena, uma reprodução constante de estereótipos. Assim como exposto, o processo facilitador descrito por Bosi (1977) também recairia sobre os diretores e idealizadores de diversas tramas brasileiras, justamente por não realizarem uma pesquisa a respeito da etnia retratada. uma vez que os cineastas, baseados em dados sociais, especificam a etnia ou grupo representado em sua ficção, há a necessidade de o diretor do filme fazer uma pesquisa histórica e antropológica, para que não haja descaracterização da identidade do retrato. (Berardo, 2002, p. 64) Situações como as citadas anteriormente servem somente como um reforço de que “esse discurso ideológico vem camuflar e inverter a violência dos contatos étnicos no processo colonizador e civilizatório que foi responsável pelas transformações étnicas indígenas” (Berardo, 2002, p. 71). 2. Os indígenas do Carretão - Aldeia Tapuio Segundo Neto (2005), o povo Tapuio é originário e residente no estado de Goiás. Surgiu a partir do aldeamento construído em meados de 1755 para abrigar os 27 povos Xavantes, Carajás, Javaés, Kaiapós e Xerentes, tendo sido uma tentativa de transformar as aldeias em povoados. A mistura dos povos citados, com negros e não indígenas, resultou no atual aldeamento, chamado Carretão, que se encontra a 243km de distância de Goiânia, capital do estado de Goiás, com população aproximada de 200 pessoas, habitando um território de 2 mil hectares. Sumário <<<<< 246 O aldeamento Carretão foi construído a partir da mistura de diversos povos indígenas. Ao longo dos anos, com a interferência de fatores externos, houve uma mistura com negros e não indígenas, resultando em poucos integrantes com características presentes no imaginário coletivo estereotipado a respeito dos indígenas. A seguir, apresentaremos a história da luta de um povo, e como ela transpôs os séculos. E abordaremos como a resistência do povo Tapuio se perpetua até hoje. 2.1. Luta e resistência Após uma primeira tentativa sem sucesso dos colonizadores em pacificar e conquistar os povos indígenas, almejando utilizá-los como mão-de-obra ou para a exploração de suas terras pelo Estado, a forma encontrada para retirar os indígenas de suas terras foi a criação de aldeamentos. “Os aldeamentos foram congregações de índios em locais, na maioria das vezes longínquos de suas aldeias primitivas” (Neto, 2005, p. 47 apud Jordão, 1993, p. 77). Este cenário se repetia por todo o território nacional, como uma tentativa dos governantes de aproximarem os indígenas da civilização, pois, como escreve Neto (2005), eles eram vistos como selvagens e ferozes, além de um grande obstáculo para a colonização. Os principais intuitos dos aldeamentos foram: a exploração da mão-de-obra indígena para a agricultura e a civilização dos indígenas. Através disto, possibilitava-se a construção de povoamentos e o crescimento dos centros urbanos. A formação dos aldeamentos indígenas construídos em Goiás deu-se entre 1741 a 1872. Seus objetivos eram: desocupar as terras indígenas para a expansão da exploração mineral e das atividades agropastoris; a sedentarização, cristianização e a civilização Sumário <<<<< 247 dos indígenas para uma melhor integração à sociedade colonial e a implementação de núcleos populacionais, visando sua transformação em centros urbanos (Moura, 2002, p. 11 apud. Neto, 2005, p. 48) O povo Xavante está entre os primeiros povos a serem alvo do governo estadual do século XVIII. Esta perseguição ocorreu em decorrência de o povo Xavante sempre mostrar resistência durante diversos conflitos com os colonizadores. Após diversas tentativas de captura, “no dia 13 de janeiro de 1788: um grupo capturado em Amaro Leite e outro em Pontal, totalizando 3.500 pessoas” (Moura, 1996. p. 26 apud Neto, 2005, p. 49) foi levado ao aldeamento Carretão. Após a captura dos Xavantes, segundo Neto (2005, p. 49), a população do aldeamento “logo alcançou o número surpreendente (talvez irreal) de cinco mil indivíduos”. Porém, por alguns fatores, muitos indígenas faleceram, como pelo contato com novas doenças e, principalmente, por tentativas de fuga. Para repor as perdas, o governo do estado começou a transferir diversos indígenas de múltiplas aldeias para o Carretão. O primeiro povo a ser levado ao aldeamento foram os Kaiapós. Segundo Neto (2005), em relatórios provinciais também se encontra a transferência de indígenas das etnias Javaés, Xerentes e Carajás para o referido aldeamento. Além de todos os povos que foram transferidos ao aldeamento, diversos negros refugiados encontraram abrigo no Carretão. A população do Carretão logo cresceu, formando um povoado, no qual foram construídas a capela, uma casa espaçosa reservada ao diretor, as 29 casas dos índios, as oficinas de trabalho, como o moinho de milho, o engenho de açúcar e paiol, além da canalização de água, as vias de acesso e as plantações (Neto, 2005, p. 50). Sumário <<<<< 248 Mesmo sem ter relatos de grandes conflitos envolvendo indígenas e os administradores dos aldeamentos, Neto (2005) relata que diversos conflitos entre as aldeias eram comuns no aldeamento, sendo este um dos fatores responsáveis pelas constantes trocas de indígenas de aldeamentos e do declínio da população do Carretão. Na segunda metade do século XIX, os governantes das províncias, para atender a interesses da elite rural, passaram a declarar, por decreto, a extinção dos aldeamentos indígenas, para que os respectivos terrenos pudessem ser revertidos ao patrimônio das mesmas províncias, às câmaras municipais e a particulares (Neto, 2005, p. 53). Após o abandono do aldeamento pelo governo e a revolta dos não indígenas com os indígenas, a população foi “drasticamente reduzida após sofrer sérios reveses como fome, doenças, tratamento ofensivo, e até perseguição dos funcionários do aldeamento” (Neto, 2005, p. 54). Os Tapuio, que atualmente residem na aldeia Carretão, são claramente vítimas de um ataque aos povos originários por meio de uma política de aldeamentos malsucedida. Os poucos sobreviventes do aldeamento, por questões como “os maus-tratos, somados às doenças, levaram os que não se miscigenaram a fugir e voltar para suas terras de origem, ou se dirigiram a alguma região, possivelmente ainda sem a presença dos brancos” (Neto, 2005, p. 54). Os maus-tratos, abusos contra mulheres indígenas e a escravização ainda continuaram, mesmo com o fim do aldeamento. Os indígenas, cansados de sofrerem, iniciaram uma revolta silenciosa. Porém, “os aventureiros um dia envenenaram as suas cacimbas com cianureto de potássio, causando-lhes só em uma noite, 500 mortes!” (Neto, 2005, p. 54). Sumário <<<<< 249 Já em 1819 Pohl (1976, p.180) em visita ao carretão, afirma que viviam na aldeia apenas 227 pessoas e tudo já se encontrava em estado de decadência. Os índios desse aldeamento já eram pacíficos, aculturados e cristianizados, pois já haviam abandonado todos os seus costumes do estado selvagem, inclusive a própria língua, falando apenas o português. Em 1824 Cunha Mattos (1979, p.43), em visita ao Carretão, encontrou uma população de 199 pessoas. Segundo ele, um surto de sarampo que acometera os colonos, tinha matado quase todos os índios. Os poucos que escaparam a esta doença fugiram para as matas (Moura, 2002, p.17 apud Neto, 2005, p. 54) Após enfrentarem estes fatores diversos, o aldeamento Carretão passou por um longo período de invisibilidade. Não constam expedições até a região, somente relatos de que descendentes dos primeiros indígenas residentes no aldeamento permaneciam no local. Porém, os habitantes ou suas terras não tinham proteção alguma do Estado. Havia uma negação por parte do governo e de muitos moradores da presença de indígenas no Carretão, pois acreditavam que, por serem um povo miscigenado, não eram mais indígenas. Para Moura (2009, p. 19 apud Neto, 2005, p. 55) essa invisibilidade estaria ligada a “um processo nacional de negação de identidades indígenas”, que se iniciou na tentativa de evangelização e integração dos povos indígenas, assim como ocorreu com a fundação dos aldeamentos. Em 1880, houve um último registro na Assembleia Legislativa de Goiás a respeito do aldeamento. Posteriormente, o local passaria por um momento de total silenciamento histórico, onde não se tem registros do aldeamento. Sumário <<<<< 250 Porém, este momento de silenciamento não significou que a luta dos Tapuio havia enfrentado uma pausa. Durante este tempo de silenciamento, os colonos invadiram as terras indígenas e iniciaram a implementação de lavouras e pastagens. Segundo Moura (2008, p. 139), “em 1822, promulgada a Resolução Imperial que suspendeu o regime de sesmaria e instituiu uma nova forma de aquisição de terra- a posse por ocupação”. Iniciou-se, assim, a segunda luta dos indígenas Tapuio. Os indígenas habitavam terras que no século XIX eram consideradas como “terras gerais”. Os Tapuio não tinham proteção do estado, nem de órgãos que eram responsáveis pela luta de direitos indígenas, já que o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) seria criado somente em 1910. Segundo Moura (2008), as primeiras famílias começaram a chegar no território do Carretão no início do século XX, inicialmente, visando terras para produção agropastoril, com longas extensões de terras para a criação de gado e plantações de lavouras subsistentes. Com o tempo e crescimento de posses, a mão de obra indígena começou a ser utilizada nas fazendas. O poder dos Caiado começou a se firmar em Goiás, em 1912, quando Antônio Ramos Caiado (conhecido como Totó Caiado), aliou-se a seu cunhado, o coronel Eugênio Jardim, dando origem ao chamado “Caiadismo” formado pela elite dominante dos Jardim- Caiado. [...] Donos de vários latifúndios, muitos deles improdutivos, ficaram conhecidos pelas violências cometidas contra trabalhadores rurais, de modo que o nome Caiado tornou-se, em Goiás, um sinônimo de latifúndios violentos (Moura, 2008, p. 141). Sumário <<<<< 251 Segundo Moura (2008), os primeiros descendentes habitantes do Carretão ainda permaneciam no local, não precisando trabalhar como peões para terceiros, pois encontravam ali tudo que precisavam para garantir seu sustento. Com o avanço dos anos e do aumento em posses de terras, os Tapuio se viram apertados. Com um misto de medo e dependência, tiveram de prestar serviços à família Caiado. Em 1936, o fazendeiro Torquato de Barros Ramos se apossou da antiga sede do Carretão. O fazendeiro havia comprado um título provisório de Benedito Pimentel. Rumores da época contavam que Torquato teria parentescos com a família Caiado, e que “percorreu vários cartórios de Goiás, Itapaci e Crixás, em busca de documentos históricos referentes às terras do Carretão, com objetivo de comprovar a inexistência de índios no local” (Lazarin, 1985, p. 70 apud Moura, 2008, p. 147). A ausência dos Tapuio na região foi um convite para que diversos outros fazendeiros realizassem a mesma busca por documentações para comprovar a ausência do grupo indígena, para que houvesse a legalização de suas terras. Essa situação se manteve até 1942, quando o indígena Simão Borges decidiu ir ao Rio de Janeiro realizar uma denúncia de invasão das terras indígenas ao SPI. Simão foi acompanhado por sua irmã Catarina, seu sobrinho Bento e a prima Maria do Rosário. Porém, ao chegarem em Anápolis, o delegado de polícia os enviou diretamente ao governador do estado da época, Pedro Ludovico. Os fatos mostram que, após as denúncias de Simão Borges a Pedro Ludovico, o SPI fora acionado, pois existem documentos desse órgão designando um funcionário para averiguar a situação da terra dos tapuios. Nada, porém, fora encaminhado, pois existem outros documentos, desse funcionário, Sumário <<<<< 252 justificando, em 1944, o cancelamento de sua ida ao carretão, devido às dificuldades de acesso à região (Lazarin, 1985, p. 73 apud Moura, 2008, p. 150). Um longo período se estendeu entre a denúncia de Simão Borges, em 1942, e a concessão de terras aos indígenas Tapuio, em 1948. Segundo Moura (2008), tanto o governo do estado quando o SPI fizeram pouco ou quase nada pelos indígenas, alegando sempre uma dificuldade no acesso. Mesmo entregando as terras, o SPI não realizou nenhuma manutenção ou apoio aos indígenas. O grupo foi abandonado por um período de 30 anos, sem nenhum registro oficial. Esta falta de manutenção levou a mais uma luta para o povo indígena. Inicialmente, era alugada a terra aos fazendeiros para o plantio de mantimentos. Os fazendeiros as transformavam em pastagens, porém, todos estes serviços de melhorias realizados no território indígena custavam algum preço. “No final do contrato de aluguel, os Tapuio não tinham condição de pagar as benfeitorias, eram coagidos a realugar ou vender as terras em troca de comida ou por um preço irrisório, estipulado arbitrariamente pelo ocupante” (Moura, 2008, p. 154). Até que, em 1980, o delegado da cidade de Rubiataba, em conjunto com os Tapuio, após longos dias de luta, redigiu um ofício dirigido ao secretário de segurança pública do estado de Goiás. O território indígena chegou a ser 80% invadido por posseiros. Em 1970, a situação do aldeamento chegou ao estado de calamidade, pois os indígenas se viram obrigados a trabalharem, sazonalmente, nas fazendas que rodeavam o restante de suas terras. “A maior parte dos Tapuio se viram sem-terra para cultivar e, em alguns casos, sem ao menos ter recebido o pagamento da venda do lote. Isso forçou algumas famílias à migração para as cidades vizinhas ou fazendas da região” (Moura, 2008, p. 162). Sumário <<<<< 253 O povo Tapuio enfrentou adversidades durante esse período. Fome, miséria, falta de assistência médica, desemprego e má nutrição levaram a Tapuia Olimpia Martins e seu filho a procurarem ajuda da Funai, em 1979. Em 1980, foi realizado um levantamento da situação dos indígenas. Todos os contratos de aluguel e compra foram declarados nulos e os fazendeiros intimados a se retirarem do território. Somente em 1984, os indígenas do Carretão conseguiram que sua terra de origem fosse inicialmente demarcada. Diversas violências foram vividas pelos indígenas até a retirada total de todos os fazendeiros. Mulheres indígenas foram violentadas sexualmente, membros da aldeia foram mortos, e a Funai, órgão responsável pelos indígenas, pouco interferiu no conflito. Somente em 1987, a Funai instalou no aldeamento agentes que atuavam na proteção dos indígenas do Carretão. Com as instalações, os indígenas passaram a ter acesso a uma alimentação de qualidade, acompanhamento médico, maiores oportunidades de estudo e, principalmente, a garantia de permaneceram em seu território originário em segurança. Durante toda esta trajetória de luta, os Tapuio passaram por diversos momentos de rupturas de sua identidade étnica, assim como a perda de sua cultura. Desde a fundação do aldeamento Carretão, os Tapuio tiveram suas religiões substituídas por costumes cristãos, assim como a inserção de costumes não tradicionais. Tudo ocorreu de forma muito violenta à cultura indígena. O povo era ensinado que ser indígena era errado e era apenas uma condição transitória. O mesmo ocorreu com a miscigenação fenotípica do povo. Os Tapuio por muito tempo não foram considerados indígenas por não carregarem traços, como dito por Moura (2008), do indígena “padrão” – traços presentes no nosso imaginário e, principalmen- Sumário <<<<< 254 te, como exposto anteriormente, traços retratados pelos meios de comunicação, em especial, o audiovisual. Muitos integrantes mais antigos do aldeamento ainda não compreendem todos estes estigmas sociais que o povo Tapuio carrega. Porém, alguns jovens já têm plena consciência do que é ser Tapuio. Ser Tapuio significa que nós somos miscigenados. A gente vem do cruzamento de várias tribos. É isso que eu entendo por ser Tapuio. Ser Tapuio é não ser um índio puro, mas resultado da mistura de várias tribos. No nosso caso além das tribos tem os negros escravos também misturados (Irecê apud Neto, 2005, p. 107). Existe dentro de cada indivíduo do aldeamento um dilema entre a certeza de pertencimento ao povo indígena e a dúvida acerca de sua origem. “Sua identidade indígena foi manipulada conforme suas necessidades nas interações com as instituições que estiveram presentes em sua história, com a comunidade envolvente e com outras pessoas” (Nazário, 2016, p. 56). Segundo a autora Nazário (2016), existe um sentimento de inferioridade por parte dos Tapuio, mas esse sentimento não teria muita explicação, pois, segundo a fala dos mais velhos, o povo Tapuio é reconhecido pela sua luta. Sempre estiveram em uma constante busca pela identidade do povo Tapuio. A maioria dos integrantes da comunidade já entendem que o ser indígena não é um estado transitório, ou que se deixa de ser indígena por não carregar traços, costumes ou por ter acesso a tecnologias do mundo moderno. Atualmente, a aldeia Tapuio conta com aproximadamente 200 moradores, uma escola pública, um posto de saúde, energia e internet. Diversos estudos são realizados para a implementação Sumário <<<<< 255 de políticas de reafirmação da identidade Tapuio, assim como o filme-carta que analisaremos a seguir. O filme não foi somente uma peça audiovisual que revelou a imagem do povo Tapuio, mas é, principalmente, uma materialização de toda a luta travada há décadas e por diversas gerações. Os atuais Tapuio reconhecem e se orgulham de sua origem. Toda a história do surgimento da aldeia é passada de geração em geração, assim como indicado no depoimento de Irecê ao autor Neto (2005). Percebe-se que o povo Tapuio não carrega traços utilizados como definições estereotipadas dos indígenas. Atualmente, a aldeia encontra-se totalmente integrada com as cidades mais próximas, utilizando recursos do mundo contemporâneo, sem perder sua origem ou seus costumes. 3. Filme-Carta O documentário Amanajé, o mensageiro do futuro, produzido inteiramente pelo povo Tapuio, residente no estado de Goiás, com auxílio de pesquisadores e produtores não indígenas, busca retratar, através do gênero filme-carta, a sua história. Buscando a desconstrução de estereótipos e retratando a sua cultura por meio da sua vivência, o filme se torna uma carta aberta não somente às novas gerações de Tapuio, mas também a todas as gerações de não indígenas. Mais do que uma forma de expressão, o filme-carta é um gênero presente no audiovisual. É um gênero que quebra a quarta parede, pois o narrador tem um contato direto com o espectador. Neste caso, o escritor da obra direciona a carta diretamente àqueles que assistirão ao filme. O gênero filme-carta, segundo Migliorin (2014), é um caminho teórico a ser percorrido em oficinas ministradas a grupos com Sumário <<<<< 256 pouca ou nenhuma experiência em produzir audiovisual, é um facilitador para a maior democracia na produção de audiovisuais, além de uma quebra na barreira entre a falta de equipamentos e a produção de documentários. “Com filme carta não há filme mal-acabado, pelo menos não por carências técnicas, o que é libertador quando estamos em oficinas ou no início de um curso de cinema” (Migliorin 2004, p. 9). 3.1. Análise fílmica do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro O documentário4 Amanajé, o mensageiro do futuro foi realizado pela Kam filmes no ano de 2019, tendo como principal proposta a realização de um filme-carta produzido inteiramente por indígenas. Cada episódio da série consiste no processo anterior à produção do filme-carta e o produto final, que foi apresentado a todos da comunidade local. A série de documental Amanajé, o mensageiro do futuro produziu 13 episódios em 13 aldeias diferentes, sendo uma delas o povo Tapuio do Carretão. O episódio quatro, realizado na aldeia, originou o filme-carta Voz, silêncio e resistência, produzido inteiramente pelos indígenas do Carretão. O episódio final tem duração de 26 minutos, sendo 16 minutos de imagens da produção do filme-carta, e o filme-carta, com duração final de 10 minutos. O conteúdo do filme-carta é uma mensagem dos cineastas indígenas às futuras gerações, um relato emocionante dos antepassados aos Tapuio do futuro. O filme-carta, assim como as cartas literárias, traz como premissa o desejo de correspondência a al4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5EfM11qGDcw. Acesso em: 15 out. 2021 Sumário <<<<< 257 guém, que geralmente, encontra-se distante, seja pelo tempo ou seja cartograficamente. Trazendo assim consigo certa natureza de impossibilidade, por não poder voltar no tempo para se comunicar e não poder ir para próximo do destinatário (Fonseca, 2017, p. 4). Processos como os utilizados pelos produtores da série na realização do filme-carta possibilitam a autorrepresentação do indígena, pois eles ficam responsáveis por apresentarem sua cultura pela sua própria ótica. Até mesmo durante todo o processo que antecede o produto final, podemos analisar que o filme-carta não é somente um produto, mas sim uma reafirmação do que é ser Tapuio, assim como dito pelo integrante da aldeia, Cleiton Tapuio. O povo Tapuio ele passa por um processo de resgatamento e revitalização da cultura, muito grande, a verdadeira intenção nossa com esse filme é fazer uma…introdução do contexto histórico do nosso povo né, processo de formação do nosso povo, né, onde nós mesmos, vamo ser protagonista desse filme. É importante pra nós tá fazendo esse filme pra divulgar nossa cultura, né, mostrar quem é o povo Tapuio de verdade, né, a origem do povo Tapuio, né, isso é um processo que ajuda na autoafirmação do ser Tapuio, né, isso que o povo tem vergonha de se assumir, denominar como Tapuio. Porque? Por causa do preconceito, talvez de um branco que não sabe da nossa história, da nossa origem, do nosso processo de formação, lá fora (Amanajé, o mensageiro do futuro, 2019, 0m.46s) Para o povo Tapuio, a realização do filme envolve todos aqueles que vieram antes e aqueles que ainda estão por vir. É uma afirmação e resgate de toda a sua história como povo Tapuio. A Sumário <<<<< 258 principal discussão estendida nos primeiros minutos do episódio é como se deu a formação do povo Tapuio. Wellingthon Vieira, vice cacique da aldeia, afirma que, diante da formação miscigenada do povo Tapuio, muitos integrantes não carregam traços tradicionalmente indígenas. uns tem característica indígena mesmo, tem bem os traços tradicionais, mesmo, outros já são bem mais puxado pro lado do branco, e assim não tem a fisionomia indígena, mas não deixa de ser Tapuio. Até porque hoje, a gente defende a ideia de que nós somos descendentes de Xavante, Carajá, Caiapó, e… os negros também faz parte desse processo, de formação do povo Tapuio” (Amanajé, o mensageiro do futuro, 2019, 2m.14s). Figura 3 - Wellington Vieira conta a história do povo Tapuio Fonte: Frame do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro (2019) Muitos integrantes do povo carregam traços fortes de negros, pois, como já descrito, a aldeia enfrentou longos processos de miscigenação desde a sua fundação. Outro elemento presente desde a fundação do aldeamento é a existência de igrejas católicas. Como Sumário <<<<< 259 o principal objetivo do aldeamento era a inserção do indígena na sociedade, em todos os aldeamentos existia a presença de igrejas. Figura 4 - Igreja Católica, Aldeia Tapuio Fonte: Frame do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro (2019) No caso da aldeia, a igreja também atuou em prol da demarcação das terras indígenas. Além de testemunhar em prol dos Tapuios, a diocese ofereceu seu apoio a advogados e funcionários da Funai e colocou sua estrutura a serviço da causa (Neto, 2005, p. 66). Amplamente falando, o filme-carta é uma correspondência trocada entre o personagem e algum destinatário, sendo ele do presente, futuro ou passado, assim como trabalhado pelo primeiro cineasta a utilizar o gênero, Chris Marker, cuja obra permite identificar “o início de uma tradição da correspondência cinematográfica, não apenas como troca, mas como leitura de cartas no próprio filme que por vezes está direcionada ao espectador” (Medeiros, 2012, p.48). No documentário, há uma troca entre uma das integrantes da aldeia com os descendentes do futuro. Sumário <<<<< 260 Figura 5 - Vilma Helena Tapuia, escritora da carta Fonte: Frame do documentário Amanajé, o mensageiro do futuro (2019) Com uma narração em Off, a protagonista Vilma Helena começa a contar que ela e Sebastiana Vieira escrevem algumas poucas linhas para contar a história do aldeamento Carretão. “Viemos através dessas poucas linhas falar um pouco sobre nosso antepassado e também do nosso cotidiano” (Amanajé, o mensageiro do futuro, 2019,16m.08s). Algumas cenas vão passando enquanto a narração em Off continua, e um apelo é realizado por Sebastiana: “Eu gostaria muito que as crianças se aprende a respeitar e gostar da nossa história, fazer os artesanatos como a cesta, tapá, jiboia e peneira. Para manter nossa cultura, e a pintura e a dança, costume de nosso povo e a medicina tradicional” (Amanajé, o mensageiro do futuro, 2019,17m.18s). Os jovens do Carretão têm concepções diferentes sobre a noção de pertencimento ao grupo, o que indica não terem recebido muitas informações a respeito. No depoimento de Curumin, aparece o processo de inclusão que vem ocorrendo: “eu tinha até medo de ser Tapuio, hoje tenho orgulho” (Neto, 2005, p. 114). Sumário <<<<< 261 O filme dos Tapuio utiliza ferramentas importantes para os filmes-cartas, como as “montagens plurais, em que a voz do realizador nos guia por entre imagens semiológicas e de diversos formatos, podendo ter fotografias, filmes que inseridos numa outra narrativa são ressignificados a fim de contribuir para o discurso fílmico” (Fonseca, 2017, p. 5). Mesmo sendo únicos, todos fazem parte de um grupo que detém a mesma origem miscigenada. Para o povo Tapuio, a sua miscigenação não é um elemento divisor. A identidade Tapuio é única, proveniente de uma mistura de tribos, assim como a descrita em locução Off no documentário, minha avó era Caiapó, né, aqui eram quatro etnias, né, da parte Caiapó, tem os Xavantes e Xerentes e Javaé, né, são quatro etnias junto, ai só que as pessoas foi se misturando com os brancos, tinha os negro que quando vinha fugido, se refugiava, se escondia ai com essa mistura, os negro foi casando com os índio, foi misturando, ai foi essa mistura que hoje tem né...muita gente fala “há, vocês num é Tapuio não, vocês é preto, vocês tem 50 o cabelo ruim”. Por quê? Por causa da mistura dos índio (Amanajé, o mensageiro do futuro, 2019,19m.13s). Assim como afirma Neto (2005, p. 123), os Tapuio têm a “convicção de que são resultado da miscigenação de etnias diferentes, que eles não são Xavantes, nem Carajás, nem Caiapós, nem Javaés, mas seus descendentes”. Durante o depoimento feito pelo cacique e pelo vice-cacique da aldeia, os dois relataram a dificuldade da sociedade externa em aceitar os Tapuios, tanto como indígenas, quanto indígenas que mantêm um contato com a sociedade externa. Sumário <<<<< 262 a sociedade envolvente precisa reconhecer e saber, quem é o índio, precisa saber que o índio, tem autonomia de estudar, tem direito de estudar, que o índio pode ser um advogado, pode ser um doutor, pode ser um vereador, pode ser tudo...é preciso quebrar essas barreiras (Amanajé, o mensageiro do futuro, 2019, 23m.35s). A falta de conhecimento a respeito da cultura indígena é um dos principais fatores para que os estereótipos ainda se perpetuem em nossa sociedade. Como dito por Bosi (1977), se torna mais simples seguir pelo caminho onde existe um processo facilitador, onde é mais fácil o julgamento, sem conhecer uma cultura. A luta pela desconstrução da imagem estereotipada do indígena se torna a principal ferramenta da narrativa. A reafirmação de que um povo, mesmo tendo a sua origem miscigenada, consegue permanecer com a sua cultura. E que o ser indígena não é uma condição transitória, mas sim permanente, demonstrando que, mesmo distante de suas origens, não há uma perda de identidade. Considerações Finais A produção de audiovisuais por indígenas contribui para uma representação mais fiel da realidade vivenciada por cada aldeia. Cada povo tem a sua especificidade em sua formação ou luta. Toda cultura passa por modificações e desenvolvimentos. Mesmo que um povo passe por modificações ou tenha contato com novas tecnologias, isso não modifica seu passado ou altera sua origem. Até mesmo as sociedades mais tradicionais passaram por mudanças, e o povo indígena não poderia ser diferente. Os povos originários não deixam de ser indígenas por quebrarem com estereótipos presentes no imaginário nacional. A mu- Sumário <<<<< 263 dança não pode ser vista como algo negativo aos povos, pois eles não abandonaram o seu passado ou sua etnia por terem contato com a sociedade contemporânea. Ao fim da nossa pesquisa, podemos concluir que o audiovisual é uma ferramenta de disseminação de ideias. Somente através da sua democratização e o uso consciente poderemos alterar a atual imagem do indígena presente no imaginário nacional. Porém, somente com a pesquisa e busca de conhecimento por parte da sociedade o processo de quebra de estereótipos poderá ocorrer. E somente com projetos como Amanajé, o mensageiro do futuro, onde o indígena é o portador da sua voz, pesquisador e contador da sua própria história, vamos conseguir demonstrar que a imagem deixada por Pedro Álvares Cabral em 1500 e perpetuada até a atualidade está ultrapassada. Dessa forma, a presente pesquisa conclui que o audiovisual é uma ferramenta de mudança, sendo somente um reflexo do que a sociedade pressupõe. Ao mesmo tempo, atua como agente perpetuador de ideias, podendo também ser um agente de mudança. Referências Amanajé, o mensageiro do futuro. Direção: Flávia Neves. Produção: Kam Filmes. Goiânia. 