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TEMPORALIDADES ENTRECRUZADAS NA CRONÍSTICA LOPESEANA (PORTUGAL, SÉC. XV)

2024, Signum, v. 25, n. 1, 2024

Resumo: O artigo tem como objetivo analisar as temporalidades presentes na trilogia de Fernão Lopes, cronista oficial do reino português na primeira metade do século XV. Partindo da problematização sobre a multiplicidade do tempo apontada por Reinhart Koselleck e tendo em vista os regimes de historicidade identificados por François Hartog, busca-se compreender os significados assumidos pelo passado, presente e futuro na produção lopeseana. Compreende-se aqui, tal como o fez Bernard Guenée, as crônicas como o gênero historiográfico por excelência no início do século XV e adota-se a sistematização de Jacques Le Goff acerca da percepção do tempo na Idade Média. Procura-se demonstrar que o cronista opera uma superposição entre o tempo dos reis e o tempo da salvação, de forma que além de conjugar a reverência ao passado, a história mestra da vida, com o tempo escatológico cristão, voltado para o futuro, insere um presente contínuo de bonança a partir da instituição da dinastia de Avis em Portugal.

Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. TEMPORALIDADES ENTRECRUZADAS NA CRONÍSTICA LOPESEANA (PORTUGAL, SÉC. XV) INTERTWINED TEMPORALITIES IN THE LOPESIAN CHRONICLES (PORTUGAL, 15TH CENTURY) Miriam Coser Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro miriam.coser@unirio.br Resumo: O artigo tem como objetivo analisar as temporalidades presentes na trilogia de Fernão Lopes, cronista oficial do reino português na primeira metade do século XV. Partindo da problematização sobre a multiplicidade do tempo apontada por Reinhart Koselleck e tendo em vista os regimes de historicidade identificados por François Hartog, busca-se compreender os significados assumidos pelo passado, presente e futuro na produção lopeseana. Compreende-se aqui, tal como o fez Bernard Guenée, as crônicas como o gênero historiográfico por excelência no início do século XV e adota-se a sistematização de Jacques Le Goff acerca da percepção do tempo na Idade Média. Procura-se demonstrar que o cronista opera uma superposição entre o tempo dos reis e o tempo da salvação, de forma que além de conjugar a reverência ao passado, a história mestra da vida, com o tempo escatológico cristão, voltado para o futuro, insere um presente contínuo de bonança a partir da instituição da dinastia de Avis em Portugal. Palavras-chaves: Crônica, História medieval, Temporalidades. Abstract: The article aims to analyze the temporalities present in the trilogy of Fernão Lopes, the official chronicler of the Portuguese kingdom in the first half of the 15th century. Starting from the problematization of the multiplicity of time pointed out by Reinhart Koselleck and given the regimes of historicity identified by François Hartog, we seek to understand the meanings assumed by the past, present, and future in Lopes' production. It is understood here, as Bernard Guenée did, the chronicles as the historiographical genre par excellence at the beginning of the 15th century and the systematization of Jacques Le Goff about the perception of time in the Middle Ages is adopted. The article seeks to demonstrate that the chronicler operates a superposition between the time of kings and the time of salvation, so that in addition to combining reverence for the past, the historia magistra vitae, with Christian eschatological time, turned to the future, Lopes inserts in his books a continuous present of goodness that began with the institution of the Avis dynasty in Portugal. Keywords: Chronicle, Medieval history, Temporalities. As maneiras como as sociedades medievais percebiam o tempo, expressas nas suas práticas de escrita sobre o passado, merecem ainda investigações que podem contribuir para as reflexões relativas à história da historiografia. Dentre as 74 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. diversas modalidades medievais de escrita sobre o passado - como as cronologias, hagiografias, espelhos, canções de gesta, histórias etc. - as crônicas, em especial as crônicas reais, permitem a identificação de temporalidades entrecruzadas que revelam nuances entre o tempo dos reis e o tempo da salvação. A evidência da centralidade da percepção do tempo nas mais diversas sociedades para as construções historiográficas ganhou especial projeção com as formulações de Reinhart Koselleck1 a partir do último quartel do séc. XX. O autor apontou uma inequívoca relação entre o tempo, entendido como uma construção cultural - e como tal, múltiplo - e os modos como vinculam-se o conhecimento do passado e as expectativas de futuro, identificando uma importante ruptura entre os séculos XVIII e XIX. Na medida em que se intensificava a percepção da rapidez das mudanças no presente, intensificavam-se igualmente as incertezas sobre o futuro, num processo de aceleração do tempo que não permitiria mais ver as experiências do passado em suas projeções no presente e no futuro. Uma ruptura entre experiência e horizonte de expectativa, relacionada com o fim da história como mestra da vida e o nascimento da historiografia moderna. As reflexões de Koselleck são em parte retomadas por François Hartog 2 em sua formulação sobre os regimes de historicidade ou os modos como se conectam passado, presente e futuro na escrita da história. Regimes não como eras ou recortes cronológicos identificados num tempo contínuo dividido em fases sucessivas, mas como estruturas mais ou menos sequenciais, num recorte acadêmico da experiência do tempo. Dessa forma, Hartog identificou quatro regimes de historicidade: o primeiro, relativo à cultura clássica, teria no passado a prioridade sobre o presente e o futuro, configurando a historia magistra vitae; o segundo, da escatologia cristã, centrado na esperança de salvação futura e voltado ao fim dos tempos, mas sem deixar de se apropriar também da história mestra da vida; o terceiro, moderno, teria como principal eixo a projeção para o futuro em consonância com a ideia de progresso; e o último, verificado a partir do final do século XX, que seria marcado KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-RIO, 2012. 