RIF Artigos/Ensaios
10.5212/RIF.v.20.i45.0008
Alô, Comunidade: narrativas folkmidiáticas sobre o Monte
Serrat, em Florianópolis (SC)
Camila Maurer1
Cintia Xavier2
Submetido em: 14/10/2022
Aceito em: 28/10/2022
RESUMO
Este artigo examina o quadro Alô Comunidade, que integra o telejornal local Jornal do
Almoço, sob o olhar teórico da Folkcomunicação. Para isso, analisa as características
centrais do quadro e identifica marcas folkmidiáticas em duas reportagens que tecem
narrativas sobre o Monte Serrat, comunidade situada no Maciço do Morro da Cruz, região
central da Ilha de Santa Catarina. A análise identifica a presença de elementos
folkmidiáticos associados a essas produções telejornalísticas e reflete sobre as
potencialidades e os limites desse espaço para a promoção das culturas populares.
PALAVRAS-CHAVE
Folkcomunicação; Folkmídia; Televisão; Comunidades; Jornal do Almoço.
1
Mestranda em Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Especialista em
Produção e Gestão de Rádio e TV e graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade do
Vale do Itajaí (Univali). Correio eletrônico: maurercamila7@gmail.com.
2
Doutora em Comunicação pela Unisinos. Professora do curso de Jornalismo e do Mestrado em
Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Possui graduação em Comunicação Social
Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1995) e mestrado em Comunicação e
Linguagens
pela
Universidade
Tuiuti
do
Paraná
(2004).
Correio
eletrônico: cintia_xavierpg@yahoo.com.br.
RIF, Ponta Grossa/ PR Volume 20, Número 45, p.145-161, jul./dez. 2022
Hello, Community: folkmedia narratives about Monte Serrat, in
Florianópolis (SC)
ABSTRACT
This article examines the segment Alô Comunidade, wich is part of the local news Jornal do
Almoço, on a theoretical framework of Folkcommunication. For this, it analyzes the main
characteristics of the segment and identifies folkmedia marks in two stories about Monte
Serrat, a community located in Maciço do Morro da Cruz, central region of Ilha de Santa
Catarina. The analysis identifies the presence of folkmedia elements associated with these
journalistic productions and reflects on the potentials and limits of the space for the
promotion of popular cultures.
KEY-WORDS
Folkcommunication; Folmedia; Television; Communities; Jornal do Almoço.
Hola comunidad: narrativas folkmedia sobre el Monte Serrat,
en Florianópolis (SC)
RESUMEN
Este artículo examina el marco Alô Comunidade, que integra el programa informativo local
Jornal do Almoço, desde la perspectiva teórica de la Folkcomunicación. Para ello, analiza
las características centrales del encuadre e identifica marcas folkmediáticas en dos
reportajes que tejen narrativas sobre Monte Serrat, comunidad ubicada en el Maciço do
Morro da Cruz, región central de la isla de Santa Catarina. El análisis identifica la presencia
de elementos folkmedia asociados a estas producciones periodísticas y reflexiona sobre las
potencialidades y límites de este espacio de promoción de las culturas populares.
PALABRAS-CLAVE
Folkcomunicación; Folkmedia; Television; Comunidades; Jornal do Almoço.
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Introdução
No mundo contemporâneo, cultura popular e cultura de massa estão
profundamente imbricadas, não sendo mais possível identificar fronteiras nítidas entre
uma e outra (TRIGUEIRO, 2006). O desenvolvimento de tecnologias de telecomunicações,
aliado a aspectos mercadológicos sempre preponderantes no cenário da radiodifusão
comercial brasileira, transformaram a televisão em produto cultural onipresente nos lares
brasileiros, mediadora de apropriações e negociações entre a cultura popular e a cultura
de massa.
