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Projeção 1975, de Heiner Müller

2023, A Palo Seco

Apresenta-se a primeira tradução para o português do poema "Projeção 1975", do dramaturgo alemão Heiner Müller. Considerado o mais importante dramaturgo em língua alemã depois de Brecht, Müller também produziu textos curtos e poemas, além de ter publicado extensas entrevistas. Em "Projeção 1975", reflete sobre a própria obra a partir de versos de Hamlet, de Shakespeare. O texto pode ser lido como um memento mori e coloca em evidência um aspecto importante da obra de Müller, o diálogo com os mortos.

A Palo Seco Ano 15, n. 17, 2023 Escritos de Filosofia e Literatura Heiner Müller condensado: Projeção 1975 Rui Rothe-Neves Universidade Federal de Minas Gerais Considerado um dos mais importantes dramaturgos do século XX, o alemão Heiner Müller nasceu em Eppendorf, na Saxônia, em 1929. Depois da guerra, trabalhou no tribunal regional, exerceu atividade jornalística e colaborou na associação dos escritores e no Teatro Maxim Gorki, em Berlin. Em 1962 foi expulso da associação dos escritores por causa da polêmica causada por sua peça “A Reassentada ou A Vida no Campo” 1 [Die Umsiedlerin oder Das Leben auf dem Lande], o que equivalia à proibição de publicar na Alemanha Oriental. Passou a viver de suas peças, traduções e adaptações para teatro e rádio, tornando-se mundialmente conhecido a partir da década de 1980. Nesta época, peças de sua autoria foram publicadas e encenadas no Brasil e o autor veio a São Paulo, em julho de 1988. Consagrou-se como superintendente, a partir de 1992, do Berliner Ensemble, o teatro fundado por Bertold Brecht. Faleceu em 1995 em Berlin, vitimado por um câncer de esôfago. Em “Projeção 1975” transparece uma faceta menos conhecida da produção de Heiner Müller: os textos curtos que não se deixam encaixar facilmente em gêneros textuais ou categorias. O texto teve sua primeira edição no já citado “A Reassentada” (MÜLLER, 1975) e foi incluído no volume dedicado aos poemas nas “Obras Reunidas” [Gesammelte Werke], organizadas por Frank Hörnigk para a Editora Suhrkamp. Contudo, esse texto não se organiza em função de sua forma e talvez fosse mais adequado dizer que Müller explora nele o processo que usaria também em sua produção para teatro, a ponto de podermos dizer que se trata de um condensado de sua escritura. De fato, Müller começou sua carreira registrando em verso ideias que mais à frente viria (ou não) a desenvolver em textos para teatro e voltou aos poemas pouco antes de morrer. “Atravessar as fronteiras convencionais dos gêneros e, ao mesmo tempo, carregá-los de grande intensidade afetiva não é de forma alguma arbitrário na produção textual de Müller, mas pode ser descrito como uma poética própria.” (PRIMAVESI, 2017, p. 321). 1. Koudela (2003) e Röhl (1997) traduzem o título da peça Die Umsiedlerin por “A Transladada”; Karola Zimber o traduz por “A Repatriada” (MÜLLER, 1997). * – rothe-neves@ufmg.br A Palo Seco - Escritos de Filosofia e Literatura / São Cristóvão (SE), N. 17, p. 62-67, Jul-Dez/2023 www.gefelit.net/?GeFeLit=apaloseco Recebido em 02/12/2023 Aprovado em 20/12/2023 62 Heiner Müller condensado: Projeção 1975 Rui Rothe-Neves O texto2 contém várias características da produção textual de Heiner Müller. Formalmente, além da já comentada mistura de prosa e verso, temos o mais característico de seus procedimentos, a intertextualidade: “em grande parte reescritura de literatura, a produção teatral de Müller mostra, por um lado, o quanto o autor se inscreve na tradição literária e, por outro, a especificidade do seu traço, a sua assinatura inconfundível” (RÖHL, 1997, p. 27). A partir dos mais variados retalhos, que ele chamava de “materiais”, tecia seus textos numa mistura de gêneros e épocas. Tematicamente, “Projeção 1975” apresenta uma composição de dois motivos que remetem à vanitas latina, uma reflexão sobre a transitoriedade da vida e das coisas neste mundo. O subtítulo é uma variante do ubi sunt (do latim: “onde estão”). Na pergunta em que a escrita de Müller caracteristicamente omite o ponto de interrogação (“Onde a manhã que ontem vimos”) ecoa o célebre verso de François Villon: “Onde estão as neves d’antanho?”