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Patentes e acesso a medicamentos

2008, Revista de Direito Sanitário

https://doi.org/10.11606/ISSN.2316-9044.V8I3P63-73
TEMA EM DEBATE/ARGUMENT APRESENTAÇÃO/PRESENTATION PATENTES E ACESSO A MEDICAMENTOS PATENTS AND DRUG ACCESS Marlon Alberto Weicher^ O tema proposto pela Revista de Direito Sanitário para debate é de extrema relevancia, pois o regime jurídico de proteção à propriedade indus- trial no campo dos medicamentos e demais insumos de saúde produz importantes reflexos na promoção do direito à saúde. A assistência farmacêu- Q tica é uma obrigação estatal (Lei n. 8.080/90, art. 6 , inciso I, alínea d) e qualquer variação no custo ou na disponibilidade de medicamentos interfe- re na concretização do direito fundamental à saúde da população. Ademais, a flexibilização das patentes é tema atual, sendo recente a decisão de licen- ciamento obrigatório, pelo governo brasileiro, da patente de medicamento anti-retroviral utilizado no tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Ad- quirida (SIDA/AIDS). A política de patentes tem por fundamento a garantia de privilégios aos autores de inovações tecnológicas, decorrentes de invenções passíveis de aplicação industrial. Concede-se ao inovador o direito à exclusividade na exploração econômica da sua invenção, por prazo determinado, de modo a remunerar o seu investimento com as pesquisas, bem como, compensá-lo pelos riscos inerentes à busca de uma inovação. A concessão de patente é uma exceção ao princípio da livre concorrência (Constituição brasileira, art. 170, inciso IV), o qual é um dos pilares do sistema econômico capitalista. No campo do regime de patentes farmacêuticas, é extremamente difícil encontrar um equilíbrio entre (a) a garantia de acesso a medicamentos; e (b) a preservação da capacidade de investimento e desenvolvimento da indús- (*) Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Especialista em Direito Sanitário pela Universidade de Brasília (UnB), Procurador Regional da Repú- blica e Membro do Conselho de Bioética do Instituto Nacional do Câncer — INCA. E-mail: <mweichert@prr3.mpf.gov.br>. tria. Como refere a própria Organização Mundial do Comércio — OMC, na Nota Técnica emitida em 21 de setembro de 2006: "talvez não haja nenhuma outra esfera em que estas questões [maximi- zação de acesso a curto prazo e garantia de promoção da criatividade e da inovação a longo prazo] suscitem reações tão fortes como na esfera das patentes de produtos farmacêuticos, onde pode haver uma grande tensão como conseqüência da necessidade de oferecer incentivos para a investigação e o desenvolvimento de novos medicamentos e, por outro V) lado, proporcionar o maior acesso possível a medicamentos existentes.' Parece-nos que esse equilíbrio é ainda mais difícil pelos aspectos econômicos subjacentes, que revelam verdadeiro confronto entre o interes- se público e o privado. Para a indústria farmacêutica, o objetivo é a maximi- zação de seus resultados, de modo a garantir a maior remuneração dos acionistas. Sua lógica é econômica, aproveitando-se do privilégio da exclusi- vidade e da ausência de concorrência para fixar os preços dos produtos no mais elevado patamar possível, ou seja, no limite do que o mercado possa suportar. Não se olvida, porém, que a expectativa da exclusividade de venda, com grandes lucros, é um significativo elemento propulsor dos investimen- tos e que irá retroalimentar o desenvolvimento de novos produtos. Já o interesse social consiste em pagar o mínimo, para otimizar recur- sos (normalmente escassos, especialmente nos países pobres e em desen- volvimento) e ampliar a oferta, sem descuidar da qualidade e sem compro- meter a continuidade do desenvolvimento da Medicina. Para contextualizar o tema, é importante anotar que a indústria farma- cêutica foi em 2004 o terceiro grupamento mais lucrativo da economia norte- americana, atrás apenas da indústria petrolífera e das instituições financeiras, superando, inclusive, as empresas de produção bélica, segundo levanta- mento da revista Fortune, analisado pela Kaiser Family Foundation^. Entre (3) 1995 e 2002, foi o ramo industrial mais lucrativo dos Estados Unidos . Muito embora as empresas justifiquem a fixação de