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Sándor Ferenczi: incansável freudiano

2025, Sándor Ferenczi: incansável freudiano

https://doi.org/10.31560/pimentacultural/978-85-7221-307-3

Abstract

A Einfühlung é um conceito central nas reflexões teórico-clínicas de Sándor Ferenczi, atravessando sua experiência de vida e a complexa relação com Sigmund Freud. Este livro explora a evolução do conceito, sua integração à psicanálise e sua expansão a partir da influência de Ferenczi, destacando seu impacto no manejo clínico. Como base para nossa reflexão, destacam-se dois trabalhos fundamentais: Elasticidade da técnica psicanalítica (1928) e o Diário Clínico (1932).

AGRADECIMENTOS

A presente reflexão integrou as atividades de conclusão do curso de formação em Psicanálise do Núcleo Brasileiro de Pesquisas Psicanalíticas (NPP). Expresso minha profunda gratidão à orientação generosa da psicanalista didata Maria Teresa Mendonça de Barros, a Teca, bem como à banca examinadora, composta pelos psicanalistas Elaine Grecco e Gustavo Dean-Gomes, cujas perspicazes observações foram essenciais para uma compreensão mais apurada dos conceitos e da clínica de Sándor Ferenczi.

Estendo minha gratidão à psicanalista didata Araceli Albino, que realiza a árdua tarefa de guiar seus alunos pelas sinuosidades da metapsicologia, renovando Freud para inúmeras gerações de psicanalistas. Registro também minha admiração pelo trabalho dedicado de Suely Pinha, diretora do NPP à época de meu ingresso, cuja perda precoce foi fundamente sentida.

Por fim, agradeço aos professores do NPP e aos colegas da turma 27, cuja companhia e interlocução foram indispensáveis em minha caminhada de aprendizado e reflexão. S U M Á R I O À Ana Paula, companheira de muitas vidas.

Aos meus pais, Joaquina e Antonio, pelos começos. À Rita, irmã, pelo afeto.

INTRODUÇÃO

O segundo Congresso Internacional de Psicanálise foi realizado em 1910 na cidade de Nuremberg e a partir de seus debates foi criada a Associação Psicanalítica Internacional, tendo Sándor Ferenczi como férreo defensor. O psicanalista húngaro também expôs no mesmo evento a conferência Sobre a história do movimento psicanalítico. Em seguida acompanhou Sigmund Freud -que conhecera dois anos antes -à Itália, passando por Roma, Nápoles, Palermo e Siracusa. Tais viagens conjuntas, seja por razões não estritamente profissionais -como parecia ser o caso -ou em nome da divulgação do movimento psicanalítico eram comuns. Em 1909, aliás, juntamente com Carl Gustav Jung, ambos realizaram a incursão aos Estados Unidos para a famosa série de conferências na Universidade Clark, que resultou na publicação de Cinco lições de psicanálise.

Em terras italianas ocorreu o evento denominado por Bokanowski (2000a, p. 19) de incidente de Palermo. Ao que tudo indica, uma investida amorosa de Ferenczi causadora de um desconforto imediato. Após reiterados pedidos de desculpas, Freud responde em carta de 6 de outubro de 1910:

Não tenho mais necessidade desta abertura total de personalidade, você não apenas observou como compreendeu, e você reagiu com força justamente à causa traumática deste estado de coisas. Então por que você se entusiasmou assim? Desde o caso com Fliess, de cujo excesso você me viu precisamente ocupado, esta necessidade apagou-se em mim. Uma parte de meu investimento homossexual foi retirada e utilizada para o incremento de meu próprio eu. Fui bem-sucedido onde o paranoico fracassa (Freud 2 , [1910] apud Bokanowski, 2000a, p. 20). Tal episódio é simbólico da complexa relação estabelecida entre Ferenczi e Freud. Foram vinte e cinco anos de um convívio íntimo e intensa correspondência, permeados por sentimentos poderosos, mal-entendidos insuperáveis e uma profusão de papéis ocupados, fonte de uma monumental carga transferencial: pai e filho, mestre venerado e discípulo fiel, analista e analisando, amigos afetuosos, parceiros e rivais em disputas sobre o cânone psicanalítico. A criação e o aprimoramento de conceitos propriamente ferenczianos podem ser mais bem compreendidos justamente tendo como pano de fundo o contexto transferencial que os enredou. Do mesmo modo, soa estéril separar o desenvolvimento da clínica, da metapsicologia e do movimento psicanalítico das primeiras décadas do século XX do forte vínculo entre Freud e Ferenczi.

O propósito da presente reflexão é pensar com vagar sobre o conceito de Einfühlung, pois acreditamos ter sido ele a síntese tanto do modo como Ferenczi estruturava seu enfoque teórico-clínico quanto de sua complexa relação com Freud que, ora lhe estimulava a ousadia, ora agia como o cioso guardião do cânone psicanalítico. Partimos do debate etimológico, para em seguida traçar a evolução do conceito, destacando seu caráter polissêmico e pendular entre o tato e a empatia. Finalizaremos destacando como a Einfühlung está na base de uma prática clínica alicerçada no cuidado, posicionando-se como alternativa a uma abordagem tida como clássica.

