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O PÚBLICO EM “TEOLOGIA PÚBLICA”1
The public in “Public Theology”
Júlio Paulo Tavares Zabatiero2
Resumo: O artigo trata do debate relativo ao sentido da palavra público(a) e de seu uso na
teologia pública. Visa contribuir para o contínuo debate sobre o sentido e o referente do termo público no âmbito das sociedades contemporâneas e seu influxo na discussão teológica.
Na primeira seção, retoma a discussão mais recente sobre o termo por autores da chamada
teologia pública. Na segunda seção, mapeia algumas das razões pelas quais o termo público
tornou-se ambíguo em função de seu referente social ter se tornado, ele mesmo, difuso.
No final, apresenta a contribuição de quatro autores sobre o sentido do público: Dewey,
Foucault, Agamben e Derrida.
Palavras-chave: Público. Privado. Teologia Pública. Esfera Pública.
Abstract: The essay offers a reflection on the meaning of the term public and its use in
Public Theology writings. Its goal is to contribute to the continuous debate on the meaning and referent of the word public in the context of contemporary societies, together
with its contribution to the development of the so called Public Theology. In its first
section, it presents the contemporary discussion on the term by public theologians. In
the second, it presents some reasons for the ambiguity of the term public, caused by the
very ambiguity of the distinction between public and private in contemporary societies.
In the final section, it turns to the writings of Dewey, Foucault, Agamben and Derrida in
order to find their contributions to the ongoing debate of the Public Theology.
Keywords: Public. Private. Public Theology. Public Sphere.
Introdução
Quando um termo ou expressão se torna consagrado no uso coletivo, há uma
natural tendência a usá-lo de modo ambíguo. O adjetivo pública na expressão teo-
1
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O artigo foi recebido em 02 de agosto de 2012 e aprovado em 04 de março de 2013 com base nas avaliações dos pareceristas ad hoc.
Doutor em Teologia. Coordenador do Mestrado em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória,
Vitória/ES, Brasil. Contato: julio@faculdadeunida.com.br.
O público em “teologia pública”
logia pública já entrou nessa categoria. Tem sido usado de tantas formas diferentes,
referindo-se a tão distintos objetos, que se torna necessário, de novo, perguntar a respeito de que público estamos falando quando fazemos teologia pública. Neste breve
ensaio, meu propósito é contribuir para esse questionamento mediante uma análise do
sentido da palavra público com vistas à sua contribuição para o debate sobre a teologia
pública.
Como vários autores de teologia pública reconhecem, porém, a ideia e a prática
de uma teologia pública são mais antigas do que o recente uso do termo e estão representadas em diferentes momentos da história do pensamento cristão. As teologias
desenvolvidas na América Latina no último quarto do século passado – a Teologia da
Libertação3 e a Teologia da Missão Integral4 – são formas de teologia pública, embora
jamais tenham usado a expressão para sua autodefinição.
A expressão teologia pública, porém, como título de uma forma específica
de teologia, até onde se sabe, foi cunhada por Martin E. Marty5, em 1974, nos Estados Unidos da América, em uma discussão relativa à chamada religião civil norte-americana (expressão cunhada por Robert N. Bellah6, cujos textos foram discutidos
por Marty). Para Marty, há um tipo de religião civil que desempenha uma função
profética, crítica em relação à cultura, política e sociedade – e essa é a teologia pública. Não havia, ainda, uma clara distinção entre teologia e religião, ou entre teologia
e cultura. Foi no âmbito do catolicismo norte-americano que a expressão teologia
pública passou a se aproximar do sentido mais geral que possui hoje em dia, graças
especialmente ao trabalho de David Tracy.7 No ambiente protestante, foi o trabalho de
Max L. Stackhouse que deu ao termo teologia pública seu status elevado, graças ao
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“Por fim, teologia pública mantém a sensibilidade da teologia para problemas ligados ao bem comum
e para os quais são possíveis contribuições a partir da fé cristã. Nesse sentido, tematiza o pluralismo
religioso e a presença de comunidades religiosas no espaço público, seus direitos e deveres no âmbito da
liberdade religiosa no estado secular de direito, a existência e a modalidade de ensino religioso em escolas
públicas, mas também e não por último a situação econômica e social daqueles que mais sofrem. Este
é o sentido contínuo e irrenunciável da descoberta central da teologia da libertação na América Latina:
a opção pelos pobres”. SINNER, Rudolf von. Teologia pública: um olhar global. In: CAVALCANTE,
Ronaldo; SINNER, Rudolf von (Orgs.). Teologia Pública em Debate. São Leopoldo: Sinodal, 2011. p.
34. (Teologia pública v. 1).
“O objetivo de uma teologia contextual é fazer teologia desde e para o povo ou comunidade local. Afinal,
é em busca de relevância e eficácia para o povo que a tarefa se justifica. A identificação da teologia com
o povo leva-a a se conformar à vida que o povo vive; vida esta que se faz o contexto para a teologia.”
SANCHES, Sidney. A Teologia Evangélica Contextual. São Paulo: Reflexão, 2010. p. 34.
