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A tradição anticomunista no Brasil, ontem e hoje

O anticomunismo no Brasil: ontem e hoje (artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, na edição de novembro de 2015) Rodrigo Patto Sá Motta Universidade Federal de Minas Gerais Há mais de um século o anticomunismo tem sido força política relevante, capaz de inspirar militância fervorosa em defesa da ordem tradicional contra a ameaça revolucionária. Pelo que vimos recentemente no Brasil, o fenômeno permanece bem vivo. É difícil considerá-lo uma doutrina, ou uma ideologia, pois ele mobiliza ideias e valores inspirados em matrizes distintas: catolicismo, nacionalismo e liberalismo. Apesar da heterogeneidade, as representações anticomunistas no Brasil originaram uma tradição e movimentos políticos convergentes que, em certos contextos, alcançaram grande repercussão. Argumentos anticomunistas já circulavam no final do século XIX, porém, tornaram-se mais fortes após a Revolução de 1917, que originou uma associação indelével entre comunismo e bolchevismo, tornados quase sinônimos desde então. Mas foi a partir dos anos 1930 que o anticomunismo assumiu presença marcante no cenário público brasileiro, especialmente após a Insurreição de 1935. O episódio de novembro de 1935 foi mitificado e originou uma legenda negra em torno da chamada Intentona Comunista, reproduzida ao longo das décadas seguintes. Ele foi representado como exemplo de manifestação das características maléficas atribuídas aos revolucionários que, segundo as versões anticomunistas, teriam cometido vários crimes ignóbeis durante os quatro dias da revolta (estupros, assassinatos a sangue frio, roubo), considerados uma decorrência necessária dos ensinamentos da “ideologia malsã”. Os impactos políticos desse processo foram importantes. O golpe de novembro de 1937 começou a ser desenhado sob a fumaça dos combates de 1935, que ofereceram justificativa para as medidas autoritárias do governo Vargas. Significativamente, o preâmbulo do texto constitucional do Estado Novo rezava que o novo regime atendia ao “estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente”. Assim, quando a Guerra Fria começou, no fim dos anos 1940, já existia uma tradição anticomunista enraizada no Brasil, tanto no imaginário como nas leis e nas estruturas repressivas. É certo que a Guerra Fria e o empenho contrarrevolucionário dos Estados Unidos trouxeram novo ânimo à direita brasileira. No entanto, não ocorreu reprodução simples dos modelos estrangeiros e sim uma recepção seletiva. Diferente dos EUA, os argumentos anticomunistas de inspiração liberal tiveram acolhida menos entusiástica, e os valores religiosos católicos mantiveram posição dominante. Além disso, a apropriação de valores liberal-democráticos ocorreu de maneira superficial, com o sentido de “democracia” resumindo-se a mera designação contrária a “comunismo”, já que os “democratas” não hesitaram em tomar medidas autoritárias, como em 1964. Ondas anticomunistas No Brasil houve três períodos com mobilizações anticomunistas mais intensas, três grandes “ondas”: 1935-37, 1946-48 e 1961-64. Manifestações anticomunistas ocorreram em toda a fase republicana, porém, a metáfora das “ondas” é útil para enfatizar que certos momentos foram mais críticos. Nos três contextos o temor anticomunista incrementou a repressão, que atingiu alvos muito além dos círculos comunistas. No caso das fases entre 1935-37 e 1961-64, ele foi elemento chave nas mobilizações que levaram aos dois golpes autoritários mais importantes do século XX, e que geraram as mais longevas ditaduras brasileiras. O primeiro contexto já foi mencionado e culminou no “Estado Novo” de Getúlio Vargas. A segunda “onda” ocorreu durante a redemocratização posterior à Segunda Grande Guerra, conjuntura inicialmente favorável aos grupos de esquerda e ao Partido Comunista do Brasil (PCB), que colheu votações expressivas e conquistou influência preponderante no movimento sindical e nos meios intelectuais. Amedrontados, os grupos de direita engendraram forte campanha anticomunista: o PCB foi proscrito pela justiça e retornou à clandestinidade, e os mandatos de seus parlamentares foram cancelados (em 1947 e 1948, respectivamente). Além disso, o governo brasileiro rompeu relações diplomáticas com a União Soviética. A terceira onda anticomunista deu-se no início dos anos 1960, no momento de auge da influência da Revolução Cubana e das lutas terceiro-mundistas, quando a cena pública foi ocupada por demandas reformistas, como a reforma agrária e a reforma política (direito de voto para os analfabetos). O aumento da influência da esquerda beneficiou o Partido Comunista, mas originou também novas organizações socialistas, tanto marxistas como cristãs. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros e a ascensão do vice-presidente João Goulart ao governo, em setembro de 1961, a esquerda brasileira teve sua primeira oportunidade de influenciar efetivamente os rumos do país, a partir de uma aliança com os detentores do poder federal. Embora fosse um rico estancieiro gaúcho, Goulart era político trabalhista sensível aos argumentos de esquerda, principalmente às demandas dos movimentos sociais por reformas sociais. Durante seu governo houve aumento de greves, ocupações de terras e mobilizações estudantis, o que levou muitos ativistas de esquerda a imaginarse às portas da revolução social. Concomitantemente, a direita provocou nova onda de mobilizações contra o comunismo, que foi potencializada pela Guerra Fria e o interesse dos EUA em fechar o caminho à esquerda revolucionária. Em parte, o recurso à tradição anticomunista era estratégia oportunista para facilitar o proselitismo da campanha contra Goulart, ou seja, era resultado da “indústria do anticomunismo”, uma expressão criada para criticar os manipuladores do perigo vermelho. Entretanto, o oportunismo não explica tudo, pois os comunistas eram