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VERSÕES

Sándor Ferenczi atribuiu à Einfühlung forte carga polissêmica em variados textos e contextos, todavia, é na conferência Elasticidade da técnica psicanalítica ([1928] 2020c) -proferida na Sociedade Húngara de Psicanálise no momento da chamada virada de 1928 3 -que assumiu sua configuração mais notável, consoante à fase mais ousada das contribuições psicanalíticas de nosso autor. Em uma primeira abordagem, Einfühlung pode ser definida como equivalente a "tato psicológico", a capacidade de "sentir com" ([1928] 2020c, p. 31), de acordo com a tradução das obras completas

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A expressão "virada ferencziana de 1928" -encontrada em KUPERMANN, Daniel. A virada de 1928 e os princípios para uma ética do cuidado em psicanálise. In: Por que Ferenczi ? São Paulo: Zagodoni, 2019a. p. 89. (Coleção grandes psicanalistas, 7;Daniel Kupermann (coord.)). -tem como referência a virada freudiana da década de 1920, mudança teórica caracterizada pela formulação da pulsão de morte e da segunda topologia do aparelho psíquico. Embora a originalidade teórica e clínica de Ferenczi pudesse ser observada em momentos anteriores, seria a partir de 1928 que chegaria ao ápice com a trilogia formada por A adaptação da família à criança, O problema do fim da análise e Elasticidade da técnica psicanalítica.

de Ferenczi a partir do francês, que chegou ao Brasil na década de 1980 pela editora Martins Fontes. É comum também encontrarmos o termo "empatia" (Bokanowski, 2000b, p. 74), o que nos leva à ampliação do debate sobre as possibilidades de tradução.

De acordo com Kupermann (2019a, p. 109), Einfühlung teria o significado de "sentir dentro", a capacidade do analista de sentir o analisando em si, uma disponibilidade para tornar-se outro. "Sentir com", por sua vez, equivaleria não a "empatia", mas à "simpatia", fenômeno próximo dos aspectos conscientes e pré-conscientes e menos conectado aos inconscientes em jogo na clínica. No original em francês consta a frase "Le tact, c'est la faculté de sentir avec" e o termo alemão está no rodapé. Todavia, no original em alemão "Takt ist Einfülungsvermögen" (publicado na Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse) não há qualquer alusão a simpatia ou "sentir com". Há que se notar que a versão em português, além de utilizar "sentir com", acrescenta o termo em alemão entre parênteses a seu lado no corpo do texto: "O tato é a faculdade de 'sentir com' (Einfühlung). " (Ferenczi, [1928(Ferenczi, [ ] 2020c, p. 31), p. 31).

EINFÜHLUNG:

TOPOLOGIA Na já mencionada carta para Freud enviada no início de 1928 (Ferenczi 10 , [1928] apud Dean-Gomes, 2019b) quando do debate sobre Elasticidade da técnica psicanalítica ([1928] 2020c), Ferenczi defendeu que o "sentir dentro" -base da experiência empática -tornar-se-ia útil ao processo analítico uma vez que fosse simultaneamente honesto (em consonância com o mencionado há pouco no caso de Severn) e acessível à observação do analista e não um joguete de suas disposições mais imediatas e pessoais. Pontua, inclusive, que a empatia não deveria ser evitada, sendo um processo a ocorrer no pré-consciente do analista e não em seu inconsciente. Dean-Gomes (2019b, p. 347 e 357) acrescenta que a posição ocupada pela empatia na topologia do psiquismo seria diferente da ocupada pelo tato analítico -mais próximo das dimensões conscientes -de modo que na formação do fenômeno O próprio Ferenczi tinha noção do quão complexo seria o processo de manejo clínico diante de tais pressupostos, em um constante movimento pendular entre os conteúdos inconscientes do analisando e o acesso aos níveis de pré-consciência e consciência do analista para este, de forma dinâmica, colocar-se francamente disponível a uma postura empática que proporcionasse o aflorar do tato psicanalítico e finalmente, alcançar a uma interpretação:

Pouco a pouco, vai-se percebendo até que ponto o trabalho psíquico desenvolvido pelo analista é, na verdade, complicado. Deixam-se agir sobre si as associações livres do paciente e, ao mesmo tempo, deixa-se a sua própria imaginação brincar com esse material associativo; nesse meio-tempo, comparam-se as novas conexões com os resultados anteriores da análise, sem negligenciar, por um instante sequer, o exame e a crítica de suas próprias tendências.

De fato, quase poderíamos falar de uma oscilação perpétua entre "sentir com", auto-observação e atividade de julgamento. Esta última anuncia-se de tempos em tempos, de um modo inteiramente espontâneo, sob a forma de sinal que, naturalmente, só se avalia primeiro como tal: é somente com base num material justificativo suplementar que se pode, enfim, decidir uma interpretação (Ferenczi, [1928] 2020c, p. 37-38, grifo nosso).

Alinhando-se a Ferenczi, Dean-Gomes (2019b, p. 358-359) reforça o papel do analista em um necessário exercício crítico do processo, que só seria possível justamente pelo fato da empatia ser um fenômeno a ocorrer no pré-consciente, não podendo ser confundida com uma identificação inconsciente. Uma rápida digressão a título de contraponto se faz necessária para relembrarmos a posição de Kupermann 11 (2019a, p. 109) que em sua defesa de "sentir dentro" como melhor tradução para Einfühlung usou como argumento a consonância da expressão aos aspectos "[...] inconscientes em jogo na situação do encontro clínico. " Acrescentou -inclusive utilizando por base o próprio Ferenczi ([1932] 1990c, p. 122) -que o diálogo de inconscientes que se efetiva na relação transferencial favoreceria manifestações de maior sintonia entre analisando e analista e consequentemente a instauração da empatia (Kupermann, 2019a, p. 115).

