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Encontro de saberes

2021, Conhecer: debate entre o público e o privado

Este é um relato reflexivo sobre experiência de ensino na pós-graduação com mestres da Cultura Popular, no âmbito do projeto Encontro de Saberes, promovido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) e pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), no Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade. O artigo examina a disciplina Saberes Tradicionais da Cura e destaca 5 aspectos pedagógicos e epistêmicos que têm relação direta com os fundamentos teóricos, epistemológicos e políticos do projeto Encontro de Saberes.

cer Lorem ipsum Debate entre o público e o privado Encontro de Saberes: experiência intercultural na pós-graduação da Universidade Estadual do Ceará João Tadeu de Andrade Professor e pesquisador dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Políticas Públicas Universidade Estadual do Ceará - UECE joao.andrade@uece.br https://orcid.org/0000-0003-0371-5135 Resumo Este é um relato reflexivo sobre experiência de ensino na pós-graduação com mestres da Cultura Popular, no âmbito do projeto Encontro de Saberes, promovido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) e pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), no Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade. O artigo examina a disciplina Saberes Tradicionais da Cura e destaca 5 aspectos pedagógicos e epistêmicos que têm relação direta com os fundamentos teóricos, epistemológicos e políticos do projeto Encontro de Saberes. Palavras-chave saberes tradicionais; cura; ensino de pós-graduação; encontro de saberes. Conhecer: debate entre o público e o privado 2021, Vol. 11, nº 27 ISSN 2238-0426 DOI https://doi.org/10.32335/2238-0426.2021.11.27.6258 Licença Creative Commons Atribuição (CC BY 4.0) Data de submissão 2 jun 2021 Data de publicação 28 ago 2021 Knowledge Encounter: intercultural experience in the graduate program of the Ceará State University Abstract This is a reflective report on the graduate teaching experience with Masters of Arts in Popular Culture, within the scope of the project Knowledge Encounter, promoted by the Brazilian National Institute of Science and Technology for Inclusion in Higher Education and Research (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa [INCTI]) and the Ceará State University (Universidade Estadual do Ceará [UECE]), in the MA Course in Public Policy and Society. The article examines the subject Traditional Healing Knowledge and highlights 5 pedagogical and epistemic aspects that are directly related to the theoretical, epistemological, and political foundations of the project Knowledge Encounter. Key words traditional knowledge; healing, graduate education; knowledge encounter. Encuentro de Saberes: experiencia intercultural en el posgrado de la Universidad del Estado de Ceará Resumen Este es un informe reflexivo acerca de la experiencia en la enseñanza de posgrado con maestros de la Cultura Popular, en el ámbito del proyecto Encuentro de Saberes, promovido por el Instituto Nacional de Ciencia y Tecnología para la Inclusión en la Educación Superior e Investigación de Brasil (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa [INCTI]) y por la Universidad del Estado de Ceará (Universidade Estadual do Ceará [UECE]), en la Maestría en Políticas Públicas y Sociedad. El artículo examina la asignatura Saberes Tradicionales de la Curación y destaca 5 aspectos pedagógicos y epistémicos directamente relacionados con los fundamentos teóricos, epistemológicos, y políticos del proyecto Encuentro de Saberes. Palabras clave saberes tradicionales; curación; educación de posgrado; encuentro de saberes. Rencontre du Savoir: expérience interculturelle dans les hautes études à l’Université d’État du Ceará Résumé Il s’agit d’un rapport de réflexion sur l’expérience d’enseignement des hautes