Considerando esse contexto, considera-se válido analisar o modo como a televisão
regional apropria-se de elementos culturais provenientes de classes populares em suas
narrativas. Assim, propõe-se investigar a existência de marcas folkmidiáticas no quadro
“Alô Comunidade”, que integra o Jornal do Almoço de Florianópolis (SC), telejornal local
veiculado pela NSCTV, afiliada da Rede Globo em Santa Catarina. O quadro é comandado
pelo comunicador Edson Amaral, mais conhecido pelo nome artístico Edsoul, que produz
reportagens a partir de comunidades periféricas da região metropolitana de Florianópolis,
tendo moradores desses territórios como protagonistas. Pretende-se investigar se o
quadro pode ser compreendido enquanto produto cultural folkmidiático através da análise
de conteúdo de duas reportagens, cujo objetivo é realizar inferências que permitam
“extrair conhecimentos sobre os aspectos latentes da mensagem analisada” (FONSECA
JUNIOR, 2017, p. 284). Assim, investiga-se o uso das fontes e sua relação com os locais
retratados nas reportagens, a presença de elementos que fazem referência às identidades
culturais e aspectos históricos da comunidade (que podem estar representados, por
exemplo, em marcas de linguagem nos textos do repórter e na fala de suas fontes, bem
como nas locações escolhidas para as gravações). Do mesmo modo, investiga-se na
atuação dos comunicadores que conduzem as reportagens elementos de aproximação em
relação à figura do ativista midiático da rede folkcomunicacional. A análise tem como base
um quadro teórico que se constrói a partir da reflexão em torno das noções de
comunicador folk e ativista midiático da rede folkcomunicacional.
Da comunicação dos excluídos à folkmídia
A Folkcomunicação é uma abordagem teórica cuja origem remete aos estudos
pioneiros de Luiz Beltrão em torno da comunicação popular em meados dos anos 1960.
Esses movimentos iniciais faziam referência à “utilização de mecanismos artesanais de
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difusão simbólica para expressar em linguagem popular mensagens previamente
veiculadas pela indústria cultural” (MARQUES DE MELO, 2007, p. 21, grifo do autor). Tal
concepção original considerava a existência de um processo de intermediação entre a
cultura popular e a cultura de massa. Inscrita em um contexto teórico funcionalista,
dominante à época de seus estudos, as primeiras pesquisas associadas a essa perspectiva
de investigação voltaram o olhar para os processos de decodificação da cultura de massa
através de veículos rudimentares.
Nesse cenário, os agentes intermediários, comunicadores folk, tinham importância
fundamental, pois eram os responsáveis por reorganizar as narrativas midiáticas de modo
que pudessem ser acessadas e compreendidas pelos grupos populares. Tais agentes são
descritos por Trigueiro (2008) como indivíduos dotados de prestígio em seus grupos de
referência, que têm maior acesso aos meios massivos de informação e que mantêm
contato com diferentes grupos, permanecendo sempre ligados às referências culturais
locais.
É um narrador da cotidianidade, guardião da memória e da identidade local,
reconhecido como porta-voz do seu grupo social e transita entre as práticas
tradicionais e modernas, apropria-se das novas tecnologias de comunicação
para fazer circular as narrativas populares nas redes globais. Quando usa os
seus próprios meios de comunicação, ocupa um espaço conquistado e
reconhecido pelo seu grupo social, mas quando usa a mídia, o espaço é
quase sempre concedido no transcurso de um tempo social, quase sempre
sem o reconhecimento dos seus proprietários (TRIGUEIRO, 2008, p. 5).
Questões mercadológicas associadas a fatores socioculturais e tecnológicos
levaram a uma mudança no cenário originalmente observado por Beltrão e os pioneiros da
Folkcomunicação. Fatores como a ampliação das redes de telecomunicações, associada à
necessidade de legitimação e conquista de novos mercados junto às camadas populares
levaram a indústria cultural brasileira a apropriar-se de elementos da cultura popular. Com
isso, os processos e produtos resultantes de tais apropriações, de natureza folkmidiática,
tornaram-se objeto de investigação a partir da perspectiva da Folkcomunicação
(MARQUES DE MELO, 2007). Assim, o termo folkmidiático passa a fazer parte do
vocabulário associado a essa área de estudo e representa uma “tentativa de melhor se
compreenderem essas estratégias multidirecionais onde operam protagonistas de
diferentes segmentos socioculturais, ou seja; do midiático e da folkcomunicação”
(TRIGUEIRO, 2008, p. 7).