Cf. BREITENBERG Jr., E. Harold. What is Public Theology? In: HAINSWORTH, Deirdre K.; PAETH,
Scott R. (Orgs.). Public Theology for a Global Society. Essays in Honor of Max L. Stackhouse. Grand
Rapids: Eerdmans, 2010. p. 3-17.
BELLAH, Robert N. Civil Religion in America. Journal of the American Academy of Arts and Sciences,
v. 96, n. 1, p. 1-21, 1967.
TRACY, David. The Blessed Rage for Order. The New Pluralism in Theology. New York: Seabury Press,
1975; The Analogical Imagination. Christian Theology and the Culture of Pluralism. New York: Crossroad,
1981. Nesse livro, Tracy menciona os três públicos da teologia. [Versão em português: A imaginação
analógica: A teologia cristã e a cultura do pluralismo. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos,
2006. (Coleção Teologia Pública v. 7)].
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uso que tem feito do mesmo desde 1981, afirmando que toda teologia deveria possuir
um caráter público, isto é, referir-se às questões que afetam a vida pública em geral.8
A denominação teologia pública tem se espalhado por todos os continentes nos
últimos anos, tendo recebido um importante suporte institucional em 2007, quando da
fundação da Global Network for Public Theology9 e sua revista acadêmica International Journal of Public Theology. A difusão do termo, porém, também produziu um
efeito colateral não planejado: ele passou a se referir a teologias bastantes distintas
umas das outras, cujo ponto comum é o tratamento de temas considerados públicos,
embora haja diversidade no tocante ao sentido do público nos diversos exemplos de
“teologia pública”10. Por isso a discussão sobre o sentido do termo público na teologia
pública continua sendo uma tarefa urgente e importante.
Reflexões preliminares
O termo público, nas línguas latinas, possui uma etimologia e história interessantes. É claro que a etimologia não oferece o sentido atual de uma palavra, mas
nos permite algumas considerações significativas. Publicus, em latim, deriva de duas
outras palavras: populus (povo) e pubes (adulto, maduro, que está na origem de pelos
púbicos indicando a chegada à puberdade).11 As palavras da raiz são usadas em vários
sentidos: aquilo que se refere ao povo, o próprio povo ou uma parte dele, o que é
comum, ou o que é autorizado, o que é conhecido, de domínio público, cuidado pelo
Estado, disponível a todos.12 Quando consultamos um dicionário da língua portuguesa, percebemos que a mesma gama de usos é encontrada, acrescendo-se o uso na publicidade e derivados – público-alvo, destinatário –, público é aquilo que se opõe ao
privado, ao oculto, ao secreto. Quando pensamos em teologia pública, os usos ligados
ao Estado, àquilo que é oficial, autorizado, são os mais tipicamente vinculados.
Teologia pública, consequentemente, é a teologia que tem a ver com questões
públicas – da política, do Estado, aquilo que não é privado. Em textos da chamada
teologia pública, esses diversos sentidos são evocados. David Tracy, por exemplo,
afirmando que toda teologia é um discurso público, refere-se aos três distintos e complementares públicos (audiências) da teologia: igreja, universidade e sociedade –,
cada um dos quais demanda uma linguagem específica e temáticas correspondentes.
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Para os primeiros usos do termo por Stackhouse, ver STACKHOUSE, Max L. The Church and Political
Life: A Loss of Confidence. The Christian Century, v. 98, n. 24, p. 766-769, 1981; Some Intellectual and
Social Roots of Modern Human Rights Ideas. Journal for the Scientific Study of Religion, v. 20, n. 4, p.
301-309, 1981.
Uma rede de centros de pesquisa em teologia pública, dentre os quais se fez presente, desde a fundação,
a Faculdades EST, de São Leopoldo/RS.
Para uma descrição geral dos diferentes modelos de teologia pública atualmente praticados, ver JACOBSEN, Eneida. Modelos de Teologia Pública. In: CAVALCANTE, Ronaldo; SINNER, Rudolf von (Orgs.).
Teologia Pública em Debate. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011. p. 53-70. (Teologia pública v. 1).
Cf. DE VAAN, Michiel. Etymological Dictionary of Latin and the other Italic Languages. Brill: Leiden,
2008. p. 495ss.
Cf. Oxford Latin Dictionary. Oxford: Oxford University Press, 1968. p. 1404-1405.
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O público em “teologia pública”
Max Stackhouse e a maioria dos autores e autoras ligados à teologia pública afirmam
que ela lida com questões públicas, de interesse comum e político, tais como justiça,
globalização etc. Rudolf von Sinner, por sua vez, descreve teologia pública como
uma teologia “que pretend[e] refletir sobre a contribuição que as igrejas podem dar
ao espaço público, visando ao bem ou bem-estar comum”13, mantendo a linha de
pensamento de Stackhouse. Recentemente, foi percebida a necessidade de precisar o
sentido do termo pública, e dois importantes artigos lidaram com a questão.
