Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César — São Paulo — SP
CEP 05413-909 – PABX: (11) 3613 3000 – SACJUR: 0800 055 7688 – De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30
saraivajur@editorasaraiva.com.br
Acesse www.saraivajur.com.br
FILIAIS
AMAZONAS/RONDÔNIA/RORAIMA/ACRE
Rua Costa Azevedo, 56 – Centro – Fone: (92) 3633-4227 – Fax: (92) 3633-4782 – Manaus
BAHIA/SERGIPE
Rua Agripino Dórea, 23 – Brotas – Fone: (71) 3381-5854 / 3381-5895 – Fax: (71) 3381-0959 – Salvador
BAURU (SÃO PAULO)
Rua Monsenhor Claro, 2-55/2-57 – Centro – Fone: (14) 3234-5643 – Fax: (14) 3234-7401 – Bauru
CEARÁ/PIAUÍ/MARANHÃO
Av. Filomeno Gomes, 670 – Jacarecanga – Fone: (85) 3238-2323 / 3238-1384 – Fax: (85) 3238-1331 – Fortaleza
DISTRITO FEDERAL
SIA/SUL Trecho 2 Lote 850 — Setor de Indústria e Abastecimento – Fone: (61) 3344-2920 / 3344-2951 – Fax: (61)
3344-1709 — Brasília
GOIÁS/TOCANTINS
Av. Independência, 5330 – Setor Aeroporto – Fone: (62) 3225-2882 / 3212-2806 – Fax: (62) 3224-3016 – Goiânia
MATO GROSSO DO SUL/MATO GROSSO
Rua 14 de Julho, 3148 – Centro – Fone: (67) 3382-3682 – Fax: (67) 3382-0112 – Campo Grande
MINAS GERAIS
Rua Além Paraíba, 449 – Lagoinha – Fone: (31) 3429-8300 – Fax: (31) 3429-8310 – Belo Horizonte
PARÁ/AMAPÁ
Travessa Apinagés, 186 – Batista Campos – Fone: (91) 3222-9034 / 3224-9038 – Fax: (91) 3241-0499 – Belém
PARANÁ/SANTA CATARINA
Rua Conselheiro Laurindo, 2895 – Prado Velho – Fone/Fax: (41) 3332-4894 – Curitiba
PERNAMBUCO/PARAÍBA/R. G. DO NORTE/ALAGOAS
Rua Corredor do Bispo, 185 – Boa Vista – Fone: (81) 3421-4246 – Fax: (81) 3421-4510 – Recife
RIBEIRÃO PRETO (SÃO PAULO)
Av. Francisco Junqueira, 1255 – Centro – Fone: (16) 3610-5843 – Fax: (16) 3610-8284 – Ribeirão Preto
RIO DE JANEIRO/ESPÍRITO SANTO
Rua Visconde de Santa Isabel, 113 a 119 – Vila Isabel – Fone: (21) 2577-9494 – Fax: (21) 2577-8867 / 2577-9565 – Rio
de Janeiro
RIO GRANDE DO SUL
Av. A. J. Renner, 231 – Farrapos – Fone/Fax: (51) 3371-4001 / 3371-1467 / 3371-1567 – Porto Alegre
SÃO PAULO
Av. Antártica, 92 – Barra Funda – Fone: PABX (11) 3616-3666 – São Paulo
ISBN 978-85-02-15803-0
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Coelho, Fábio Ulhoa
Curso de direito comercial, volume 1 : direito de
empresa / Fábio Ulhoa Coelho. — 16. ed. — São Paulo :
Saraiva, 2012.
1. Direito comercial I. Título.
CDU-347.7
Índice para catálogo sistemático:
1. Direito comercial 347.7
Diretor editorial Luiz Roberto Curia
Diretor de produção editorial Lígia Alves
Editor Jônatas Junqueira de Mello
Assistente editorial Sirlene Miranda de Sales
Produção editorial Clarissa Boraschi Maria
Preparação de originais Ana Cristina Garcia / Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan / Daniel Pavani Naveira
Arte e diagramação Cristina Aparecida Agudo de Freitas
Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati / Cecília Devus
Serviços editoriais Ana Paula Mazzoco / Kelli Priscila Pinto
Capa Conexão Editorial
Produção gráfica Marli Rampim
Data de fechamento da edição: 6-12-2011
Dúvidas?
Acesse www.saraivajur.com.br
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da
Editora Saraiva.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
ÍNDICE
Nota da 13ª edição
Primeira Parte
Empresa e Estabelecimento
Capítulo 1
O direito comercial e a disciplina da atividade econômica
1. Introdução
2. O Estado, a economia e o direito no início do século XXI
3. Disciplina privada da atividade econômica
4. O sistema francês (teoria dos atos de comércio)
5. O sistema italiano (teoria da empresa)
6. Filiação do direito brasileiro ao sistema francês em 1850
7. Aproximação do direito brasileiro ao sistema italiano
8. Do direito comercial ao direito empresarial
9. O conhecimento tecnológico do direito
10. O direito e as externalidades
11. O custo do direito para a atividade empresarial
12. Direito comercial como direito-custo
Capítulo 2
OS PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL
1. Classificação dos princípios do direito comercial
2. Princípio da liberdade de iniciativa
2.1. Os dois vetores do princípio da liberdade de iniciativa
2.2. A liberdade de iniciativa na ordem constitucional brasileira
2.3. Desdobramentos do princípio da liberdade de iniciativa
3. Princípio da liberdade de concorrência
4. Princípio da função social da empresa
5. Princípio da liberdade de associação
6. Princípio da preservação da empresa
7. Princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária
8. Princípio da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais
9. Princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais
10. Princípio majoritário nas deliberações sociais
11. Princípio da proteção do sócio minoritário
12. Princípio da autonomia da vontade
13. Princípio da vinculação dos contratantes ao contrato
14. Princípio da proteção do contratante mais fraco
15. Princípio da eficácia dos usos e costumes
16. Os princípios do direito cambiário
17. Princípio da inerência do risco
18. Princípio do impacto social da crise da empresa
19. Princípio da transparência nos processos falimentares
20. Princípio do tratamento paritário dos credores
Capítulo 3
A disciplina da atividade empresarial e A GLOBALIZAÇÃO
1. As vantagens competitivas decorrentes do marco regulatório
2. Princípios do direito do comércio internacional
3. Integração econômica e a cláusula social
4. Processo de integração econômica regional
4.1. Harmonização do direito
4.2. Harmonização do direito comercial
Capítulo 4
O empresário
1. Introdução
2. Sociedade empresária
3. Obrigações gerais dos empresários
4. Registro de empresas
4.1. Órgãos do registro de empresas
4.2. Atos do registro de empresas
4.3. Procedimentos e regimes
4.4. Consequências da falta do registro: sociedade empresária irregular
4.5. Empresário rural e pequeno empresário
4.6. Inatividade da empresa
5. Escrituração
5.1. Espécies de livros
5.2. Regularidade na escrituração
5.3. Processos de escrituração
5.4. Extravio e perda da escrituração
5.5. Exibição dos livros
5.6. Eficácia probatória dos livros mercantis
5.7. Consequências da falta de escrituração
5.8. Escrituração da microempresa e empresa de pequeno porte
6. Demonstrações contábeis periódicas
Capítulo 5
Estabelecimento empresarial
1. Conceito de estabelecimento empresarial
2. Natureza do estabelecimento empresarial
3. Elementos do estabelecimento empresarial
4. A proteção ao ponto: locação empresarial
4.1. Requisitos da locação empresarial
4.2. Exceção de retomada
4.3. Ação renovatória
4.4. Indenização do ponto
5. Shopping center
6. Alienação do estabelecimento empresarial
6.1. A questão da sucessão
6.2. Trespasse e locação empresarial
6.3. Cláusula de não restabelecimento
7. Franquia
7.1. Circular de oferta de franquia
7.2. Registro da franquia
Capítulo 6
Propriedade industrial
1. Introdução
2. Bens da propriedade industrial
2.1. Segredo de empresa
2.2. Marcas coletivas e de certificação
3. A propriedade intelectual
3.1. Diferenças entre o direito industrial e o direito autoral
3.2. Desenho industrial e obra de arte
4. Patenteabilidade
4.1. Novidade
4.2. Atividade inventiva
4.3. Industriabilidade
4.4. Desimpedimento
5. Registrabilidade
5.1. Registro de desenho industrial
5.2. Registro de marca
6. Processo administrativo no INPI
6.1. Pedido de patente
6.2. Pedido de registro de desenho industrial
6.3. Pedido de registro de marca
6.4. Prioridade
7. Exploração da propriedade industrial
7.1. Licença de direito industrial
7.2. Cessão de direito industrial
7.3. Secondary meaning e degeneração de marca notória
8. Extinção do direito industrial
9. Nome empresarial
9.1. Espécies de nome empresarial
9.2. Formação e proteção do nome empresarial
9.3. Diferenças entre nome empresarial e marca
10. Título de estabelecimento
Capítulo 7
Disciplina jurídica da concorrência
1. Princípio constitucional da livre-iniciativa
2. Concorrência desleal
2.1. Classificação da concorrência desleal
2.2. Modalidades de concorrência desleal específica
2.3. Repressão civil
2.4. Repressão penal
3. Infração da ordem econômica
3.1. Órgãos administrativos de repressão às infrações
3.2. Natureza da competência do CADE
4. Caracterização da infração da ordem econômica
4.1. Irrelevância da culpa
4.2. Prejuízo à livre concorrência ou livre-iniciativa
4.3. Mercado relevante
4.4. Aumento arbitrário de lucros
4.5. Abuso de posição dominante
4.6. Paralelismo de preços ou conduta
5. Condutas infracionais
6. Sanções por infração da ordem econômica
7. Controle preventivo dos atos de concentração empresarial
8. Comprovação da concorrência ilícita
9. Disciplina contratual da concorrência
Capítulo 8
A atividade empresarial e a qualidade do fornecimento de bens e serviços
1. Fornecimento sem qualidade
1.1. Falta de qualidade por periculosidade
1.2. Falta de qualidade por defeito
1.3. Falta de qualidade por vício
1.4. Teoria da qualidade
2. Superamento do princípio da culpabilidade
3. Superamento do princípio da relatividade
4. Fornecimento perigoso
4.1. Riscos normais e previsíveis
4.2. Alto grau de periculosidade ou nocividade
5. Periculosidade do fornecimento e informação do consumidor
5.1. Dever de informar sobre riscos de consumo
5.2. Adequabilidade e suficiência das informações sobre riscos de produtos e serviços
6. Risco de desenvolvimento
6.1. Dever de pesquisar
6.2. Estado da arte
7. Fornecimento defeituoso
7.1. Classificação dos fornecedores
7.2. Responsabilidade do fabricante, produtor, construtor e importador
7.3. Responsabilidade do comerciante
7.4. Responsabilidade do prestador de serviços
7.5. Responsabilidade dos profissionais liberais
8. Fornecimento viciado
8.1. Impropriedade nos produtos e serviços
8.2. Superação da teoria tradicional dos vícios redibitórios
8.3. Perdas e danos por fornecimento viciado
9. Direitos do consumidor na solução dos vícios
9.1. Vício de qualidade ou de quantidade no produto
9.2. Vício de qualidade no serviço
9.3. Decadência do direito de reclamação por vício
10. Relações interempresariais e qualidade do fornecimento
10.1. Direito de regresso
10.2. Responsabilidade do sucessor
10.3. Responsabilidade do licenciador de direito industrial
10.4. Responsabilidade do merchandisor
10.5. Responsabilidade do franqueador
10.6. Sociedades controladas, consorciadas, coligadas e integrantes de grupo
Capítulo 9
A atividade empresarial e a publicidade
1. A publicidade e a tutela do consumidor
2. A autorregulação publicitária
2.1. Âmbito de abrangência do sistema de autorregulação
2.2. Sanções do sistema de autorregulação
3. Publicidade simulada
4. Publicidade enganosa
4.1. Falsidade e enganosidade
4.2. Caracterização da publicidade enganosa
4.3. Consumidor padrão
4.4. Conteúdo da mensagem
4.5. Princípio da veracidade, princípio da transparência e enganosidade por omissão
5. Publicidade abusiva
5.1. Abuso por discriminação
5.2. Abuso por incitação à violência
5.3. Abuso por exploração do medo e superstição
5.4. Abuso na publicidade dirigida a crianças
5.5. Abuso por desrespeito aos valores ambientais
5.6. Abuso por indução a conduta nociva à saúde ou segurança do consumidor
5.7. Caracterização da publicidade abusiva
5.8. Agressão aos valores da sociedade
5.9. Valores sociais e questões individuais
6. Publicity
7. Responsabilidade civil do anunciante
8. Responsabilidade administrativa do anunciante
8.1. Efetividade da contrapropaganda
8.2. Natureza da responsabilidade administrativa do anunciante
9. Responsabilidade penal do anunciante
9.1. Elementos do tipo do art. 67 do CDC
9.2. Crime formal e crime material de publicidade enganosa
10. Responsabilidade da agência de propaganda e do veículo de comunicação
11. Publicidade comparativa
Segunda Parte
Títulos de Crédito
Capítulo 10
Teoria geral dos títulos de crédito
1. Conceito de títulos de crédito
2. Princípios do direito cambiário
2.1. Cartularidade
2.2. Literalidade
2.3. Autonomia
2.3.1. Abstração
2.3.2. Inoponibilidade
3. Natureza da obrigação cambial
4. Classificação dos títulos de crédito
5. Títulos de crédito no Código Civil de 2002
6. A informática e o futuro do direito cambiário
Capítulo 11
Constituição e exigibilidade do crédito cambiário
1. Introdução
2. Saque da letra de câmbio
2.1. Requisitos da letra de câmbio
2.2. Cláusula-mandato
2.3. Título em branco ou incompleto
3. Aceite da letra de câmbio
3.1. Recusa parcial do aceite
3.2. Cláusula não aceitável
4. Endosso da letra de câmbio
4.1. Endosso impróprio
4.2. Endosso e cessão civil de crédito
4.3. Circulação cambial e o Plano Collor
5. Aval da letra de câmbio
5.1. Avais simultâneos
5.2. Aval e fiança
5.3. Aval e garantias extracartulares
6. Vencimento
7. Pagamento
7.1. Prazo para apresentação
7.2. Cautelas no pagamento
8. Protesto
8.1. Protesto por falta de pagamento
8.2. Pagamento em cartório
8.3. Cancelamento do protesto
9. Ação cambial
Capítulo 12
Nota promissória
1. Requisitos da nota promissória
2. Regime jurídico da nota promissória
Capítulo 13
Cheque
1. Conceito de cheque
1.1. Circulação do cheque
1.2. Modalidades
1.3. Prazo de apresentação
2. Cheque pós-datado
3. Sustação do cheque
4. Cheque sem fundos
4.1. Ações cambiais
4.2. Encargos do emitente
4.3. Repressão ao uso de cheque sem fundos
Capítulo 14
Duplicata
1. Introdução
2. Causalidade da duplicata mercantil
3. Aceite da duplicata mercantil
4. Protesto da duplicata mercantil
4.1. Protesto por indicações
4.2. Triplicata
5. Execução da duplicata mercantil
5.1. Juros e correção monetária
5.2. Executividade da duplicata em meio eletrônico
6. Títulos de crédito por prestação de serviços
Capítulo 15
OUTROS TÍTULOS DE CRÉDITO
1. Títulos de crédito impróprios
1.1. Categorias de títulos de crédito impróprios
1.2. Títulos armazeneiros
2. Títulos de crédito sujeitos ao Código Civil
2.1. Títulos de crédito não regulados
2.2. Títulos de crédito atípicos (ou inominados)
3. Títulos bancários
3.1. Títulos de financiamento de atividade econômica
3.2. Cédula de crédito bancário
4. Títulos do agronegócio
4.1. O suporte dos títulos do agronegócio
4.2. Cédula de Produto Rural (CPR)
4.2.1. Cédula de Produto Rural Física
4.2.2. Cédula de Produto Rural Financeira
4.2.3. CPR como instrumento de investimento
4.3. Certificado de Depósito Agropecuário (CDA) e Warrant Agropecuário (WA)
4.4. Refinanciamento do agronegócio e Securitização
4.4.1. Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA)
4.4.2. Letra de Crédito do Agronegócio (LCA)
4.4.3. Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA)
4.5. Nota Comercial do Agronegócio (NCA)
Índice alfabético-remissivo
Bibliografia
Nota da 13ª edição
Direito Comercial é uma disciplina de muitos nomes, no mundo todo: Mercantil, Empresarial, dos
Negócios etc. O Código Civil abriga, desde 2002, parte das disposições legais que regem a matéria
objeto de estudo da disciplina no seu Livro “Direito de Empresa”, com o que lhe deu mais um nome.
A partir da 11ª edição, o Curso de Direito Comercial passou a ostentar, no título, a referência a
esse novo nome da disciplina, com o objetivo de dissipar algumas dúvidas que têm surgido entre
estudantes e profissionais do Direito.
Primeira Parte
EMPRESA E ESTABELECIMENTO
Capítulo 1
O DIREITO COMERCIAL E A DISCIPLINA DA
ATIVIDADE CONÔMICA
1. INTRODUÇÃO
Este Curso de Direito Comercial não é um trabalho despretensioso. Ele tem uma ambição clara:
ser uma obra do seu tempo.
Tempo em que, finda a guerra fria, pode-se reler Marx fora do contexto maniqueísta de amigo ou
inimigo; e, com isso, resituá-lo como a mais importante e talvez a derradeira tentativa de o homem
racionalizar por completo a produção de sua vida material. Mais do que um projeto revolucionário
da classe proletária para superação do sistema capitalista, o marxismo deve ser compreendido como
um projeto da humanidade, em seus renovados esforços para reorganizar a sociedade de forma
científica. Antes de conclamar o proletariado à revolução socialista, Marx se convencera de que
houvera desenvolvido um método capaz de dar ao conhecimento da sociedade o estatuto científico
que Galileu, duzentos e cinquenta anos antes, houvera dado às ciências naturais. O método
materialista e dialético, ao apontar a luta de classes como o motor da história, era o instrumento para
antever cientificamente a insurreição do operariado e a implantação do socialismo, a etapa seguinte
da evolução da humanidade. Assim, uma das motivações do marxismo foi a ambiciosa tentativa —
que se encontra também em outras filosofias nada comunistas, como no positivismo de Comte — de
transpor para o campo do humano os progressos alcançados no domínio da natureza. Os marxistas
reivindicam a condição de criadores da ciência da História (cf. Poulantzas in Châtelet,
1979:151/153). A re volução socialista poria fim à anarquia do mercado característica do
capitalismo, e propiciaria a planificação central da economia; desse modo, o homem acabaria
submetendo a organização social ao poder de sua racionalidade científica, assim como já houvera
subjugado as forças físicas, químicas, biológicas.
A diferença entre o projeto de reorganização social do marxismo e o de outros socialistas reside,
como os próprios marxistas gostam de dizer, na consistência científica reivindicada pelo primeiro.
Engels considera utópicos os socialistas anteriores, porque teriam formulado seus projetos de
sociedade ideal ignorando as forças que realmente atuam na evolução da sociedade (1892). Para ele,
o projeto marxista é o que, pela primeira vez, se alicerça em pesquisa metódica e científica sobre a
dinâmica da história. Assim, a palavra de ordem do “manifesto comunista”, exortando à união os
operários de todo o mundo, tem menos de aglutinador dos espoliados, para a defesa de seus
interesses, e mais de afirmação cientificamente fundada acerca dos meios corretos de racionalizar as
relações sociais.
O fracasso da experiência planificadora, nos países soviéticos, simbolizada pela queda do Muro
de Berlim, na noite de 9 de novembro de 1989, revela que o projeto marxista tem algo de falho. Não
estou pretendendo discutir — como até seria possível, admita-se — a maior ou menor fidelidade do
estado soviético, e seus antigos países satélites, ao ideário de Marx, mas a demonstração eloquente,
naquele significativo fato histórico, da incapacidade de o homem planificar totalmente a economia. E
discutir este aspecto da teoria marxista seria cabível, ainda que nenhum povo houvesse tentado a
revolução proletária. O definitivo, em relação à extraordinariamente rápida desarticulação das
economias planificadas europeias na última década do século XX, é a atual incapacitação científica
do homem para lidar com as questões humanas, e parece ser o questionamento da possibilidade
mesma de um projeto científico de reorganização social.
Com o fracasso da experiência de centralização da economia, tentada pela União Soviética e seus países satélites, fica claro que a ciência não
consegue controlar as relações sociais. Se o homem, cada vez mais, está dominando cientificamente a natureza, o mesmo domínio não consegue
sobre a sociedade.
A filosofia, aliás, já tinha se antecipado algumas décadas à história. Se eu tivesse que resumir
numa ideia o núcleo do pensamento filosófico do século XX, escolheria a percepção dos limites do
saber científico. Neste século, ficamos mais humildes. Se até o entreguerras, a filosofia exaltou e se
encantou com os progressos aparentemente ilimitados da ciência, durante a guerra fria (1945-1989) a
reflexão filosófica de maior envergadura, tanto entre os cientificistas (a escola analítica e o
positivismo lógico), como entre seus opositores, representou o amadurecimento de uma postura
cautelosa diante dos desafios da humanidade: não conhecemos tudo, não podemos conhecer tudo, não
podemos controlar tudo. Quando Habermas, por exemplo, na década de 1960, insiste na importância
da distinção entre dois conceitos de racionalização, um relacionado ao trabalho (a ação racional com
respeito aos fins), e outro às ações comunicativas no interior dos marcos institucionais
(1968:66/108), está já alertando para as questões que viriam a ser incisivamente postas pelo
fracasso da experiência socialista.
Para ser uma obra do seu tempo, este Curso de Direito Comercial deve se inserir no contexto da
apercepção, pelo pensamento filosófico — e, em certa medida, também pelo jurídico —, da
impossibilidade de completa reorganização científica da economia e da sociedade. De fato, como
são as normas jurídicas de disciplina da atividade econômica os principais instrumentos dos
responsáveis pelo governo da produção e circulação de bens e serviços, é inevitável que a
tecnologia jurídica correspondente se permita influir pela consciência das inexoráveis limitações
próprias a essa função estatal.
2. O ESTADO, A ECONOMIA E O DIREITO NO INÍCIO DO
SÉCULO XXI
Os tempos que correm viram a utopia marxista fracassar por inteiro, com o fim das economias
central e globalmente planificadas. Viram também, no entanto, o revigorar do marxismo como
instrumento teórico mais evoluído de compreensão das ações humanas. De fato, somente se podem
entender as relações entre o estado e a economia, no mundo ocidental de passagem do século XX a
XXI, a partir do enfoque de Marx. Explico-me: após o desmantelamento do modelo econômico do
bloco soviético (o antigo “segundo mundo”), opera-se a desarticulação do estado de bem-estar social
nas economias centrais do bloco capitalista (o antigo “primeiro mundo”) e dos seus incipientes
rascunhos nas economias periféricas deste bloco (alguns países do antigo “terceiro mundo”). Numa
palavra, constata-se que o estado capitalista está procurando readquirir um perfil liberal.
Penso, contudo, que há limites para esse processo de redução da participação do estado na
economia. É improvável que retornemos ao modelo pré-1929, ano da grande crise capitalista, que
forçou os mais tradicionais governos liberais a abandonarem políticas de não intervenção. Mas a
tendência, em todo o mundo, é a de desarticulação do estado do bem-estar social, onde ele existe, e a
paralisação ou reversão do processo de sua criação, nas economias que o ensaiavam.
A explicação, nos quadrantes do marxismo, para essa tendência é muito convincente. O estado é
considerado, em tais quadrantes, um dos instrumentos da luta de classe. A classe dominante pode
utilizar, e quase sempre utiliza, a estrutura burocrática do estado para preservar seu poder de
dominação econômica. O estado capitalista, nesse contexto, tem o tamanho variando em relação
direta com o acirramento da luta de classes. O fim da guerra fria, com a vitória dos países
capitalistas liderados pelos Estados Unidos, representou indiscutivelmente o afastamento de ameaças
imediatas à ordem econômica existente nestes países. Ninguém mais tem medo de comunista — isso,
se calhar de ainda encontrar um pela frente —, nos tempos que correm.
Ora, o estado do bem-estar social nunca foi visto pelos marxistas como um resultado positivo da
evolução capitalista, mas simplesmente como meio de conter as insatisfações do operariado quanto
às condições de vida a que se encontram sujeitos. Um meio bastante caro, mas que valia a pena à
burguesia utilizar para impedir que tais insatisfações pudessem se traduzir em revoluções socialistas.
Afastado, pelo menos temporariamente, o perigo de subversão do capitalismo, não se justificam mais
os gastos com a manutenção do welfare state. A tendência de reliberalização do estado se explica
pelo desaparecimento da ameaça de socialização da economia. Até que ponto os trabalhadores
poderão manter suas conquistas, no clima de eufórico triunfalismo do sistema capitalista neoliberal,
somente a dinâmica da luta de classes irá revelar.
No final do século XX, o estado capitalista tenta reassumir feições liberais, que o haviam caracterizado, ideologicamente, na origem. Isto é, ele
procura se livrar de algumas das funções de intervenção na economia, que, após a crise de 1929, lhe foram reservadas.
Esta tentativa se traduz em medidas de interesse para o direito, como a privatização de estatais, a reforma da Previdência e a mudança da
disciplina da concorrência.
Em relação aos efeitos que a reliberalização do estado capitalista pode trazer para o direito, não é
um despropósito antever o ressurgimento de princípios e noções que, ao longo do século XX,
pareceram progressivamente relegados aos capítulos “históricos”, dos compêndios de doutrina.
Penso especificamente nos padrões jurídicos de inspiração liberal centrados na noção de autonomia
da vontade. Revestidos de feições neoliberais, tais postulados jurídicos podem voltar a desempenhar
um papel de relevo na fundamentação de reformas normativas e de decisões administrativas ou
judiciais (Cap. 35, item 3). A distinção entre direito público e privado, de desprestigiadíssima,
poderá voltar a ser, embora renovada, uma importante categoria do pensamento jurídico.
Claro que não predigo um simples e mecânico retorno aos padrões jurídicos do liberalismo
clássico do passado. A crescente complexidade da economia e da própria vida, a necessidade de se
evitarem ao máximo as periódicas crises do capitalismo e a política afastam, de qualquer cenário
projetado, o ressurgimento do estado do laissez-faire. A alteração que a reliberalização em curso
provavelmente projetará no direito deve ser igualmente restrita. Alguns benefícios trabalhistas
poderão vir a ser suprimidos, ficando condicionados à previsão em acordos coletivos intersindicais,
mas o direito do trabalho continuará a existir. Nas relações de consumo, a interpretação
jurisprudencial das normas jurídico-consumeristas pode identificar uma margem maior de atuação da
autonomia privada, mas permanecerão vigentes normas de coibição a práticas comerciais abusivas, e
assim por diante. O ramo jurídico mais sensível a esse processo de mudanças será, claro, o da
disciplina das atividades econômicas. Dependendo das nuanças das relações sociais, talvez se
inverta a tendência antiprivatista que marcou o pensamento jurídico ao longo do século, e o direito
comercial deixe de ser cada vez mais direito econômico.
3. DISCIPLINA PRIVADA DA ATIVIDADE ECONÔMICA
A disciplina jurídica da exploração de atividade econômica tem sido objeto de dois diferentes
níveis de abordagem pela tecnologia. De um lado, temas como o controle de preços, a intervenção do
estado na economia, a fiscalização da localização da atividade, o controle da segurança de uso dos
imóveis comerciais e industriais, a tutela do meio ambiente, e outros, têm atraído a atenção de
estudiosos de diversos sub-ramos do direito público, como o urbanístico, ambiental, econômico,
tributário e administrativo. De outro, as relações obrigacionais envolvendo apenas exercentes de
atividade econômica e particulares, incluindo a concessão de crédito, a tutela dos sinais distintivos,
as relações entre os sócios de um empreendimento, o concurso de credores em caso de insolvência,
constituem objeto de estudo de sub-ramos do direito privado, assim o civil, comercial, cambiário e
industrial. A esses dois níveis de abordagem tecnológica da disciplina jurídica da atividade
econômica, segundo um enfoque assente, mas não inteiramente indiscutível, corresponderiam
diferentes sistemas jurídicos. Haveria algo assim como dois direitos, cada qual com seus próprios
princípios, irredutíveis entre si em certa medida, a justificar a existência de desiguais maneiras para
a sua apreensão.
Na verdade, a distinção entre direito público e privado, embora em diferentes níveis corresponda
historicamente a concepções culturais acerca dos limites entre as esferas do individual e do coletivo,
é, em essência, um conceito da doutrina jurídica, com vistas ao tratamento paraconsistente de seu
objeto. Para Ferraz Jr., a definição da natureza publicista ou privatista dos ramos do direito
corresponde à necessidade de certeza e segurança dos critérios de decidibilidade. A dogmática
jurídica, em sua função de criar as condições para a decidibilidade dos conflitos, com o mínimo de
perturbação social, atende a essa necessidade, na medida em que estabelece princípios básicos para
a operacionalização das normas de cada um desses grandes ramos do direito. Contudo, tais
princípios decorrem, eles próprios, da maneira pela qual a dogmática concebe o ramo com que se
relacionam, e, assim, revelam--se como definições tópicas, como topoi (1988:127/132).