études avec des maîtres de Culture Populaire, dans le cadre du projet Rencontre du Savoir, promu par l’Institut National de la Science et de la Technologie pour l’Inclusion dans l’Enseignement Supérieur et la Recherche du Brésil (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa [INCTI]) et par l’Université d’État du Ceará (Universidade Estadual do Ceará [UECE]), dans le cours de Maîtrise en Politiques Publiques et Société. L’article examine le sujet Savoir Traditionnel de Guérison et met en évidence 5 aspects pédagogiques et épistémiques qui sont directement liés aux fondements théoriques, épistémologiques, et politiques du projet Rencontre du Savoir. Mots-clés savoir traditionnel; guérison; hautes études; rencontre du savoir. 194 JOÃO TADEU DE ANDRADE Introdução Este é um relato reflexivo sobre uma experiência pedagógica original. Estas páginas reúnem a memória e a percepção de um trabalho pioneiro, realizado em Fortaleza-CE, mediante parceria firmada entre o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) e a Universidade Estadual do Ceará (UECE). O projeto Encontro de Saberes tomou forma na disciplina Saberes Tradicionais da Cura, no programa de pós-graduação da universidade, com ênfase nos cuidados populares em saúde e nos saberes e tecnologias ancestrais desse domínio. Essa disciplina foi um tópico especial do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS), ensinado e estudado durante 4 meses de 2014 no Campus do Itaperi. O projeto reuniu 31 alunos, 4 docentes de 2 universidades públicas e 5 mestres da Cultura Popular de 4 regiões do Estado do Ceará, com apoio financeiro do INCTI e contrapartida da UECE. O desafio foi promover uma experiência inovadora no ensino acadêmico da universidade, tanto em seu formato pedagógico quanto em sua configuração interepistêmica, pondo em cena mestres de comunidades tradicionais, professores universitários e estudantes de pós-graduação. O intuito foi incluir na grade regular do ensino de pós-graduação as práticas tradicionais da medicina popular, em interface criativa com os saberes científicos. Esteve em jogo, então, a transmissão convencional do conhecimento, familiar aos acadêmicos, mas também as narrativas cerimoniais, as performances rituais, a manipulação de medicamentos artesanais, os cantos, as rezas, as danças, as loas a santos, as piadas e os risos. Tais recursos e habilidades dos mestres trouxeram originalidade a esse incomum experimento didático. Nesta reflexão, mostra-se oportuno tomar alguns cuidados conceituais. Primeiro, a noção de cura. Ela baliza esta empreitada, pois, em sentido epistemológico, contém dimensões mais amplas do processo saúde/doença, como há tempos indica a antropologia da saúde (Andrade, 2006; Brown, 1998; Helman, 2003). Aqui estão presentes importantes elementos não biomédicos, advindos de práticas de saúde ancestrais, generalizadas e postas em uso até hoje pelo povo brasileiro. No sentido aqui considerado, a cura agrega diversos aspectos (cuidado, prevenção, crenças, espiritualidade, intervenções terapêuticas, ritos e encantamentos) enquanto categoria nativa dos povos indígenas, dos curandeiros e dos rezadores tradicionais. Na perspectiva antropológica, a cura constitui realidade biocultural, imersa em circuitos, procedimentos e saberes técnicos, biofísicos, emocionais, sociais e espirituais, para citar apenas estes, relativos ao bem-estar subjetivo e coletivo. Ela diz respeito à reprodução material da vida humana e encontra-se no centro dos cuidados ontológicos para a preservação e continuidade das sociedades e dos indivíduos. Segundo, a ideia de encontro intercultural. Em um enquadramento particular, o Encontro de Saberes foi assumido no espaço dialógico da sala de aula, território habitual da academia. Isso se deu mediante os saberes trazidos pelos mestres, enraizados em seu CONHECER: DEBATE ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO. V. 11 Nº 27/2021.2 