A observação criteriosa da dinâmica da clínica também está enunciada no contexto em que Ferenczi define o que seria a "elasticidade da técnica": Aceito fazer minha a expressão "elasticidade da técnica analítica" forjada por um paciente. É necessário ceder às tendências do paciente, mas sem abandonar a tração na direção de suas próprias opiniões, enquanto a falta de consistência de uma ou outra dessas posições não estiver plenamente provada.

Em nenhum caso se deve sentir vergonha de reconhecer, sem restrições, erros cometidos no passado. Nunca se esqueça que a análise não é um procedimento sugestivo, em que o prestígio do médico e sua infalibilidade têm de ser preservados acima de tudo. A única pretensão alimentada pela análise é a da confiança na franqueza e na sinceridade do médico, não lhe fazendo mal algum o franco reconhecimento de um erro (Ferenczi, [1928] 2020c, p. 36-37, grifos nossos).

Figuradamente, o analista -precisaria ter uma flexibilidade semelhante a um elástico, comprimindo-se ou esticando-se a depender da necessidade, mas com uma maleabilidade finita. A empatia e o tato psicológico estariam, assim, voltados ao atendimento das necessidades emocionais do analisando e não seriam a expressão ilimitada da satisfação de idiossincrasias, desejos narcísicos ou necessidades do analista (Kahtuni;Sanches, 2009b, p. 141). No entanto, vale dizer que esse "analista elástico" -imbuído de uma postura S U M Á R I O empática a orientar o uso delicado do tato -também não poderia ser confundido com o analista permissivo, o que é reconhecido pelo próprio Ferenczi quando dá importante peso à necessidade de sustentação das convicções do profissional, contudo, sem a pactuação com o erro. Segundo Dean-Gomes (2019b, p. 359), Ferenczi pontua que, se na técnica ativa o médico pode desviar-se a ponto de dar margem a manifestações de sadismo, os analistas precisam tomar o devido cuidado para que as novas recomendações não se inclinem para uma técnica masoquista.

Diante desse quadro complexo e demandante, Ferenczi insiste na necessidade da análise pessoal do analista e consequente sintonia com o conhecimento teórico necessário a respeito do funcionamento do psiquismo humano. A elasticidade do analista seria, por conseguinte, uma plasticidade psíquica resultante de uma análise terminada, única base confiável para uma boa técnica analítica (Kahtuni;Sanches, 2009b, p. 141).

PERCURSO INICIAL

O termo Einfühlung experimentou um processo de maturação conceitual -que passou por sua incorporação ao campo psicanalítico -e acompanhá-lo nos auxilia na melhor delimitação de seus significados, enriquecendo, inclusive, a compreensão do debate em torno de suas possibilidades de tradução. Possui conexão original com a estética, vinculando-se aos filósofos alemães Robert Vischer e Theodor Lipps. Vischer criou o termo em 1873 e foi, inclusive, citado na correspondência entre Sigmund Freud e Wilhelm Fliess. É em O chiste e sua relação com o inconsciente ([1905] 2017) que as primeiras noções de empatia são utilizadas por Freud em sua obra em um contexto de análise do inconsciente sob sua dimensão social (Dean-Gomes, 2019b, p. 348-349).

Einfühlung encontra-se em um sentido embrionário e mais amplo -enquanto "tato" -já nas primeiras reflexões de Sándor Ferenczi S U M Á R I O envolvendo o campo psicanalítico, sendo observado na conferência As neuroses à luz do ensino de Freud e da psicanálise: "... É evidente que a análise deve ser praticada com muito tato [...]" (Ferenczi, [1908] 2020, p. 17). De acordo com essa perspectiva, tato relembraria a existência de um outro, com uma psiquê específica a qual exigiria uma adaptação do método e consequentemente uma sensibilidade e fuga de posições dogmáticas da parte do analista (Dean-Gomes, 2019a, p. 139). Um desdobramento de tal raciocínio pode ser observado em A adaptação da família à criança (Ferenczi, [1928] 2020a), onde vemos Ferenczi caminhar na direção de uma clínica cujo analista deveria ter clareza de que -qual as figuras parentais -precisaria se adaptar à singularidade de cada analisando e não este às estruturas teóricas prévias da psicanálise (Kahtuni;Sanches, 2009a, p. 29).

Ferenczi menciona Einfühlung no sentido de "empatia" em 1911, justamente num comentário sobre as reflexões freudianas a respeito do chiste, acrescentando que a empatia seria o meio pelo qual a audiência de piadas sobre o tamanho tido como anormal de uma parte do corpo compararia seus atributos com os do cômico, gerando como resultado uma descarga de excitações as quais seriam fonte do prazer humorístico (Ferenczi, [1911(Ferenczi, [ ] 2020)).

Já em O problema da afirmação do desprazer (Ferenczi, [1926] 2020), o psicanalista húngaro trabalha a partir de algumas hipóteses que relacionam empatia ao psiquismo infantil.

EINFÜHLUNG: ENTRE O TATO E A EMPATIA

Ao traçarmos o caminho inicial percorrido pelo conceito de Einfühlung temos um breve cenário de sua diversidade de sentidos, notadamente sua posição entre "tato" e "empatia". Necessário retomarmos com atenção especial o trabalho Elasticidade da técnica psicanalítica (Ferenczi, [1928] 2020c) -haja vista ser o momento de maturidade do conceito -para melhor captar esses significados, dedicando-nos com mais vagar em um primeiro momento à relação entre a Einfühlung e o tato.