2019. 1 episódio. 26 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5EfM11qGDcw BACCEGA, Maria. O estereótipo e a diversidade. Comunicação & Educação, São Paulo, (13): 7 a 14, set./dez. 1998. BOSI, Eclea. A opinião e o estereótipo. Contexto. São Paulo: Hucitec, n.2. mar. 1977. p. 98. Sumário <<<<< 264 BERARDO, Rosa. A representação da alteridade: Estereótipos do índio brasileiro no cinema de ficção da década de 70. Comunicação e Informação, v. 5, n. 1/2, p.63-75, jan/dez. 2002. CARVALHO, Vívian de Nazareth; NEVES, Ivânia dos Santos. O corpo indígena nas telenovelas Brasileiras: Memória, nudez e embranquecimento. Redisco. Vitória da Conquista, v. 8, n°. 2, 2015. FONSECA, Vitória Melo. Mauro em Caiena: o ensaio entre o filme-carta e o filme de família. Goiânia: UEG. 2017. MIGLIORIN, Cezar. 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O trailer caracteriza-se por ser uma peça audiovisual publicitária que resume o longa-metragem, sugerindo o seu tema e estilo, nunca revelando o final da obra, para que o consumidor seja instigado a assistir ao filme (IUVA, 2007). Sua principal função é despertar o interesse e, por isso, trabalha com diversos elementos para chamar a atenção do público-alvo. O trailer é uma das ações 1 Graduada em Publicidade e Propaganda pela Universidade Regional de Blumenau (Furb). 2 Doutor em Comunicação e Linguagens (UTP). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/Furb) e do curso de Publicidade e Propaganda da Furb, e do curso de Produção Audiovisual da Univali. Líder do grupo de pesquisa Comunicação e Educação Midiática (Furb/CNPq). de publicidade que ganha maior evidência, por apresentar um conteúdo impactante com imagens relevantes do próprio filme, tentando persuadir o espectador. Entre os destaques na produção de trailers estão aqueles produzidos para as franquias de cinema que, geralmente, são grandes produções hollywoodianas com várias sequências, podendo ser uma continuação da história anterior ou então ter um enredo diferente em cada produção, mas usando os mesmos personagens. Esses filmes também são conhecidos como blockbusters e boa parte deles são produzidos com a estética high concept, que são aqueles nos quais se encontram cinco elementos essenciais: “aparência visual, a performance das estrelas, a música, o personagem e o gênero cinematográfico” (Mascarello, 2006, p. 350). As franquias cinematográficas englobam filmes épicos, produzidos com altos orçamentos e grande investimento em divulgação, compensados por meio da comercialização de produtos relacionados ao filme (Gomes, 2012). Esses filmes, conforme Mascarello (2006), possuem um enredo simples, de fácil comercialização, com imagens impactantes e que atraem o espectador. As franquias de cinema se utilizam dos métodos estratégicos, que englobam a comunicação publicitária, e objetivos de marketing, como a sinergia dos blockbusters. O presente capítulo tem o objetivo de analisar as correlações existentes entre fatores que compõem os trailers, a característica fílmica das franquias e a bilheteria gerada pelos filmes. Em concreto, a pesquisa apresenta uma análise quantitativa a partir das relações de sete dimensões teóricas identificadas como influenciadoras do trailer (que levam o público a assistir ao filme), integrada com cinco dimensões extraídas da teoria das franquias cinematográficas e a bilheteria gerada. Os objetivos específicos Sumário <<<<< 268 são: analisar as correlações dos fatores de composição dos trailers com as características das franquias de cinema e a bilheteria; identificar as relações entre as dimensões observadas no modelo teórico de trailers e franquias; e identificar de que forma as características das franquias influenciam a composição do trailer. Procedimentos Metodológicos Dentro da perspectiva da metodologia científica, o presente trabalho se classifica como uma pesquisa básica (quanto à natureza do estudo), quantitativa (quanto à abordagem do problema) e exploratória e descritiva (quanto aos objetivos). Selecionou-se, para compor a amostra, um grupo de juízes, considerados especialistas no tema em estudo. Por meio da amostragem bola de neve, foi possível selecionar seis especialistas. Em relação à seleção, considerou-se a experiência e a qualificação dos membros indicados. Os critérios de seleção dos especialistas respondentes da pesquisa foram: ter conhecimento e experiência sobre comunicação audiovisual; publicar ou pesquisar sobre o tema; ser perito na estrutura conceitual envolvida e ter conhecimento comprovado acerca das temáticas das dimensões do construto desenvolvido. A atividade dos especialistas consistiu em responder os critérios avaliativos apresentados no instrumento. A etapa de campo foi dividida em dois momentos. Primeiramente, os especialistas assistiram aos trailers e, posteriormente, preencheram um formulário de avaliação. O tempo médio de resposta de cada especialista foi de 2h35min. Foram observados por eles um total de 20 trailers das franquias de maior sucesso em número de espectadores, lançados a partir de julho de 2012 até julho 2015. Os trailers analisados são pertencentes às franquias Jurassic World, O Hobbit, Missão impossível, Velozes e furiosos, Sumário <<<<< 269 Universo Marvel, X-Men, saga Crepúsculo, Batman, Transformers, Homem-Aranha e 007. O primeiro construto de análise foi desenvolvido a partir da base teórica de Finsterwalder, Kuppelwieser e Villiers (2012), e abordou sete dimensões: experiência de visualização do trailer; formação e expectativa do consumidor; enredo e intriga; tipos de trailers, preferência de gênero; efeitos e adequação da música; e efeitos de atores, roteiristas e diretores em trailers de filmes. O segundo construto foi baseado na teoria de Mascarello (2006), que indica cinco elementos essenciais pelos quais se apresentam as franquias, sendo estas com as características blockbuster high concept. São elas: aparência visual, performance das estrelas, música, personagens e gênero cinematográfico. A partir das variáveis compostas de cada dimensão, apresentou-se como opção de resposta uma escala do tipo likert ordinal, com grau de variância de 1 a 5 (muito fraco ao muito forte). A digitação dos resultados foi feita no Excel e, em seguida, os dados foram transferidos para o software SPSS, apontado como um dos mais confiáveis para tratamentos e análise de pesquisas, permitindo a tabulação de dados de todos os tipos e também outros processos de uma pesquisa. Análise dos Dados A primeira etapa da análise consiste, de modo geral, na caracterização dos filmes, números de indicações ao Oscar (Academy Awards), nota geral do IMDb (Internet Movie Database) em outubro de 2015, e verba estimada. Na tabela 1 são apresentados os valores mínimo, máximo, média e desvio padrão da primeira parte da pesquisa relativa ao perfil dos filmes e franquias dos trailers analisados. É possível observar o des- Sumário <<<<< 270 vio padrão da amostra analisada, que, de acordo com Hair Jr. et al. (2005, p. 273), é considerado o índice mais valioso da dispersão, pois “descreve a variabilidade dos valores de distribuição da amostra a partir da média”. O valor do desvio padrão significa o quanto há de concordância entre os respondentes de acordo com cada questão. Pode-se dizer que, se o desvio padrão for pequeno (< 1,0), há pouca variabilidade de respostas, a maioria das respostas foi coerente. Caso o desvio padrão seja grande (>3,0), significa que houve bastante variabilidade de respostas (Hair Jr. et al., 2005). Tabela 1 - Caracterização dos filmes/franquias Média Desvio Padrão 9,00 4,2500 2,45720 0,00 1,00 ,8000 ,40168 120 0,00 5,00 ,6500 1,46471 Nota geral do IMDb 120 5,60 8,50 7,4000 ,72204 Adaptações 120 0,00 1,00 ,8000 ,40168 Questões N Mínimo Máximo Continuações das franquias 120 0,00 Indicações ao Oscar 120 Número de Oscar recebidos Teaser 120 0,00 0,00 0,0000 0,00000 Regular trailer 120 1,00 1,00 1,0000 0,00000 Verba estimada 120 120,00 250,00 184,7500 39,58211 Bilheteria da semana de estreia 120 55,52 606,09 134,6959 117,89709 Bilheteria total 120 414,80 1665,50 938,2450 319,90445 Fonte: dados da pesquisa. Ao analisar a tabela 1 sobre o perfil dos filmes/franquias, é possível notar que a média de continuações dos filmes é de 4,2. Isso demostra que, em geral, as franquias de cinema estendem em números altos os seus filmes. As produtoras tentam arrancar o máximo possível do sucesso do filme e criam variadas sequên- Sumário <<<<< 271 cias para as histórias. Vale ressaltar que os trailers analisados são de 2012 a 2015 e, apesar de algumas dessas franquias existirem há bastante tempo, estas podem ter muitas continuações ainda. Outro fator interessante é que, apesar de serem franquias reconhecidas no cenário cinematográfico, com altos investimentos (média de verba de 184,75 milhões de dólares por filme) e grandes retornos (média de 938,2450 milhões de dólares em bilheteria total do filme), a média de prêmios Oscar recebidos é baixa (0,6500). Sendo assim, pode-se dizer que, mesmo sendo filmes caros e rentáveis, não significa que são encantadores o suficiente perante a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, ou seja, os filmes analisados (blockbuster high concept) são feitos para agradar ao público e gerar renda, sem intenções de ganhar prêmios. Na tabela 2, a seguir, é apresentado o mínimo, máximo, média e desvio padrão das dimensões e variáveis da pesquisa. A média de cada dimensão foi nomeada da seguinte forma: “Média F” equivale à dimensão “formação e expectativa do consumidor”; “média E” a “enredo e intriga”; “média P” a “preferência de gênero audiovisual”; “média A” a “efeitos e adequação da música”; “média D” a “efeitos dos atores, roteiristas e diretores em trailers de filmes”; “média V” a “aparência visual”; “média S” a “performance dos astros”; “média M” a “música”; “média N” a “personagens”; e, por fim, “média G” a gêneros audiovisuais. Na tabela abaixo, pode-se analisar que, de todas as variáveis apresentadas, a que tem maior média é o item G1 (o trailer expõe fielmente o gênero que representa), com 4,5833, seguido pelo P3 (o trailer inspira ao gênero ação), com 4,5667. Entre os trailers analisados, de acordo com o conhecimento dos juízes, grande parte pertence ao gênero ação e eles retratam exatamente o gênero no qual o filme é enquadrado, segundo dados do IMDb (2015). Sumário <<<<< 272 Tabela 2 - Mínimo, máximo, média e desvio padrão Dimensões Variáveis N F1. O conhecimento prévio que eu tenho sobre 120 este filme, além do trailer, gera expectativa de Formação e visualização. expectativa do consumidor F2. O trailer gera necessidade de 120 visualização do filme. F3. Pelo trailer, eu consigo avaliar a 120 qualidade do filme. Enredo e intriga Sumário <<<<< Média F E1. Geralmente, a sequência de cenas é coesa e coerente. E2. O trailer possui narrações/textos com indicações de prêmios. E3. O trailer possui cortes de cenas e efeitos visuais envolventes. E4. As primeiras cenas do trailer introduzem as personagens e o ambiente em que se passa a história do filme. Mínimo Máximo Média Desvio Padrão 1,00 5,00 4,1500 ,99283 2,00 5,00 4,0417 ,84412 3,00 5,00 4,1833 ,68579 120 2,00 5,00 4,1247 ,66281 120 2,00 5,00 4,0583 ,78103 120 1,00 5,00 1,0500 ,40687 120 1,00 5,00 4,2750 ,86929 120 1,00 5,00 3,9583 1,19801 273 Dimensões Enredo e intriga Preferência de gênero audiovisual Sumário <<<<< Variáveis N E5. As cenas finais aumentam o ritmo do trailer, 120 mostrando que está chegando ao final. E6. O trailer é adequado para o 120 seu público-alvo. Média E P1. O trailer aspira ao gênero comédia. P2. O trailer aspira ao gênero aventura. P3. O trailer aspira ao gênero ação P4. O trailer aspira ao gênero drama. P5. O trailer aspira ao gênero suspense. P6. O trailer aspira ao gênero romance. P7. O trailer aspira ao gênero animação. P8. O trailer aspira ao gênero fantasia. P9. O trailer aspira ao gênero crime. P10. O trailer aspira ao gênero terror. P11. O trailer aspira ao gênero documentário. P12. O trailer aspira ao gênero musical. Mínimo Máximo Média Desvio Padrão 1,00 5,00 4,4167 ,86562 2,00 5,00 4,5583 ,60524 120 2,50 4,67 3,7193 ,46353 120 1,00 5,00 1,4583 ,93392 120 1,00 5,00 4,3333 1,06379 120 1,00 5,00 4,5667 ,88625 120 1,00 5,00 1,6167 1,08607 120 1,00 5,00 1,9417 1,41597 120 1,00 4,00 1,2083 ,59261 120 1,00 1,00 1,0000 0,00000 120 1,00 5,00 2,1833 1,57172 120 1,00 5,00 1,4917 1,02076 120 1,00 2,00 1,0417 ,20066 120 1,00 1,00 1,0000 0,00000 120 1,00 2,00 1,0167 274 ,12856 Dimensões Preferência de gênero audiovisual Variáveis P13. O trailer aspira ao gênero ficção 120 científica P14. É percebido mais de um gênero 120 no trailer. Média P A1. A música no trailer expressa emoção. A2. A trilha sonora tem o papel de fazer a ligação entre as cenas. A3. O trailer possui trilha sonora Efeitos e conhecida do adequação da público em geral. música A4. O trailer possui diálogo em alguma parte. A5. O trailer possui narração masculina. A6. A música é condizente ao gênero do filme. Média A Efeitos de atores, roteiristas e diretores em trailers de filmes Sumário <<<<< N Mínimo Máximo Média Desvio Padrão 1,00 5,00 1,8583 1,39805 1,00 5,00 4,3583 1,01083 120 1,21 2,93 2,0770 ,34941 120 2,00 5,00 4,1750 ,84677 120 2,00 5,00 4,0667 ,83750 120 1,00 11,00 1,9000 1,65717 120 1,00 5,00 4,4167 ,78412 120 1,00 5,00 2,6167 1,73536 120 2,00 5,00 4,5250 ,64772 120 2,33 5,00 3,6165 ,60224 2,00 5,00 4,0000 ,89818 1,00 5,00 4,1417 1,04757 D1. Pela atuação dos atores no trailer, eu consigo 120 avaliar a qualidade do filme. D2. A popularidade dos atores presentes no trailer cria maior 120 expectativa de visualização do filme. 275 Dimensões Variáveis Efeitos de atores, roteiristas e diretores em trailers de filmes D1. Pela atuação dos atores no trailer, eu consigo avaliar a qualidade do filme. D2. A popularidade dos atores presentes no trailer cria maior expectativa de visualização do filme. D3. O ator principal é o que mais aparece no trailer. D4. O trailer possui referência ao ator, mencionando outros filmes em que atuou. D5. O nome do diretor está presente no trailer de maneira evidenciada. D6. O trailer possui referência ao diretor, mencionando outros filmes que dirigiu. D7. O trailer possui referência ao roteirista ou autores da história. Média D Sumário <<<<< N Mínimo Máximo Média Desvio Padrão 120 2,00 5,00 4,0000 ,89818 120 1,00 5,00 4,1417 1,04757 120 1,00 5,00 3,8750 1,03358 120 1,00 3,00 1,0833 ,37981 120 1,00 5,00 1,6833 1,44933 120 1,00 5,00 1,5500 1,33379 120 1,00 4,00 1,1167 ,43354 120 1,57 3,57 2,4924 ,45373 276 Dimensões Aparência visual Variáveis N V1. O trailer apresenta iluminação baseada na contraluz na 120 maioria das cenas (evidencia o rosto dos personagens e a distância que se encontra do fundo). V2. O esquema de cores é mínimo e 120 tende ao preto e branco na maioria das cenas do trailer. V3. As imagens se aproximam da estética publicitária (transforma 120 cenas simples em espetáculos impactantes). Média V 120 S1. O ator/atriz é um astro conhecido 120 de Hollywood. S2. A atuação do ator/atriz é 120 Performance evidenciada. dos astros S3. A interpretação do ator/atriz é exagerada (tem 120 mais expressões) comparada ao restante do elenco. Média S Sumário <<<<< 120 277 Mínimo Máximo Média Desvio Padrão 1,00 5,00 2,6500 1,38812 1,00 3,00 1,4250 ,64381 1,00 5,00 4,2000 ,96667 1,33 4,00 2,7586 ,65294 1,00 5,00 4,4917 ,78853 1,00 5,00 3,7250 1,20198 1,00 5,00 2,8250 1,41814 2,00 5,00 3,6808 ,89761 Dimensões Música Personagens Gêneros audiovisuais Variáveis N M1. A música chama mais 120 atenção do que a imagem. M2. Possui “explosões musicais” momentâneas 120 (aumento musical que provoca perturbação). M3. O ator/atriz protagonista canta 120 a música. Desvio Padrão 1,00 5,00 1,9000 1,01584 1,00 5,00 3,4917 1,52842 1,00 11,00 1,2167 1,10144 Média M N1. É possível avaliar o aspecto físico da personagem principal (altura, aparência, porte, ...). N2. É possível avaliar o aspecto social da personagem principal (forma como se relaciona com os demais, convívio em sociedade). N3. É possível avaliar o aspecto psicológico da personagem principal (emoções, personalidade). 120 1,00 5,33 2,2017 ,74126 120 2,00 5,00 4,3500 ,76312 120 2,00 5,00 3,9917 ,89345 120 2,00 5,00 3,9583 ,93840 Média N 120 2,00 5,00 4,1001 ,73040 G1. O trailer expõe fielmente o gênero que representa. 120 3,00 5,00 4,5833 ,61608 Fonte: dados da pesquisa. Sumário <<<<< Mínimo Máximo Média 278 As menores médias também se referem a gêneros, sendo o item P7 (o trailer inspira ao gênero animação) com média 1,0000 e o P11 (o trailer inspira a um documentário) também com 1,000, garantindo que todos os trailers pertenciam ou não de forma muito fraca a esses dois gêneros. Seus mínimos e máximos comprovam essa afirmação com 1,0 em ambos. É importante destacar também outros dois itens com médias baixas, sendo os itens E2 e D4 referentes às variáveis “O trailer possui narrações/textos com indicações de prêmios” (1,0500) e “O trailer possui referência ao ator, mencionando outros filmes em que atuou” (1,0833), respectivamente. Conforme demonstrado na tabela 1, poucos filmes dos trailers analisados foram indicados ao Oscar (média de 0,8000) e receberam o prêmio (média de 0,6500), o que acarretou a baixa demonstração desses prêmios nos trailers em forma de textos e narrações. Também é evidente que o nome dos atores não esteve muito presente nesses trailers. É possível observar que a dimensão com maior média se refere à formação e expectativa do consumidor (4,1247). Suas variáveis, consequentemente, também possuem médias altas, sendo elas: “O conhecimento prévio que eu tenho sobre este filme, além do trailer, gera expectativa de visualização” (4,1500); “O trailer gera necessidade de visualização do filme” (4,0417); “Pelo trailer eu consigo avaliar a qualidade do filme” (4,1833). Isso demostra que, por serem filmes de franquias famosas, a popularidade deles garante a visualização e o trailer cumpre sua função de gerar curiosidade, instigar a assistir ao filme e demonstrar sua essência. A segunda maior média de dimensão pertence aos personagens (4,1001), sendo possível avaliar o aspecto físico, social e psicológico dos protagonistas. É evidente que, por serem personagens principais da trama, suas emoções e aparência ficam mais Sumário <<<<< 279 evidenciadas nos trailers, como é possível perceber na variável S2 da dimensão performance dos astros (atuação do ator/atriz é evidenciada), com média 3,7250, até por serem, em sua maioria, astros de Hollywood (média de 4,4917 na dimensão performance dos astros), o que aumenta a expectativa de visualização do filme (variável D2 com média 4,1417 na dimensão efeito de atores, roteiristas e diretores em trailers de filmes) e qualifica ainda mais (variável D1 com média 4,000 na dimensão efeito de atores, roteiristas e diretores em trailers de filmes). Outra dimensão com média relativamente alta é a enredo e intriga, com 3,7193. Pode-se perceber que a construção dos trailers, no geral, é coesa e coerente (média de 4,0583). Sua estrutura, seus efeitos especiais e cortes de cenas cativam o espectador (média de 4,275), sendo também adequado ao seu público-alvo (média de 4,5583). Ao observar o desvio padrão da pesquisa, pode-se destacar que as variáveis tiveram desvio de 0,000 a 1,7353, considerados baixos, ou seja, houve uma homogeneidade nas respostas dos juízes e não houve tanta divergência entre os resultados. Porém, os itens que tiveram os maiores desvios padrão foram o A5 (o trailer possui narração masculina), com 1,73536, e o A3 (o trailer possui trilha sonora conhecida do público em geral), com 1,65717, ambos da dimensão efeitos e adequação da música. Isso significa que essas variáveis mudam conforme o trailer. Análise Cluster Com base na análise Cluster, pode-se notar quatro grupos distintos. As maiores médias em todos os grupos estão nas dimensões gênero audiovisual, formação e expectativa do consumidor, ressaltando a importância dessas dimensões para o estudo e Sumário <<<<< 280 confirmando a funcionalidade do trailer, que é o de gerar expectativa de visualização. No primeiro grupo, percebe-se escores relativamente baixos, mas médios e altos em pontos que, ao serem ligados, reproduzem a maneira como o filme é criado, levando em consideração o gênero. Ou seja, nesse grupo estão os trailers com enredos estruturados, com cenas coesas e coerentes, montados de uma maneira que seduz o espectador e que expõe fidedignamente o gênero no qual é representado. Percebe-se também escore baixo na dimensão “Música”. A esse grupo dá-se o nome de Estruturados e Leais. Já no segundo grupo, percebe-se maior tendência por escores altos nas dimensões “Performance dos astros” e “Personagens”. Esses trailers exploram mais o protagonista, evidenciando a forma como ele interage com a cena e com o restante do elenco, assim como seus aspectos físicos. Há também grande evidência nas estrelas de Hollywood. Essas duas dimensões estão diretamente ligadas. Se um trailer explora seu principal personagem, seguramente o astro do filme também está sendo explorado, e, quanto maior for a popularidade desse astro, mais altas são as expectativas de visualização. Portanto, podemos identificar esse grupo como Estrelas. No terceiro grupo, caracterizam-se os trailers que falharam de alguma forma. Identifica-se esse grupo como “fragilizados”. Pode-se perceber que, entre todos os grupos, esse é o que tem a menor média em formação e expectativa do consumidor, apesar de ainda ser alta. São os trailers que não souberam usar de forma correta os elementos que seduzem os espectadores, cujos atores não chamam tanto atenção quanto necessário e nos quais se observa escore baixo na dimensão de aparência visual. Sumário <<<<< 281 Por fim, no quarto grupo, fica evidente que, de todos os trailers analisados, esses são os que usam muito bem os seus elementos. São os blockbusters, que de fato geram ótimas expectativas para a visualização do filme, sendo trailers que exploram seus componentes de forma que agrade ao público, usando fatores muito bem-posicionados, como os grandes artistas. Nomeia-se esse grupo como Mega Hollywoodianos. Correlação de Spearman Foi utilizado o método de correlação de Spearman, que usa escalas ordinais para medir a associação linear entre duas variáveis. O interesse nesse método é descobrir se um fator interfere em outro de maneira positiva ou negativa. Caso o coeficiente de relação for alto e significativo, diz-se que existe uma boa relação entre as variáveis (Hair Jr. et al., 2010). A correlação de Spearman utiliza classificações no lugar de valores absoluto, variando de -1,0 a +1,0 (Malhotra, 2012). Por meio da Correlação de Spearman, pode-se analisar que houve uma correlação positiva e significante entre a dimensão “Efeitos de adequação da música” e “Enredo e intriga” (0,526), o que significa que esses dois elementos em conjunto criam no trailer uma espécie de conexão. Enquanto o enredo faz o seu papel de contar a história de forma sintetizada com cortes, efeitos visuais envolventes e, acima de tudo, coesão e coerência, a música desempenha a função de criar uma ligação entre essas cenas, gerando um ambiente harmonioso e expressando a emoção que o trailer precisa passar para provocar no espectador a necessidade de assistir ao filme. A dimensão “Efeitos e adequação da música” também se correlaciona positivamente com “Enredo e intriga” por meio de diálogos e narrações que constroem a intriga da história. Os diálogos, em Sumário <<<<< 282 sua maioria, agem como incentivadores e geram curiosidade em relação ao que vai acontecer na história. A dimensão “Personagens” também tem correlação positiva com “Enredo e intriga” (0,564). É evidente que isso aconteça, pois os personagens são a história. Mesmo que haja narrações, são eles que fazem a história acontecer e, principalmente, geram a intriga no contexto. Quanto mais os personagens e seus aspectos físicos, sociais e psicológicos aparecem nos trailers, mais altas são as chances de o enredo contar bem a trama. No que se refere ao gênero Aventura, observa-se uma relação significante e positiva com “Fidelidade ao gênero” (0,559), pois a maioria dos trailers analisados, por serem de grandes franquias, eram filmes de ação e aventura. Então, pode-se dizer que os trailers de aventura conseguiram retratar mais fielmente o gênero. É possível perceber ainda que a variável “é percebido mais de um gênero no trailer” tem boa correlação com os trailers de aventura (0,685), assegurando que, quando o trailer aspirava à categoria aventura, outro gênero também era percebido em sua formação. Outro importante dado extraído desse método é que o gênero ação se correlaciona positivamente com a aparência visual (0,414), que é considerada um dos elementos pelos quais se apresenta o estilo blockbuster high concept. Isto é, os trailers de filmes de ação mostraram-se mais aproximados da estética publicitária, com cenas simples transformadas em espetáculos radiantes capazes de impressionar e surpreender os espectadores. Isso fica claro quando extraímos o conceito desse estilo, que são filmes feitos para chamar a atenção. Pode-se perceber ainda que o gênero suspense tem correlação positiva com a dimensão “Música” (0,488) pelo fato de que, nesse tipo de trailer, a música desempenha a função de provocar efeitos Sumário <<<<< 283 de ameaça e assustar o espectador, tornando-se, assim, de extrema importância para o propósito desses filmes. É notável que em trailers de suspense há um certo aumento musical em algumas cenas para captar a atenção do espectador, chamando mais atenção do que a própria cena. É evidente que a dimensão “Personagens” está correlacionada significantemente e positivamente com “Efeitos de atores, roteiristas e diretores” (0,518), pois são os atores que compõem os personagens, e, se o ator for popular e conhecido no ramo cinematográfico, os personagens que ele interpreta irão aparecer mais. “Efeitos de adequação da música” é outra dimensão que se relaciona com “Personagens” (0,532), sendo o diálogo o principal componente. É perceptível que, quando há diálogo, o personagem irá aparecer, confirmando a confiabilidade da escala. Modelagem de Equação Estrutural (MEE) A modelagem de equação estrutural é uma técnica multivariada que analisa as relações de dependência entre construtos e variáveis, estabelecendo relações gráficas entre variáveis mensuráveis e variáveis latentes (Bilich; Silva; Ramos, 2006). De acordo com Hair Jr. et al. (2005), o objetivo dessa técnica é aliar os aspectos na análise fatorial e da regressão linear, verificando estatisticamente as relações entre os construtos. Na modelagem de equação estrutural, “as variáveis latentes são construtos hipotéticos que não podem ser mensurados diretamente” e esses construtos são representados por variáveis mensuráveis, que são os indicadores dos construtos. Ou seja, a MEE é um “padrão de relacionamentos lineares entre conjuntos de variáveis mensuráveis e variáveis latentes”, indicando funções e características em comum (Brei; Neto 2006, p. 135). Sumário <<<<< 284 Assim sendo, para compreensão dos resultados, foi utilizado o modelo de equação estruturada PLS (Partial Least Square). O modelo PLS é “composto por um conjunto de procedimentos baseados em métodos de Mínimos Quadrados Ordinários” (Mendes, 2006, p. 42). Esse modelo foi desenvolvido para estimar modelos recursivos e estabelece relações lineares entre variáveis latentes. A relação entre as variáveis observadas no PLS e as variáveis latentes pode ser percebida da seguinte forma: “como indicadores Reflexivos, significando que as ligações (setas) apontam da variável latente para a observada, ou como indicadores Formativos, as ligações (setas) apontam da variável observada para a latente” (Mendes, 2006, p. 48). A figura a seguir revela os resultados da modelagem de equação estrutural do estudo, obtidos a partir do modelo PSL. Figura 1 - Modelagem de equação estrutural – PSL Fonte: elaborado pelos autores. Sumário <<<<< 285 Por meio da figura 1, pode-se constatar que foram relacionados os aspectos do trailer e a franquia com a bilheteria gerada do filme. Percebe-se que a