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Considerando esse novo cenário, em que há proliferação de meios de comunicação
e apropriações que borram as linhas entre o local e o global, os comunicadores folk já não
se caracterizam mais pelo papel de decodificadores e agora são vistos enquanto ativistas
midiáticos, que atuam como interlocutores entre contextos culturais diversos (TRIGUEIRO,
2008). Nesse contexto, cultura de massa e cultura popular se tornam indissociáveis e criam
zonas de intersecção em que há permanentes apropriações em ambas as direções, num
processo de negociação marcado por tensões “entre os movimentos promovidos pela
nova economia cultural global e a economia cultural do local” (TRIGUEIRO, 2008, p. 2). É a
partir desse cenário que se propõe refletir sobre o quadro Alô Comunidade enquanto
produto cultural folkmidiático, buscando identificar na atuação dos comunicadores à
frente das reportagens elementos de aproximação em relação à figura do ativista
midiático da rede folkcomunicacional.
Jornal do Almoço e o apelo às pautas de inspiração comunitária
O Jornal do Almoço é um telejornal veiculado pela NSCTV, afiliada da Rede Globo
em Santa Catarina, de segunda-feira a sábado na faixa de horário do meio-dia, espaço
dedicado aos telejornais locais na programação da Rede Globo. O telejornal é ancorado
localmente a partir de Florianópolis, Chapecó, Criciúma, Joinville e Blumenau, cidades nas
quais há geradoras da emissora3, cujo histórico remete a um cenário de concentração de
propriedade e audiência (SANTOS; MUNEIRO, 2019).
A atração apresenta-se ao público como um telejornal voltado a assuntos
comunitários, uma característica comum entre os telejornais locais que ocupam essa faixa
de horário na programação da Rede Globo. Essa linha editorial inscreve-se em um
contexto que teve início a partir da segunda metade da década de 1990, com um
movimento de aproximação da Rede Globo em relação ao público proveniente das classes
C, D e E, concomitantemente à inserção dessa parcela da população ao mundo do
consumo (FIGUEIREDO, 2015). Esse movimento resultou em alterações na programação da
emissora e levou à instauração de um modelo de telejornalismo que procurava alçar
bairros carentes de infraestrutura à esfera de visibilidade constituída pelos telejornais
locais da emissora e servir de mediador entre esses locais e as autoridades públicas
(FIGUEIREDO, 2015). Tais bairros são comumente chamados pela emissora de
3
Com o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, em março de 2020, o Jornal do Almoço passou a ser
ancorado exclusivamente a partir da capital catarinense para todo o Estado. As edições locais
retornaram em abril de 2021.
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“comunidades”. O conceito de comunidade, no entanto, é polissêmico e não está
necessariamente atrelado a uma determinada territorialidade, podendo constituir-se
como tal a partir de uma “proximidade de interesses, objetivos e outros sentidos de vida
em comum” (PERUZZO, 2007, p. 110).
Ainda que, institucionalmente, telejornais como o Jornal do Almoço façam uso
corrente do termo “comunitário”, considera-se importante ressaltar que autores como
Peruzzo (2005) e Figueiredo (2015) defendem que o jornalismo comunitário é definido
pela participação popular em todas as etapas do processo, não pela mera tematização de
assuntos provenientes de uma determinada comunidade.
Alô Comunidade e a visibilidade dos sujeitos periféricos
A existência de quadros temáticos é uma das características da linha editorial do
telejornal em questão. O quadro Alô Comunidade, objeto empírico deste artigo, foi ao ar
pela primeira vez há 10 anos. As reportagens que o compõem são normalmente veiculadas
nas edições de sábado do telejornal e agrupadas em temporadas esporádicas.
Institucionalmente, o quadro é definido como um espaço no jornal que “dá visibilidade à
cultura das comunidades periféricas da Grande Florianópolis” (NSCTV, 2021).
Desde sua estreia, as reportagens que compõem o quadro são produzidas pelo
comunicador Edsoul Amaral, homem negro4, morador do Morro da Mariquinha, uma das
16 comunidades que integram a região do Maciço do Morro da Cruz, no centro da Ilha de
Santa Catarina. Enquanto morador do morro, conhece profundamente os meandros da
vida nas comunidades do Maciço, junto às quais mantêm prestígio, resultante de uma
atuação constante, anterior à sua inserção na mídia, sobretudo na área cultural, pois é
ator, músico e ativista do movimento negro na cidade. A partir de sua inserção como
repórter do Jornal do Almoço, ocupou também outros espaços em veículos pertencentes
ao mesmo grupo de comunicação, tais como uma coluna semanal no jornal popular Hora
de Santa Catarina. Desse modo, atua como interlocutor entre múltiplas comunidades da
Grande Florianópolis e a grande mídia, uma das características que permitem estabelecer
4
O uso do termo negro/negra para se referir a pessoas identificadas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) como pretas e pardas inscreve-se em um cenário de disputa semântica,
associado a aspectos históricos e culturais. A discussão de tais aspectos extrapola os objetivos deste
artigo, em que se opta pelo uso do termo negros/negras, por entender que essa é a forma como as
pessoas da comunidade retratada nas reportagens se referem à sua identidade racial, o que se encontra
representado no nome de uma das entidades mais importantes da comunidade, a Associação de
Mulheres Negras Antonieta de Barros.