Dirk Smit, de Stellenbosch, África do Sul, um dos principais centros de elaboração da teologia pública, escreveu um interessante ensaio sobre a definição do termo
público, editado em livro organizado por Len Hansen14 e também no primeiro número
do International Journal of Public Theology. Smit sustenta a necessidade de usar o
termo público em três acepções distintas, mas complementares: (a) no sentido técnico
presente na discussão habermasiana sobre a esfera pública, com seu tom normativo;
(b) no sentido não técnico, descritivo do termo, que aponta para o fato de que o Evangelho tem implicações para a vida pública em geral; e (3) no sentido de audiência
ou público-alvo, conforme a utilização de David Tracy. Ele afirma que a discussão
sociológica é importante para que teólogos possam entender melhor a sociedade em
que vivem e, a partir de tal compreensão, ter uma compreensão mais adequada da extensão de sua vocação. Ele vê essa extensão como se referindo a quatro áreas básicas
de importância: “essas são as áreas do Estado e política, a área da economia, a área da
sociedade civil (que inclui, p. ex., o judiciário (sic), a educação, o mundo do trabalho,
cultura, ciência e esporte, mas também organizações e associações) e, finalmente,
a área da opinião pública, inclusive a mídia em todas as suas complexas formas na
atualidade”15.
No ano seguinte, Andries Van Aarde, também na África do Sul, discutiu o
termo de modo peculiar e crítico – afirmando que teologia pública não se faz na academia nem na igreja, mas é a teologia feita por agentes não institucionais no âmbito
da sociedade e cultura em geral:
Embora eu argumente que a religião institucional está, de fato, morrendo, e que boa
parte da atividade teológica tenha se movido da academia para a “esfera pública”, também sou da opinião de que a “teologia pública” não tem a ver com teólogos ou pastores
“fazendo teologia” na esfera pública. Teologia pública é a atividade de diretores de
cinema, artistas, novelistas, poetas e filósofos. Entretanto, este artigo argumenta que a
“teologia pública” poderia facilitar um diálogo entre o discurso teológico de acadêmicos e o discurso teológico público16.
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16
SINNER, 2011, p. 12.
SMIT, Dirk. What does ‘Public’ mean? Questions with a view to Public Theology. In: HANSEN, Len
(Org.). Christian in Public. Aims, Methodologies and Issues in Public Theology. Stellenbosch: Sun Press,
2007. p. 11-36.
SMIT, 2007, p. 37.
VAN AARDE, Andries. What is “theology” in “public theology” and what is “public” about “public
theology”? Hervormde Teologiese Studies, v. 64, n. 3, p. 1214, 2008.
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O ensaio de Dirk Smit, especialmente em função de sua inclusão no primeiro número do IJPT, possui um papel quase que normativo para a discussão sobre o
sentido do adjetivo pública na teologia pública. Entretanto, apesar da útil discussão
sobre o conceito da esfera pública em Habermas e do sentido descritivo do termo público na prática teológica cristã, Smit acaba por não oferecer uma definição do termo
público que seja capaz de superar as ambiguidades do uso do mesmo. Não me parece
bastar que se afirme, como ele o faz, o uso plural do termo – nos sentidos normativo,
descritivo e publicitário. É preciso ir além, de outra forma, teologia pública se torna
toda teologia e teologia sobre tudo. É preciso, ainda, especificar melhor os termos
não teológicos usados por ele – por exemplo: como se pode afirmar, com Smit, que
o judiciário faz parte da sociedade civil? Em que sentido se pode dizer que a opinião
pública é matéria da teologia pública?
Se, por outro lado, adotarmos a tese defendida por Van Aarde, teologia pública
se torna um conceito inútil, posto que por demais abrangente, confundindo-se com a
própria prática da religião ou da cultura. Se o que artistas, diretores de cinema e outros agentes culturais fazem pode ser chamado de “teologia pública”, então não temos
nenhuma possibilidade de distinguir a teologia de outras manifestações da cultura e da
religião. Se afirmamos que o que teólogos acadêmicos e pastores chamam de teologia
pública não é teologia pública, mas discussão sobre a teologia pública (o trabalho de
artistas etc.), então como justificar seu trabalho? De antemão já estão julgados: por
pertencerem a âmbitos institucionais, não são capazes de fazer algo vivo, posto que a
religião institucional está morrendo e, assim, a teologia de tais agentes também está
morrendo.
Assim, a questão permanece: de que falamos quando falamos do público em
“teologia pública”? Não se trata, é claro, de oferecer uma resposta definitiva à questão, mas de ampliar a discussão e possibilitar novos modos de pensar e praticar teologia pública.
Reflexões radiculares
A raiz do problema, a meu ver, encontra-se no processo ocidental de modernização e secularização. Uma das características desse processo foi a diferenciação
de esferas na sociedade: política, cultura, personalidade, sociabilidade, religião, economia etc. foram se desacoplando e especializando.17 Ao longo dos séculos XVIII e
XIX, política e economia tornaram-se modos sistêmicos de estruturação da sociedade,
enquanto a cultura, a personalidade, a sociabilidade e a religião se diferenciaram no
âmbito do mundo-da-vida. A partir do século XX, a ciência, inclusive a tecnologia, e a
mídia também se tornaram subsistemas especializados, desligando-se dos imperativos
do mundo-da-vida e construindo suas formas próprias de funcionamento e legitimação. Paralelamente a essas diferenciações e especializações, a religião cristã, no Oci-
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A terminologia aqui segue a adotada por Jürgen Habermas.