principal dimensão que influencia a bilheteria são os atores e diretores, apresentando um índice de 0,483; seguido de gênero (0,338) e a expectativa do consumidor (0,144). Ou seja, o importante no trailer é que ele tenha atores e diretores conhecidos e que esses sejam evidenciados nos trailers para que o consumidor tenha conhecimento e, assim, gere uma expectativa de visualização. É importante também que o gênero do filme seja representado de maneira íntegra. Logo, com base nos dados descritos, o que determina a bilheteria do trailer é o gênero do filme, a expectativa gerada e principalmente seus atores e diretores. Observa-se índices baixos e negativos relacionados à bilheteria, como verba (-0,085), enredo e intriga (-0,043), visualidade (-0,019) e efeitos e adequação da música (-0,017). Isso quer dizer que esses fatores presentes nos trailers não influenciam na bilheteria e, consequentemente, no sucesso do filme. Apesar de a verba apresentar índice baixo relacionado à bilheteria, esta apresenta índice significante quando relacionada à franquia (0,108), e a franquia correlaciona-se com continuações (1,000). Logo, pode-se constatar que a verba sempre será alta quando for um filme de franquia e notoriamente terá continuações. Considerações Finais Os trailers podem ser considerados obras cinematográficas de grande importância para a indústria do audiovisual. Seu objetivo não é somente informar os espectadores que um filme está chegando, mas, também, persuadir, gerar curiosidade, induzir ao consumo. Em sua concepção, os trailers possuem elementos que fomentam a atenção, sendo considerados uma peça publicitária Sumário <<<<< 286 audiovisual. Em contrapartida, as franquias cinematográficas também possuem fundamentos nas quais se sustentam essa organização, principalmente, quando envolvem os filmes blockbuster com estética high concept. Estes métodos são definidos como filmes comerciais, feitos para agradar o espectador, com orçamentos altos, grande divulgação e cujo maior objetivo é gerar lucro. Esse lucro geralmente é compensado durante anos pela venda de produtos agregados. As franquias fornecem um conhecimento prévio dos espectadores mais assíduos, levando a uma legião de fãs que buscam sempre adquirir itens relativos aos filmes ou personagens, movimentando o mercado. Sendo assim, buscou-se descobrir, neste estudo, quais informações são necessárias nos trailers e franquias e quais fatores criam expectativas de visualização do filme. A partir da pesquisa quantitativa realizada e dos resultados apresentados, constata-se que, ao estudar o trailer e sua forma de divulgação, pode-se extrair sete dimensões capazes de influenciar o público a assistir ao filme. Ao ligar essas dimensões do trailer com cinco dimensões extraídas da teoria das franquias cinematográficas, verifica-se que esses elementos somados fazem com que o trailer gere necessidade de visualização do filme retratado, tornando-o, assim, um sucesso de bilheteria. Outrossim, contatou-se que os trailers de franquias não podem ser considerados apenas como uma versão reduzida do filme. Eles possuem elementos icônicos e publicitários que passam ao espectador certa credibilidade do que ele irá assistir, incentivando-o à visualização, por isso, pode-se considerar que o trailer faz uma ótima publicidade de seu produto. Dessa forma, cada dimensão estudada no presente trabalho representa esses elementos capazes de atrair a atenção do espectador, combinando-os de forma inovadora e Sumário <<<<< 287 testando novas sensações para, assim, comprovar a sua eficácia. O contexto corrobora os estudos de Langie (2006) e Santos (2010). Constatou-se então, que a maior correlação existente entre as dimensões desses construtos é com os personagens e os efeitos de atores, roteiristas e diretores. Isso fica evidente quando analisamos a importância do personagem dentro do filme, já que ele conta a história. Consequentemente, os atores/artistas é que dão vida aos personagens e aparecem mais. Field (2001) alega que a forma como o personagem é exibido cria um conceito de familiaridade com o espectador. É importante que os aspectos físicos e sociais sejam demonstrados para atingir esse objetivo e criar essência para a história. No entanto, a popularidade dos atores, dos roteiristas e dos diretores dão ao trailer uma certa evidência, para que o espectador possa ter um conceito positivo da obra – funciona como elemento atrativo. Quanto mais conhecidos forem, mais alta a probabilidade dos espectadores se identificarem e qualificarem o trailer. Os atores e diretores são considerados o rosto para o público, ou seja, a primeira identificação do espectador com o filme. Eles possuem histórico de outros trabalhos já realizados, possuem fãs e admiradores, o que faz com que aumente o desejo de visualização (FIinsterwalder; Kupperwieser; Villiers, 2012). Com isso, pode-se constatar que tanto os personagens quanto os atores e diretores são peças substanciais para a construção do trailer. Outra correlação entre as dimensões pode ser observada pelo gênero aventura e a percepção de mais de um gênero na concepção do trailer. Isso significa que, quando o trailer aspirava ao gênero aventura, era percebido também mais de um gênero audiovisual em sua concepção. Kerrigan (2010), afirma que há uma variada lista de gêneros que servem para indicar tipos semelhantes de filmes, e que esses podem ter mais de uma classificação. Sumário <<<<< 288 A pesquisa destacou ainda que o gênero ação se correlaciona positivamente com a aparência visual, mostrando que os filmes desse gênero estão mais próximos da estética publicitária, ao transformar cenas simples em espetáculos impressionantes e que impactam melhor os espectadores. Mascarello (2006), confirma que a aparência visual se destaca no trailer, com cenografias constituídas com tecnologia de ponta, criando ações que se aproximam da estética publicitária, capazes de provocar deslumbramento no espectador. Ao identificar de que forma as características das franquias influenciam a composição do trailer, é possível perceber que cada dimensão retratada representa um elemento que pode afetar a atitude do público em relação à visualização do filme. Os elementos que compõem tanto os trailers quanto as franquias cinematográficas se complementam, ou seja, um está ligado ao outro. A formação da expectativa tem início no conhecimento prévio que existe sobre o filme. Constatou-se que a média geral dessa dimensão foi uma das mais altas (4,1247), o que confirma a hipótese de Zeithaml, Berry e Parasuraman (1993), que afirmaram que o conhecimento antecipado faz com que o espectador adquira confiança naquilo que já conhece, estabelecendo uma relação de segurança com o que já experimentou. Kerrigan (2010), também certifica essa hipótese com filmes de franquias e adaptações, que geram uma expectativa maior, pois, além do sucesso inicial, já atendem a um público existente. O gênero também se caracteriza como importante elemento de formação de expectativa, principalmente quando o trailer retrata fielmente o gênero no qual se enquadra o filme (média de 4,5833). Essa importância destaca que o gênero constrói visibilidade, notoriedade e cria expectativa mais fidedigna do filme. Na Sumário <<<<< 289 dimensão preferência de gênero audiovisual, observa-se que os trailers avaliados aspiram ao gênero ação e aventura. Ao analisar a dimensão de efeitos de atores, roteiristas e diretores em trailers, pode-se perceber que a popularidade dos atores presentes no trailer cria mais expectativa de visualização do filme. De acordo com Finsterwalder, Kupperwieser e Villiers (2012), a escolha dos atores presentes no trailer é importante para gerar conhecimento prévio de qualificação e elevar a referência da obra. Há certos diretores e roteiristas mais conhecidos, e esses geram uma expectativa, porém, comparado aos atores, os diretores e roteiristas não chamam tanta atenção. A dimensão performance dos astros também apresentou média relativamente alta (3,6808). Pode-se perceber que o ator/atriz geralmente é um astro conhecido de Hollywood (4,4917), sendo assim, fica evidente que são os astros que aparecem mais. Santos (2010) aponta algumas evidências de que os atores são considerados marcas e são de fundamental importância no momento da decisão do espectador e, a partir do momento em que eles se transformam em personagens, a expectativa se dá pela construção e desempenho que o artista demonstra. É relevante também destacar as médias por variável, pois, em uma mesma dimensão, é possível apresentar variáveis contraditórias, fazendo com que as médias gerais indiquem escores medianos, como é o caso da dimensão enredo e intriga (3,7193). Nessa dimensão, pode-se perceber que a montagem no trailer é, em geral, coesa e coerente, com cortes e efeitos visuais envolventes e sendo adequada ao seu público-alvo, mas os trailers analisados não possuem narrações ou textos com indicações de prêmios, até porque a média de prêmios Oscar recebidos, até o ano de 2015, foi baixa. Essas informações se confirmam nos trabalhos de Langie (2006) e Quintana (2003), que afirmam que o trailer possui uma estrutura particular Sumário <<<<< 290 com cenas do próprio produto para criar uma mensagem publicitária, e que se deve ter conhecimento de quem vai receber essa mensagem, para então construí-la de maneira correta. Já na dimensão efeitos e adequação da música, percebe-se que geralmente a música é condizente ao gênero do filme, expressando emoção. Em sua maioria, os trailers apresentam diálogos. De acordo com a correlação de Spearman, foi possível observar uma relação significante da música com o enredo por meio de diálogos e narrações, que constroem a intriga da história, gerando curiosidade em relação ao que vai acontecer. Langie (2006) confirma que a trilha sonora num trailer reproduz ritmo e proporciona continuidade, além de ser uma das principais formas de expressar os sentimentos gerados pelo filme. Porém, nos trailers analisados, a média das variáveis “o trailer possui trilha sonora conhecida do público em geral” e “o trailer possui narração masculina” foi baixa, reconhecendo que essas características estabelecidas por Langie (2006) e Kerrigan (2010), não foram empregadas nesses trailers ou, então, foram usadas de maneira pouco envolvente e que varia de trailer para trailer. Como principal resultado desta pesquisa, percebeu-se que os elementos presentes nos trailers de franquias e que evidenciam o seu sucesso nas bilheterias são, em sua maior parte: o gênero, a expectativa gerada pelo trailer, o fato de ser uma franquia e, principalmente, a menção aos atores, diretores e roteiristas na narrativa da peça. Observou-se então, neste trabalho, a importância da análise dos trailers a partir da ótica publicitária, conceituando este como a principal ferramenta de comunicação das indústrias cinematográficas a fim de divulgar sua obra. Os elementos fundamentais que constituem o trailer e a franquia garantem que eles cum- Sumário <<<<< 291 pram seus principais objetivos, convencendo e persuadindo os espectadores e levando-os à compra. Mesmo em filmes de grande sucesso, como as franquias de cinema, em que o público já é conceituado, pode-se notar que o trailer é a peça fundamental para a campanha publicitária do filme, gerando grandes expectativas nos espectadores e atraindo o público para as salas de cinema, e também para a comercialização de produtos referentes à obra, fomentando, assim, o mercado cinematográfico. O estudo limitou-se ao número mínimo de juízes para realização da pesquisa e ao local no qual assistiram. Cada juiz assistiu aos trailers em um local propício a eles. O ideal seria reunir todos em um único ambiente que remetesse à sala de cinema e ter um número maior de juízes. A pesquisa foi limitada também quanto ao número mínimo de trailers, podendo ter sido analisados todos os trailers lançados dos filmes que foram examinados. Portanto, como sugestão para futuros estudos, propõe-se analisar mais do que vinte trailers, explorando também filmes que ainda não foram lançados, comparando-os com os trailers de filmes que já foram assistidos pelos avaliadores, e aumentando também o número de juízes, para obter resultados ainda mais satisfatórios. Sugere-se também aplicar a pesquisa com consumidores que não tem conhecimento em comunicação audiovisual para medir com distinção quais elementos dos trailers e franquias cumprem suas funções, mensurando a expectativa de visualização de consumidores comuns. Sumário <<<<< 292 Referências BILICH, F., SILVA, R., RAMOS. P. Análise de flexibilidade em economia da informação: modelagem de equações estruturais. Revista de Gestão da Tecnologia e Sistemas de Informação, 3(2), p. 93-122, 2006. BREI, V. A.; NETO, G. L. O uso da técnica de modelagem em equações estruturais na área de marketing: um estudo comparativo entre publicações no Brasil e no exterior. 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Sumário <<<<< 294 O fim da eternidade, de Asimov, a cultura e o tempo na publicidade Dora Carvalho1 João Anzanello Carrascoza2 O enredo e as instâncias do tempo na Publicidade Dentre as variadas, múltiplas e, por vezes, contrapostas linhagens textuais que constituem a imensa rede de discursos circulante nos mais diversos espaços midiáticos contemporâneos, está a publicidade – em especial aquela que se materializa por meio de peças audiovisuais, cuja reverberação se amplificou com o advento das redes sociais, pelas quais os filmes publicitários são distribuídos, compartilhados e, uma vez nelas alocados, encontram-se acessíveis, permanentemente, a qualquer momento. 1 Jornalista e doutora em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM-SP. Tem mestrado em Comunicação na Contemporaneidade pela Faculdade Cásper Líbero e pós-doutorado em andamento na mesma instituição. Atua em pesquisas referentes ao segmento literário e à relação dos jovens com os livros e a indústria do entretenimento pop, além de suas conexões com as plataformas digitais e redes sociais. E-mail: dora.carvalho@gmail.com 2 Escritor, redator publicitário e docente da ESPM-SP e da ECA-USP, onde fez mestrado e doutorado. Como redator, atuou em grandes agências como JWT e Young & Rubicam e publicou livros sobre criatividade na propaganda, como Razão e sensibilidade no texto publicitário e Estratégias criativas da publicidade. É autor de diversas obras literárias pelas quais recebeu três vezes o prêmio Jabuti, três vezes o prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, duas vezes o prêmio da Fundação Biblioteca Nacional e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, além dos prêmios internacionais Radio France (RFI, Paris) e White Ravens (Library Munich, Alemanha). Como os meios eletrônicos (o rádio, a televisão e o cinema) são, por natureza, afeitos às narrativas, neles é que navega a numerosa produção de publicidade que conta histórias – no formato de storytelling – para difundir produtos, serviços, marcas, causas sociais, enfim, seja qual for o objeto de sua promocionalidade (Carrascoza, 2014). Como em qualquer história ficcional, os elementos narrativos que a constituem, como o narrador, os personagens, o enredo (que avança por meio do conflito entre personagens), o espaço e o tempo (cronológico ou psicológico), são mobilizados em função dos objetivos da demanda publicitária. Interessam-nos, neste artigo, as imbricações entre o enredo, que emerge de uma cultura e para ela é direcionado, e o tempo, que, embora possa ser presentificado no ato do consumo discursivo, a cada vez que alguém se põe a assistir a uma publicidade audiovisual, mantém-se fiel e represado à(s) instância(as) que foram escolhidas para a concretização da história – passado, atualidade e porvir. Na tessitura do enredo e do tempo que o rege, a publicidade procura dar conta dos elementos culturais vigentes em uma determinada sociedade e, quando não é possível fazê-lo, lança mão de artifícios para construir “visões de mundo” (Rocha, 1995, p. 24), o mais próximo possível do imaginário da época. Para Berger, “as imagens publicitárias também pertencem ao instante que passa, no sentido em que necessitam ser constantemente renovadas e atualizadas. No entanto, elas nunca remetem ao presente. Referem-se muitas vezes ao passado e falam sempre do futuro” (Berger, 1972, p. 134). É preciso ressaltar que a publicidade por vezes é responsável pela criação de novos mundos ou olhares sobre a realidade. “Pode-se, através da publicidade, levantar os olhos para um universo de significações bastante insólito (...) onde feitos mágicos Sumário <<<<< 296 são constantes” (Rocha, 1995, p. 25) e ainda, demonstrar, por meio das estratégias visuais e discursivas das peças publicitárias, “uma série de representações sociais que sacralizam o cotidiano” (p. 26). Pretendemos proceder aqui a uma retextualização, na acepção de Bettetini (1996), ou seja, tomar o texto de um domínio – no caso, o literário, com a obra de ficção científica O fim da eternidade, de Isaac Asimov (2015, edição mais recente publicada no Brasil) – e, com ele, abrir diálogo com texto(s) de outro domínio, especificamente, o publicitário, definindo, assim, o nosso protocolo metodológico. Move-nos o interesse por destacar os aspectos que denotam hábitos de consumo, características sociais de uma época e estratégias publicitárias apresentadas nessa obra do escritor russo, demonstrando em nosso estudo como a publicidade “costura uma outra realidade, com base nas relações concretas de vida dos atores sociais e produz um mundo idealizado” (Rocha, 1995). A narrativa de O fim da eternidade, de Asimov, está permeada de elementos que contribuem para a nossa abordagem, com representações muito evidentes de como a poética publicitária se apropria dos costumes e hábitos da época em que foi produzida. Porém, antes de seguirmos, é necessário contextualizarmos o romance O fim da eternidade, publicado originalmente em 1955, e o porquê de nossa escolha. Asimov nasceu na Rússia e sua obra ficou conhecida por meio do gênero ficção científica. São atribuídos a ele cerca de 500 manuscritos, entre romances e contos, além de obras de divulgação da ciência (Freedman, 2005, p. XXI). Uma das principais características do escritor era a de explicar a ciência em seus primeiros estágios e lançar para um futuro, muitas vezes absolutamente distante de sua própria época, as variadas possibilidades científicas as quais a humanidade poderia alcançar. A sua visão, no entanto, não era otimista. Muitas de suas Sumário <<<<< 297 ideias e supostas invenções do racionalismo, que povoariam o nosso futuro, descritas em dois textos de sua autoria, um de 1964 e outro de 1983, foram confirmadas com o tempo, como a comida congelada em nossa vida cotidiana, as conversas em vídeo entre pessoas em qualquer canto do planeta, o aumento da desigualdade, mesmo com o avanço tecnológico, a computadorização e a irresponsabilidade humana face às questões ambientais. A engenhosidade da trama de O fim da eternidade nasceu de um anúncio publicitário. Asimov teria visto em uma revista algo em formato de cogumelo (era o desenho do gêiser Old Faithful, que fica no Parque Yellowstone, Wyoming, Estados Unidos), o que o fez pensar no efeito explosivo de uma bomba atômica. Literalmente, essa foi a “explosão” para mais uma das ideias recorrentes do autor, que sempre questionou os percursos utilizados pelo homem em suas descobertas científicas. O livro trata dos seres humanos que fazem parte de uma organização responsável por cuidar da “Eternidade”. Personagens cujos atributos vão de “Técnicos”, “Computadores”, “Observadores”, e o mais sofisticado de todos, os “Eternos”, designados para garantir que, em qualquer século (seja de 0 a 150.000), a humanidade seja capaz de cuidar de si mesma e evitar a própria extinção. Mas até que ponto essa inferência é positiva ou prejudicial? Questiona o enredo, em uma vastidão que abrange 50 bilhões de pessoas, em “realidades” paralelas e análogas. Talvez pelo fato de a ideia do romance ter surgido a partir de um imagem de publicidade, Asimov nos dá pistas ao longo do romance sobre os “séculos” retratados na obra, por meio da visão dos personagens a respeito das vestimentas e dos anúncios publicitários de determinadas épocas: Sumário <<<<< 298 Harlan passou o dedo pela página da revista. Fixou o olhar na reprodução, em vermelho vivo, de um veículo terrestre, similar aos veículos característicos dos Séculos 45, 182, 590 e 984, assim como da fase final dos tempos Primitivos. Era um negócio muito comum, com um motor de combustão interna. Na era Primitiva, frações de petróleo natural eram a fonte de energia, e borracha natural revestia as rodas. Obviamente, não foi assim em nenhum dos Séculos posteriores (Asimov, 2015, p. 95). Esse trecho do livro de Asimov situa o leitor a respeito das características do tempo vivido pelo personagem Harlan. Fazendo contraposição de hábitos e costumes de locomoção por meio de veículos, o escritor oferece uma alegoria dos nossos tempos e de que somos dependentes de automóveis movidos a combustíveis fósseis. Os carros e o petróleo, em sua descrição, ganham conotações sígnicas, com atributos simbólicos, referentes à uma época e sociedade, como quando ele se refere aos “Primitivos”, em alusão implícita ao século XX. Augé (2010) nos lembra que, em razão da dificuldade em nos situarmos em nosso próprio tempo, existe a tendência a dar formas caricaturais à sociedade. O objetivo é definir “condições de representatividade” e “individualização das referências”, como podemos ver no trecho abaixo, no qual Harlan toma contato com a publicidade: Esses anúncios (...) nos falam mais sobre os tempos Primitivos do que os chamados artigos noticiosos, na mesma revista. Os artigos noticiosos pressupõem um conhecimento básico do mundo sobre o qual estão tratando. Usam termos que não sentem necessidade de explicar. O que é uma ‘bola de golfe’, por exemplo? (Asimov, 2015, p. 95). Sumário <<<<< 299 Para Baudrillard (2007, p. 120-127), a lógica de consumo do nosso tempo “define-se como manipulação de signos. O objeto perde a finalidade objetiva (...) e a TV, rádio e publicidade constituem uma descontinuidade de signos e de mensagens, em que todas as ordens se equivalem”. O discurso sobre o mundo não pretende nos dizer respeito e assume certa neutralidade, explica o sociólogo e filósofo francês. Em seu ponto de vista, a publicidade não está voltada para objetos reais e mundo concreto; opera em uma dinâmica de “signo para signo”, “objeto para objeto”, “consumidor para consumidor” (p. 131). Na citação a seguir, é possível perceber como Asimov define a publicidade no romance: Publicidade! Um artifício para persuadir os relutantes. Importava ao fabricante de veículos terrestres se um determinado indivíduo sentia desejo original ou espontâneo por seu produto? Se o cliente em potencial (era essa a expressão) poderia ser artificialmente induzido ou engambelado a sentir aquele desejo e agir de acordo com ele, não seria bom? (Asimov, 2015, p. 96). Dessa forma, o escritor nos lembra que a publicidade costuma operar na esfera de domínio do consumo e cala a fase da produção. “O produto calado em sua história social se transforma em um objeto imerso em fábulas e imagens” e são objetos que falam da “presença/ausência de identidades, visões de mundo e estilos de vida” (Rocha, 1995, p. 67). O produto em si ora perde ora ganha identidades, ganhando conformações sociais de acordo com novos contextos criados pela publicidade. A obra nos remete à ideia de “totemismo”, termo da Antropologia que determina a crença em determinadas entidades ou ritos nas sociedades. Os ritos estão presentes em nosso cotidiano e são articulados, sobretudo, pela publicidade, que trabalha como um “operador Sumário <<<<< 300 totêmico”, como nos explica Rocha: classificando, sistematizando produtos, colocando-os em lugares privilegiados de observação e contemplação e, por que não, demarcando temporalidades, como podemos pressupor na obra que estamos retextualizando. Asimov e os paralelos com a sociedade Para Eco, ao lidar com textos, sejam eles literários ou não, estamos abertos a interpretações anteriores de mundo. “Toda descrição do mundo (seja uma lei científica, um romance) é um livro em si mesmo, aberto a outras interpretações, sendo ele apenas um piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido” (Eco, 2005, p. 29, 177). Segundo ele, a tentativa de encontrar significados nos textos nos leva a uma interminável “oscilação e deslocamento dos significados” (p. 37). Ou, em outras palavras, um texto é um universo aberto em que o intérprete pode descobrir infinitas interconexões. A linguagem é incapaz de apreender um significado único e preexistente: o dever da linguagem é, ao contrário, mostrar que aquilo de que podemos falar é apenas coincidência dos opostos (Eco, 2005, p. 45). Ainda de acordo com Eco (1992), as obras literárias têm uma espécie de assinatura em uma retórica de semelhança (p. 71). No que se refere aos textos de Asimov e à luz dessa definição do autor italiano, podemos dizer que a assinatura do escritor russo é nos mostrar as vicissitudes das sociedades. Asimov sempre faz, em suas tramas, um paralelo com a contemporaneidade e o desenvolvimento tecnológico, nem sempre passível de aprovação, independentemente de o tempo narrativo se passar em um futuro próximo ou distante, como mencionamos. Sempre é possível encontrar na obra do autor russo comportamentos, hábitos e elementos culturais com os quais Sumário <<<<< 301 podemos nos identificar. Vale ressaltar que essa característica também é uma das assinaturas da publicidade. O romance O fim da eternidade revela certa economia de informações psicológicas dos personagens, mas é por meio das características das ferramentas utilizadas, objetos de trabalho, deslocamento entre um lugar e outro e, principalmente, por meio das vestimentas dos personagens e sugestão de hábitos de consumo, que percebemos de quais universos e ambientações sociais o autor está falando. A publicidade serviu de lente, que se destaca no texto de Asimov, para percebermos que ícones da época em que o livro foi produzido estavam sendo ressaltados pelo escritor, que ironiza os atributos de persuasão utilizados pelos criativos publicitários para atrair a atenção dos consumidores dos tempos “primitivos”. O relato de Asimov deixa claro que, para as sociedades que absorviam aquele tipo de anúncio publicitário, existia um certo repertório de informações que tornavam as ideias explícitas e objetivas para todos, mas não para aqueles dos “séculos avançados”, já que não compartilhavam da mesma memória discursiva, localizada em um certo extrato temporal, como podemos demonstrar no trecho a seguir: Logo abaixo, em letras menores, lia-se: “Boletim Informativo de Investimentos”, Caixa Postal 14, Denver, Colorado. Twissell ouviu atentamente a tradução de Harlan e ficou novamente decepcionado. – O que é mercado? – perguntou. – O que significa para eles? – O mercado de ações – disse Harlan, com impaciência. – Um sistema pelo qual o capital privado era investido em negócios. Mas não é esse o ponto importante. O senhor não está vendo o desenho no fundo do anúncio? Sumário <<<<< 302 – Sim. A nuvem-cogumelo da explosão de uma bomba atômica. Algo para chamar a atenção. O que tem isso? Harlan explodiu: – Grande Tempo, Computador, qual é o problema com o senhor? Veja a data da edição da revista. Apontou o cabeçalho, bem à esquerda do número da página. Lia-se 28 de março de 1932. – Isso nem precisa de tradução – disse Harlan – Os números são quase os mesmos usados em Intertemporal Padrão e o senhor pode ver é o Século 19,32. O senhor não sabe que, naquela época, nenhum ser humano jamais tinha visto um nuvem-cogumelo? Ninguém poderia reproduzí-la com tanta precisão, exceto... – Espere um pouco. É só um desenho – disse Twissel, tentando manter o equilíbrio. – Talvez a semelhança com uma nuvem-cogumelo seja apenas coincidência. – Será? Olhe as palavras de novo – os dedos de Harlan bateram nas linhas curtas. - Aprenda - Tudo - sobre - o - Mercado - e - Invista - Certo - Agora. As iniciais formam a palavra ATÔMICA. Isso é coincidência também? De jeito nenhum. – O senhor não vê, Computador, que esse anúncio se encaixa nas condições que o senhor mesmo estipulou? Ele chamou a minha atenção imediatamente. Cooper sabia que chamaria a minha atenção pelo mero anacronismo. Ao mesmo tempo, não tem outro significado, absolutamente nenhum outro significado, para o homem do 19,32, a não ser o que está escrito (Asimov, 2015, p. 215-216). Sumário <<<<< 303 A menção à imagem de uma nuvem-cogumelo que resulta da explosão de uma bomba atômica para ocupar a esfera visual de um anúncio, e sua impossibilidade de ser compreendida por um “público” que não tinha conhecimento dessa figuração, nos conduz ao próprio núcleo do conteúdo publicitário, que, se, por um