2 HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. 1 75 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. pelo presentismo, revelando uma crise do tempo. A proposição de Hartog permite problematizar as formas de percepção do tempo na escrita sobre o passado produzida na Idade Média, ao apontar uma confluência entre a historia magistra vitae e a história escatológica cristã, mesmo que a primeira ficasse subordinada à segunda e o exemplo cristianizado. Por outro lado, os próprios modos de historicização pré-modernos parecem constituir ainda um problema em sua possível inserção na história da historiografia, como demonstra o título provocativo do artigo de Rodrigo Andrade,3 É possível uma história da historiografia medieval? Dialogando com autores que abordam historiografias não ocidentais e com as proposições de uma antropologia histórica, Andrade alinha-se aqueles que advogam que a produção historiográfica medieval deve ser concebida em seus próprios termos e de forma alguma como estágio embrionário da historicidade moderna. Partindo dessa gama de reflexões, pretende-se aqui analisar as temporalidades entrecruzadas que podem ser observadas na trilogia do cronista português Fernão Lopes (c.1380-1460), porém antes fazem-se necessárias algumas palavras sobre os estudos pioneiros de Jacques Le Goff e Bernard Guenée acerca das percepções do tempo na Idade Média e dos gêneros historiográficos desenvolvidos no medievo, que servirão de subsídios para a análise da obra de Lopes. Jacques Le Goff e o(s) tempo(s) na Idade Média As formas como os homens e mulheres concebiam o tempo na Idade Média já era objeto de estudo de Jacques Le Goff4 em artigo do início da década de 1960, republicado na década seguinte como capítulo de livro, em que analisa formas distintas dessa concepção para a Igreja e para o mercador medieval. Se o tempo da Igreja pertencia a Deus, para o mercador o tempo tornava-se objeto de medida, fundamental em seu ofício, em especial a partir do século XII e de forma ainda mais intensa após a difusão do relógio mecânico no século XIV. Formas distintas, mas não ANDRADE, Rodrigo Prates de. É possível uma história da historiografia medieval? História da Historiografia, Ouro Preto, v.13, n. 33, p. 39-58, maio-ago. 2020. 4 LE GOFF, Jacques. Na Idade Média; tempo da igreja e tempo do mercador. In: LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1979. p. 43-60. 3 76 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. necessariamente excludentes, ao menos não até o fim da Idade Média, uma vez que os tempos natural, profissional e sobrenatural tendiam a oscilar entre separações e encontros. Aron Gourevitch,5 interlocutor de Le Goff, na mesma época partilhava dessas indagações sobre as percepções do tempo e suas pluralidades na Idade Média, em comparação com percepções de sociedades antigas e modernas, expressas em livro publicado em 1972, As categorias da cultura medieval. Posteriormente,6 o autor sintetizou de forma bastante clara como compreendia a articulação entre passado, presente e futuro na concepção cristã do tempo: a visão cristã do tempo difere tanto da visão antiga, dirigida para o passado, quanto da visão judaica, messiânica e profética, veterotestamentária, voltada para o futuro, na medida em que para a visão cristã importa tanto o passado, cujo marco é a vinda de Cristo, quanto o futuro, que reserva punição ou recompensa. O tempo cristão, afirma ainda o autor, apesar de vetorial, não teria se libertado do caráter cíclico, cuja interpretação em relação aos antigos teria mudado radicalmente. Essa dualidade de um tempo medieval que prioriza concomitantemente passado e futuro e é simultaneamente vetorial e cíclico é explorado por Le Goff em diversas publicações que problematizam o tempo, as relações entre passado, presente e futuro e a escatologia na Idade Média. Os verbetes de Le Goff referentes ao tema originalmente publicados na Enciclopédia Einaudi7foram reunidos no livro História e Memória.8 No limiar do século XXI, passados quarenta anos de suas reflexões iniciais sobre as formas como os homens na Idade Média conceberam e viveram o tempo, Le Goff9 reafirma a certeza da inexistência do tempo unificado nas sociedades medievais. Seriam diversos os tempos vividos e concebidos: de Deus e da terra, dos senhores e dos que eram sujeitos ao senhorio, das cidades e dos GOUREVITCH, Aron. As categorias da cultura medieval. Lisboa: Caminho, 1990. GOUREVITCH, Aron. O tempo como problema da história cultural. In: RICOER (org.). As culturas do tempo: estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 263-283. 7 ROMANO, Ruggiero (org.). Enciclopédia Einaudi. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. 8 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 2008. 9 LE GOFF, Jacques. Tempo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (orgs). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. v.2 p. 531-541. 