altos preços dos medicamen- tos no elevado risco da atividade que desenvolvem, não se tem notícia de falências, quebras ou concordatas de empresas farmacêuticas. Ao contrário, o histórico é de aquisições e fusões, com consideráveis sobrepreços nos valores das ações. Um manto de segredo cobre, outrossim, o custo real das pesquisas em medicamentos. Os representantes da indústria e o governo norte-ameri- (1) O M C ADPIC: Nota técnica sobre Ias patentes de medicamentos. Disponível em: <http:// www.wto.org/spanish/tratop_s/trips_s/pharma_ato186_s.htm>. Acesso em: 21 ago. 2007. (2) T H E H E N R Y J. KAISER FAMILY F O U N D A T I O N . Trends and Indicators in the Changing Health Care Marketplace. Disponível em: <http://www.kff.org/insurance/7031/index.cfm>. Acesso em: 23 ago. 2007. (3) Id. Ibid. cano divulgam, ordinariamente, que um medicamento novo, lançado no (4) mercado, envolve custos entre US$ 800 milhões e US$ 2 bilhões . Não obstante, institutos independentes afirmam que esse valor deve ser bem (5) inferior, da ordem de US$ 240 a US$ 400 milhões . De qualquer forma, análises das demonstrações financeiras das empresas farmacêuticas indi- caram que, em 2001, as despesas de pesquisa e desenvolvimento ficaram aquém das relativas à propaganda e ao marketing. Da mesma forma, en- quanto o lucro líquido da indústria eqüivaleu a 18,5% das receitas, as despe- (6) sas de pesquisa e desenvolvimento foram de 12,5% . Note-se, aliás, que poucas empresas revelam seu efetivo dispendio com publicidade, divulgan- do-os de forma incorporada às despesas administrativas. Em 2001, a em- presa suíça Novartis foi uma das poucas a isolar esse gasto, o qual corres- (7) pondeu a 36% do seu faturamento . Nesse mesmo ano, a empresa Merck gastou mais com a propaganda do medicamento Vioxx (US$ 160 milhões de dólares) do que a empresa PepsiCo com o seu principal produto (refrigeran- (8) te Pepsi), ou a fabricante da cerveja Budweiser . Frise-se, ainda, que a concentração da pesquisa de medicamentos na iniciativa privada, apenas sob a lógica capitalista de mercado, trouxe como conseqüência a seletividade nos investimentos. A indústria desenvolve me- dicamentos destinados a moléstias com elevado grau de incidência, em uma população com condições financeiras de consumi-lo, por aquisição direta ou por intermédio dos sistemas de saúde. Evidentemente, ficam rele- gadas e negligenciadas as doenças de "minorias" (de baixa projeção demo- gráfica) ou de incidência predominante em países pobres, as quais são condenadas à orfandade no que diz respeito à atenção farmacêutica. Também não se deve desconsiderar que a indústria de medicamentos se apropriou de estratégias de marketing típicas da venda de bens de consumo tecnológicos, criando demandas artificiais, pugnando o tratamento medica- mentoso para correção de desigualdades naturais até então consideradas inerentes à raça humana (foi o caso da tentativa de classificar o "distúrbio difórico pré-menstrual como uma moléstia psiquiátrica, o que foi recusado (9) pelas autoridades sanitárias européias )"- Há um processo de "medicaliza- (4) MASIA, Neal. The cost of developing a new drug. Departamento de Estado dos Estados Unidos da América. Disponível em: <http://usinfo.state.gov/products/pubs/intelprp/cost.htm>. Acesso em: 24 ago. 2007. (5) PUBLIC CITIZEN'S C O N G R E S S W A T C H . Pharmaceuticals Rank as Most Profitable Industry, Again. Disponível em: <http://www.citizen.org/documents/fortune500_2002erport.PDF>. Acesso em: 29 jun. 2007. (6) Id. Ibid. (7) S T - O N G E , Jean-Claude. O outro lado da pílula ou os bastidores da indústria farmacêutica. e 2 Conferência no 1 1 Congresso Mundial de Saúde Pública e 8 Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Escola Nacional de S a ú d e Pública Sérgio Arouca. Disponível em: <http:// www.ensp.fiocruz.br/detalheseventos.cfm?Eventold=723>. Acesso em: 29 jun. 2007. (8) PUBLIC CITIZEN'S C O N G R E S S W A T C H , op. cit. (9) S T - O N G E , Jean-Claude, op. cit. ção" dos dissabores inerentes à vida, sendo a área psiquiátrica uma das mais propícias para esse fenômeno (v. g., ansiedade, timidez e hiperativida- de infantil). Nesse mesmo sentido, sucedem-se medicamentos para substi- tuir outros mais antigos (em domínio