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conexões entre o seu trabalho dentro e fora das telas e a figura do ativista midiático da
rede folkcomunicacional. Edsoul, que carrega em seu nome artístico a identificação com a
Soul Music5, faz parte da equipe regular de repórteres do telejornal, de modo que sua
presença em tela não está atrelada exclusivamente à veiculação do quadro Alô
Comunidade. No período entre temporadas, o repórter integra a escala de reportagem do
Jornal do Almoço, envolvendo-se majoritariamente com pautas de cunho comunitário.
As reportagens veiculadas no espaço demarcado pelo quadro Alô Comunidade têm
moradores das periferias como protagonistas, com destaque para mulheres negras. Essas
produções tendem a focalizar aspectos positivos das periferias, em contraste com um
discurso midiático hegemônico que tematiza a periferia a partir de suas ausências (de
infraestrutura, de serviços públicos, de recursos financeiros).
Cabe reconhecer que o termo periferia constitui conceito em disputa, que admite
uma pluralidade de entendimentos (ROVIDA, 2020). Milton Santos (2004) explica que as
periferias brasileiras são fruto direto do processo de crescimento das cidades de forma
dispersa, que gerou escassez de terras, especulação imobiliária e déficit habitacional.
Sobre esse tema, o autor ressalta que o que define a periferia não é sua distância em
relação a um polo, mas sua acessibilidade. Nesse sentido, a falta de vias de transporte que
permitam a locomoção dos indivíduos para satisfação de suas necessidades cotidianas os
coloca em uma situação periférica (SANTOS, 2004).
Com o objetivo de identificar marcas que remetem aos elementos da
folkcomunicação, realizamos uma análise de conteúdo a partir de reportagens, produtos
da prática jornalística através dos quais se materializam parte dos diálogos e apropriações
característicos dos produtos culturais folkmidiáticos. Foram analisadas duas reportagens6
que tecem narrativas sobre o Monte Serrat, veiculadas nas duas temporadas mais
recentes do quadro Alô Comunidade, em 2016 e 20197. A amostra não se pretende
representativa ou descritiva de um cenário atual, mas é capaz de fornecer elementos para
reflexão em torno das potencialidades desses produtos culturais.
5
Gênero musical popular originado na comunidade afro-americana dos Estados Unidos a partir do final
da década de 1950 que se tornou símbolo do movimento negro.
6
O acesso às reportagens se deu através da plataforma digital Globoplay.
7
Nos anos de 2020 e 2021, não foram identificadas reportagens atreladas ao quadro, que teve sua
produção interrompida em decorrência das reconfigurações das rotinas produtivas causadas pela
pandemia de Covid-19. Em julho de 2021, foi veiculada uma reportagem especial em alusão aos dez
anos que se passaram desde a estreia do quadro, o que demonstra que a proposta ainda é considerada
relevante
para
a
linha
editorial
do
telejornal
em
questão,
disponível
em:
https://redeglobo.globo.com/sc/nsctv/noticia/quadro-alo-comunidade-completa-10-anos-no-jornal-doalmoco-da-nsc-tv.ghtml. Acesso em 20 ago. 2021.
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Em 2016, a temporada do quadro Alô Comunidade teve como fio condutor a
celebração de aspectos positivos de oito comunidades. Cada reportagem tematizava uma
comunidade específica e era veiculada nas edições de sábado do telejornal, ao longo de
oito semanas. O quadro possuía uma vinheta específica, cujo BG era um samba composto
especialmente para este fim, em que se ouve “Se liga no papo da paz, Alô Comunidade”.
Assim, a referência ao samba é o primeiro elemento da cultura popular que pode ser
identificado e permite um movimento inicial de aproximação do quadro enquanto um
produto folkmidiático.