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dente, foi perdendo terreno e se privatizando cada vez mais, a ponto de praticamente
ser reduzida a uma questão da vida privada, íntima e individual. A separação IgrejaEstado18 foi apenas o primeiro passo da separação igreja-economia, igreja-ciência,
igreja-mídia. Tal separação, entretanto, jamais se deu de modo completo e radical. As
igrejas cristãs jamais abriram mão de atuar e interferir nos demais âmbitos da sociedade – seja nos sistêmicos, seja nos relativos ao mundo-da-vida e grande número de cristãos jamais deixou de vincular suas crenças “privadas” com suas práticas “públicas”.19
Em outras palavras, o lugar da religião na vida social foi sendo reduzido e
deslegitimado pelos subsistemas sociais modernos, que fundaram seus modos de
operação e legitimidade de modo autônomo. À medida que tais subsistemas foram
colonizando o mundo-da-vida, também no âmbito das relações pessoais o lugar da
religião foi sendo redesenhado cada vez de modo mais restrito e reduzido. A razão
básica dessa redução encontra-se na crítica ao lugar dominante da Igreja Católica no
período da chamada cristandade, lado a lado com o governo monárquico-imperial.
Ocupando a posição hegemônica na definição da “verdade” e na legitimação do poder
monárquico, a igreja se viu na posição de vilã com o surgimento da economia capitalista e da democracia, assim como com o desenvolvimento da autonomia pessoal, com
a Reforma e a Renascença. Progressivamente a legitimidade do discurso religioso foi
sendo questionada, até que o mesmo passou a ser descrito como tendo validade apenas
em relação a questões existenciais íntimas e, mesmo assim, de modo subordinado à
autonomia individual. Simultaneamente, toda e qualquer intervenção religiosa fora do
âmbito individual-existencial passou a ser descrita como indevida tentativa de retorno
ao modelo da cristandade.
Em síntese, o lugar do discurso religioso e teológico ficou reduzido não só
ao âmbito privado, mas, neste, a um lugar subordinado ao arbítrio individual. Não
tendo mais legitimidade para se pronunciar sobre questões políticas, econômicas e
científicas, o discurso religioso e o teológico reduziram-se à reflexão sobre doutrinas
e demais questões internas às instituições religiosas. Sua presença na educação e na
mídia também é questionada como indevida interferência na autonomia da pessoa, e,
enfim, o questionamento chega ao âmbito da família, no qual os pais não têm mais
legitimidade para definir qual deve ser a religião de seus filhos. A escolha da religião,
ou contra a religião, torna-se uma questão do arbítrio individual em sentido absoluto.
Essa descrição, por demais genérica, precisaria ser matizada por descrições empiricamente sustentadas, que indicariam a diversidade concreta dos processos de modernização e secularização no Ocidente – o que, porém, foge ao escopo deste ensaio.
18
19
Uso o termo igreja, nessa conexão, em função de estar descrevendo uma história tipicamente cristã e
ocidental. Como este ensaio se refere à teologia pública cristã, manterei a linguagem particular. Em um
texto de perspectiva mais ampla, seria mais adequado usar o termo instituições religiosas.
Para uma descrição do período inicial da Modernidade, com foco nas questões políticas e religiosas, ver
SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. Para um olhar sobre a relação entre protestantismo e modernidade, ver TROELTSCH, Ernst. El
protestantismo y el mundo moderno. México: Fondo de Cultura Económica, 1951.
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É claro que as igrejas cristãs não reagiram passivamente a esse processo redutivo. Várias foram as respostas, tanto em função das distintas identidades institucionais como em função das distintas situações nacionais ou regionais em que as igrejas
estavam inseridas. Mais uma vez, vou me restringir a uma descrição mais genérica,
tipológica, assim como manterei o foco exclusivamente na teologia (enquanto discurso acadêmico especializado) e não na ação em geral das igrejas cristãs.20
Grosso modo, as teologias cristãs modernas tentaram recuperar sua credibilidade e legitimidade mediante a aceitação da privatização da crença religiosa. Uma
forma dessa aceitação pode ser chamada genericamente de ortodoxa e se constitui basicamente na redução dos temas da teologia a elementos doutrinários e, consequentemente, a restrição da abrangência do discurso teológico ao público eclesiástico – aqui
se enquadram as teologias tipicamente confessionais. Outra forma dessa aceitação
foi a das teologias que podem ser chamadas genericamente de liberais – nas quais
a privatização da crença não significa o abandono de temas ditos públicos, mas a
subordinação desses temas ao âmbito da ação individual e moral dos cristãos e uma
recusa em enfrentar questões político-ideológicas – aqui se encaixam as teologias
acadêmicas e transconfessionais. Uma terceira forma de aceitação da privatização são
as chamadas teologias neo-ortodoxas. Essas se aproximam das liberais, na medida
em que tratam de temas públicos, mas delas se afastam na medida em que assumem
contornos confessionais bem delimitados e legitimadores – por exemplo, as teologias
de tipo barthiano e a chamada ortodoxia radical de Milbank e outros. Uma quarta forma de aceitação da privatização são as teologias que podemos chamar de neoliberais,
predominantemente de cunho pós-iluminista ou pós-moderno, que enfatizam o caráter
simbólico do discurso teológico, ocupado principalmente com a renovação da linguagem do transcendente como doadora de sentido para a vida pessoal.