público), que estariam "obsoletos". O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Rela- (10) cionados ao Comércio (ADPIC ou TRIPS, pela sua sigla em inglês) não ignorou essa realidade de antagonismo entre acesso a medicamentos e proteção ao desenvolvimento, muito embora tenha tido como um dos seus principais propósitos, por pressão dos países mais ricos, a inserção dos medicamentos dentre o rol dos produtos que devem ter proteção intelectual (no Brasil, até o advento da Lei n. 9.276/96 — Lei de Propriedade Industrial — os produtos farmacêuticos não eram patenteáveis; o mesmo ocorria em ou- tros países em desenvolvimento, tais como Argentina, Egito, índia, Kuwait, Marrocos, Paquistão, Paraguai, dentre outros). O art. 7 do tratado textual- mente consagra que: "... a proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inova- ção tecnológica e para a transferência e a difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológi- co e de uma forma conducente ao bem-estar social e econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações." Mais especificamente sobre a proteção dos interesses sanitários, o art. 8, item 1, do TRIPS, admite que os membros subscritores "ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger a saúde e nutrição públicas (...), desde que estas medidas sejam compatíveis com o disposto [no] Acordo". Com efeito, o Acordo admitiu algumas ressalvas à regra da patentea- bilidade de produtos e processos farmacêuticos, posteriormente comple- mentadas na Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio — OMC (2001). No item 4 da "Declaração Relativa ao Acordo sobre os TRIPS e a Saúde Pública", adotada em Doha, foi decidido que o documento "não im- pede nem deverá impedir que os membros adotem medidas para proteger a saúde pública". Nesse sentido, enfatizou-se que os membros podem usar ao máximo as disposições do Acordo que prevêem flexibilidades, tendo o direito de conceder licenças obrigatórias conforme sua legislação interna, bem como o de determinar o que constitui uma emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência, ficando definido que as crises de saúde pública, incluídas as relacionadas com a AIDS, a tuberculose, o palu- dismo e outras epidemias, podem caracterizar essas situações. (10) O Brasil incorporou, mediante promulgação, o ADPIC com o Decreto n. 1355, de 30.12.94. Ainda na Rodada de Doha, foi determinado que o Conselho do TRIPS encontrasse uma solução para superar a realidade fática de que alguns países teriam dificuldades a fim de exercer as licenças obrigatórias, diante da sua incapacidade de fabricação no setor farmacêutico. Em 30 de agosto de 2003, o Conselho Geral da OMC emitiu sua deci- são, instituindo um sistema de importações por parte dos países que de- monstrem não ter capacidade de fabricação suficiente para dar concretude a uma licença obrigatória. Nessa situação, poderá ser contratada a exportação dos produtos por outro membro do Acordo, eximindo-se o país exportador de represálias. Ou seja, diante da necessidade do país importador, um outro membro poderá expedir licença obrigatória para realizar vendas àquele, tudo mediante diversos controles e intervenção da OMC. Vale lembrar que, na redação original, o TRIPS não permitia que um país destinasse ao mer- cado externo os produtos que fossem obtidos a partir de licenciamento compulsório (art. 3 1 , alínea /). Essa decisão está em fase de incorporação permanente ao Acordo, por força de deliberação do Conselho em dezem- bro de 2005. A Lei brasileira n. 9.279/96, art. 71, prevê a concessão de licença com- pulsória, de ofício, quando o Poder Executivo declarar a existência de situa- ção de emergência nacional ou de interesse público. Autorização legislativa que, inclusive, fundamentou o licenciamento compulsório em 2007 do me- dicamento Efavirenz, da empresa Merck, sendo que ainda em 2005 o gover- no federal já havia ameaçado igual providência em relação ao Kaletra, do laboratório Abott, ambos de utilização no tratamento à AIDS. Trata-se, pois, de hipótese que encontra autorização no TRIPS, confirmada pela Rodada de Doha. Não obstante, o Brasil não atualizou sua legislação interna para se aproveitar do teor da decisão de 30 de agosto de 2003 do Conselho Geral