lado, se nutre do manancial de signos de uma sociedade, por outro, só se concretiza se o consumidor, a quem foi endereçada a mensagem, compartilhar desse conhecimento cultural. Rocha (1995) e Carrascoza (2008) definem, apoiados na ideia de bricolagem de Lévi-Strauss, que os profissionais da publicidade atuam como bricoleurs, cortando e editando textos, valendo-se da intertextualidade para construir, discursivamente, espaços ficcionais identitários, como o País de Marlboro, o Lado Coca-Cola da Música, o Sorriso Colgate, o Mundo das Maravilhas de Leite Moça etc. Asimov ratifica esse ponto de vista em outra passagem da obra em estudo: Cooper, vindo de uma época em que a publicidade não era tão largamente proliferada como nos últimos Séculos dos tempos Primitivos, achou difícil apreciar tudo aquilo. “Não é meio desagradável”, ele disse, “o jeito como essas pessoas se promovia e se vangloriava? Quem seria bobo de acreditar no alarde de uma pessoa sobre seus próprios produtos? Ela admitia os defeitos? Será que evitava os exageros? Harlan, cujo tempo-natal era fértil em publicidade, levantou as sobrancelhas, tolerantemente e disse: “Você vai ter que aceitar isso. É o costume deles, e nós nunca brigamos com os costumes de nenhuma cultura, enquanto não prejudicarem seriamente a humanidade como um todo (Asimov, 2015, p. 96). Sumário <<<<< 304 Podemos também subentender no início do parágrafo, que, “nos últimos Séculos dos tempos Primitivos”, a publicidade tinha não só presença como lugar de destaque naquela sociedade, o que já não ocorreria no tempo futuro no qual decorre a ação diegética envolvendo o personagem Cooper, nascido em outra época, quando tal atividade não tinha mais tanta relevância ou talvez nem mesmo existência. Para ele, tanto o produtor de um anúncio quanto o seu consumidor (o consumidor de seu discurso, que promove o produto, não o consumo do produto propriamente dito), participariam de um “costume” tolo de tal sociedade – o alarde das vantagens de suas próprias mercadorias. Pois essa vanglória da publicidade, a que Carrascoza (2004) denomina de vetor apolíneo – aquele que alicerça a peça publicitária com argumentos, enfatizando as suas qualidades e virtudes –, ganhou a alternância do vetor dionisíaco – quando a publicidade passou a incorporar o formato de narrativa, ou storytelling, associando o produto, de forma indireta, à história que ela conta, ilustrativa, em geral, de sua mais expressiva qualidade (Carrascoza, 2004). Assim, desde os anos 1960, quando Asimov faz seus primeiros exercícios de futurologia, a “vanguarda publicitária”, capitaneada pelas agências de propaganda norte-americanas, já encontrara uma maneira, mais sutil e menos exagerada, portanto, de tornar o mais agradável possível o seu objetivo – demonstrar o diferencial do produto sem autoexaltação. Ainda nesse trecho da obra analisada, em contraposição à concepção de mundo de Cooper, temos a de Harlan, que, vindo de um tempo-natal em que a publicidade se fazia não só presente, mas era fértil, se põe a favor, para o bem de todos, de que as culturas, em que pesem as suas diferenças, sejam tolerantes umas com as outras, aceitando seus costumes e evitando conflitos. Em suma: Cooper e Harlen, em Sumário <<<<< 305 função de seus passados geracionais distintos, têm postura igualmente distinta em relação à publicidade no presente do tempo diegético. Mas e quanto ao futuro? De volta ao futuro do passado Seguimos, agora, buscando por meio de O fim da eternidade, investigar as temporalidades acionadas em campanhas publicitárias. Selecionamos cinco exemplos com os quais pretendemos demonstrar como a publicidade se apropria não apenas do repertório contemporâneo, mas também de um imaginário e expectativa de futuro. Os filmes publicitários, sobretudo, e um e outro anúncio de mídia impressa dessas campanhas, compõem aqui o nosso corpus. Iniciamos com a campanha da fabricante norte-americana de underwear Jockey, que partiu da seguinte premissa para arregimentar a sua criação, assinada pela agência Droga5: “O que Buzz Aldrin pode fazer? Depende de sua underwear. Se o homem foi capaz no último século de atingir grandes feitos usando a marca Jockey, imagine agora com um produto que detém atributos de conforto e tecnologia”. Vejamos o texto padrão da campanha: Jockey apoiou lendas como o General Patton, Babe Ruth e Buzz Aldrin, que foi para a Lua. Mas imagine se Buzz tivesse usado a Jockey underwear de hoje. Ele teria colocado a bandeira em todos os planetas, conquistando para a América toda a Via Láctea (tradução nossa). A proposta da campanha era homenagear os 138 anos de existência da fabricante, mas, ao mesmo tempo, mostrar para o público contemporâneo que a marca é jovem e descolada. Por essa razão, foi intitulada “Supporting Greatness”, com três personagens importantes da história estadunidense: Buzz Aldrin, Sumário <<<<< 306 astronauta que pisou na Lua; General George Patton, que comandou o exército norte-americano na Segunda Guerra Mundial; e o jogador de beisebol Babe Ruth, considerado o melhor de todos os tempos por dominar bem as técnicas de arremesso e rebatida do esporte (figuras 1, 2 e 3). Figuras 1, 2 e 3 - Campanha “Supporting Greatness”, da Jockey International Inc. (2014) Fonte: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BPcPQG1uw6c. Acesso em: 4 abr. 2023. O principal filme da campanha faz uma espécie de viagem temporal, apresentando uma mescla do produto no passado, como uma reconstrução histórica. Em uma rápida viagem visual, chega aos nossos tempos e indica uma tendência para o futuro, demonstrando que, agora, é a vez do consumidor da marca conquistar o mundo com grandes feitos. O comercial é narrado em tom patriótico, no estilo da TV dos anos de 1960. Nas peças de mídia impressa, a marca reforça os outros dois personagens escolhidos. No texto que explora a trajetória do General Patton, a narrativa diz o seguinte: “Enquanto Patton estava ganhando no front ocidental, Jockey assegurava o front Sumário <<<<< 307 Sul” (tradução nossa). Já o anúncio que destaca o jogador Babe Ruth traz o seguinte argumento de qualidade: “A resistente Jockey underwear de Babe Ruth suportou sua grandeza. A rebatida também ajudou. Mas não vendemos rebatidas (tradução nossa). Os materiais publicitários apresentam ainda os atributos tecnológicos de conforto, resistência e durabilidade dos produtos por meio de gráficos que indicam o processo de fabricação e tecelagem dos fios. Podemos afirmar que são “anúncios viajantes no tempo”, fundindo o esforço de divulgação do produto atual, com vistas a vendas futuras, por meio de personalidades históricas do passado norte-americano. No segundo caso, da campanha “Puma:L.I.F.T”, temos uma mescla temporal materializada nas imagens. A agência Droga5 a criou para o lançamento do tênis com “Lite Injected Foam Technology”, elemento de seu processo de produção que torna o calçado ultraleve. As peças contemplam um comercial de TV e uma série de anúncios impressos que reproduzem cenas do filme, como podemos ver nas figuras 4 e 5, a seguir: Figuras 4 e 5 - Campanha da Puma para promover o modelo L.I.F.T (2009) Fonte: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TM8DA830xng. Acesso em: 4 abr. 2023. Sumário <<<<< 308 Os atributos de leveza do calçado são demonstrados por meio de uma espécie de viagem veloz entre lugares, feita em um simples salto. O filme mostra essa trajetória com mudanças rápidas de cenários, projetados em uma sala branca e neutra. Presente, passado e futuro se mesclam nas cenas, demonstrando as diversas possibilidades de vida de quem usa o tênis, não importando a época. É essencial ressaltar que o filme utiliza uma tecnologia em que as roupas dos atores são feitas de luzes; então, há uma imensa variação de estilos e épocas. Eles estão usando roupas de baixo de cores neutras e as projeções são sincronizadas de tal forma nos corpos dos modelos que são modificadas quase que de forma imperceptível. A única peça real é o tênis, que pesa apenas 173 gramas, característica destacada no texto do anúncio, assim como o nome da tecnologia de fabricação empregada. O terceiro exemplo que selecionamos é The Boy and the Piano, comercial de Natal de John Lewis & Partners, cadeia de lojas de varejo fundada em Londres, cuja publicidade nessa época do ano – não por acaso o Natal é a data promocional mais importante do calendário de vendas desse segmento – se tornou célebre pelo seu investimento em histórias comoventes. O filme em questão tangibiliza a ideia de que um presente (implicitamente, um presente comprado nessa loja) pode ser mais que um presente, mudando para sempre a vida de uma pessoa, ao apresentar o músico inglês Elton John, ícone da música pop mundial, tocando seu piano e cantando um de seus mais famosos hits, Your Song, em tempo reverso. Inicialmente, ele mesmo, com mais de 70 anos, aparece em cena em um de seus últimos shows em estádios grandiosos, e, em seguida, representado evidentemente por vários atores, em momentos distintos de sua carreira, interpretando a mesma canção em espaços abertos, pequenos pubs (figura 6) e até Sumário <<<<< 309 em show de calouros em escola quando adolescente, culminando, no final da narrativa, com ele, então menino, ganhando de Natal de seus pais o primeiro piano de sua vida (figura 7). Figuras 6 e 7 - Comercial The Boy and the Piano, da John Lewis & Partners (2018) Disponível em: Watch the 2018 John Lewis Christmas advert based on Elton John’s life story | The Sun. Acesso em: 4 abr. 2023. Para contar a trajetória do músico, o filme publicitário, criado pela agência Adam&eveDDB, volta no tempo, como se o rebobinasse, partindo da condição do artista na contemporaneidade, já consagrado, e retornando ao seu ponto inicial, quando a paixão pelo piano, que lhe é dado de presente numa noite de Natal de sua distante infância, irrompe. Embora Elton John tenha reconhecimento mundial, o comercial, conforme os executivos envolvidos na inciativa, é uma homenagem da loja inglesa para um artista inglês. É uma storytelling endereçada primeiramente ao público britânico, para o qual as unidades das lojas John Lewis & Partners oferecem grande variedade de produtos para o seu dia a dia, ou para o ato de presentear, e cuja progressão do tempo se dá do futuro para o pretérito. Não por coincidência, semanas depois da veiculação dessa “homenagem”, uma biografia filmada Sumário <<<<< 310 de Elton John, Rocketman, produzida pela Paramount Pictures, foi lançada mundialmente nos cinemas. Nosso quarto exemplo é o clássico filme publicitário A Semana, da revista Época, criado pela agência W/Brasil e vencedor do Grand Prix do Clio, prêmio inédito, e uma única vez, até o momento, angariado pela publicidade brasileira. Nele, temos uma sequência de imagens de seres viventes em geral e os seus pertences (figuras 8 e 9), e um letreiro definindo o que é uma semana em sua existência – posto que a Época consistia em um veículo informativo com periodicidade semanal, ponto diferencial enfatizado no comercial. Figuras 8 e 9 - Comercial A Semana, da Revista Época (2000) Fonte: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DzEQteFCcQM. Acesso em: 4 abr. 2023. Sumário <<<<< 311 O texto enunciado em off que acompanha, quase como uma legenda, a sucessão de fotos em preto e branco do filme, esclarece a medida do tempo para cada “personagem” presente no comercial: Para um preso, menos 7 dias Para um doente, mais 7 dias Para os felizes, 7 motivos Para os tristes, 7 remédios Para os ricos, 7 jantares Para os pobres, 7 fomes Para a esperança, 7 novas manhãs Para a insônia, 7 longas noites Para os sozinhos, 7 chances Para os ausentes, 7 culpas Para um cachorro, 49 dias Para uma mosca, 7 gerações Para os empresários, 25% do mês Para os economistas, 0,019 do ano Para o pessimista, 7 riscos Para o otimista, 7 oportunidades Para a terra, 7 voltas Para o pescador, 7 partidas Para cumprir o prazo, pouco Para criar o mundo, o suficiente Para uma gripe, a cura Para uma rosa, a morte Para a história, nada Para Época, tudo O tempo (uma semana), na “tese” assumida nessa criação publicitária, e para ficarmos apenas em algumas de suas formulações apresentadas, é uma progressão a favor do futuro (menos 7 dias, para o preso; 7 chances para os sozinhos etc.), ou um peso a mais de passado (mais 7 dias, para o doente; 25% do mês para Sumário <<<<< 312 os empresários etc.), ou mesmo a certeza do presente (para os pobres, 7 fomes; 7 culpas para os ausentes etc.). Em consonância com a trama de O fim da eternidade, há uma concepção de mundo e expectativa de dias vindouros dos personagens do comercial A Semana distintas entre si, em função de sua condição existencial, assim como ocorre no livro com os “eternos” e os “primitivos”, estes últimos associados à humanidade do século XX, como já dito, uma era na qual a publicidade tinha o seu modo de ser, diferente do atual. Por fim, o quinto exemplo, e o mais distante no passado para nós, é o célebre comercial Archaeology, da Pepsi Cola, no qual um professor de arqueologia do século XXI leva um grupo de alunos para um campo de escavação onde foi achada uma casa do século XX (figura 10). Numa espécie de aula, ele mostra os objetos ali encontrados, entre os quais uma guitarra (figura 11) e o mais relevante da história: uma lata de Coca-Cola. Indagado por um estudante sobre o que era aquele objeto, o professor responde que era algo existente no século anterior e que se extinguiu do mundo. Esse filme publicitário dá sequência a uma estratégia comunicacional da Pepsi Cola que se tornou tradição da marca – comerciais de natureza comparativa nos quais, em oposição à publicidade de autoelogio de suas vantagens, como apontada na ficção de Asimov, a empresa aponta as desvantagens de seu principal concorrente: a Coca-Cola. Temos, portanto, um posicionamento de um produto, pressagiando um porvir no qual não haveria outro capaz de ombreá-lo em relação ao domínio do mercado, sequer mesmo, nesse caso, com condições de existir. Sumário <<<<< 313 Figuras 10 e 11 - Comercial Archaeology, da Pepsi Cola (1986) Fonte: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hyA-bQlzD64. Acesso em: 4 abr. 2023. O vídeo é caudatário do início do processo da globalização econômica e cultural, em que as empresas multinacionais passaram a disputar market share não de forma local ou regional, mas pelos países mundo afora. A Publicidade: o eterno no efêmero Em 2020, foram feitas diversas homenagens a Isaac Asimov por conta do centenário de seu nascimento. Como enfatizado, aproveitamos o enredo de seu livro O fim da eternidade, no qual a publicidade foi ponto de partida para a escrita da obra e que, também, se espraiou em seu enredo, sendo criticada por um dos personagens, para abordar, neste capítulo, questões relacionadas ao repertório cultural, posto em diálogo pelos criadores das peças publicitárias e o público para a qual são direcionadas, além da visão de futuro como temporalidade que carrega em seu ventre o modo de ver da época em que foram elaboradas. Curiosamente, a imagem do cogumelo atômico, determinante para a escrita da história de Asimov, avulta numa campanha do produto Post-it, da marca 3M, como lembrete do que os homens podem fazer de mal para si mesmos (figura 12), ou mesmo em prol, Sumário <<<<< 314 senão de todos, ao menos de alguns, como no caso do trabalho de Madre Teresa de Calcutá (figura 13). Figuras 12 e 13 - Anúncios da Campanha de Post-it, 3M Fonte: Imagens extraídas do livro Do caos à criação publicitária (Ver referências). Se Asimov, em seus livros e nas propostas que, nos anos 1960 e 1980, antevia para o porvir – o nosso atual momento, ano 2023 –, chegou a inúmeros acertos com exatidão, como frisamos anteriormente, também colecionou erros, como usinas elétricas baseadas em fusão nuclear, automóveis flutuantes por meio de jatos de ar e a colonização do espaço sideral no qual se instalariam indústrias terrestres, entre outras previsões não concretizadas.3 Em especial, para nós, a concepção da narrativa publicitária como um ardil explícito, autopromocional das marcas, que se encontra na obra de Asimov por nós retextualizada, manifesta, precisamente, o seu entendimento de décadas atrás, já que, na contemporaneidade, a publicidade ganhou discursividade mais sutil com novas configurações, como o branded content por meio de storytelling, a live experience, o product placement e demais “inovações”, assentadas não na prática de “engambelar”, como afirma Cooper, personagem de O fim da eternidade, mas na de 3 Conferir: Folha de S. Paulo, quinta-feira, 2 de janeiro de 2020, p. A15. Sumário <<<<< 315 seduzir – e, como aponta Lipovetsky (2000), não há sedução se não houver quem deseje ser seduzido. A ótica do escritor russo expressa na obra em questão comprova, mais uma vez, como, ao longo do tempo, a publicidade vem encontrando novas formas de se espalhar e manter a sua vitalidade, sempre com vistas no futuro – imediato ou remoto –, onde se concretizarão as vendas daquilo que divulga, driblando as previsões dos estudiosos que, com ideias primitivas a respeito dela e de seu porvir, desconsideram que o intuito publicitário almeja senão a eternidade, estar o maior tempo possível na vida dos consumidores. Referências ASIMOV, Isaac. O fim da eternidade. São Paulo: Aleph, 2015. E-book. AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma Antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994. BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2007. BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1972. BETTETINI, Gianfranco. La conversacion audiovisual: problemas de la anunciacíon fílmica y televisiva. Madrid: Catedra, 1996. CARRASCOZA, João Anzanello. Do caos à criação publicitária. São Paulo: Saraiva, 2008. CARRASCOZA, João Anzanello. Razão e sensibilidade no texto publicitário. Futura: São Paulo, 2004. CARRASCOZA, João Anzanello. Entrevista. Comunicação & Informação, 13 (1), 102-109, 2012. Sumário <<<<< 316 ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ECO, Umberto. Los limites de la interpretacion. Barcelona: Lumen, 1992. FREEDMAN, Carl. Conversations with Isaac Asimov. Mississippi: The University Press of Mississipi, 2005. LIPOVETSKY, Gilles. “Sedução, Publicidade e Pós-Modernidade”. Famecos, Porto Alegre, n. 12, jul. 2000. ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo. Um estudo antropológico da publicidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. Sumário <<<<< 317 PARTE 4: ESTÉTICA E CULTURA DA CONVERGÊNCIA: NARRATIVAS, CONECTIVIDADES E CORPOREIDADES Kitsch, propaganda política e a estética do bolsonarismo Rodrigo Cássio Oliveira1 A relação de regimes de governo, partidos ou ideologias políticas com uma estética particular é algo que pode ser verificado na história da cultura, persistindo como uma característica da nossa época. Desde o século XX, essa é uma discussão que perpassa tópicos tão diversos como o realismo socialista na União Soviética (Dobrenko; Jonsson-Skradol, 2018), o caráter espetaculoso da comunicação visual no fascismo italiano (Falasca–Zamponi, 1997), ou o brutalismo arquitetônico na China contemporânea (Bologna, 2019). A relevância de tais associações entre estética e política parece ser cada vez maior nas sociedades modernas, uma vez que a comunicação de ideias e a persuasão da opinião pública tornaram-se intensamente visuais e sensitivas, tendendo a um alto grau de engajamento emocional em detrimento da racionalidade discursiva. 1 Professor do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: rodrigocassio@ufg.br Se é bem verdade que o pathos sempre teve papel importante na experiência política das democracias, como o mostra a tradição dos estudos de retórica desde a Antiguidade Greco-Romana, também é verdade que o caráter retórico dos discursos que se confrontam no debate público tem se amplificado em países como o Brasil, onde o antagonismo político e a crise das instituições democráticas caminham juntos (Avelar, 2020; Castro; Rocha, 2021). Essa retórica tem sido marcada pela onipresença das imagens e por seu predomínio sobre os textos, evidenciando que a atenção individual está cada vez mais fragmentada e excitada, como se as relações sociais dependessem de uma produção incessante de estímulos e sensações a serem consumidos em rede (Türcke, 2010). No contexto da comunicação de massa, já era conhecido o limite do componente lógico-racional desde que Harold Lasswell teorizou a propaganda política de guerra e concluiu que um dos seus momentos mais importantes, para promover a aceitação de uma ideia, era sedimentar o ódio dos cidadãos ao inimigo (Lasswell, 1971). Entretanto, o século XXI aportou em um nível tão reduzido de demanda por racionalidade no debate público que os novos termos “pós-verdade” e “fake news” passaram a substituir a noção mais simples e objetiva de “mentira” – em que pese o alerta sobre o caráter problemático de tal vocabulário (Habgood-Coote, 2018). Neste cenário, propomos a hipótese de que a chegada de Jair Messias Bolsonaro à Presidência do Brasil, em 2018, acompanhou uma transformação significativa das referências estéticas que estão na base da produção de conteúdos que animam o debate político no país. Essa transformação, como vamos argumentar, foi responsável por trazer à tona o kitsch como elemento-chave para aquilo que se habitou chamar de “estética do bolsonarismo”. O kitsch se manifesta no entorno do presidente, inclusive em sua Sumário <<<<< 320 propaganda política – seja aquela produzida oficialmente, seja aquela que circula nas redes de apoiadores. Nesse texto, vamos comentar o sentido e as consequências dessa revalorização do kitsch para a compreensão da realidade política do Brasil atual. A estética do bolsonarismo: início do debate Desde o primeiro dia como presidente eleito, Jair Bolsonaro chamou atenção da crítica cultural pela maneira como desprezou a liturgia do cargo, adotando um estilo informal e orgulhosamente tosco. Essa dimensão “estética” da sua imagem pessoal o aproximou idealmente ao homem simples, de hábitos populares e gostos comuns, avesso a sofisticações e ao cosmopolitismo. Curiosamente, no entanto, não faltaram interpretações dedicadas a ver no estilo de Bolsonaro algo de original, que o aproximaria a performers ou a artistas. Para entrar nesse debate, nos reportamos a dois textos publicados no jornal Folha de São Paulo nos primeiros meses de 2020. Ao comentarem a maneira de Bolsonaro construir sua imagem pessoal, esses textos expuseram ideias provocativas sobre o que poderia ser a “estética do bolsonarismo”. No primeiro desses textos, em janeiro de 2020, Pollyana Quintella afirmou que “ninguém supera o próprio presidente quando o assunto é construir uma estética própria” (Quintella, 2020). A autora destaca a primeira entrevista coletiva do candidato eleito, em 2018, na qual os microfones dos jornalistas foram colocados em cima de uma prancha de surfe improvisada como mesa. Somada ao uso frequente de chinelos e às fotografias oficiais que mostram uma fatia de pão sendo regada com leite condensado, essa postura de Bolsonaro justificaria entendê-lo como um produtor de imagens por excelência: “O governo institui assim uma Sumário <<<<< 321 nova categoria, a de político como Artista com A maiúsculo” (Quintella, 2020). A diferença é que, em vez de oferecer novas possibilidades de mundo, como faz a arte, o presidente ofereceria apenas pastiche e perversão. As ideias de Quintella evoluíram com certa gravidade quando o artista Pedro França publicou, em fevereiro de 2020, um artigo intitulado “Intelectuais reagem com vício de classe à estética bolsonarista”. Em resposta direta ao texto de Quintella, França sustentou a tese de que “a estética bolsonarista ecoa o grande projeto das vanguardas modernas: dissolver as hierarquias entre coisas comuns e obras de arte e liberar os objetos da tirania do uso” (França, 2020). Para Pedro França, as ações de Jair Bolsonaro na presidência remeteriam ao urinol de Marcel Duchamp: um homem comum elevado à condição de presidente, assim como um objeto comum havia sido transformado em obra de arte pelo artista de vanguarda. Naturalmente, há ironia nessa comparação. Mas ela é também pretensiosa, na medida em que França a utiliza, em seu texto, para desenvolver uma crítica séria do modernismo no Brasil. Em sua perspectiva, Bolsonaro seria capaz de expressar a complexidade da cultura popular brasileira. Essa complexidade foi desde sempre almejada pela nossa arte moderna, que procurou assimilá-la e incorporá-la aos princípios inventivos da vanguarda – são os leitmotive do samba, do cangaço, da favela etc. Para horror dos intelectuais a quem Pedro França se volta com sarcasmo, Bolsonaro seria o povo real que os modernistas edulcoravam. Se a imagem desse povo incomoda é porque os intelectuais a estariam observando desde os seus vícios aristocráticos, dos seus privilégios de classe, da sua condição de elite. O ponto central da provocação de Pedro França é que não existiria, propriamente, Sumário <<<<< 322 uma estética bolsonarista, pois esta seria apenas a continuidade do projeto modernista. O Brasil de Jair Bolsonaro seria uma espécie de versão realista do que significa o povo no poder. Há quase um século, a crítica ao modernismo acusa os artistas modernos de terem imposto uma arte e um gosto exigentes ao público, restrita aos iniciados nas vanguardas europeias, e, por isso, de não terem sido capazes de se dirigirem ao povo brasileiro realmente existente. Ao trazer de volta essa crítica há muito conhecida, Pedro França conclui que o destino dos aristocratas que se opõem ao neopopulismo de Bolsonaro é “perecerem elegantes e mofados” (França, 2020). Nosso ponto de vista neste artigo diverge da perspectiva de Pedro França e a vê como reflexo de uma campanha antimodernista empreendida hoje tanto pela arte contemporânea como pelas direitas populistas que estão em voga no mundo – uma curiosa identificação entre grupos que parecem ser, em princípio, antípodas e inconciliáveis. Por um lado, a nova direita ataca o modernismo em nome de uma necessidade retórica de resgatar e preservar o ideal clássico de beleza estética como princípio criativo absoluto.2 Por outro lado, as políticas identitárias da nova esquerda expelem o modernismo dos espaços culturais que elas passaram a dominar, acusando os artistas modernos de terem sido cúmplices ou até mesmo agentes de injustiças sociais contra as minorias que suas obras representaram. 3 Assim, estamos cada vez mais distantes de ideias como a devoração de Oswald de Andrade ou o tropical-surrealismo de Glauber Rocha, pois as 2 Pode ser visto, por exemplo, no documentário O Fim da Beleza, da produtora Brasil Paralelo, que é idelogicamente alinhada ao bolsonarismo. Disponível em: https://youtu.be/BIvpg-QKJ_o. Acesso em: 8 ago. 2022. 