Focado na prática terapêutica e enviado para avaliação de Freud no primeiro dia de 1928, a reflexão de Ferenczi recebeu uma apreciação instigadora: [...] Meus conselhos sobre a técnica, dados tempos atrás, foram essencialmente negativos. Eu considerava mais importante enfatizar o que não deveria ser feito, demonstrar as tentações que se opõem à análise. Quase tudo o que é positivo, que se deve fazer, eu deixei para o "tato", que foi introduzido por você. Mas o que eu consegui foi que os obedientes não tomassem nota da elasticidade dessas advertências e se submetessem a elas como se fossem tabus. Isso tinha de ser revisto de algum modo, sem que, certamente, fossem revogadas as obrigações (Freud 4 , [1928] apud Dean-Gomes, 2019b, p. 337).

A correspondência deixa claro o papel de Ferenczi em chamar a atenção sobre aspectos do pensamento freudiano que o próprio pai da psicanálise deixou esboçados, não escondendo possíveis elementos de tensão. Não à toa, o artigo debruçou-se inicialmente sobre o texto Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (Freud, [1912] 2010) que, segundo o intelectual húngaro, forneceria as bases de uma pesquisa metódica do psiquismo, de modo que a prática da psicanálise não se circunscreveria a sábios, mas àqueles com o domínio do método. Ferenczi também propõe que as características pessoais dos analistas acabariam por submergir nas sessões na medida em que fossem analisados. O "tato psicológico", nesse contexto, seria a parte remanescente da "equação pessoal" a lembrar as possíveis idiossincrasias no proceder dos analistas (Dean-Gomes, 2019b, p. 339-340).

Sándor Ferenczi associa o conceito de "tato psicológico" a três situações para as quais o analista deve estar atento no tratamento: compreender quando e como comunicar algo ao paciente, notar como pode ser respondida uma reação inesperada e perceber qual o momento de calar ou quando o silêncio se torna iatrogênico, traumático. E complementa:

Permanecendo ao mesmo tempo e a todo momento atentos à força da resistência, não nos será difícil decidir sobre a oportunidade de uma comunicação e a forma de que deve revestir-se. Esse sentimento nos impedirá de estimular a resistência do paciente, de maneira inútil ou intempestiva; por certo não é dado à psicanálise poupar o paciente de todo o sofrimento; com efeito, aprender a suportar um sofrimento constitui um dos resultados principais da psicanálise. Entretanto, uma pressão a esse respeito, se for desprovida de tato, fornecerá apenas ao paciente a oportunidade, ardentemente desejada pelo inconsciente, de subtrair-se à nossa influência (Ferenczi, [1928] 2020c, p. 31-32, grifo nosso).

Assim sendo, o tato "[...] designa tanto a capacidade de distinguir e escolher o momento justo da intervenção terapêutica adequada do analista quanto o modo de realizar essa intervenção. O tato se relaciona com o ritmo e o tom da intervenção. " (Kahtuni;Sanches, 2009e, p. 369). Uma reflexão proposta por Dean-Gomes (2019b, p. 341) sobre "ritmo" e "tom" merece destaque: Ferenczi nos remeteria aos elementos não verbais dos encontros humanos, até então pouco teorizados pelos analistas, inclusive abrindo margem para a fala e sua forma, o aspecto estético que o analista pode imprimir ao encontro com o analisando tendo em vista sua singularidade afetiva.

Um dos princípios fundamentais da prática analítica poderia ser aprimorado, uma vez que a descoberta do material inconsciente e sua interpretação não seriam os únicos meios para a resolução de certo conflito psíquico, já que o trabalho do psicanalista deveria considerar a particularidade de cada analisando, seu ritmo e tempo. A reflexão de Ferenczi ora destacada dialoga fortemente com a abordagem de Freud sobre o processo de elaboração e compreensão da resistência:

É preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência agora conhecida, para que a elabore, para que a supere, prosseguindo o trabalho apesar dela, conforme a regra fundamental da análise. Somente no auge da resistência podemos, em trabalho comum com o analisando, descobrir os impulsos instintuais que a estão nutrindo, de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência. O médico nada mais tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado, e tampouco ser sempre acelerado (Freud, [1914(Freud, [ ] 2010b, p. 181-182, grifo nosso), p. 181-182, grifo nosso).

As consonâncias entre Ferenczi e Freud não apagariam o cuidado que o último demonstrou com eventuais questões relacionadas à institucionalização do tato dentro da clínica. O pai da psicanálise advertiu, na própria carta há pouco mencionada, que "... Todos aqueles que não têm tato verão no que você escreve uma justificativa para a arbitrariedade, por exemplo, a subjetividade, a influência de seus próprios complexos não resolvidos. " (Freud 5 , [1928] apud Dean-Gomes, 2019b, p. 344). Em resposta, Ferenczi 6 argumenta enfaticamente que "Nossas concepções não são diferentes" e sua proposta de tato não abriria caminhos para condutas arbitrárias ou resultantes de complexos dos analistas, uma vez que estes aceitassem ser analisados ([1928] apud Dean-Gomes, 2019b, p. 345). Acrescenta, incluindo a si mesmo nessa situação: analistas não suficientemente analisados e sem o conhecimento da própria psiquê ficariam impossibilitados de adquirir o tato psicológico dando margem a erros para com seus analisandos (Kahtuni;Sanches, 2009e, p. 369).