5 6 77 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. mercadores, do príncipe e dos indivíduos. Um tempo que, desde as formulações de Agostinho (354-430), passa a ser compreendido como a dualidade entre o instante do homem na terra, que deve se aproximar de Deus, e a eternidade, quando este mesmo homem se reunirá a Deus. Um tempo linear e cíclico, pois iniciado com a Criação, renovado na Encarnação e rumando em direção ao Juízo Final, mas também marcado pela circularidade da semana – os seis dias da Criação e um de descanso atualizados como seis dias de trabalho e um de louvor a Deus - e do ano litúrgico, fazendo reviver constantemente um tempo bíblico. O tempo escatológico cristão, que ruma inexoravelmente para o Juízo Final, se não tem uma data fixada para se findar, tem etapas e sinais esperados: a vinda do anticristo e a agudização do sofrimento, seguidos da volta de Cristo e o julgamento final. Mas interpretações concorrentes apresentam a expectativa de um milênio de bonança antes do fim dos tempos: “O tempo milenarista é um tempo perturbador do tempo da Igreja, quase revolucionário”.10 A característica revolucionária do milenarismo apontada por Norman Cohn11 é nuançada por Le Goff, como fica claro na citação acima – quase revolucionário - e por Bernhard Töpfer,12 sem negar seu potencial disruptivo. Reflexões sobre o tempo, as sucessivas idades do mundo e a previsibilidade ou não do fim dos tempos foram problemas teológicos colocados no final da Antiguidade por homens como Eusébio (260-339) e Agostinho (354-430). A influência principalmente deste último ao longo da Idade Média fez recuar as proposições milenaristas concorrentes e relegar suas permanências e ressurgimentos medievais para o risco da heresia. Para Agostinho o nascimento de Cristo marca o início da última era do mundo de forma que a Igreja representa o Reino de Cristo na terra. A crença da vivência da última era não apresenta perspectiva de mudança positiva da realidade, apontando apenas para a espera do fim que será precedido da vinda do Anticristo e de terríveis acontecimentos. A influência de Agostinho será percebida no pensamento de 10 Idem, p.535. 11 COHN, Norman. Na senda do milênio: Milenaristas Revolucionários e Anarquistas Místicos da Idade Média. Lisboa: Presença, 1981. 12 TÖPFER, Bernhard. Escatologia e Milenarismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (orgs). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. V.1 p. 353-366. 78 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. diversos autores medievais, como nos escritos do monge anglo-saxão Beda (672735) que, tal como fizera o bispo de Hipona, correlacionava as idades do mundo às idades da vida, apontando a decrepitude como a idade vivida pela humanidade desde a vinda de Cristo e que seguiria até o fim dos tempos. No entanto, essa predominância do sentimento de que mudanças positivas profundas não viriam nos tempos precedentes ao fim do mundo não impediram o surgimento de outras proposições sobre os tempos do mundo e movimentos milenaristas, seja de cunho herético, seja no próprio seio da Igreja. O abade italiano Joaquim de Fiore (1135-1202) compreendia o tempo dividido em três estados, o da era do Pai (Antigo Testamento), a era do Filho (Novo Testamento) e a era do Espírito Santo, quando os crentes finalmente viveriam a verdade divina, guiados pelas novas ordens monásticas que substituiriam a hierarquia da Igreja. A passagem para esse novo estado seria precedida de perseguições à cristandade e a vinda do Anticristo, mas o último estado da humanidade não duraria mil anos e sim um período menor até o Juízo Final. No final do século XIII e ao longo do século seguinte, as concepções de Joaquim de Fiore influenciaram um grupo de franciscanos, os espirituais, que desejavam viver com mais rigor os ensinamentos do fundador da ordem. O monge italiano Ubertino de Casale (1259-1329) assimilou as proposições joaquimitas, relacionando o terceiro estado da humanidade à iminente sétima idade da Igreja, que seria enfim purificada e duraria de seiscentos a setecentos anos. De forma semelhante, as proposições joaquimitas encontraram eco nos escritos do frade francês Jean de Roquetaille (1310-1370), que adotou uma concepção mais claramente milenarista. Em linhas gerais, seu pensamento assemelha-se ao de Joaquim de Fiore, mas o estado final da humanidade seria marcado pela sublevação do povo contra os poderosos, liderados por um papa perfeito que elevaria um rei da França a imperador, dando início ao milênio de paz antes do Juízo Final.13 Tendo em vista que o viés joaquimita se fez presente também entre os franciscanos portugueses, dois aspectos dessas proposições são particularmente 13 Idem, p.357-359. 79 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. importantes para a análise das concepções temporais em Fernão Lopes, como será visto mais adiante: a conjugação da terceira era com a sétima idade e a elevação de um rei no início do milênio de paz. As múltiplas percepções do tempo na Idade Média marcaram suas formas de compreender e narrar o passado, expressando essas temporalidades entrecruzadas, cujas relações com o passado, o presente e o futuro apresentam nuances de acordo as características dos gêneros historiográficos, o lugar de produção das obras, os patrocinadores e as diversas inserções sociais de seus autores. Bernard Guenée e os gêneros historiográficos medievais No início da década de 1970, quando Le Goff aprofundava suas indagações sobre as temporalidades na Idade Média, Bernard Guenée14 voltava-se ao problema dos gêneros historiográficos medievais e suas possíveis diferenças, em especial os anais, as crônicas e as histórias. Constatando que a maior parte dos historiadores dos séculos XIX e XX não teriam visto nas produções historiográficas medievais mais do que uma sucessão de fatos, sem distinguir os gêneros históricos das histórias, crônicas e anais, e que os poucos que haviam se esforçado por estabelecer distinções, teriam caído em contradições, Guenée impôs-se a tarefa de procurar perceber como os próprios autores medievais compreendiam os gêneros historiográficos que escreviam. A definição de Isidoro de Sevilha (c.560-636), a qual historiadores contemporâneos a Guenée se valeram para caracterizar tais distinções na Idade Média, não podem ser generalizadas como um consenso entre os eruditos medievais: história seria a obra de um autor contemporâneo e testemunha ocular do que é relatado, os anais remontariam a fatos anteriores ao autor e a crônica seria uma simples codificação de datas ligadas a fatos.15 Recorrendo a diversos exemplos, Guenée demonstra que Isidoro de Sevilha, mesmo que muito conhecido pelos autores medievais, nem sempre era a referência para a escolha da terminologia adotada nos títulos das obras historiográficas na GUENÉE, Bernard. Histoire, ananales, chroniques. Essai sur les genres historiques au Moyen Âge. Annales, economies, sociétés, civilisations. Paris, v. 28º, n. 4, p. 997-1016. 