3 Sobre o sentido antimoderno da política identitária, vale a pena conferir o ótimo trabalho do politólogo Mark Lilla, que tem analisado com profundidade a atuação dessa vertente da esquerda nas democracias atuais (Lilla, 2017, 2018). Sumário <<<<< 323 misturas e mestiçagens modernistas não interessam a nenhum dos protagonistas da grande intriga política do presente, sendo combatidas tanto pelo tradicionalismo da nova direita como pelo puritanismo moral da esquerda identitária.4 Além disso, há traços ideológicos elementares em Jair Bolsonaro que evidenciam a inadequação de considerá-lo um herdeiro do modernismo. A relação fixa e subserviente com os EUA (mais particularmente com Donald Trump), a ênfase em temas morais a partir do enlace rígido com grupos conservadores religiosos, o aceno a movimentos políticos há pouco tidos por suplantados (como monarquistas e integralistas), a revisão histórica do significado da ditadura militar, a exaltação do militarismo, a afronta à liberdade de imprensa e à liberdade de cátedra nas universidades – nada disso tem relação com as ideias que alimentaram o modernismo brasileiro. Pelo contrário, como fenômeno kitsch, o bolsonarismo segue uma via alternativa à do modernismo, assim como, no século passado, o consumo popular de arte kitsch foi um fenômeno concorrente ao das vanguardas, instalando-se por meio de um conflito com a arte moderna – é sobre essa tese que argumentaremos a seguir. O kitsch como conceito-chave para entender o bolsonarismo Para dar conta da chamada “estética bolsonarista”, de maneira propositiva, acreditamos que é preciso revisitar o conceito de kitsch. Para além de tratarem da dimensão estética de objetos sensíveis, as teorias do kitsch costumam abordar as dimensões 4 Pode ser visto, por exemplo, na afirmação de Rodney William sobre como a Bossa Nova teria sido uma forma de violência que se apropriou, de maneira elitista, dos elementos culturais fundantes do samba. O antropólogo considera Antônio Carlos Jobim racista e eugenista por ter adaptado as características rítmicas do samba autêntico à leveza das gravações da bossa em estúdio (William, 2019). Ver capítulo “‘Pode ou não Pode”, seção “Samba e Bossa Nova” do livro citado. Sumário <<<<< 324 sociológica e epistemológica do conceito, e estas também devem ser revisitadas para abordarmos o bolsonarismo. A dimensão sociológica trata do que ocorre na relação entre os objetos kitsch, com seu aparecimento tardio na história da arte, e os grupos sociais que os desejam, consomem e exibem. A dimensão epistemológica, por sua vez, articula o conhecimento teórico sobre o kitsch às noções de verdade e autenticidade, sendo motivada pela própria origem etimológica do termo na língua alemã.5 O conceito de kitsch nos permite mostrar que, ao contrário do que afirmou Pollyana Quintella, a estética do bolsonarismo não tem grandes novidades. Ao mesmo tempo, ao contrário do que afirmou Pedro França, o conceito de kitsch mostra que a estética do bolsonarismo não remonta à arte moderna, mas sim a uma forma estética que historicamente rivalizou com a sensibilidade dos modernistas. Essa rivalidade é muito bem explicada por José Guilherme Merquior em um ensaio sobre o kitsch escrito em 1973, em que a “vida dupla” das vanguardas é comentada pelo autor. O kitsch e as vanguardas seriam, no final das contas, irmãos inimigos: “por um lado, a vanguarda é plena combatividade, firme oposição ao kitsch e seus clichês; por outro lado, o seu esteticismo degenera com frequência em soluções digestivas, dominadas pelos valores do bonito ou do sentimental” (Merquior, 2015, p. 81). Para analisar as propriedades do kitsch nas performances de Jair Bolsonaro, começamos por um dos exemplos apontados por Pedro França em seu texto na Folha, e que talvez seja um marco inaugural da discussão que estamos fazendo: a primeira entrevista do presidente eleito, com a prancha de surfe improvisada 5 Com efeito, o termo alemão verkitschen remete à falsidade, ao engano, à fraude, à falsificação. Sumário <<<<< 325 como mesa (figura 1). França comenta a cena do seguinte modo: “Rejeito tudo neste governo, mas gostei da escultura. Eu e outros artistas poderíamos tê-la feito” (França, 2020). Figura 1 - Bolsonaro eleito, em sua primeira entrevista Fonte: Twitter/Veja SP (reprodução). Não há dúvidas de que vários artistas atuais poderiam seguir um princípio semelhante de composição escultural, colocando pranchas de surfe no lugar de pedestais e arruinando com a expectativa de solenidade do pronunciamento de um presidente. Não há dúvidas, também, de que este seria um procedimento típico do kitsch, que tem seu lugar na arte contemporânea – não apenas nos muito conhecidos Jeff Koons ou Vladimir Tretchikoff, mas também, no Brasil, em Nelson Leirner, com as divertidas assimilações de ícones da cultura de massa, ou Aldemir Martins, que transformou os alegres gatinhos das versões populares do kitsch em um motivo exuberante de arte naif. No decorrer das últimas Sumário <<<<< 326 décadas, o kitsch foi muito além das miniaturas colecionáveis de gatos coloridos ou dos famosos anões de jardim, tendo penetrado na arte séria e influenciando os artistas contemporâneos. O que queremos dizer é que, para completar a hipótese de que um verdadeiro artista poderia responder por aquela prancha de surfe improvisada, seria preciso vê-la como um exemplo específico do kitsch, em vez de um procedimento genérico da arte moderna. O ajuste da interpretação é indispensável, pois nos ajuda a sermos rigorosos na aplicação dos conceitos – e, assim, a imaginarmos corretamente quem poderia ser este hipotético artista. Seria ele um Duchamp? Não é qualquer ready-made duchampiano que poderia ser nomeado kitsch, e a obra Fonte, citada por França em seu texto, não está entre as primeiras da lista para isso. Intervenções como L.H.O.O.Q., de 1919, caracterizam melhor a ocorrência do kitsch no artista francês, pela inserção de elementos inadequados na composição de um cartão-postal que representa a Gioconda, de Leonardo da Vinci. Nada mais típico do kitsch que a reprodução de obras clássicas ultrafamosas nos mais diversos suportes, de travesseiros a camisetas, passando por chaveiros e porta-objetos, e daí ao infinito que caiba em uma loja de souvenirs. Estamos falando, aqui, da regra de composição que Abraham Moles definiu, em seu excelente livro O Kitsch: a arte da felicidade, como o princípio de inadequação: O kitsch pega sempre um pouco pela rama, substitui o puro pelo impuro, mesmo quando descreve a pureza. [...] Gigantismo ou miniaturização do objeto: efígie de político sobre rolhas de garrafas, banho de ouro nos últimos metros de uma estação de ferro, cabeça de Jesus em formato Afnor A7 como marcador de livro de orações etc. O objeto Sumário <<<<< 327 está sempre, e ao mesmo tempo, bem e mal situado: “bem”, ao nível da realização cuidada e acabada, “mal” no sentido de que a concepção está sempre amplamente distorcida (Moles, 1972, p. 71). Embora semelhante a certos procedimentos da vanguarda, portanto, o princípio kitsch de inadequação tem uma razão particular no conjunto de elementos que formam o estilo. Diferente do humour noir ou do nonsense surrealista, que cria associações absurdas de objetos para estimular o riso, a inadequação do kitsch amortece o poder provocativo das composições e zela pela permanência de um estado de coisas supostamente natural, em que os homens vivem mergulhados na vida cotidiana, sem nenhuma grande exigência para demovê-los dali. Por isso, a afronta inerente ao gesto duchampiano de colocar uma peça de banheiro dentro da galeria (antes que isso se tornasse banal, graças a ele mesmo) não tem correspondência no kitsch, cuja opção pelo inadequado ocorre em nome do conforto preguiçoso, da espontaneidade rotineira, da predileção pelas experiências comezinhas – ou seja, pelo feijão com arroz, ou pão com leite condensado, de todos os dias. O kitsch se mantém sempre longe dos rituais circunspectos da política tradicional ou da diplomacia, e é precisamente isso que observamos nas encenações públicas do presidente Jair Bolsonaro. O compromisso do kitsch com a celebração do cotidiano, de fato, é ressaltado por estudos mais recentes que se esforçaram por reenquadrá-lo como um estilo normal da história da arte, em confronto com autores clássicos que o compreendiam como uma espécie de falso estilo, já que não interessado em ser sério. É o que encontramos, por exemplo, na pesquisa de Sam Binkley sobre o kitsch como um sistema repetitivo: Sumário <<<<< 328 É precisamente a debilidade humana, a aderência a códigos repetitivos, exposta na nossa conduta diária, o que nos une a todos; e é precisamente essa imagem da vida cotidiana, como algo que perdoa eternamente a estupidez humana, que faz o triunfo do kitsch sobre a comédia, a tragédia e a aspiração cósmica: tudo retorna para a fábrica repetitiva da vida de todos os dias (Binkley, 2000, p. 144, tradução nossa). Essa cotidianidade é notória na construção da imagem pública de Jair Bolsonaro como líder populista, sendo também um dos elementos kitsch mais marcantes da sua estética. Ela se articula ao uso intensivo das mídias sociais para a manutenção da rede de apoiadores que está sempre em conflito com a mídia profissional, assim como reforça a identidade do presidente como um homem rude por ser simples, e grosseiro por ser sincero. Nesse passo, o kitsch bolsonarista acaba sendo responsável por abrandar o peso das trapalhadas governamentais e das mentiras que jornalistas e empresas de fact check revelam sobre os discursos presidenciais. O kitsch aclimata junto aos eleitores, em um ambiente permissivo e de grande cumplicidade, os conflitos vividos externamente pelo presidente. Quando Bolsonaro estabeleceu as suas lives semanais como o canal preferido de comunicação com os eleitores, uma mise en scène kitsch se organizou a partir do princípio de inadequação. Tudo nas lives foge aos protocolos de comunicação profissional das autoridades de alto nível, ao mesmo tempo que tudo soa familiar e imperturbável na rotina de transmissões no Facebook. Em uma live de junho de 2020, em resposta às cobranças de empatia para com as vítimas de Covid-19 no país, Bolsonaro convidou Gilson Machado, presidente da Embratur e sanfoneiro ocasional, para interpretar Sumário <<<<< 329 Ave Maria no fundo do plano (figura 2). Não faz sentido ver a mesa torta, a iluminação ruim e a indelicadeza dessa homenagem como algum tipo de amadorismo. Elas representam o bom acabamento de um espetáculo com propositado mau gosto, que revestiu com o kitsch a comoção nacional pelos mortos da pandemia. Figura 2 - Live com homenagem de sanfoneiro às vítimas de Covid-19 no Brasil Fonte: Facebook (print). O kitsch pode ser visto também como uma estrutura mental, uma forma de imaginar a realidade. Nesse sentido, a adoção do estilo predispõe os apoiadores de Bolsonaro a confiarem nele. Como explica Hermann Broch, em sua tipologia do Kitsch-Mensch, o kitsch é um assunto diretamente relacionado ao comportamento humano, e, mais ainda, a um tipo particular de disposição de espírito (Broch, 1973). Essa perspectiva vê no kitsch um fundamental desejo de mentira, que legitima e irradia as falsificações dos seus objetos em um estilo enganador. É nessa ideia de falsificação formal que se funda a dimensão epistemológica que torna o kitsch tão afeito a um mundo construído Sumário <<<<< 330 por mentiras – ou, como batizado contemporaneamente, de fake news. Essa epistemologia do kitsch pode ser aprofundada quando investimos na sua comparação com a tragédia, tema igualmente abordado por Sam Binkley. Na tragédia, a jornada do herói conduz à revelação de uma verdade inevitável que assinala a complexidade da existência humana, ao mesmo tempo que demonstra o controle limitado que os seres humanos têm sobre o próprio destino. O kitsch funciona de modo muito diferente. Por que deveríamos lidar com questões universais e tão difíceis se podemos ver tudo de maneira mais simples? De modo semelhante ao que ocorre no melodrama, o kitsch institui uma representação da realidade sobrecarregada de sentimentalismo. Nessa representação, os conflitos são desativados com soluções fáceis, por vezes alcançadas com a intervenção divina.6 Não há lugar para as tragédias no bolsonarismo. A morte de 400 mil brasileiros em decorrência da Covid-19 (na data de redação deste texto) não foi suficiente para mudar a postura omissa do presidente frente à crise de saúde pública. Pelo contrário, como é amplamente sabido, Bolsonaro continuou a mentir sobre o uso da hidroxicloroquina como um remédio milagroso, ainda quando a ciência mostrava resultados incompatíveis com o seu discurso. O sentimentalismo kitsch dá acesso a outro elemento marcante da estética bolsonarista, que evidencia o seu caráter kitsch: a degeneração do nacionalismo romântico em um tipo caricato e lacrimejante de patriotismo. Com efeito, o sentimento de amor à 6 A relação com o melodrama reforça a compreensão do kitsch como uma forma de imaginário, adotada por Peter Brooks (1996) em seu notável trabalho sobre o discurso melodramático em teoria da literatura. No Brasil, por influência da obra de Ismail Xavier, o conceito de melodrama foi bastante divulgado nos estudos de cinema, sendo diferenciado de outros gêneros, como o realismo e a tragédia (Xavier, 2003). Sumário <<<<< 331 pátria sempre esteve conectado à arte kitsch, manifestando-se no uso regular de bandeiras ou outros símbolos nacionais nos produtos de consumo de massa. Hermann Broch contribuiu para a percepção desse sentimento como uma das influências do romantismo popular do século XIX sobre a formação do kitsch. Para o autor austríaco, o kitsch pode até ser definido como um produto específico do movimento romântico que havia chegado ao seu esgotamento criativo: “nós poderíamos dizer que o Romantismo é a mãe do kitsch, e que há momentos em que a criança se torna tão parecida com a mãe que não sabemos diferenciá-los” (Broch, 1973, p. 62, tradução nossa). A natureza, o amor e a pátria são três conceitos fundamentais que os românticos exploravam em suas investigações da interioridade humana, sondando questões universais sobre a identidade dos indivíduos e das nações. Na versão kitsch da estética romântica, encontramos uma espécie de prática consolatória sobre os três conceitos. Essa prática descarta o elemento-chave da inquietação interior, que motivava o romantismo original a se aprofundar sobre tais conceitos em uma viagem interior marcada pela reflexão e a dúvida. Andrea Mecacci observou atentamente este processo em seu ótimo livro sobre o kitsch: “o Romantismo forneceu uma linguagem formal que o kitsch transformou e, ao cristalizá-la, fez dos arquétipos da sensibilidade romântica um estereótipo, um lugar-comum” (Mecacci, 2014, p. 30, tradução nossa). O eixo conceitual do patriotismo, evidentemente, é o mais notório nas incursões do bolsonarismo pela estética kitsch. Não faltam exemplos sobre isso na propaganda política de apoio ao presidente Bolsonaro que circula nas redes sociais. Uma das fontes mais interessantes de material, nesse sentido, são os memes e flyers de propaganda em grupos fechados de bolsonaristas. Esses Sumário <<<<< 332 grupos tiveram um papel essencial na disputa eleitoral de 2018, operando como centros irradiadores de conteúdo para o encorajamento do voto em Jair Bolsonaro (Resende et al., 2019). Figuras 3, 4, 5 e 6 - Propaganda difundida em grupos de apoiadores de Bolsonaro em 7 de setembro de 2019 (Dia da Independência do Brasil) Fonte: Monitor de WhatsApp. Sumário <<<<< 333 Na seleção das figuras de 3 a 6, observamos o tratamento kitsch do tema do amor à pátria, em associação direta com motivos religiosos e políticos. As figuras foram extraídas de grupos de apoiadores de Bolsonaro que continuaram ativos depois das eleições de 2018, por meio da ferramenta Monitor de Whatsapp, desenvolvida pela Universidade Federal de Minas Gerais. As figuras estão entre as mais compartilhadas nesses grupos em 7 de setembro de 2019, o Dia da Independência do Brasil.7 A percepção de que alguma coisa está fora de lugar, como explicado por Moles, é responsável pela atribuição de mau gosto às composições visuais do kitsch. O objeto está sempre “bem e mal situado”, como o botão de rosa que decora uma mensagem com a bandeira do Brasil ao fundo (figura 6), ou uma montagem artificial que mostra o Cristo Redentor tomando uma bandeira nas mãos (figura 4). O nacionalismo kitsch da estética bolsonarista não se limita ao material de propaganda do WhatsApp. Ele se expressa também nas performances do próprio presidente e de membros superiores do seu governo, bem como de lideranças empresariais e políticas que estão na base de apoio a Jair Bolsonaro. Essa irradiação do kitsch é certamente uma das principais evidências a favor da tese de que o bolsonarismo se associa à forma estética do kitsch, de modo semelhante ao que ocorre entre outras ideologias políticas e formas estéticas citadas no início deste texto. Um caso notável é o do empresário bolsonarista Luciano Hang, proprietário das Lojas Havan, que incorporou o patriotismo na publicidade da sua rede de varejo e passou a definir-se como um empresário-ativista (figura 7). As campanhas da Havan dialogam frequentemente com os eleitores de Jair Bolsonaro e fazem 7 Agradecemos ao pesquisador Fabrício Benevenuto por ter facultado o acesso ao sistema de monitoramento, coordenado por ele no Departamento de Ciências da Computação da UFMG, de modo a viabilizar a elaboração deste capítulo. Sumário <<<<< 334 menções diretas ao cenário político brasileiro. Quando subiu ao púlpito da Câmara para discursar com um paletó que reproduzia a bandeira do Brasil, o deputado federal Bibo Nunes também deu um bom exemplo de como o kitsch pode ser assimilado pelos apoiadores de Jair Bolsonaro (figura 8). Figuras 7 e 8 - O empresário Luciano Hang e o deputado Bibo Nunes Fonte: Google Imagens (reprodução). A publicidade das Lojas Havan é um objeto de estudo formidável para o tema de que estamos tratando, e poderia ser analisada à parte. Trata-se de uma marca cuja identidade visual é explicitamente kitsch. As lojas físicas da rede possuem uma arquitetura que remete à Casa Branca, sede do governo americano em Washington, e os estacionamentos são decorados com gigantescas estátuas que reproduzem a Estátua da Liberdade de Nova York. A identidade da marca, portanto, é fortemente marcada pela falsificação formal e pela tendência a reproduzir objetos icônicos de uma cultura nacional com dimensões distorcidas. Por imitar símbolos dos EUA, e, especialmente, por fazer isso de maneira kitsch, a Havan explicita a sua associação ao governo Bolsonaro, o que é explorado na publicidade da empresa, como demonstramos em artigo recente apresentado no encontro anual da Compós (Oliveira, 2020). Sumário <<<<< 335 Umberto Eco (2006, p. 71) afirmava que o kitsch é uma “comunicação que tende à provocação do efeito”. Isso significa que o falseamento kitsch tem em vista a conservação do sentido original da experiência estética, de modo que o objeto já vem “sentido”, isto é, ele instrui o consumidor sobre o modo certo pelo qual este deve senti-lo. O efeito estético pré-definido, assim, facilita as imitações burlescas de estilos consagrados da história da arte, porque os imitadores precisam reter apenas o padrão já conhecido da comunicação estética desses estilos, e assim os reproduzem sem grandes dificuldades. O resultado dessas operações é kitsch. Elas vinculam os criadores e os receptores dos objetos estéticos em torno do sentimento original imitado, sem que haja na experiência com o objeto qualquer originalidade. O bolsonarismo produziu alguns exemplos muito impressionantes do que descrevemos acima. Um deles, de janeiro de 2020, é o vídeo com paráfrases do nazista Joseph Goebbels, que culminou na demissão do secretário de cultura Roberto Alvim (Poder 360, 2020). Outro exemplo é o vídeo floreado de nacionalismo romântico que o secretário sucessor Mário Frias protagonizou em setembro do mesmo ano (SECOMVC, 2020). Ambos os vídeos são exemplos flagrantes do kitsch bolsonarista e podem ser assistidos como ilustrações de parte relevante do que discutimos neste texto. Considerações finais O debate violento nas redes sociais, em posts públicos e privados ou em grupos temáticos de interação – como no aplicativo WhatsApp – intensificou a dimensão não verbal da comunicação política no Brasil contemporâneo. A própria associação de uma estética particular à identidade de um grupo político estabelece valores compartilhados, visões de mundo e vínculos emocionais Sumário <<<<< 336 que orientam a disposição dos indivíduos frente às questões políticas reais. Por isso, a dimensão estética da comunicação política do governo Jair Bolsonaro, sendo não verbal e não racional, é tão importante. A partir da sua análise, podemos refletir sobre a deterioração da racionalidade na política brasileira. Ela fortalece antagonismos, polarizações e extremismos, transferindo para o campo dos sentimentos as tomadas de decisão política dos eleitores. Quando nos referimos a uma sociologia e a uma epistemologia do kitsch, o fizemos para sublinhar que a chamada estética bolsonarista pode ser analisada epistemologicamente e sociologicamente ao mesmo tempo que suas características estéticas são explicadas. Na seção anterior, ressaltamos a dimensão epistemológica. A seguir, a título de conclusão, tratamos melhor da dimensão sociológica do assunto. Para tanto, recorremos à contribuição fundamental de Clement Greenberg para os estudos sobre o kitsch, exposta no famoso ensaio Vanguarda e Kitsch, de 1939. Nesse texto, o crítico norte-americano comenta a oposição das duas tendências proeminentes da produção cultural de meados do século XX. Para Greenberg, o kitsch é a retaguarda que se apresenta como alternativa ao apuramento da sensibilidade estética promovido pelas vanguardas. A arte moderna se empenhou em imitar o próprio ato de imitar, caminhando para graus de abstração cada vez maiores. Assim, os artistas modernos passaram a criar arte da própria arte, tomando o próprio fazer artístico como tema geral de suas obras. Esse passo categórico para a arte do século passado foi um risco assumido pelos artistas, que mantinham relação ambígua com os representantes do poder econômico, cujos valores estéticos eram demasiado conservadores para as inovações pretendidas pela arte moderna. Por um lado, os artistas se esforçavam para Sumário <<<<< 337 romper com tais valores. Por outro lado, a dependência financeira dos patrocinadores endinheirados impunha aos artistas o risco de perder as condições ideais para criar as obras de arte. Segundo Greenberg, o kitsch teria surgido de dentro dessa contradição, como uma mercadoria alheia ao cultivo do gosto e ao aprimoramento estético. A industrialização intensiva e o êxodo rural que formaram as grandes metrópoles criaram a realidade sociológica que viu o kitsch despontar como objeto de consumo. O kitsch foi a solução encontrada pelas sociedades industriais para lidar com as novas demandas de um tipo de classe média atraída pela modernidade urbana e desejosa de distinção social, mas que era incapaz de acessar as vanguardas por não ter a formação cultural necessária para isso: A precondição para o kitsch, uma condição sem a qual ele seria impossível, é a completa disponibilidade de uma tradição cultural plenamente amadurecida, de cujas descobertas, aquisições e autocomplacência aperfeiçoada o kitsch pode tirar vantagem para seus próprios fins. Ele empresta dela mecanismos, truques, estratagemas, práticas, temas, converte-os em um sistema e descarta o resto. Ele extrai seu sangue vital, por assim dizer, dessa reserva de experiência acumulada (Greenberg, 2013, p. 34). Greenberg expõe acima que a falsificação e o engano do kitsch têm origem certa e finalidade conhecida: satisfazer, na aparência do consumo, o interesse de uma camada social em elevar-se culturalmente. Podemos notar esse mecanismo em pleno vigor nos condomínios de luxo brasileiros batizados com nomes de cidades europeias, ou no estrelato comercial de Romero Britto, artista que dissolve o antirrealismo figurativo das vanguardas, parti- Sumário <<<<< 338 cularmente da pop art, em uma infinidade de peças decorativas kitsch com alto valor comercial e baixo valor artístico. A experiência acumulada que Greenberg vê como necessária para que o kitsch realize as suas fraudes é o patrimônio cultural pelo qual os indivíduos podem se identificar e firmar pertencimento a grupos específicos. Este é um processo sociológico que Pierre Bourdieu (2008) estudou em seu famoso livro sobre a distinção social, em que pese a sua orientação sociológica relativamente conflitante com as teorias estéticas que estão na base da argumentação grenberguiana (em particular, refiro-me aqui ao kantianismo de Greenberg). O desejo de distinção social é uma das facetas mais exuberantes do bolsonarismo, o que talvez se explique pela singular dificuldade de ser conservador no Brasil, um país que é ex-colônia europeia e tem a cultura fortemente sincrética e miscigenada. O desejo de distinção dos bolsonaristas está presente nas promessas de resgate do classicismo e da beleza estética. O seu fracasso revela-se no resultado real das agitações culturais que Bolsonaro estimula: não qualquer coisa semelhante à arte clássica, mas sim as performances da militante Sara Winter (Jornal O Globo, 2020); não o resgate heroico da alta cultura, mas sim os tweets repletos de palavrões do polemista Olavo de Carvalho. Durante a maior parte do governo Bolsonaro, o núcleo ideológico da extremadireita propôs o resgate de um ideal de beleza e alta cultura para o Brasil, mas o que realmente conseguiu foi aprofundar a cultura de massas que recai no kitsch.8 8 A discussão sobre o kitsch realizada pelo filósofo conservador Roger Scruton (2009) pode ajudar os bolsonaristas a se perceberem melhor no universo da estética. Ver capítulo “The Flight from Beauty” da obra referenciada. Sumário <<<<< 339 Esse é um tema que ainda pode ser muito mais desenvolvido quando contextualizamos o bolsonarismo no nosso tempo. As expectativas frustradas sobre o potencial das democracias liberais no século XXI vêm motivando perguntas sobre a razão de elas não conseguirem suprimir as tendências autoritárias e irracionais que ainda estão presentes nas sociedades contemporâneas. As práticas de comunicação essencialmente imagéticas, que estão na matriz da estética bolsonarista, corroboram as expectativas mais negativas enunciadas ao final do século passado pelos intérpretes pessimistas das tecnologias de comunicação.9 Esses autores já percebiam, naquele momento, uma ruptura com a perspectiva letrada, racionalista e científica do Iluminismo. Vilém Flusser (2002), por exemplo, antecipou que essa mudança traria um enigmático retorno de condutas sociais baseadas em imagens, rituais e explicações mágicas da realidade – e foi justamente o que vimos nos episódios de desinformação massiva ocorridos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil, com a propaganda em rede do bolsonarismo trabalhando a favor da irracionalidade, como abordamos em outro texto (Oliveira; Christino; Nogueira, 2021). Atuando como um revestimento estético que faz o conteúdo da propaganda bolsonarista circular mais, o kitsch demonstra toda a sua força imagética e o seu poder de aclimatação, fortalecendo o vínculo entre os eleitores do presidente. Não parece exagero afirmar que, em uma condição civilizatória regressiva, a impossibilidade de elevar o nível cultural da população restaurou o kitsch para rebaixar a cultura ao nível daquela. Segundo Greenberg, “o encorajamento do kitsch é me9 Cf. o capítulo sobre teoria midiológica no ótimo livro de Francisco Rüdiger (2011), que tem a qualidade de sistematizar com clareza e objetividade as diferentes interpretações e expetativas dos teóricos da comunicação sobre as transformações tecnológicas desde meados do século XX. Sumário <<<<< 340 ramente uma das formas não onerosas pelas quais os regimes totalitários buscam ganhar a simpatia de seus subordinados” (Greenberg, 2013, p. 42). Esse tópico parece se impor desde a sociologia do kitsch para fazer sentido no Brasil dos anos 20182022, e suas consequências a médio e longo prazo ainda estão por ser conhecidas. Referências AVELAR, I. Eles em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2020. BINKLEY, S. Kitsch as a Repetitive System: A Problem for the Theory of Taste Hierarchy. Journal of Material Culture, v. 5, n. 2, p. 131–152, jul. 2000. BOLOGNA, A. Chinese Brutalism Today: Concrete and Avant-Garde Architecture. 1. ed. Novato: Oro Editions, 2019. BOURDIEU, P. A Distinção: Crítica social do julgamento. Kern Daniela; Tradução: Guilherme J. F Teixeira. São Paulo; Porto Alegre: EDUSP Zouk, 2008. BROCH, H. Notes on the problem of kitsch. In: DORFLES, G. (Ed.). Kitsch: an anthology of bad taste. London: Studio Vista, 1973. p. 49–76. BROOKS, P. The melodramatic imagination: Balzac, Henry James, melodrama and the mode of excess. New Haven London: Yale University Press, 1996. 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Esta popularização do K-pop tem gerado também interesse do público nos demais elementos culturais deste país, como entretenimento, moda, idioma e tecnologia. 