Claro está, portanto, que é infrutífera a tentativa de busca de critérios rigorosos, imunes a
qualquer questionamento lógico, que delineassem com exatidão os limites de cada nível da disciplina
jurídica. Isto não em virtude de alguma episódica característica do tema enfocado, mas em razão
mesmo do caráter quase lógico do direito (cf. Coelho, 1992). O factível, assim, em termos de
elaboração do conhecimento jurídico, cinge-se à definição de conceitos meramente operacionais, que
auxiliem a equação e solução dos conflitos de interesse, no contexto de uma argumentação
retoricamente eficaz. Nesse sentido, se, em sede do regime de direito público, se pode cogitar dos
princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, como os conceitos
operacionais basilares de pelo menos uma de suas divisões (cf. Mello, 1980:3/34), para o regime de
direito privado, ressaltam os da autonomia privada e da igualdade. A disciplina da atividade
econômica pertinente às relações entre particulares se pauta assim no reconhecimento, pela ordem
em vigor, da relativa possibilidade de eles próprios compatibilizarem os seus interesses, num
cenário jurídico de condições equilibradas.
Um dos princípios fundamentais do direito público é o da supremacia do interesse público. Neste ramo do direito, as leis e normas estabelecem
desigualdade nas relações jurídicas, para que o interesse geral prepondere sobre o particular.
Os princípios do direito privado são os da autonomia da vontade e o da igualdade.
No seio da concepção jusnaturalista, a faculdade de os particulares regularem os seus próprios
interesses, por meio de negócios jurídicos celebrados livremente, aparece como atributo natural dos
homens, que a ordem positiva apenas deveria reconhecer e assegurar. A vontade humana, nesse
contexto, é a fonte dos direitos. Com a evolução das ideias políticas e jurídicas, a partir da era
moderna, a possibilidade de autorregulação dos interesses passa a ser entendida, em certa medida,
não mais como direito natural, mas, sim, como faculdade outorgada pelo direito positivo. Assim,
limita-se o seu exercício aos quadrantes definidos pela ordem jurídica. Largos, durante períodos de
liberalização econômica, e estreitos no decorrer de processos de intervenção do estado capitalista na
economia, tais quadrantes estabelecem as balizas dentro das quais atua a vontade dos particulares.
Desse modo, o princípio da autonomia privada experimenta sucessivas redefinições e revela o seu
caráter histórico, reprodutor das nuanças da luta de classes. É bastante provável, por isso, que a onda
liberalizante do final do século XX acabe alargando novamente o campo de eficácia jurídica da
autorregulação dos interesses.
Certamente, o chamado dirigismo econômico importou a restrição da margem de livre atuação da
vontade particular. A anarquia do mercado, se não podia ser de todo eliminada, como pretendido
pelo fracassado ideal socialista de planificação estatal da economia, devia ser pelo menos
controlada, e isto, no plano jurídico, representou o aumento da regulação dos interesses econômicos
pela interferência da ordem positivada, externa à vontade das pessoas diretamente envolvidas.
Diante desse aumento da ingerência estatal nos negócios particulares, alguns teóricos perdem a
referência histórica e passam a tratar a autonomia da vontade como espécie em via de extinção, ante
novos conceitos jurídicos, como os contratos-tipos e a função social da propriedade, por exemplo.
Não lhes importa, aparentemente, que desde sempre, e a despeito do propagado a cada etapa
evolutiva da história das ideias econômicas e jurídicas, a vontade dos particulares foi eficaz na
regulação dos próprios interesses apenas nos limites tolerados pela dinâmica da luta de classes. Em
termos meramente formais, a autonomia da vontade sempre atuou nas raias traçadas pela ordem
positiva, fossem elas mais ou menos largas (cf. Prata, 1982:42/44).
O questionamento que o século XX reservou à autonomia da vontade (cf. Gomes, 1967:9/26)
reflete, sem dúvida, o crescimento da interferência externa à manifestação volitiva dos particulares
na regulação dos seus interesses. Para alguns, como Gianini, essa maior ingerência do estado
representaria apenas a acentuação de uma marca existente já no século passado, e não uma inovação
jurídica propriamente dita, ao que se contrapõe Ana Prata, com razão, afirmando que as formas
adotadas contemporaneamente pela intervenção estatal na economia não têm apenas uma amplitude
quantitativamente diferenciada, mas revelam o surgimento de situação qualitativamente nova
(1982:39). A solução encontrada pelos privatistas, no sentido de abandonar a ideia de voluntarismo
e cunhar a de autonomia privada (Betti, 1950:50/70), corresponde a essa mudança. E, apesar das
limitações experimentadas, o reconhecimento de eficácia jurídica, na regulação dos interesses
particulares pela vontade de seus próprios titulares, fundamenta uma considerável gama de
obrigações. Esta constatação situa a questão dos limites do princípio da autonomia privada como
ponto essencial de qualquer reflexão, hoje, acerca das relações jurídicas entre particulares. Em
outros termos, o tecnólogo do direito não pode, no atual estágio evolutivo das relações sociais e
econômicas, simplesmente desconsiderar a função da autonomia da vontade, na análise da disciplina
das obrigações privadas. Há que se empenhar na pesquisa das balizas delineadas pela ordem
positiva, em cujo interior atua a faculdade de autorregulação dos interesses. Em consequência, devese inverter a tendência, que contaminou o pensamento jurídico--privatista, de examinar todas as
questões atinentes ao exercício da atividade econômica, por um prisma exclusivamente publicístico,
isto é, negando qualquer importância à composição dos interesses pelas manifestações de vontade
dos diretamente envolvidos com o negócio.
O princípio da autonomia da vontade significa que as pessoas podem dispor sobre os seus interesses, por meio de negociações com as outras
pessoas envolvidas. Essas negociações, contudo, geram efeitos jurídicos vinculantes, se a ordem positiva assim o estabelecer.
A autonomia da vontade, assim, é limitada pela lei.
Mas, ressalte-se, se é incorreto repudiar qualquer função atual ao princípio da autonomia privada,
também o é considerá-lo em termos absolutos. Já não há mais como sustentar a visão ingênua (ou,
muito pelo contrário, bastante engenhosa) de homens igualmente livres e capazes celebrando, no
comércio das pretensões, pactos irretratáveis sobre seus interesses comuns. Empregador e
empregado, empresário e consumidor, franqueador e franqueado, atacadista e varejista não se
encontram, no mercado, em igualdade de condições, e, assim, a ordem jurídica, reinterpretando o
princípio da isonomia, tem criado mecanismos de desigualação formal entre os agentes econômicos,
de modo a atenuar as diferenças reais. Entre o forte e o fraco, teria dito Lacordaire já em 1881, a
liberdade escraviza e a lei liberta. A hipossuficiência do empregado, o reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor, o estatuto da microempresa, entre outros, são manifestações do novo
perfil da igualdade entre os particulares que enforma o direito privado. Dessa maneira, o princípio
da isonomia como base para a disciplina das relações entre particulares apresenta-se, hoje, mais
como equalizador de pretensões de sujeitos inequivocamente desiguais, e menos como exclusão de
privilégios. E, nesse diapasão, resgata e enriquece a noção aristotélica de igualdade como
proporcionalidade.
O princípio da igualdade, para fins de disciplina das relações entre pessoas privadas, significou no passado a proibição de privilégios.
Atualmente, significa o amparo jurídico ao economicamente mais fraco, para atenuar os efeitos da desigualdade econômica.
Àqueles dois níveis de abordagem da disciplina da atividade econômica, referidos de início,
corresponderiam, portanto, dois modelos doutrinários distintos: o público, relativo às obrigações e
direitos do exercente da atividade econômica perante o estado, em que as pretensões das partes são
desigualadas para privilegiar os interesses curatelados por esse último; e o privado, pertinente às
obrigações e direitos do exercente da atividade econômica perante outros particulares, em que as
pretensões são desigualadas para que não haja privilégio de qualquer interesse. Em suma, a
compreensão da disciplina privada das atividades econômicas deve ser norteada pelos postulados da
autorregulação dos interesses, observados os limites da ordem positiva, e da equalização das
condições de atuação das partes (Coelho, 2003:11/18).
4. O SISTEMA FRANCÊS (TEORIA DOS ATOS DE
COMÉRCIO)
No direito de tradição romanística, a que se filia o brasileiro, podem ser divisados dois sistemas
de disciplina privada da economia: o francês, em que as atividades econômicas agrupadas em dois
grandes conjuntos, sujeitos a sub-regimes próprios, qualificam-se como civis ou comerciais; e o
italiano, em que se estabelece o regime geral para o exercício das atividades, do qual se exclui a
exploração de algumas poucas, que reclamam tratamento específico. O sistema francês antecede ao
italiano. Seu surgimento ocorre com a entrada em vigor do Code de Commerce, em 1808, documento
legislativo conhecido por Código Mercantil napoleônico, de forte influência na codificação
oitocentista. Já o sistema italiano surge depois de mais de um século, em 1942, quando é aprovado
pelo Rei Vittorio Emanuele III o Codice Civile, diploma unificador da legislação peninsular de
direito privado.
A elaboração doutrinária fundamental do sistema francês é a teoria dos atos de comércio, vista
como instrumento de objetivação do tratamento jurídico da atividade mercantil. Isto é, com ela, o
direito comercial deixou de ser apenas o direito de uma certa categoria de profissionais, organizados
em corporações próprias, para se tornar a disciplina de um conjunto de atos que, em princípio,
poderiam ser praticados por qualquer cidadão.
Para Ascarelli (1962:29/74), sempre existiram regras sobre matéria mercantil, inclusive em
normatizações antigas, como o Código de Hammurabi. Não houve, contudo, um sistema de direito
comercial, ou seja, um conjunto de normas sobre o comércio coordenadas por princípios comuns,
senão a partir do que ele chama de civilização comunal — na verdade, apenas uma referência às
corporações medievais —, que nasce no seio do feudalismo. A partir da segunda metade do século
XII, com os comerciantes e artesãos se reunindo em corporações de artes e ofícios, inicia-se o
primeiro período histórico do direito comercial. Nele, as corporações de comerciantes constituem
jurisdições próprias cujas decisões eram fundamentadas principalmente nos usos e costumes
praticados por seus membros. Resultante da autonomia corporativa, o direito comercial de então se
caracteriza pelo acento subjetivo e apenas se aplica aos comerciantes associados à corporação. Mas
já nesse primeiro período histórico, muitos dos principais institutos do direito comercial, como o
seguro, a letra de câmbio, a atividade bancária, são esboçados e desenvolvidos. A península itálica
pode ser vista como o cenário de referência para essa etapa evolutiva do direito mercantil, em razão
de sua localização estratégica para as cruzadas e da importância das cidades italianas no comércio
internacional.
A história do direito comercial é normalmente dividida em quatro períodos. No primeiro, entre a segunda metade do século XII e a segunda do
XVI, o direito comercial é o direito aplicável aos integrantes de uma específica corporação de ofício, a dos comerciantes. Adota-se, assim, um
critério subjetivo para definir seu âmbito de incidência. A letra de câmbio, os bancos e o seguro são exemplos de institutos já existentes nesse
período.
Na última metade do século XVI, historia Ascarelli, com o florescer do mercantilismo, inicia-se o
segundo período do direito comercial, em que o centro de referência se desloca para o Ocidente. No
processo de unificação nacional da Inglaterra e da França, a uniformização das normas jurídicas
sobre as atividades econômicas desempenha papel de especial importância, antecedendo em certa
medida a própria criação da identidade cultural e política. Consideráveis diferenças, no entanto,
existem entre a criação do estado nacional inglês e o francês, com significativas repercussões no
tratamento jurídico-privado da economia. Na ilha, a absorção da jurisdição das corporações
mercantis pelos tribunais da Common Law é, por assim dizer, total, enquanto no continente ocorre um
processo parcial. Em França, as corporações dos comerciantes, paulatinamente, perdem competência
jurisdicional para tribunais do estado nacional em gestação, mas continua a existir um direito
fundado nos usos e costumes dos comerciantes e apenas a eles aplicável — caracterizado, portanto,
pelo subjetivismo. A evolução do processo inglês, com a modernização experimentada por meio da
equity, acaba por distanciar ainda mais o seu modelo de disciplina das atividades econômicas do
francês. O direito de tradição inglesa, ao contrário do de tradição romanística, desde este período,
não conhece distinção entre atividades comerciais e civis.
Da segunda etapa evolutiva do direito comercial, uma significativa contribuição para os institutos
deste ramo jurídico é a sociedade anônima que, comparada às sociedades de pessoas então
existentes, acabou se revelando muito mais adequada aos empreendimentos mercantis da expansão
colonial, os quais demandavam vultosos aportes de capital e limitação de riscos.
No segundo período de sua história (séculos XVI a XVIII), o direito comercial ainda é, na Europa Continental, o direito dos membros da
corporação dos comerciantes. Na Inglaterra, o desenvolvimento da Common Law contribui para a superação dessa característica. O mais
importante instituto do período é a sociedade anônima.
O terceiro período da evolução histórica do direito mercantil, segundo ainda Ascarelli, inicia-se
com a codificação napoleônica. A objetivação do direito comercial, isto é, a sua transformação em
disciplina jurídica aplicável a determinados atos e não a determinadas pessoas, relaciona-se não
apenas com o princípio da igualdade dos cidadãos, mas também com o fortalecimento do estado
nacional ante os organismos corporativos (1962:66). Claro está que a mudança não desnatura o
direito comercial como conjunto de normas protecionistas dos comerciantes, uma vez que preceitos
sobre recuperação judicial e extrajudicial (instituto sucedâneo da concordata), extinção das
obrigações na falência ou eficácia probatória da escrituração mercantil permanecem em vigor até
hoje. O sentido da passagem para a terceira etapa evolutiva do direito comercial, ou seja, da adoção
da teoria dos atos de comércio como critério de identificação do âmbito de incidência deste ramo da
disciplina jurídica, restringe-se à abolição do corporativismo. Em outros termos, a partir do terceiro
período histórico do direito comercial, qualquer cidadão pode exercer atividade mercantil, e não
apenas os aceitos em determinada associação profissional (a corporação de ofício dos
comerciantes). Contudo, uma vez explorando o comércio, passa a gozar de alguns privilégios
concedidos por uma disciplina jurídica específica.
O terceiro período (séculos XIX e primeira metade do XX) se caracteriza pela superação do critério subjetivo de identificação do âmbito de
incidência do direito comercial. A partir do código napoleônico, de 1808, ele não é mais o direito dos comerciantes, mas dos “atos de comércio”.
O Código Civil de Napoleão, de 1804, influenciou fortemente toda a codificação oitocentista dos
direitos de tradição romanística, tanto em decorrência da conquista armada como pelo seu
reconhecido valor jurídico (Limpens, 1956). Por sua vez, o Código Mercantil do período
napoleônico de 1807, embora tenha exercido influência menor em razão de sua inferioridade técnica,
também transmitiu a sua marca para os códigos de muitos países de língua latina, como o belga de
1811, o espanhol de 1829, o português de 1833, o italiano de 1882 e os de países sul-americanos
(Ripert-Roblot, 1947:48/49). Deste modo, a teoria dos atos de comércio alcançou o direito vigente
em considerável parcela do mundo ocidental, não penetrando somente na Alemanha e nos países da
Common Law.
A teoria dos atos de comércio resume-se, rigorosamente falando, a uma relação de atividades
econômicas, sem que entre elas se possa encontrar qualquer elemento interno de ligação, o que
acarreta indefinições no tocante à natureza mercantil de algumas delas. Embora haja quem considere
a imprecisão inerente à teoria dos atos de comércio (Vicente y Gella, 1934:37/41), vários
comercialistas dedicaram-se à tentativa de localizar o seu elemento de identidade no próprio elenco
de atos mercantis. Uma delas, de menor inconsistência, é a de Rocco, para quem os atos comerciais
são os que realizam ou facilitam uma interposição na troca. Partindo da relação de atos mercantis
constante do art. 3º do Codice di Commercio del Regno D’Italia, de 1882, Rocco inicialmente os
distingue como atos intrinsecamente comerciais, para em seguida classificá-los em quatro categorias:
compra para revenda, operações bancárias, empresas e seguros. Nessas quatro espécies de atos de
comércio, identifica então o elemento comum da troca indireta, isto é, a interposição na efetivação da
troca. Na compra para revenda, dinheiro é cambiado com bens ou títulos; nas operações bancárias,
permuta-se dinheiro presente por dinheiro futuro; nas empresas, resultados do trabalho são trocados
por dinheiro e outros benefícios econômicos; e nos seguros, o risco individual se troca pela cotaparte do risco coletivo (1928:218/222).
O elo entre as diversas atividades abrangidas pelo elenco dos atos de comércio, contudo, não se
encontra senão externamente. Isto é, a unidade dos atos mercantis reside apenas em sua relação com
as atividades profissionais de uma classe social, a burguesia. A exclusão da negociação de imóveis
do âmbito de incidência do direito comercial pelo Code de Commerce de 1807 — que não se
reproduz em outras legislações adeptas da teoria dos atos de comércio, a exemplo do código italiano
de 1882 — é, por vezes, relacionada a um caráter sacro de que se revestiria a propriedade
imobiliária ou pela tardia distinção entre circulação física e econômica dos bens (Estrella,
1973:101/114). Porém, esta exclusão só pode ser satisfatoriamente explicada à luz de considerações
políticas e históricas, ou seja, a partir da necessidade de a burguesia francesa preservar a sua
identidade na luta contra o feudalismo. Na Inglaterra, em que a construção do estado nacional é
produto de uma aliança entre a nobreza feudal e a burguesia, onde o desenvolvimento do capitalismo
prescindiu da tomada pela força do poder político, a disciplina jurídico-privada da economia pôde
tratar indistintamente as atividades lucrativas exercidas pela classe burguesa e as relacionadas com a
exploração da terra, que são típicas do senhor feudal. Em França, ao contrário, explica-se a
preservação do direito próprio às atividades lucrativas exploradas pela burguesia, não confundido
com o aplicável aos negócios da terra, porque lá ela se viu na contingência de se organizar enquanto
classe social, para tomar o poder político das mãos da nobreza feudal. O fracionamento do direito
privado em diferentes regimes para as atividades comerciais e civis, característico da teoria dos atos
de comércio, decorre de fatores externos à tecnologia jurídica; ou, em termos mais usuais da
doutrina, não se reveste, como disse Requião, de “consistência científica” (1971:34).
Em 2000, foi editado novo Code de Commerce na França. Resultado de uma Ordenança cujos
objetivos era a sistematização dos textos legais e regulamentares esparsos e sua harmonização com
normas hierarquicamente superiores, o novo diploma manteve a teoria dos atos de comércio como
núcleo do direito comercial francês. Contemplou duas categorias: os atos de comércio pela forma e
os pela natureza. Na primeira, estão as sociedades que adotam a forma de nome coletivo, em
comandita simples, de responsabilidade limitada e anônima; na segunda, está a lista de atos do antigo
Code acrescida da compra de imóveis para revenda e operações no mercado financeiro. A rigor, a
noção de atos de comércio pela forma acaba aproximando o sistema francês do italiano, objeto de
estudo no item seguinte.
5. O SISTEMA ITALIANO (TEORIA DA EMPRESA)
Na Itália, a bipartição da disciplina privada da economia começou a preocupar a doutrina jurídica
ainda no final do século passado, sendo significativa a este respeito a defesa por Vivante, na aula
inaugural de seu curso na Universidade de Bolonha, em 1892 (cf. Bulgarelli, 1977:59), da tese pelo
fim da autonomia do direito comercial. Suscitou, então, cinco argumentos em favor da superação da
divisão básica no direito privado. De início, questionou a sujeição de não comerciantes (os
consumidores) a regras elaboradas a partir de práticas mercantis desenvolvidas pelos comerciantes e
em seu próprio interesse. Como cidadão, deplorou o fato de o Código Comercial, considerado por
ele lei de classe, perturbar a solidariedade social, que deveria ser o objetivo supremo do legislador.
Em segundo lugar, lembrou que a autonomia do direito comercial importava desnecessária
litigiosidade para a prévia discussão da natureza civil ou mercantil do foro, na definição de prazos,
ritos processuais e regras de competência. Outra razão invocada para a superação da dicotomia foi a
insegurança decorrente do caráter exemplificativo do elenco dos atos de comércio. Uma pessoa, que
pensava exercer atividade civil, podia ser surpreendida com a declaração de sua falência, inclusive
em função de inesperados desdobramentos penais. Também pretendia Vivante que a duplicidade de
disciplinas sobre idênticos assuntos era fonte de dificuldades. Por fim, a autonomia do direito
comercial atuava negativamente no progresso científico, na medida em que o estudioso da matéria
comercial perdia a noção geral do direito das obrigações (1922:1/25). Vivante, no entanto, não
insistiu nessas críticas à autonomia do direito comercial; em 1919, após ser nomeado presidente da
comissão de reforma da legislação comercial na Itália, abandonou a tese da unificação e elaborou um
projeto de Código Comercial específico.
Em 1942, o Codice Civile passa a disciplinar, na Itália, tanto a matéria civil como a comercial, e
a sua entrada em vigor inaugura a última etapa evolutiva do direito comercial nos países de tradição
romanística. É fato que a uniformização legislativa do direito privado já existia em parte na Suíça,
desde 1881, com a edição de código único sobre obrigações, mas será o texto italiano que servirá de
referência doutrinária porque, embora posterior, é acompanhado de uma teoria substitutiva à dos atos
de comércio. Com certeza, não basta a reunião da disciplina privada das atividades econômicas num
mesmo diploma legal, para que se eliminem as diferenças de tratamento entre as comerciais e as
civis. É necessária ainda uma noção teórica capaz de se constituir o modelo para esta disciplina, um
sistema que se contraponha ao francês e o supere. Se a legislação suíça já não apresenta diferenças
entre as atividades dos comerciantes e a dos não comerciantes, sob o ponto de vista da disciplina das
obrigações, não veio a inovação acompanhada de uma reflexão doutrinária mais abrangente, que
projetasse seus efeitos no mundo jurídico de tradição romanística.
O modelo italiano de regular o exercício da atividade econômica, sob o prisma privatístico,
encontra a sua síntese na teoria da empresa. Vista como a consagração da tese da unificação do
direito privado (Ascarelli, 1962:127; Ferrara, 1952:15), essa teoria, contudo, bem examinada,
apenas desloca a fronteira entre os regimes civil e comercial. No sistema francês, excluem-se
atividades de grande importância econômica — como a prestação de serviços, agricultura, pecuária,
negociação imobiliária — do âmbito de incidência do direito mercantil, ao passo que, no italiano, se
reserva uma disciplina específica para algumas atividades de menor expressão econômica, tais as
dos profissionais liberais ou dos pequenos comerciantes. A teoria da empresa é, sem dúvida, um
novo modelo de disciplina privada da economia, mais adequado à realidade do capitalismo superior.
Mas por meio dela não se supera, totalmente, um certo tratamento diferenciado das atividades
econômicas. O acento da diferenciação deixa de ser posto no gênero da atividade e passa para a
medida de sua importância econômica. Por isso é mais apropriado entender a elaboração da teoria
da empresa como o núcleo de um sistema novo de disciplina privada da atividade econômica e não
como expressão da unificação dos direitos comercial e civil.
O marco inicial do quarto e último período da história do direito comercial é a edição, em 1942 na Itália, do Codice Civile, que reúne numa
única lei as normas de direito privado (civil, comercial e trabalhista). Neste período, o núcleo conceitual do direito comercial deixa de ser o
“ato de comércio”, e passa a ser a “empresa”.
Conceitua-se empresa como sendo atividade, cuja marca essencial é a obtenção de lucros com o
oferecimento ao mercado de bens ou serviços, gerados estes mediante a organização dos fatores de
produção (força de trabalho, matéria-prima, capital e tecnologia). Esse modo de conceituar empresa,
em torno de uma peculiar atividade, embora não seja totalmente isento de imprecisões (Bulgarelli,
1985:175/199), é corrente hoje em dia entre os doutrinadores. No passado, contudo, muito se
discutiu sobre a unidade da noção jurídica da empresa, que era vista como resultante de diferentes
fatores, objetivos e subjetivos (cf. Fanelli, 1950:73/75). Certo entendimento bastante prestigiado
considerava-a, em termos jurídicos, um conceito plurivalente. Para Asquini (1943), não se deve
pressupor que o fenômeno econômico poliédrico da empresa necessariamente ingresse no direito por
um esquema unitário, tal como ocorre na ciência econômica. Ele divisa, por conseguinte, quatro
perfis na empresa: subjetivo, funcional, patrimonial (ou objetivo) e corporativo. Pelo primeiro, a
empresa é vista como empresário, isto é, o exercente de atividade autônoma, de caráter organizativo
e com assunção de risco. Pelo perfil funcional, identifica-se a empresa à própria atividade. Pelo
terceiro perfil, corresponde ao patrimônio aziendal ou estabelecimento. E, por fim, pelo perfil
corporativo, ela é considerada uma instituição, na medida em que reúne pessoas — empresário e
seus empregados — com propósitos comuns.
A visão multifacetária da empresa proposta por Asquini, sem dúvida, recebe apoio entusiasmado
de alguma doutrina (entre nós, Marcondes, 1977:7/8), mas dos quatro perfis delineados apenas o
funcional realmente corresponde a um conceito jurídico próprio (cf. Ferrara, 1945:90/91). Os perfis
subjetivo e objetivo não são mais que uma nova denominação para os conhecidos institutos de sujeito
de direito e de estabelecimento empresarial. O perfil corporativo, por sua vez, sequer corresponde a
algum dado de realidade, pois a ideia de identidade de propósitos a reunir na empresa proletários e
capitalista apenas existe em ideologias populistas de direita, ou totalitárias (como a fascista, que
dominava a Itália na época).
Empresa é a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. Sendo uma atividade, a empresa não tem a
natureza jurídica de sujeito de direito nem de coisa. Em outros termos, não se confunde com o empresário (sujeito) nem com o estabelecimento
empresarial (coisa).
Como atividade econômica, profissional e organizada, a empresa tem estatuto jurídico próprio,
que possibilita o seu tratamento com abstração até mesmo do empresário. Claro que a autonomia da
empresa frente ao capitalista empreendedor deve ser entendida como mero expediente
técnico-jurídico, não podendo servir para fundamentar visões irrealistas. Já houve quem, por
exemplo, negasse aos administradores de sociedades por ações a qualidade de “mandatários” dos
acionistas, por entender que eles representariam não somente o capital, mas todas as forças
engajadas na empresa, que deveria ser dirigida com vistas à realização dos interesses comuns dessas
forças (Ripert, 1951:286). A separação entre empresa e empresário é apenas um conceito jurídico,
destinado a melhor compor os conflitos de interesses relacionados com a produção ou circulação de
certos bens ou serviços. É fato que muitos interesses gravitam em torno da empresa, isto é, muitas
pessoas, além dos sócios da sociedade empresária, têm interesse no desenvolvimento da atividade
empresarial. Assim, figura com crescente importância, entre os fundamentos da disciplina jurídica da
atividade econômica da atualidade, o princípio da preservação da empresa, isto é, do
empreendimento, da atividade em si. Isso explica porque cada vez mais a preocupação do processo
falimentar tem sido a de garantir a não interrupção do desenvolvimento da atividade econômica
explorada pelo falido, com o seu afastamento e responsabilização (Coelho, 2005). Isto em atenção
aos muitos interesses que gravitam em torno da empresa, como os titularizados pelos empregados,
pela comunidade, pelos consumidores etc. A dissociação entre empresa e empresário é tema de
reflexão doutrinária da maior envergadura (cf. Despax, 1957), e seus resultados na legislação e
jurisprudência se fazem já sentir há algum tempo, inclusive no Brasil (cf. Grau, 1981:122/133),
porém — repita-se — não é mais que um conceito operacional do direito, criado para a tutela, em
parte, dos interesses de trabalhadores, consumidores, investidores e outros.
O sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica, sintetizado pela teoria da
empresa, acabou superando o francês, ou seja, as legislações de direito privado sobre matéria
econômica, a partir de meados do século XX, não têm mais dividido os empreendimentos em duas
categorias (civis e comerciais), para submetê-los a regimes distintos. A isso, têm preferido os
legisladores criar um regime geral para a disciplina privada da economia, excepcionando algumas
atividades de expressão econômica marginal. A teoria dos atos de comércio vê-se substituída pela da
empresa, ainda que não se adotem, na lei ou na doutrina, exatamente estas designações para fazer
referência, respectivamente, ao modelo francês de partição das atividades, ou ao italiano, de regime
geral parcialmente excepcionado. Até mesmo em França, onde nasceu, o sistema de dupla disciplina
privada das atividades econômicas se encontra hoje bastante descaracterizado, já que se submetem à
jurisdição comercial, independentemente de seu objeto, as sociedades anônimas (desde 1893), de
responsabilidade limitada (desde 1925) e as em nome coletivo e em comandita (desde 1966), o que,
concretamente, aproxima a legislação francesa ao modelo italiano.
6. FILIAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO AO SISTEMA
FRANCÊS EM 1850
No século XVIII, o sistema colonial ibérico representava um verdadeiro anacronismo. Portugal e
Espanha, embora possuíssem as colônias de maior extensão e riquezas, não ocupavam mais, no
cenário das potências europeias, a posição de destaque que lhes haviam proporcionado as grandes
descobertas de três séculos antes. A Inglaterra, a França e, até certo ponto, a Holanda, nações
centrais em termos de importância política e econômica, disputavam, pelas armas e pela diplomacia,
as possessões portuguesas e espanholas na América. No contexto, surge o bloqueio continental
imposto por Napoleão, que pôs fim às renovadas tentativas protelatórias do regente português de
evitar se definir entre a preservação da histórica aliança com a Inglaterra e a submissão ao poderio
militar francês. Protegido pela força naval inglesa, e trazendo consigo dez mil pessoas, entre nobres
e funcionários burocráticos, ele aportou em Salvador, em 24 de janeiro de 1808 (cf. Prado Jr.,
1945:123/131).
A história do direito comercial brasileiro se inicia nesse momento, com a abertura dos portos às
nações amigas, decretada com a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808. Édito de caráter
expressamente provisório, acabou, no entanto, criando condições econômicas de fato irreversíveis.
Naquele ano, ainda, outros importantes atos de disciplina do comércio foram editados, como o
Alvará de 1º de abril, permitindo o livre estabelecimento de fábricas e manufaturas; o de 23 de
agosto, instituindo o Tribunal da Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação; e o
de 12 de outubro, criando o Banco do Brazil. A edição dessas normas teve não apenas o sentido de
propiciar as condições de vida reclamadas pela presença da real corte portuguesa em solo colonial,
mas também, e principalmente, o de atender às pressões do imperialismo inglês. Pela proteção
oferecida em face do perigo napoleônico, a Inglaterra cobrou pesado preço, passando a interferir
diretamente nos negócios do frágil estado português, especialmente em relação à sua imensa
possessão colonial na América do Sul. Para se ter uma ideia da medida da ingerência britânica na
economia da colônia, basta lembrar que, entre 1810 e 1816, os produtos ingleses importados pelo
Brasil eram taxados em alíquota inferior (15%) à dos portugueses (16%).
Com a paz na Europa, em 1815, e o retorno, um tanto forçado, do então Rei D. João VI à sua terra,
em 1821, criaram-se as condições políticas para o surgimento do estado brasileiro. O rompimento,
sob o ponto de vista econômico, da dependência colonial com a metrópole portuguesa, em razão da
presença marcante das potências europeias no nosso comércio, reclamava a independência política,
que, aos gritos, veio ocorrer em 1822. Para suprir a carência de legislação própria, a Assembleia
Constituinte e Legislativa, eleita no ano seguinte, determinou a aplicação no Brasil das leis
portuguesas, vigentes na data do retorno a Portugal de D. João VI. Entre estas, a doutrina destaca a
curiosa Lei da Boa Razão, de 1769, que em matéria comercial determinava a observância das leis
vigorantes nas “nações cristãs, iluminadas e polidas, que com elas estavam resplandecendo na boa,
depurada e sã jurisprudência” (Requião, 1971:15). Desta forma, o Código Comercial napoleônico, o
português e o espanhol passaram a constituir as normas disciplinadoras da exploração da atividade
econômica do novo estado.
O Brasil vivia, então, uma época de crescimento econômico, chegando a ser mais atraente que
certos lugares da Europa. Tanto assim que o próprio rei português adiou o quanto pôde seu regresso.
Os invasores franceses já haviam sido expulsos de Portugal pelos ingleses desde 1809, Napoleão
Bonaparte já havia sido derrotado em Waterloo, em 1815, mas a corte portuguesa continuava sediada
no Rio de Janeiro, desenvolvendo grandes e promissores empreendimentos, numa economia em real
expansão. Reclamava-se, para atender a essa vitalidade econômica, um Código Comercial próprio,
em substituição à disciplina lacunosa e contraditória, decorrente da remissão a legislações
estrangeiras. A lei, no entanto, somente veio a ser aprovada pelo Imperador D. Pedro II em 1850, a
partir de projeto iniciado dezessete anos antes.
O Código Comercial brasileiro inspirou-se diretamente no Code de Commerce e, assim, trouxe
para o direito nacional o sistema francês de disciplina privada da atividade econômica. O próprio
Código não menciona a expressão “atos de comércio” e tampouco os enumera. Na tramitação do
projeto pelo senado, apresentou-se emenda para introduzir no texto o elenco dos atos mercantis, à
semelhança do existente no diploma napoleônico, mas a iniciativa não prosperou, em razão da
imprecisão da teoria, cujos efeitos na doutrina e jurisprudência já eram conhecidos e temidos (cf.
Requião, 1971:38; Bulgarelli, 1977:67). Contudo, a despeito dessa proposital inexplicitação, todos
os dispositivos do Código são acentuadamente marcados pela teoria dos atos de comércio. E, de
qualquer modo, a legislação brasileira não teve como fugir do elenco normativo desses atos,
editando-se, ainda em 1850, o Regulamento n. 737, diploma processual de qualidade técnica
destacada, em cujo art. 19 definem-se as atividades sujeitas à jurisdição dos Tribunais do Comércio.
Regulamento n. 737, de 1850
Art. 19. Considera-se mercancia:
§ 1º A compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes, para os vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados,
ou para alugar o seu uso;
§ 2º As operações de câmbio, banco e corretagem;
§ 3º As empresas de fábrica, de comissões, de depósito, de expedição, consignação e transporte de mercadorias, de espetáculos públicos;
§ 4º Os seguros, fretamentos, riscos e quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo;
§ 5º A armação e expedição de navios.
Mesmo com a extinção dos Tribunais do Comércio, em 1875, continuou o direito brasileiro a
disciplinar a atividade econômica a partir do critério fundamental da teoria dos atos de comércio,
isto é, contemplando dois diferentes regimes basilares (civil e comercial). Neste sentido, ao se criar
em 1934, com a chamada Lei de Luvas, a tutela do fundo de comércio, reservou-se o direito à
renovação compulsória do contrato de locação apenas aos exercentes de atividades comerciais e
industriais. Por outro lado, a eficácia probatória da escrituração sempre foi tratada, pela legislação
processual, como privilégio de comerciantes. E, por fim, a execução judicial coletiva do patrimônio
do devedor insolvente nunca foi unificada no direito brasileiro, prevendo-se a falência aos
comerciantes e a insolvência civil para os demais exercentes de atividade econômica.
A lista de atividades estabelecida pelo Regulamento n. 737 continuou servindo de referência
doutrinária para a definição do campo de incidência do direito comercial brasileiro, mesmo após a
sua revogação. Somente a partir dos anos 1960, quando o direito brasileiro inicia o processo de
aproximação ao sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica, a lista do velho
regulamento imperial vê diminuída sua importância.
7. APROXIMAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO AO SISTEMA
ITALIANO
Na mesma tendência dos demais países de tradição romanística, o Brasil tem se aproximado
paulatinamente do modelo italiano, isto é, do estabelecimento de um regime geral de disciplina
privada da atividade econômica, que apenas não alcança certas modalidades de importância
marginal. Se considerarmos as várias tentativas de codificação do nosso direito privado, desde o
esboço de Teixeira de Freitas até o projeto de Miguel Reale, tem prevalecido a tese da unificação. O
projeto Inglês de Sousa do Código Comercial foi apresentado, em 1912, ao governo Hermes da
Fonseca, juntamente com a alternativa de um código único de direito privado. Em 1941, o ministro
Francisco Campos recebeu de Orozimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimarães o
anteprojeto de código das obrigações. A mesma orientação unificadora esteve presente no código
encomendado a Caio Mário da Silva Pereira em 1961, e encaminhado ao Congresso em 1965. Em
suma, nas muitas oportunidades em que se intentou reformar o Código Comercial, apenas numa delas,
no projeto Florêncio de Abreu de 1950, prestigiou-se a proposta de codificação própria da matéria
mercantil (Borges, 1959:48/51).
Com a aprovação do projeto de Código Civil de Miguel Reale, que tramitou no Congresso entre
1975 e 2002, o direito privado brasileiro conclui seu demorado processo de transição entre os
sistemas francês e italiano. À semelhança do anteprojeto de 1965, de cujo livro III sobre a atividade
negocial encarregou-se Sylvio Marcondes, o Código Civil inspira-se no Codice Civile e, adotando
expressamente a teoria da empresa, incorpora o modelo italiano de disciplina privada da atividade
econômica. A despeito de seu inegável envelhecimento precoce em muitos aspectos, trata-se de texto
sintonizado com a evolução dos sistemas de tratamento da economia, pelo ângulo das relações entre
os particulares.
O Código Civil define empresário como o profissional exercente de atividade econômica
organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços (art. 966), sujeitando-o às
disposições de lei referentes à matéria mercantil (art. 2.037). Exclui do conceito de empresário o
exercente de atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, mesmo que conte com
o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se constituir o exercício da profissão elemento de
empresa (art. 966, parágrafo único). Esse dispositivo alcança, grosso modo, o chamado profissional
liberal (advogado, dentista, médico, engenheiro etc.), que apenas se submete ao regime geral da
atividade econômica se inserir a sua atividade específica numa organização empresarial (na
linguagem normativa, se for “elemento de empresa”). Caso contrário, mesmo que empregue terceiros,
permanecerá sujeito somente ao regime próprio de sua categoria profissional. Em situação diversa,
encontram-se os empresários rurais, que são dispensados de inscrição no registro de empresa e dos
demais deveres impostos aos inscritos (art. 970). Não são, por evidente, excluídos do conceito de
empresário, tal como os profissionais liberais, mas podem, por ato unilateral de vontade (inscrição
no registro de empresa), ingressar ou não no regime geral de disciplina da atividade econômica.
Código Civil
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou
de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o
concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil, pode-se afirmar que o direito brasileiro já
vinha adotando fundamentalmente a teoria da empresa. A evolução do nosso direito não ficou
dependendo da reforma da codificação. Apesar da vigência de um Código Comercial ainda inspirado
na teoria dos atos de comércio, a doutrina, jurisprudência e a própria legislação esparsa cuidaram de
ajustar o direito comercial, para que pudesse cumprir sua função de solucionar conflitos de
interesses entre os empresários por critérios mais adequados à realidade econômica do último quarto
do século XX. Isto se pode afirmar não apenas em razão da doutrina e jurisprudência — ou mesmo
de decisões de juízes de primeiro grau afinadas com as modernas concepções de disciplina privada
da economia, de que era significativo exemplo a concessão de concordata preventiva aos pecuaristas
em Minas Gerais —, mas sobretudo em função da própria legislação editada a partir dos anos 1990.
Registre-se, a propósito, que as últimas grandes inovações legislativas no direito privado
brasileiro do século XX não mais prestigiaram o modelo francês de disciplina privada da atividade
econômica. O Código de Defesa do Consumidor, de 1990, trata a todos os fornecedores
independentemente do gênero de atividade em que operam, submetendo a mesmo tratamento jurídico
os empresários do ramo imobiliário, industriais, prestadores de serviços, banqueiros e comerciantes.
A Lei n. 8.245/91, que dispõe sobre a locação predial urbana, introduziu pequenas alterações na
disciplina da renovação compulsória do contrato de locação, de imóvel destinado a abrigar a
exploração de atividade econômica, para estender o direito à ação renovatória às sociedades civis
com fins lucrativos, eliminando o privilégio que a Lei de Luvas havia estabelecido em favor apenas
dos exercentes de atividade comercial (Cap. 5). Também cabe mencionar que a reforma do Registro
de Comércio, levada a efeito pela Lei n. 8.934/94, que passou, inclusive, a denominá-lo “Registro de
Empresas e Atividades Afins”, não obstante algumas imprecisões conceituais, teve o sentido geral de
atender à tendência de superação da teoria dos atos de comércio (Cap. 4).
São duas as importantes consequências da configuração de certa atividade econômica como
sujeita ao direito comercial: de um lado, a execução judicial concursal do patrimônio do empresário
por meio de procedimento próprio, isto é, a falência, e, de outro, a possibilidade de requerer a
recuperação judicial da empresa ou a homologação da recuperação extrajudicial. Nenhuma outra
distinção de relevo, quanto ao regramento de suas relações com os demais particulares, separa hoje
os empresários e os exercentes de atividades civis (profissionais intelectuais, cooperativas e
empresários rurais não inscritos no registro das empresas). Claro que há, pontualmente, algumas
outras diferenças de tratamento, a exemplo das chamadas obrigações comuns aos empresários
(escrituração, levantamento de balanços), ou a da prova do vínculo contratual e do efetivo
cumprimento das obrigações como requisito para o protesto por indicações de duplicata de prestação
de serviços, condição inexistente para a duplicata mercantil. Mas, de qualquer forma, em termos
gerais, ao contrário do que se verificava no passado, sob a égide da teoria dos atos de comércio, é
cada vez mais dispensável discernir a natureza civil ou empresarial do exercente de atividade
econômica, para aplicar o direito em vigor no Brasil.
Em suma, deve-se situar o direito brasileiro, no que diz respeito aos modelos de disciplina
privada da atividade econômica, entre os que adotam o sistema italiano, caracterizado pelo
estabelecimento de regime geral marginalmente excepcionado.
O direito comercial brasileiro filia-se, desde o último quarto do século XX, à teoria da empresa. Nos anos 1970, a doutrina comercialista
estuda com atenção o sistema italiano de disciplina privada da atividade econômica. Já nos anos 1980, diversos julgados mostram-se guiados
pela teoria da empresa para alcançar soluções mais justas aos conflitos de interesse entre os empresários. A partir dos anos 1990, pelo menos
três leis (Código de Defesa do Consumidor, Lei de Locações e Lei do Registro do Comércio) são editadas sem nenhuma inspiração na teoria dos
atos de comércio.O Código Civil de 2002 conclui a transição, ao disciplinar, no Livro II da Parte Especial, o direito de empresa.
8. DO DIREITO COMERCIAL AO DIREITO EMPRESARIAL
Direito comercial é a designação tradicional do ramo jurídico que tem por objeto os meios
socialmente estruturados de superação dos conflitos de interesse entre os exercentes de atividades
econômicas de produção ou circulação de bens ou serviços de que necessitamos todos para viver.
Note-se que não apenas as atividades especificamente comerciais (intermediação de mercadorias, no
atacado ou varejo), mas também as industriais, bancárias, securitárias, de prestação de serviços e
outras, estão sujeitas aos parâmetros (doutrinários, jurisprudenciais e legais) de superação de
conflitos estudados pelo direito comercial. Talvez seu nome mais adequado, hoje em dia, fosse
direito empresarial . Qualquer que seja a denominação, o direito comercial (mercantil, de empresa
ou de negócios) é uma área especializada do conhecimento jurídico. Sua autonomia, como disciplina
curricular ou campo de atuação profissional específico, decorre dos conhecimentos extrajurídicos
que professores e advogados devem buscar, quando o elegem como ramo jurídico de atuação. Exigese do comercialista não só dominar conceitos básicos de economia, administração de empresas,
finanças e contabilidade, como principalmente compreender as necessidades próprias do empresário
e a natureza de elemento de custo que o direito muitas vezes assume para este (Cap. 1). Quem
escolhe o direito comercial como sua área de estudo ou trabalho deve estar disposto a contribuir
para que o empresário alcance o objetivo fundamental que o motiva na empresa: o lucro. Sem tal
disposição, será melhor — para o estudioso e profissional do direito, para os empresários e para a
sociedade — que ele dedique seus esforços a outra das muitas e ricas áreas jurídicas.
No Brasil, a autonomia do direito comercial vem referida na Constituição Federal, que, ao listar
as matérias da competência legislativa privativa da União, menciona “direito civil” em separado de
“comercial” (CF, art. 22, I). Note-se que não compromete a autonomia do direito comercial a opção
do legislador brasileiro de 2002, no sentido de tratar a matéria correspondente ao objeto desta
disciplina no Código Civil (Livro II da Parte Especial), já que a autonomia didática e profissional
não é minimamente determinada pela legislativa. Também não compromete a autonomia da disciplina
a adoção, no direito privado brasileiro, da teoria da empresa. Como visto, a bipartição dos regimes
jurídicos disciplinadores de atividades econômicas não deixa de existir, quando se adota o critério
da empresarialidade para circunscrever os contornos do âmbito de incidência do direito comercial.
Aliás, a teoria da empresa não importa nem mesmo a unificação legislativa do direito privado. Na
Espanha, desde 1989, o Código do Comércio incorpora os fundamentos dessa teoria, permanecendo
diploma separado do Código Civil.
No Brasil, consideram alguns autores que o Código Civil teria levado à unificação do direito das
obrigações. Bem examinada a questão, no entanto, nota-se o desacerto do argumento. Os contratos
entre os empresários, no direito brasileiro, em nenhum momento submeteram--se exclusivamente ao
Código Civil, nem mesmo depois da propalada unificação. Tome-se o exemplo da insolvência (ou,
quando empresário, falência) do comprador. A lei civil estabelece que o vendedor, nesse caso, tem
o direito de exigir caução antes de cumprir sua obrigação de entregar a coisa vendida (CC, art. 495).
Essa norma nunca regeu, não rege e nem mesmo poderia reger uma compra e venda entre
empresários, já que a lei de falências (tanto a de 1945 como a de 2005) dá ao administrador judicial
da massa falida do comprador os meios para exigir o cumprimento da avença por parte do vendedor
independentemente de prestar a caução mencionada na lei civil. Por outro lado, além das regras
específicas que a legislação de direito comercial estabelece para as obrigações nela regidas, não se
podem esquecer os princípios aplicáveis aos contratos entre empresários. No direito comercial, o
princípio do pleno respeito à autonomia da vontade e do informalismo contratual conferem à
disciplina jurídica dos contratos entre empresários nuances que não se estendem à generalidade das
obrigações civis. Falar-se, assim, em unificação do direito das obrigações quando ainda sobrevivem,
de um lado, regras específicas para os contratos entre empresários e, de outro, princípios próprios
para os negócios jurídicos sujeitos ao direito comercial é inapropriado.
A demonstração irrespondível, porém, de que a autonomia do direito comercial não é
comprometida nem pela unificação legislativa do direito privado, nem pela teoria da empresa,
encontra-se nos currículos dos cursos jurídicos das faculdades italianas. Já se passaram 60 anos da
unificação legislativa e da adoção da teoria da empresa na Itália, e o direito comercial continua
sendo tratado lá como disciplina autônoma, com professores e literatura especializados. Até mesmo
em reformas curriculares recentes, como a empreendida na Faculdade de Direito de Bolonha a partir
do ano letivo de 1996/1997, a autonomia do direito comercial foi amplamente prestigiada.
9. O CONHECIMENTO TECNOLÓGICO DO DIREITO
No século XX, enquanto a ciência realizava progressos fantásticos, alterando profundamente o
cenário do planeta e o cotidiano das pessoas, a filosofia constatava que o conhecimento científico
não é ilimitado. Mais que isso, percebia que nem todos os níveis de saber têm o mesmo estatuto: o
homem não pode dominar tudo, não pode tudo. No campo do conhecimento jurídico, após o fracasso
das tentativas de criação de uma ciência do direito como reveladora dos verdadeiros sentidos das
normas jurídicas — em Kelsen, Ross, von Wright e noutros —, abre-se, graças às contribuições
como as de Perelman (1958) ou Ferraz Jr. (1980), uma nova perspectiva na discussão do tema, a
partir da afirmação do caráter tecnológico desse conhecimento.
Em termos mais precisos, o direito pode ser objeto de dois níveis de conhecimentos diferentes.
Dependendo dos objetivos pretendidos pelo estudioso, da questão fundamental que ele se propõe a
resolver, o seu conhecimento poderá ser científico ou tecnológico. Se procura compreender as razões
pelas quais uma certa sociedade, em determinado momento histórico, produziu as normas jurídicas
que produziu e não outras, o estudioso do direito se verá diante de alternativas cuja pertinência será
medida por critérios excludentes de veracidade. Ou seja, as respostas que sugerir para entender essa
questão serão verdadeiras ou falsas. O estudioso deve, por isso, discutir o método pelo qual poderá
afirmar uma hipótese como verdadeira, e afastar as demais como falsas. Em todo o processo
cognitivo científico, está presente a ideia de superação das afirmações inconciliáveis, a ideia de que
dois enunciados conflitantes não podem ser igualmente pertinentes. Para responder à questão sobre a
origem das normas, o estudioso desenvolve um conhecimento científico do direito. Esse é o tipo de
conhecimento, por exemplo, que os cultores do Direito Romano produzem, quando observam método
adequado.
Por outro lado, se a questão fundamental que o sujeito pretende esclarecer não está ligada à
contextualização histórica da norma jurídica, mas exclusivamente ao sentido ou sentidos que lhe
podem ser atribuídos, então será outro o critério de aferição da pertinência das respostas
experimentadas. Quer dizer, não será possível, nesse nível de conhecimento, buscar algo assim como
a verdadeira interpretação dos comandos normativos. Afirmações conflitantes acerca do sentido de
uma determinada norma jurídica não se excluem, pelo contrário podem conviver numa harmonia
própria. Isso não significa, ressalte-se, que inexistam critérios de aferição da pertinência das muitas
respostas dadas à questão do significado da norma em estudo; apenas que tais critérios não são
provenientes de um método científico, mas de esforços argumentativos de caráter retórico. Em termos
mais simples, os enunciados doutrinários acerca do conteúdo de uma certa norma jurídica não são
verdadeiros ou falsos, mas adequados ou inadequados à aplicação do preceito.
Ao se debruçar sobre uma norma jurídica para delimitar as decisões que podem ser adotadas a
partir dela, o estudioso desenvolve um conhecimento tecnológico. Ou seja, ele conhece os meios
mais ou menos adequados para se alcançarem fins preestabelecidos. Se se considera que a finalidade
do direito é a realização da justiça, a tecnologia jurídica fornece o conhecimento acerca dos
significados mais ou menos justos que se podem atribuir às normas vigentes. Se se considera que é a
administração dos conflitos sociais com o menor nível de perturbação, será novamente o
conhecimento tecnológico que poderá apontar quais interpretações das normas jurídicas estão aptas a
realizar tal escopo. Se se considera o direito um instrumento de dominação de classes, a exegese
normativa fornecerá os meios de reafirmação dos interesses dominantes. Se, enfim, se entrevê no
direito um instrumento de insurreição contra a ordem estabelecida, a tecnologia jurídica indicará
modos de interpretação crítica das leis em vigor. Em suma, independente da razão de ser
vislumbrada no direito, o conhecimento do conteúdo das normas jurídicas postas não pode ser mais
que o estudo dos meios aptos (inaptos, mais ou menos aptos etc.) a propiciarem que o direito cumpra
suas finalidades.
A interpretação de normas jurídicas não corresponde a um conhecimento científico, capaz de demonstrar a “verdade” ou “falsidade” de suas
proposições. Corresponde, sim, a um conhecimento de outro nível, tecnológico. É um saber relativo a meios aptos — mais ou menos aptos — à
realização de fins dados.
A doutrina jurídica é um complexo de conhecimentos composto de enunciados de ambos os níveis
de saber. Há, no trabalho doutrinário, afirmações de ciência e de tecnologia do direito, entremeadas
e indistinguíveis. Quando Ascarelli, por exemplo, afirma que
“a sociedade anônima (em 1811, no Estado de Nova York; em 1844 na Inglaterra; de início e
sob um aspecto particular, em 1863, depois e de um modo geral, em 1867, na França) supera
a necessidade de autorização governamental para cada caso; passa a poder ser constituída,
em princípio, com a observância de determinadas normas legais e de publicidade,
independentemente de um controle de mérito pelas autoridades em cada constituição. (...) De
um instrumento jurídico excepcional, a sociedade anônima passou a constituir uma forma
jurídica normal da empresa econômica e a sua adoção se espalhou pari passu com a
industrialização dos vários países” (1945:340),
está apresentando uma forma de se compreender a expansão das sociedades anônimas, as razões pelas quais esse tipo societário se
desenvolveu. Já, na seguinte passagem do mesmo Ascarelli:
“quando o valor do reembolso tenha sido fixado no ato constitutivo (com o consentimento,
portanto, do sócio que se retira, se ele é um subscritor; ou com o seu conhecimento prévio
desse valor, se adquiriu as ações depois da constituiç ão da sociedade), entenderia não ser
cabível a impugnação. Nessa hipótese, a sociedade e o sócio, consensual e conscientemente,
fixaram e aceitaram um determinado valor de reembolso; o funcionamento sucessivo da
empresa pode tornar esse valor inferior ou superior ao valor real, mas esse é um risco que
ambas as partes conscientemente aceitaram. Não há motivo para se dar ao sócio que se
retira (assim como não haveria motivo para dá-la à sociedade) a possibilidade de fugir ao
aceito” (1945:433),
ele está produzindo um conhecimento de estatuto diferente. No primeiro caso, sua afirmação pode ser verdadeira ou falsa (quer dizer, ou
corresponde à realidade histórica que a expansão do modelo acionário acompanhou o processo de industrialização, ou não); o método
científico revelará a veracidade ou não da ideia exposta por Ascarelli, excluindo-a do conhecimento se concluir por sua falsidade. No
último, a sua interpretação da ordem vigente, sobre a impossibilidade de impugnação do reembolso pelo acionista dissidente, quando
fixado estatutariamente o seu valor, é uma entre várias outras, que podem conviver nas discussões jurídicas — o próprio Ascarelli
lembra, em nota de rodapé, o entendimento algo divergente de Miranda Valverde, acerca da validade de cláusula do estatuto fixando o
valor do reembolso pelo nominal (1945:433, nota 37).
Resta claro, a partir das passagens transpostas da obra de um dos maiores comercialistas de todos
os tempos, que a doutrina jurídica se preocupa — embora não na mesma proporção — com duas
dimensões diferentes do fato social consistente na definição de normas de conduta. De um lado com
as razões pelas quais se produziu determinada norma jurídica, e, de outro, os sentidos que se podem
atribuir-lhe. À primeira preocupação corresponde um conhecimento científico cujo objeto é a
historicidade das normas; à segunda um saber tecnológico voltado às decisões que se podem derivar
das normas postas. A tecnologia jurídica, assim, é a parte do conhecimento doutrinário que se propõe
a esclarecer o sentido ou sentidos das normas jurídicas, e o direito comercial, enquanto interpretação
da disciplina jurídico-privatística do exercício da atividade econômica, é um capítulo desse
conhecimento.
10. O DIREITO E AS EXTERNALIDADES
Toda atividade econômica insere-se necessariamente num contexto social, e, assim, gera custos
não apenas para o empresário que a explora, mas, em diferentes graus, também para a sociedade. A
indústria polui o ar, esgota fontes de matéria-prima, reclama investimentos públicos em infraestrutura
etc. Gera, por assim dizer, custos sociais, que poderão ou não se compensar com os benefícios que a
mesma atividade econômica propicia para a sociedade, como a geração de empregos diretos e
indiretos, atendimento aos consumidores, criação de novos negócios etc. A equação entre os custos e
benefícios sociais nem sempre é equilibrada. Alguns agentes econômicos podem usufruir mais
benefícios que os custos despendidos, outros o inverso, ensejando o que tecnicamente se denomina
“externalidade” ou “deseconomia externa”. Note-se que por agentes econômicos se compreende aqui
um conjunto bastante amplo de pessoas, abrangente não apenas dos empresários — que organizam e
dirigem atividades econômicas de produção ou circulação de bens ou serviços —, mas de todas as
pessoas com uma função qualquer na economia. A noção envolve, portanto, também consumidores,
trabalhadores, o próprio estado etc.
Externalidade é conceituada como todo efeito produzido por um agente econômico que repercute
positiva ou negativamente sobre a atividade econômica, renda ou bem-estar de outro agente
econômico, sem a correspondente compensação. Nenhum pedestre morador de uma metrópole, por
exemplo, é compensado por respirar o ar contaminado pelos poluentes produzidos por veículos das
empresas de transporte coletivo, mas também não é obrigado a remunerar o aumento de espaço livre
nas calçadas propiciado pelo serviço dessas mesmas empresas. Tanto a poluição do ar como o
aumento do espaço livre nas calçadas são, para o pedestre, externalidades da prestação do serviço
de transporte coletivo, não ressarcidas de parte a parte.
Externalidade é todo efeito (negativo ou positivo) que uma pessoa produz sobre a atividade econômica, a renda ou o bem-estar de outra, sem
compensar os prejuízos que causa nem ser compensada pelos benefícios que traz.
Há dois desdobramentos jurídicos da noção de externalidade: a forma de se distinguirem as
relevantes das irrelevantes e a eleição de mecanismos para a compensação das externalidades
relevantes.
Para Mercado Pacheco, o primeiro aspecto do aproveitamento desse conceito econômico no
campo do direito — a separação entre externalidades relevantes e irrelevantes — estaria ligado à
determinação da ilicitude ou licitude da atividade (1994:136), mas não me parece assim. A
relevância da externalidade guarda relação com mudanças comportamentais e evolução de valores,
não necessariamente reproduzidas em normas jurídicas proibitivas de atividades econômicas.