1973. 15 Idem, p. 998. 14 80 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. Idade Média e sustenta que dos séculos VI ao XII os eruditos medievais não pareciam preocupar-se com as distinções entre anais, crônicas e histórias para designar seus próprios trabalhos. Mas esta postura mudaria no final do século XII, de forma que ao longo do século XIII a terminologia anais praticamente desaparece. Paralelamente, o termo crônica passa a designar especificamente as obras que relatam os acontecimentos passados e o termo história recebe um duplo significado: por um lado, os fatos ocorridos no passado e, por outro, a narrativa desses fatos feitas nas crônicas. Assim, no século XIV, haveria uma quase exclusividade da palavra crônica para designar as obras históricas, e a distinção entre crônica e história residiria mais na gradação das características do que na natureza de cada gênero. Ainda de acordo com o autor, ao longo do século XV acentua-se a influência de Cícero (106-43 AEC) nos eruditos dedicados à escrita sobre o passado, não só com relação ao compromisso com a verdade e a função da história de fornecer lições e exemplos, mas também com relação à importância da retórica para a realização do relato historiográfico. Finalmente, no século seguinte, a função explicativa da história levaria à separação definitiva desta em relação aos gêneros dos anais e das crônicas, que seriam compreendidos como fontes para a sua realização. As crônicas de Lopes foram escritas no início do século XV, justamente quando o termo crônica dominava a designação da escrita historiográfica e a influência de Cícero fez-se fortemente presente. Os exemplos do passado, o compromisso declarado com a verdade e a apuração retórica são características marcantes das obras de Lopes, como bem demonstrou Maleval.16 Nas décadas subsequentes, Guenée 17 retoma os estudos sobre a historiografia medieval e quase trinta anos após a primeira publicação sobre o tema, sintetiza a questão do significado da produção historiográfica na Idade Média, mas direcionando seu olhar para o historiador medieval e as diversas produções advindas de suas diferentes posições, financiadores e público. Como aponta o autor, desde o século VI, a exemplo de Gregório de Tours (538-594), bispos e cônegos MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Fernão Lopes e a retórica medieval. Niterói: EDUFF, 2010. GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (orgs). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. v.1 p. 523-536. 16 17 81 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. dedicaram-se à escrita sobre o passado, valendo-se de bibliotecas eclesiais. A partir do século XI, monges, em especial beneditinos e cistercienses, voltaram-se para a produção de obras históricas de forma coletiva, coordenados por um superior. Tais histórias tem um caráter teológico, hagiográfico e mesmo litúrgico. A partir do século XIII, avultam-se os empreendimentos historiográficos produzidos por frades das Ordens Mendicantes, principalmente dominicanos, fazendo aflorar um gênero historiográficos que teria grande sucesso, os espelhos, manuais exemplares edificantes que podiam conter a história da Criação ao fim dos tempos, como o fez Vicente de Beauvais. Essas iniciativas eram produzidas, financiadas e voltadas para o corpo clerical, mas podiam atingir públicos mais abrangentes, na medida em que eram utilizadas como material para a pregação. As cortes dos reis e príncipes, por sua vez, desde o século XII, estimulam os escritos sobre o passado – real ou mítico – de suas linhagens na composição das canções de gesta. Nos séculos XIV e XV, nessas mesmas cortes, os arautos realizam pesquisas genealógicas e heráldicas mais precisas e os escrivães de chancelarias valem-se da documentação que dispunham para fazer o registro da memória do reino.18 As crônicas reais são produto de homens do corpo clerical ou laico, financiados por reis e grandes senhores, e que conhecem uma difusão mais ampla, inclusive por seu aspecto de entretenimento quando redigidas em língua vernácula. Como será visto, Fernão Lopes foi financiado pelos reis portugueses e ocupou posição particularmente estratégica por ser escrivão e responsável por zelar pela documentação real. A produção historiográfica medieval continua a despertar forte interesse nos pesquisadores atuais. Justin Lake 19 fez um balanço dos estudos realizados nas últimas décadas sobre a historiografia produzida na Idade Média e, segundo o autor, são três os enfoques que se destacam atualmente nesses trabalhos: a análise de elementos ficcionais na história, a relação entre política e história e o retorno dos Idem, Ibidem. LAKE, Justin. Current Approaches to Medieval Historiography. History Compass, Hoboken, v. 13, n. 13, p. 89-109, 2015. 18 19 82 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. estudos dos manuscritos como locais primários de comunicação histórica. A segunda abordagem é a que se insere o presente trabalho, na medida em que a trilogia de Lopes é financiada pela Casa de Avis. O pioneirismo de Guenée nessa linha é reconhecido por Lake com relação à obra produzida em 1986, na qual o autor francês demonstrou como as crônicas escritas pelos monges de Saint-Denis, a partir de 1274, procuram estabelecer uma ligação entre a dinastia capetíngia e sua antecessora carolíngia, como meio de legitimar disputas territoriais. Uma advertência apontada por Guenée faz-se necessária antes da análise das crônicas de Lopes: para além das abordagens que se pretende dar a esses estudos, não se pode perder de vista o relativo peso para os contemporâneos das obras medievais que chegaram aos nossos dias, pois “Se um tema de uma obra histórica teve algum peso, é porque foi retomado pelo poder, adotado