Reações contrárias à privatização do discurso teológico podem ser percebidas
com mais clareza e ênfase a partir dos anos 1970. São reações, em certo sentido, tipicamente modernas ainda: o que elas fazem é recolocar os temas públicos (políticos,
econômicos, legislativos) na agenda da teologia. Podemos constatar os seguintes tipos
de teologias não privatizadas (ou públicas): (1) a(s) teologia(s) feminista(s), que, na
esteira do movimento feminista, questionam a distinção moderna entre público e privado, afirmando o caráter público de atos e âmbitos então considerados como privados:
sexo, gênero, família, reprodução; (2) a teologia negra, inicialmente norte-americana,
que, na esteira dos movimentos negros por direitos civis, colocaram no espaço público
valores e conceitos teológicos; (3) a(s) teologia(s) política(s) europeia(s), com autores
como Metz e Moltmann, que, na esteira do movimento ecumênico, questionaram a
privatização do discurso teológico e afirmaram a validade da discussão teológica de
temas públicos; (4) as diversas teologias de libertação, ou contextuais, nas Américas,
África e Ásia, que, de modos distintos, abordaram temas públicos específicos, trazen-
20
80
Para abordagens da Modernidade que valorizam o aspecto religioso e oferecem revisões da teoria da
secularização, ver, entre outros: TAYLOR, Mark. After God. Chicago: Chicago University Press, 2007;
e TAYLOR, Charles. A Secular Age. Harvard: Harvard University Press, 2007.
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do de volta ao âmbito da discussão teológica questões então circunscritas ao discurso
econômico, cultural e político; (5) o movimento de renovação da teologia prática, não
mais definida como mera aplicação eclesiástica de conceitos teológico-sistemáticos,
mas afirmada e praticada como teologia da ação de cristãos e de igrejas na sociedade
em geral. Acredito que os textos e trabalhos que passaram a empregar a terminologia
“teologia pública” nos EUA, nos anos 1970 e 1980, e em constante expansão até nossos dias, podem ser listados nas categorias (4) e (5) acima. Não se tratava, então, de
afirmar uma nova “corrente teológica”, mas um novo modo de fazer teologia – um que
se recusava a aceitar a privatização e a individualização da fé cristã e da teologia. Hoje
em dia, trata-se, ainda de forma predominante, de como fazer teologia cristã, embora
sinais e indícios apontem para a possibilidade de redução da teologia pública a uma
corrente teológica entre outras.
Reflexões prolépticas
Diante do quadro brevemente exposto acima, nosso tópico demanda uma reflexão que tenha a ver com a atual situação das relações entre público e privado. Se,
na Modernidade, as distinções e relações entre os âmbitos público e privado ficaram
relativamente claras, em nosso tempo contemporâneo experimentamos praticamente
uma situação contrária. A diluição das fronteiras entre público e privado está praticamente consumada, com vários sintomas evidentes. Por exemplo: programas religiosos
ocupam espaço elevado na mídia; novas formas de igrejas cristãs dinâmicas e crescentes assemelham-se a empresas e não a associações; representantes democráticos
são eleitos muito mais por sua imagem pessoal do que por seu projeto político; o
lugar da religião na esfera pública é tema cada vez mais prioritário na academia e na
política internacional. Como, então, conceber o público da teologia pública, se já não
mais o podemos fazer simplesmente mediante a oposição com o privado? Não se trata
mais de vincular o público a um conjunto de temas predominantemente sistêmicos (na
linguagem de Habermas), ou relativos ao bem comum, mas de questionar a própria
distinção público-privado e recolocar a pessoa, a subjetividade, no espaço público,
enterrando de vez, se possível, a dicotomia indivíduo-sociedade, privado-público.
Para fazer isso, trago ao diálogo com a teologia alguns insights de autores cujas
contribuições, relidas a partir do interesse teológico, podem nos ajudar a avançar a
questão para além dos limites modernos em que a mesma foi constituída e respondida.
John Dewey foi um dos grandes pensadores da democracia norte-americana
e um dos fundadores do pragmatismo, corrente filosófica que ajudou a impulsionar
a virada linguística na filosofia contemporânea. Em uma obra que já se tornou um
clássico, Dewey discutiu o problema fundamental, a seu ver, da democracia: a inexistência de um público efetivamente democrático. Em suas palavras:
Em uma busca pelas condições sob as quais o público incipiente ora existente possa
funcionar democraticamente, podemos proceder a partir de uma declaração da natureza
da ideia democrática em seu sentido social genérico. Do ponto de vista do indivíduo,
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ela consiste em ter uma participação responsável, de acordo com a sua capacidade, na
formação e direção das atividades dos grupos aos quais a pessoa pertence e na participação, de acordo com a necessidade, nos valores que o grupo mantém. Do ponto de vista
dos grupos, ela demanda a liberação das potencialidades dos membros de um grupo em
harmonia com os interesses e bens comuns. Visto que cada indivíduo é um membro de
vários grupos, esta especificação não pode ser cumprida a não ser quando diferentes
grupos interagem flexível e plenamente em conexão com outros grupos21.