Apenas recentemente, note-se, a agressão da indústria ao meio ambiente transformou-se numa
externalidade relevante (no Brasil, a primeira lei específica sobre controle de poluição industrial
data de 1967), mas o direito ambiental não tem respondido a essa transformação com a interdição
das atividades poluidoras, e sim por mecanismos mais ou menos eficientes de controle de produção
de poluentes. De qualquer forma, será certamente impossível pretender a compensação de todas as
deseconomias externas, tendo em vista inclusive que as compensações são elas próprias geradoras
também de novas externalidades: o estado, ao impor regras de direito ambiental à indústria, gera,
como agente econômico no conceito amplo aqui considerado, uma externalidade para o empresário.
Não há como eliminar, na exploração de atividades econômicas, uma determinada margem de
produção de efeitos negativos ou positivos não compensáveis. Nessa margem, correspondente às
externalidades irrelevantes, os efeitos gerados pela empresa não merecem sequer a atenção do
direito. Correspondem a fatos não jurídicos, isto é, ignorados pela ordem jurídica, tendo em vista a
irrelevância dos interesses atingidos, segundo ponderações de valor variáveis historicamente.
O segundo desdobramento do conceito de externalidade na matéria jurídica volta-se à definição
dos mecanismos de compensação entre os agentes econômicos expostos a tais efeitos (empresa e
comunidade, empresários e vizinhos, fornecedor e consumidor etc). Ou, como prefere a economia,
este desdobramento diz respeito ao processo de internalização das externalidades. Quer dizer, uma
vez conferida relevância a certos efeitos produzidos por um empreendimento econômico — a
indústria polui e gera empregos —, cabe discutir como se proceder à sua compensação, por meio da
imputação de obrigações ao empresário pelos efeitos considerados negativos, e do reconhecimento
de direitos em relação aos reputados positivos. Por definição, quando uma externalidade é
compensada ela deixa de ser externalidade. É, por assim dizer, internalizada. Internalizar as
externalidades para equalizar a relação custos-benefícios sociais é, em termos jurídicos, impor
deveres e garantir direitos para fazer justiça.
Quando o direito considera relevante uma certa externalidade e determina a sua compensação, opera-se a “internalização”. Isto é, a
externalidade, que se define como efeito não compensável, deixa de ser externalidade.
No enfrentamento da questão da internalização de externalidades, duas diferentes concepções se
apresentam, frutos de distintas formas de se compreender o papel do estado e do direito na
organização econômica: de um lado, a da economia do bem-estar; de outro, a da análise econômica
do direito.
O teórico central da economia do bem-estar é Arthur Pigou, que, de sua cátedra de economia
política em Cambridge, na década de 1920, formulou crítica sistemática às concepções clássicas de
suficiência das forças livres do mercado para equilibrar os custos e benefícios sociais. Para ele, as
externalidades são derivadas de falhas no mercado, que cabe ao estado corrigir (1928), e o
mecanismo por excelência para tal correção seria o sistema tributário. Em termos concretos,
economistas de filiação pigouniana propõem que se proceda ao cálculo dos custos sociais e sua
comparação aos custos individuais, em relação a cada atividade econômica. Esta operação, se
resultasse em diferença, revelaria a existência de uma externalidade, que o estado internalizaria do
seguinte modo: sendo a diferença em desfavor da sociedade (isto é, se os custos sociais fossem
maiores que os individuais), ele seria credor, e o empresário deveria pagar um tributo; no caso
inverso, o estado seria devedor e o empresário teria direito a isenções ou incentivos.
A análise econômica do direito, por sua vez, nasce com a publicação de um artigo de Ronald
Coase, expoente da Escola de Chicago, em que discute a visão de Pigou sobre os custos sociais
(1960), e ambiciona criar um modelo teórico que concilie a aplicação de normas jurídicas (inclusive
de direito penal, de família e sucessões etc.) a padrões de eficiência econômica (Posner, 1973;
Stephen, 1989; Coelho, 1995b). Com forte acento liberal, a análise econômica do direito considera
que as externalidades não refletem falhas do mercado, mas situações conflitantes que devem ser
solucionadas pelos próprios interessados. Não existe um efeito de atividade econômica que seja, em
si mesmo, positivo ou negativo. O que é favorável a um agente econômico é desfavorável ao outro, e
cada um deles procurará nortear suas opções segundo padrões racionais de eficiência, isto é,
gastando o menos para lucrar o máximo possível. Para Coase, a externalidade apenas gera
ineficiência quando são elevados os custos de transação entre os agentes econômicos interessados.
Isto é, quando o entendimento entre o agente que cria e o que suporta a externalidade tem um custo
não desprezível.
Nota-se claramente a diferença entre a função que se espera do estado e do direito no contexto de
cada uma das concepções aqui delineadas. Para a economia do bem-estar, o estado é o agente do
processo de internalização das externalidades, cabendo-lhe definir e dimensionar os custos sociais e
impor a compensação aos agentes econômicos. Já, para a análise econômica do direito, a
contribuição do estado na internalização das externalidades deve se limitar à redução dos custos da
transação entre os particulares. As normas jurídicas, em Pigou, em especial as de conteúdo
tributário, são o instrumento para o estado internalizar as externalidades; enquanto para a análise
econômica do direito, elas devem simplesmente reproduzir o mercado de competição perfeita (law
as market mimiker) (Pacheco, 1994:37).
Não é preciso muito para perceber que as duas orientações refletem as nuanças da reorganização
do sistema capitalista ao longo do século XX, e as tentativas de definir limites da intervenção do
estado na economia. O essencial, contudo, que é a vinculação entre tal intervenção e a luta de
classes, escapa tanto à economia do bem-estar como à análise econômica do direito. Pigou e Coase
pretenderam construir modelos ideais de explicação e reorganização da economia, que definissem de
uma vez por todas o campo de ingerência (e de não ingerência) do estado na atividade econômica.
Mas o fato é que a dinâmica da luta de classes obriga o aparato estatal a avanços e recuos, de modo
que as orientações sobre a internalização das externalidades divisadas pelas concepções aqui em
foco apenas refletem momentos diferentes da história do capitalismo. O pretendido pela economia do
bem-estar (utilização do sistema tributário para internalizar externalidades) e o pretendido pela
análise econômica do direito (a eficiência econômica norteando as decisões judiciais) não se
realizam, e não se podem realizar, porque partem estas concepções de um pressuposto abstrato e
irreal: o de que o estado capitalista pode ter sua natureza, função e dimensão imunes aos conflitos de
interesses, aos embates entre as classes sociais e seus segmentos.
Na economia, podem ser mencionados dois diferentes modelos de internalização da externalidade: a “economia do bem-estar social” e a
“análise econômica do direito”. A primeira considera a externalidade uma falha do mercado, que cabe ao estado corrigir por meio
principalmente do direito tributário. Para a segunda, os próprios interessados devem negociar a internalização das externalidades, sendo
função do direito apenas reduzir ao máximo os custos de transação.
11. O CUSTO DO DIREITO PARA A ATIVIDADE
EMPRESARIAL
Da crítica que a análise econômica do direito faz à economia do bem-estar, no tocante ao
mecanismo de internalização de externalidades, como apresentado sinteticamente acima, resulta um
dado de extrema importância, que a tecnologia do direito não pode ignorar, isto é, a afirmação de que
algumas normas jurídicas repercutem diretamente no custo da atividade econômica. A grande
contribuição para o conhecimento jurídico, do debate entre essas correntes econômicas, não se
encontra nas propostas finais de cada concepção — abstratas e irrealizáveis —, mas na consideração
dos marcos institucionais no universo da microeconomia. Em outros termos, a transposição da noção
de “internalização de externalidades” do campo do conhecimento econômico para o contexto da
reflexão jurídica tem o grande mérito de alertar para o fato de que as obrigações jurídicas impostas
ao empresário têm a natureza de elemento de custo.
Para definir o preço dos produtos e serviços que fornece ao mercado, o empresário realiza um
cálculo cada vez mais complexo, que compreende o preço dos seus insumos, a mão de obra, os
tributos, a margem de lucro esperada e também as contingências. Parte desses custos pode ser objeto
de um cálculo matemático, sujeito a variáveis controladas quantitativamente. Outra parte, contudo,
exige um cálculo menos preciso, mas ainda assim indispensável à preservação da margem de lucros.
Nessa última categoria encontram-se as contingências, como greves prolongadas, quebra de safra,
instabilizações políticas, acidentes etc. Estes fatos podem interferir de forma acentuada nas contas do
empresário, reduzindo ou comprometendo sua lucratividade ou até mesmo levando-o à falência.
Proponho chamar-se essa segunda modalidade de cálculo pelo nome “qualitativo”, em referência às
inúmeras variáveis não inteiramente controladas por quantificações.
Nesse sentido, nota-se que algumas normas jurídicas representam, para o empresário, um
importante elemento de custo. São desta natureza, por exemplo, grande parte das normas de direito
do trabalho (excetuam-se as disciplinadoras de regimes especiais, como a do empregado doméstico),
de direito tributário (quando relacionadas a tributos do interesse da empresa), de direito
previdenciário (as referentes às contribuições do empregador e, também, às do empregado),
ambiental, urbanístico e outros. Por evidente, também o direito comercial integra esse grupo de
ramos jurídicos, cujas normas podem influir nos custos da empresa. Para facilitar o desenvolvimento
da matéria, vou me referir a tais normas pela expressão “direito-custo”. Qualquer alteração no
direito-custo interfere, em diferentes medidas, com as contas dos empresários e, em decorrência,
com o preço dos produtos e serviços oferecidos no mercado. Isto é, cada nova obrigação que se
impõe ao empresário, de cunho fiscal, trabalhista, previdenciário, ambiental, urbanístico, contratual
etc., representa aumento de custos para a atividade empresarial e aumento do preço dos produtos e
serviços para os seus adquirentes e consumidores.
Há normas jurídicas que importam aumento do custo da atividade produtiva. Quando a lei cria um novo direito trabalhista, por exemplo, os
empresários alcançados refazem seus cálculos para redefinir o aumento dos custos de seu negócio. Esse aumento de custos implica, quase sempre,
aumento dos preços dos produtos ou serviços que o empresário oferece ao mercado consumidor.
Conceitua-se “direito-custo” como as normas dessa categoria.
As repercussões de mudanças no direito-custo podem ser objeto de cálculo matemático ou de
cálculo qualitativo. Se a lei majora a alíquota do imposto de circulação de mercadorias e serviços
— ICMS, o empresário incorpora tal mudança em seus custos de forma precisa, calculando sem
maiores dúvidas as consequências da reforma legislativa. O princípio da anterioridade, no direito
tributário, representa, sob o aspecto aqui apresentado, uma certa garantia de objetividade e
permanência para o cálculo empresarial, na medida em que afasta algumas oscilações no decorrer do
exercício. Outras alterações no direito-custo podem exigir cálculos qualitativos, como, por exemplo,
as referentes às normas de responsabilidade civil. Quando o direito brasileiro adotou, com o Código
de Defesa do Consumidor, a teoria da responsabilidade objetiva dos empresários por acidente de
consumo, criou um novo elemento de custo a ser considerado pelo cálculo empresarial (cf. Coelho,
1994:35/37).
Em qualquer hipótese, a interpretação das normas do direito--custo exige a maior objetividade
possível, com vistas a ensejar a relativa antecipação das decisões judiciais ou administrativas
derivadas dessas mesmas normas. O cálculo empresarial é condição da preservação do lucro e este,
por sua vez, é a alavanca das atividades econômicas no capitalismo. De fato, se não vislumbrar
atraente perspectiva de lucros na exploração de uma empresa, o empreendedor privado dará às suas
energias e aos seus recursos outra destinação. Pode-se pretender a superação do sistema capitalista,
pelas grandes e inumeráveis injustiças que gera, mas, enquanto ele reger a economia e as nossas
vidas, não se poderá negar ao lucro a importantíssima função de móvel fundamental da produção e
circulação de bens ou serviços (que, a final, são atividades indispensáveis à sobrevivência de
todos). A interpretação o quanto possível objetiva das normas de direito-custo está ligada ao próprio
funcionamento da estrutura econômica do sistema capitalista. E, ressalte-se, a objetividade possível
aqui reclamada alimenta tanto o cálculo matemático como o qualitativo. Ambos pressupõem
informações confiáveis, embora com graus de precisão diversos.
A informação jurídica confiável para fins de cálculo é baseada não apenas em precedentes
jurisprudenciais e ensinamentos doutrinários, mas principalmente nas variáveis próprias ao cálculo
qualitativo, específico da tecnologia jurídica. Em outros termos, o tecnólogo do direito, ao se
debruçar sobre normas do direito-custo, para fornecer subsídios ao cálculo empresarial, deve estar
atento às seguintes condições: a) inexistência de consenso absoluto, na comunidade jurídica, acerca
da exata interpretação das normas; b) papel da ideologia e dos valores na interpretação e aplicação
do direito; c) alterações econômicas, políticas e sociais que possam interferir com o entendimento
que a comunidade jurídica tem das normas em vigor. Note-se, a redemocratização do Brasil, nos fins
da década de 1980, se fez acompanhar pela revalorização do Poder Judiciário, e isso acarretou
mudanças sensíveis na eficácia dos princípios constitucionais do sistema tributário. Em termos
formais, as normas constitucionais de 1969 e de 1988 não são substancialmente distintas, mas as
decisões em favor do contribuinte pautadas em tais princípios foram ampliadas. Só o tecnólogo do
direito atento às nuanças da vida política nacional poderia estar apto a antecipar ao empresário o
novo cenário. Já o estudioso do direito que prefere fazer pose de cientista formal de normas
positivadas, simplesmente não teria qualquer contribuição profissional de valor a dar ao empresário,
para a organização de sua empresa.
O direito-custo exige interpretação o mais objetiva possível para possibilitar o cálculo empresarial, isto é, a definição dos custos da atividade
econômica e dos preços dos produtos ou serviços correspondentes.
As variáveis próprias do cálculo qualitativo da tecnologia jurídica afastam a perspectiva de uma
absoluta objetividade do cálculo empresarial. Claro que se pode falar numa objetividade relativa ou
em graus diferentes de precisão, mas pretender quantificar com exatidão estatística a probabilidade
de êxito em demandas judiciais é despropositado. A parte qualitativa do cálculo empresarial convive
necessariamente com maior ou menor grau de imprecisão, e mesmo a parte desse cálculo feita por
operações matemáticas (por exemplo, a base de cálculo de um imposto) pode ser afetada pela
natureza retórica do conhecimento jurídico (como as divergências jurisprudenciais). A despeito
dessa complexidade, no entanto, as normas jurídicas que repercutem nos custos da empresa devem
ser editadas, estudadas, interpretadas e aplicadas com a maior objetividade que se possa alcançar,
de forma a contribuir o direito para o aperfeiçoamento do cálculo empresarial e, em última análise,
para o desenvolvimento e organização da empresa e da economia.
12. DIREITO COMERCIAL COMO DIREITO-CUSTO
Conforme proposto acima, direito-custo são as normas jurídicas cuja aplicação interfere com os
custos da atividade empresarial, da produção e circulação de bens ou serviços. As normas tributárias
pertinentes aos impostos devidos pelos empresários, as de direito urbanístico que vedam
estabelecimentos empresariais em determinadas zonas da cidade, as de direito previdenciário ou do
trabalho instituidoras de encargos são, entre outras, exemplos de direito-custo. Estatuem obrigações
que o empresário deve internalizar em sua empresa, isto é, levar em conta no momento de calcular e
fixar os preços de seus produtos ou serviços.
No âmbito da disciplina privada da atividade econômica (isto é, do direito comercial ou
empresarial), há, como é evidente, normas com a natureza de direito-custo. Nem todas as
disposições normativas desse ramo jurídico, contudo, podem ser enquadradas em tal categoria.
Muitas e importantes regras de direito societário, como as relacionadas com a constituição e
funcionamento de sociedades anônimas fechadas não interferem significativamente com os custos de
produtos e serviços para a empresa fornecedora. Outras, como as do registro de empresa, têm
implicação de dimensões tão diminutas em tais custos que nem sempre se justifica tentar
compreendê-las segundo esse enfoque. Portanto, o direito comercial, não obstante a importância de
suas normas de direito-custo, não pode ser reduzido ao regramento do cálculo empresarial.
Enquanto direito-custo, o direito comercial ou empresarial se manifesta principalmente na
disciplina dos seguintes aspectos da exploração da atividade de empresa:
a) Responsabilidade civil — este é o tema que melhor exemplifica a aplicação das categorias
aqui propostas de cálculo empresarial e direito-custo, notadamente quanto à discussão da natureza
subjetiva ou objetiva de cada hipótese de responsabilização. De fato, muitos acidentes podem
ocorrer no ambiente empresarial (acidente de trânsito), ou mesmo em razão do consumo de bens
industrializados ou de serviços (fornecimento perigoso ou defeituoso), e a imputação ao empresário
da responsabilidade objetiva pela indenização dos prejuízos decorrentes importa a criação de um
claro elemento de custo.
Assim, o empresário responde subjetivamente pelos acidentes de trânsito, quando o condutor do
veículo da empresa é o responsável pelos danos. Isto é, a demonstração da culpa ou dolo do
empresário como causa, mesmo remota, do acidente é condição para a sua responsabilização. Se o
evento danoso decorre de culpa exclusiva do outro motorista envolvido no evento, caso fortuito ou
força maior, o empresário não será responsável por indenizar os danos. A responsabilidade do
empresário, no caso de acidente de trânsito, portanto, é subjetiva. No entanto, ele responde
independentemente de culpa pelos danos derivados de acidente de consumo provocados por defeitos
em produto ou serviço (CDC, arts. 12 e 14). Nessa hipótese, a sua responsabilidade é objetiva, quer
dizer, existe mesmo que ele tenha dotado sua empresa da mais avançada tecnologia de produção e
observe os mais rigorosos padrões de controle de qualidade.
A diferença entre a responsabilidade subjetiva e a objetiva reside, em última análise, na natureza
ilícita ou lícita do ato praticado pelo agente, a quem ela é imputada. O empresário que, agindo com
culpa ou dolo, provoca acidente de trabalho, incorre num ilícito e responde desde que demonstradas
a ilicitude (negligência, imprudência, imperícia ou intenção), a relação causal entre o ato e o evento
danoso, e a extensão do dano. Já o mesmo empresário, ao fornecer produto defeituoso ao mercado,
nem sempre incorre em conduta ilícita. Por mais desenvolvidos que sejam os processos produtivos e
os controles de qualidade empregados na atividade empresarial, a falibilidade natural dos homens
que trabalham na empresa não afasta a possibilidade de fornecimento ao mercado de alguns produtos
ou serviços com defeito. Nesse caso, inexistente a culpa ou o dolo, não podem ser considerados
ilícitos os atos do empresário. Sua responsabilidade pelo acidente de consumo é objetiva, porque
não pressupõe a ilicitude da conduta; existe ainda que inteiramente lícito o comportamento do
devedor da indenização (sobre as relações entre a natureza da responsabilidade e a eficiência
econômica, ver: Posner, 1973:175/182; López, 1987:60/66).
Ao editar regra de responsabilidade objetiva, o direito está criando um novo elemento de custo
para o empresário. Para cumprir a lei sem sacrifício da lucratividade de seu empreendimento, ele
deve procurar definir, por cálculos apropriados, a probabilidade da ocorrência de acidentes de
consumo, bem como a provável dimensão de suas consequências econômicas. Esses dados o
empresário considera no cômputo dos preços de seus produtos ou serviços, repassando a cada
consumidor uma quota-parte, por assim dizer, das repercussões previsíveis do fornecimento
defeituoso. Em outros termos, o empresário dilui, socializa entre os consumidores, realoca as perdas
estimadas por acidente de consumo, reunindo recursos para atender à regra da responsabilidade civil
independente de culpa (para uma discussão sobre os limites do spreading of losses, ver Calabresi,
1961). A operação prévia ao repasse das perdas por acidente de consumo para os próprios
consumidores, mediante a fixação do preço dos produtos ou serviços vendidos, é viabilizada pelo
cálculo empresarial.
A previsão, no Código de Defesa do Consumidor, de responsabilidade objetiva do empresário por acidente de consumo redundou aumento
imediato dos custos de exploração da atividade econômica, e mediato dos preços dos produtos e serviços vendidos no mercado de consumo.
b) Responsabilidade contratual — existem dois sistemas de tutela jurídica da vontade dos
contratantes: de um lado, a composição das perdas e danos; de outro, a execução específica. Pelo
primeiro, o contratante que descumpre as obrigações assumidas é condenado pelo juiz a indenizar a
outra parte pelos prejuízos advindos do inadimplemento; pelo segundo sistema, a prestação
jurisdicional garante ou o exato cumprimento da obrigação inadimplida, ou o resultado concreto
equivalente, ou o mais próximo ao pretendido pelas partes quando da celebração do contrato.
Antes da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, era sustentável, com base no
Código Comercial de 1850, que o comerciante, ao descumprir a obrigação de entregar a mercadoria
vendida ao consumidor, estava sujeito somente à pena de indenizar este último, não havendo
fundamento legal para o Judiciário expedir, por exemplo, mandado de busca e apreensão da
mercadoria objeto de contrato. Isto é, o sistema de tutela da vontade contratada apenas garantia, na
hipótese de inadimplemento, a recomposição das perdas. Após a entrada em vigor da legislação
consumerista, não há dúvidas de que o consumidor tem direito à execução específica das obrigações
assumidas pelo fornecedor (CDC, art. 84).
Contudo, observe-se que nem sempre o fiel cumprimento do contrato equivale, sob o ponto de
vista da economia de acento liberal, à solução mais eficiente para o contratante; isso porque as
condições de fato se alteram ao longo do tempo, e o que era projetado como eficiente na data da
celebração do contrato, por uma das partes, pode se mostrar exatamente o contrário na época do
cumprimento das obrigações. Para o outro contratante será, em geral, indiferente o cumprimento do
contrato ou a integral composição das perdas, mas para o inadimplente esta última solução pode ser
significativamente mais vantajosa e, portanto, mais eficiente que a primeira. Assim, quando presentes
tais pressupostos, a regra jurídica consagradora da execução específica pode representar a solução
menos eficiente para o caso de descumprimento de obrigações contratuais (Posner, 1973:130/132).
As normas sobre responsabilidade contratual são direito-custo, na medida em que as
consequências do inadimplemento de obrigação assumida pelo empresário — seja as relacionadas
ao sistema da composição de perdas, seja ao da execução específica — devem ser absorvidas pela
empresa, sem comprometimento, ou com o menor comprometimento possível, da margem de lucro.
As normas de responsabilidade contratual — tanto as que impõem a composição dos danos, como as que asseguram a execução específica —
também interferem com os custos da atividade econômica.
c) Propriedade industrial — as normas de direito industrial relacionadas à duração e garantias
das patentes e dos registros de marca, é fácil compreendê-lo, têm direta incidência sobre os custos
da empresa. A amortização do investimento realizado nas pesquisas e invenções, ou na criação e
fixação das marcas, será proporcional ao tempo em que a empresa dispuser da exclusividade de
exploração econômica do direito industrial correspondente. Quanto mais dilatado o prazo de duração
da patente ou do registro, menor poderá ser o percentual de amortização do investimento agregado ao
preço do produto ou serviço.
d) Concorrência desleal e abuso do poder econômico — a garantia jurídica do funcionamento
das estruturas do mercado livre abre a possibilidade a novos empresários de ingressarem em
segmentos desse mercado, para fins de competirem com os que nele já atuam. Na medida em que o
direito concorrencial e o antitruste contemplem normas mais rigorosas contra práticas desleais e
abusivas, consolida-se a garantia de competitividade entre empresários. Note-se, contudo, que há
uma ambiguidade decorrente do rigor na aplicação da legislação repressora do abuso do poder
econômico. As sanções impostas pelas autoridades fiscalizadoras das estruturas do livre mercado —
e aqui lembro não apenas as multas, mas igualmente o desfazimento de operações societárias
concentracionistas, a invalidação da cessão de marcas e patentes, e outras medidas desconstitutivas
de negócios jurídicos — formam um dos elementos de custo da empresa. Desse modo, quanto maior
o rigor do direito de tutela das estruturas do mercado livre, melhores são as condições de
investimento, mas é maior o custo da atividade. Afinal, se, de um lado, a repressão às práticas
anticoncorrenciais amplia o acesso das empresas aos diversos mercados relevantes, de outro, não
podem os empresários deixar de se precaverem, por meio da formação de reservas para absorção de
eventuais punições. São paradoxos próprios à legislação antitruste.
Se o direito assegura — de modo efetivo e não apenas formal — aos empresários plenas condições para a livre concorrência, coibindo as
práticas desleais e as abusivas, o custo para a implantação de atividades econômicas e o prazo para retorno de investimentos são mais atraentes
do que seriam se tais condições não existissem. Por outro lado, assim que amortizado o investimento, o empresário procurará constituir reserva,
para absorção de eventual sanção por prática anticoncorrencial.
e) Direitos dos consumidores — costuma a legislação consumerista estabelecer padrões de
transparência nas relações pré-contratuais entre fornecedores e consumidores, além de sancionar
com a nulidade ou ineficácia as cláusulas abusivas, bem como estipular a rescisão do negócio em
razão de vícios nos produtos ou serviços. Esses direitos reconhecidos aos consumidores se refletem
em obrigações a que se sujeitam os empresários, e, para as cumprir, eles têm à sua frente três
alternativas não excludentes. A primeira é a de investir no aperfeiçoamento da empresa, na qualidade
do fornecimento de produtos ou serviços, para fins de reduzir a margem de defeitos ou de exposição
dos consumidores a perigos. A segunda alternativa do empresário, diante da imposição de novas
obrigações mediante os consumidores, é a de contratar seguro, transferindo os riscos para as
instituições securitárias. A última opção é a constituição de uma reserva própria para enfrentar a
diminuição de receita decorrente do atendimento aos direitos dos consumidores, como a gerada por
rescisões de contratos ou reexecução de serviços malfeitos etc.
Qualquer dessas opções implica aumento dos custos e consequentemente do preço final do
fornecimento, de forma que se repassam, ainda que a médio prazo, aos consumidores, os encargos
derivados do aprimoramento das relações de consumo. O consumidor paga mais caro os produtos e
serviços que adquire, mas recebe, em contrapartida, maiores garantias quanto à sua qualidade (cf.
Coelho, 1994:29/34).
Se o direito assegura proteção aos consumidores, os empresários devem aparelhar melhor suas empresas para atenderem às obrigações legais
correspondentes. Isto significa maiores custos para a atividade econômica. Significa, também, inevitavelmente, majoração dos preços aos
consumidores.
No final, cabe ao consumidor arcar com o preço da melhoria da qualidade do mercado de consumo.
f) Recuperação de crédito — também são direito-custo as normas processuais sobre cobrança e
arbitragem, bem como as instituidoras do regime cambiário e falimentar.
A concessão de crédito é elemento vital ao bom funcionamento da economia, porque possibilita
ampliação e dinamização da produção e do volume de negócios. É certo, por um lado, que o
empresário conta com uma relativa margem de inadimplência dos tomadores de crédito — e até
procura se preservar por meio do seguro de crédito ou diluindo as perdas com a receita gerada pelos
adimplentes —, mas também é certo que as normas disciplinadoras da recuperação do valor
disponibilizado influem na administração empresarial. Curioso registrar que essa influência
manifesta-se tanto do lado do credor, que, ao tentar recuperar seus recursos, deve ajustar
expectativas à realidade do Judiciário, como do devedor, para quem as possibilidades de
postergação do cumprimento da obrigação pode significar novas alternativas negociais.
Essa lista não exaure todas as normas de direito-custo reservadas ao estudo do direito comercial.
Ela serve apenas de referência bastante genérica de como o complexo jurídico-normativo se introduz
no universo da microeconomia, agindo de forma relevante no cotidiano da administração
empresarial. Serve, por outro lado, para alertar o estudante e o estudioso do direito empresarial
acerca da importância que a interpretação o mais objetiva possível de suas normas se impõe, como
condição para o desenvolvimento da própria economia.
Capítulo 2
OS PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL
1. CLASSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO
COMERCIAL
Os princípios do direito comercial podem ser classificados segundo três critérios: hierarquia,
abrangência ou positivação.
Segundo o critério da hierarquia, os princípios podem ser constitucionais ou legais.
No primeiro caso, são enunciados pela Constituição Federal. A liberdade de iniciativa é exemplo
de princípio constitucional, consoante o disposto no caput do art. 170 da CF. No segundo caso, isto
é, no dos princípios legais, a enunciação se encontra em preceito de lei ordinária. O princípio da
inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, na cobrança de obrigação cambiária,
vem previsto no art. 916 do Código Civil, no art. 17 da Lei Uniforme de Genebra (letra de câmbio e
nota promissória) e no art. 25 da Lei n. 7.357/85 (lei do cheque).
De acordo com o critério da abrangência, os princípios podem ser gerais ou especiais.