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC/UFG), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás, e-mail: wadnacoelho@discente.ufg.br 2 Discente do curso de Comunicação Social com Habilitação em Publicidade e Propaganda pela Faculdade de Informação e Comunicação (FIC/UFG), e-mail: jessicacaetano@discente.ufg.br 3 Bolsista Produtividade do CNPq. Pesquisadora e professora do PPGCom e do PPG de Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás, FIC-UFG, e-mail: lara_lima_satler@ufg.br Enquanto gênero musical, o K-pop teve origem a partir dos anos 1990 quando a Coreia do Sul passava por mudanças internas relativas à cultura, à educação, relações internacionais, tecnologia e principalmente à economia. Depois de períodos de guerra e sob o jugo de países invasores, o governo buscava formas de se afirmar como uma economia sólida e como um país forte também culturalmente. O K-pop origina-se de um plano do governo que visava fortalecer o país por meio de três pilares: educação, tecnologia e cultura. Era um plano de longo prazo, que começa a colher seus frutos com o progresso na área de educação e profissionalização de seus cidadãos. Já na área tecnológica, algumas das principais empresas reconhecidas mundialmente pela tecnologia são coreanas, como é o caso de Samsung, LG, KIA e Hyundai. Por fim, o investimento na cultura, mais especificamente na criação do K-pop, com apoio e fomento às empresas de entretenimento por meio de incentivos fiscais, estabelece o terceiro pilar que vemos dar frutos três décadas depois. Pensado para ser a união de características culturais sul-coreanas com o pop mundial, o K-pop é um produto desenvolvido desde o princípio com o intuito de propagar a cultura sul-coreana pelo mundo. Com o desenvolvimento da internet, este feito passou a se dar de forma mais acelerada, já que a conexão com fãs de várias partes do globo foi facilitada e estes passaram a compartilhar seu processo enquanto tornavam-se fãs de K-pop e integravam este gênero musical e suas características ao seu estilo de vida. Desde então, vemos cada vez mais a circulação do K-pop em diferentes mídias, saindo apenas do digital e passando a fazer parte das sociedades ocidentais e orientais além da Coreia do Sul. Sumário <<<<< 346 Como exemplo temos a última turnê do grupo BTS no Brasil, a BTS World Tour Love Yourself: Speak Yourself, que conquistou um público de mais de 40 mil pessoas só no primeiro dia de show, lotando o estádio Allianz Parque.4 O Brasil foi o único país da América Latina incluído na tour, o que demonstra o grande crescimento e participação dos fãs brasileiros. O K-pop, além do digital, também circula com seus produtos físicos, sejam eles derivados diretamente do K-pop, como lightsticks,5 álbuns e photocards,6 ou associados à imagem dos idols7sul-coreanos, variando desde produtos ligados à imagem do grupo como um todo (como coleções de maquiagens e roupas), até a contratação de um dos membros como garoto(a) propaganda ou embaixador(a) de marcas por um determinado período. Marcas como Louis Vuitton, Dior e Chanel são algumas delas. Há ainda os dramas sul-coreanos que também contam com idols como parte do elenco de atores e atrizes. Alguns exemplos são Do Kyung-soo (D.O), do E.X.O, Lee Ji Eun (IU), cantora solista, Cha Eun-woo, do ASTRO, e Choi Min-ho, do SHINee. Todos esses exemplos são formas de divulgação que são usadas para alavancar, simultaneamente, o K-pop e os produtos e marcas associados a ele. Porém, trata-se também de uma estratégia que vai além da simples divulgação, fazendo parte do processo de transnacionalização dessas expressões culturais, pois as levam para outras sociedades, já que várias características exteriores à 4 NOGUEIRA, Renata. BTS impressiona São Paulo com show de tecnologia, samba e “juntos e shallow now”. UOL, 2019. Disponível em: https://www.google.com/amp/s/entretenimento.uol.com.br/ noticias/redacao/2019/05/25/bts-impressiona-sao-paulo-com-show-de-tecnologia-samba-ejuntos-e-shallow-now.amp.htm. Acesso em: 31 ago. 2022. 5 Bastão de luz que representa o grupo de K-pop através do seu design, utilizado pelos fãs em shows e eventos. 6 Cartões colecionáveis com fotos dos idols de K-pop. 7 É uma celebridade popular de K-pop, que passou por um longo treinamento em uma agência para fazer parte de um grupo. Sumário <<<<< 347 cultura sul-coreana são associadas aos produtos. Mas, acima de tudo, o K-pop em si é a junção de diferentes gêneros musicais ocidentais, como: pop, rap e rock, incorporados a elementos tradicionais sul-coreanos. Como afirma Ortiz (2007, p. 159), as expressões culturais transnacionais são ligadas às novas tecnologias e permitem maior flexibilidade na escolha do público, tornando-o mais independente e o consumo mais democrático. Essa descentralização de elementos intrinsecamente sul-coreanos para elementos globalizados faz com que os conteúdos sobre K-pop possam fazer parte do cotidiano de outras nações, pois estas passam a contar com mais uma possibilidade de consumo desvinculada do eixo americano-europeu e que, por seu exotismo asiático, ainda causa curiosidade no público. Segundo Ortiz (2007, p. 160), “como o processo de fragilização das centralidades promove as autonomias, os indivíduos ganhariam em ‘liberdade’ no seio das sociedades pós-informatizadas-globais”, o que implica que o “o indivíduo que, na sua integralidade, teria a todo o momento uma capacidade de escolha”. Aliada às características de exportação do gênero musical, está a necessidade dos indivíduos em descobrir o novo e a busca por uma identidade cultural, somada também a uma comunidade da qual façam parte. Fãs de K-pop podem fazer parte da comunidade kpopper, e observa- se que dela derivam diversas comunidades de fãs de grupos específicos, cada uma com seu nome (dado pela empresa do grupo) e características próprias. Entender como se dão essas conexões dos fãs com o K-pop de uma maneira mais assertiva, buscando compreender os possíveis motivos que captam a atenção do público brasileiro, se torna uma necessidade para conseguir acompanhar as mudanças de consumo e interesse do público neste contexto contemporâneo. Sumário <<<<< 348 Para isso, este texto objetiva: discutir como os fãs experienciam o K-pop; entender as formas de circulação deste gênero musical e a importância do digital para o seu crescimento; e, por fim, analisar as formas de conexão dos fãs com o K-pop a partir das armys, que são constituídas por fãs do grupo BTS. Por isso, todo este caminho foi trilhado a fim de responder à seguinte questão: “De que modo a comunidade kpopper brasileira se conecta com o K-pop?”. Assim, no próximo item discute-se sobre os pressupostos do método, para, a seguir, apresentar a discussão sobre os resultados. Aspectos metodológicos para entender o K-pop por meio do olhar das armys Os mapas das mediações de Martín-Barbero (2019) são os pressupostos teórico-metodológicos que possibilitam enxergar uma complexa relação entre a comunicação e o consumo da cultura no contexto do digital. Uma vez que as “mediações seriam estratégias de comunicação em que, ao participar, o ser humano se representa a si próprio e o seu entorno, proporcionando uma significativa produção e troca de sentidos” (Dantas, 2008, p. 4), observá-las no contexto do consumo cultural diz muito sobre as relações interativas entre sujeitos e o gênero K-pop. As mediações integram o processo comunicacional “como contexto no qual os fenômenos midiáticos são vivenciados pelas pessoas e grupos que produzem e reproduzem sentidos”, sendo que “as mediações, nesse caso, não se configuram como antítese da mídia, mas como contexto no qual os ‘textos’ midiáticos ganham sentido” por parte da comunidade de fãs (Barros, 2009, p. 9). As mediações neste texto servem para recortar como o fenômeno da interação das armys ocorre em relação ao BTS, observando porque contribuem com o grupo, como interagem entre si e como se constituem Sumário <<<<< 349 identitariamente enquanto pertencentes a uma comunidade. Assim, interessou-nos observar aspectos das mediações socialidade e identidade, uma vez que a socialização na comunidade por meio de interações digitais contribui para a constituição identitária de seus membros enquanto fãs. A comunidade de fãs de K-pop analisada neste texto são as armys, o fandom8 do grupo BTS (em coreano Bangtam Sonyeondan), que estreou em 13 de junho de 2013 e, ao longo de sua carreira, construiu uma base sólida de fãs. Com o significado de seu nome sendo “garotos à prova de balas”, derivado dele surge o nome dado ao fandom: A.R.M.Y., sigla para Adorable Representative M.C of Youth, representando a luta desses fãs contra o sistema de regras e imposições ao qual os jovens devem resistir buscando manter sua juventude, que podemos interpretar como suas crenças e ideias. Mas, o termo deriva também da palavra inglesa “army”, ou “exército” em português, expressão utilizada pelos fãs que se denominavam um exército de armaduras que protegeriam os membros do grupo, e adotada, posteriormente, pela agência responsável pelo grupo (Big Hit Entertainment) nas comunicações e narrativas futuras. Desde o seu debut,9 uma narrativa era iniciada e, ao longo dos anos, passaria a ser desenvolvida. É comum, em cada lançamento, surgirem novos elementos e narrativas a serem incorporados à imagem do grupo e testados junto às armys quanto à aceitação, medida em número de vendas (físicas e digitais) e, principalmente, de visualizações. Apesar de não fazer parte das grandes empresas 8 Segundo o site Significados, o termo fandom é o diminutivo da expressão em inglês de “fan kingdom”, que, traduzindo literalmente para o português, significa “reino dos fãs”. Um fandom é composto por um grupo de pessoas que são fãs de algo em comum que pode ser um artista, um filme, um livro etc. Disponível em: https://www.significados.com.br/fandom/. Acesso em: 10 jul. 2022. 9 Estreia de um grupo, ou seja, quando ele é lançado no meio comercial. Sumário <<<<< 350 consolidadas do mercado, pelo contrário, vindo de uma empresa pouco conhecida no cenário, o grupo foi se destacando e conquistando cada vez mais espaço, se tornando, atualmente, um dos principais grupos de K-pop que impulsionam o gênero no mercado internacional. Esse feito pode ter relação com o fato de que, apesar de o grupo ser hoje popularmente conhecido, tanto nacional como internacionalmente, seu crescimento se deu, inicialmente, fora de seu país, o que atraiu a atenção dos próprios conterrâneos. A união da estética, sonoridade, narrativa e a cultura digital partilhada pelos jovens, onde um novo território de trocas é formulado, foi essencial nessa empreitada do grupo rumo ao sucesso. Buscando compreender o K-pop por meio do olhar dos fãs e a fim de aprofundar novas possibilidades de debate e análises, para este artigo, contou-se com os resultados derivados de um questionário aplicado entre maio e junho de 2020. O questionário foi o instrumento de coleta de dados e foi estruturado e direcionado para as armys, fãs do grupo BTS, com o objetivo de compreender o seu perfil, assim como outras questões mais específicas. O questionário foi aplicado por meio de um formulário do Google e divulgado através de uma conta pessoal de uma das autoras, por meio da rede social Twitter, obtendo, ao final do período citado, 690 respostas. Foram feitas, no total, 21 perguntas direcionadas às armys, sendo que parte das questões buscavam descobrir o perfil sociocultural e demográfico das fãs, hábitos de consumo e colaboração com as campanhas de divulgação do BTS. Neste capítulo, em especial, iremos analisar a última questão, que inquiria sobre o principal motivo que levou as fãs a se interessarem pelo grupo a ponto de destinarem seu tempo para contribuir com o compartilhamento e divulgação dos seus conteúdos nas redes sociais. Essa questão foi feita possibilitando que as participantes escrevessem Sumário <<<<< 351 de forma discursiva e no formato de texto longo sobre suas impressões e opiniões acerca do grupo em questão. Posteriormente, foi feita uma filtragem nas respostas recebidas, a fim de construir quatro eixos de destaque, e, em seguida, foram categorizadas em grupos de semelhança entre todas as respostas discursivas. As quatro categorias são trabalhadas na tabela a seguir, as quais serão tratadas nos itens de discussão de modo articulado. A fim de preservar o anonimato das participantes do formulário, optou-se por usar um primeiro nome fictício, seguido do ano da coleta, quando utilizados os depoimentos dos respondentes. Assim, os depoimentos são apresentados no texto entre aspas, seguidos da referência (Nome, 2020, online). Quadro 1 - Quatro eixos de análise Identidade de fãs e a música do BTS Identidade de fãs e a contribuição que o grupo promove em relação à saúde mental A socialidade e a relação construída dentro do próprio fandom (army) Identidade de fãs e sua relação com os integrantes do grupo BTS Fonte: Autoria própria (2022) Em relação ao perfil sociodemográfico, o questionário aponta que cerca de 96,2% das respondentes se reconhecem como pertencentes do sexo feminino. Por esse motivo, ao se referir aos fãs do grupo, optamos por usar “as fãs”, já que as respondentes se reconhecem como tal. Cerca de 44,8% dos respondentes relatam ser da região sudeste, 39,7% possuem entre 16 e 18 anos, e 31% entre 13 e 15 anos, sendo, dessa forma, um público considerado majoritariamente adolescente-jovem.10 10 Segundo o site ANDI, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera que adolescente é o indivíduo entre 12 e 18 anos incompletos. Já o termo “jovem” é usado para classificar uma pessoa entre 15 e 29 anos, seguindo a tendência internacional. Disponível em: https://andi. org.br/dicasparacobertura/qual-a-diferenca-entre-adolescente-e-jovem/. Acesso em: 25 ago. 2022. Sumário <<<<< 352 O K-pop como experiência estética e o receptor emancipado O gênero K-pop é, com certeza, um ótimo exemplo do uso da estética na construção de seus elementos e narrativas, caracterizando-o como um elemento estético em si. A união da estética visual junto às produções sonoras, cria uma obra audiovisual cheia de elementos e características que tornam o gênero singular e, ao mesmo tempo, palatável para o maior número de receptores. Alguns exemplos são as coreografias sincronizadas, os cabelos coloridos e as roupas diferentes e estilosas. É como se a presença de tantos elementos garantisse que, pelo menos um deles, vai capturar a atenção do receptor, atraindo, assim, o maior número possível de público para o gênero, tornando-o cada vez mais popular. Há ainda o fato de a complexidade característica do gênero ter sido abraçada pela comunidade de fãs, sendo já esperada a cada novo lançamento para que novas teorias sejam somadas às anteriores, garantindo, assim, que o mesmo lançamento seja apreciado vezes seguidas em busca de pistas. Rancière define essa ligação da estética ao sensível da seguinte forma: A palavra “estética” não remete a uma teoria da sensibilidade, do gosto ou do prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. No regime estético das artes, as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível (Rancière, 2005, p. 32). Essa estética presente nas narrativas passa a ser apreciada e esperada também pela forma de produção própria do K-pop, que conta com lançamentos, conhecidos como comebacks, únicos em termos de conceitos. Uma linha narrativa é mantida, associada à Sumário <<<<< 353 própria storyline do grupo, que é estabelecida junto aos fãs em seu debut e desenvolvida ao longo do tempo. Mas a cada comeback, um conceito diferente é apresentado, mudando elementos como forma, sonoridade, estética, performances e estilos. Diferentes sensibilidades são trabalhadas pelas obras, que podem representar de diferentes formas temas e sentimentos partilhados também pelos fãs, sendo assim necessária a participação do espectador na produção de sentido, que, segundo Rancière, dá-se quando: O espectador deve ser retirado da posição de observador que examina calmamente o espetáculo que lhe é oferecido. Deve ser despossado desse controle ilusório, arrastado para o círculo mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de observador racional pelo do ser na posse de suas energias vitais integrais (Rancière, 2012, p. 10). Geralmente, são deixados em aberto significados e representações usados nos videoclipes, chamados também de MVs, principal produção e também a primeira a entrar em contato com os fãs. Pela forma de lançamento do K-pop, o MV é o carro-chefe de um novo comeback. É nele que é trabalhada a parte visual do novo conceito e é no MV que a coreografia, parte extremamente importante e característica do K-pop, é apresentada pela primeira vez. As pistas deixadas cabem, portanto, à interpretação dos próprios receptores. Como afirma Rancière (2012, p. 17), cada receptor compõe o seu poema de acordo com os elementos que tem disponível diante de si, variando, assim, as interpretações. De acordo com o questionário realizado, alguns dos fatores que são destacados pelas fãs em relação ao BTS como motivos que as fazem se interessar pelo grupo são: as coreografias, a sonoridade Sumário <<<<< 354 das músicas e a “estética” dos MVs.11 Para Santana e Santos (2019), o grupo BTS foi construído com o objetivo de atingir o público jovem através de seu repertório musical, em conjunto com uma estética moderna. O grupo possui projetos com conceitos elaborados, que apresentam enredos complexos e organizados, que se conectam em diferentes produções e são divulgados de forma a despertarem a curiosidade das fãs. Quando se trata da música, especificamente, grande parte das respondentes relatam que um dos motivos que as fazem se identificarem com as canções do grupo são as letras e as mensagens transmitidas. Muitas fãs descrevem como as músicas as ajudaram em momentos difíceis e possibilitaram reflexões em torno de questões pessoais. Uma das respondentes inclusive destaca que o motivo principal que a fez gostar do grupo foi: O fato de não ser apenas um grupo de Kpop com músicas comuns, eles passam mensagens através da sua arte, mensagens que inspiram, ajudam e ensinam milhares de pessoas, desde a amar a si mesmo, a acreditar em si, a nunca desistir mesmo que difícil e a ter esperança de realizar um sonho! Eu amo eles por todo esse amor que eles distribuem em forma de música, por todo esse sentimento que eles nos entregam tão verdadeiramente e mais ainda por saber que todo esse amor é recíproco. E sou extremamente grata por tudo isso, por eles existirem e fazerem diferença não só na minha 💜 vida, mas na de milhares de fãs que os amam e os apoiam! (FLÁVIA, 2020, online). 11 Segundo o site Dicionário Informal, MV é o significado de “music vídeo”, que em inglês significa vídeo musical. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/mv/. Acesso em: 10 jul. 2022. Sumário <<<<< 355 Desde o início de suas carreiras, o grupo esteve envolvido no processo criativo de suas produções, em especial em relação à composição de suas próprias canções, sendo essas encabeçadas principalmente pelo trio de rappers: RM (Kim Nam-Joon), Suga (Min Yoon-Gi) e J-Hope (Jung Ho-Seok), apesar de os outros integrantes também participarem e auxiliarem nesse processo ativamente. Segundo matéria da Rolling Stone,12 o grupo BTS desafia as normas do gênero K-pop ao trazer temas profundos e complexos com o objetivo de serem mais próximos de seus fãs e de transmitir uma mensagem positiva. De acordo com a mesma matéria, as mensagens das canções giram em torno de “problemas que atingem a geração jovem” e que abrangem diversas temáticas, como: saúde mental, as altas expectativas da sociedade e a insegurança financeira. Além disso, o grupo respeita a diversidade e os direitos dos jovens e dos marginalizados, segundo o que foi afirmado à Revista Time pelo ex-CEO da Hybe,13 empresa do BTS, Bang Si-Hyuk. O tópico de saúde mental é, por muitas vezes, destacado entre as respostas. As respondentes relatam que, além das letras das músicas, o fato de acompanhar o grupo e os membros são fatores que as ajudam a lidar com seus próprios problemas pessoais. Durante os anos de 2017 e 2018, o grupo investiu no conceito de Love Yourself (“ame você mesmo”, em tradução para o português) em suas produções, trazendo a importância de amar a si mesmo e abordando temáticas mais introspectivas. Nesta era foram lançados três álbuns: Love Yourself 承 ‘Her’ (2017), Love Yourself 轉 ‘Tear’ (2018) e Love Yourself 結 ‘Answer’ (2018), que juntos carregavam esse conceito 12 Rolling Stone. UOL, 2021. Disponível em: https://rollingstone.uol.com.br/musica/bts-desafianorma-do-k-pop-com-letras-de-musica-entenda/. Acesso em: 10 jul. 2022. 13 Segundo matéria do site Extra Globo, em 19 de março de 2021, a BigHit anunciou a mudança de nome do conglomerado, que passaria a ser Hybe devido à sua expansão, representando agora valores como “conexão, expansão e relacionamentos.”. Disponível em: https://extra.globo.com/ tv-e-lazer/k-pop/k-pop-conglomerado-do-entretenimento-bighit-anuncia-mudanca-de-nomepara-hybe-24932878.html. Acesso em: 10 jul. 2022. Sumário <<<<< 356 central e conseguiram atrair a atenção e o reconhecimento não só das fãs, mas também do público em geral. Como dito por Rancière (2012), todo espectador é já autor de sua história; todo ator, todo homem de ação, espectador da mesma história. Ou seja, cada receptor é emancipado para fazer suas escolhas interpretativas e tomar para si o que toca o sensível, compartilhado também por ele naquela narrativa. A experiência estética que cada um vai tomar para si não pode ser prevista, e, ao deixar elementos em aberto, as chances de associação do público com aquela produção audiovisual são aumentadas. O receptor emancipado, apesar de ter um papel individual na interpretação, busca na comunidade da qual faz parte outras opiniões e explicações que não conseguiu por conta própria, tornando, assim, a comunidade kpopper um lugar de debate e de busca por um senso comum. Notamos isso no fato de as armys afirmarem se sentirem pertencentes a um grupo em comum. Além deste fator, o relacionamento que o grupo mantém com seus fãs também foi um motivo citado entre as respostas. Algumas respondentes relataram que gostam da forma como os membros do grupo se relacionam entre si e com as fãs como se todos fossem parte de uma grande família, em que ambos dão apoio um para o outro, compartilhando suas experiências e vivências. Em uma das respostas, uma das participantes destaca que “um dos principais motivos que me levou a gostar de bts foi sua paixão pela música e o jeito como eles tratavam os fãs (Army)”, afinal, “eles sempre se dedicaram a tudo que eles faziam, então decidi me juntar a essa enorme família” (Patrícia, 2020, online). A partir dessa resposta, notamos o quanto a identidade de fã se constitui com fricção com a socialidade, ou seja, a possibilidade de pertencer a um grupo de fã (e ao mesmo Sumário <<<<< 357 tempo família) é mediada pelo próprio grupo ou família. Nesse sentido, a socialidade (Martín-Barbero, 2019) medeia a constituição de uma identidade, que também é mediadora da socialidade. Assim, a mediação da identidade retroalimenta a mediação da socialidade em contextos da cultura digital. Já em outras as respostas, as fãs relatam sobre seu envolvimento com o grupo e como esse sentimento de pertencimento é algo que acrescenta em suas experiências individuais. Os integrantes do BTS, por outro lado, constantemente se referem ao fandom, destacando a importância que ele tem para as suas conquistas. Em agradecimentos em premiações, por exemplo, é possível perceber a retribuição que o grupo tenta transmitir para seus fãs, enquanto estas, por sua vez, se esforçam e se comprometem dando o seu apoio, a fim de que o grupo alcance novos feitos. Todas as produções do BTS têm como foco seus fãs, pois são estes os responsáveis pelo seu sucesso. Percebendo o empenho de seus seguidores, o grupo tem buscado cada vez mais produzir conteúdos e posicionar-se a partir da perspectiva destes, tendo como foco as armys. O grupo reconhece que é graças ao seu público que eles têm conseguido chegar tão longe, conquistando o mercado mundial, e por isto o BTS e a BIG HIT possuem preocupação redobrada nos interesses das armys e em como estas enxergam os “garotos à prova de balas” (Santana; Santos, 2019, p. 10). Por fim, uma outra questão de relevância levantada nas respostas foi direcionada à personalidade que os integrantes possuem e transmitem. Suas personalidades extrovertidas e alegres, seu esforço e empenho, tanto em grupo quanto individualmente, e a manutenção de um diálogo aberto e direto com suas fãs, Sumário <<<<< 358 são fatores também destacados. O grupo constantemente busca manter uma comunicação com suas fãs, seja pelo uso de redes sociais seja pela realização de lives,14 em grupo ou solo, onde há interação direta dos integrantes com o seu público. Essa aproximação gera ainda mais engajamento e compartilhamento de ideias por parte das fãs, que encontram na sua comunidade um lugar de senso comum para partilhar ideias, aflições e sonhos. Em uma outra resposta, uma fã disserta sobre suas percepções em relação ao grupo, o que, de certa forma, resume de forma geral os pontos levantados ao longo dessa discussão: A maneira como eles transmitem conforto para as Armys nas letras das músicas faz com que as mesmas se sintam amadas, fazendo assim que seus fãs fiquem mais fortes para poder enfrentar qualquer fase ruim. A forma como eles se importam conosco querendo sempre nos ver felizes, mesmo não podendo estar perto. A grande maioria das Armys procuram no BTS um refúgio, um abrigo onde encontram amor, carinho mesmo sendo de tão longe mas ao mesmo tempo de tão perto, os meninos são tão atenciosos com seus fãs querendo sempre nos agradar eles sempre querem dar o melhor de si, mesmo estando cansados pela agenda lotada eles querem estar bem para nós e a gente sabe e reconhece tudo que os meninos fazem para a gente e tentamos retribuir isso em views nos MV’s, votando em premiações e enviando mensagens de carinhos no app Weverse - aplicativo de interação entre os membros do grupo e as Armys - para os mesmos saberem que tudo que estão fazendo está valendo a pena e não é em vão (Ana, 2020, online). 14 Segundo o dicionário virtual, Dicio (Dicionário Online de Português), live é um termo usado para se referir a eventos gravados ao-vivo e transmitidos de forma remota virtualmente. Disponível em: https://www.dicio.com.br/lives/. Acesso em: 10 jul. 2022. Sumário <<<<< 359 Pelos comentários, podemos notar que as armys recepcionam e interpretam o conteúdo produzido pelo grupo, cada uma a sua maneira, com diferentes pontos de interesse e significados pessoais que auxiliam na sua conexão com o grupo. O sensus communis e a comunidade kpopper: aspectos da socialidade e identidade Segundo Parret, o sensus communis é o sensus de uma comunidade que, como já foi dito e se dirá novamente, não é nem argumentativa e nem consensual: é afetiva (1997, p. 197). A própria noção de senso comum indica a formação de uma comunidade, onde o social e o sensível são debatidos em busca de um ponto em comum. A comunidade kpopper nos dá, perfeitamente, uma exemplificação desse conceito, já que é por meio dela que seus indivíduos partilham seus pontos de vista, conclusões sobre as narrativas, e também discutem suas aflições, opiniões e até mesmo partilham seus modos de vida. Parret define o conceito da seguinte forma: O sensus communis é constituído por uma tensão entre o sensível e o social – essa tensão tem uma dupla direcionalidade e resolve-se por um duplo movimento: a socialização do sensível e a sensibilização do social. Consequentemente, podemos dizer que, de um lado, o sensus communis é uma sinestesia (é o movimento de socializar o sensível) e, de outro, é intercorporeidade (o movimento de sensibilização do social). É somente nesse duplo movimento e por meio dele que conseguimos resolver a tensão entre o social e o sensível e pensar a fusão, modo pelo qual a comunidade afetiva se realiza. A eufonia de vozes e Sumário <<<<< 360 sentimentos depende de sua fusão. Essa fusão é melódica, já que ela é essencialmente temporalizada (Parret, 1997, p. 198). Essa comunidade se torna essencial para os fãs de K-pop pela característica do gênero, ainda estranho aos olhos ocidentais; é uma evolução que vem ocorrendo. Até pouco tempo atrás, era uma cultura alheia a nós, sendo necessário que seja entendida aos poucos. É na comunidade que novos e antigos fãs partilham seus conhecimentos culturais e específicos sobre os grupos de K-pop com os demais. É uma fusão de afetividades, como discutido por Parret: A ideia social é, em consequência, o fruto do estar-em-comunidade na experiência fusional. O sensus communis, tal como a ele fez referência Kant na Crítica do juízo, é a sensibilidade, universal e comunicável, dessa comunidade afetiva que só podemos conceber no modo de fusão (Parret, 1997, p. 200). A comunidade kpopper passa a ser uma comunidade onde o sensível também é compartilhado, seja pela experiência estética com as obras, ou pela troca entre os indivíduos que passam a cultivar um sentimento de pertencimento e amizade com o grupo e, até mesmo, com os produtores de conteúdo sobre K-pop (youtubers, perfis do Instagram etc.), que criam em seus canais e perfis lugares de partilha. As narrativas transmidiáticas e a partilha do sensível É comum no K-pop que diferentes mídias sejam usadas na construção e distribuição das narrativas, diferentes mídias se complementam no lançamento de um comeback. Teasers Sumário <<<<< 361 são lançados no YouTube para aumentar a expectativa para a chegada do MV, fotos conceituais são postadas no Instagram dando um indício do que esperar da estética e figurino, e o lançamento do MV é feito no YouTube, juntamente com o lançamento do álbum nas plataformas de streaming como o Spotify. Lives são feitas pelo grupo para assistir ao MV finalizado ou conversar com os fãs (no YouTube, Vlive15 e Instagram), vídeos da coreografia são lançados e viralizam no TikTok, e performances são apresentadas nos programas musicais sul-coreanos transmitidos na TV, que depois são repostados nos canais do YouTube dessas emissoras. Tudo isso é apenas uma parte de todas as narrativas transmidiáticas (Jenkins, 2006) presentes no K-pop. É no meio desse complexo emaranhado que se encontra a comunidade kpopper, que busca, por meio dos lugares de partilha, aprender, acompanhar e discutir sobre essas produções e narrativas. Surge, portanto, um lugar de partilha sensível, e os indivíduos usam desse lugar comum para trocar experiências e gostos. Rancière define a partilha do sensível como O sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e pares respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum compartilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividades que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (Rancière, 2005, p. 15). 