da OMC, que admite licenciamento compulsório de produtos para fins de expor- tação a países que não possuem parque industrial apto a produzir medica- mentos necessários ao combate a epidemias, situações de emergência ou extrema urgência. Essa autorização permitiria ao país desenvolver sua in- dústria nacional, com ganho tecnológico. Na atualidade, o art. 42 da Lei de Propriedade Industrial vedaria essa hipótese. A OMC também já decidiu que uma invenção patenteada pode ser usada por terceiros para fins de investigação e compreensão da invenção, para o progresso científico e tecnológico, sem que esse fato caracterize vio- (11) lação dos direitos do titular . A Lei n. 9.279/96 possui dispositivo em igual sentido (art. 43, inciso VII), introduzido em 2001 pela Lei n. 10.196, que descaracteriza a violação à patente quando terceiro não autorizado utiliza o (11) O M C op. cit. invento exclusivamente para a produção de informações, dados e testes, visando à exploração e comercialização do produto após a expiração do prazo de proteção patentaría. Há, ainda, o direito dos países adotarem medidas contra a prática de concorrência desleal, após um processo administrativo ou judicial em que se caracterize o abuso, conforme art. 40 do Acordo. Este caso também está previsto na Lei brasileira (art. 68, caput), que trata do exercício abusivo dos direitos decorrentes da patente, ou de uso dela para praticar abuso do poder econômico. Relevante também a carência concedida aos países em desenvolvi- mento e menos desenvolvidos para diferirem a implementação das regras de proteção patentaría do TRIPS. No que concerne às patentes em produtos e processos farmacêuticos, os países em desenvolvimento (caso do Brasil) 9 tinham até 1 de janeiro de 2005 para iniciar sua concessão (prazo de 10 anos, conforme art. 65 do Acordo). Os países menos desenvolvidos, por sua vez, tiveram inicialmente o prazo de 11 anos, prorrogado na Rodada de 9 Doha até 1 de janeiro de 2016. O Estado brasileiro, porém, não utilizou essa faculdade, tendo já em 1996 promulgado a Lei n. 9.279 (Lei da Propriedade Industrial), que incorpo- rou ao ordenamento jurídico pátrio os novos institutos do TRIPS, inclusive a proteção patentaría a produtos e processos farmacêuticos. Outros países em desenvolvimento, como a índia, usaram ao máximo o período de carên- cia, aproveitando a oportunidade para desenvolver uma forte indústria far- macêutica. Note-se que a celeridade brasileira superou, até mesmo, o prazo concedido aos países desenvolvidos para adaptarem sua legislação. A Lei n. 9.279/96 (art. 230), outrossim, admitiu o registro pipeline de patentes estrangeiras, que consiste na possibilidade de se conceder patente à matéria técnica não protegida no Brasil no regime da lei anterior (Lei n. 5.772/71), mesmo que do conhecimento público e ainda que de domínio público no Brasil. A função da patente pipeline seria a de proteger inovações já resguardadas em outros países, sem que o mesmo processo de aferição de novidade e de inventividade precisasse ser repetido no Brasil. Note-se que esse instrumento não foi previsto no Acordo e, portanto, foi mera discri- cionariedade interna. Por outro lado, em 2001, por meio da Medida Provisória n. 2.105-15, posteriormente convertida na Lei n. 10.196/01, foi acrescentado à Lei de Propriedade Industrial o art. 229-C, que vinculou a concessão de patentes para produtos e processo farmacêuticos à "prévia anuência da Agência Na- cional de Vigilância Sanitária — ANVISA". Esse comando normativo tornou a concessão da patente para produtos e processos farmacêuticos um ato administrativo complexo, que depende da manifestação de dois órgãos distintos: o Instituto Nacional da Proprie- dade Industrial (INPI) e a ANVISA. Definir qual o objeto da decisão da ANVISA tem sido matéria polêmica, pois para parte da doutrina cabe à autarquia sanitária rever todos os requisitos de concessão da patente, enquanto para outra corrente, sua apreciação não pode ser repetição da atribuição do Ins- tituto. Na prática, percebe-se que ANVISA e INPI firmam posições distintas sobre alguns temas relevantes, como segundo uso terapêutico e patentes em produtos novos decorrentes de moléculas já antes conhecidas (produtos me-too). Parece-nos, em