. Com o novo dia, “manhã” designa metaforicamente também o início de um novo tempo. Nos dias de Müller, esse novo tempo era, na versão oficial, a pátria socialista. O segundo motivo é um memento mori (em latim: “lembra-te que morres”), que apresenta um dos aspectos constituintes da estética mülleriana que sempre volta ao seu foco e de seus comentaristas. “Na história, o que morreu não está morto. Uma das funções do drama é a evocação dos mortos – o diálogo com os mortos não deve ser interrompido enquanto eles não revelarem a parte de futuro que foi enterrada com eles”. (MÜLLER, 1996, p. 112). Encapsulada entre os dois motivos, a estrofe é uma tradução dos seguintes versos de “A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca” (Cena I, Ato I), de Shakespeare: (Marcelo) (Horácio) Esta ave boêmia canta a noite inteira; Mas olhem, a alvorada, em seu manto violeta, Já cruza o orvalho do mais longínquo monte.3 A sugestão de que Hamlet se organize como um memento mori não é nova (COX, 1942; MORRIS, 1970), o que é óbvio no diálogo com o coveiro (Cena I, Ato V). Não é difícil ver que “Projeção 1975” seja, portanto, mais um exemplo do produtivo canibalismo a que Müller submeteu Shakespeare. Quando o escreveu, sua trajetória de interações com a obra do bardo inglês já vinha de há algum tempo, iniciada como tradutor de As You Like It (1967), passando pela adaptação de Macbeth (1971) e a 2. Na voz de Heiner Müller, pode-se ouvi-lo em https://www.lyrikline.org/de/gedichte/projektion-1975-3231. 3. Aqui na tradução de Bruna Beber (SHAKESPEARE, 2019). No original: Marcelo – The bird of dawning singeth all night long; Horácio – But look, the morn in russet mantle clad, / Walks o’er the dew of yon high eastward hill. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/1524/1524-h/1524-h.htm#sceneI_8.2). A Palo Seco - Escritos de Filosofia e Literatura / São Cristóvão (SE), N. 17, p. 62-67, Jul-Dez/2023 www.gefelit.net/?GeFeLit=apaloseco 63 Heiner Müller condensado: Projeção 1975 Rui Rothe-Neves tradução de Hamlet, que estreou em 1977 na Volksbühne Berlin sob direção do suíço Benno Besson. O resultado mais conhecido dessa canibalização é a peça de 1977 traduzida no Brasil como “Hamlet-Máquina” [Die Hamletmaschine], que termina com um discurso de Ofélia: “Aqui fala Electra. No coração das trevas. Sob o sol da tortura. Para as metrópoles do mundo. (...)” (Müller, 1987, p. 32). Como na peça, “Projeção 1975” também termina trazendo para o foco a segunda linha-mestra da intertextualidade em Heiner Müller: a recepção dos clássicos. Assim, além de mostrar a tradição literária com que Müller dialoga em suas (re)criações, em “Projeção 1975” seu diálogo com os mortos volta-se sobre o próprio autor. A Palo Seco - Escritos de Filosofia e Literatura / São Cristóvão (SE), N. 17, p. 62-67, Jul-Dez/2023 www.gefelit.net/?GeFeLit=apaloseco 64 Heiner Müller condensado: Projeção 1975 Rui Rothe-Neves Heiner Müller condensado: Projeção 1975 PROJEÇÃO 1975 PROJEKTION 1975 Onde a manhã que ontem vimos Wo ist der Morgen den wir gestern sahn A ave precoce canta a noite inteira A manhã em rubro manto atravessa O orvalho como sangue ao seu passo Der frühe Vogel singt die ganze Nacht Im roten Mantel geht der Morgen durch Den Tau der scheint von seinem Gang wie Blut Leio o que escrevi há três, cinco, vinte anos como o texto de um autor defunto, de um tempo em que a morte ainda cabia no verso. Os assassinos deixaram de escandir suas vítimas. Lembro-me da minha primeira tentativa de escrever uma peça. O texto se perdeu no tumulto pós-guerra. Começava com o herói (adolescente) de pé frente ao espelho tentando descobrir por que caminhos os vermes percorreriam sua carne. No final, ele estava no porão e abria seu pai. No século de Orestes e Electra que se aproxima, Édipo será uma comédia. A Palo Seco - Escritos de Filosofia e Literatura / São Cristóvão (SE), N. 17, p. 62-67, Jul-Dez/2023 www.gefelit.net/?GeFeLit=apaloseco Rui Rothe-Neves Ich lese, was ich vor drei, fünf, zwanzig Jahren geschrieben habe, wie den Text eines toten Autors, aus einer Zeit, als ein Tod noch in den Vers paßte. Die Mörder haben aufgehört, ihre Opfer zu skandieren. Ich erinnere mich an meinen ersten Versuch, ein Stück zu schreiben. Der Text ist in den Nachkriegswirren verlorengegangen. Es begann damit, daß der (jugendliche) Held vor dem Spiegel stand und herauszufinden versuchte, welche Straßen die Würmer durch sein Fleisch gehen würden. Am Ende stand er im Keller und schnitt seinen Vater auf. Im Jahrhundert des Orest und der Elektra, das heraufkommt, wird Ödipus eine Komödie sein. 65 A Palo Seco - Escritos de Filosofia e Literatura / São Cristóvão (SE), N. 17, p. 62-67, Jul-Dez/2023 www.gefelit.net/?GeFeLit=apaloseco 66 Heiner Müller condensado: Projeção 1975 Rui Rothe-Neves Referências COX, Ernest H. Another medieval convention in Shakespeare. The Shakespeare Association Bulletin, v. 16, n. 4, p. 249-253, 1941. KOUDELA, Ingrid D. (Org.). Heiner Müller: o espanto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003. MÜLLER, Heiner. Hamlet-máquina. Trad. Reinaldo Mestrinel. Teatro de Heiner Müller. Apresentação de Fernando Peixoto. São Paulo: HUCITEC, p. 25-32, 1987. MÜLLER, Heiner. Uma conversa entre Heiner Müller e Wolfgang Heise. Trad. José Galisi Filho. Magma, n. 3, p. 97-116, 1996. MÜLLER, Heiner. Guerra sem batalha: uma vida entre duas ditaduras. São Paulo: Estação Liberdade, 1997. MORRIS, Harry. Hamlet as a memento mori poem. 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