Na primeira categoria, encontram-se os princípios aplicáveis a todas as relações jurídicas regidas
pelo direito comercial, ao passo que a segunda categoria reúne os destinados à disciplina de
relações regidas por desdobramentos da disciplina, como são o direito societário, cambiário,
falimentar etc. A liberdade de competição é um princípio geral do direito comercial, porque informa
relações jurídicas abrangidas por todas as subáreas. Desse modo, na interpretação de preceitos do
direito industrial (proteção dos registros de marcas e patentes de invenção), societário (viabilidade
de determinadas operações), contratual (condições para a admissibilidade de cláusulas de não
concorrência), cambiário (legitimidade do suporte eletrônico) e falimentar (resguardo das
informações estratégicas da empresa recuperanda), sempre deverá ser levada em conta a liberdade
de competição, e seu corolário imediato, que é a “premiação” (com o lucro) dos que tomam a
decisão empresarialmente acertada e a “penalização” (com a perda, e, se for o caso, a falência) dos
que tomam a decisão equivocada.
Já na categoria dos princípios especiais, acomodam-se os aplicáveis apenas a determinados
setores do direito comercial. É exemplo o princípio da livre associação, que, embora sendo de
hierarquia constitucional, incide apenas nas relações jurídicas regidas, no campo do direito
comercial, por um de seus sub-ramos, o direito societário.
Os princípios do direito comercial classificam-se em: constitucionais ou legais (conforme estejam abrigados na Constituição Federal ou na lei
ordinária), gerais ou especiais (se são aplicáveis a todo o ramo jurídico ou somente a um de seus desdobramentos) e explícitos ou implícitos (caso
estejam expressamente previstos na norma de direito positivo ou decorram desta).
Por fim, os princípios podem ser, em função do critério da positivação, explícitos (diretos ou
positivados) ou implícitos (indiretos ou não positivados). São explícitos os princípios enunciados
expressamente pelo constituinte ou pelo legislador, em texto de direito positivo; por sua vez, são
implícitos aqueles cujos enunciados o julgador ou o doutrinador concluem dos dispositivos vigentes.
O princípio da celeridade e economia processual da falência está consignado, de modo expresso, no
art. 75, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005. É, portanto, um princípio explícito. Já o da função
social da empresa, malgrado constitucional, é da categoria dos implícitos, por não se encontrar
diretamente enunciado em nenhum dispositivo da Constituição Federal, mas decorrer, por
interpretação doutrinária, da função social da propriedade, este, sim, um princípio explícito
constante dos seus arts. 5º, XXIII, e 170, III.
2. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE INICIATIVA
O modo como os homens se relacionam para a produção dos bens de que necessitam para a vida
(o modo de produção) variou ao longo da história. De início, muito antes da invenção da escrita e do
começo dos registros históricos, provavelmente predominou um modo de produção em que tudo era
dividido entre os membros da tribo ou do clã. A divisão, também provavelmente, não devia ser
igualitária, tendo em conta a grande proximidade com o estado de natureza (e consequente
incipiência da organização social), ambiente em que vige a “lei do mais forte”. Mas ninguém era
dispensado de trabalhar (caçar, pescar, cuidar da prole, fazer os utensílios domésticos etc.) e
ninguém era privado da parte que lhe cabia no que a tribo ou o clã produzia em comum (e que
deveria atender suas necessidades básicas).
Com a descoberta da agricultura e das técnicas de domesticação de alguns animais, o homem, até
então um ser nômade e extrativista, passou a se fixar com mais constância em determinados lugares.
Essa transformação dos hábitos da espécie criou as condições para a apropriação, por alguns, não só
dos meios e instrumentos de produção (terra, arado etc.), como de tudo o que era produzido. Surge a
propriedade privada, que revoluciona o modo de produção. A organização social já, então, apresenta
certa complexidade, com a divisão das pessoas em pelo menos duas classes antagônicas
(possuidores dos meios de produção vs. não possuidores) e o surgimento de um aparato destinado a
resolver os conflitos que surgem entre elas (o embrião do Estado).
Depois do aparecimento da propriedade privada dos meios de produção, podem-se esquematizar
três sucessivos modos de produção. Observadas as nuances próprias da história ocorrida em cada
região ocupada pela espécie humana, de modo geral, seguiram-se o modo de produção escravagista,
o feudalismo e o capitalismo. No escravismo, a classe detentora dos meios de produção é dona,
também, da pessoa dos que trabalham, os escravos. Estes nada têm, nem mesmo sua própria força de
trabalho. No feudalismo, a relação de produção é diferente, porque os servos (os que trabalham) já
são vistos como donos de sua força de trabalho. Eles lavram as terras do senhor feudal e cumprem as
tarefas de organização doméstica em troca de segurança, abrigo e alimentação. No capitalismo, os
trabalhadores continuam donos de sua força de trabalho, mas não a trocam diretamente pelos bens ou
comodidades básicas de que necessitam para viver, e, sim, vendem-na aos detentores dos bens de
produção – agora, não mais só a terra e os instrumentos agrícolas, mas também indústrias cada vez
mais sofisticadas.
A substituição do modo de produção feudal pelo capitalista, na Europa continental moderna, foi
um processo longo, complexo e, principalmente, conflituoso. A classe social que já se tornara
dominante na produção (a burguesia) tinha os interesses prejudicados pelos anacrônicos entraves
impostos pela ordem feudal. O ápice deste processo de confronto aberto foi a Revolução Francesa,
em 1789. A luta pela supressão da ordem feudal travou-se especialmente em torno da noção de
liberdade. Se no feudalismo, a posição de cada um na relação de produção era definida ao nascer, na
nova ordem, propaga-se que todos serão livres para trabalhar no que quiserem, independentemente
da ascendência nobre, burguesa ou plebeia.
A liberdade de iniciativa é elemento essencial do capitalismo; quero dizer, do próprio modo de
produção e não somente de sua ideologia. Diferentemente da igualdade e da fraternidade, valores
com os quais compôs o mais conhecido slogan revolucionário, a liberdade não é apenas uma palavra
de ordem que poderia, depois da vitória sobre a ordem feudal, ser olvidada. O capitalismo depende,
para funcionar com eficiência, de um ambiente econômico e institucional em que a liberdade de
iniciativa esteja assegurada. Nas épocas e nos lugares em que o Estado capitalista restringiu
seriamente esta liberdade econômica, em prol de medidas protecionistas de determinadas atividades,
o resultado foi, em longo prazo, desastroso.
Necessária para a eficiência do modo de produção, a liberdade de iniciativa é também a
responsável pelas mazelas do capitalismo. Como todos são livres para produzir o que bem entendem,
é inevitável certa anarquia na produção: produz-se o que não será consumido e deixa-se de produzir
o que seria. Por isto, de tempos em tempos, o excesso ou a carência de produção gera crises. A
macroeconomia e os instrumentos de administração monetária têm ajudado na prevenção e superação
destas crises; mas elas não podem ser completamente evitadas.
A liberdade de iniciativa, por outro lado, está entre as causas de muitas injustiças. Como a
quantidade e qualidade da produção são definidas, em última instância, pelas perspectivas de
lucratividade de sua exploração econômica, bens essenciais (comida, por exemplo) podem não ser
produzidos na escala necessária ao atendimento de todos; enquanto a produção de bens inteiramente
fúteis, a seu turno, consome não pouca “energia social”.
O princípio da liberdade de iniciativa é inerente ao modo de produção capitalista, em que os bens ou serviços de que necessitam ou querem as
pessoas são fornecidos quase que exclusivamente por empresas privadas.
O capitalismo é, assim, um sistema de crises periódicas e injustiças permanentes. Mas enquanto
for o modo de produção predominante, será proveitoso para todos que ele possa funcionar da
maneira mais eficiente possível. Daí a importância de a ordem jurídica assegurar a liberdade de
iniciativa. Só os que acreditam numa solução definitiva advinda da substituição do capitalismo por
outro modo de produção, e que adotam, por estratégia, a radical piora nas condições de vida dos
trabalhadores, podem ver sentido no solapar dos pressupostos de eficiência do sistema, no dificultar
do seu melhor funcionamento.
O princípio da liberdade de iniciativa é constitucional, geral e explícito (CF, art. 170, caput).
2.1. Os Dois Vetores do Princípio da Liberdade de Iniciativa
Há dois vetores no princípio da liberdade de iniciativa: de um lado, antepõe um freio à
intervenção do Estado na economia; de outro, coíbe determinadas práticas empresariais. O primeiro
vetor liga-se a questões estudadas pelo direito público, como, por exemplo, as atinentes às
atividades econômicas constitucionalmente reservadas à União, as condições para o estabelecimento
de novas empresas, as posturas municipais definindo zonas em que a localização destas é autorizada
ou proibida etc.
O direito comercial ocupa-se do segundo vetor, vale dizer, da coibição das práticas empresariais
incompatíveis com a liberdade de iniciativa. Quando o empresário conquista parcelas significativas
de determinado segmento de mercado, passa a exercer um poder. O poder de mercado não está
necessariamente associado ao poder econômico, embora seja bastante comum tal ligação. O
empresário de grande porte, com extenso poder econômico, não terá poder de mercado se atuar em
segmento da economia altamente competitivo, marcado pela presença de outros empresários
igualmente poderosos, sob o ponto de vista econômico.
O empresário com poder de mercado tem ao seu alcance instrumentos empresariais que, uma vez
empregados, poderiam impedir ou dificultar o ingresso de outros empresários no mesmo segmento de
atividade econômica. Ele poderia, por exemplo, diante da ameaça da chegada de novos
competidores, baixar seus preços a patamar tal que desmotivaria os potenciais interessados na
exploração daquele mercado. Passada a ameaça, retornaria os preços aos níveis anteriores,
recuperando os ganhos de que se privara temporariamente. Apenas o empresário com poder de
mercado poderia valer-se desta estratégia; ela seria “suicida” em qualquer segmento marcado pela
competitividade.
Valer-se destes instrumentos representaria uma prática empresarial contrária à liberdade de
iniciativa. Uma prática que configura infração da ordem econômica, objeto de estudo do direito
comercial.
O direito comercial se ocupa de um dos vetores do princípio constitucional da liberdade de iniciativa, o que importa, diante da faculdade
assegurada a cada pessoa de estabelecer-se empresarialmente, a obrigação de todos os demais empresários de não impedirem o exercício deste
direito.
Dito de outro modo. Ao assegurar a liberdade de iniciativa, a Constituição Federal atribui a todos
os brasileiros e residentes no Brasil um direito, o de se estabelecer como empresário. A todo direito
atribuído a alguém, correspondem obrigações impostas a outros sujeitos. No primeiro vetor, a
liberdade de iniciativa é garantida pela obrigação imposta ao Estado de não interferir na economia,
dificultando ou impedindo a formação e o desenvolvimento de empresas privadas; no segundo vetor,
esse princípio é garantido pela obrigação imposta aos demais empresários, no sentido de
concorrerem licitamente.
2.2. A Liberdade de Iniciativa na Ordem Constitucional Brasileira
Como acentuado, a liberdade de iniciativa, malgrado sua essencialidade para a eficiência do
sistema capitalista, causa anarquia na produção e injustiças na sociedade. Para atenuar seus efeitos, o
Estado contemporâneo intervém, em alguma medida, na economia. A exata dimensão desta
intervenção, contudo, não é definível científica ou ideologicamente. O Estado capitalista deve ser
maior ou menor, conforme as necessidades ditadas pelas crises periódicas ou pelas injustiças
permanentes. Se necessário para prevenir ou resolver crises, ou para impedir que injustiças ponham
em risco a ordem, o Estado capitalista aumenta sua presença na economia; uma vez, contudo,
superadas estas demandas, não há por que sustentar-se um aparato estatal avantajado e, então, ele é
paulatinamente reduzido.
Na complexa sociedade contemporânea, a liberdade de iniciativa não pode ser absoluta. O direito
do consumidor fornece um exemplo significativo. Na visão da doutrina liberal clássica, a lei não
precisaria assegurar aos consumidores nenhuma proteção. Se determinado empresário não o
respeitasse, vendendo a preços abusivos ou enganando na pesagem, bastaria ao consumidor trocar de
fornecedor. Por outro lado, se, em determinado mercado, não houver nenhum fornecedor que atenda
satisfatoriamente os consumidores, isto despertará a atenção de um empresário, que identificará uma
excelente oportunidade de lucro em estabelecer naquele segmento uma empresa diferenciada,
correspondente às expectativas dos seus clientes. Obviamente, esta solução para os conflitos no
mercado de consumo, indicada pela doutrina liberal clássica, é insuficiente para assegurar os
interesses legítimos dos consumidores. O Estado, então, precisa intervir, não somente por meio de
leis que definam os direitos destes, mas também por organismos que os defendam.
A ordem constitucional brasileira, assim, consagra a liberdade de iniciativa como fundamental,
mas mitiga seus efeitos, determinando, a rigor, o equilíbrio entre esta medida de eficiência exigida
pelo modo de produção capitalista e a promoção da justiça social (Frontini, 1975:35). A ordem
constitucional brasileira tem, desse modo, um perfil neoliberal (Cap. 7, item 1).
2.3. Desdobramentos do Princípio da Liberdade de Iniciativa
Quando funda a ordem econômica na liberdade de iniciativa e, mitigando-a, associa-a a valores
aos quais confere igual importância como elemento estruturador desta ordem (proteção do meio
ambiente, do consumidor, função social da propriedade etc.), a Constituição Federal reserva aos
empresários a tarefa de serem os principais agentes do atendimento às necessidades e querências de
todos nós. No capitalismo, tudo o que precisamos e queremos (roupas, alimentos, transportes, lazer,
educação, saúde etc.), em geral, só podemos ter se uma ou algumas pessoas, entre nós, se dispuserem
a investir na organização de uma empresa destinada a produzir e fornecer o bem ou serviço
almejado. No capitalismo, os bens e serviços, essenciais ou não, são produzidos e comercializados,
em sua expressiva maioria, por empresas exploradas por particulares.
Desdobra-se, por isto, o princípio da liberdade de iniciativa no reconhecimento de determinadas
condições para o funcionamento mais eficiente do modo de produção.
A primeira delas é a afirmação da imprescindibilidade, no sistema capitalista, da empresa
privada para o atendimento das necessidades e querências de cada um e de todos. Quando um
empresário decide assumir o risco de certa atividade empresarial, esta sua iniciativa tem em mira,
inicial e principalmente, a obtenção de lucro. Na perspectiva do empresário, em geral, há um simples
cálculo egoísta, a partir do qual concluiu que o fornecimento ao mercado de determinado bem ou
serviço será lucrativo. Ora, será lucrativo exatamente porque corresponderá à necessidade ou
querência de parcelas dos consumidores, em volume tal que garanta este resultado. Se não houver
pessoas interessadas em adquirir os bens ou serviços oferecidos pelo empresário, este simplesmente
não terá os lucros projetados. Aos interesses individuais dos empresários na obtenção de lucro
corresponde, assim, inexoravelmente, o interesse metaindividual de todos os integrantes da
sociedade em terem acesso aos bens e serviços de que necessitam ou desejam. Sem o atendimento
aos interesses metaindividuais destes, não se realizam – não há como se realizarem – os interesses
individuais dos empresários.
A segunda condição em que se desdobra o princípio da livre iniciativa é a do lucro como o
principal fator de motivação da iniciativa privada; o lucro obtido com a exploração regular e lícita
da empresa. Como afirmado, qualquer empresa nasce sempre do interesse individual e egoísta do
empresário, o qual busca auferir ganhos com a exploração de uma atividade econômica que vá ao
encontro das necessidades e querências de parcelas dos consumidores. O lucro, assim, no sistema
capitalista, não pode ser jurídica ou moralmente condenado. Pelo contrário, deve ser reconhecido
como o elemento propulsor do eficiente funcionamento do modo de produção. Sem a perspectiva de
lucro, ninguém se dispõe a empreender (ou mesmo investir); mas se ninguém se dispuser a
empreender a organização da produção ou circulação de determinado bem ou serviço, restarão
desatendidas as necessidades e querências de todos associadas a este bem ou serviço.
A terceira condição resultante do princípio da liberdade de iniciativa diz respeito à importância,
para toda a sociedade, da proteção jurídica liberada ao investimento privado, feito com vistas ao
fornecimento de produtos ou serviços, na criação, consolidação ou ampliação de mercados
consumidores e desenvolvimento econômico. Quando a Constituição Federal prescreve, como modo
de produção, o fundado na liberdade de iniciativa, ela não está disciplinando a realidade econômica
unicamente focada nos interesses dos empresários. Pelo contrário, a norma constitucional que define
a liberdade de iniciativa como um dos elementos fundamentais da ordem econômica (ao lado da
valorização do trabalho, proteção do meio ambiente, do desenvolvimento regional etc.) tutela
interesse de toda a sociedade. A proteção jurídica ao investimento privado, se, obviamente, atende
aos interesses individuais do empresário investidor, atende também aos interesses de toda a
sociedade. Não há como dissociar: a lei, ao proteger o investimento, está necessariamente
protegendo interesses que não se reduzem aos do investidor.
Quando conflitarem, de um lado, os interesses individuais dos empresários voltados à obtenção de
lucro e, de outro, os metaindividuais que se espalham pela sociedade, não há a menor dúvida de que
estes últimos devem sempre prevalecer. É assim que determina a Constituição Federal, ao mitigar a
liberdade de iniciativa, associando-a com outros valores na estruturação da ordem econômica. Quer
dizer, talvez um empresário tivesse seus lucros acentuadamente elevados se ignorasse qualquer
cautela com a questão ambiental. Nesse caso, há nítido conflito entre o interesse individual dele
(maiores lucros) e o partilhado por toda a sociedade (preservação do meio ambiente). Claro, o
interesse individual e egoísta do empresário não pode ser, e não será, minimamente protegido pela
ordem jurídica, enquanto não se compatibilizar com o de todos relacionado à sustentabilidade
ambiental.
Quatro desdobramentos podem ser extraídos do princípio da liberdade de iniciativa: (a) imprescindibilidade, no capitalismo, da empresa privada
para o atendimento das necessidades de cada um e de todos; (b) reconhecimento do lucro como principal fator de motivação da iniciativa privada; (c)
importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica do investimento; (d) importância da empresa na geração de postos de trabalho e tributos,
bem como no fomento da riqueza local, regional, nacional e global.
Por fim, o quarto desdobramento da liberdade de iniciativa reconhece na empresa privada um
importante polo gerador de postos de trabalho e tributos, bem como fomentador de riqueza local,
regional, nacional e global. Em torno da empresa, de seu desenvolvimento e fortalecimento, gravitam
interesses metaindividuais, como são os dos trabalhadores, consumidores, do fisco, das empresas
satélites etc. As pessoas de cada um destes “grupos” titulam, claro, interesses conflitantes com os do
empresário: o trabalhador reclama aumentos salariais, o consumidor exige qualidade pelo menor
preço, o fisco adota a interpretação da lei tributária que mais o favorece, e assim por diante. Não tem
nenhum cabimento afirmar, como pretendia a ideologia fascista, que os interesses de todos esses
“grupos” se harmonizariam na empresa, sob a liderança do empresário. Mas, mesmo não negando a
existência desses conflitos de interesse, no seio da atividade empresarial, deve-se reconhecer que, na
complexa economia dos nossos tempos, pelo sucesso da empresa criada por iniciativa do empresário
passam a se interessar, direta ou indiretamente, muitas outras pessoas. Se a empresa não prospera,
seus empregados têm menor margem para pressionar por melhorias salariais ou nas condições de
trabalho; o atendimento aos consumidores, mesmo cumprindo as obrigações legais do CDC, é mais
precário; menos atividades econômicas geram menos impostos, e assim por diante.
3. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE CONCORRÊNCIA
O princípio da liberdade de concorrência está, de tal modo, ligado ao da liberdade de iniciativa,
que nem sempre se distinguem. São, por vezes, aspectos diferentes da mesma regra básica de
funcionamento eficiente do capitalismo.
A liberdade de concorrência é que garante o fornecimento, ao mercado, de produtos ou serviços
com qualidade crescente e preços decrescentes. Ao competirem pela preferência do consumidor, os
empresários se empenham em aparelhar suas empresas visando à melhoria da qualidade dos produtos
ou serviços, bem como em ajustá-las com o objetivo de economizar nos custos e possibilitar redução
dos preços; tudo com vistas a potencializar o volume de vendas e obter mais lucros. Uma vez mais,
contudo, é necessário pontuar que, ao dedicar-se ao aprimoramento das condições de
competitividade de sua empresa, o empresário persegue um interesse individual inteiramente
compatível com a realização dos interesses metaindividuais da sociedade. Esta intrínseca ligação de
dependência entre tais interesses encontra-se nos fundamentos da definição legal, que elege a
“coletividade” como titular dos bens jurídicos protegidos pela coibição “às infrações contra a ordem
econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência,
função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico”
(Lei n. 12.529/2011, art. 1º e seu parágrafo único).
No direito comercial, o princípio constitucional da liberdade de concorrência implica, em
primeiro lugar, a coibição de determinadas práticas empresariais, incompatíveis com sua afirmação.
Tais práticas são as de concorrência ilícita e classificam-se em duas categorias. De um lado, há as
que implicam risco ao regular funcionamento da economia de livre mercado, e são coibidas como
infração da ordem econômica; de outro, as que não implicam tal risco, restringindo-se os efeitos da
prática anticoncorrencial à lesão dos interesses individuais dos empresários diretamente envolvidos,
e configuram concorrência desleal.
Mas há uma segunda esfera de atuação do direito comercial, relevante à observância do princípio
de liberdade de concorrência, que não diz respeito especificamente à coibição de práticas
empresariais. Ao limitar acentuadamente as possibilidades de revisão dos contratos entre
empresários, o direito comercial também está prestigiando este princípio constitucional.
Para se compreender esta segunda esfera de atuação em prol do princípio da liberdade de
concorrência, deve-se partir da compreensão dos principais efeitos da regra da competição.
Basicamente, os consumidores terão acesso a produtos e serviços de maior qualidade e menores
preços, se esta regra da competição for observada. Que dita esta regra? Ela estabelece que serão
“premiados” os empresários que tiverem adotado as decisões empresariais acertadas e
“penalizados” os que adotaram as equivocadas. Raro é o empresário que ganha sempre. Em razão
dos riscos próprios da atividade empresarial, o mais comum é que ele tanto ganhe, como perca, em
seus negócios, obtendo o lucro da mera circunstância de que ganha mais do que perde. Conforme
destaca, com propriedade, Paula Andrea Forgioni, o direito comercial não pode poupar os
empresários de seus erros (2003:16).
Os ganhos resultam de decisões empresarialmente acertadas; e as perdas, das decisões erradas.
Há, entre as “certas”, não apenas decisões racionalmente fundadas em estudos científicos ou
tecnológicos, em profundas e percucientes análises da economia e dos hábitos dos consumidores, no
sopesar criterioso de alternativas, mas também as simplesmente intuídas pelo empresário, ou
resultantes de mera aposta dele num determinado cenário. As decisões empresarialmente “erradas”,
por outro lado, não são necessariamente provenientes de precipitações, desleixos ou falta de
competência, embora estes ingredientes se encontrem com preocupante frequência. Ainda em razão
do risco inerente a qualquer empresa, mesmo a decisão criteriosamente adotada pode se revelar um
erro. Na verdade, o acerto ou equívoco das decisões empresariais é sempre verificado a posteriori.
Boa parte delas depende da “resposta” dos consumidores: se os produtos fornecidos pelo empresário
ao mercado são comprados, sua decisão em fornecê-los foi acertada, mas se “encalham na
prateleira”, ela se revelou equivocada. Outra parte do acerto das decisões depende de fatores
macroeconômicos (como a variação cambial, inflação, o desaquecimento da economia etc.) ou de
outros absolutamente fora do controle do empresário (aumento do preço dos insumos, quebra de
safras, greves, eventos naturais que tumultuam os sistemas de transportes etc.): se tais fatores
favorecem os negócios, a decisão foi acertada; se os desfavorecem, equivocada.
Pela regra básica da competição, as decisões acertadas devem ser premiadas e as equivocadas,
penalizadas. O “prêmio” é, evidentemente, o lucro; a “penalização” advém de perdas ocasionais ou,
conforme o caso, da falência.
A regra básica da competição empresarial, que decorre do princípio constitucional da livre concorrência, implica a premiação das decisões
empresarialmente “acertadas” (com o lucro) e a penalização das “equivocadas” (com o prejuízo, ou, se o caso, a falência).
Esta regra básica não pode ser neutralizada por nenhuma norma jurídica, para que todos possam se beneficiar dos resultados esperados da livre
concorrência: melhoria da qualidade e redução dos preços de produtos e serviços.
Pois bem. O direito comercial não pode, por meio de normas jurídicas, inverter a equação desta
regra básica. Não pode transferir o prêmio, ou parte dele, do empresário que acertou para aquele que
errou. A distorção na regra básica da competição, ao impedir que os acertos sejam inteiramente
premiados, e os erros devidamente penalizados, desestimularia novos investimentos e alimentaria o
risco moral. Acabaria, enfim, por neutralizar os benefícios que a ordem constitucional espera extrair,
para toda a sociedade, do princípio da liberdade de concorrência.
Por esta razão, em decorrência deste princípio constitucional, a lesão por inexperiência não pode
ser motivo para a revisão dos contratos empresariais, nem para sua invalidação. Mostra-se mais
justo, no campo das relações regidas pelo direito civil, que a pessoa, ao assumir certa obrigação
lesiva aos seus próprios interesses, movida por inexperiência no trato dos negócios, seja preservada
dos efeitos de sua decisão equivocada. Assim, o jovem que aluga, pela primeira vez na vida, um
apartamento, se contrata mal, em razão de sua pouca experiência, deve ter o direito de conseguir, em
juízo, a revisão ou invalidação do contrato (CC, arts. 157 e 171, II). Mas, quando se trata de um
empresário, a figura da lesão por inexperiência significa uma verdadeira distorção da regra básica
da competição empresarial. Sendo profissional, o empresário não pode alegar pouca experiência
para tentar se poupar de seus erros à frente da empresa. Ademais, para que sua decisão equivocada
não seja penalizada, será necessário reduzir ou suprimir o prêmio do outro empresário, com quem
contratara. Inverter--se-ia irracionalmente a regra básica da competição, neste caso, com a
penalização do empresário que acertou e a premiação, à custa deste, daquele que errou.
O princípio da liberdade de concorrência é constitucional, geral e explícito (CF, art. 170, IV).
4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Fábio Konder Comparato (1986) mostra como do princípio constitucional da função social da
propriedade, consagrado nos arts. 5º, XXIII, e 170, III, da CF, extrai-se o da função social da
empresa. A propriedade dos bens de produção deve cumprir a função social, no sentido de não se
concentrarem, apenas na titularidade dos empresários, todos os interesses juridicamente protegidos
que os circundam. A Constituição Federal reconhece, por meio deste princípio implícito, que são
igualmente dignos de proteção jurídica os interesses metaindividuais, de toda a sociedade ou de
parcela desta, potencialmente afetados pelo modo com que se empregam os bens de produção.
Por bens de produção, como conceito jurídico, devem-se compreender todos os reunidos pelo
empresário na organização do estabelecimento empresarial. Embora sobre estes bens nem sempre o
empresário exerça especificamente o direito de propriedade (entre eles, há os alugados, os alienados
fiduciariamente, os objeto de leasing etc.), é fato que os controla e decide se serão, e como serão,
empregados na exploração de atividade econômica. Esta decisão deve se orientar pelo atendimento
da função social da empresa.
A empresa cumpre a função social ao gerar empregos, tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico, social e cultural da
comunidade em que atua, de sua região ou do país, ao adotar práticas empresariais sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeitar
os direitos dos consumidores, desde que com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita.
Cumpre sua função social a empresa que gera empregos, tributos e riqueza, contribui para o
desenvolvimento econômico, social e cultural da comunidade em que atua, de sua região ou do país,
adota práticas empresariais sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeito aos
direitos dos consumidores. Se sua atuação é consentânea com estes objetivos, e se desenvolve com
estrita obediência às leis a que se encontra sujeita, a empresa está cumprindo sua função social; isto
é, os bens de produção reunidos pelo empresário na organização do estabelecimento empresarial
estão tendo o emprego determinado pela Constituição Federal.
O princípio da função social da empresa é constitucional, geral e implícito.
5. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO
A Constituição Federal, ao assegurar a plena liberdade de associação (CF, art. 5 º, XVII e XX),
não tinha em mente as sociedades empresárias, pelo menos não como principal objeto de
preocupação. Trata-se, primariamente, de disposição de ordem política, destinada a garantir, no
estado democrático de direito, que todos possam se unir àqueles com quem nutrem qualquer
afinidade de interesses, para somarem forças na realização destes. Obviamente, aplica-se o princípio
às sociedades empresárias, que são pessoas jurídicas constituídas para disponibilizar aos seus
integrantes melhores meios para eles atingirem o objetivo comum de lucrar com a exploração de uma
atividade econômica.
A liberdade de associação, para ser plena, deve não somente assegurar que pessoas interessadas
em se unirem em torno de objetivos comuns lícitos possam fazê-la, sem encontrar óbices na ordem
jurídica (inciso XVII do art. 5º da CF), mas também vedar que alguém seja compelido a associar-se
contra a vontade, ou que não consiga se dissociar, quando quer (inciso XX). Esta última faceta da
liberdade de associação, no entanto, assume contornos específicos, quando diz respeito às
sociedades empresárias.