especial, que há divergência quanto ao conceito de "estado da técnica", premissa para a decisão quanto à presença de inventividade e inovação no objeto do pedido de registro. Embora o aprofun- damento desse complexo tema seja incompatível com o espaço desta apre- sentação, frisamos que, no nosso entendimento, a ANVISA teria atribuição para se pronunciar sobre todos os elementos previstos na Lei de Propriedade Industrial, diante da inexistência de ressalva legislativa. Sua anuência prévia não é vinculada a aspectos distintos daqueles sobre os quais se posiciona o INPI, até mesmo porque tenderia a incorrer em ilegalidade, se fundamen- tasse sua decisão em aspectos não tratados na Lei. O que diferencia a apreciação da ANVISA e a do INPI são os enfoques relativos de cada órgão, sendo o daquela autarquia voltada à promoção do direito à saúde e o deste à promoção do direito à proteção da propriedade industrial. O Brasil parece ter internalizado, no seu processo de decisão administrativa sobre patentes em processos e produtos farmacêuticos, o difícil equilíbrio que menciona o Conselho Geral da OMC e referido no início desta apresentação. A ANVISA e o INPI devem observância ao princípio da legalidade estrita, mas os conhe- cimentos específicos de cada uma dessas instituições preenche de forma distinta o conceito juridicamente indeterminado de "estado da técnica". Note-se que o adensamento normativo desse conceito é um dos gran- des objetivos dos países ricos, principalmente Estados Unidos, Japão e Co- munidade Européia que propuseram um Tratado Substantivo sobre Direito de Patentes no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI), o qual representaria uma limitação da discrionariedade dos Estados nacionais na definição dos parâmetros de concessão de patentes. Aliás, essa medida tem sido paulatinamente inserida pelos Estados Unidos nos tratados bilaterais que vêm firmando com diversos países, bem como consta da proposta da ALCA. Tratados esses que, ademais, procuram ampliar o prazo de validade das patentes, mediante prorrogação pelo período em que o pedido de patente ficou pendente de decisão administrativa e, também, tornar expresso que segundo uso terapêutico em produtos e processos far- macêuticos deve dar origem a uma nova patente. Felizmente, o Brasil — até o momento — tem se mantido firme na oposição a essas propostas. Por fim, ousamos pensar que a temática de patentes em medicamentos, apesar dos avanços da OMC, deveria ser recontextualizada no campo da proteção internacional dos direitos humanos. Podemos dizer, tomando de empréstimo o nosso Direito Constitucional interno (art. 197), que a atividade econômica desenvolvida pela indústria farmacêutica é de relevância pública, pois refe- re-se à garantia da vida digna, e o saber relacionado à vida deveria ser público. Não somos, porém, utópicos. O atual espaço de conformação dos empreendimentos capitalistas não torna viável essa hipótese, notadamente pela indispensabilidade da indústria com finalidades lucrativas na continui- dade do desenvolvimento da medicina. Não obstante, parece-nos possível a instauração de novos paradigmas, que conciliem direitos humanos e inicia- tiva privada. A lógica não pode ser apenas a "do mercado". Primeiro, é preciso derrubar — ou confirmar — os mitos difundidos. E isso somente seria possível com transparência contábil, financeira e econô- mica das empresas. Informações indispensáveis à avaliação dos critérios de formação dos preços e da remuneração dos riscos devem ser acessíveis. O modelo de auditorias externas independentes, dentro de escopos específi- cos, poderia viabilizar esse mecanismo. Essa providência traria mais confia- bilidade para o diálogo sobre o papel dessas empresas na política de saúde internacional e um "jogo" mais franco nas negociações de preços. A iniciati- va privada relacionada à saúde se submete a regime jurídico mais severo, (12) diante da natureza jurídica do bem em relação ao qual atua . Segundo, os Estados não devem admitir pressões espúrias ou repre- sálias de outros Estados, para a promoção dos interesses meramente eco- nômicos de empresas. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos deve ser pensado como um caminho de responsabilização dos Estados que adotam essa prática, com sacrifício dos interesses dos seus povos. Devem ser opostos aos interesses meramente financeiros dos países ricos os princípios cogentes do direito internacional, de prevalência dos di- reitos humanos, a começar pela vida. Nesse contexto, são extremamente felizes os três artigos que seguem. Amélie Robine, estudiosa francesa, traz uma visão externa sobre as opções políticas e jurídicas adotadas pelo Brasil na implementação do TRIPS. A observação do caso brasileiro por uma especialista estrangeira indica que o Brasil foi original ao vincular a concessão de patentes em medicamentos a uma anuência prévia da autoridade sanitária (ANVISA), mas por outro lado tímido na implementação de algumas salvaguardas admitidas pelo TRIPS. O artigo — dividido em duas partes — primeiro analisa as disposições da legislação brasileira em favor do acesso a medicamentos e, em seguida, descreve os "nichos" que o País teria deixado de aproveitar no contexto da legislação da propriedade industrial. Merecem destaque as considerações da autora sobre as virtudes das negociações do governo brasileiro em matéria de preços de medicamentos destinados ao combate à AIDS, notadamente (12) Vide nosso artigo A saúde como serviço de relevância pública e a ação civil pública em sua defesa. In: ROCHA, João Carlos de Carvalho et al. (Org.). Ação Civil Pública — 20 anos da Lei n. 7.347/85. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. no que se refere ao uso do licenciamento compulsório como uma ameaça, bem como sua avaliação positiva sobre a sujeição da patente a um órgão governamental vinculado à promoção do direito à saúde (a anuência prévia da ANVISA). A autora refere como deficiências do Brasil na promoção do acesso a medicamentos a aplicação precoce do TRIPS e a aceitação de patentes pipeline. Também aprofundou o que considera uma excessiva restrição das (13) importações paralelas e a demora em inserir no ordenamento interno o conteúdo da decisão de 30 de agosto de 2003 do Conselho Geral da OMC sobre o Acordo. Para a autora, o Brasil vive no paradoxo de (a.1) bem explo- rar as flexibilidades tradicionais do regime internacional de patentes; e (a.2) de ter introduzido a anuência prévia da autoridade sanitária para patentes farmacêuticas; porém (b) dispensar as flexibilidades originais criadas no âmbito do TRIPS. Assim, o país ora adota medidas em benefício do acesso a medicamentos e ora prejudica essa promoção. No segundo artigo, Carlos Maria Gámbaro contextualiza os desafios da promoção da saúde e do acesso a medicamentos no fluxo histórico oci- dental. Demonstra como o direito à saúde foi sofrendo novas interpretações — e aplicações — no bojo do Estado liberal e do Estado social, bem como no contexto das correntes de direito natural e do positivismo. O autor demonstra que o fenômeno da globalização econômica gerou indisfarçável repercus- são negativa na promoção dos direitos sociais, tanto no campo das relações trabalhistas, como também no plano da "criação do bem-estar universal". Aponta, porém, com grande propriedade, que a globalização contribui para a ampliação da "percepção humana de mundo", em processo que, nos pa- rece, amplia a força da promoção dos direitos humanos em decorrência da ação de organismos e fóruns internacionais. Haveria, pois, um reverso da medalha da globalização econômica, que seria a disseminação mundial da cultura de promoção dos direitos da pessoa humana. O estudo avança em relevante análise sobre o papel do Direito no espaço de conformação do acesso a medicamentos na atual fase de retro- cesso do Estado social e desenvolvimento de políticas neoliberais. Aponta com brilho que "o Direito (principalmente os Ordenamentos Jurídicos Inter- nos), a despeito de reconhecer o direito ao acesso a medicamentos vê-se cada vez mais distante do centro decisorio desta questão, pois o problema incorpora uma série de variáveis para os quais aquele não está preparado para equacionar e operacionalizar, em prol do benefício social". Nesse sen- tido, ao Direito teria restado uma função corretiva de violações isoladas ao direito à saúde, agindo os tribunais tópica e emergencialmente para emitir permissões ou ordens de fornecimento de fármacos. (13) Destacamos que há doutrina