195 próprio éthos, onde se instala uma alteridade viva e pulsante no contexto da diversidade cultural brasileira. Entretanto, entendo que se trata de um encontro intercultural restrito, no qual certas fronteiras socioculturais se tocaram – talvez timidamente –, quando do embate de saberes na situação pedagógica e reflexiva propiciada pelo curso. Nesse encontro intercultural, vale ter em mente que o cenário da transmissão do conhecimento esteve marcado pela presença carismática dos mestres da Cultura Popular (pajés, curadores, rezadores) e pela atuação dos pesquisadores acadêmicos e dos alunos, em um contexto intelectual estranho aos primeiros. Terceiro, o termo mestre da cultura. Trata-se de sujeito que assume protagonismo em sua comunidade na arte dos cuidados em saúde. Ao tempo em que assumem uma liderança na ciência tradicional da cura, os mestres da cultura perpetuam saberes e técnicas ancestrais, sistematizando, guardando e representando certos elementos culturais de sua etnia e/ou comunidade (Barth, 2000). Em suas culturas orais, eles são uma espécie de guardiões da tradição (Giddens, 2001) e organizadores da memória coletiva (Halbwachs, 2006), atributos materializados no manuseio dos saberes terapêuticos, na liderança política e no vivo pertencimento a suas comunidades nativas. Tal condição implica o reconhecimento dessa singular virtude dos mestres por parte de pacientes e seguidores, parentes étnicos e comunidades tradicionais. Cabe realçar que o Ceará dispõe da Lei Estadual n. 13.351 (2003), que registra e ampara os mestres da Cultura Popular. Essa legislação foi revisada (Lei Estadual n. 13.842 [Lei dos Tesouros Vivos da Cultura Cearense, 2006]). Em seu art. 1º, a Lei Estadual n. 13.351 (2003) conceitua o mestre da cultura como “a pessoa natural que tenha os conhecimentos ou as técnicas necessárias para a produção e preservação da cultura tradicional popular de uma comunidade”1. Essa condição diz respeito – entendo – ao papel de guardiões da tradição, assumido por esses mestres (nos mais distintos ofícios, como reisado, artesanato de barro, xilogravura, medicina popular etc.), o que os torna patrimônio vivo das culturas locais, incrustado na ordem civilizatória brasileira. Entre os 5 mestres participantes, 3 já eram reconhecidos legalmente como mestres da Cultura Popular no Estado do Ceará em 2014. São eles: Pajé Luís Caboclo e Cacique João Venâncio, do povo Tremembé de Almofala, e Mestra Maria de Fátima Monteiro Cosmo, de Juazeiro do Norte, no Cariri. Os outros 2 - Pajé Barbosa, dos Pitaguary, e Dr. Raízes, de Quixadá -, junto aos primeiros, têm o reconhecimento de suas comunidades por suas habilidades em saúde e por sua liderança terapêutica e/ou espiritual ao longo dos anos. Para este relato, conduzo a reflexão em 5 temas que emergiram de um curso com duração de 4 meses - os quais me chamaram mais a atenção, não sendo, decerto, os únicos aspectos significativos dessa experiência pedagógica. Assim, no exame dos diversos 1 A UECE aprovou a Resolução CONSU n. 1.194 (2016), que dispõe sobre normas para a outorga do Título de Notório Saber em Cultura Popular. Em 2019 foram diplomados 11 mestres da Cultura Popular, tanto do sexo masculino quanto feminino, atuantes em cultura indígena, artesanato, dança do coco e literatura de cordel, dentre outros ofícios e áreas. 196 JOÃO TADEU DE ANDRADE assuntos aflorados nesse invulgar encontro de saberes, levo em conta tanto o conteúdo oral/tradicional trazido pelos mestres quanto o conteúdo sistemático/acadêmico. Contrastes interculturais Um cerimonioso clima, de indiscreto impacto visual, tomou conta da sala de aula quando da entrada de 2 representantes do povo Pitaguary. Pajé Barbosa e sua assistente estavam “a caráter”: com pés descalços e usando penas, cocares, pintura corporal e colares. De início, o contraste das vestimentas marcou a distinção étnica entre os protagonistas do encontro. A pintura corporal e os