Dessa temporada, analisamos a reportagem veiculada em 16 de julho de 2016 cujo
cenário foi o Monte Serrat (também chamado de Morro da Caixa). A principal rua da
comunidade em questão, General Vieira da Rosa, é a mesma onde se localiza a NSC TV (à
época, sob a marca RBSTV)8, ainda que, oficialmente, a emissora esteja localizada no
Centro. A proximidade geográfica entre esses dois territórios, fisicamente tão próximos e
politicamente tão distantes, materializa um cenário de tensões e atravessamentos que
devem ser considerados quando se pretende refletir sobre as relações e apropriações
entre cultura popular e cultura de massa. A comunidade, assim como a emissora, localizase no Maciço do Morro da Cruz, região central da Ilha de Santa Catarina, a curta distância
de alguns dos endereços mais valorizados do Estado, como a Avenida Beira-Mar Norte, por
exemplo. A ocupação do Maciço teve início no século XVIII, quando se tornou território
relegado aos negros, cativos e libertos (SANTOS, 2009). Atualmente, a região é composta
por 16 comunidades, onde moram quase 23 mil pessoas9.
A reportagem inicia com forte referência ao samba, elemento cultural em comum
entre as comunidades do Maciço: “O Morro da Caixa lembra quase que automaticamente
uma certa escola de samba que espalha sua grandeza pelos becos e vielas, de onde um dia
já foi favela no centro da cidade” (ALÔ..., 2016). A menção aos becos e vielas e à “favela no
centro da cidade” evidencia elementos de uma territorialidade com características
próprias, resultantes do processo de segregação que levou a população negra de
Florianópolis a habitar os morros.
8
Em 7 de março de 2016, após 37 anos no Estado, o Grupo RBS anunciou a venda das operações de
mídia em Santa Catarina (oito emissoras de rádio, quatro jornais e seis emissoras de televisão) para os
empresários Carlos Sanchez e Lírio Parisotto. Em 15 de agosto de 2017, a RBSTV passou a se chamar NSC
TV.
9
Disponível
em:
https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/infraestrutura/index.php?cms=projeto+macico+do+morro+da+cr
uz&menu=6&submenuid=303.
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O Monte Serrat é sede da segunda escola de samba mais antiga de Florianópolis,
Embaixada Copa Lord, cujos integrantes encontram-se fortemente representados na
reportagem analisada, que mostra membros da Bateria Guerreira (nome pelo qual é
conhecida a bateria da escola), passistas adultas e mirins e um casal de mestre-sala e
porta-bandeira fazendo evoluções nos becos e vielas. A primeira sonora da reportagem é
de Juninho Zuação, mestre de bateria da escola: “Primeiro ano aqui na frente, vindo de
outra escola, abraçado pela comunidade. Você conhece esse morro como ninguém, sabe
que não é fácil. Mas aqui, como eu falei, é a Mangueira de Floripa, então tem que ser bom
pra estar na frente10”. Na sonora do entrevistado, dois aspectos se destacam: a busca de
um parâmetro de comparação entre a escola de samba da comunidade e a tradicional
Estação Primeira de Mangueira, referência proveniente do carnaval carioca; e o
reconhecimento, por parte do entrevistado, do entrevistador enquanto conhecedor da
comunidade, o que nos permite inferir que o repórter possui prestígio junto a esse grupo
social, uma das características expostas por Beltrão (2001) em relação aos líderes de
opinião e recuperada por Trigueiro (2008) ao descrever os ativistas midiáticos da rede
folkcomunicacional.
Em outro momento da reportagem, Edsoul introduz o espectador às matriarcas da
comunidade, Dona Daura Veloso e Dona Uda Gonzaga: “Juntas, elas somam mais de 150
anos de resistência, de muita experiência” (ALÔ..., 2016). A relação traçada pelo
comunicador entre as mulheres negras matriarcas da comunidade e a resistência indica o
reconhecimento de relações de raça, classe e gênero inscritas naquele contexto,
historicamente marcado pela segregação. “Tem uma coisa que não dá pra negar é que as
mulheres são as guerreiras da comunidade. Desde a época das lavadeiras...” (ALÔ..., 2016).