pelas chancelarias, repetido nas cortes e nas esquinas das cidades”.20 Este é o caso, sem sombra de dúvida, das crônicas de Fernão Lopes. Cronista do reino: as especificidades de Fernão Lopes A escassez de informações sobre o cronista português Fernão Lopes (c.1380c.1359) é apontada por diversos historiadores.21 Tal escassez contrasta com a importância que o autor teve em seu próprio tempo e para a historiografia posterior. Nos séculos XIX e XX, as crônicas de Lopes foram utilizadas pela historiografia tributária de Leopold von Ranke como documentos que, retirados os exageros e evidentes fantasias, poderiam remeter a fatos históricos seguros. Da mesma forma, os escritos de Lopes serviram a exaltações nacionalistas de afirmação da grandeza do Estado e do povo português nos tempos do salazarismo. Mas em fins do século XX novos olhares abriram-se a essa velha fonte, explorando temas como as GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (orgs). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. v.1 p. 535. 21 Ver, entre outros: AMADO, Teresa. Fernão Lopes, contador de história: sobre a Crônica de D. João I. Lisboa: Editorial Estampa, 2005; SARAIVA, Antônio José. As crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva, 1993; SARAIVA, Antônio José & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1985; MARQUES, A. H. de Oliveira. Lopes, Fernão. In: SERRÃO, Joel (Dir.). Dicionário de Portugal. v. IV. Porto: Livraria Figueirinhas, 1985. p. 56-58; REBELO, Luis de Sousa. A concepção de poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. 20 83 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. concepções de poder na narrativa do cronista,22 as estruturas sociais em suas crônicas,23 a mitologia política construída pelo cronista,24 entre outros. Paralelamente, no Brasil, foram produzidas teses pioneiras nas áreas de História 25 e Letras26 que contemplavam novas abordagens sobre a cronística de Lopes, seguidas de muitos estudos posteriores. Já a importância de Fernão Lopes em seu próprio tempo pode ser medida pelos ofícios que exerceu no reino português por quase quarenta anos. Servidor da dinastia de Avis, em 1418 foi nomeado guarda-mor da Torre do Tombo, responsável por zelar pela documentação régia, acumulando com as responsabilidades de escrivão dos livros do infante D. Duarte e, em seguida, dos livros do rei D. João e de escrivão da puridade do infante D. Fernando. Por volta de 1430, foi nomeado notário-geral pelo rei D. João, o que permitia lavrar documentos em qualquer parte do reino. No segundo ano do reinado de D. Duarte, em 1434, Fernão Lopes tornouse o primeiro cronista oficial do reino português, recebendo do rei uma tença anual para redigir as crônicas dos reis de Portugal, atividade que exerceu até 1454.27 Observa-se aqui uma primeira singularidade de Fernão Lopes em relação ao caso francês, estudado por Guenée. Em 1437, Jean Chartier, religioso de Saint Denis, foi designado como primeiro cronista da França, mas apenas em 1465 o monge beneditino Jean Castelo seria nomeado historiador do rei, com uma pensão fixa e não mais recebendo apenas gratificações esporádicas, como seus antecessores.28 O cronista português, além de ter suas atividades vinculadas a um pagamento anual antes do que ocorreu na França, também diferia dos primeiros cronistas oficiais franceses por não ser um clérigo e sim um homem laico, tabelião e responsável pela REBELO, Luis de Sousa. A concepção de poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. BEIRANTE, Maria Ângela. Estruturas sociais em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1984. 24 VENTURA, Margarida Garcez. O messias de Lisboa: um estudo de mitologia política (1383-1415). Lisboa: Edições Cosmos, 1992. 25 FRÓES, Vânia Leite. Era no tempo do rei. Estudo sobre o ideal do rei e das singularidades do imaginário português na Idade Média. Tese (Requisito para concurso de Professor Titular de História Medieval) - Universidade Federal Fluminense, Niterói. 1995. 26 MALEVAL, Maria do Amparo Tavares A Revolução pelos ornamentos: Fernão Lopes. Tese de doutorado – Universidade de São Paulo, São Paulo. 1982. 27 MONTEIRO, João Gouveia. Fernão Lopes: texto e contexto. Coimbra: Minerva, 1988. 28 GUENÉE, Bernard. Histoire, ananales, chroniques. Essai sur les genres historiques au Moyen Âge. Annales, economies, sociétés, civilisations. Paris, v. 28º, n. 4, 1973. p. 1012-1013. 22 23 84 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. guarda dos documentos régios. Essa singularidade em parte pode explicar a diversidade das fontes utilizadas por Lopes para escrever sua trilogia. Na posição de guarda-mor da Torre do Tombo, pode utilizar cartas régias, bulas papais, capítulos de cortes, contratos de casamentos, tratados com outros reinos, dentre outros documentos e sua proximidade com a corte permitia o recolhimento de testemunhos orais dos acontecimentos que foi encarregado de relatar. Mas também reuniu lembranças de cunho mais popular, como canções e dizeres relativos principalmente à Revolução de Avis. Observou também nomes de logradouros, túmulos e epitáfios relacionados aos fatos narrados. Não se sabe o nível de instrução do cronista, que provavelmente provinha de camadas médias citadinas, mas as citações em suas crônicas indicam além de conhecimentos de textos bíblicos, familiaridades com autores antigos como Aristóteles, Tito Lívio e Agostinho. Conhecia igualmente os escritos de Beda, o que tem especial importância para a análise de suas percepções temporais. Lopes demonstra, igualmente, conhecimento de uma gama variada de crônicas, utilizandoas e criticando-as com desenvoltura, especialmente as do castelhano Pero Lopes de Ayala, a quem se opõe apresentando uma versão portuguesa para alguns acontecimentos que haviam sido narrados por Ayala. Fernão Lopes escreveu a trilogia dedicada aos reis D. Pedro, D. Fernando e D. João I, mas é possível que tenha também escrito a Crônica de 1419, que abrange os sete primeiros reis de Portugal, e que tenha deixado escritos que serviram de base para a Crônica da Tomada de Ceuta, de seu sucessor Gomes Eanes de Zurara. Lopes conclui a Crônica de D. Pedro por volta de 1434, o que corrobora a tese de que já a estava escrevendo a crônica no período de D. João I. A Crônica de D. Fernando é finalizada em 1440, após a morte de D. Duarte, e as duas partes da Crônica de D. João I foram escritas de 1440 a 1449.29 O período de produção do cronista atravessa, portanto, os reinados de D. João I e de D. Duarte, as regências da rainha Leonor de Aragão e de D. Pedro e o início do reinado de D. Afonso V. A proximidade de Lopes com o regente D. Pedro, que entraria em conflito com seu sobrinho, o rei Afonso V, AMADO, Teresa. Fernão Lopes, contador de história: sobre a Crônica de D. João I. Lisboa: Editorial Estampa, 2005. 