adornos explicitaram um marco identitário, também indicando um deslocamento espacial e cultural. Em seu habitat acadêmico, discentes e docentes estiveram diante de “estrangeiros”, em certo sentido, não apenas diante das vestimentas, mas da linguagem de seus interlocutores, de seus conselhos e dos casos contados, imersos em um território cultural particular: seja o Cariri, as terras do Quixadá, as praias de Almofala ou as matas de Pacatuba, regiões e localidades do Estado do Ceará de onde vieram esses mestres. No relato de um dos participantes, frisou-se a notória reação de estranhamento, os olhares por vezes admirados, perplexos, confusos, dos integrantes do curso diante dos docentes. A diferença também se firma mediante canções e danças, em sala de aula, cujos conteúdos acentuaram uma fronteira cultural com os estudantes universitários - em sua maioria, pessoas da classe média urbana de Fortaleza. Entretanto, se esta fronteira acentua um distanciamento (geográfico, linguístico, simbólico), sob outro ângulo, ela desperta a curiosidade, a vontade de conhecer outro horizonte cultural, o movimento em direção à alteridade distante (Geertz, 2006; Silva, 2012). Tal esforço, seja na situação da pesquisa etnográfica, no contato interétnico espontâneo ou, ainda, no contexto pedagógico, exige um se colocar no lugar do outro, implica um reconhecimento da diferença e uma autorreflexão sobre a identidade. Isso põe em questionamento – ao menos potencialmente – os sistemas classificatórios com os quais os indivíduos operam, digo, os sujeitos parceiros nesse diálogo interepistêmico em particular. Cabe ter em mente, nesse cenário, que identidade e diferença são complexos fenômenos relacionais, constrangidos por situações sociais e marcados simbolicamente enquanto sistemas de representação (Silva, 2012). Tais sistemas operam por oposição, inclusão e exclusão, em um movimento para conferir sentido às relações sociais, com suas variadas repercussões. Essa dinâmica certamente invade a situação pedagógica criada pelo projeto Encontro de Saberes: testemunhei essa possibilidade ao longo do curso, que acrescenta uma interessante riqueza de conteúdos e um conjunto de desafios metodológicos e didáticos. Daqui decorrem questões relevantes nessa experimentação pedagógica e epistêmica, enquanto propósito do Encontro de Saberes. Cabe realçar que a proposta de uma universidade multiepistêmica exige uma reestruturação pedagógica CONHECER: DEBATE ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO. V. 11 Nº 27/2021.2 197 aberta a uma diversidade de formatos de aulas, espaços e sistemas de avaliação, como acentuam Carvalho e Águas (2015). Nesse sentido, pergunta-se: • Como encarar a diversidade cultural enquanto matéria curricular? • De que modo explorar os mecanismos classificatórios formuladores da diferença e da identidade? • Como os saberes tradicionais, marcadamente dominados no universo acadêmico, podem ser levados em conta como saberes distintos? • Qual é a melhor estratégia para fazer confluírem conteúdos orais/tradicionais com o acervo de saberes formais/científicos? Estas são algumas questões pertinentes que atravessaram toda essa experiência de ensino, constituindo espécies de enquadramentos nos quais o curso tomou projeção própria. Cura, carisma e Sat Sanga O tema da cura, central para o curso, necessariamente nos conduziu ao território da espiritualidade. Estivemos diante de curadores e de guias espirituais, particularmente as lideranças Pitaguary e Tremembé. Ao longo da exposição sobre os cuidados em saúde, muitos tópicos foram tratados: o uso de plantas medicinais (coleta, manuseio, princípios terapêuticos), a identificação de enfermidades, as causas das doenças, a alimentação regional, os cânticos cerimoniais, dentre outros. Todos esses assuntos estiveram enlaçados pelo circuito da espiritualidade, tanto em sua matriz xamanística indígena, na tradição católica popular, quanto, ainda, na