Isto porque a participação numa sociedade empresária não estabelece entre o integrante da pessoa
jurídica, e esta, um vínculo de natureza exclusivamente pessoal (como é o caso, por exemplo, da
participação num partido político ou num clube). O sócio necessariamente investe recursos na
sociedade (dinheiro, bens ou créditos), de modo que sua permanência ou desligamento projeta efeitos
que atingem os direitos e patrimônios de outros sujeitos, a começar pela própria pessoa jurídica
resultante da associação. Em outros termos, o direito de se desligar de uma sociedade empresária,
por geralmente afetar os interesses dos demais sócios ou mesmo importar desinvestimento, com
dragagem dos recursos alocados na empresa, só pode ser exercido sob determinadas condições.
Estas condições são estabelecidas pelo direito societário. Para referir-me a estas condições, de
um modo geral, parto da classificação das sociedades empresárias, segundo os regimes de
constituição e desfazimento dos vínculos sociais, em contratuais e institucionais.
A sociedade limitada, por exemplo, é contratual. Nela, se o prazo de duração da sociedade é
indeterminado, o sócio pode se desligar a qualquer tempo, exigindo o reembolso do capital
investido; mas se o sócio contratou com os demais um prazo determinado de duração, ele fica
obrigado a permanecer investindo seus recursos (na medida da quota subscrita) na empresa, pelo
menos durante o tempo ajustado. A impossibilidade de o sócio reclamar o reembolso do capital
durante o prazo determinado de duração da sociedade limitada não representa nenhum agravo ao
direito constitucional de livre associação, porque, ao assinar o contrato social no qual constava
cláusula determinando o prazo de duração, ele manifestou sua concordância em permanecer
associado no transcurso deste; isto é, o sócio, neste caso, renunciou ao exercício, durante certo
tempo, do direito constitucional de livremente dissociar-se.
Outras consequências advêm da natureza contratual da sociedade limitada, seja para facilitar, seja
para dificultar a dissociação. Quando um sócio falece, as quotas são, na partilha, transferidas à
titularidade de um sucessor (herdeiro ou legatário). Mas, por se tratar de sociedade originada em
contrato, e ninguém é obrigado a contratar, o sucessor pode, em vez de ingressar na sociedade, exigir
o reembolso do capital nela investido pelo sócio falecido. Por outro lado, se o contrato social
contempla cláusula submetendo a cessão de quotas a terceiros à prévia anuência dos demais
integrantes da sociedade, o desligamento por esta via fica a depender da vontade de todos os sócios.
Não há, novamente, desrespeito à Constituição, porque, tratando-se de direito disponível, ficou seu
exercício dependente do implemento desta condição (a anuência dos demais sócios) por vontade do
próprio titular do direito constitucional.
A liberdade de associação é irrestrita no momento da constituição da sociedade empresária ou do ingresso na constituída, não podendo ninguém
ser obrigado a se tornar sócio de sociedade contratual contra a vontade. Uma vez, porém, ingressando na sociedade empresária, o sócio não poderá
dela se desligar senão nas hipóteses previstas em lei.
Já a sociedade anônima é institucional, e, como visto, segue regras diversas de constituição e
dissolução dos vínculos sociais. Nela, por exemplo, ao contrário da sociedade limitada, o sucessor é
obrigado a ingressar na sociedade, não podendo exigir o reembolso do capital investido pelo
falecido. Também em virtude do caráter institucional deste tipo de sociedade empresária, mesmo no
caso de ser indeterminado o prazo de duração, o acionista não pode exigir o reembolso do seu
capital, impondo à companhia o desinvestimento, por simples vontade unilateral de não mais
permanecer associado.
Entre as condições estabelecidas pelo direito societário para o exercício da liberdade
constitucional de associação, estão as ligadas à dissidência. Em decorrência do princípio
majoritário, os sócios minoritários que discordam de decisões adotadas pela maioria, quando
alteram significativamente a estrutura ou o objetivo da sociedade empresária, podem reclamar o
reembolso do capital e dela se dissociarem. O direito de dissidência (ou de recesso) neutraliza os
efeitos da anterior renúncia ao exercício do direito constitucional de dissociação, porque ela (a
renúncia) foi declarada, pelo sócio, quando do ingresso numa sociedade com determinada
configuração; alterada esta, a renúncia obviamente deve ter a eficácia suspensa, porque não se sabe
se o mesmo sócio também concordaria em abrir mão temporariamente de seu direito constitucional
de dissociação se a estrutura ou o objeto da sociedade fosse outro.
Deste modo, a liberdade de associação é irrestrita no momento da constituição da sociedade
empresária ou no do ingresso na constituída, não podendo ninguém ser obrigado a se tornar sócio de
sociedade contratual contra a vontade. Uma vez, contudo, ingressando na sociedade empresária, o
sócio não poderá dela se desligar senão nas hipóteses previstas em lei, entre as quais a que autoriza
o reembolso em caso de dissidência ou recesso.
O princípio da liberdade de associação é constitucional, especial e explícito (CF, art. 5º, XVII e
XX).
6. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA
Quando se assenta, juridicamente, o princípio da preservação da empresa, o que se tem em mira é
a proteção da atividade econômica, como objeto de direito cuja existência e desenvolvimento
interessam não somente ao empresário, ou aos sócios da sociedade empresária, mas a um conjunto
bem maior de sujeitos. Na locução identificadora do princípio, “empresa” é conceito de sentido
técnico bem específico e preciso. Não se confunde nem com o seu titular (“empresário”) nem com o
lugar em que é explorada (“estabelecimento empresarial”). O que se busca preservar, na aplicação
do princípio da preservação da empresa, é, portanto, a atividade, o empreendimento.
Diversas soluções para os conflitos de interesses decorrem do valor que embasa este princípio. A
dissolução parcial da sociedade empresária, por exemplo, é uma construção jurisprudencial de
meados do século passado, posteriormente prestigiada pela doutrina, em que se procura conciliar, de
um lado, a solução do conflito societário, e, de outro, a permanência da atividade empresarial,
evitando-se, com isto, que problemas entre os sócios prejudiquem os interesses de trabalhadores,
consumidores, do fisco, da comunidade etc. A desconsideração da personalidade jurídica é outro
instituto que decorre do mesmo princípio, ao estabelecer os critérios a partir dos quais a fraude na
manipulação da autonomia patrimonial pode ser coibida, sem o comprometimento da atividade
explorada pela pessoa jurídica instrumentalizada no ilícito. No campo do direito falimentar, o
próprio instituto da recuperação judicial se fundamenta no princípio de que pode interessar à
coletividade a preservação de determinada atividade empresarial, mesmo quando o empresário não
se mostra suficientemente capaz de dirigi-la.
O princípio da preservação da empresa reconhece que, em torno do funcionamento regular e desenvolvimento de cada empresa, não gravitam
apenas os interesses individuais dos empresários e empreendedores, mas também os metaindividuais de trabalhadores, consumidores e outras
pessoas; são estes últimos interesses que devem ser considerados e protegidos, na aplicação de qualquer norma de direito comercial.
Não há formulação, na lei, do princípio da preservação da empresa. Ele é concluído, pela
jurisprudência e doutrina, das normas relacionadas à resolução da sociedade em relação a um sócio
(CC, arts. 1.028 e seguintes), desconsideração da personalidade jurídica (CC, art. 50; CDC, art. 28)
e recuperação judicial (Lei n. 11.101/2005). Aplicando-se a mais de um capítulo do direito
comercial (pelo menos, ao societário e falimentar), não é especial a nenhum deles.
O princípio da preservação da empresa é legal, geral e implícito.
7. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL DA
SOCIEDADE EMPRESÁRIA
A autonomia patrimonial das sociedades empresárias é uma técnica de segregação de riscos.
Outras técnicas jurídicas igualmente cumprem esta finalidade, como, por exemplo, o patrimônio
especial, a conta de participação e, em alguns casos, o condomínio. Em razão da autonomia
patrimonial, os bens, direitos e as obrigações da sociedade, enquanto pessoa jurídica, não se
confundem com os dos seus sócios. A principal implicação deste princípio é a impossibilidade de se
cobrar, em regra, dos sócios, uma obrigação que não é deles, mas de outra pessoa, a sociedade.
Outras implicações projetam-se na definição das partes do negócio jurídico e na questão da
legitimidade processual, mas com relevância menor do que a da responsabilidade patrimonial.
Se a autonomia da sociedade empresária está sendo relativizada (no direito brasileiro desde
meados do século passado), no sentido de a lei e a jurisprudência passarem a considerar os sócios
responsáveis por determinados passivos da pessoa jurídica, esta tendência não alcança (e não deve
alcançar) as relações regidas pelo direito comercial. Quando a obrigação envolve exclusivamente
empresários, como seus credores e devedores principais, o princípio da autonomia patrimonial das
pessoas jurídicas deve ser estritamente respeitado.
Noto que os credores de qualquer pessoa jurídica podem ser extremados, de um lado, entre os que
dispõem de meios para acrescer ao preço de seu produto ou serviço (ou aos juros, se for o caso) uma
taxa de risco associado às possíveis perdas que o princípio da autonomia patrimonial pode acarretar;
e, de outro, os que não dispõem destes meios. Os primeiros são chamados de credores “negociais”, e
os segundos de “não negociais”.
São negociais os empresários fornecedores de insumos mediante pagamento a prazo e os bancos
concedentes de financiamento. Estes credores podem, mediante cálculo estatístico, antecipar a
probabilidade de virem a não receber os créditos abertos às sociedades empresárias, em razão da
autonomia patrimonial destas, e acrescerem aos seus preços ou juros uma taxa de risco associado a
tal eventualidade. Quando deixarem de receber o crédito aberto a certa sociedade empresária,
exatamente por não terem podido executar bens do patrimônio dos sócios, isto não lhes trará prejuízo
porque em todos os créditos abertos a pessoas jurídicas adimplidos por estas, estes credores
(negociais) receberam um “plus”, correspondente à taxa de risco e que compensa o inadimplemento
daquela obrigação. São não negociais os credores que não dispõem de igual recurso para blindarem
seus interesses, como, por exemplo, o empregado e o consumidor.
Como se vê, os aqui chamados credores negociais são necessariamente empresários, estando, em
decorrência, a relação jurídica com a sociedade empresária devedora sujeita à disciplina do direito
comercial. Já os direitos dos credores não negociais perante as sociedades empresárias são regidos
por outros ramos jurídicos, como o direito do trabalho e do consumidor. Se, nestes últimos, a
autonomia patrimonial tem sido relativizada (embora não propriamente eliminada), em vista de
princípios e valores próprios a cada ramo jurídico, no direito comercial, ela há de ser amplamente
prestigiada.
Nas relações empresariais, o princípio da autonomia patrimonial deve ser estritamente observado
porque esta técnica de segregação de riscos está ao alcance das duas partes da relação obrigacional.
Se uma sociedade empresária, quando devedora de certa obrigação, está sob o abrigo do princípio
da autonomia patrimonial, ela não pode, na posição de credora, pretender obstar à outra sociedade
empresária, que lhe deve, o acesso a igual benefício.
Pelo princípio da autonomia patrimonial, considera-se a sociedade empresária, por ser pessoa jurídica, um sujeito de direito diferente dos sócios
que a compõem. Entre outras consequências, este princípio implica que a responsabilização pelas obrigações sociais cabe à sociedade, e não aos
sócios. Apenas depois de executados os bens da sociedade, e mesmo assim observando-se eventuais limitações impostas por lei, os credores podem
pretender a responsabilização dos sócios.
Como técnica de segregação de riscos, a autonomia patrimonial das sociedades empresárias é um
dos mais importantes instrumentos de atração de investimentos na economia globalizada. Trata-se de
expediente que, em última instância, aproveita a toda a coletividade, como proteção do investimento.
A segregação dos riscos motiva e atrai novos investimentos por poupar o investidor de perdas
elevadas ou totais, em caso de insucesso da empresa. Se determinada ordem jurídica não contemplar
a autonomia patrimonial (ou outras técnicas igualmente disseminadas de segregação de risco), é
provável que muitos investidores receiem investir na economia correspondente. Afinal, se o fato de a
empresa não prosperar e vir a experimentar perdas que acabem por levá-la à quebra, num
determinado país, colocar em risco a totalidade do patrimônio do investidor (e não somente o que
investiu no infeliz negócio), é provável que ele opte por direcionar seu capital para outro lugar.
Investidores risk makers talvez não desistam de investir na economia cuja ordem jurídica não
disponha de eficientes mecanismos de segregação de riscos; mas, certamente, ao investirem,
estruturarão as empresas com vistas a obterem um retorno mais elevado (quanto maior o risco, maior
o ganho esperado). Para lograrem este resultado, contudo, deverão encarecer os produtos ou serviços
que oferecem.
Concluindo, se o direito brasileiro não prestigiar o princípio da autonomia patrimonial das
sociedades empresárias, de um lado, os investidores tradicionais não se sentirão suficientemente
atraídos pelo ambiente negocial em nosso país, e, de outro, os produtos ou serviços fornecidos por
risk makers acabarão contribuindo para a carestia e inflação. Deste modo, interessa não somente aos
sócios das sociedades empresárias a aplicação, pelo Poder Judiciário, do princípio da autonomia
patrimonial, mas a toda a coletividade.
Antes de encerrar, convém uma pequena palavra sobre a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, a partir da qual o juiz pode, em determinados casos, sustar a eficácia
episódica do ato constitutivo da sociedade empresária, afastando os efeitos do princípio da
autonomia patrimonial. Os casos em que o juiz está autorizado a desconsiderar a personalidade
jurídica da sociedade empresária são os de manipulação fraudulenta da técnica de segregação de
riscos (concepção subjetiva da teoria) ou a confusão de patrimônios ou de objetivos (concepção
objetiva). A desconsideração da personalidade jurídica não significa, portanto, a negação da
autonomia patrimonial ou questionamento de sua importância para o regular funcionamento da
economia, em proveito de todos. Apenas quando presente um de seus pressupostos (fraude, confusão
patrimonial etc.) é que o juiz pode desconsiderar a autonomia patrimonial da sociedade empresária.
Deste modo, quando se falou, acima, em relativização deste princípio em ramos jurídicos estranhos
ao direito comercial, não se estava fazendo qualquer referência à teoria da desconsideração.
Embora, muitas vezes, ela seja impropriamente lembrada em tais relativizações (até mesmo pela
lei!), a desconsideração deve ser vista como um verdadeiro aperfeiçoamento da teoria da pessoa
jurídica.
O princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária é legal, especial e implícito.
8. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DA
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS PELAS OBRIGAÇÕES
SOCIAIS
Derivação do princípio da autonomia patrimonial, o da subsidiariedade da responsabilidade pelas
obrigações sociais só autoriza a execução de bens dos sócios, para o adimplemento de dívida da
sociedade, depois de executados todos os bens do patrimônio desta. Sendo a sociedade empresária
um sujeito de direito autônomo, enquanto ela dispuser, em seu patrimônio, de bens, não há sentido em
buscá-los no patrimônio dos sócios. Apenas depois de exaurido o ativo do patrimônio social
justifica-se satisfazer os direitos do credor mediante execução dos bens de sócio. Trata-se de
princípio aplicável a todas as sociedades, independentemente de eventual limitação da
responsabilidade dos sócios, ou de parte deles.
O princípio da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é legal,
especial e implícito.
9. PRINCÍPIO DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE
DOS SÓCIOS PELAS OBRIGAÇÕES SOCIAIS
Os riscos são inerentes a qualquer empreitada econômica. Por mais prudente, criterioso, honesto e
percuciente que seja o empresário, fatores absolutamente fora do controle dele (e de qualquer um)
podem frustrar, por completo, as consistentes expectativas depositadas numa empresa. Ao limitar a
responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade, o direito estimula os investimentos.
Diante de empreitada arriscada, as pessoas, em geral, adotam duas posturas. As de perfil mais
conservador costumam ter a tendência de se afastarem, dedicando sua energia e recursos a outros
interesses de risco menos acentuado. Já as arrojadas podem até enfrentar os altos riscos daquela
empreitada, mas desde que obtenham, em caso de sucesso, um ganho excepcional. Nos cálculos
geralmente feitos pelos investidores, sempre está presente a premissa da proporcionalidade entre
risco e lucro: quanto maior o risco, mais elevada deve ser a expectativa de ganho.
Como toda empresa pode redundar em insucesso, se este tiver o potencial de comprometer a
totalidade do patrimônio do investidor, os de perfil conservador ficarão desinteressados; e os
arrojados, para obterem o ganho proporcional ao alto risco assumido, precisarão que os produtos ou
serviços sejam oferecidos pela empresa ao mercado por preços elevados.
O princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais visa justamente
manter o risco empresarial em determinado nível que, de um lado, atraia o interesse dos investidores
conservadores e, de outro, contribua para que os preços dos produtos e serviços sejam acessíveis a
maior parcela da população.
É natural. A maioria de nós teria muito receio em envolver-se em qualquer empreitada que
poderia implicar a perda de tudo o que amealhamos em nosso patrimônio. A partir de determinado
momento da vida, todos que se empenharam decididamente em seu trabalho (manual, liberal,
empresarial etc.) conseguem reunir algum patrimônio, ainda que modesto. São os bens com que
pretendem se manter na velhice, terminar de criar os filhos, desfrutar de prazeres. Ninguém quer
expor deliberadamente a riscos de perda todos os seus bens. Também a maioria dos investidores
naturalmente pensa assim. O princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações
sociais, ao eliminar o risco de o investidor perder a totalidade dos bens do seu patrimônio, estimula
novos investimentos.
No sistema capitalista, lembre-se, o atendimento das necessidades e querências de todos depende
da iniciativa de alguns, voltada à organização de empresas privadas fornecedoras de produtos e
serviços de que precisamos ou queremos. Ao estimular novos investimentos, o princípio da limitação
da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais atende, portanto, aos interesses
metaindividuais de toda a coletividade.
Ao restringir o risco inerente a qualquer empresa econômica (limitando ao montante investido a
responsabilidade dos sócios), este princípio jurídico torna mais competitivos os empresários que
operam no mercado brasileiro. Em razão da premissa, do cálculo empresarial e da
proporcionalidade entre risco e ganhos, quanto mais prestigiado for o princípio da limitação da
responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, menores serão os preços dos produtos e
serviços oferecidos no mercado brasileiro.
A limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, portanto, não é uma forma
de torná-los irresponsáveis. Pelo contrário, é um expediente de segregação de riscos, que, ao
incentivar maiores investimentos (em especial, dos empresários com perfil conservador), traz
proveitos a toda a coletividade. Mais uma vez, o princípio do direito comercial, ao mesmo tempo em
que protege o interesse individual dos sócios da sociedade empresária (de tipo limitada ou anônima),
ampara, também, o metaindividual de todos os consumidores brasileiros.
Os sócios respondem pelas obrigações sempre subsidiariamente e, em alguns casos (limitada e anônima, entre eles), apenas até o limite fixado em
lei.
A limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, no nosso direito comercial, é princípio jurídico que atende, a rigor, apenas
aos interesses dos trabalhadores e consumidores brasileiros. Os empresários e investidores, nacionais ou estrangeiros, não são propriamente os
beneficiados por este princípio, porque podem, na economia globalizada, escolher muitos outros países (nos quais a responsabilidade pelas
obrigações sociais é limitada) para alocarem seus capitais.
Se o direito comercial brasileiro não protegesse o investimento pelo princípio da limitação da responsabilidade dos sócios, o empresário
continuaria em condições de obter o mesmo lucro, redirecionando seu investimento a outro país.
Protege-se, com o princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações
sociais, em última análise, o próprio investimento. O direito comercial brasileiro, ao enunciar o
princípio, aparelha a ordem jurídica nacional para a competição, no plano da economia global, pelos
investimentos. Em consequência, os beneficiários da proteção jurídica emanada deste princípio não é
apenas o sócio investidor, mas toda a coletividade.
O princípio da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é legal,
especial e implícito.
10. PRINCÍPIO MAJORITÁRIO NAS DELIBERAÇÕES
SOCIAIS
A sociedade empresária, sendo pessoa jurídica, deve manifestar sua vontade por meio das
pessoas naturais investidas, nesta função, pela lei e pelo respectivo ato constitutivo (estatuto ou
contrato social). O conjunto de sócios – por vezes, reunidos formalmente num órgão, a assembleia
geral – corresponde às pessoas investidas na função de definir a vontade geral da sociedade
empresária. Nesta definição, em vista do princípio majoritário, prevalecerá a vontade ou o
entendimento da maioria.
Convém destacar, desde logo, que o princípio majoritário, no direito societário, não é
democrático. Pelo contrário, quando se fala em maioria, não se está necessariamente prestigiando a
vontade ou o entendimento da maior quantidade de sócios. Se fosse democrático, o princípio
majoritário adotaria a fórmula um sócio, um voto; mas não é assim. A maioria, no campo do direito
societário, está invariavelmente associada ao risco assumido. Quanto maior o risco que o sócio
assume em determinada sociedade, maior será a sua participação nas deliberações sociais.
Deste modo, em geral, o princípio majoritário se expressa pela atribuição de poder deliberativo
ao sócio proporcionalmente às quotas ou ações (votantes) tituladas. Em decorrência, numa sociedade
limitada, o sócio titular de quotas representativas de mais da metade do capital social é o
majoritário; e na anônima, será o acionista titular de mais da metade das ações votantes, presentes na
assembleia geral. Este sócio majoritário, sozinho, pode definir a vontade da sociedade empresária,
mesmo que com ele não concordem os demais. As deliberações sociais dependem da vontade ou
entendimento de outros sócios, além do majoritário, somente se previsto algum mecanismo que o
assegure num acordo de quotistas ou de acionistas.
Ressalto que o princípio majoritário foi, acima, enunciado em seu delineamento geral. Na
sociedade limitada, a lei estabelece um complexo sistema de deliberação que exige, para a
aprovação de determinadas matérias, quorum superior ou inferior ao da maioria do capital (CC, arts.
1.061, 1.063, § 1º, e 1.076). Também para a sociedade anônima, a lei fixou quorum de deliberação
qualificado, na votação de certas matérias (LSA, arts. 136 e 221).
Pelo princípio majoritário, as deliberações sociais são adotadas, em princípio, pela vontade ou entendimento do sócio (ou sócios) que mais investiu
na empresa e, consequentemente, assumiu maior risco.
A lei fixa o quorum de deliberação, definindo-o, em alguns casos, por critério diferente.
Tema relacionado ao princípio majoritário é o do interesse da sociedade empresária. Em sua
abordagem, dividem-se os autores em torno de duas concepções básicas: de um lado o
contratualismo, reunindo os que identificam o interesse social com o da maioria dos sócios, ou, a
rigor, com o do sócio majoritário; de outro, o institucionalismo, em que estão os defensores de um
interesse social não redutível aos dos sócios. A discussão entre os adeptos dessas concepções, não
raro, leva a abstrações desprovidas de qualquer operacionalidade jurídica. Aliás, não se pode
confundir estas tendências relacionadas à questão dos interesses da empresa com as categorias da
classificação das sociedades quanto aos regimes de constituição e dissolução: são expressões
equivalentes empregadas para objetos semânticos completamente distintos.
Pois bem, cogitar-se de “interesse social” (interesse da sociedade empresária) não passa de uma
mera metáfora. Somente homens e mulheres podem ter, realisticamente falando, interesse. Uma
pessoa jurídica, sendo técnica de segregação de riscos, não pode ter interesse, senão num sentido
metafórico. Não há problema nenhum em argumentar por meio de metáforas, desde que, obviamente,
não se perca de vista o caráter artificial deste expediente linguístico – que, por definição, não
descreve seu objeto como ele é, mas como parece ser.
A que se refere, então, a metáfora do “interesse social”? Só pode se referir a outros homens e
mulheres. Há sentido, portanto, em discutir, sob o ponto de vista jurídico, eventual conflito entre os
interesses de um sócio e o da sociedade, apenas se identificados os homens ou mulheres afetados, em
seus patrimônios. Por interesse social pode-se entender, em determinados casos, o interesse dos
trabalhadores, consumidores, investidores no mercado de capital e outros homens e mulheres, aos
quais aproveita a preservação da empresa. Quando os interesses destas pessoas conflitam com os de
um sócio, é pertinente o argumento jurídico socorrer-se da metáfora do interesse social para se
referir aos primeiros.
De qualquer forma, a questão do interesse da sociedade empresária resume-se à da identificação
do seu intérprete, ou seja, da definição da pessoa natural (ou grupo de pessoas naturais) incumbida,
pela lei, de interpretar o que seria mais proveitoso ao desenvolvimento da empresa. Na maioria das
vezes, o intérprete deste interesse dito social é o sócio majoritário. Nem sempre, porém, ele está em
condições de cumprir esta função. Quando o sócio majoritário é, também, administrador da
sociedade e está em pauta a votação de suas contas, obviamente, o intérprete do interesse social não
poderá ser ele. O sócio minoritário, aqui, será chamado a interpretar o que mais proveito traz ao
desenvolvimento da empresa.
O princípio majoritário nas deliberações sociais é legal, especial e explícito (CC, arts. 1.061,
1.063, § 1º, e 1.076; LSA, arts. 110, 115, 129 e 136).
11. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO SÓCIO MINORITÁRIO
Ao atribuir ao sócio majoritário a incumbência de ser, em geral, o intérprete do interesse social, a
lei não descuida dos direitos dos demais sócios, cuja contribuição para a empresa não pode ter a
importância desprezada. O princípio da proteção do sócio minoritário limita o princípio majoritário.
Por meio de instrumentos disponibilizados aos minoritários, como os direitos de fiscalização e de
recesso, a lei impede que o majoritário acabe se apropriando de ganhos que devem ser repartidos
entre todos os sócios.
O princípio da proteção do sócio minoritário é legal, especial e implícito.
12. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
“Autonomia da vontade” é expressão cujo significado jurídico aponta para a plena liberdade de
cada pessoa de contratar, ou não, bem como de escolher com quem contratar e de negociar as
cláusulas do contrato. Esta liberdade somente encontraria limite no interesse público: contratos cuja
prestação é criminosa não são válidos, por mais que correspondam à vontade livre e conscientemente
declarada dos contratantes.
A evolução do direito contratual é uma história de crescentes limitações à autonomia da vontade.
Nos primórdios da trajetória, inspirado em valor caro à civilização ocidental, esse princípio
encontra-se ligado à noção de que ninguém pode ser obrigado contra a própria vontade. A liberdade
é o paradigma, balizada apenas pelo interesse público. À medida, porém, que se tornam mais
complexas as relações sociais, a noção jurídica de autonomia da vontade não mais consegue servir
de adequada referência à compreensão de todos os contratos.
No contrato de trabalho, por exemplo, é inapropriado falar-se em autonomia da vontade: o
trabalhador não contrata porque quer (ao contrário, precisa trabalhar para sobreviver), não escolhe
livremente o outro contratante (candidata-se às vagas disponíveis, nas habilidades que tem) e não
pode discutir minimamente as cláusulas do contrato (adere às estabelecidas, unilateralmente, pelo
patrão). O de consumo é outro exemplo de contrato em que a autonomia da vontade é acentuadamente
restringida, já que ao consumidor, muitas vezes, nega-se a opção de não contratar e a possibilidade
de escolher o contratante; e, invariavelmente, ele não pode negociar o conteúdo das cláusulas do
contrato, devendo aderir às fixadas pelo fornecedor. A demonstrar igualmente a insuficiência da
noção de autonomia da vontade na compreensão dos contratos da era contemporânea, há hipóteses de
contratações obrigatórias, como no caso de fornecimento de energia elétrica ou de determinados
tipos de seguro.
Nesta história de crescentes limitações, porém, uma espécie de contrato tem sido geralmente
poupada – o empresarial.
Sendo os contratantes empresários e relacionando-se a prestação contratada à exploração de
atividade empresarial, a autonomia da vontade ainda corresponde ao princípio jurídico mais
adequado à disciplina das relações entre as partes. Quando a indústria siderúrgica senta-se à mesa
de negociação com a fábrica de automóveis; ou o fundo de investimento passa a tratar, com o
controlador, sobre a aquisição do controle de uma companhia aberta; ou o banco de primeira linha
procura a seguradora para segurar contra roubo o transporte de valores – em situações como estas, os
sujeitos envolvidos contratam porque querem, com quem querem e do modo que querem.
O princípio da autonomia da vontade, quando pertinente a contrato empresarial, articula-se com os
da livre-iniciativa e livre concorrência. Empresários devem ser livres para contratar segundo suas
vontades porque a liberdade de iniciativa estrutura o modo de produção capitalista. Ademais, a
liberdade de contratar dos empresários não pode ser restringida, para que, assim, a competição
empresarial possa gerar, à coletividade, os benefícios esperados de redução dos preços e aumento
da qualidade dos produtos e serviços.
No contrato entre empresários (contratos empresariais), ao contrário do que se verifica no contrato de trabalho e no de consumo, a autonomia da
vontade ainda é bastante ampla, porque, em geral, as partes podem escolher entre contratar ou não, com quem contratar e negociam livremente as
cláusulas do contrato.