29 85 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. pode ter sido a causa da substituição do cronista por Zurara. A proximidade de Fernão Lopes com o poder é evidente e a importância para a promoção da nova dinastia, inaugurada com D. João I após os eventos que a historiografia convencionou chamar de Revolução de Avis (1383-1385), foram bastante estudados. Mas o manejo entre passado, presente e futuro que o cronista opera no intuito de promover D. João I a soberano legítimo e modelar do reino ainda merece especial atenção. A tarefa de Lopes apresentava dificuldades, pois era preciso sustentar uma continuidade da linhagem exaltando um passado que remonta ao rei D. Pedro, de quem D. João era filho ilegítimo – Crônica de D. Pedro -, apresentar o sucessor de D. Pedro, meio irmão de D. João, seguindo essa linha reta do tempo, mas justificando o fim da dinastia de Borgonha – Crônica de D. Fernando – para exaltar o presente e a dinastia de Avis, inaugurada com o reino de D. João – Crônica de D. João – apontando para um futuro que se apresenta como uma projeção e eternização do presente, como se tentará demonstrar aqui. O tempo do rei na trilogia de Lopes O tempo real, como observou Le Goff,30 é multiforme. Em primeiro lugar, situa-se numa cadeia histórica que constitui um jogo de antecessores e sucessores, em geral numa linha dinástica. As chancelarias, responsáveis pela datação dos atos reais, o fazem de forma a evitar hiatos: morto um rei, imediatamente datam-se os atos do rei subsequente, mesmo antes da coroação ou sagração, como na fórmula que se generaliza, o rei morreu, viva o rei. O próprio emprego do tempo cotidiano do rei, na medida em que seu poder aumenta, apresenta uma regularidade de atos sequenciais esperados. O tempo real é, portanto, contínuo, seguindo uma linha reta sem interrupções, mas é também circular, na repetição cotidiana das diversas atividades do rei. Esse tempo circular do rei que se repete diariamente é alternado pelo tempo dos deslocamentos, seja por necessidades imediatas, como as guerras, seja para o rei ser visto e se fazer presente nas diversas regiões do reino. Somados a esses tempos longos e regulares, há também o tempo excepcional, das festas e LE GOFF, Jacques. Rei. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (orgs). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002b. v. 2 p. 395-414. 30 86 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. divertimentos. Tais formulações de Le Goff acerca do tempo do rei permitem uma investigação desses tempos reais na trilogia de Lopes. Em primeiro lugar, a cadeia histórica dos reis, essencial na produção das crônicas financiadas pelo paço, exigia uma delicada composição na qual a quebra dinástica que a crise sucessória de 13831385 representava aparecesse dentro de uma linha de continuidade. A Crônica de D. Pedro apresenta um rei essencialmente justo, tendo em vista que a justiça era um predicado fundamental do rei medieval: “Este rey D. Pedro em quanto viveo usou muito de justiça sem affeição ou exceição por pessoas, tendo tal igualdade por fazer direito, que a ninguém perdoava os erros que fazia por criação nem bem queirença (...)”.31 Esse exercício da justiça sem privilegiar pessoas próximas ou determinados grupos sociais é ressaltado ao longo de toda a crônica, mesmo que algumas atitudes do rei pudessem parecer excêntricas até mesmo para seus contemporâneos. Em alguns casos “elle se despia de seus Reaes pannos e por sua mão açoutava os malfeitores; e posto que disto muitos se admiravão e estranhavão seus conselheiros e muitas outras pessoas (...)”.32 Essa linha do exercício da justiça que abrange todos do reino, segue até D. João, fundador de Avis. Mas o reinado do meio-irmão D. Fernando precisava ser também apresentado, um rei que teria falhado em diversas de suas prerrogativas, inclusive no exercício da justiça. A narrativa de Lopes encontra a solução em grande parte culpando não o rei D. Fernando, mas sim sua esposa D. Leonor Teles. Lopes, na Crônica de D. Fernando, sintetiza nas supostas palavras de um alfaiate o motivo das falhas do rei: “ca nom quiriam perder huu tam boom rrei como ele por huua maa molher”.33 Entretanto, a morte de D. Fernando impõe um hiato que as chancelarias procuram evitar, com a incômoda regência de D. Leonor Teles. A Crônica de D. João I narra o processo que levará ao trono o novo rei, com a prisão da regente legítima e a vitória da guerra contra Castela. O fio condutor da história da linhagem é retomado finalmente pelo Mestre de Avis, grande exemplo de LOPES, Fernão. Chronica del-rey D. Pedro. Lisboa: Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1735. p.85-86. 32Idem, p.86-87. 33 LOPES, Fernão. Crônica de D. Fernando. Lisboa, Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1975. p. 210. 