15 É um serviço de streaming de vídeo ao vivo da Coreia do Sul que permite que celebridades do país transmitam vídeos ao vivo na internet e conversem ao vivo com seus fãs. Sumário <<<<< 362 Os produtos de K-pop são trabalhados tanto materialmente quanto imaterialmente, toda uma narrativa é construída como embasamento para a criação de um novo grupo e todos os produtos físicos são descendentes da imagem e símbolos criados durante essa narrativa, seja a estética do grupo de forma geral ou as imagens dos idols. Por outro lado, é o receptor que permeia esses produtos de significado e afeto, fazendo com que os produtos adquiram um novo significado e valor estético e emocional, como discutido por Sodré: Está aí implicada uma mutação capitalista, uma espécie de “nova economia”, em que a dimensão imaterial da mercadoria prevalece sobre a sua materialidade, tornando o valor social ou estético maior do que o valor de uso e o valor de troca. Valores simbólicos e afetos ganham o primeiro plano tanto na economia quanto na cultura codificada (Sodré, 2006, p. 56). Sodré (2006, p. 69) define que o comum é a sintonia sensível das singularidades, capaz de produzir uma similitude harmonizada do diverso. É por meio dessa partilha permeada de significados únicos que o comum é criado em meio ao diverso. O lugar comum a todos é o de que significados e valores emocionais foram acrescidos às narrativas e produções de K-pop, sejam elas com caráter material ou não. Não se trata, pois, do sentimento que acompanha o sujeito, mas de uma potência do sensível, inseparável do pensamento e da ação no interior de um comum que, para além da dicotomia sujeito/objeto, preside a originalidade da compreensão (Sodré, 2006, p. 68). Sumário <<<<< 363 A socialidade digitalizada como lugar de troca Em meio a esse entrelaçamento teórico e conceitual, cabe aliar também a teoria barberiana das mediações (Martín-Barbero, 1997), já que estamos tratando da recepção dessas narrativas e como elas são incorporadas às práticas sociais dos receptores. Um gênero pode ser mutável, adaptando-se à configuração da sociedade na qual está inserido, reconfigurando-se de acordo com o país e cultura onde se encontra. Pensando nesse aspecto, o gênero K-pop, apesar de bem delineado a partir de seus públicos-alvo, contém em suas narrativas a possibilidade da transnacionalidade, articulando características distintas presentes em outras nações. E é por meio dessas articulações que os fãs surgem, fomentando a criação de uma comunidade para troca sobre essa cultura antes distinta, criando, assim, uma hibridização cultural entre a cultura vivida socialmente (cultura da qual faz parte) e a nova cultura, fomentada pela onda hallyu, estando em contato com a comunidade da qual se tornou um integrante. Tal interação destes jovens com a hallyu desencadeia um processo de hibridização, pois o contato entre estas culturas distintas (a brasileira e a sul-coreana) leva o jovem a vivenciar uma reconversão cultural, na medida em que busca adaptar a hallyu à sua cultura de origem inserindo em seu cotidiano elementos característicos da cultura oriental (Santana; Santos, 2018, p. 34). A partilha do sensível e o sensus communis antes discutidos podem-se caracterizar na mediação da socialidade que está inserida no contexto digital, tanto pela atualidade da discussão quanto pelo público receptor de K-pop estar inserido e consumir os conteúdos pelos meios digitais. Essa socialidade gerada a partir da cultura Sumário <<<<< 364 digital gera uma nova forma de socialização, possibilitada pelos meios digitais que fazem parte da comunicação contemporânea, principalmente se tratando dos jovens, que são também o maior público receptor desse gênero musical. A globalização, como consequência do avanço tecnológico permite a formação de novos territórios de debates e formas de identificação, também relacionadas ao afeto. Sodré também discute essa relação: E o afeto, território próprio da estesia, revela-se um mecanismo de compreensão irredutível às verificações racionalistas da verdade. Por meio dele, divisa-se uma teoria compreensiva da comunicação, presumidamente capaz de trazer mais luz ou hipóteses mais fecundas sobre as transformações das identidades pessoais e coletivas, as modulações da política e as ambivalências do pluralismo cultural no âmbito da globalização contemporânea (Sodré, 2006, p. 70). É por meio dessa socialidade digitalizada que a comunidade kpopper constrói suas identidades, troca afetos e constrói novos significados, tornando-se receptores emancipados, que criam novas práticas sociais. Em resumo, reconfiguram as formas de partilha para a sociedade contemporânea da qual fazem parte, fazendo uso dos novos meios para ampliar os modos de comunicação. Conclusão Por meio das respostas dadas pelas fãs brasileiras do grupo BTS, podemos entender quais são as formas de conexão delas com o grupo e o conteúdo produzido por ele, dando-nos, assim, uma pista do que cativa os fãs do gênero K-Pop no Brasil, considerando que a produção deste grupo e suas fãs são uma amostra do extenso Sumário <<<<< 365 universo narrativo e comunicacional do qual fazem parte a comunidade kpopper e este gênero musical, ainda tão pouco explorado. A partir das respostas das armys, quatro eixos de conexão foram estabelecidos: identidade de fãs e a música do BTS; identidade de fãs e a contribuição que o grupo promove em relação à saúde mental; socialidade e a relação construída dentro do próprio fandom (army); e, por fim, identidade de fãs e sua relação com os integrantes do grupo BTS. Todos estão ligados às mediações da sociabilidade e identidade (Martín-Barbero, 1997), ou seja, os pontos de conexão são diversos e até mesmo subjetivos, variando de acordo com a recepção de cada fã. Porém, todos têm em comum que a troca de informações, dúvidas e interesses por meio de uma socialidade é parte fundamental para a formação das comunidades de fãs e para fomentar a circulação deste gênero musical. É nestas comunidades digitais que os indivíduos encontram um lugar de troca e partilha do sensível. Ao achar um lugar de senso comum, se sentem incluídos e, portanto, parte de algo maior e mais significativo. No caso das armys, algumas citam se sentirem parte de uma família (constituída pelo grupo e pelas fãs). Portanto, temos que o K-Pop se conecta com a comunidade kpopper primeiramente graças ao avanço tecnológico e à narrativa transmidiática, tão bem elaborada que atravessa barreiras culturais e territoriais. E, posteriormente, por meio de seus inúmeros elementos visuais, narrativos e, principalmente, por meios subjetivos, que variam de acordo com cada receptor e interpretação. Ou seja, sua forma de produção proporciona maiores chances deste gênero ser disseminado e conquistar ainda mais fãs, ampliando, consequentemente, também o seu número de vendas e relevância no cenário mundial. A sua raiz popular e Sumário <<<<< 366 narrativas tão bem elaboradas são o que mantém o interesse do público, ao mesmo tempo que captam cada vez mais atenção e conexão onde quer que cheguem. Dessa forma, concluímos que os kpoppers podem ser entendidos como receptores emancipados, que fazem uso da liberdade trazida pela união do digital com a transnacionalidade para consumir o K-Pop, e, através do gênero e da formação de comunidades de fãs, descobrem e reforçam suas identidades, através de uma comunidade em que partilham suas experiências estéticas e sociais, sensibilidades e discussões, seja acerca do K-Pop ou sobre os altos e baixos da vida jovem-adulta. Referências BARROS, Laan Mendes de. Os meios ou as mediações? Um exercício dialético na delimitação do objeto de estudo da comunicação. Líbero, São Paulo, v. 12, n. 23, p. 85-94, jun. de 2009. Disponível em: http://seer.casperlibero.edu.br/index.php/libero/ article/view/530/504. Acesso em: 15 mar. 2020 DANTAS, José Guibson Delgado. Teoria das Mediações Culturais: Uma Proposta de Jesús Martín-Barbero para o Estudo de Recepção. Intercom, São Luís - MA, 2008. 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Elas estão transformando todas as esferas da sociedade e formando sujeitos sociais mais interativos e participativos. 1 Professora da Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal do Pará; Doutora em Educação pela Universidade Estácio de Sá/RJ; Mestre em Ciências Sociais/Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA); Bacharel em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: anapaulavilhena@ufpa.br. Sumário <<<<< 370 Este capítulo tem como objetivo oferecer uma reflexão epistemológica acerca da cultura midiática atual, por meio da análise de como as mídias tradicionais, alternativas e sociais se referenciam, se confrontam e dialogam na cultura da convergência, para entender como a produção de conteúdo publicitário vem acompanhando as nuances da cibercultura. De acordo com Santaella (2003, p. 25), “mídias são meios, e meios, como o próprio nome diz, são simplesmente meios, isto é, suportes materiais, canais físicos, nos quais as linguagens se corporificam e através dos quais transitam”. Dessa forma, a cultura midiática atual passa pelo entendimento de que o meio é apenas uma das formas que a mensagem assume: a atenção do receptor concentra-se na maneira como ele assimila a mensagem, nas suas formas de recepção. Negroponte (1995), ao prever o futuro das novas mídias antes mesmo da era digital, afirmava que meios e mensagens seriam, no futuro, uma mistura de conquistas técnicas e artísticas, cuja força evolutiva estaria no comportamento do consumidor. A análise das mídias tradicionais, alternativas e sociais, dentro do panorama midiático da atualidade, requer o entendimento de todo um percurso de mudanças ocorridas na sociedade com a chegada da cibercultura. Os meios existentes em determinado período, assim como as mensagens que veiculam e a linguagem que utilizam, condicionam a sociedade em muitos aspectos. Assim, as mudanças ocorridas nesses meios geram mudanças culturais na sociedade. De acordo com Santaella (2003), a sociedade experimentou tais transições culturais a partir de eras que a autora divide de acordo com os meios de comunicação predominantes em cada uma delas. Sumário <<<<< 371 Da cultural oral, passando pela cultura escrita e pela cultura impressa, a sociedade experimentou a era da cultura de massas, caracterizada pela expansão dos meios de comunicação como o jornal, o rádio e a televisão, cujos conteúdos eram produzidos para uma massa de espectadores, dentro de uma dinâmica “de um para muitos”. Foi a era do empobrecimento intelectual, de acordo com as críticas da Escola de Frankfurt, dos conteúdos superficiais, do consumo desenfreado impulsionado pela propaganda centrada no produto e na criação de necessidades para o público consumidor. O conceito de indústria cultural, fundamental para a análise da mídia de massa, apontava que havia um processo de mercantilização da cultura, a qual era transformada em mercadoria padronizada, de caráter homogeneizante. A cultura virtual, de acordo com Santaella (2003, p. 24), “não brotou diretamente da cultura de massas, mas foi sendo semeada por processos de produção, distribuição e consumo comunicacionais”. Tal processo é chamado pela autora de “cultura das mídias”. Da passagem da cultura de massas para a cibercultura, deu-se então essa fase de transformações, em que a internet passou a fazer parte da vida das pessoas gradativamente, num movimento de hibridismo midiático marcado pela fusão de diferentes mídias. A difusão de novos dispositivos de armazenamento e de reprodução – como o videocassete, o controle remoto, as fotocopiadoras, o walkman, bem como o desenvolvimento da indústria dos videoclipes e videogames, foram preparando a sensibilidade humana para as novas linguagens emergentes e os mecanismos de busca individualizada, dispersa, alinear e fragmentada da informação. A comunicação foi passando de massiva para individual. As mensagens da mídia de massa, no entanto, não deixaram de existir, mas foram sendo reelaboradas, refeitas e ressignificadas por Sumário <<<<< 372 receptores localizados e localizáveis no âmbito de um espaço e tempo determinado. Vale ressalvar que a pretensa igualdade que se instaurou entre emissores e receptores na sociedade em rede esconde, no entanto, os domínios de uma economia de mercado onde existem ainda muitas desigualdades. Sendo assim, mesmo que receptores sejam festejados como produtores de conteúdo, há ainda as barreiras nas plataformas dominadas e projetadas por poucos, colocando em dúvida se há, de fato, uma liberdade comunicativa, já que o acesso ainda não é irrestrito (Martino; Marques, 2014). Com a ascensão das novas tecnologias e mídias, a estrutura lógica e linear das narrativas históricas, literárias, jornalísticas e publicitárias tradicionais foi invertida, dando origem a uma nova realidade. Com isso, cabe uma indagação: os meios tradicionais vão acabar? Ainda em busca de um novo caminho, mídias acrescentam formatos online aos pacotes comerciais offline, numa tentativa de torná-los mais contemporâneos e atrativos. A televisão, por exemplo, caminha cada vez mais para um modelo em que os dois mundos (TV e internet) andam juntos. Emissoras de televisão buscam, desenfreadamente, inserir seu conteúdo em um número cada vez maior de plataformas, aproveitando ao máximo seu potencial de distribuição. Isso se reflete nos formatos televisivos que são foco dos maiores indvestimentos publicitários atuais, como os reality shows, os programas ao vivo e os conteúdos como séries e novelas que transitam entre TV aberta, TV fechada, streaming e mídias sociais, lançando mão de estratégias transmidiáticas de exibição. O rádio vem buscando novas formas de se reinventar, fortalecendo sua presença online, criando conteúdos de entretenimento e informação, como os podcasts, formato que ganhou novo significado na era digital. Sumário <<<<< 373 O jornal, ainda que em baixa, e cujo fim é eventualmente declarado por teóricos, leitores e novos meios, tem se adaptado ao formato digital, buscando produzir conteúdo para nichos de mercado. Assim como a revista, que busca investir em conteúdos com maior tempo de apuração e abordagens mais detalhadas, para “sobreviver” ao impacto das novas tecnologias digitais. De todo modo, os meios tradicionais, neste ambiente de múltiplas possibilidades midiáticas, vivem diante do desafio de continuar “falando” com seus consumidores, hoje multiconectados. As linguagens e as possibilidades comunicativas foram se multiplicando a partir da invenção de novos meios e da convergência entre eles. E as tecnologias digitais alargam as possibilidades de crescimento das linguagens, gerando novas formas de pensar, agir e sentir. As linguagens se tornam híbridas, pois têm sua origem no cruzamento de outras matrizes linguísticas pré-existentes e prevalecem em um mundo cujas dimensões culturais nos colocam em múltiplos espaços e tempos de vivência (Covaleski, 2015). De acordo com Canclini (2000), o ambiente midiático que vivemos hoje se vê diante de paradigmas comunicacionais que não mais se encaixam nos conceitos de mídia de massa, tampouco nos conceitos voltados para o consumo popular ou erudito. A publicidade se adapta a esse ambiente, adotando múltiplos estilos da fusão entre o popular e o erudito, usando objetos do cotidiano como meio. Ela passa por um processo chamado de hibridização (Covaleski, 2015), que une três entidades midiáticas: o mercado publicitário, a indústria do entretenimento e as tecnologias interativas. A hibridização trata da mistura entre aspectos culturais, artísticos e comunicativos. Se antes já havia hibridização na publicidade nos meios tradicionais, com o suporte dos recursos interativos, as hibridizações alcançaram uma constituição intrínseca. Sumário <<<<< 374 Na cibercultura, a publicidade hibridizada é um novo produto midiático que proporciona entretenimento e interatividade. Utilizam-se elementos do discurso publicitário e das narrativas cinematográficas, proporcionando multilinearidade e conteúdos transmidiáticos. A hibridização está incorporada à essência da linguagem hipermidiática da atualidade. Diante de sujeitos cada vez mais plurais, híbridos, com identidades que transitam em contextos igualmente fluidos, surge um “multivíduo” (Perez; Barbosa, 2009) para o qual a publicidade e suas formas convencionais já não mais dariam conta de olhar. Para captar tais transformações, a publicidade necessitou se conectar com estes tempos hipermodernos, focando mais em comunicar a subjetividade, o simbólico. É a hiperpublicidade, um processo necessário diante da era do hiperconsumo e da hipertrofia das experiências. Os meios de comunicação, assim, se inserem em espaços audiovisuais múltiplos que geram conexões com os telespectadores em todos os meios possíveis: redes sociais, plataformas de vídeo como Youtube, transmissão via streaming ou TV por assinatura. A narratividade é um dos mais significativos elementos constituintes da hibridização em meios comunicativos. Recuero (2009) afirma que mídias sociais são dinâmicas de criação de conteúdo, difusão de informação e trocas dentro dos grupos sociais que se estabelecem nos sites de redes sociais. Mídias sociais, portanto, são ações nas plataformas online. No espaço virtual, a imagem ganhou uma nova dimensão, recriando formas de relação do sujeito com o mundo concreto – agora simulado em espaços virtuais. Passamos de consumidores a experimentadores de imagens. Jogos virtuais permitem a interação do usuário com o ambiente urbano simulado por meio da confecção de um avatar (personalização do usuário no Sumário <<<<< 375 espaço virtual); plataformas como o street view do Google Maps conferem um sentido de ubiquidade da imagem; narrativas cinematográficas, como a trilogia Matrix, ganham suportes virtuais produzindo narrativas transmidiáticas; jogos multimídia proporcionam entretenimento e imersão em níveis incomparáveis, usando velhas e novas mídias para disseminar conteúdo; objetos agora passam a ter conectividade e a geladeira passa a avisar quando os ovos estão para terminar (internet das coisas). Surge uma cultura híbrida e “cíbrida”2 (hibridismo sígnico e midiático próprio do ciberespaço), que é também conectada, ubíqua, nômade, líquida, fluida, volátil e, por fim, mutante. À medida que novos aparatos técnicos possibilitam formas diferentes de produzir linguagem, os aparatos cognitivos humanos também se transformam, e outros signos surgem. A midiatização intensifica as mediações sociais em um espaço próprio e relativamente autônomo. Ela opera articulando, de modo hibridizante, instituições sociais e organizações midiáticas. A tecnologia faz parte da vida das pessoas cada vez mais, e estamos conectados de formas cada vez mais amplas. No fim dos anos 1990, já éramos virtualmente conectados, já acessávamos a internet para nos informar. Porém, a partir da conexão banda larga, no início dos anos 2000, é que passamos a ser conectados o tempo inteiro. Para além da banda larga, a chegada da banda larga móvel fez com que levássemos a conexão conosco para todos os lugares. Isso muda radicalmente a forma como consumimos informação. 2 O conceito de “cíbrido” foi proposto por Peter Anders (2003) e procura explicar o hibridismo existente entre os campos virtual e físico. O hardware (algo que é palpável) e o software (algo que não vemos e que só opera a partir do hardware e da intervenção humana) constituem uma simbiose em que as concepções físicas e o espaço virtual mudam as nossas relações com o mundo. Cibridismo, portanto, é a condição de sermos on e off, simultaneamente, potencializada pela hiperconexão. Sumário <<<<< 376 A mobilidade fez com que as pessoas acelerassem seus ritmos de vida. A capacidade de atenção e de concentração diminuíram e os consumidores passaram a buscar fontes mais confiáveis de informação, pelo fato de serem bombardeados por mensagens publicitárias a todo instante. As empresas estão começando a entender que precisam se conectar de forma mais significativa com os consumidores, e não necessariamente em várias frentes de contato. Na era do marketing 4.0 (Kotler et al., 2017), os profissionais de marketing devem entender que o percurso do consumidor desde o momento de assimilação do produto ou serviço até o momento de fazer a apologia da marca, percorre três níveis de influência: a própria (quando consumidores são mais experientes e têm suas próprias opiniões e decisões), a dos outros (talvez a mais relevante, por inspirar confiança) e a externa (consumidores estreantes costumam contar com a influência externa, da propaganda por exemplo, nas suas decisões). Isso é fundamental para otimizar os esforços de marketing. Dessa forma, a tecnologia faz crescer, exponencialmente, não apenas as capacidades tecnológicas, mas a vida das pessoas. E os profissionais de marketing devem reconhecer tais mudanças para obter o engajamento dos consumidores com a marca, integrando o marketing tradicional com o marketing digital. Se o paradigma da revolução digital presumia que as novas mídias substituiriam as antigas, o emergente paradigma da convergência presume que novas e antigas mídias irão interagir de formas cada vez mais complexas. Em outras palavras, a chegada de um novo suporte tecnológico não substitui, mas refuncionaliza o meio. A internet mudou os meios de comunicação de massa através de presenças online e offline e a forma como nos apropriamos da mídia. Os meios de comunicação de massa tentaram Sumário <<<<< 377 e ainda tentam mudar a internet através do controle das opções individuais sobre os conteúdos acessados e interatividade diminuída. Mas a convergência é marcada pela mudança deste paradigma e pela necessidade de cooperação de múltiplos mercados midiáticos face ao comportamento migratório dos públicos nos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das informações e entretenimento que desejam. De acordo com Castells (2015), em razão desta convergência tecnológica, inaugurou-se uma fase de profundas mudanças culturais de interação e organização social, o que transformou a maneira como os sujeitos consomem conteúdos e são impactados, influenciados ou atingidos por eles. Quaisquer que sejam as motivações, a convergência está mudando o modo como os setores da mídia operam e o modo como a média das pessoas pensam sobre sua relação com os meios de comunicação. De acordo com Jenkins (2008), estamos diante de uma cultura midiática participativa, na qual a circulação de conteúdo depende das estratégias empresariais e das táticas de apropriação popular. Tal cultura participativa contrasta com a passividade outrora promulgada sobre o consumo dos meios de comunicação. Não podemos descartar, porém, que sempre haverá níveis de participação, e as corporações ainda exercem maior poder. Na cultura da convergência, há um novo consumo coletivo de informações e de mídia, utilizado, hoje, para fins recreativos, mas que começa a operar para causas mais sérias. É a inteligência coletiva, termo do autor Pierre Lévy (2007), em que cada indivíduo tem o potencial de ser um produtor e disseminador de saberes, estabelecendo, com outros, sinergia entre competências, recursos e projetos, ativando modos de cooperação flexíveis e transversais. A inteligência coletiva é o motor da cibercultura. Sumário <<<<< 378 A convergência também ocorre quando as pessoas assumem o controle das mídias. Em posse dos aparatos tecnológicos e dos softwares, os consumidores produzem seus próprios conteúdos e os compartilham em rede, lembrando o conceito de prosumer, apresentado por Alvin Toffler, em A terceira onda (1980), em que o público se torna corresponsável pelo processo de “espetacularização” que nos é proposto pela mídia, sujeito participante de um processo de transmissões simbólicas, com o “poder” de ressignificar o que recebe a partir de suas experiências socioculturais. É a comunicação mediada, que, de acordo com Martín-Barbero (2003), trata das articulações entre práticas de comunicação, sociedade e cultura. Ao lado da convergência corporativa, temos uma convergência alternativa, cujo protagonismo é dos consumidores – duas forças que, às vezes, complementam-se e que, em outras, geram batalhas. Por isso, empresas de mídia começam a repensar suas estratégias de marketing e de programação para atender aos consumidores ativos. Este ambiente virtual mais participativo e interativo propicia que ferramentas e sistemas de informação sejam mais amigáveis. Produtores de mídia estão tendo que se ajustar às exigências de participação do consumidor, ou correrão o risco de perder seus consumidores mais ativos e entusiasmados para alguma outra atração de mídia mais tolerante. Interatividade é a palavra-chave para pensarmos nos processos de criação de linguagem e de significação permitidos pela hipermídia. Diferente dos meios de comunicação massivos, que tratavam a comunicação como um processo unidirecional, os meios digitais possibilitam uma relação dupla entre emissores e receptores na produção de signos. Sumário <<<<< 379 Os métodos criativos empregados na atividade publicitária, entre os recursos persuasivos, os tratamentos de sedução e a linguagem emocional, traduzem-se em um emaranhado de relações intertextuais. Nesse jogo intertextual, pensa-se o espectador como um ser que participa e faz parte do sistema da cultura. Intertexto é o conjunto de discursos a que um discurso remete e no interior do qual ele ganha seu significado pleno. Hoje é comum a presença das duas telas: o sujeito assiste à TV e interage com outros consumidores pelas redes, sites, Youtube, produzindo e consumindo outros conteúdos ligados àquele. Hoje não temos mais mídias únicas, temos mídias convergentes, diferentes canais oferecendo e produzindo conteúdos que se complementam para o usuário. Sujeitos acessam a internet, buscam informações técnicas, opiniões, e passam a confiar em pessoas que ainda nem conhecem, as que produzem conteúdo de relevância relacionado ao produto que querem consumir. Assim, surge a figura do influenciador, que vai ocupar uma posição determinante na decisão de compra. O consumidor quer ir além do conteúdo de uma mídia em si, ele quer buscar conteúdos que contam uma mesma história sob outras óticas, quer se sentir parte daquela história. O mundo se tornou intolerante a discursos, pois precisa se sentir parte de algo maior. Envolvimento emocional só se consegue quando se troca o discurso pelo diálogo. O consumidor está interessado em histórias, entretenimento, narrativas transmidiáticas, que permitem a cada meio explorar um lado específico de uma narrativa principal, construindo marcas que o seduzem em todos os lugares. A narrativa transmídia é a arte da criação de um universo, é um velho/ novo conceito, que ganhou vigor com a cultura da convergência. Sumário <<<<< 380 E como reconquistar as audiências perdidas em virtude de tamanha fragmentação midiática e atomização do consumo? Através do storytelling, da criação de comunidades virtuais ao redor das marcas, do estabelecimento de novas alianças e novos formatos midiáticos. De acordo com Rez (2016), o marketing de conteúdo consiste em transformar a marca numa fonte de conhecimento relevante; estar onde o público está; ajudar as pessoas a encontrar o que elas precisam; estar presente em todo o processo de compra do consumidor e construir um relacionamento de confiança com o cliente após a compra. A abordagem do marketing de conteúdo envolve criação, manutenção e distribuição de conteúdo interessante, relevante e útil, com o objetivo de gerar conhecimento sobre a marca sem fazer propaganda direta (Kotler et al., 2017). Keller e Machado (2006) afirmam que o branding é dotar os produtos/serviços de brand equity, ou seja, atribuir valores agregados a um produto ou serviço, de forma que sua marca seja identificada por tais atributos. Kotler e Keller (2012, p. 260) acrescentam que “esse valor pode se refletir no modo como os consumidores pensam, sentem e agem em relação à marca, bem como nos preços, na participação de mercado e na lucratividade gerada pela marca”. Assim, a gestão da imagem de uma empresa por meio do branding cuida de como ela deve se instalar na mente do consumidor e produzir nele uma sensação positiva. De acordo com Cobra e Franceschini (2012), o clássico modelo AIDA (atenção, interesse, desejo e ação) ainda é muito esquecido pelo marketing das empresas, ao buscar engajamento com o cliente nas mídias, sejam elas tradicionais, alternativas ou sociais. A comunicação precisa chamar atenção, gerar interesse, provocar desejo e levar o cliente à ação de compra. Para se comunicar de Sumário <<<<< 381 maneira eficaz, a empresa precisa planejar a comunicação buscando unificar sua mensagem e envolver todos os colaboradores, transformando-os em multiplicadores da cultura da empresa. Estamos na era da mídia infinita, como bem classifica Marcondes (2020); temos inúmeras possibilidades de contato com nossos públicos, e infinitas são as maneiras de fazermos chegar até eles nossas ideias e conceitos de marketing, comunicação e criação. Referências ANDERS, Peter. Ciberespaço antrópico: definição do espaço eletrônico a partir das leis fundamentais. In: DOMINGUES, Diana (org). Arte e Vida no século XXI: Tecnologia, Ciência e Criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. CASTELLS, Manuel. A comunicação em rede está revitalizando a democracia. 