É indubitável que o contrato empresarial deve, como os demais gêneros de contrato, cumprir sua
função social (CC, art. 421). E isso é feito quando os contratantes atentam aos eventuais interesses
metaindividuais que poderiam ser afetados, de modo significativo, com o objeto do contrato
(Salomão, 2003). Em outras palavras, o contrato empresarial não cumpre a função social quando,
embora atendendo aos interesses das partes, prejudica ou pode prejudicar gravemente interesse
coletivo, difuso ou individual homogêneo. A cláusula geral da função social dos contratos é, desse
modo, mais uma limitação da autonomia da vontade.
Também é indubitável, por fim, que a autonomia da vontade não pode se dissociar dos demais
princípios do direito comercial. Assim, esbarra em balizas, como no caso de acentuada assimetria
entre os contratantes, hipótese em que esse princípio se articula com o da proteção do contratante
empresário mais débil (item 14).
O princípio da autonomia da vontade é legal, especial e implícito.
13. PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO DOS CONTRATANTES AO
CONTRATO
As crescentes limitações à autonomia da vontade, que resumem a história do direito contratual,
encontram certo paralelo nas sucessivas relativizações ao princípio da vinculação dos contratantes
ao contrato. O brocardo “o contrato faz lei entre as partes” é uma derivação natural da plena
autonomia da vontade. Se a pessoa teve a chance de contratar, ou não, de escolher o outro contratante
e de discutir amplamente as cláusulas do contrato, ela não pode se furtar ao exato cumprimento do
contratado. Como visto, o aumento da complexidade das relações econômicas e sociais acabou por
tornar o princípio da autonomia da vontade insuficiente à disciplina do direito contratual; em
paralelo, cada vez mais a jurisprudência e a lei foram aplacando a rigidez do princípio da vinculação
ao contrato, no sentido de dispensar o contratante de cumprir a obrigação que havia assumido, no
todo ou em parte (Guerreiro, 1978).
Desenvolveram-se, então, teorias como a da imprevisão, com o objetivo de delimitarem as
circunstâncias em que o juiz poderia se imiscuir no negócio jurídico com o objetivo de rever as
cláusulas contratadas, em vista de um critério geral de justiça. Pela teoria da imprevisão, o
contratante deve ser dispensado de cumprir a obrigação, sempre que fatos imprevisíveis a tornarem
excessivamente onerosa, implicando vantagem excepcional para o outro contratante.
Quando se trata de negócios civis ou de consumo, estas relativizações no princípio da vinculação
dos contratantes ao contrato justificam-se. No entanto, sendo empresarial o contrato, somente em
situações realmente excepcionais – e mesmo assim, desde que respeitadas as especificidades do
direito comercial – pode o juiz rever as cláusulas contratadas.
Em primeiro lugar, não basta, para autorizar a revisão judicial do contrato empresarial, a
onerosidade excessiva de uma parte ou a vantagem extraordinária da outra. Nenhum contrato
empresarial pode ser analisado isoladamente. É, aliás, muito comum, que o empresário realize
negócios que, isolados, não lhe traz nenhum ganho pontual, mas que, no contexto de sua empresa, é
extremamente vantajoso. Imagine que o empresário do ramo de segurança patrimonial celebre
contrato com renomado banco, no qual o preço contratado pelos serviços é inferior aos custos para a
prestação destes. Por que ele faria isto? Para ter no seu portfólio de clientes aquele banco. Mais que
um contrato de prestação de serviços, trata-se de um investimento que aquele empresário está
fazendo em sua empresa. Claro que não poderá, posteriormente, ir a juízo pretender a revisão do
preço contratado, mesmo provando o prejuízo que este, pontualmente, lhe acarreta.
Os empresários estão vinculados aos contratos que celebram entre eles em grau maior do que os trabalhadores e consumidores. A revisão judicial
das cláusulas do contrato empresarial não deve neutralizar a regra básica da competição, que premia, com lucros, o empresário que adotou a decisão
empresarialmente “acertada”, e pune, com prejuízos ou mesmo a falência, o que adotou a decisão “equivocada”.
Ademais, também é insuficiente, para a revisão judicial dos contratos empresariais, a mera
imprevisibilidade do fato superveniente que frustrou a expectativa de um dos contratantes. É
necessário compatibilizar-se, no campo do direito contratual empresarial, a teoria da imprevisão
com a regra básica da competição (que premia as decisões acertadas e penaliza as equivocadas). A
revisão judicial de contrato empresarial não pode nunca servir à neutralização dos efeitos de
qualquer decisão empresarial equivocada do contratante. Imagine que certo industrial brasileiro
tenha contratado a exportação de suas mercadorias, por preço fixado em dólar, e, junto a um banco
nacional, financiou esta operação, recebendo antecipação em reais do valor da exportação. Se, em
seguida à celebração do contrato, o governo norte-americano promove acentuada desvalorização do
dólar, quando o exportador brasileiro receber o pagamento das mercadorias, terá em mãos um valor
em reais inferior ao que lhe foi antecipado pelo banco, ficando, perante este, devedor da diferença.
Ora, mesmo no caso de a forte desvalorização da moeda norte-americana ser considerada “fato
imprevisível”, não haverá fundamento para a revisão do contrato firmado entre exportador e banco.
Isto porque a decisão empresarialmente correta, ao assumir qualquer crédito ou compromisso sujeito
à variação cambial, consiste na utilização de instrumentos financeiros que neutralizam os efeitos
desta (hedge). Se o industrial do exemplo não se protegeu devidamente, com um destes instrumentos
financeiros, ele tomou decisão empresarial equivocada. Para que a regra básica da competição possa
operar-se plenamente, em proveito de toda a coletividade, este exportador não poderá ser poupado
das consequências de seu erro.
O princípio da vinculação dos contratantes ao contrato é legal, especial e implícito.
14. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO CONTRATANTE MAIS
FRACO
Entre dois contratantes em igualdade de condições de negociação, os princípios da autonomia da
vontade e da vinculação ao contratado disciplinam, adequadamente, as relações contratuais. Cada
qual dispõe dos meios necessários à defesa de seus interesses, bem como à exata compreensão do
alcance das obrigações ativas e passivas contraídas por um e por outro contratante. A simetria das
partes basta para assegurar o regular fluxo das negociações e o resguardo dos legítimos interesses de
cada uma.
Contudo, em relações contratuais assimétricas, em que os contratantes não dispõem das mesmas
condições (culturais, econômicas, mercadológicas, acesso às informações etc.), a lei não pode deixar
de contemplar instrumentos de proteção dos legítimos interesses da parte mais fraca. São
necessariamente assimétricas, por exemplo, as relações no contrato de trabalho e de consumo.
Os contratos empresariais, por sua vez, podem ser simétricos ou assimétricos. Quando a
transportadora aérea de grande porte contrata a aquisição de aeronave com o fabricante deste
veículo, há inegável simetria na relação contratual. Mas, no contrato da fábrica de bebidas com os
seus distribuidores, a relação é assimétrica.
No campo do direito do trabalho, a assimetria resulta da situação de necessidade em que se
encontra o trabalhador. Ele precisa do trabalho, para ter o salário, com o qual vai se manter e à sua
família. Caracteriza-se, então, a hipossuficiência, a justificar o tratamento mais benéfico que o
direito do trabalho dispensa ao empregado. No campo do direito do consumidor, por outro lado, a
assimetria tem sentido diverso. Não é a situação de necessidade, propriamente, que torna assimétrica
a relação do consumidor com o fornecedor, e, sim, o profundo desnível no acesso às informações.
Em geral, o consumidor tem, relativamente ao produto ou serviço que pretende adquirir, apenas as
informações prestadas pelo fornecedor. Caracteriza-se, no caso, a vulnerabilidade do consumidor,
fundamento para o tratamento legal mais benéfico liberado pelo direito do consumidor.
Pois bem. No campo das relações empresariais, a assimetria não deriva nem da hipossuficiência
nem da vulnerabilidade daquele empresário contratante mais débil. O franqueado, ao contratar a
franquia, não se encontra em situação de necessidade; nem, por outro lado, pode alegar ter
insuficiente informação sobre o objeto do contrato, por ser um profissional. O que marca a assimetria
nas relações contratuais entre empresários é a dependência empresarial. De modo esquemático, a
dependência empresarial está para o empresário mais fraco, assim como a hipossuficiência está para
o trabalhador e a vulnerabilidade para o consumidor.
Por dependência empresarial entende-se aquela situação de fato, no contexto de um contrato
empresarial, em que a empresa de um dos empresários contratantes deve ser organizada de acordo
com instruções ditadas pelo outro. Esta dependência tem origem contratual, de modo que o
empresário dependente manifestou sua vontade no sentido de submeter-se à situação. No entanto,
malgrado derivar de manifestação de vontade plenamente vinculativa, a dependência empresarial
restringe a liberdade de organização da empresa. O leque de alternativas que se abre às decisões do
empresário dependente, na condução de sua empresa, é reduzido pelas orientações do outro
contratante, a quem deve acatamento. Como o empresário mais forte (distribuído, agenciado,
concedente, franqueador etc.) não está sujeito a igual limitação, na condução da empresa dele,
caracteriza-se a assimetria típica do direito comercial.
A assimetria, nos contratos empresariais, que justifica a proteção do contratante mais fraco, decorre da obrigação contratual de organizar sua
empresa seguindo orientações emanadas do outro contratante.
O empresário mais fraco, assim, não está em estado de hipossuficiência (necessidade de contratar) como o trabalhador, nem vulnerável (no acesso
às informações) como o consumidor.
A exemplo dos demais princípios de direito comercial, o da proteção do contratante mais fraco
não pode ser interpretado isoladamente. Quer dizer, também o empresário dependente, o que se
encontra na posição inferior na relação de assimetria, não pode invocar este princípio com o
objetivo de se preservar das consequências econômicas, financeiras, patrimoniais ou administrativas
das decisões que adota na condução da empresa, quando frustrarem suas expectativas ou se
mostrarem prejudiciais aos seus interesses. Se o franqueado é pessoa sem o devido trato com os
empregados, e isto atrapalha significativamente o funcionamento da empresa, a ponto de
comprometer os lucros, é claro que não terá como responsabilizar o franqueador pelo insucesso da
franquia. A regra básica da competição não pode ser neutralizada pelo merecido amparo que o
empresário mais fraco, na relação empresarial assimétrica, deve receber do direito comercial.
O princípio da proteção do contratante mais fraco é legal, especial e implícito.
15. PRINCÍPIO DA EFICÁCIA DOS USOS E COSTUMES
Particularidade do direito comercial é a importância reservada aos usos e costumes, como padrão
para a definição da existência e do alcance de qualquer obrigação entre empresários. Em nenhum
outro ramo jurídico, as práticas adotadas pelos próprios sujeitos têm igual relevância. É certo que a
globalização vem reduzindo a variedade destas práticas, no bojo do processo de pasteurização
cultural que lamentavelmente a acompanha. Dependente da crescente padronização dos mercados,
como meio de facilitar o trânsito global de mercadorias, serviços e capitais, a economia dos nossos
tempos tem, paulatinamente, prestigiado os usos e costumes internacionais e reduzido os locais.
Estes, porém, ainda cumprem função de importância em muitas operações. O direito comercial, por
meio do princípio da eficácia dos usos e costumes, reconhece como válidas e eficazes as cláusulas
do contrato empresarial em que as partes contraem obrigações de acordo com as práticas
costumeiras, seja no âmbito local ou internacional.
O princípio da eficácia dos usos e costumes é legal, especial e implícito.
16. OS PRINCÍPIOS DO DIREITO CAMBIÁRIO
Entre os sub-ramos do direito comercial, o cambiário é o único, desde sempre, marcadamente
principiológico. Destinados a conferirem maior segurança e celeridade à circulação do crédito,
elemento essencial para a dinamização dos negócios comerciais, os princípios do direito cambiário
foram enunciados há muito tempo e têm sido objeto de extensos estudos pelos comercialistas. São
três os princípios do direito cambiário: cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações
cambiais.
Pelo princípio da cartularidade, a posse do título de crédito é condição para o exercício do
direito nele incorporado. O objetivo desta regra principiológica é impedir que alguém se apresente
como credor do título, depois de ter negociado o crédito com terceiro, cedendo-o. Pelo princípio da
literalidade, só produzem efeitos os atos que constam do teor do título de crédito. Com isto, facilitase a circulação, porque potenciais adquirentes não precisam fazer investigações sobre eventuais
outros negócios jurídicos que pudessem restringir ou suprimir o crédito; mesmo que existam, como
não estão documentados na própria cártula, não produzirão efeitos que impeçam a oportuna cobrança
do título. Pelo princípio da autonomia das obrigações cambiais, vícios que possam eventualmente
comprometer qualquer das relações obrigacionais documentadas no título não se estendem às demais.
Também facilita a circulação, porque os potenciais interessados em adquirir o crédito não precisam
investigar se todas as relações obrigacionais documentadas no título são válidas e eficazes; mesmo
que alguma delas não seja, isto nunca prejudicará o direito de cobrar o título.
O princípio da autonomia das obrigações cambiárias desdobra-se em dois subprincípios, o da
abstração e o da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. São subprincípios
porque, a rigor, nada acrescentam ao que já está definido pela autonomia das obrigações cambiárias,
limitando-se a descrever a mesma disciplina jurídica por outros ângulos. O subprincípio da
abstração prescreve que, após o título ser posto em circulação, ele se desliga da relação negocial
originária e, em consequência, eventuais vícios desta relação não são óbices à cobrança do título. Já
o da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé obsta, ao demandado em razão
de um título, a possibilidade de se defender contra o credor, suscitando matérias que ele poderia
opor a outro coobrigado pelo mesmo título, a menos que prove o conluio entre este e o demandante.
A disseminação do suporte eletrônico para o registro da concessão e circulação do crédito tem
afetado, evidentemente, os seculares princípios do direito cambiário. E afeta-os, cada um à sua
maneira. Enquanto, se o título de crédito é eletrônico, o princípio da cartularidade deixa de ter
qualquer sentido e o da literalidade deve ser ajustado ao novo suporte (de modo a só reconhecer a
eficácia dos atos registrados no mesmo ambiente eletrônico do título), continua a vigorar plenamente
o da autonomia das obrigações cambiárias, e seus subprincípios da abstração e da inoponibilidade.
O objetivo destas regras principiológicas permanece, também, de dar segurança e agilidade à
circulação do crédito.
Os princípios do direito cambiário são legais, especiais e, em geral, implícitos. Apenas a
inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé é explícito (CC, art. 916; LU, art. 17;
Lei n. 7.357/85, art. 25). Voltaremos aos princípios do direito cambiário, mais à frente (Cap. 10,
item 2).
17. PRINCÍPIO DA INERÊNCIA DO RISCO
O risco é inerente a qualquer atividade empresarial. A prosperidade ou o fracasso da empresa
estão sempre sujeitos a determinada margem aleatória; não dependem de fatores inteiramente
controláveis e antecipáveis pelo empresário. A crise pode sobrevir à empresa, mesmo nos casos em
que o empresário e o administrador agiram em cumprimento à lei e aos seus deveres, e não tomaram
nenhuma decisão precipitada, equivocada ou irregular.
A inerência do risco da empresa, esclareça-se, não pode servir de escusa para o empresário
furtar-se às suas responsabilidades. Trata-se, ao contrário, de princípio informador da interpretação
das normas jurídicas aplicáveis à crise da empresa, inclusive no circunscrever do exato âmbito de
incidência das normas sancionadoras da falência fraudulenta ou criminosa.
Pelo princípio da inerência do risco a qualquer atividade empresarial, reconhece-se que a crise pode sobrevir à empresa mesmo nos casos em que o
empresário e o administrador agiram em cumprimento à lei e aos seus deveres, e não tomaram nenhuma decisão precipitada, equivocada ou irregular.
Este princípio embasa, também, o instituto da recuperação judicial. Sempre que um empresário
lança mão deste recurso, é inevitável que seus credores e toda a coletividade suportem os
respectivos “custos”. Os credores os suportam diretamente, na medida em que o plano de
reorganização estabeleça redução de seu crédito ou dilação do prazo de pagamentos. A coletividade
suporta os “custos” indiretamente, porque os empresários, em geral, para se preservarem das
consequências da recuperação judicial de alguns de seus devedores, com o tempo, passam a acrescer
aos preços de seus produtos ou serviços uma taxa de risco associada a esta eventualidade. Ora, só
tem sentido racional, econômico, moral e jurídico impor aos credores, num primeiro momento, e à
coletividade, em seguida, tais “custos”, na medida em que, sendo o risco inerente a qualquer
empreendimento, não se pode imputar exclusivamente ao empresário a responsabilidade pelas crises
da empresa.
O princípio da inerência do risco é legal, especial e implícito.
18. PRINCÍPIO DO IMPACTO SOCIAL DA CRISE DA
EMPRESA
A língua inglesa tem uma expressão largamente utilizada, pelos profissionais jurídicos, para
aglutinar as pessoas que, não sendo o empresário, têm interesses gravitando em torno do
desenvolvimento da empresa: bystanders. Não há tradução, para o português, desta expressão com
igual carga significativa. “Expectadores”, que seria a tradução literal, não diz tudo, porque sugere
alguma passividade. O argumento em torno dos princípios do direito comercial será enormemente
facilitado quando os comercialistas conseguirem cunhar uma expressão que reúna os trabalhadores
de determinada empresa, os consumidores dos produtos e serviços por ela oferecidos, os
fornecedores de insumos (empresas satélites), fisco, investidores não sofisticados do mercado de
capitais etc.
Além deste conjunto de pessoas, também a coletividade tem interesse metaindividual afetado,
direta ou indiretamente, pelos sucessos ou insucessos que marcam a trajetória de grandes empresas.
É útil a imagem de três círculos em torno da empresa – a exemplo das elipses representantes dos
movimentos dos planetas ao redor do Sol. No círculo mais próximo ao centro, estão representados os
interesses dos empresários; mas não somente os deles, como também os dos sócios da sociedade
empresária, investidores estratégicos, acionistas do bloco de controle e, nas companhias com
elevado nível de dispersão acionária, os dos administradores graduados. No segundo círculo, o
mediano, representam-se os interesses dos bystanders: os dos trabalhadores (voltados à preservação
de seus empregos e melhoria no salário e nas condições de trabalho), dos consumidores (que
precisam ou querem os produtos ou serviços fornecidos pela empresa), do fisco (cuja arrecadação
aumenta em relação direta com o desenvolvimento da atividade econômica), dos fornecedores de
insumo (empresas satélites, muitas delas exploradas por micro, pequenos e médios empresários), dos
investidores não sofisticados no mercado de capitais (se a empresa é explorada por companhia
aberta) e dos vizinhos dos estabelecimentos empresariais (normalmente, beneficiados com a
valorização do entorno). No terceiro círculo, o mais extenso, são representados os interesses
metaindividuais coletivos ou difusos da coletividade, ou seja, o de todos os brasileiros (favorecidos,
em caso de plena eficácia dos princípios de direito comercial, pelo decorrente barateamento geral
dos preços), e a economia local, regional, nacional e global (com o desenvolvimento, que, afinal, é a
soma dos desenvolvimentos das respectivas empresas).
Esta imagem ajuda a entender o princípio jurídico do impacto social da crise da empresa. Ele
justifica que os mecanismos jurídicos de prevenção e solução da crise são destinados não somente à
proteção dos interesses dos empresários, mas também, quando pertinentes, à dos interesses
metaindividuais relacionados à continuidade da atividade empresarial. A formulação deste princípio,
no direito positivo brasileiro, deriva do art. 47 da LF: “a recuperação judicial tem por objetivo
viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a
manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,
promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica”.
Em razão do impacto social da crise da empresa, sua prevenção e solução serão destinadas não somente à proteção dos interesses do empresário,
de seus credores e empregados, mas também, quando necessário, à proteção dos interesses metaindividuais relacionados à continuidade da
atividade empresarial.
O princípio do impacto social da crise da empresa é legal, especial e implícito.
19. PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA NOS PROCESSOS
FALIMENTARES
O processo de falência e a recuperação judicial importam, inevitavelmente, “custos” para os
credores da empresa em crise. Eles, ou ao menos parte deles, suportarão prejuízo, em razão da
quebra ou da recuperação do empresário devedor. Os processos falimentares, por isto, devem ser
transparentes, de modo a que todos os credores possam acompanhar as decisões nele adotadas e
conferir se o prejuízo que eventualmente suportam está, com efeito, na exata medida do inevitável. A
transparência dos processos falimentares deve possibilitar que todos os credores que saíram
prejudicados possam se convencer razoavelmente de que não tiveram nenhum prejuízo além do
estritamente necessário para a realização dos objetivos da falência ou da recuperação judicial.
Deve ser conciliado o princípio da transparência com a preservação das informações estratégicas
da empresa em crise, indispensáveis à manutenção de sua competitividade. Mesmo falido o
empresário, é possível que a atividade econômica que explorava, saneada e transferida às mãos de
pessoas mais competentes ou sortudas, ainda frutifique. Deste modo, tendo em vista este possível
cenário, toda cautela na preservação da competitividade da empresa é recomendável, não somente na
recuperação judicial, mas igualmente no processo de falência.
O princípio da transparência nos processos falimentares é legal, especial e implícito.
20. PRINCÍPIO DO TRATAMENTO PARITÁRIO DOS
CREDORES
A par condicio creditorum (tratamento paritário dos credores) corresponde a um valor secular,
cultivado pelo direito falimentar. Por ele, já que o empresário falido não terá recursos para honrar a
totalidade de suas obrigações, o justo e racional é que os credores mais necessitados (como os
trabalhadores, por exemplo) sejam satisfeitos antes dos demais, e que, entre credores titulares de
crédito da mesma natureza, não sendo suficientes os recursos disponíveis para o pagamento da
totalidade de seus direitos, proceda-se ao rateio proporcional ao valor destes.
O princípio do tratamento paritário dos credores é legal, especial e implícito.
Capítulo 3
A DISCIPLINA DA ATIVIDADE EMPRESARIAL
E A GLOBALIZAÇÃO
1. AS VANTAGENS COMPETITIVAS DECORRENTES DO
MARCO REGULATÓRIO
No regime econômico de liberdade de iniciativa e competição, os empresários devem ser
“premiados” pelo sucesso derivado exclusivamente das características de suas empresas. Aquelas
exploradas com competência, controle adequado de custos, adoção das tecnologias mais avançadas,
preocupação com a sustentabilidade ambiental, respeito aos direitos dos consumidores e constantes
reinvestimentos no aprimoramento da organização empresarial dispõem de saudáveis meios para se
desenvolverem, conquistando crescentes fatias do mercado. Pode-se dizer que as empresas com tais
características ostentam “vantagens competitivas” de fundo econômico; ou seja, elas tendem a se sair
melhor que a concorrência por serem economicamente avantajadas.
Ao lado, porém, dessas vantagens competitivas de raízes econômicas, há outras que não guardam
nenhuma relação direta com as características das empresas. Não são vantagens originadas da
competência dos empresários, e, porque beneficiam indistintamente a todos os de determinados
segmentos da economia, acabam premiando também os menos competentes, implicando uma séria
distorção dos fundamentos do regime de liberdade de iniciativa e competição. Essas vantagens
competitivas decorrem do marco regulatório, isto é, do direito vigente em cada país (leis,
regulamentos administrativos, sua interpretação pelos Tribunais etc.). São vantagens “institucionais”,
de fundamentos distintos dos das “econômicas”, pois não derivam de nenhuma manifestação de
competência empresarial.
Tome-se um exemplo bastante simples, de expediente empregado há tempos por diversos países
com o objetivo de “proteger” sua indústria: a cobrança de elevados impostos de importação. Nesse
caso, o empresário nacional goza de uma vantagem competitiva institucional, na medida em que pode
oferecer o seu produto no mercado “interno” com preço bem inferior ao concorrente importado (o
importador só consegue recuperar o tributo pago, repassando-o ao preço do produto). Observe-se
que os dois empresários (o industrial nacional e o importador) não estão competindo “em pé de
igualdade”: a ordem jurídica conferiu a um deles excepcional condição vantajosa. Provavelmente o
imposto de importação é alto, nesse caso, porque, se não houvesse nenhum entrave à livre
competição e esta dependesse exclusivamente de fatores econômicos (as características de cada
empresa competidora), o produto importado seria o preferido pelo consumidor. Além dessa política
tarifária, há vários exemplos de vantagem competitiva decorrente do marco regulatório: leis de
proteção ao meio ambiente, controle fitossanitário, subsídios, direitos trabalhistas etc.
Note-se que nenhum empresário, ao se aproveitar de uma vantagem de natureza institucional,
incorre, por só este fato, em concorrência desleal (Cap. 7, item 2). Pelo contrário, ele está se
posicionando na competição empresarial atendendo a um dos pressupostos da lealdade competitiva,
que é o respeito à ordem jurídica. Não se trata de um ilícito, portanto. Acontece, porém, que as
vantagens competitivas derivadas do marco regulatório (tanto quanto a concorrência ilícita)
dificultam o adequado funcionamento da economia de livre mercado.
As vantagens institucionais expressam-se por meio do direito- -custo, quer dizer, por normas
jurídicas e suas interpretações que interferem no preço dos produtos e serviços oferecidos no
mercado em que incidem (Cap. 1, item 11).
A vantagem competitiva pode ter origem na competência do empresário para organizar sua empresa e concorrer (vantagem econômica) ou no
marco regulatório, isto é, nas leis, nos regulamentos e nas interpretações jurisprudenciais aplicáveis (vantagem institucional).
O regime de liberdade de iniciativa e competição funciona adequadamente quando os empresários se diferenciam apenas a partir de vantagens
econômicas. As vantagens institucionais, por sua vez, comprometem o regular funcionamento deste regime e, por isso, devem ser paulatinamente
eliminadas.
Uma das preocupações do direito do comércio internacional consiste exatamente em viabilizar a
eliminação gradual das vantagens competitivas decorrentes do marco regulatório. Essa eliminação, a
rigor, é o ponto central do processo de globalização. Por isso, as diplomacias dos países de todo o
mundo, bem como organismos internacionais (OMC, principalmente), empenham-se em discutir e
celebrar acordos que visem à supressão das vantagens institucionais. Não é um processo negocial
fácil, nem célere. Ao contrário, tem registrado e continuará registrando avanços e recuos. Como,
porém, a globalização é, realisticamente falando, o único meio de atender à constante necessidade do
capitalismo de ampliação dos mercados (Coelho, 2004, 2:233/239), todas as vantagens competitivas
decorrentes do marco regulatório terão, um dia, que desaparecer.
2. PRINCÍPIOS DO DIREITO DO COMÉRCIO
INTERNACIONAL
Com a preocupação de reduzir ou eliminar vantagens competitivas institucionais, os Estados têm
negociado e assinado tratados e convenções internacionais, principalmente a partir do fim da segunda
guerra (por exemplo, o General Agreement on Tariffs and Trade – GATT, cuja primeira versão é de
1947). Desses documentos internacionais em vigor atualmente no Brasil, podem-se extrair alguns
princípios do direito do comércio internacional.
a) Cláusula da nação mais favorecida. Por este princípio, nenhum Estado pode conceder aos
produtos originados de outro Estado qualquer benefício (vantagem, favor, privilégio ou imunidade)
que não seja concedido, na mesma medida, aos produtos originados dos demais Estados participantes
do Tratado. Este é o principal instrumento de impulso ao multilateralismo, na medida em que amplia
para todos os países os benefícios constantes de acordos bilaterais. Se o país A celebra, por
exemplo, com o país B, acordo isentando o imposto de importação para eletrodomésticos fabricados
neste último, ele é obrigado, pela cláusula da nação mais favorecida, a estender o mesmo tratamento
tributário aos eletrodomésticos provenientes de qualquer outro país sujeito ao mesmo princípio.
A extensão do tratamento mais benéfico é, por assim dizer, “automática”; isto significa que não
está sujeita a qualquer condição, independe de formalidades. Basta ter sido concedido o benefício
aos produtos de um país específico, para que ele possa ser, de imediato, aproveitado também pelo
empresário de qualquer outro país.
A cláusula da nação mais favorecida não tem aplicação em algumas hipóteses, como a autorização
específica para a concessão de benefício em favor de países em via de desenvolvimento (Cláusula
de Habilitação) ou os tratamentos diferenciados observados no interior duma zona de integração
econômica regional. Tempera-se, nessas hipóteses, o multilateralismo, em razão do reconhecimento
da importância de certos acordos bilaterais ou regionais para o avanço do processo de liberalização
do comércio global.
b) Tratamento nacional. Por este princípio, a ordem jurídica deve liberar aos produtos
fabricados no país e aos importados, quando similares, igual tratamento. Uma vez internalizada a
mercadoria proveniente do exterior, ela deve sujeitar-se ao mesmo regime jurídico, inclusive
tributário, aplicável às fabricadas no país, com as quais concorra. Nenhum Estado pode, por
exemplo, cobrar tributos internos com alíquotas diferenciadas na comercialização de produtos
nacionais ou importados; não pode também, outro exemplo, impor ao comerciante do produto
importado obrigações relativas à publicidade, à oferta, ao transporte e à utilização no mercado
interno que não sejam igualmente exigíveis daquele que comercializa o similar nacional.
c) Repressão ao dumping. Quando o empresário vende seus produtos num país estrangeiro por
preço inferior ao praticado em seu próprio país, esta prática, conhecida por dumping, provoca
distorções na livre concorrência e, por isso, deve ser reprimida. Esse empresário pode ser obrigado,
pelo Estado em cujo território se pratica o preço predatório, a pagar um “direito antidumping”, que
torne mais gravosa e desestimule essa tentativa agressiva de conquista de mercados.