A proposta de Dewey está na base do que hoje se convencionou chamar de
democracia deliberativa e, em vários aspectos, antecipa não só as discussões sobre o
reconhecimento e o multiculturalismo, como também a perspectiva foucaultiana do
biopoder e a derrideana da “democracia-por-vir”. A palavra-chave para a noção de
público em Dewey é a participação – participação na formação e direção (processo de
tomada de decisões) da vida dos grupos sociais (o termo é relativamente impreciso),
os quais, em seu conjunto, formam a sociedade. Em termos mais típicos de nossos
dias, o público democrático é um público que exerce plenamente a sua cidadania22,
mediante não só a atuação concreta na vida da sociedade, como também através da
participação na tomada de decisões relativas às políticas públicas e questões outras,
influenciando assim os órgãos estatais decisórios em última instância. Ademais, trata-se também da participação na vida ético-moral da sociedade mediante a incorporação
dos valores dos grupos sociais aos quais os indivíduos estão envolvidos. Como uma
pessoa participa de vários grupos e como a sociedade é constituída por múltiplos
grupos, a pluralidade de valores deve ser reconhecida e o intercâmbio comunicativo
entre os diversos grupos é uma condição para a democracia efetiva – o que se alcança
quando o público a vivencia de fato.
Público, então, em Dewey, não é um adjetivo, mas um substantivo. Público são
as pessoas que participam da vida comunitária intensamente e ajudam a sociedade a se
constituir como uma grande comunidade democrática de cidadãs e cidadãos que, mediante processos desobstruídos de pensamento e comunicação, desenvolvem hábitos
democráticos de vida. Cidadãos que, mediante o reconhecimento das consequências
dos atos e processos sociais, reinventam permanentemente o ideal democrático, não
aceitando a sacralização ou a naturalização de nenhuma das instituições e hábitos
sociais de seu tempo. O público, assim, somente se constitui mediante o adequado
conhecimento das condições da vida humana em sociedade:
A crença de que o pensamento e sua comunicação agora são livres simplesmente porque
não há mais restrições legais é absurda. Sua permanência perpetua o estado infantil do
21
22
82
DEWEY, John. The Public and its Problems. Athens: Swallow Press & Ohio University Press, 1954. p.
147.
Rudolf von Sinner, em seus escritos de teologia pública, dá lugar central ao tema da cidadania embora,
aparentemente, não siga a tradição deweyana. Ver, por exemplo, SINNER, Rudolf von. Da teologia da
libertação para uma teologia da cidadania como teologia pública. Disponível em: <http://www.wftl.org/
pdf/tdlteopub_vonsinner.pdf>. Originalmente publicado no International Journal of Public Theology, ano
1, v. 3/4, p. 338-363, 2007.
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O público em “teologia pública”
conhecimento social. [...] a crença na liberdade intelectual onde ela não existe apenas
contribui para a complacência, a preguiça, a superficialidade e o recurso a sensações
como substitutas das ideias: traços marcantes de nosso estado atual com relação ao
conhecimento social. De um lado, o pensamento privado de seu curso normal se refugia
no especialismo acadêmico, comparável, dessa forma, ao que se chama de escolasticismo. De outro lado, as agências físicas de publicidade, que existem em abundância,
são utilizadas de modos que constituem a maior parte do sentido atual de publicidade:
advertising, propaganda, invasão da vida privada, a “apresentação” de incidentes de
modo tal que viola toda a lógica da continuidade e que nos deixa com aquelas intrusões
isoladas e choques que são a essência das “sensações”23.
Uma teologia pública, assim, seria uma reflexão que ajudaria a cidadania a
conhecer adequada e emancipatoriamente sua própria realidade e condição, a fim de
poder agir e deliberar de modo crítico e construtivo. Seria uma teologia, então, especialmente voltada para a formação do público para atuar publicamente.
Paro por aqui na descrição brevíssima do projeto deweyano, posto que esta
última citação nos encaminha para o trabalho de Michel Foucault. Não há uma relação
direta entre esses dois pensadores, mas suas teses se entrelaçam em aspectos significativos – especialmente no que tange às relações entre saber e poder e o conceito de governo ou governabilidade. Em uma linha foucaultiana, podemos afirmar que a relação
público-privado nas sociedades atuais não se dá mediante o modo da distinção que
se defendia no discurso tipicamente moderno-liberal. Pelo contrário, as relações de
poder e saber na sociedade constituem modos de discurso que operam de tal maneira
que o ambiente público atravessa o privado através da constituição da subjetividade.
Não há nada mais objetivo (público) do que a subjetividade (privado). O privado,
por sua vez, atravessa o público mediante a assimilação dos discursos, a resistência a
discursos e a proposta de novas possibilidades discursivas.
O público pode ser definido, assim, de modo adjetival – é público aquele conjunto de relações de poder que constituem as subjetividades e as objetividades sociais.