2015. Disponível em: https://www.fronteiras.com/ leia/exibir/manuel-castells-a-comunicacao-em-rede-esta-revitalizando-a-democracia Acesso em: 12 jul. 2022. COBRA, Marcos; FRANCESCHINI, Adelia. 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(Hugo Boss News, 2022, p. 1). Como parte de suas ações estratégicas para lançamento de uma coleção de moda no ano 98 de sua existência, a empresa alemã de varejo de moda Hugo Boss2 apresentou, em 2022, uma reinvenção 1 Doutorando (bolsista CAPES) e mestre no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas – FGV-CPDOC-RJ. 2 Esclareço, a priori, a escolha da brand Hugo Boss para o presente estudo por minha proximidade a esta marca, a qual estudo desde 2012, que foi também objeto de minha pesquisa de mestrado (20172018) sobre o dandismo contemporâneo e o consumo de moda masculina, com uma etnografia realizada no Brasil (RJ) e na Alemanha (Berlim), cujos registros estão presentes em minha dissertação Pintores da vida moderna: uma perspectiva crítica sobre o homem contemporâneo e o consumo de moda masculina, disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace;/handle/10438/27358. Acesso em: 28 ago. 2022. de sua identidade de marca – consolidando sua comunicação em duas labels: HUGO e BOSS,3 pautando-se por uma comunicação digital ostensiva, ligada, sobretudo, à força das redes sociais e dos canais digitais. Para tanto, difundiu, por meio do press release em que apresentou seu ambicioso projeto vinculado ao excerto citado, um conceito de seus perfis de rede social como “plataformas de autoexpressão” (Hugo Boss News, 2022, p. 1), numa reversão do conceito de moda como algo pré-concebido ou impositivo; uma espécie de convite a uma interação horizontal, na qual o consumidor também revela a si mesmo ao dialogar com as imagens dos corpos exibidos nas peças publicitárias divulgadas. Assumindo, em 2021, o cargo de CEO da empresa posicionada como uma das mais bem-sucedidas marcas de moda do mundo, o executivo Daniel Grieder projetou uma coleção com design e comunicação voltados para as gerações Y e Z, o público mais conectado da chamada era dos millenials. Um plano de crescimento estratégico denominado “Claim 5 Strategy”4 foi desenvolvido para melhor direcionar e posicionar a comunicação de suas labels: a HUGO, voltada para a geração Z abaixo de 25 anos, e a BOSS, direcionada para millennials de 25 a 40 anos. A estratégia proposta pela Hugo Boss adequa-se a uma recente, e cada vez mais recorrente, visão estratégica e comunicacional das marcas de moda que subverte, de certa forma, o padrão impositivo convencional dos modelos/manequins de agências – aqueles rostos/corpos “perfeitos” que sempre povoaram a publicidade e serviram como protótipo ou referência (“modelo”) de 3 A grafia em caixa alta, adotada neste capítulo para “HUGO” e “BOSS”, reproduz a semântica que a própria grife tem usado para tipificar as duas labels dentro da marca-mãe, a Hugo Boss. 4 A empresa publicou em seu site oficial um release apresentando seu projeto estratégico. Disponível em: https://group.hugoboss.com/fileadmin/media/hbnews/user_upload/Investor_Relations/Events /20210804_HUGO_BOSS_Investor_Day_2021_CEO_Claim_5_Strategy.pdf. Acesso em: 28 ago. 2022. Sumário <<<<< 386 beleza ou de expressão: o novo mote é lançar mão de personagens com protagonismo consolidado nas mídias sociais. O advento da era digital tornou a comunicação de moda um ato também dominado pela lógica dos algoritmos:5 as grifes abraçam os chamados digital influencers (figura 1), que são os donos de perfis de rede social com alto número de seguidores e elevado engajamento no universo web, aproveitando esse fluxo de audiência consolidada para circularem suas mensagens e produtos. Figura 1 - Digital influencer Big Matthew na campanha #HUGOYourWay Fonte: Site Hugo Boss 5 Um case considerado pioneiro na relevância desse tipo de estratégia global para marcas dos segmentos luxo e premium é da brand britânica Burberry, que pode ser melhor compreendido acessando: Yousef Khan, “How Burberry embraced digital and transformed into a leading luxury brand”, Centric Digital blog, November 9, 2015. Disponível em: https://centricdigital.com/blog/ digital-strategy/digital-transformation-in-traditional-fashion-burberry/. Acesso em 29 ago. 2022. Sumário <<<<< 387 Na campanha, os influencers escolhidos são apresentados como personagens que tipificam consumidores críticos livres, no sentido em que sugerem construir seus próprios estilos de autoexpressão e identidade pessoal.6 Estão ligados à música, à moda, a expressões de arte, o que sempre sugere liberdade, criatividade e expressão pessoal. Embora sem discursar objetivamente sobre a questão, o conceito de diversidade étnica também está presente na campanha: Big Matthew é asiático e advém do fenômeno musical K-pop, gênero musical contemporâneo de grande impacto entre adolescentes e jovens pelo mundo; e Adut Akech (modelo sudanesa-australiana) e Saint Jhn (rapper americano-guianês) são, respectivamente, uma mulher e um homem negros. Parece inteligível que, ao absorver esses protagonistas digitais para suas campanhas (figura 2), as marcas dialogam com os seguidores e trafegam no fluxo de comunicação desses personagens. A HUGO parece sinalizar a seus consumidores que, não obstante esteja criando sua coleção com exclusividade e qualidade, num contexto autoral, ainda assim concede a seus usuários uma ascese de autonomia e afirmação pessoal, uma lógica sobre a qual são incutidos os discursos que tentam diferir ou mesmo desfazer a visão crítica do consumo conspícuo (Veblen, 1974) ou impositivo (Lipovetsky, 2007), muito presente nos estudos conceituais mais recorrentes sobre a moda. 6 A lógica de autoexpressão é reforçada no perfil de Instagram por vários vídeos em que influencers aparecem customizando peças, pintando murais ou, de alguma forma, customizando produtos e símbolos da label HUGO em novas peças ou criações absolutamente inéditas e personalizadas, subjetivando, de forma autoral, o conceito da marca e da própria campanha. Sumário <<<<< 388 Figura 2 - Influencers Adut Akech e Saint Jhn na campanha #HUGOYourWay Fonte: Perfil HUGO na rede social Facebook Desenquadrados por essa abordagem comunicacional da ideia de que sejam manipulados ou condicionados, esses consumidores recebem uma proposição/promessa de “autoexpressão”. Recorrendo à duplicidade do signo, recurso muito comumente utilizado na linguagem publicitária, a hashtag #HUGOYourWay tem sentido polissêmico: há uma dicotomia no termo “HUGO” a partir de sua pronúncia em inglês, que é, ambiguamente, <nome da marca> + <”You Go”>, sugerindo que a marca (HUGO) é “seu caminho”, mas, paralelamente, utilizando a sílaba <HU> como um cacófato de <YOU>, sugerindo “você (YOU) segue seu caminho”. Muito embora tenhamos destacado aqui elementos textuais presentes na campanha, adentremos a sua correlação com a textualidade simbólico-visual exposta na narrativa dos corpos Sumário <<<<< 389 que aparecem em movimento, em contexto dinâmico de deslocamento espacial, vestindo as roupas da coleção nas imagens de campanha nas redes sociais da marca. Nossa proposição neste capítulo é associar os corpos atuantes virtualizados em imagens de vídeos ou fotos das plataformas digitais, primeiramente, aos corpos dos manequins, convencionalmente apresentados nas vitrines ou no interior das lojas físicas – concebendo-os como “corpos vitrínicos”. Por essa analogia, concebemos as campanhas nas plataformas digitais como simulações da experiência vitrínica, uma vez que, por meio dessas circulações midiáticas, os dispositivos tecnológicos (tablets, smartphones, notebooks) tornam-se vitrines virtuais móveis, dialogando com seus usuários-consumidores. O que não seria uma novidade, no sentido em que a moda já trabalhava com essa presença imagética através da fotografia (revista, outdoor) e das telas (comercial em vídeo), ou mesmo das vitrines das lojas (manequins vestindo as roupas). Entretanto, a experiência da projeção de imagens publicitárias nas redes sociais apresenta uma façanha interativa diferente da contemplação visual (impressa) da revista ou do outdoor, e mesmo da contemplação televisiva (audiovisual), onde apenas o olhar é permitido, sem uma interação interferente (curtir, comentar, compartilhar, reportar, repetir a execução livremente) que caracterize uma ação mais objetiva do sujeito (consumidor) com o objeto (a marca). Uma vez compreendida dessa forma tal experiência, pretendemos, então, num segundo momento, analisar, epistemologicamente, o fenômeno dos corpos humanos dos consumidores/ seguidores, projetando-se sobre os corpos virtualizados na metáfora/figura retórica dos ciborgues, que, objetificados, podem ser compreendidos em uma leitura materialista como fenômenos fora do humano, em uma ontologia própria ou independente, das “coisas” ou dos objetos. Sumário <<<<< 390 Afinal, esses corpos das imagens publicitárias encerram-se em si mesmos como construtos discursivos determinados a um fim predito como signos da comunicação, ou possuem uma ontologia, uma agência e uma trajetória existencial imanente e intrínseca? Corpos vitrínicos, corpos virtuais ou ciborgues digitais? Um padrão óbvio do atual comércio, as vitrines surgem de forma rudimentar no século XVIII, mas, apenas por volta de 1850, vidros de grandes dimensões começam a ser fabricados, permitindo sua crescente adoção. As vitrines constituem, desde então, um palco fundamental para a exibição da, cada vez mais ampla, variedade de mercadorias (Rocha; Frid; Corbo, 2016, p.131). Elemento icônico dos bulevares parisienses expandidos nas reformas de Haussman e da vida moderna pautada pelos ideais de consumo advindos da revolução industrial (Harvey, 2015), as lojas de departamentos tinham nas vitrines suas janelas para o novo mundo da beleza e da felicidade prometidos pela era do desenvolvimentismo. Everardo Rocha, Marina Frid e William Corbo (2016) traçam um percurso dissertativo, que vai dos quadros do pintor realista Edward Hopper ao escritor Émile Zola, para mostrar como esses artistas tiveram por referência as vitrines em seus processos criativos, ante seu uso abundante e muito presente a partir do século XIX nas lojas de departamentos, concluindo, a seguir, que “as vitrines estão entre os principais gatilhos para as aspirações cotidianas de mulheres e homens que, diante delas, sonham com novas experiências” (Rocha; Frid; Corbo, 2016, p. 183). Quando Michel Maffesoli (1996) cunhou o conceito de homo aestheticus para tipificar o sujeito da modernidade como fruto de um período em que a vida social caracterizava-se por uma exacerbação dos sentimentos individuais, dos desejos e de uma sensoria- Sumário <<<<< 391 lidade latente a partir do fin-de-siècle, estendeu seu conceito até um recorte temporal mais avançado – a dita “pós-modernidade” – para concluir que “tudo o que se chama pós-moderno é, pura e simplesmente, um modo de distinguir a ligação existente entre a ética e a estética” (Maffesoli, 1996, p. 26), algo que seria chamado mais adiante por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015) de uma “estetização do mundo” decorrente de uma “era do capitalismo artista”. Há vitrines que apenas apresentam produtos ou objetos para consumo. Consideremos, porém, para este estudo, a presença do corpo do manequim na vitrine, uma vez que a campanha digital #HUGOYourWay também é pautada pela presença de corpos. O corpo é objeto fundamental de estudo nas relações entre os usos de moda. Toda estetização do ente humano é dada pelo corpo, que se transforma ou se relaciona com promessas do belo para ressignificar a si próprio. A moda seria, afinal, o pano que veste, a veste que cobre, o acessório que enfeita, o envoltório estético que adorna as formas físicas e propõe ressignificações do construto natural (o corpo humano) para que este atinja uma dimensão cultural (o corpo simbólico). O corpo que fisicamente é denotação empresta a si mesmo elementos estéticos que o tornam conotativo, como reitera o antropólogo norte-americano Ted Polhemus: A decoração do corpo, longe de ser um gasto frívolo e insignificante de tempo e recursos, pode ser uma atividade altamente prática, eficaz e necessária. Sem isso, teríamos grandes problemas, talvez insuperáveis, criando e mantendo aquelas redes de relações sociais e culturais que sempre foram e sempre serão os fundamentos da realização humana (Polhemus, 1994, tradução nossa). Sumário <<<<< 392 Compreende-se, assim, que há sentidos de autoconstrução e representação na projeção em outros corpos para fazer valer o sentido dos usos da moda. Sejam corpos vivos desfilando em uma passarela, corpos móveis filmados para vídeo, os corpos estáticos da fotografia ou os dispostos como manequins (“bonecos”) em lojas, todos expressam sua função “vitrínica”7 de expor o produto e se exporem, numa promessa de troca imediata: “seja eu!”, “vista o que eu visto!”, “expresse o que eu estou expressando!”. Na chamada Era Digital, caracterizada por uma sequência de eventos onde as tecnologias se tornaram onipresentes no cotidiano, parece-nos cada vez mais corroborada a ideia de que as pessoas se tornaram sujeitos existencialmente duais – presentes fisicamente em suas existências naturais, e virtualmente em seus perfis/avatares de redes sociais. Dessa forma, é possível compreender a existência de um corpo virtual – a imagem construída ou constituída nos perfis de rede social – que nos espelha ou representa dentro do ciberespaço. O escritor e biofísico Gregory Stock apresentou, na década de 1990, uma interessante (profética?) constatação sobre o advento maquínico-tecnológico e sua relação com a humanidade. Ao cunhar o conceito do “metaman” (Stock, 1993), vislumbrou um sistema mundial onde pessoas, máquinas e coisas passaram a integrar uma espécie de corpo uno, indivisível e cosmológico por meio do qual todas as tarefas se interligariam em esfera universal (globalizada). Stock tensionou uma certa dialética ontológica referente ao binômio homem-máquina constituinte desse Metaman: 7 Aqui adotaremos, então, os sentidos desse “corpo vitrínico” como um termo genérico para designar os corpos midiáticos veiculados nas campanhas digitais, cuja exposição nas telas de dispositivos eletrônicos assemelha-se à dos corpos dos manequins de vitrines físicas, que convidam e apelam ao consumo. Sumário <<<<< 393 Uma compreensão de Metaman esclarece a dinâmica fundamental que molda a sociedade humana. Algumas mudanças sociais são a consequência inevitável dessas forças maiores e estão efetivamente além do nosso controle, outras são o produto de influências humanas modificáveis. Distinguir entre esses dois tipos de fenômenos é fundamental tanto na definição de prioridades governamentais quanto na definição de direções em nossas próprias vidas (Stock, 1993, p. 22, tradução nossa). O pensamento de Stock sobre discutir a agência do humano e do maquínico – quem comanda quem? – quando ambos estão hibridizados envolve o tecnológico e o político, algo que, de certa forma, a moda também propõe. Ao evocar “autoexpressão”, a moda convoca o indivíduo a uma fusão daquilo que ela oferece àquilo que o sujeito é, identificando-se com um grupo/tribo a partir de algum contexto autoral. Nessa leitura de Stock sobre conectividade - conexão entre homens e gadgets, pode-se pensar um diálogo com um conceito já proposto por outra pensadora, Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue (2009), onde corpos ligados a próteses constituem uma nova forma de existência simbólica. O ciborgue de Haraway é um híbrido, um humano que se amplia por meio de recursos tecnológicos, o que o torna “um elemento gerador de instabilidade política, um questionador de identidades [...] ontologicamente construídas em função de contextos políticos assimétricos” (Dutra, 2011, p. 8). Na mesma proporção, outro teórico, James Hughes, irá contemplar o seu “cidadão ciborgue” como um ser tecnopolítico que transcenderá as alterações do corpo pela técnica, inserindo-se também em uma (co)existência “dentro da máquina”, se reclassificando para uma nova e (talvez) ainda indefinida categoria social: Sumário <<<<< 394 No século XXI, as tecnologias transumanas não apenas nos permitirão viver mais, ser mais inteligentes e ter mais controle sobre nossas emoções e nossos corpos. Eles também nos permitirão clonar, misturar DNA humano e animal e modificar geneticamente nossos corpos por razões estéticas. Vamos incorporar computadores em nossos corpos e cérebros, e simular cérebros humanos em computadores. Dia após dia, nossos concidadãos se tornarão rapidamente mais estranhos, e precisaremos de novas categorias e uma nova compreensão da democracia para dar um novo sentido ao mundo (Hughes, 2004, p. 77). Se as questões do binarismo humano-tecnológico propostas por Stock, Haraway e Hughes até aqui nos ajudam na compreensão de corpos físicos projetados em aparatos mecanizados, é Jean Baudrillard, ao teorizar sobre a clonagem humana, quem atribui ao corpo tecnológico um sentido informativo/comunicativo: o que nos acontece já não só ao nível das mensagens mas ao nível dos indivíduos com a clonagem [...] é o que acontece ao corpo quando já não é ele próprio concebido senão como mensagem, como estoque de informação e de mensagens, como substância informática. Nada se opõe então à sua reprodutibilidade serial nos mesmos termos que emprega Benjamin para os objectos industriais e as imagens mass-mediáticas (Baudrillard, 1991, p. 129). A proposição baudrillariana do corpo técnico como “estoque de informação” denuncia uma nova prótese – na ordem simbólica do discursivo, do comunicacional. Não apenas estendido pelo técnico, mas igualmente capaz de ser reproduzido serialmente Sumário <<<<< 395 e circular como um corpo que comunica midiaticamente, na esfera do informativo. Quando a campanha publicitária da HUGO sinaliza “o seu caminho” (Your Way), ela indica uma lógica de identificação entre os personagens (influencers) que se movem, autoralmente, no ambiente do ciberespaço como projeções de quem os contempla, o que nos permite compreender, por analogia, que esses seres ali virtualizados seriam a continuação de nós mesmos revelada de forma performática (espetacular e também especular) nos limites da tela. A minha possibilidade de me conectar de forma direta com aquele personagem que ali aparece e que não sou eu está na mediação que a roupa oferece: vestir o que aquele corpo virtual veste literalmente me “uniformiza”, me “transforma”, me faz “assumir a forma” do corpo que me convida a ser eu mesmo através daquilo que aquele personagem é. Isso faz dele, de certa forma, uma prótese de mim, uma extensão minha. Uma vez entendidos os sentidos de identificação e projeção, resta-nos buscar um outro caminho possível para problematizar a questão: se essa imagem de um corpo da publicidade onde se pode projetar o próprio corpo, ao ponto de considerá-la uma extensão que a torna um ciborgue digital, é um construto advindo de uma alteridade – seja, em nosso caso, do CEO da HUGO que criou a estratégia, do diretor de fotografia que concebeu a peça publicitária ou do digital influencer que efetivamente emprestou seu corpo para se tornar imagem –, que tipo de agência esse objeto final possui, uma vez que, após inserido para circular na rede, “lançado à sua própria sorte”, estará sujeito a uma circulação que, embora possa ser mensurada por dados, nunca estará sob controle absoluto nem de quem o lançou, nem de quem nele se espelha? Sumário <<<<< 396 “#HugoYourObjects”: uma nova proposição ontológica Os pontos até aqui apresentados parecem nortear de forma satisfatória a compreensão dos usos do corpo como elemento por meio do qual alguém pode se projetar e, numa relação de consumo, idealizar a própria identidade espelhada em um simulacro. Entretanto, independente de retoricamente o chamarmos de “corpo digital”, “corpo vitrínico”, “ciborgue”, “metaman” ou mesmo “corpo informativo”, qualquer que possa ser o termo que o descreva, uma questão nos parece aberta, a qual agora tentaremos equacionar. Existem dois olhares distintos que até aqui concebemos, permeados pela relação clássica da comunicação que é a polaridade emissor-destinatário. No caso da campanha que estudamos, a marca HUGO – o emissor – veicula sua mensagem publicitária e faz circular os corpos dos digital influencers oferecendo um modelo especular no qual os seus consumidores se refletem e se identificam. Os consumidores – enquanto destinatários -, por uma lógica de identificação, projetam-se nesses corpos dos digital influencers, constituindo neles extensões de si mesmos, e chegarão até os produtos que desejarão consumir não antes de consumirem em ato simbólico os próprios corpos, reconhecidos como espelhos de si. Uma vez equacionada essa relação entre “quem vende” (a marca HUGO) e “quem compra” (o consumidor), resta um elemento “perdido” ou “incompreendido” no campo de nossas análises, que é quem os medeia. Ao que nos parece, esses corpos vitrínicos – que na relação triádica da comunicação representariam a “mensagem”, elemento mediador entre “emissor” e “destinatário” – parecem observados como que desprovidos de alguma autonomia: a marca HUGO tem um discurso próprio, o consumidor tem uma proposição de uso, e quanto aos corpos? Como se dá sua existência? Sumário <<<<< 397 É nesse ponto que nos parece necessário contemplar um olhar diferenciado, como nos propõe a corrente do pensamento dos realistas especulativos, um campo mais recente da filosofia contemporânea que adota em suas análises fenomenológicas aquilo que fora idealizado como uma Ontologia Orientada aos Objetos (OOO). Embora sigam linhas diversificadas entre seus autores fundamentais, os realistas especulativos têm por elemento comum a descentralização hierárquica do homem ante os objetos, uma perspectiva não antropocêntrica do mundo que nega o que eles chamam de “correlacionismo”, termo cunhado por Quentin Meillassoux, em sua obra After finitude: an essay to the necessity of contingency, para tipificar a visão cartesiana e kantiana de que as coisas só existem como experiência da mente humana ou da linguagem. Em outras palavras, o correlacionismo subordina a existência das coisas – que podem ser chamadas de “objetos” (conforme Graham Harman em Tool being: Heidegger and the metaphysics of objects, de 2002), “máquinas” (conforme Levi Bryant em Onto-Cartography: an ontology of machines and media, de 2014) ou “coisas” (Ian Bogost em Alien Phenomenology, or What it’s like to be a thing, de 2012) – às interações humanas, enquanto a OOO volta-se para os objetos, atribuindo-lhes uma existência própria, independente da percepção humana. Tendo este texto uma proposição de natureza mais ensaística, para a qual adotamos outros pressupostos teóricos com os quais até aqui desenvolvemos as análises, e considerando ainda que uma análise mais aprofundada sobre a campanha #HugoYourWay sob uma metodologia da OOO excederia o limite de texto previsto para a publicação deste livro, optamos por uma breve incursão na Sumário <<<<< 398 aplicação da OOO que nos permitiria algumas reflexões diferenciadas, a princípio como uma invocação desse olhar filosófico. A lógica de compreensão da circulação das imagens de rede social, por exemplo, sofreria algumas alterações se desconsiderássemos os olhares da agência humana. Até aqui, todas as considerações tecidas giraram em torno de um encadeamento da experiência humana: começamos com o CEO da Hugo criando uma estratégia, as imagens dos corpos dos influencers sendo midiatizadas e os consumidores interagindo. A OOO procuraria resgatar um sentido intrínseco à existência peculiar desses objetos – assim compreendendo-se os vídeos ou imagens dos corpos vitrínicos das campanhas; não seriam eles “livres” para circularem aleatoriamente a partir do automatismo dos algoritmos, que foge ao controle de quem publica alguma coisa em uma rede social? Existem estratégias para engajamento, estudos e mapeamentos de métricas no analytics, mas nunca se sabe, por exemplo, quando um conteúdo pode ou não “viralizar”. Essa simples constatação evidencia que um conteúdo digital é um objeto que circula sozinho, navega com uma autonomia que subverte os sentidos de subordinação a uma agência humana: “dentro” do ciberespaço ele tem seu movimento próprio, sua circulação autônoma. Se falamos da circulação e do alcance, agora também podemos falar do controle. Ao contrário de um plano de mídia convencional, que é um objeto controlável por uma regra de inserções e repetições tabeladas, um conteúdo digital é um objeto também mensurável, mas não controlável: aquilo que eu disponibilizo pode estar sendo acessado sem que eu saiba exatamente quando. Um perfil de rede social, por exemplo, representa, em tese, alguém, mas esse alguém pode estar dormindo enquanto outrem está interagindo com esse perfil. Isso significa que meu login, Sumário <<<<< 399 minhas atualizações e minha gestão de rede social não impedem que esse perfil tenha uma ontologia própria enquanto objeto, sendo capaz até mesmo de “ser comunicável” quando eu mesmo não me comunico. Dessa forma, os corpos vitrínicos – das vitrines físicas e das vitrines digitais dos dispositivos que midiatizam campanhas de moda como a #HUGOYourWay, tema deste estudo, podem ser observados sob essa lógica de uma materialidade que implica em uma vida própria, não apenas midiatizada, mas que também se medeia. Considerações finais Os olhares do contemporâneo e os campos do saber têm se dedicado, em escala cada vez mais frequente, a estudos sobre os usos de moda por uma compreensão sistemática de representações simbólicas que transcendem sua mera funcionalidade enquanto vestuário, considerando-se a complexidade de suas manifestações e a possibilidade que ela oferece de reconfiguração e reposicionamento do indivíduo nas esferas social, econômica e política. O caráter mercadológico da produção da “roupa” – elemento gerador da moda e de suas múltiplas intertextualidades – vem sendo igualmente estudado para a compreensão de como o sujeito moderno constitui e afirma a sua identidade e as suas relações com o mundo. A publicidade, como técnica utilizada para difundir conceitos e vender produtos, tem feito, historicamente, o uso das tecnologias para potencializar seu alcance e eficácia, razão pela qual está presente também na era de transformações digitais em que vivemos. Pode-se conceber a atração provocada pelos corpos vitrínicos, em um escopo quase filosófico, como um redesenho por uma “ciborgologia virtual”, onde ocorre uma extensão protética de quem Sumário <<<<< 400 contempla a imagem publicitária; uma lógica clara do sujeito que se espelha em um corpo virtual e, por meio dele, se projeta em um meio digital. Dessa forma, a “prótese” desse corpo, no sentido da “ciborgologia” de Donna Haraway e James Hughes, não é um artefato técnico-físico; é antes um artefato digital – uma imagem! Que, como o metaman de Gregory Stock, conecta-se a um conjunto total, e, como na clonagem proposta por Jean Baudrillard, é um “outro de mim mesmo” que circula e informa serialmente. Embora a moda seja um fenômeno social que envolve pessoas, a leitura diferenciada da circulação de conteúdos digitais entendidos como objetos dotados de uma existência própria, independente da própria comunicação que esses conteúdos estabelecem com pessoas, como pudemos problematizar estudando a campanha #HUGOYourWay, nos possibilita uma reflexão mais atenta sobre os limites da era digital e do sentido da experiência de se “conectar”. “Estar conectado” pode ser algo além de um simples uso de uma tecnologia de rede: é uma experiência de projeção e ressignificação da própria existência corpórea, compreendida como uma reflexão entre os limites que as tecnologias vão rompendo entre o humano e o maquínico, as coisas e os objetos, o real e o virtual. Referências BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991. BOGOST, I. Alien Phenomenology, or What It’s Like to Be a Thing. Minnesota; University of Minnesota, 2012. BRYANT, L. 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