vertente evangélica. No caso dos povos Pitaguary e Tremembé, tanto o Toré quanto o Torém (variações da mesma dança ritualística indígena) encarnam um ritual sagrado, central para os povos indígenas tradicionais no Nordeste. Entra nesse contexto a atitude reverencial aos lugares sagrados, a ligação com os encantados das matas (índios ancestrais) e o amparo de diversas entidades espirituais (Caipora, Exu, Preto Velho). Na roda do Toré/Torém, no embalo dos maracás e cânticos ritualísticos, no movimento ritmado dos corpos, Pajé Barbosa ensina que “quem dança é o espírito, não é o corpo”. Nessa direção, tanto espírito quanto corpo podem ser curados e transformados, mas o espírito, tantas vezes aludido, parece ser a realidade fundamental. De outro lado, o uso das ervas medicinais, associado ao poder das rezas, foi destacado sobretudo por Mestre Fátima e Mestre Lúcio (Dr. Raízes). Mestre Fátima lembra um dom recebido, espécie de iluminação ou graça, de modo a curar as pessoas, em situações nas quais “os médicos já desenganaram os pacientes”. De modo análogo, Dr. 198 JOÃO TADEU DE ANDRADE Raízes menciona que sua habilidade para produzir medicamentos naturais, a partir das plantas de Quixadá, resulta da sabedoria presenteada por Deus, destacando o poder da fé. Mostra-se oportuno registrar que todos esses curadores, em situações diversas ao longo da experiência pedagógica, trouxeram cânticos religiosos, lideravam orações, faziam referências respeitosas a entidades metafísicas. Essas e tantas outras manifestações da convicção religiosa, da firme crença nas realidades espirituais e na direta vinculação dos mestres com a arte da cura, conferem-lhes uma aura carismática nesse encontro intercultural. Ora, o carisma configura atributo especial de um sujeito, portador de qualidades incomuns, como pensado por Max Weber (1982) na sociologia clássica. Em sua concepção da autoridade carismática, Weber (1982) sublinha que esses líderes naturais são portadores de dons considerados sobrenaturais, não acessíveis à maioria das pessoas. Isso é bem marcado no caso dos xamãs e dos medicine men nas sociedades tradicionais, além da atuação de diversos líderes religiosos. Tal característica inerente aos mestres da Cultura Popular - resulta tanto das habilidades terapêuticas de sua ação, mas sobretudo de seu trânsito junto a outras dimensões da condição humana, como o mundo espiritual, em suas diversas variantes. De tal modo, o encontro entre esses docentes e os alunos constitui algo além da relação convencional desses sujeitos na situação de sala de aula. Com um carisma indisfarçável, os mestres puseram em ação um encontro que transcendeu a formalidade e racionalidade da transmissão de conteúdos, rumo a um estado de exame de princípios espirituais. Nesse sentido, o encontro pedagógico assume mais apropriadamente o lugar de um Sat Sanga, conforme a tradição cultural hindu. O Sat Sanga diz respeito ao encontro dos sábios com seus discípulos irmanados no estudo das verdades metafísicas. Trata-se de uma ocasião auspiciosa na qual os mestres aconselham e propagam ensinamentos espirituais, à luz das escrituras e da linhagem de gurus. Entendo assim que, sobretudo por conta do tema cura, a atuação dos mestres se coloca acima da função de meros comunicadores de técnicas terapêuticas. Os mestres não se apresentam apartados de suas crenças e convicções espirituais, mas as trazem encarnadas em suas narrativas, seus aconselhamentos e sua presença carismática. Performances corporais A corporeidade abriga outra dimensão dessa experiência pedagógica. Ela foi - e pode ser - deslocada de sua posição passiva na sala de aula (alunos sentados absorvendo informações) para vivências concretas, como abraços coletivos, gritos cerimoniais, cânticos ritualísticos, dança do Toré, trilhas na caatinga cearense, visitas a lugares sagrados, manipulação de ervas curativas. Ora, tais performances corporais, em vivências