percebidos de fato como os líderes mais influentes à esquerda. Além disso, a sensação de que o campo socialista estava em ascensão no mundo, especialmente na América Latina, contribuía para tornar o apelo anticomunista convincente. Outras questões influenciaram o golpe de 1964 como a crise econômica, que se manifestou na inflação descontrolada e na redução das taxas de crescimento, e também as denúncias de corrupção contra o governo. Entretanto, a crença na “ameaça comunista” foi o tema mais importante na mobilização golpista, com destaque para as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”. Os argumentos anticomunistas foram especialmente significativos em 1964 por unirem grupos que tinham divergências em outras questões. Ademais, tinham a vantagem de expressar a crise em linguagem compreensível para amplos setores sociais, há muito acostumados a ouvir discursos sobre o “perigo vermelho”. Além de superar as divergências dos golpistas, o anticomunismo prestou outro serviço ao movimento de 1964: contribuiu para a legitimação do novo regime, já que os seus líderes usaram o perigo vermelho para convencer a opinião pública da justeza das ações autoritárias. Entre os militares, o anticomunismo foi igualmente útil para superar divisões internas, e também para configurar um sentido de missão: ele justificava a intervenção política em 1964 e a ditadura, e garantia um papel aos oficiais como defensores da ordem. Servia, também, para justificar o engajamento em atividades de coleta de informações e de repressão política, tarefas que ocuparam muito os militares naqueles anos. O “revival” anticomunista: nova onda ou apenas marola? Com a saída dos militares do poder e a redemocratização, o perigo vermelho tornou-se secundário no debate político e apareceu com menor frequência na pauta das manifestações públicas. Por isso, a força da mobilização anticomunista contra a candidatura de Dilma Rousseff em 2014 foi surpreendente. Em certos momentos da campanha eleitoral, de maneira bizarra, parecia que o Brasil retornara a 1964, tal a intensidade com que certos atores brandiram argumentos anticomunistas. Nas ruas de algumas cidades, por exemplo, militantes antipetistas gritavam “vai para Cuba” quando encontravam seus adversários. O fenômeno foi notadamente forte nas chamadas redes sociais, com o surgimento de um sem número de comunidades virtuais verberando ataques anticomunistas. Antes de tentar explicar o fenômeno, descrito apenas de forma sumária, vale a pena uma comparação com a tradição anticomunista anterior. A sensibilidade religiosa, ainda que presente nas manifestações de 2014, perdeu o seu tradicional lugar de proeminência. Os argumentos liberais contra o comunismo assumiram posição de destaque e uma influência sensivelmente maior do que em períodos anteriores, uma revelação de mudanças importantes nos valores da sociedade brasileira. A defesa das virtudes do mercado, acompanhada de críticas ao Estado e à sua suposta ineficiência, nos dias atuais sensibiliza número maior de pessoas do que em décadas passadas. O medo às forças estrangeiras continua presente, porém, com algumas peculiaridades. A ameaça externa não é mais a URSS, evidentemente, tampouco a China. Mas Cuba permanece presente no imaginário anticomunista, apesar da sua fragilidade e recentes mudanças de rumo. A contratação de médicos cubanos para atuar em áreas carentes do Brasil serviu aos mais imaginosos como prova da infiltração comunista. Na linha da ameaça externa mobiliza-se, também, o perigo “bolivariano”, que é associado, canhestramente, à tradicional ameaça vermelha. Como explicar esse quadro e que desdobramentos futuros podemos esperar? Primeiro, deve-se apontar a expansão da influência dos valores de direita, cujo impacto político e cultural é visível nos últimos anos no Brasil e em várias partes do mundo. Até em espaços tradicionais de esquerda (como as universidades) percebe-se a intensificação de discursos direitistas. Isso significa dizer que há um núcleo ideológico sustentando tais campanhas, baseado em militantes convictos e temerosos em relação à ala esquerdista do governo Rousseff, por mais débil que ela seja. No entanto, também é forte a marca da indústria do anticomunismo. Além de casos individuais, como os blogueiros e gurus da direita que ganham a vida explorando – e açulando – o medo alheio, o mais significativo é a manipulação visando a ganhos eleitorais. Ademais, a boa recepção aos discursos anticomunistas deve-se a sentimento difuso de desconforto com as mudanças dos últimos anos, que provocaram a ascensão social de pessoas pobres e não brancas. Por lentas que sejam, tais mudanças ferem a sensibilidade de segmentos privilegiados que, acostumados com a abissal desigualdade social brasileira, clamam contra o “comunismo”. A mais recente mobilização anticomunista não tem a mesma força de ocasiões anteriores. Primeiro, a sensação de “perigo” não é muito convincente: os comunistas verdadeiros são pouco influentes; já não existem forças comunistas estrangeiras poderosas; não há mais potências empenhadas em virulentas cruzadas anticomunistas; e os militares da ativa não parecem achar que a pátria corre perigo por causa dos vermelhos. Sobretudo, o governo Dilma não demonstra interesse em políticas radicais, apenas em diminuir algumas desigualdades sociais. Significativamente, logo após a posse o governo tentou acalmar os críticos (e o mercado financeiro) nomeando ministros liberais e até alguns conservadores. Em suma, parece improvável uma reedição de 1964 pela via do anticomunismo. A campanha recente carece da mesma consistência de outras épocas, gerando sensação de superficialidade e fugacidade. O governo Dilma corre risco grave por outra questão, também presente na crise dos anos 1960: as acusações de corrupção. Nesse ponto, e na fragilidade política do governo, reside o cerne da crise atual, que é um grande teste de força para a incipiente democracia brasileira.