O tato seria, de acordo com Kahtuni e Sanches (2009e, p. 368), uma das faces para a compreensão da Einfühlung, contudo, seu complemento necessário estaria na empatia. Ambos são parte do arcabouço necessário a um processo psicanalítico no qual o analista seria figura central para sua eficácia, notadamente a partir de 1928. O entrelaçamento de tais conceitos fica mais evidente quando recorremos novamente ao próprio Ferenczi: "O tato é a faculdade de 'sentir com' (Einfühlung). " ([1928] 2020b, p. 31). A empatia, no entanto, se diferenciaria pela capacidade do analista em se colocar no lugar do analisando, afinando-se com seus sentimentos e pensamentos, apreendendo mecanismos inconscientes, tais como representações mentais substitutas, resistências e impulsos reprimidos (Kahtuni;Sanches, 2009c, p. 143). Tal capacidade deveria ocorrer, todavia, sem a perda de seus próprios referenciais, preservando a capacidade de discernimento e de análise contínuos. Com a manifestação de uma postura empática a partir desses pressupostos o analista estaria muito próximo de sentir e pensar como se fosse o paciente, o "sentir dentro" defendido por Kupermann (2019a, p. 109) ou o "sentir o outro dentro de si" como preferem Kahtuni e Sanches (2009c, p. 142). Indicaria, portanto, uma habilidade relacional de identificação (Kahtuni;Sanches, 2009e, p. 369-370).

O uso do tato em combinação com a empatia levaria a uma nova abordagem em relação à técnica psicanalítica canônica -alicerçada no tripé associação livre, princípio da abstinência no campo transferencial e interpretação -, repensada em nome de um protagonismo do analisando, uma vez que seria o analista aquele a dispor da maleabilidade necessária para o atendimento dos pacientes considerados até então inanalisáveis. Pode-se afirmar que, a partir de Elasticidade da técnica psicanalítica (Ferenczi, [1928] 2020c), a psicanálise direcionou seu olhar para os chamados "pacientes difíceis", denominação inicial do que hoje se conhece como borderlines (literatura anglo-saxã), casos-limite (literatura francesa) ou patologias narcísicas. Segundo Ferenczi, seriam pacientes efetivamente traumatizados e com dificuldades na realização da associação livre, em sonhar, no cometimento de atos falhos e na inclusão do analista no processo transferencial. Diante de tal quadro, demandariam do psicanalista uma "presença sensível" que possibilitaria algum tipo de intervenção clínica (Kupermann, 2019a, p. 91-92).

A ausência do tato psicológico combinado com a empatia poderia levar ao aumento das resistências e eventuais retraumatismos no momento de uma interpretação ou assinalamento -mesmo que corretos em seu conteúdo -retirando do analista instrumentos clínicos essenciais na facilitação do processo terapêutico. Tal abordagem faz ainda mais sentido se lembrarmos do pioneirismo de Ferenczi ([1928] 2020a) na defesa de um ambiente humano munido de tato em relação à criança desde o seu nascimento. O analistaenquanto representante do mundo externo -deveria, dentro dessa lógica, tratar com tato seus pacientes para não revivescer o contexto possivelmente hostil e traumático experimentado pelo infante (Kahtuni;Sanches, 2009e, p. 370).

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EMPATIA AFETIVA E AUTÊNTICA

Há uma reflexão importante em Coelho Junior (2004, p. 76-77) sobre como Freud e Ferenczi veem a Einfühlung enquanto empatia: o primeiro reconhece seu uso clínico, ligando-a a processos que nos permitiriam compreender outro ser humano por meio de uma capacidade cognitiva de nos colocar em seu lugar, enquanto o segundo lhe atribuiria um significado de ordem mais afetiva e emocional. Tal distinção merece nota, pois nos auxilia na compreensão de como a abordagem ferencziana de empatia está ancorada na experiência pessoal de seu criador.

Esse também é o caminho seguido por Rachman 7 (2004 apud Dean-Gomes, 2019b, p. 350) quando afirma que os elementos traumáticos da infância de Ferenczi se converteram em um "presente" 7 RACHMAN, Arnold William. Sándor Ferenczi: el terapeuta de la pasión y la ternura. Santiago: Indepsi, 2004.

para seus pacientes, na medida em que transfiguraram sua empatia pessoal em uma empatia clínica. Em tal processo, por meio da percepção da importância da relação entre mãe e filho -central na obra do psicanalista húngaro -seria possível entrar em sintonia, "sentir dentro" a privação de seus analisandos.

Essa abordagem levou Sándor Ferenczi inúmeras vezes a confrontar o modelo psicanalítico estabelecido a partir de um experimentalismo que expandia seu universo de atuação. Um exemplo paradigmático foi narrado por Clara Thompson -sua paciente e destacada terapeuta -sobre um militar que, punido por transgressões disciplinares durante a Primeira Guerra Mundial, desenvolvera um transtorno mental agudo, cujo desdobramento levara-lhe a uma falta de cuidado consigo e com sua higiene. Ferenczi -médico do exército austro-húngaro durante o conflito -ao ser removido para o campo de exercícios militares encontrou-se com esse soldado e, de forma intuitiva, abraçou-o silenciosamente com genuína preocupação, gerando, de imediato, um processo de recuperação do enfermo. De acordo com Thompson, o ato reafirmaria ao homem a presença de um amigo, independentemente da tragicidade de sua condição (Dean-Gomes, 2019b, p. 352).