O protagonismo das mulheres negras é uma das características culturais fundantes da
comunidade em questão e remete, como cita Edsoul, à “época das lavadeiras”. Trata-se de
uma referência ao período, durante a década de 1920, em que as mulheres que
trabalhavam como lavadeiras foram expulsas do centro de Florianópolis, no contexto de
um processo de urbanização que visava “limpar” a cidade, a exemplo do que ocorreu com
outras grandes cidades brasileiras. Desalojadas, passaram a viver e trabalhar no Monte
Serrat, que possuía córregos e fontes de água nas quais se podia lavar roupas como forma
de subsistência (SANTOS, 2009). Dona Daura e Dona Uda são filhas e netas de lavadeiras.
O uso do termo “guerreiras” para se referir a essas mulheres podem ser associado a uma
10
Sonora do entrevistado Juninho Zuação (ALÔ..., 2016).
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narrativa de romantização da pobreza e da exclusão social. O emprego da palavra, no
entanto, pode também ser interpretado como referência à bateria da escola de samba da
comunidade, conhecida como Bateria Guerreira.
Figura 1 – Reportagem Alô Comunidade 16/07/2016
Fonte: RBS, 2016.
Na fala de Dona Daura sobre o fato de que seus filhos, seis homens e cinco
mulheres, “foram criados dentro da Copa Lord11”, evidencia-se o entrelaçamento entre a
escola de samba e a cultura da comunidade, de modo que o samba, nesse contexto, opera
como elemento cultural agregador em torno do qual se constrói parte da identidade da
comunidade e que se faz presente em múltiplas dimensões na vida dos moradores. Esse
aspecto também emerge em outros momentos da reportagem, como a passagem em que
os moradores da comunidade estão reunidos em um bingo na sede da escola de samba. É
nesse cenário que Edsoul entrevista a moradora Sandra Nascimento, que ressalta o papel
da Associação de Mulheres Negras (AMAB)12 na organização de atividades e projetos
sociais voltados aos moradores.
Outra voz mobilizada pela narrativa é a de Vilson Groh, um padre católico morador
da comunidade desde os anos 1980, fundador de uma organização da sociedade civil sem
fins lucrativos que desenvolve ações educativas e socioassistenciais em regiões periféricas
da Grande Florianópolis. Nas palavras do religioso, apontado pelo repórter como uma
11
Sonora da entrevistada Daura Veloso (ALÔ..., 2016).
Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros. O nome da organização presta homenagem à
primeira mulher negra eleita deputada no país. Natural de Florianópolis, Antonieta de Barros era filha
de uma lavadeira escravizada, posteriormente liberta (NUNES, 2001). A associação que hoje leva seu
nome foi criada por iniciativa de Maria de Lurdes da Costa Gonzaga, professora conhecida como Dona
Uda, uma das entrevistadas da reportagem. Dona Uda foi a primeira aluna negra do Instituto Estadual
de Educação, maior escola pública de Santa Catarina, no mesmo período em que Antonieta de Barros
dirigia a instituição (TORRES, 2016).
12
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figura importante na “evolução do morro”, destaca-se o reconhecimento do protagonismo
comunitário: “Olha o filme que passa na cabeça é que nessa história, nessa memória, um
povo que se levantou, um povo que fez da sua força e dos seus talentos e do seu grande
capital social uma perspectiva de oportunidade13”.
O último entrevistado mobilizado pela reportagem é Seu Teco14, apresentado por
Edsoul como alguém que “enfrentou as dificuldades, participou efetivamente da evolução
do morro e hoje evidencia a felicidade de um povo que valoriza coisas simples, que
mantém a harmonia e a cumplicidade” (ALÔ..., 2016). Ainda que o texto da reportagem
não detalhe, Seu Teco foi um dos fundadores do Centro Cultural Escrava Anastácia (CCEA),
militante pelos direitos da população do morro e pela educação de jovens negros e foi um
dos principais responsáveis pela implantação da linha de ônibus que atende o morro, que
está presente na reportagem em vários takes. Nas palavras de Seu Teco destacadas pela
reportagem: “nós aqui vivemos bem. Não só eu, como todos aqui vivem assim. E quero é
zelar, melhorar mais o que nós temos15”.
Um aspecto a ser destacado é o uso de pronomes de tratamento nos créditos da
reportagem para identificação das fontes (Dona Daura, Dona Uda, Seu Teco), prática
incomum na reportagem de telejornalismo diário que, neste caso específico, pode ser
interpretada como manifestação de valorização e respeito pelos entrevistados. Do mesmo
modo, o uso dos nomes pelos quais os sujeitos entrevistados são conhecidos na
comunidade, em vez dos nomes que constam em seus documentos, evidencia um
movimento de valorização de suas identidades no contexto comunitário. O texto da
reportagem e a condução das entrevistas não se detêm em explicar quem são os
personagens mobilizados pela narrativa e por quais motivos eles foram incluídos como
representativos da comunidade. Desse modo, mobiliza sentidos que estão além da tela,
estabelecendo um diálogo cuja plena compreensão exige algum nível de conhecimento
sobre a comunidade retratada.