como a dança, mobilizam os diversos sentidos da apreensão cognitiva, favorecendo novas CONHECER: DEBATE ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO. V. 11 Nº 27/2021.2 199 possibilidades de autopercepção, de entendimento dos temas tratados e das narrativas dos mestres. Um exemplo ilustrativo foi protagonizado por Pajé Barbosa: o mestre incitou a turma ao exercício de um grito pessoal, espécie de som gutural, como que em anúncio de cada individualidade. Esse incomum exercício desafiou os participantes, pois se tratava de tarefa estranha à prática docente convencional. O abraço coletivo, realizado em círculo, provocando o contato de corpos estranhos entre si, também gerou surpresa e, para alguns, desconforto. Igualmente, a vivência da dança cerimonial, ao som do tambor e do maracá, no movimento ritmado dos corpos, pôs em marcha a performance corporal e, “na outra margem” (a da reflexão racional), impactou de algum modo (na verdade, em reações diversas) a percepção individual e o confronto analítico com os conceitos tratados (cura, celebração, natureza, ritual etc.). Em diversos estudos etnográficos, a experiência corporal se situa no contexto de performances ritualísticas, com diversos propósitos (Andrade, 2006; Godinho, 2014). Essas realizações ou desempenhos corporais ocorrem em cenários nos quais têm lugar cerimônias, sejam festas, casamentos, ritos funerários, celebrações religiosas, dentre outras. A imersão de pessoas e grupos nessas práticas mobiliza tanto experimentações biofísicas quanto sensações e percepções diversas, frequentemente conduzindo seus protagonistas à atribuição de significados e crenças coletivas. No sentido pensado por Merleau-Ponty, a experiência corporal está colada à percepção cognitiva, pois o indivíduo é sujeito/corpo ou corpo/sujeito, realidades indissociáveis unidas ontologicamente (Rabelo, Souza, & Alves, 2012). Penso, assim, que a situação de sala de aula pode (e deve) favorecer o domínio intelectivo de conteúdos mediante experimentos ritualísticos. Disso se aproximam as diversas dinâmicas de grupo postas em uso pela pedagogia moderna. Porém, tratar a performance corporal como técnica didática reduziria sua riqueza cultural enquanto vivência ritualística e limitaria o encontro intercultural, no sentido inspirado pelo projeto Encontro de Saberes. Esse aspecto revela a potencial dimensão descolonizadora de tais práticas pedagógicas diante dos saberes universitários, favorecendo a reintrodução das ciências tradicionais e de práticas espirituais (Carvalho & Flórez, 2014), com origem em diversos ritos culturais. Oratórias não lineares Quem, entre discentes e docentes, aguardava exposições claras e sequenciais, com propósitos definidos e conclusões à vista, certamente encontrou algo distinto por parte dos mestres. O ofício do docente na escola e universidade tem, entre alguns de seus 200 JOÃO TADEU DE ANDRADE atributos, a marca da comunicação direta, da fala elucidativa, das explanações estruturadas por argumentos lógicos, dos conceitos teóricos, dos exemplos e das fórmulas. Ademais, frequentemente os docentes convencionais fazem uso de tecnologias audiovisuais para aperfeiçoarem a transmissão e o entendimento dos conteúdos. Na atividade de ensino também é comum uma oratória rebuscada, repleta de referências autorais e de reflexões conceituais, inerentes à atividade intelectiva. Todavia, nesse caso, respeitam-se certas fronteiras discursivas no desenrolar da comunicação didática. Ocorre, todavia, que os mestres trazem seus ensinamentos em um discurso indireto e pouco estruturado, em oratória não linear - na maioria das vezes circular e multiforme. Um dos alunos do curso chegou a dizer que “não entendia” o que um mestre falava. Essa inquietante constatação evidencia que esquemas cognitivos distintos se puseram em marcha, gerando perplexidades, fazendo com que “o aluno se desacomodasse” de sua costumeira posição pedagógica passiva