Ferenczi enfatizava em Elasticidade da técnica psicanalítica ([1928] 2020c) a utilização da empatia mesmo com pacientes por quem se sinta antipatia. O início do tratamento com Elizabeth Severn 8 indica os percalços pelos quais o analista pode se deparar, caso não adote tal postura autenticamente. Em nota de 5 de maio de 1932 em seu Diário clínico, admite que começou o tratamento com R.N. (iniciais que usou para preservar a identidade de Severn) "[...] sem simpatia especial de minha parte; evidentemente, dedico ao paciente, enquanto médico, um interesse que considero leal", chegando a explicitar uma efetiva "antipatia" (Ferenczi, [1932] Mesmo com as dificuldades experimentadas pelo próprio Ferenczi em relação ao uso clínico da Einfühlung enquanto empatia 9 , o "sentir dentro" ou "sentir o outro dentro de si" inaugurou um caminho a ser seguido pelas reflexões da escola inglesa sobre a contratransferência a partir dos anos 1950 (Kupermann, 2019a, p. 92).

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Retornaremos à questão no capítulo oito.

VEREDAS

O conceito de Einfühlung e seu caráter duplo, o tato e a empatia, esteve na base do debate que se organizou em torno de novas possibilidades teórico-clínicas, especialmente na década de 1920, a partir das reflexões de Sándor Ferenczi. Segundo Bokanowski (2002, p. 24), duas modalidades de clínica analítica poderiam ser assinaladas em tal contexto: a clássica, de Freud, e outra, menos ortodoxa e mais profunda, a do próprio Ferenczi. A primeira -essencialmente alicerçada no aspecto paterno da transferência, no levantamento do recalcamento e na recordação e sua construção -levaria, graças ao conhecimento do material representativo da transferência, à elaboração interpretativa, meta da análise, bem como à tomada de consciência. A segunda -centrada no aspecto primário da relação, a transferência materna, introduziria o conceito de relação de objeto, bem como a consideração de seus efeitos nos avanços do tratamento -é uma análise regressiva em que há predominância da experiência vivida, da interação, do pré-verbal e, é claro, da Einfühlung.

Permitiria a tomada de consciência dos traumatismos sofridos pelo analisando e seus aspectos infantis, por meio do contato direto com o analista 12 . Diante das transferências mais complexas de pacientes difíceis -para os quais o próprio Ferenczi se mostrava como último recurso -outras orientações e proposições técnicas se fariam necessárias. Para além da técnica ativa, Ferenczi também avançava -como destacamos há pouco -pelo caminho da chamada "elasticidade", ou técnica de "relaxamento" ou "neocatarse", tendo como meta a abordagem e tratamento das conjunturas clínicas de tipo passional. Confrontado com a compulsão à repetição dos traumas da infância, o analista húngaro foi levado a reelaborar o próprio conceito de trauma para além da questão da sedução conforme o teorizado por Freud. Produziu, desse modo, um avanço considerável ao encarar a etiologia traumática como resultado, tanto de uma violação psíquica da criança pelo adulto, como de uma confusão de línguas entre estes, bem como de uma recusa da realidade do desespero da criança, feita pelo adulto. Por essa perspectiva, o destino natural da libido ocuparia um papel secundário diante de conjunturas clínicas caracterizadas por estados extremos de dor emocional (e física) provocadores de agonia na vida psíquica do analisando.

Essas novas perspectivas teórico-clínicas desenvolvidas por Ferenczi parecem ter elevado a relação com Freud a outro patamar, transformando um convívio já complexo -mas prolífico em sua troca de impressões -para algo de tom mais beligerante, especialmente entre 1928 e 1933. De acordo com Bokanowski (2002, p. 25), um fosso teórico se descortina a partir da concepção de traumatismo infantil.

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No capítulo quatro adiantamos brevemente a existência de uma clínica ferencziana que poderia ser considerada como alternativa à abordagem freudiana clássica, de acordo com KUPERMANN, Daniel. A virada de 1928 e os princípios para uma ética do cuidado em psicanálise. In: Por que Ferenczi? São Paulo: Zagodoni, 2019a. p. 91-92. (Coleção grandes psicanalistas, 7; Daniel Kupermann (coord.)).

A crítica de Freud centrou-se na ideia de que os recursos do aparelho psíquico -como sua capacidade de transformação do trauma e a dor psíquica a ele conectada -estariam sendo desvalorizados, perdendo protagonismo à invocação da compulsão à repetição da situação traumática e a responsabilidade atribuída ao objeto. As novas concepções de Ferenczi seriam, para o pai da psicanálise, um retrocesso e quiçá um desvio teórico, com um risco de volta às concepções que ele próprio havia deixado de lado após sua "neurótica" de 1897.

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VENTURAS E DESCOMPASSOS

Em 17 de março de 1932, Sándor Ferenczi dedicou-se em seu Diário Clínico às potencialidades e obstáculos envolvidos na aplicação da Einfühlung -a partir de mais uma árdua e conturbada sessão com Elizabeth Severn -por meio de uma reflexão intitulada Vantagens e desvantagens do 'sentir com' intensivo. Confidenciou estar profundamente incomodado com a duração excessiva das sessões (a de Severn, por exemplo, teria chegado a algo próximo a três horas) e, no entanto, com notável atitude empática, torturou-se com a possibilidade de abandonar seus pacientes em sofrimento: "Uma certa angústia à ideia de abandonar aquele que sofre, sem o ajudar, nem esperar o momento do apaziguamento. " (Ferenczi, [1932(Ferenczi, [ ] 1990a, p. 95), p. 95).