Público, em certa medida, corresponde a discursivo, posto que:
é justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber [...] não se deve imaginar
um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou
entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade
de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes [...] Os discursos,
como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos
a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao
mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de
resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz
poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo [...] Não existe
um discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro, contraposto24.
23
24
DEWEY, 1954, p. 168s.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. v. 1, p. 95-96.
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De modo similar ao pensamento de Dewey, que destaca o papel do conhecimento adequado para a vida social, Foucault destaca a importância do discurso – a
junção de saber e poder – na formação da sociedade. E assim como Dewey destaca a
importância da liberdade na constituição do conhecimento, Foucault destaca a importância dos dispositivos na constituição das subjetividades – livres ou não – que podem
tornar o discurso emancipatório e a vida em sociedade mais justa e esteticamente
adequada. Trata-se, no âmbito público, não de mudar um sistema de governo, mas
todo um modo de vida, posto que não há como distinguir radicalmente entre público
e privado, individual e social no âmbito da vigência de dispositivos. Um dispositivo,
na terminologia foucaultiana, é um modo de ordenar a vida, um modo de governar a si
mesmo e a outros, e se constitui em um conjunto de práticas, de saberes, de medidas,
de instituições etc., cujo objeto é gerenciar, governar, ordenar, controlar os comportamentos e pensamentos das pessoas. Um dispositivo é a junção de poder e saber
que, operando sobre o indivíduo, sobre as massas, sobre as instituições, sobre toda
a sociedade, difunde o governo em todo o tecido social, fazendo da arte de governar
uma ação que não se restringe ao Estado e suas instituições, à religião e suas instituições etc., mas ao próprio viver cotidiano das pessoas. Público e privado, então, se
interferem mutuamente, constituindo-se de modos diversos e historicamente situados.
Passamos, então, a uma definição substantiva de público, como agentes na
sociedade. Onde estará, então, o problema fundamental da vida pública em nossos
dias? Segundo Agamben, relendo Foucault, “o que define os dispositivos com os
quais temos que lidar na fase atual do capitalismo é que esses não agem mais tanto
pela produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de
dessubjetivação. [...] O que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão
lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer,
espectral”25. A tese de Agamben retoma a tese de Dewey a respeito da inexistência de
um público democrático. Na fase atual da vida capitalista ocidental, a política (pública) entra em colapso porque não há mais sujeitos (privado) políticos, apenas obstáculos ao exercício estatal e mercadológico do poder:
É por um paradoxo apenas aparente que o inócuo cidadão das democracias pós-industriais, que executa pontualmente tudo o que lhe é dito e deixa que seus gestos quotidianos, como sua saúde, os seus divertimentos, como suas ocupações, a sua alimentação e
como seus desejos sejam comandados e controlados por dispositivos até nos mínimos
detalhes, é considerado pelo poder – talvez exatamente por isso – como um terrorista
virtual26.
Uma teologia pública, então, seria uma reflexão teológica capaz de lidar com
os dispositivos presentes na sociedade contemporânea. E o modo mais adequado de
lidar com os dispositivos não é eliminá-los, ou meramente substitui-los, mas dessacra25
26
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AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 39.
AGAMBEN, 2009, p. 44.
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lizá-los. Seria, então, a teologia, uma reflexão desmascaradora de ídolos, um discurso
anti-idolátrico.
Deixando Foucault e Agamben, caminhamos ao encontro de Derrida. Visto
por Rorty como um pensador privado27, o pensamento de Derrida oferece, porém,
contribuições muito ricas para o debate público. Dentre essas contribuições, destaco
a questão da alteridade (baseada em e ampliando a visão ética de Lévinas) e sua irmã
gêmea, a justiça. Aproveitarei uma entrevista de Derrida para, tirando proveito da linguagem menos técnica, apresentar sinteticamente a noção da alteridade em Derrida.
Faço isso porque a noção do que é público em Derrida precisa ser pensada a partir da
questão da alteridade. O público é pessoal, pessoal porque a vida pública, democrática, tem a ver com a relação entre pessoas e só depois com as estruturas e instituições
que a compõem.
O outro é uma das chaves para entender o pensamento de Derrida. É o outro
que demanda e possibilita a desconstrução (não tão central assim em Derrida como
alguns de seus intérpretes o supõem), a alteridade que constitui a justiça:
Es lo otro; si podemos decirlo en una palabra es lo otro. Lo que llamo justicia es el
peso de lo otro, que dicta mi ley y me hace responsable, me hace responder al otro,
obligándome a hablarle. Así que es el diálogo con el otro, el respeto a la singularidad
y la alteridad del otro lo que me empuja, siempre de una forma continua e inadecuada,
a intentar ser justo con el otro (o conmigo mismo como otro). En consecuencia, me
mueve no sólo a formular cuestiones sino para afirmar el sí que se presupone en todas
las interrogantes. La pregunta no es la última palabra del pensamiento, tras ser dirigida
a alguien o al serme dirigida. Supone una afirmación -sí-, que no es positiva ni negativa,
ni es un testimonio o declaración. Este sí consiste en comprometerse en oír al otro o
hablar con él, es un sí más viejo que la propia pregunta, un sí que se presenta como una
afirmación originaria sin la cual no es posible la deconstrucción28.