31 87 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. justiça, somada à sua profunda piedade: “Não hera sanhudo nem cruel, mas mança e byninamente castigava: assy que ambas as virtudes que no Rey deve daver, a saber, justiça e piedade, erao em ele compridamente”.34 Assim, a cadeia histórica não é rompida e a linha do tempo segue seu curso esperado. Em face desse tempo longo, o tempo circular cotidiano do rei é pouco explicitado por Lopes em sua trilogia. Os reis reúnem-se com seus conselheiros, ouvem demandas dos súditos, cumprem obrigações piedosas, mas as três crônicas não deixam claro a regularidade dessas atividades. Entretanto, a sistematização das atividades diárias do infante D. Duarte, cujas atividades foram associadas às de seu pai, D. João, é relatada em seu livro O Leal Conselheiro. Conta o infante que sofreu de humor merencórico devido ao peso de suas atribuições antes mesmo de ser rei: levantar cedo, ouvir missa até meio dia, comer dando audiências, um breve retiro e em seguida atender os conselheiros e vedores, para finalmente atender os oficiais de sua casa, numa rotina diária que se prolongava até às onze horas da noite.35 O relato de D. Duarte faz supor que as atividades cotidianas do rei deviam ser igualmente regradas. Esse tempo circular do rei era alternado com o tempo dos deslocamentos, que na trilogia de Lopes está associado fundamentalmente às guerras contra Castela nos reinados de D. Fernando e D. João e ao exercício da justiça no reinado de D. Pedro. Pode-se observar que o tempo da justiça, na Crônica de D. Pedro, muitas vezes é o tempo desse rei itinerante: “Estando Elrey em Evora se lhe foi aggravar uma mulher de Santarem(...)e depois de Elrey lhe perguntar pelo caso miudamente, lhe mandou, que como elle fosse na ditta Vila, para onde elle havia de ir estar no inverno seguinte, lho lembrasse”.36 A celeridade ou a lentidão da justiça dependia do tempo do rei. A crer em D. Duarte, eram poucos os tempos excepcionais de que fala Le Goff: LOPES, Fernão. Crônica de D. João I. v.1. Porto: Civilização, 1945. p. 2-3. O Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de bem cvalgar toda sella. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1843. p. 59. 36 LOPES, Fernão. Chronica del-rey D. Pedro. Lisboa: Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1735. p. 113. 34 35 DUARTE, D. 88 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. “Monte caça, mui pouco usava”.37 Mas as festas reais são bem atestadas na trilogia de Lopes, como no casamento real na Crônica de D. João I: “Asy que toda a cidade hera acupada em desvairados cuidados desta festa.(...)E ell Rey sayo daqueles paços(...)em panos douro realmmenmte vestido; e a Rainha em outro tal, muy nobremente guarnida.(...)A gente hera tamta que se no podiao reger nem ordenar(...)”.38 O alvoroço na cidade parece atestar a excepcionalidade desse tempo das grandes festas do rei. Na narrativa de Lopes, o tempo do rei coincide com o tempo do reino. É um tempo da linhagem que em seus marcos cronológicos sucessivos rumam em direção ao conhecido, o presente, e – a partir da nova dinastia- ao futuro previsível. O tempo de Deus no evangelho português e na sétima idade de Lopes Fernão Lopes certamente compartilhava da crença num tempo escatológico cristão, vetorial, rumando para o Juízo Final. Compartilhava também da crença da importância dos exemplos do passado para sua perpetuação no tempo. Os reis das crônicas de Lopes têm exemplos bíblicos a seguir e eles mesmos podem ser reis exemplares. A confluência entre a história escatológica cristã e a historia magistra vitae, de que fala Hartog, com a subordinação da segunda à primeira, e a predominância dos exemplos vetero e neotestamentários podem ser identificados na escrita de Lopes. Duas passagens na Crônica de D. João são emblemáticas dessa confluência: o seu evangelho português e a menção às seis idades de Eusébio de Cesareia e Beda. No capítulo CLIX da crônica, Lopes se refere aos homens que ajudaram D. João a lutar contra o rei de Castela, pretendente ao reino português, dando destaque ao braço direito do Mestre de Avis, Nuno Álvares Pereira: Mas podemos be dizer e apropiar, que assi como o nosso salvador Jhesu Christo, sobre Pedro fumdou a sua egreja damdolhe poderio(...)assi o Meestre que sobre a bomdade e esforço de Nuno 37 DUARTE, D. O Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de bem cvalgar toda sella. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1843. p. 59. 38 LOPES, Fernão. Crônica de D. João I. v.2. Porto: Civilização, 1949.p. 223. 89 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. Allvarez fumdou a deffenssom daquela comarca, lhe deu livre e isemto poder(...)Outros homrrados diçipullos se chegarom depois a Numo Allvarez pera lhe ajudar a pregar este evamgelho portuguees(...)”39 A comparação explícita de D. João a Jesus Cristo e Nuno Álvares a São Pedro, e a menção a um evangelho português, indicam uma apropriação – termo usado pelo próprio cronista –incisiva dos exemplos neotestamentários. A passagem indica, nesse sentido, o elemento messiânico da figura de D. João composta por Lopes, que o intitula messias de Lisboa, e a transposição para o reino português da exemplaridade do evangelho. O cronista, em seguida, inicia o capítulo CLXIII da mesma crônica referindose às seis idades do mundo, de acordo com Eusébio e Beda: a primeira de Adão a Noé, a segunda de Noé a Abraão, a terceira de Abraão a Davi, a quarta de Davi até a travessia da Babilônia, a quinta da travessia da Babilônia à vinda de Cristo e a sexta em que a humanidade se encontraria desde a vinda de Cristo e que duraria até o fim dos tempos.40 Lopes mostra-se perfeitamente ciente da escatologia cristã, tal como estabelecida pela ortodoxia católica. No entanto, da mesma forma com que Lopes se apropria do exemplo de Cristo de forma quase herética, o cronista acrescenta uma sétima idade vivida em Portugal com o início da dinastia de Avis. Fernão Lopes mostra-se bem ciente do risco assumido e afirma não compactuar com interpretações diferentes das de Eusébio e Beda sobre as idades do mundo: Assi que doutra hidade desta presemte vida, nehuu sse tremeteo de falar, salvo quamto alguus disserom, que assi como Deos criara o mudo per espaço de seis dias, e no septimo follgara, que assi a follgamça das spirituaaes almas que no Paraiso averia, seria a septima hidade; mas taes openiooes bem som demgeitar acerca dos emtemdidos (...) taaes fallamentos pouca parte teem de verdade.41 Dessa forma, o cronista demonstra conhecer as teorias sobre a sétima idade, assim como a condenação da Igreja acerca de tais formulações. Lopes é prudente, LOPES, Fernão. Crônica de D. João I. v.2. Porto: Civilização, 1949.p. 342. Idem, p. 349. 