No entanto, desconfiando da possibilidade de estar sendo logrado, resolveu adotar uma atitude menos complacente com seus analisandos, experimentando-a justamente nas sessões com Severn: "resolvi ser duro" (Ferenczi, [1932(Ferenczi, [ ] 1990a, p. 96), p. 96). A inspiração para a mudança veio a partir da leitura sobre a experiência vivenciada por Mary Baker-Eddyfoot_1 , que alegava curar-se e refazer-se de suas crises histéricas após ser deixada sozinha por horas. A estratégia de Ferenczi para colocar em ação sua nova abordagem foi sensibilizar a paciente a partir da utilização da análise mútua, assim expressando sua intenção com maior franqueza. Estimulado por Severn, inclusive, Ferenczi iniciou o processo com a análise de um sonho pessoal que expressaria a revolta contra o que chamou de "tirania do sofrimento" ([1932] 1990a, p. 96). A reação da paciente o surpreendeu: em um primeiro momento informou que teria conseguido com alguém a soma suficiente para manter a análise por mais um ano e em seguida aquiesceu, concordando que a duração das sessões mais prejudicava do que trazia benefícios. Por fim, explicitou que a sugestão para que Ferenczi iniciasse a análise mútua foi resultado da percepção de sua irritação e resistência. Diante da inutilidade da postura mais assertiva, o analista húngaro reconheceu em si um sentimento de culpa e -novamente com o auxílio de Severn -retomou a análise de sonhos que seriam a chave para sua agressividade latente, concluindo que a origem da questão estaria na relação complexa estabelecida com figuras femininas a partir de uma experiência de sedução com uma arrumadeira em sua tenra infância: "[...] Está aí a origem do meu ódio às mulheres: por isso é que eu quero dissecá-las, ou seja, matá-las. É por isso que a acusação de minha mãe, 'tu és meu assassino' , me atingiu em cheio o coração [...]" (Ferenczi, [1932(Ferenczi, [ ] 1990a, p. 96), p. 96). Para lidar com tais afetos, havia se criado uma dinâmica psíquica alicerçada em uma supercompensação notável em atitudes compulsivas de auxílio aos sofredores -em especial as mulheres -e o bloqueio de situações de agressividade.

Seria tentador nos determos no debate em torno do modo como Ferenczi retomou o uso da teoria freudiana da sedução infantil, bem como o trabalhoso manejo clínico da análise mútua 14 , no entanto, para mantermos o escopo de nosso trabalho, enfocaremos no próximo excerto o modo como o psicanalista húngaro lidou com a Einfühlung e sua atuação no setting:

A vantagem do sentir com é o poder de penetrar profundamente nas sensações dos outros e o desejo de ajudar, compulsivo, que os pacientes acolhem com gratidão. Cedo ou tarde, o paciente deixa de encontrar qualquer proveito no simples "sentir com". Ou querem ficar comigo e que eu os faça felizes para o resto da vida, ou então preferem pôr fim ao medo de um medo sem fim (Ferenczi [1932] 1990a, p. 97, grifo nosso).

As observações de Ferenczi nos auxiliam na compreensão de como a Einfühlung enquanto empatia é um instrumento poderoso para a criação do vínculo transferencial no processo analítico. No entanto, no caso ora analisado por nosso autor e do qual é protagonista -bem como em outros o qual o processo se repetiria em sua atuação clínica -tal vínculo estaria tão embebido em afetos que acabaria por gerar uma conexão permanente baseada em uma promessa de felicidade ou a ruptura completa do vínculo feita pelo analisando para livrar-se do conflito e da dor gerada pela possibilidade do término. Ferenczi ([1932Ferenczi ([ ] 1990a, p. 97), p. 97), inclusive, observa um padrão em seus pacientes: a necessidade constante de analisá-lo, que teria como meta a evocação de um antigo trauma que pudesse explicar a atitude clínica que o colocava quase sempre à mercê de agressões. Nessa altura de suas notas, uma questão pertinente é levantada: até onde haveria um caráter idiossincrático em tal processo? Nosso autor é taxativo ao afirmar que "Essa sensibilidade é uma propriedade puramente pessoal [...]" (Ferenczi, [1932(Ferenczi, [ ] 1990a, p. 97), p. 97). Alega que não conhece outros psicanalistas com um sentimento de culpa tão aflorado a ponto de causar interferência na clínica, salvo os próprios alunos que lhe teriam herdado tal tendência. Com a mesma franqueza reconheceu que a característica que poderia lhe deixar vulnerável no setting, manejada com destreza, seria de grande utilidade:

Resta lançar no meu ativo o fato de que acompanho os meus pacientes o mais longe possível e, com ajuda dos meus próprios complexos, posso chorar com eles, por assim dizer. Se adquiro, ademais, a capacidade de represar, no momento certo a emoção e a exigência de descontração, então posso prever o êxito com segurança (Ferenczi, [1932] 1990a, p. 97, grifo nosso).

Ao mesmo tempo que a Einfühlung, enquanto tato e empatia, exigiria da parte do analista uma postura de autêntico interesse em sua aplicação na situação clínica 15 , levanta-se a questão sobre seu caráter ontológico. Ferenczi reconheceu, por exemplo, que -quando conseguia realizar um manejo eficiente de seus próprios complexos e emoções -vinculava-se mais profundamente a seus analisandos. Resta saber se analistas cujas psiquês tenham se estruturado de modo diverso ao de Ferenczi conseguiriam o mesmo sucesso.