O encerramento das reportagens dessa temporada tem características literárias,
em que, novamente, destaca-se o protagonismo das três mulheres negras ouvidas na
reportagem: “O morro é delas, Uda, Daura e Sandra, as damas que trabalham, sambam e
sorriem sozinhas ou acompanhadas. Da guerreira da embaixada ou com o malandrear do
13
Sonora do entrevistado Vilson Groh (ALÔ..., 2016).
João Ferreira de Souza, mais conhecido como Seu Teco, morreu em 3 de agosto de 2020, em
decorrência de problemas cardíacos, aos 85 anos: https://www.nsctotal.com.br/noticias/morre-seuteco-figura-tradicional-do-macico-do-morro-da-cruz-em-florianopolis
15
Sonora do entrevistado Seu Teco (ALÔ..., 2016).
14
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mestre-sala. Nem mais, nem menos, apenas Morro da Caixa” (ALÔ..., 2016). Uma das
imagens que cobre o fechamento da reportagem é de um muro grafitado em referência ao
Dia da Consciência Negra16, onde se veem as figuras de Zumbi dos Palmares e Nelson
Mandela sobre a frase “a força da luta de Zumbi e Mandela vive em nós”. A referência à
questão racial e à resistência em cenários de segregação é um elemento cultural fundante
dessa comunidade, que começou a ser ocupada por negros escravizados e libertos ainda
no século XVIII, motivo pelo qual é percebida por parte dos moradores como um quilombo
urbano, como recupera Maia (2019).
Em 2019, uma nova temporada do quadro Alô Comunidade foi ao ar no Jornal do
Almoço de Florianópolis. O formato sofreu modificações: o quadro passou a ser ancorado
a partir do estúdio por Edsoul, o que adquire um significado que transcende ao quadro,
tendo em vista que não existem âncoras negros na tela da NSCTV. Assim, durante uma
parte do telejornal, Edsoul assume um lugar de equivalência em relação aos âncoras da
atração, o que potencializa sua condição de líder de opinião.
Nesta temporada, as comunidades eram retratadas em reportagens diárias ao
longo de uma semana, finalizada com uma entrada ao vivo a partir da comunidade. A
maior modificação de formato, no entanto, encontra-se no fato de que a condição de
repórter, antes ocupada por Edsoul, foi repassada aos moradores da comunidade, que
receberam a nomenclatura de “correspondentes” do Alô Comunidade. Nesta temporada,
a linha editorial das reportagens mescla a celebração de aspectos culturais e a busca por
melhorias estruturais e adoção de políticas públicas. As reportagens, no entanto, não
incluem a “cobrança” de soluções por parte do poder público. Esse elemento está
presente apenas ao final da semana de reportagens, em uma entrada ao vivo do repórter
Edsoul de dentro da comunidade em questão.
Novamente, lançamos um olhar sobre os aspectos da cultura popular midiatizados
em uma das reportagens que tematizou o Monte Serrat. A reportagem analisada foi
veiculada em 17 de junho de 2019 e teve os moradores Djavan Nascimento e Helder
Antunes na condição de repórteres. Djavan Nascimento é rapper e produtor cultural,
nascido e criado na região conhecida como “pastinho”, primeiro local ocupado no Morro.
Helder Antunes é ator e modelo, natural de Cabo Verde, no continente africano, aspecto
16
Em 2009, a Câmara Municipal de Florianópolis declarou 20 de novembro feriado municipal por meio da
Lei nº 8.046/2009. No ano seguinte, a lei foi julgada inconstitucional em resposta a uma ação movida por
entidade representativa dos lojistas do município: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/11/justicasuspende-feriado-em-florianopolis.html. Acesso em 01 set. 2021.