e de sua inserção disciplinar por vezes limitante. Outro estudante comentou que “os mestres não eram docentes”, cabendo aceitar o modo pessoal como cada um veiculava sua mensagem. Essa perspectiva nos revela que, ao não serem professores profissionais, os mestres são outra coisa, sujeitos de seus saberes e do modo de entender o mundo à sua volta. Essa “ambivalência” do discurso dos mestres guarda características peculiares, que aqui ouso pressupor: a) eles não buscam assemelhar-se à prática discursiva dos docentes de cátedra, pois nem almejam tornarem-se docentes, muito menos – parece-me – demonstram atração pelo modus operandi da fala professoral; b) seu discurso se movimenta a partir de um éthos particular, dentro de um universo semântico próprio; e c) a oratória dos mestres opera mediante a dinâmica do contar histórias em falas livres, um fluxo narrativo espontâneo. Essa via de transmissão e atualização do conhecimento encontra abrigo na recente crítica de Boaventura de Sousa Santos (2018) ao império cognitivo, marca do domínio eurocêntrico em muitas áreas. Santos (2018) enfatiza o ressurgimento da cultura oral, como instrumento das epistemologias do Sul. O autor destaca que o conhecimento oral não conhece disciplinas, tempos lineares, espaços delimitados. Apoiando-se no linguista ugandês Pio Zirimu, Santos (2018) faz uso da ideia de oratura, como sistema estético oral, com uma dimensão performática, sendo um universo de expressão e de apreciação, a partir da atuação do performer, do contador de histórias. Destaco que é justamente nesse modo próprio da comunicação que os mestres se situam. Com base nessas premissas, o discurso dos mestres corresponde a uma delicada escuta epistemológica, que não se restringe à tradução hermenêutica da alteridade, mas deve dar atenção aos modos filosófico e cosmológico, fundantes da fala desses docentes. Nesse sentido, tal modalidade narrativa se aproxima mais da fruição estética e da linguagem mitológica do que do discurso acadêmico dominante, exigindo uma postura distinta de seus ouvintes e interlocutores. Esse desafio já instaura uma atração específica para os parceiros do projeto Encontro de Saberes. CONHECER: DEBATE ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO. V. 11 Nº 27/2021.2 201 O lugar de outra episteme Nesta reflexão, entendo que o lugar para outra episteme implica uma mudança cognitiva – ainda que provisória –, mas também exige um movimento espacial, um deslocamento territorial2. Diz respeito ao que Marc Augé denominou lugar antropológico, espaço onde prevalecem relações de sociabilidade, em que os indivíduos percorrem e habitam, constituindo contextos identitários e históricos (Sá, 2014). Assim, os mestres trazem seus saberes enraizados em contextos existenciais particulares, onde suas vidas ganham sentido. Em uma vertente, tal condição ontológica contribui para uma alteração do esquema perceptivo e do raciocínio lógico em face do confronto com a alteridade. Isso é expresso na linguagem dominante dos interlocutores, no conteúdo das narrativas apresentadas e no esforço pela tradução hermenêutica – por parte de alunos, sobretudo – dos assuntos postos em cena. Penso, assim, em um território simbólico e antropológico, apropriado pelos mestres, no qual um modo de ser e saber se instala. Por exemplo, histórias sobre a arte de navegação dos Tremembé, narradas em dado momento, impõe um considerável distanciamento existencial. Ou, então, os procedimentos técnicos para o preparo do Mocororó, bebida sagrada indígena, relativos ao manuseio do caju, a seu armazenamento e ao uso sacramental na roda do Torém. Ou, ainda, as particularidades das receitas para garrafadas e medicamentos sertanejos, desde a identificação de plantas, a coleta e o armazenamento até seu uso terapêutico. Todos esses exemplos são mostras daquilo que Geertz (2006) denominou saber local, com suas idiossincrasias e sua densidade étnica. Então, cumpre