Ouvir o outro, não reduzir o outro a mim-mesmo, é a essência mesma da justiça e da publicidade. Na mesma entrevista, questionado sobre o papel do Parlamento
Europeu como um possível criador de espaço público, Derrida responde:
Por eso se requiere volver a pensar (ya lo dije varias veces en el Parlamento) sobre
el concepto actual de espacio público. El Parlamento, que no se instala en el espacio
público, debe intentar pensar en la transformación que está ocurriendo, bien de la tecno-
27
28
É assim que Rorty, por exemplo, interpreta Derrida: “O Derrida tardio privatiza seu pensamento filosófico
e, assim, rompe a tensão entre ironismo e teorização. Ele simplesmente abandona a teoria – a tentativa de
ver seus predecessores ampla e totalmente – e prefere a fantasia acerca desses predecessores, brincando
com ele, dando livre curso aos traços de associações que eles produzem. Não há moralidade para essas
fantasias, nem qualquer uso público (pedagógico ou político) a ser feito delas”. RORTY, Richard. From
ironist theory to private allusions: Derrida. In: Contingency, Irony, and Solidarity. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989. p. 125.
DERRIDA, Jacques. La Democracia como promessa. Entrevista de Elena Fernandez con Jacques Derrida,
1994. Disponível em: < http://personales.ciudad.com.ar/Derrida/democracia.htm>. Acesso em: 21 jun.
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logía y los media o de otros factores, en el concepto de realidad del espacio público. Es
preciso, por tanto, repensar sobre la democracia, una de las formas de tratar el espacio
público, y sobre la palabra, el hecho de dirigirme libremente al otro, una de las condiciones del espacio público, que es lo que significa la palabra “parlamento”29.
O público é o espaço da livre conversação, da livre troca de ideias, de manifestações, é o poder dizer o que se quer dizer, ainda que esse dizer possa destruir a própria
democracia. O público é o espaço da promessa, da esperança. Neste sentido, a concepção de democracia em Derrida é similar à de Dewey, uma realidade inexistente:
Desde luego, porque es una promesa, y entonces no puede ser sometida a cálculo, ni
ser objeto de un juicio del saber que lo determine. Por otro lado, seria una cosa, aunque, partiendo de la libertad y del respeto a la singularidad del otro, el reto para la
democracia es justamente no ser una cosa, sustancia y objeto. De ahí se deduce que no
puede ser objeto de un juicio que lo predetermine. “La democracia que ha de venir”,
decimos siempre, y no “la democracia actual”, que es inexistente. Esa promesa es lo
que determina, por ejemplo, una institución como el Parlamento de los Escritores. Lo
que no significa que la democracia vaya a estar presente mañana. Es algo que siempre
está por venir30.
Público é, então, o espaço da promessa democrática, promessa que se faz e refaz, que se renova cotidianamente no livre-falar, na expressão ampla da liberdade humana que está na base da democracia e que se mantém sempre em tensão com a outra
promessa democrática, a promessa da igualdade. A ação pública é ação da palavra e
ação do pensamento. E se isso parece pouco eficiente, Derrida insiste: “el pensamiento no es la palabra de la palabra. La palabra es pública, y todas las transformaciones
políticas pasan por la palabra. ¿Conoce algún cambio político que no haya pasado por
la palabra?”31. É claro que a ação não se reduz ao ato de falar, à ação do pensamento,
mas não há conjunto de ações transformadoras da realidade pública que não passem
pela palavra, pelo pensamento, livre, crítico, desconstrutivo.
Teologia pública, assim, seria uma teologia do Logos, que se faz carne publicamente, habita nos espaços públicos e publicamente faz ouvir suas vozes, que criam
uma nova autoridade, um novo poder, uma nova potência – a de pessoas se tornarem
filhas de Deus.
Conclusão
Dewey, Foucault, Derrida. Não são os autores mais citados pelos teólogos em
geral, nem pelos teólogos públicos em particular. Nem têm sido meus interlocutores
mais constantes. Eu os escolhi porque os três fazem a noção de público passar pela no-
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ção da palavra, da palavra pensada, da palavra livremente constituída e manifestada,
da palavra que é ação, ação de falar, parlamentar, deliberar, transformar. Eu os escolhi
porque os três fazem a noção de público passar pelo caminho da reinvenção. Público
não é isso ou aquilo. Público é permanente construção e desconstrução nas relações
sociais. Público e privado não são entidades, não são fixações, são realidades dinâmicas, mutáveis, mutantes. Uma teologia que se pretenda pública, então, não pode se
prender às fixações modernas, às rigidezes ortodoxas, às permanências dogmáticas.
Uma teologia pública é uma voz no próprio processo de constituir o público. O ato de
fazer teologia em público, em voz alta, nas ruas e praças, nos templos e nos mercados,
nas salas e quartos, nos bares e restaurantes é ato público. Pensar teologicamente em
voz alta é pensar publicamente – sempre e na medida em que seja pensar livre, inteligente, justo, pensar como resposta à interpelação do Outro; pensar como resposta
graciosa ao clamor do Outro que sofre a insustentável leveza de viver.
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