nacional admitindo a importação paralela pelo Brasil em decorrên- cia de exaustão internacional. Cf. BASSO, Maristela et ai Direitos de propriedade intelectual & saúde pública: o acesso universal aos medicamentos anti-retrovirais no Brasil. São Paulo: IDCID, 2007. Sebastião Botto de Barros Toja! e Patrícia Rodrigues Pessoa aprofun- dam, no terceiro artigo, a discussão teórica sobre o conteúdo da anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária — ANVISA — e o papel reservado à autarquia — no processo de concessão de patentes a produtos e processos farmacêuticos (art. 229-C da Lei de Propriedade Industrial). Os autores sustentam que a participação da ANVISA objetiva garantir que "o sistema de proteção intelectual seja compatível com a proteção à saúde pública", mas sem vínculo com uma outra específica competência da autar- quia, consistente no controle de preços de medicamentos. Muito embora a concessão da patente implique, como regra geral, no aumento do custo de medicamentos, a anuência prévia da ANVISA não é um instrumento para controle de preços. A missão de controle de preços cabe à Câmara de Regu- lação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão cuja secretaria executiva é exercida pela ANVISA. Acrescem que, enquanto o ato de concessão da patente pelo INPI é de natureza vinculada, a decisão da ANVISA em conceder - ou não - a anuên- cia prévia seria discricionária. Assim, a autarquia sanitária poderia recusar sua concordância à concessão do privilégio de exploração exclusiva do pro- duto por razões de proteção da saúde pública. Não obstante, para os auto- res, "a ANVISA extrapolaria sua competência caso recusasse anuência com fundamento na falta de requisitos que devem ser apreciados com exclusivi- dade pelo INPI". A recusa só poderia ser juridicamente aceita quando funda- mentada na sua competência para exercer controle sanitário. Dessa forma, seria possível a "harmonização" das atribuições do INPI e da ANVISA. Nessa linha, a competência da ANVISA para negar anuência à concessão da patente seria exercida no estreito campo material previsto no art. 18, inciso I, da Lei n. 9.279/96, ou seja, se limitaria a apreciar se a patente é atentatória à u) saúde pública, mediante o exercício de "discricionariedade técnica"S Em suma, os três artigos ora apresentados tratam de aspectos distin- tos - mas que se entrelaçam - sobre a concessão de patentes em produtos e processos farmacêuticos e seus reflexos na oferta de medicamentos. Os trabalhos enveredam por questões ainda polêmicas e, por isso mesmo, des- pertam vivido interesse para os estudiosos do direito sanitário e da proprie- dade industrial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASSO, Maristela et al. Direitos de propriedade intelectual & saúde pública: o acesso universal aos medicamentos anti-retrovirais no Brasil. São Paulo: IDCID, 2007. (14) Ressaltamos a existência de opiniões divergentes, conforme já referido nesta apresentação. MASÍA, Neal. The cost of developing a new drug. Departamento de Estado dos Estados Unidos da América. Disponível em: <http://usinfo.state.gov/pro- ducts/pubs/intelprp/cost.htm>. Acesso em: 24 ago. 2007. OMC. ADPIC: Nota técnica sobre las patentes de medicamentos. Disponível em: <http://www.wto.org/spanish/tratop_s/trips_s/pharma_ato186_s.htm>. Acesso em: 21 ago. 2007. PUBLIC CITIZEN'S CONGRESS WATCH. Pharmaceuticals Rank as Most Profitable Industry, Again. Disponível em: <http://www.citizen.org/documents/ fortune500_2002erport.PDF>. Acesso em: 29 jun. 2007. ST-ONGE, Jean-Claude. O outro lado da pílula ou os bastidores da indústria 9 Q farmacêutica. Conferência no 1 1 Congresso Mundial de Saúde Pública e 8 Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/detalheseventos.cfm? Eventold=723>. Acesso em: 29 jun. 2007. THE HENRY J. KAISER FAMILY FOUNDATION. Trends and Indicators in the Changing Health Care Marketplace. Disponível em: <http://www.kff.org/insu- rance/7031/index.cfm>. Acesso em: 23 ago. 2007. WEICHERT, Marlon Alberto. A saúde como serviço de relevância pública e a ação civil pública em sua defesa. In: ROCHA, João Carlos de Carvalho et al. (Org.). Ação Civil Pública — 20 anos da Lei n. 7.347/85. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.