EPÍLOGO

As reflexões do Diário Clínico feitas no dia 17 de março de 1932 foram registradas pouco mais de um ano antes da morte de Sándor Ferenczi, em 22 de maio de 1933. A esta altura as relações com Freud e seu entorno já estavam em processo de franca deterioração, o que pode ser observado na parte final dessas anotações -quando Ferenczi explicita a necessidade de maior compreensão do emaranhado entre a Einfühlung e seus próprios complexos e emoções -colocando a atuação de seu analista à época como obstáculo fundamental:

A minha própria análise não pôde avançar o bastante em profundidade porque meu analista (uma natureza narcisista, segundo sua própria confissão), com sua determinação firme de se manter em boa saúde e sua antipatia pelas fraquezas e pelas anomalias, não pôde acompanhar-me nessa profundidade e começou cedo demais com o "educativo". O forte de Freud é a firmeza da educação, como o meu é a profundidade na técnica de relaxamento 16 (Ferenczi, [1932(Ferenczi, [ ] 1990a, p. 97-98, grifos nossos), p. 97-98, grifos nossos).

Essa passagem -cuja queixa embaraça crítica teórico-clínica e transferência negativa, com um leve perfume de ironia -além de mais um exemplo da complexidade relacional entre Ferenczi e Freud, parece ser também um indício de como a Einfühlung se tornou fruto dessa dinâmica. Difícil evitar a sensação de que todo cuidado e compromisso ético de Ferenczi para com seus analisandos não possam ser vistos como a expressão do modo como ele desejava ser tratado por Freud, seja no ambiente clínico ou fora dele.

As fissuras teórico-clínicas e pessoais entre ambos caminharam para seu auge no contexto do décimo segundo Congresso da Associação Psicanalítica Internacional em Wiesbaden, entre 4 e 7 de setembro de 1932. Pouco antes do evento, o psicanalista húngaro foi convidado por Freud para presidir a instituição. A sucessão de Max Eitingon deveria ser feita por uma autoridade analítica capaz de preservar o legado freudiano diante de rivalidades teóricas e políticas. Ferenczi declina do convite, mais interessado que estava no estudo de seus casos (Dean-Gomes, 2019c, p. 449). Faz, no entanto, uma aproximação diplomática ao submeter de antemão para ciência de seu mentor o texto da conferência que apresentaria no evento: As paixões dos adultos e sua influência sobre o desenvolvimento do caráter e da sexualidade da criança 17 . Em vão.

[...] o mestre escutou com uma impaciência irritadiça, fez algumas anotações secas e, quando Ferenczi lhe estendeu a mão para despedir-se, Freud virou-se e saiu precipitadamente do recinto. Quem havia sido um íntimo da casa e havia sido chamado por Freud de "meu filho querido", teve nessa ocasião de ser anunciado e lhe foi concedida somente uma breve e formal audiência (Rachman 18 , 2004 apud Dean-Gomes, 2019a, p. 120).

As teses e inovações de Ferenczi logo tornaram-se alvo de virulentos ataques da parte do cânone psicanalítico e podem ser sintetizados na visão de Ernest Jones, que destacava episódios de psicose, delírios de hostilidade para com Freud, bem como "violentos ataques paranoicos e mesmo homicidas" (Jones, 1979, p. 728-729). Na homenagem fúnebre a Ferenczi -acometido de uma anemia perniciosa -Freud, ao mesmo tempo em que lhe prestou vibrante deferência, não deixou de salientar o que, a seus olhos, seria um defeito: o desejo de curar.

[...] Tendo retornado de um período de trabalho na América, parecia recolher-se cada vez mais ao trabalho solitário, ele, que antes participara ativamente de tudo que sucedia nos meios analíticos. A necessidade de curar e ajudar tornou-se nele predominante. Provavelmente ele se impôs metas inalcançáveis com os meios terapêuticos de hoje (Freud, [1933(Freud, [ ] 2010, p. 428, grifos nossos), p. 428, grifos nossos).

Ao buscarmos em nossa reflexão analisar como se organizou e evoluiu o conceito de Einfühlung, sempre tivemos em mente sua capacidade singular de perpassar as reflexões teórico-clínicas e as relações pessoais de Sándor Ferenczi, em especial com, obviamente, Sigmund Freud, sua incansável referência. Como procuramos demonstrar, o tato e a empatia -as duas faces da Einfühlung -foram estruturantes em sua visão sobre como a clínica psicanalítica não deveria perder de vista a responsabilidade do analista diante da fragilidade de quem o procura, bem como a existência de um compromisso ético incontornável a organizar o setting. Fundamental ressaltar que a potência das ideias, insights e do experimentalismo ferenczianos serão inspiração para as reflexões psicanalíticas de Michael Balint, Donald Winnicott, Melanie Klein, entre muitos outros e outras, abrindo caminho às reflexões sobre o pensamento e a clínica das relações de objeto, notadamente a partir da chamada virada de 1928 (Kupermann, 2019b).

17

.

(Dean-Gomes, 2019b, p. 354-355)

e visitas domésticas. Ao fim e ao cabo, registra em suas anotações a sensação de que R.N. lhe estaria direcionando sentimentos de raiva e, segundo interpretação da própria Severn, o analista não teria empatia ou compaixão por ela

Já destacada no capítulo dois.

Ao perceber estar curada de uma longa e grave afecção, a estadunidense Mary Baker-Eddy (1821-1910) desenvolveu a tese de que somente pela via psíquica seria possível a cura das doenças, descartando qualquer referência ao corpo. Fundou a seita religiosa conhecida como "Ciência Cristã" que, ao espalhar-se pelo mundo, inspirou grupos contrários a qualquer intervenção médica, mesmo em situações de emergência.

Questão trabalhada no capítulo cinco.