41 Idem, p. 350. 39 40 90 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. mas ambíguo nessa passagem, porque se tal opiniões são de enjeitar pelos entendidos, as formulações sobre a sétima idade pouca parte têm de verdade ou seja, o cronista afirma que há pouca verdade, mas não necessariamente nenhuma verdade na proposição de uma sétima idade. Já foi salientado aqui o potencial disruptivo da sétima idade, uma era de bonança que pressupõe mudanças na terra antes do Juizo Final. Esse contexto explica o tom cuidadoso de Lopes, que persiste em sua narrativa quando finalmente apresenta a sétima idade em Portugal: Mas nos com ousamça de fallar, como quem jogueta, per comparaçom, fazemos aqui a septima hidade; na qual se levamtou outro mumdo novo, e nova geeraçom de gemtes (...) Assi que esta hidade que dizemos que sse começou nos feitos do Meestre, a qual pella era de Çesar per que esta crônica he copillada, há agora seseemta anos que dura; e durara ataa fim dos segres ou quamto Deos quiser que as todas criou.42 Uma forma de falar, uma brincadeira, uma comparação, adverte o cronista. Trata-se de uma metáfora, mas uma metáfora que usa a formulação da sétima idade, sabidamente condenada pela Igreja. Os feitos do Mestre de Avis dão origem a um novo mundo, com nova geração. Observe-se que Lopes utiliza a datação da era de César, iniciada em 38 a.C. e não a era de Cristo, já utilizada em Portugal quando escrevia. Os motivos dessa escolha de marco temporal é de difícil interpretação. Marcela Guimarães 43 sugere que Lopes preferiu manter a datação antiga porque sua narrativa não chegou ao ano de 1422, quando D. João institui em Portugal a era de Cristo. A mudança em Portugal que teria ocorrido com a sétima idade seria a elevação de homens de baixa condição e o retorno de antigas fidalguias, reunidos em torno do Mestre de Avis. Observe-se que a sétima idade de Lopes, no momento em que ele escreve, dura há sessenta anos.44 É do presente que o cronista está falando e Idem, Ibidem. GUIMARÃES, Marcella Lopes. A sétima idade de Fernão Lopes: novo tempo para os príncipes de Avis? Seminário Facetas do Império na História, Universidade Federal do Paraná, 08, nov., 2006. Disponível em: https://docs.ufpr.br/~andreadore/marcella.pdf. Acesso em: 09 out. 2022 44 LOPES, Fernão. Crônica de D. João I. v.2. Porto: Civilização, 1949.p. 350. 42 43 91 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. é o presente que o cronista exalta. Haverá um fim desse tempo, quando Deus quiser, mas a bonança na terra já havia começado em Portugal. A importância do presente na metáfora da sétima idade de Fernão Lopes já foi salientada por Rebelo,45 assim como a influência de Joaquim de Fiore em Portugal, especialmente no meio franciscano, e no pensamento de Lopes. Marcela Guimarães igualmente reconhece essa influência joaquimita e messiânica que duraria em Portugal ao menos até o século XVI e afirma que “O que Fernão Lopes faz é um entrecruzamento de esquemas, ainda que o próprio modelo do abade da Calábria recombine referências, dentre as quais os mesmos clássicos”.46 Sem dúvida, Fernão Lopes faz um entrecruzamento entre o esquema das seis idades com o viés milenarista, identificando uma sétima idade, tal como o fizera Ubertino de Casale. Além disso, Lopes aponta a centralidade do rei para o início do período de bonança, tal como acreditava Jean de Roquetaille. Assim, o que se procurou demonstrar aqui é que Lopes opera um entrecruzamento de tempos em sua trilogia, uma vez que o tempo de Deus e o tempo do rei se encontram no presente, reconfigurando o passado e o futuro. Fernão Lopes entre o passado, o presente e o futuro A exaltação do presente, advogada por Lopes, insere o tempo do rei no tempo de Deus por um viés quase revolucionário, para usar a expressão de Le Goff. O milênio de bonança já começou em Portugal e a mudança se deu com a ascensão de homens como Nuno Álvares Pereira, filhos segundos, e de uma antiga nobreza cujo valor não era reconhecido. Talvez a própria expressão consagrada em Portugal para caracterizar a crise sucessória de 1383-1385, Revolução de Avis, seja tributária da visão de um mundo novo instituído em Portugal a partir dos feitos de D. João defendida pelo cronista. Nesse sentido, a percepção do tempo de Lopes, que identificava uma ruptura profunda no reino com a mudança dinástica, teria ecos na REBELO, Luis de Sousa. A concepção de poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. p.68. 46 GUIMARÃES, Marcella Lopes. A sétima idade de Fernão Lopes: novo tempo para os príncipes de Avis? Seminário Facetas do Império na História, Universidade Federal do Paraná, 08, nov., 2006. p. 7. Disponível em: https://docs.ufpr.br/~andreadore/marcella.pdf. Acesso em: 09 out. 2022 45 92 Revista Signum, v. 25, n. 1, 2024. historiografia até hoje, com a utilização do termo “revolução” para designar as lutas sucessórias após a morte de D. Fernando. A trilogia de Fernão Lopes, como em geral a historiografia produzida na Idade Média, conjuga a reverência ao passado, a história mestra da vida, com o tempo escatológico cristão voltado para o futuro, corroborando a afirmação de Hartog sobre o regime de historicidade medieval. Mas, nas temporalidades entrecruzadas na cronística lopeseana, é o presente que atualiza o passado e o futuro, pois D. João, seguindo o exemplo de Cristo, institui uma espécie de paraíso terrestre em Portugal, um presente continuo que perdurará até o fim dos tempos e a chegada da eternidade. Artigo recebido em 15/06/2023 Artigo aceito em 26/02/2024 93