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que se encontra marcado logo no início da referida reportagem: “Vim da Mãe África pra
conhecer a comunidade onde nosso povo se mantém forte” (CONFIRA...,2019). Ambos
possuem atuação junto à cena cultural da comunidade. Assim, sua inserção na esfera de
visibilidade constituída pela grande mídia provém desse lugar de prestígio ocupado por
ambos em seu contexto cultural local, um dos elementos definidores dos ativistas
midiáticos da rede folkcomunicacional. Ainda que as reportagens conduzidas por eles não
possam ser consideradas uma iniciativa de jornalismo produzido a partir das periferias
(ROVIDA, 2020), pois trata-se de material jornalístico produzido no contexto de uma
emissora de televisão comercial que ocupa posição hegemônica no cenário estadual, há
que se reconhecer a força simbólica da iniciativa.
Figura 2 – Reportagem Alô Comunidade 17/06/2019
Fonte: NSC, 2019.
Por tratar-se da primeira reportagem de uma série de quatro, possui um caráter de
apresentação do morro e centra a narrativa nos aspectos históricos e culturais que
determinaram os dois nomes pelos quais a comunidade ficou conhecida: Monte Serrat e
Morro da Caixa. Um dos primeiros cenários da reportagem é o terreno no alto do morro
que abriga o Monumento da Caixa D’Água. A instalação de um reservatório de água no
local em 1909 fez com que o local ficasse conhecido como Morro da Caixa, nome ainda
hoje amplamente utilizado para se referir à comunidade. A obra, no entanto, teve como
finalidade atender os bairros Saco dos Limões, Agronômica e Centro. Os moradores do
morro, que já era ocupado por descendentes de negros escravizados desde o século XVIII,
só receberam água encanada em suas casas durante a década de 1980 (CULLETON, 2019).
Nas palavras de Djavan: “Estamos na famosa caixa d’água. Daqui de cima a gente vê a
cidade lá embaixo. A construção é de 1909 e aqui pra cima subiam e desciam as nossas
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guerreiras com as trouxas e a lata d’água na cabeça” (CONFIRA..., 2019). Assim como na
reportagem veiculada em 2016, identifica-se novamente a referência ao trabalho das
lavadeiras, figuras centrais no imaginário local e referência histórica fundamental para
compreender a formação da comunidade.
Na sequência, mobiliza-se a figura do Padre Vilson Groh, para explicar que o nome
Monte Serrat é uma referência à padroeira da comunidade, Nossa Senhora de Montserrat,
cuja devoção é originária da Espanha. O religioso traça relações entre a imagem religiosa
de pele negra e as matriarcas da comunidade, outro aspecto cultural já presente na
reportagem anteriormente analisada, que fornece pistas sobre os entrelaçamentos entre a
religiosidade popular e a formação cultural da comunidade.
Sobre esses aspectos, lembra-se que a narrativa possui um papel importante na
formação das identidades culturais, ao passo que “toda identidade se gera e se constitui
no ato de narrar-se como história, no processo e na prática de contar-se aos outros”
(MARTÍN-BARBERO, 2018, p. 20, grifo do autor). Assim, no processo de contar a história do
local onde se vive, constroem-se e reafirmam-se as identidades dos sujeitos que ali vivem.
Considerações finais
O acesso de atores sociais aos meios de comunicação é marcado por uma série de
exclusões e silenciamentos que refletem as assimetrias de poder presentes na sociedade.
A inserção de comunidades periféricas no telejornalismo da Rede Globo inscreve-se em
um contexto caracterizado por interesses mercadológicos e institucionais. Nesse cenário, é
importante considerar que a relação entre cultura popular e cultura de massa é marcada
por uma série de tensões e atravessamentos, mas também apresenta potencialidades a
serem exploradas.
A análise das características centrais do quadro Alô Comunidade e de duas
reportagens veiculadas nesse espaço identificou elementos que permitem considerar a
atração como produto cultural folkmidiático, uma vez que promove a midiatização de
elementos da cultura popular através da focalização de sujeitos provenientes de
comunidades periféricas que, ao falar sobre a comunidade, reforçam suas identidades
culturais e comunitárias.
Desse modo, ainda que as questões mercadológicas sejam sempre preponderantes
no contexto da radiodifusão comercial, há que se reconhecer que produtos culturais como
o Alô Comunidade guardam em si potencialidades a serem desenvolvidas no sentido de
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promover a valorização das diversidades culturais e seus sujeitos, atendendo de forma
mais abrangente a uma das finalidades constitucionais da programação de televisão, a
promoção da cultura nacional e regional.
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