sublinhar que tal esforço cognitivo está diretamente associado à experiência subjetiva de outro lugar ou território. Essa episteme diversa ganha substância ao emergir de um mundo concreto, físico-espacial, no contato vivencial com ambientes naturais, com sujeitos não humanos (cães, sapos, pássaros...), com temperaturas e cheiros da mata, do mar e do sertão. Essa qualidade da experiência subjetiva exige, em esforço reflexivo, uma abordagem fenomenológica. Segundo essa concepção filosófica, a construção social do conhecimento opera de acordo com as noções de intencionalidade e de experiência. Um suposto fenomenológico é de que a consciência é uma consciência de objetos, sejam pessoas, árvores, situações sociais, o que qualifica a mente como coisa pública (Sokolowski, 2000), como consciência que sempre se dirige a um objeto para além dela mesma (Giorgi, 2010). Sob outro ângulo, a noção de experiência é central e configura os modos de envolvimento no mundo, a forma primária de situarmo-nos na esfera das atividades (Rabelo, Souza, & Alves, 2012). Desse modo, deve-se levar em conta, a partir da 2 Ao longo do curso ocorreu uma viagem para Quixadá, no sertão central do Ceará, quando alunos, docentes e mestres entraram em contato com a caatinga. Em segunda viagem visitamos o território dos Pitaguary, em Maracanaú, região metropolitana de Fortaleza. 202 JOÃO TADEU DE ANDRADE inserção no lugar do outro, os liames da construção social do conhecimento e, sobretudo, que tal conhecimento emerge de um lugar concreto no cotidiano da vida diária. Trata-se do mundo-de-vida, na concepção fenomenológica. É nesse horizonte - o ponto de vista do nativo, mencionado por Geertz (2006) - que os mestres conduzem sua ação no mundo. Tal perspectiva pode iluminar o lugar/mundo habitado pelos mestres, no qual eles constroem suas narrativas e sua peculiar episteme. Concluindo Nesta breve reflexão, procurei examinar o projeto Encontro de Saberes tendo por base alguns temas oriundos da disciplina Saberes Tradicionais da Cura. Os tópicos escolhidos foram: contrastes interculturais; cura, carisma e Sat Sanga; performances corporais; oratórias não lineares; e o lugar de outra episteme. Não sendo uma análise exaustiva daquilo que o curso propiciou, de algum modo, esses temas podem contribuir para fortalecer as bases teórico-metodológicas desse projeto. Debruçar-me sobre esses tópicos, enlaçados pelo tema central da cura, faz-me ver a conexão transdisciplinar entre tais assuntos e abordagens. Esse aspecto é identificado no esquema teórico-metodológico do Encontro de Saberes e mostra que o enfoque é muito promissor do ponto de vista da aproximação de áreas do conhecimento e do diálogo entre saberes de bases epistemológicas distintas. Entretanto, o que essa reflexão acentua de modo mais pertinente diz respeito às dimensões pedagógica e epistêmica dessa experiência acadêmica. No primeiro aspecto, o que me surpreende é a possibilidade de descolonizar os saberes tradicionais e populares, que podem migrar da posição de objetos passivos para a condição ativa e criativa no interior do processo pedagógico, com os desafios e os desdobramentos que isso impõe. No segundo aspecto, os temas tratados e, sobretudo, o modo como eles são abordados, sinalizam a base pluriepistêmica que motiva o Encontro de Saberes. Tal processo, todavia, exige um avançar no refinamento teórico, em diálogo mais próximo com sujeitos e grupos das diversas epistemes, buscando estratégias que promovam interfaces criativas entre os diversos saberes em jogo. Referências bibliográficas Andrade, J. T. (2006). Medicina alternativa e complementar: experiência, corporeidade e transformação. Fortaleza, CE: Ed. UECE. Barth, F. (2000). O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. CONHECER: DEBATE ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO. V. 11 Nº 27/2021.2 203 Brown, P. J. 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