Os princípios do direito do comércio internacional norteiam o processo de liberalização do comércio global, mediante a redução ou eliminação das
vantagens competitivas institucionais. Destacam-se três: princípio da nação mais favorecida, do tratamento nacional e da repressão ao dumping.
Obviamente, este Curso é o lugar apenas para uma menção bastante genérica a tais princípios. Seu
estudo e aprofundamento, bem como o das regras derivadas e dos instrumentos de implementação são
objeto de outra disciplina jurídica: o direito do comércio internacional . Como o estudioso do
direito comercial necessita conhecer o contexto em que, hoje em dia, se desenvolve o comércio, a
abordagem sucinta do tema é imprescindível. No futuro, quando houver um único mercado planetário,
o direito do comércio internacional deixará de existir e todas as relações entre empresários, mesmo
os sediados em países diferentes, serão regidas pelo direito comercial globalmente harmonizado.
3. INTEGRAÇÃO ECONÔMICA E A CLÁUSULA SOCIAL
Um dos aspectos mais sensíveis na questão da eliminação gradual das vantagens competitivas
derivadas do marco regulatório, por meio de acordos internacionais, consiste no que se
convencionou chamar de “cláusula social”. Quanto menos protetora dos direitos humanos e do meio
ambiente for determinada ordem jurídica, maior será a vantagem competitiva do empresário cuja
empresa estiver sujeita a esta ordem. A liberalização do comércio global depende, em consequência,
da concomitante elevação do padrão de proteção dos direitos humanos e do meio ambiente.
Imagine que um Estado não coíba o trabalho infantil. Normalmente, a utilização de mão de obra de
crianças acaba proporcionando ao empresário uma extraordinária economia de custos, por serem os
“salários”, nesse caso, extremamente baixos. Como não há repressão à inominável prática, os
empresários sediados no território deste Estado podem exportar seus produtos a preços inferiores
aos praticados pelos sediados onde o trabalho infantil foi completamente erradicado. Igual raciocínio
se pode aplicar relativamente àqueles Estados em que não existem ou são incipientes o direito do
trabalho e a legislação ambiental. Até mesmo a elevação do grau de tutela de alguns direitos
fundamentais, como a liberdade de expressão ou de organização sindical, é importante na redução de
vantagens competitivas institucionais.
Na Índia, as pessoas são divididas em castas e a mobilidade social é mínima. As massas nascidas
na casta inferior, exatamente por não nutrirem perspectivas de ascensão social, pressionam menos o
Estado pela universalização do acesso à educação, saúde e previdência. Nesse cenário, sobram mais
recursos estatais para investimentos em infraestrutura do que, por exemplo, no Brasil, onde as
demandas sociais consomem parte considerável da receita do Estado e contribuem para o déficit
público. Em decorrência, o empresário indiano goza de uma vantagem competitiva derivada do
marco regulatório, em relação ao brasileiro. Vantagem que somente com a eliminação do sistema de
castas poderá ser neutralizada.
O grau de proteção aos direitos humanos e ao meio ambiente também guarda relação indireta com a criação de vantagens competitivas
institucionais. Quanto menor a proteção liberada pela ordem jurídica, maior a vantagem desfrutada pelo empresário sediado no país a ela sujeita. A
liberalização do comércio global acaba forçando a elevação do nível de proteção dos direitos humanos e do meio ambiente.
A globalização nivela pelo alto. Há como que um “padrão civilizatório”, observável nas
democracias centrais do sistema capitalista, a servir de meta a ser perseguida e, cedo ou tarde,
alcançada por qualquer país interessado em inserir-se na economia globalizada.
4. PROCESSO DE INTEGRAÇÃO ECONÔMICA REGIONAL
A globalização da economia, processo de superação das fronteiras nacionais no desenvolvimento
do comércio, ao mesmo tempo em que possibilita, também força a integração regional. O Brasil e
alguns países territorialmente próximos estão envolvidos no processo de integração econômica que
se denominou “Mercado Comum do Sul — Mercosul”, previsto no Tratado de Assunção de 1991.
Está envolvido, também, com outros países do continente americano, na construção da ALCA –
Associação de Livre Comércio das Américas.
Os processos de integração econômica regional, em termos gerais, têm se desenvolvido por
etapas progressivas, conceitualmente distintas. Em primeiro lugar, busca-se a organização da
denominada “Zona de Livre Comércio”, estágio que representa o objetivo final do NAFTA ( North
American Free Trade Association), de que participam os Estados Unidos, o México e o Canadá; ou
da EFTA ( European Free Trade Association), constituída pela Islândia, Noruega e Suíça; ou
também da ALCA. Nessa etapa do processo integrativo, os estados participantes da Zona assumem
reciprocamente o compromisso de eliminar as barreiras tarifárias existentes nas suas fronteiras, para
as mercadorias produzidas nos demais países participantes. Isto é, as mercadorias produzidas em
cada um dos países envolvidos no processo de integração têm livre circulação nos demais. As
barreiras tarifárias permanecem apenas em relação aos produtos importados por empresas sediadas
em qualquer um dos países participantes, para a comercialização nos outros.
O processo de integração econômica tem-se desenvolvido, basicamente, por meio de algumas etapas, com características próprias.
A primeira costuma ser denominada “Zona de Livre Comércio”. Nesta etapa, os países participantes do bloco regional econômico eliminam as
barreiras tarifárias dos produtos neles fabricados.
Uma definição econômica e jurídica indispensável para o bom desenvolvimento da “Zona de
Livre Comércio”, enquanto etapa do processo integrativo, é a relacionada à nacionalidade dos
produtos que transitam pelas fronteiras dos países participantes. Isto é, devem-se negociar os
critérios segundo os quais se pode considerar, por exemplo, brasileiro um produto fabricado no
Brasil, mas com utilização de componentes e tecnologia importados. É uma questão crucial — essa
do controle de origem dos produtos — para se definir se cabe ou não a tarifação de determinada
mercadoria. O desenvolvimento do processo integrativo depende muito da discussão da
nacionalidade das mercadorias, já que cada país participante mantém, em relação às importadas de
países não participantes, sua própria política aduaneira. Pode, assim, haver sérias distorções na
competição entre empresários de dois diferentes países da “Zona de Livre Comércio”, se um deles,
por exemplo, puder importar mercadorias fabricadas na Ásia para comercializá-las, como se fossem
nacionais, no mercado consumidor do outro país participante da Zona, pagando impostos de
importação menores dos que os pagos pelos empresários sediados nesse último.
Outra preocupação típica desse período do processo integrativo diz respeito à identificação e
estudo das denominadas barreiras não tarifárias, isto é, fatores econômicos, administrativos,
burocráticos e até mesmo culturais, que interferem — ou podem vir a interferir, a partir do
desenvolvimento do processo integrativo — com a circulação de mercadorias. A eliminação dessas
barreiras far-se-á ao longo do processo de integração, mas a paulatina atenuação de seus efeitos deve
ser desde logo deflagrada. Assim, por exemplo, é importante examinar as condições de
uniformização dos procedimentos burocráticos, de cunho aduaneiro, exigidos nos diferentes países
integrandos, da disciplina antidumping, das regras de controle sanitário etc.
A segunda etapa do processo integrativo se costuma chamar “União Aduaneira”. Nessa etapa, os
participantes mantêm a liberdade de circulação de mercadorias entre as suas fronteiras e
uniformizam as tarifas de importação incidentes sobre as trazidas de países não participantes. Na
etapa correspondente à “União Aduaneira”, não tem a mesma importância a discussão sobre os
critérios de nacionalidade dos produtos, o estabelecimento de regras de controle de origem. Nesse
momento do processo integrativo, a prática de tarifa única torna irrelevante, sob o ponto de vista da
tributação, o país pelo qual a mercadoria ingressa no mercado de consumo correspondente à União.
Permanecem, entretanto, atuantes outros fatores econômicos e muitas barreiras não tarifárias. Assim,
a qualidade e o custo dos serviços de transporte, portuários ou aeroportuários de cada um dos países
integrandos, por exemplo, serão decisivos para o importador encontrar a melhor alternativa para
introduzir a mercadoria no território da União. Se um porto tem preço dos serviços de desembarque e
estadia superior ao do situado em outro país da União Aduaneira, o empresário preferirá importar
suas mercadorias por este último, mesmo para comercializá-las no mercado correspondente ao país
em que se situa aquele primeiro porto.
A segunda etapa é a “União Aduaneira”, em que os países participantes do bloco regional econômico uniformizam suas políticas de comércio
exterior, padronizando as alíquotas para a importação e exportação de produtos.
A terceira etapa tem sido identificada, normalmente, como a do “Mercado Comum”, meta prevista
pelo Tratado de Assunção. Nessa etapa, os países envolvidos com o processo de integração adotam
compromissos internacionais que possibilitam o livre trânsito de mercadorias, capitais, bens,
pessoas e serviços entre os respectivos territórios nacionais. Condição inafastável para se alcançar
esse degrau de integração econômica é a unificação de determinados regramentos jurídicos, de modo
a possibilitar iguais condições de competição entre os empresários de cada um dos países
integrandos.
A terceira etapa é a do “Mercado Comum”, em que é permitido, entre os países participantes do bloco regional econômico, o livre trânsito de
mercadorias, capitais, bens, pessoas e serviços.
O desenvolvimento do processo integrativo em suas três etapas principais depende
fundamentalmente da supressão das assim denominadas “barreiras não tarifárias”. Algumas delas,
como a dos custos dos serviços de transporte, portuários ou aeroportuários, dependem, ou podem
depender pelo menos em parte, da iniciativa privada. Outras barreiras não tarifárias devem ser
eliminadas pela atuação conjunta dos estados participantes do processo integrativo. São elas: a)
exigências burocráticas desiguais relacionadas à circulação de mercadorias e serviços, em especial
as pertinentes aos documentos que os devem acompanhar; b) diferenças e duplicidade de
procedimentos aduaneiros, de controle e fiscalização do trânsito de mercadorias; c) diferentes regras
de controle sanitário, de proteção fitossanitária e pecuária, ou diferentes modos de as aplicar; d)
variações e até mesmo conflitos nas normas técnicas, de segurança ou metrologia; e) divergências
nos critérios de conversibilidade de moedas; f) políticas diversas de incentivos fiscais ou subsídios
econômicos (cf. Baptista, 1994:20).
Como se pode antever, durante todo o processo de integração, são entabuladas, entre os agentes
governamentais e os próprios setores organizados da sociedade e da economia de cada um dos
países envolvidos, inúmeras negociações. Integrar, pode-se dizer, é fudamentalmente negociar com
parceiros. O Mercosul pode ser considerado, desde 31 de dezembro de 1994, uma União Aduaneira
imperfeita. É certo que o Tratado de Assunção preceitua que, nesta data, já se implantaria o Mercado
Comum (art.1º), e é fato que não se pode considerá-lo uma simples zona de livre comércio, porque já
está eliminado o certificado de origem dos produtos nacionais. Chama-se imperfeita a união
aduaneira do Mercosul em razão das inúmeras exceções à Tarifa Externa Comum (Accioly, 1996).
De qualquer modo, identificando no estágio de evolução do processo integrativo, iniciado no
primeiro dia de 1995, a primeira fase de zona de livre comércio, ou uma inconclusa segunda fase de
união aduaneira, o fato é que o Brasil e seus parceiros se encontram ainda às voltas com enormes
dificuldades para alcançar a meta fixada em 1991, em Assunção (cf. Ana Pereira, 1997). O
fortalecimento do Mercosul depende, na verdade, do aprofundamento do processo de integração.
Quando os conflitos entre empresários e governos dos países do bloco — principalmente os do
Brasil e Argentina — afloram, os economistas costumam apontar como saída a adoção de políticas
econômicas coordenadas; em outras palavras, passos em direção à derradeira etapa da integração
regional: a de formação da comunidade econômica. A despeito das imensas dificuldades que
apresenta, o fortalecimento do Mercosul é vital para que os países componentes deste bloco possam
negociar melhor sua integração à ALCA e os acordos comerciais com a União Europeia.
4.1. Harmonização do Direito
No campo jurídico, o aspecto mais relevante do processo integrativo diz respeito à eliminação de
diferenças legislativas que possam obstaculizar o seu desenvolvimento. Os tratados, inclusive o de
Assunção de 1991, e demais documentos firmados pelos estados participantes, costumam mencionar
a harmonização do direito vigente em cada país como um dos principais objetivos propostos. Por
sua vez, os doutrinadores de direito de integração distinguem entre coordenação, harmonização e
aproximação de normas ou ordenamentos, procurando encontrar as nuanças características de cada
uma. Segundo o ensinamento mais corrente, coordenadas seriam as normas jurídicas que não
apresentam incompatibilidades, harmonizadas as que produzem os mesmos efeitos e aproximadas as
que adotam diretivas de órgãos comunitários supranacionais (Faria, 1995:12/16).
Na verdade, o processo integrativo não depende exatamente da absoluta uniformização das
normas, no sentido de vigência de um texto único. O modelo da uniformização foi o usado, nos anos
1930, pelas Convenções de Genebra para a adoção de uma disciplina comum sobre os principais
títulos de crédito (letra de câmbio, nota promissória e cheque). Naquele momento, a uniformização
do texto legislativo sobre determinados assuntos foi o mais adequado instrumento encontrado pela
diplomacia, para estimular os negócios no comércio internacional — objetivo, convenha-se, bem
mais modesto que o da integração econômica. Já o processo de globalização do final do século XX,
por sua amplitude, dinâmica e objetivos, não poderia se limitar ao mecanismo da uniformização da
lei, reclamando dos serviços diplomáticos a criação de expedientes mais flexíveis, capazes de
compor os múltiplos interesses envolvidos.
O pressuposto do desenvolvimento do processo integrativo, nesse contexto, não é a uniformização
redacional de textos de leis, mas a harmonização do sentido do comando normativo nelas existente e,
em consequência, a expectativa de identidade dos seus efeitos.
Para o desenvolvimento do processo de integração regional, é necessária a harmonização do direito vigente nos países participantes.
O Tratado de Assunção menciona o compromisso de os integrantes do Mercosul harmonizarem
suas legislações “nas matérias pertinentes para obter o fortalecimento do processo de integração”.
Para um documento diplomático, não seria talvez factível pretender algo diverso de uma fórmula tão
genérica e imprecisa. De fato, o acordo não especifica as áreas em que se deve buscar a
harmonização, nem fixa metas claras quanto a esse tema do processo de criação do mercado comum.
Cabe à tecnologia jurídica, em sua independência acadêmica, contribuir para a concretização do
enunciado constante do instrumento internacional. Fixar os parâmetros teóricos e conceituais a partir
dos quais se possa aclarar o que cabe entender, exatamente, por “fortalecimento do processo
integrativo”, para fins de delimitação do campo de negociações da harmonização legislativa, é tarefa
para os tecnólogos do direito.
Alguns autores consideram que a harmonização das legislações dos países integrantes do mercado
comum deve alcançar um arco bastante largo de regimes jurídicos. Luiz Olavo Baptista, por exemplo,
considera que o livre trânsito de pessoas, bens e serviços característico do Mercado Comum torna
potencialmente sujeita a mudanças toda a legislação civil, inclusive os capítulos do direito de
personalidade, família e sucessão (1994:22). No meu modo de entender a questão, no entanto, a
harmonização pressuposta do desenvolvimento do processo de integração refere-se a um campo
normativo bem restrito e delimitável. A construção do mercado comum, em suma, depende
fundamentalmente de um direito-custo harmonizado. Isto é, a integração legislativa diz respeito às
normas jurídicas que interferem direta ou indiretamente nos custos da produção e demais atividades
econômicas. Normas sobre usucapião, direito criminal impositivo de sanções limitadoras da
liberdade individual, família, sucessão, infância e adolescência, processo judicial de conhecimento,
valores mobiliários, benefícios previdenciários, funcionalismo público, licitação e direito
financeiro, desapropriação, direito eleitoral e tantas outras que não obrigam o empresário a rever o
preço dos seus produtos ou serviços, para preservar a margem de lucratividade esperada, são normas
cuja harmonização é plenamente dispensável. Já as normas pertinentes à tutela dos consumidores,
tributos incidentes sobre atividade econômica, proteção da propriedade industrial, repressão ao
abuso do poder econômico, recuperação de crédito e outras, de efeitos imediatos ou mediatos sobre
o cálculo empresarial, reclamam harmonia como condição para o desenvolvimento do processo
integrativo.
A harmonização indispensável ao desenvolvimento do processo de integração econômica diz respeito às normas que interferem no custo das
atividades econômicas (“direito-custo”).
Em outras palavras, o objetivo fundamental da harmonização do direito-custo é o de eliminar as
vantagens e desvantagens competitivas entre os empresários de cada país do bloco. Se um deles
possui direito tributário ou do trabalho que impõem menos encargos aos seus empresários na
produção, estes têm vantagens competitivas para negociar seus produtos nos mercados dos demais
países do bloco. Os empresários desses outros, porque estão sujeitos a regras mais onerosas de
direito tributário ou do trabalho, acabam produzindo bens ou serviços mais caros. Se um dos países
possuir direito do consumidor mais evoluído, no sentido de impor maiores obrigações aos que
comercializam bens ou serviços no seu mercado, inverte-se a vantagem competitiva: os seus
empresários podem vender nos demais países do bloco a preços mais competitivos que os sediados
nestes últimos em relação ao mercado consumidor mais bem protegido. Para alcançar a fase de
integração denominada “mercado comum”, é indispensável eliminarem-se as vantagens e
desvantagens competitivas entre os empresários dos países envolvidos no processo de integração e
isto se faz com a harmonização do direito-custo.
A propósito, ao discutir sua interessante tese da descodificação e da ressistematização do direito
privado, Ricardo Luis Lorenzetti lembra que alguns países disputam a condição de sede de empresas,
instituindo legislações com baixos graus de proteção, das quais decorrem menores custos para a
instalação de atividades econômicas. Segundo anota, à medida que os estados atingidos por essa
política de captação de investimentos pressionam tais países, no sentido de exigir o cumprimento de
alguns direitos fundamentais, e à medida que os organismos internacionais de crédito condicionam a
outorga de financiamento à observância de tais direitos, e se multiplicam acordos de livre comércio
com referência a regulações mínimas, acaba surgindo uma normatização dos direitos fundamentais e
das condições de competição proveniente de diversas vias. Desse modo, as vantagens competitivas
de cada nação paulatinamente deixam de sacrificar ou limitar direitos humanos ou garantias
fundamentais, para se assentarem em aspectos diversos do regramento jurídico (1995:34/35). De
fato, a disparidade entre ordens normativas nacionais mais ou menos protetoras de direitos
individuais — inclusive e principalmente os trabalhistas — cria a possibilidade de o empresário
sediado no país menos protetivo vender os seus produtos, com preço bastante inferior aos praticados
nos mercados dos países mais protetivos. É o que já se denominou por dumping “social”, problema
típico da globalização da economia, responsável inclusive pela manutenção de políticas
protecionistas de indústrias nacionais.
Na implantação de um mercado comum, é claro que tais disparidades devem ser eliminadas. Mas
note-se que o processo de integração econômica tende, normalmente, a aproximar estados com
alguma identidade histórica e cultural — como é, aliás, o caso do Mercosul. Assim, as diferenças
entre os graus de proteção aos direitos individuais dos países participantes do processo integrativo
não são, já de antemão, enormemente acentuadas. A harmonização dos ordenamentos vigentes, então,
deve se preocupar mais com as “vantagens competitivas” não assentadas nos direitos humanos e
garantias fundamentais, para usar a expressão de Lorenzetti. E, desse modo, ganha relevo a
harmonização do direito comercial, nos aspectos em que interferem com o cálculo empresarial.
4.2. Harmonização do Direito Comercial
A harmonização do direito comercial ou empresarial, compreendida no sentido acima de
igualação dos efeitos dos comandos normativos de direito-custo das ordens jurídicas dos países em
processo de integração, poderá ser alcançada por três formas diferentes: a) com a alteração do
direito positivo dos estados participantes para fins de ajustá-lo ao vigente em um deles, escolhido
como paradigma; b) pela alteração do direito positivo vigente em todos os estados participantes,
para a adoção de novos modelos de disciplina jurídica; c) pela interpretação do direito vigente num
país participante, a partir de referências a princípios ou normas adotados pelo direito de outro ou
outros países participantes (interpretação integrativa). Note-se que apenas nas duas primeiras
hipóteses a mudança formal da legislação é necessária. A terceira via independe de uma tal mudança;
decorrerá, na verdade, de progressos na criação de uma comunidade jurídica do Mercosul (sobre o
conceito de comunidade jurídica: Coelho, 1992b:14/16). Nesse contexto, embora a tecnologia
jurídica tenha contribuições a dar nos três meios delineados, é evidente que a importância dessas
aumenta consideravelmente no último. A comparação do direito de empresa em vigor no Brasil e na
Argentina pode servir à exemplificação desses mecanismos, cabendo, contudo, a expressa
advertência de que pretendo aqui desenvolver um simples exercício de exploração das
possibilidades abertas por cada hipótese, sem defender necessariamente uma específica solução para
o desenvolvimento da diplomacia do processo integrativo.
A primeira forma de harmonização — a adoção de normas vigorantes em um dos países do
mercado comum como paradigma para os demais — pode-se ilustrar pela questão da
responsabilidade do empresário por acidentes de consumo. A discussão sobre essa matéria centra-se
em duas concepções desenvolvidas pelo moderno consumerismo, isto é, a superação do princípio da
relatividade contratual e a da culpabilidade.
Vigora no direito brasileiro a regra de responsabilização objetiva do fabricante, produtor,
construtor, importador e prestador de serviços, pelos danos decorrentes de fornecimento defeituoso
(CDC, arts. 12 e 14). Adotou a lei brasileira, portanto, os dois postulados do consumerismo, de
modo que, em virtude dela, pode o consumidor demandar indenização por acidente de consumo
contra qualquer dos empresários da cadeia de produção e distribuição, mesmo que não tenha havido
contrato com o demandado (superação do princípio da relatividade contratual) e independente da
existência de culpa deste (superação do princípio da culpabilidade).
Quanto ao primeiro aspecto da questão (a superação do princípio da relatividade), importa
considerar que o consumidor, via de regra, contrata com um comerciante varejista, e não diretamente
com o fabricante. Condicionar o exercício do direito à indenização ao princípio da relatividade dos
contratos, de modo a decretar a carência de ação judicial promovida contra o fabricante, que não foi
parte no contrato de compra e venda, equivale, muitas vezes, a deixar sem tutela o consumidor. O
varejista, com efeito, nem sempre dispõe dos recursos para responder pelos prejuízos derivados de
acidente de consumo, nem pode, por outro lado, responder por problemas ocorridos em fases do
processo econômico sobre as quais não teve nenhum controle.
A responsabilização objetiva, por seu turno, é também o modo mais racional de se disciplinar a
matéria, tendo em vista a inevitabilidade do oferecimento ao mercado de alguns produtos ou serviços
defeituosos. Está, sem dúvida, além da capacidade humana produzir bens e comodidades
absolutamente perfeitos, sem nenhuma impropriedade capaz de causar danos aos seus consumidores e
usuários. Sendo inevitável o fornecimento defeituoso, apesar do emprego das mais avançadas
técnicas de produção e de controle de qualidade, o consumidor vitimado por acidente de consumo
fica sem proteção no sistema da responsabilidade subjetiva. Se o empresário demonstrar que fez tudo
ao alcance da limitada natureza humana para organizar sua empresa, não se poderá imputar-lhe culpa
e, em decorrência, a causa do acidente somente se poderá conceituar como caso fortuito ou força
maior. No sistema clássico da responsabilidade subjetiva, a vítima arca com as consequências do
evento danoso com uma tal qualificação jurídica. Já no da responsabilidade objetiva, será o
empresário que deve indenizar a vítima — salvo se ela foi a única responsável pelos danos que
sofreu (CDC, art. 12, § 3º, III) —, na medida em que ele tem os meios para absorver o valor
despendido na indenização como elemento de custo de sua atividade empresarial.
No direito argentino, o projeto da lei de defesa do consumidor sancionado pelo Congresso previa
a responsabilidade solidária do produtor, fabricante, importador, distribuidor, fornecedor, vendedor,
prestador de serviços ou quem tenha posto sua marca na mercadoria ou no serviço defeituoso (Lei n.
24.240, art. 40). Essa previsão não se tornou direito vigente, quando da sanção e promulgação, em
1993, porque foi vetada pelo Presidente da República (ou “observada”, como se diz na Argentina).
O dispositivo em questão, no entanto, embora viabilizasse o superamento do princípio da
relatividade contratual, não era claramente filiado ao sistema da responsabilidade objetiva, já que
mencionava a exoneração dos empresários que não contribuíram para o evento danoso, e não fazia
referência expressa à irrelevância da culpa para a responsabilização dos agentes elencados.
Notem-se as razões do veto: “El sistema (do projeto de lei) es más amplio que los vigentes en
países más avanzados en la producción de bienes y servicios y inclusive del sistema del principal
socio de la República Argentina en el Mercosur, la República Federativa del Bra sil, circunstancia
ésta que opera como una clara desventaja comparativa para productores y consumidores”. Isto é, a
preocupação do legislador argentino, ao afastar a solidariedade entre os agentes econômicos pelos
danos derivados de fornecimento defeituoso, foi a de não impor aos empresários encargos maiores
que os derivados da legislação consumerista brasileira, no contexto da construção do mercado
comum.
As razões acima transcritas sugerem duas observações. Primeira, constata-se que a norma objeto
de veto, ao responsabilizar solidariamente os licenciadores de marca, os distribuidores e
comerciantes, ostentava de fato maior rigor que a vigente no ordenamento brasileiro no aspecto do
superamento do princípio da relatividade; mas a mesma norma era, por outro lado, menos rigorosa
que a brasileira no outro aspecto essencial da matéria, ou seja, no da definição da natureza —
objetiva ou subjetiva — da responsabilidade do produtor, fabricante, importador e prestador de
serviços.
Segunda, a lógica econômica do veto é curiosa, já que, em razão dele, o industrial argentino, ao
operar no mercado brasileiro, acaba tendo maiores responsabilidades que o industrial brasileiro
atuante no mercado argentino. De fato, o empresário industrial sediado na Argentina submete-se à
responsabilidade da lei brasileira ao colocar no Brasil os seus produtos. Responde, portanto, de
modo objetivo e independente de contrato com a vítima do acidente. Por outro lado, em razão do
veto, o industrial sediado no Brasil não está sujeito, ao colocar seus produtos e serviços na
Argentina, sequer à responsabilidade solidária referida no dispositivo vetado. O curioso é a
extraordinária inversão de valores: o veto, ao afirmar a intenção de poupar o empresário argentino
de uma desvantagem, acaba por criá-la.
De qualquer modo, a doutrina argentina, com base nos dispositivos da legislação civil, conclui
pela inocuidade do veto. Há, segundo Juan M. Farina, fundamentos sólidos para sustentar a
responsabilidade solidária ou concorrente do empresário, pelos acidentes de consumo, com base na
interpretação dos dispositivos genéricos da lei tutelar dos consumidores, que imputam obrigações a
todos os que intervêm na cadeia de produção ou circulação de mercadorias, sendo que tais
dispositivos não formulam nem permitem formular exceções (1995:330/331 e 346/347). Por outro
lado, o mesmo autor acentua que ninguém atualmente interpreta até o direito civil, concluindo pela
imposição ao consumidor do ônus de prova de culpa do fabricante. Isto é, para parte da doutrina
argentina, independentemente de expressa previsão legal, deve-se observar a presunção de culpa do
empresário pelos danos derivados de acidente de consumo, o que seria, na avaliação de Farina,
bastante próximo da responsabilidade objetiva (1995:333). Para outras concepções doutrinárias,
seria objetiva a responsabilidade do empresário, mesmo se considerado apenas o disposto no
Código Civil argentino (art. 1.113), diploma aplicável em vista do veto à lei tutelar dos
consumidores (Ferreyra-Romera, 1994:109/110 e 188). De qualquer forma, a questão da
solidariedade entre os agentes econômicos restou superada, em 1998, com a edição da Lei n. 24.999,
que a prevê de modo expresso. Permanece, contudo, a da natureza subjetiva ou objetiva da
responsabilidade dos empresários, pelo defeito em produtos ou serviços, matéria sobre a qual não há
específico e claro dispositivo legal.
Em suma, os direitos desses dois países participantes do processo integrativo do Mercosul, o
Brasil e a Argentina, apresentam uma diferença substancial na disciplina dos acidentes de consumo.
Essa diferença não pode subsistir, uma vez que a responsabilização objetiva do empresário pelos
danos derivados de fornecimento defeituoso é típica norma de direito-custo. A harmonização aponta,
nesse caso, para a mudança no direito positivo argentino, no sentido de também ele vir a incorporar a
regra da responsabilidade sem culpa. Se o empresário pode antecipar, em termos relativos que seja,
as repercussões dos acidentes provocados por seus produtos ou serviços, para fins de considerá-las
na composição de seus preços, então não há argumento capaz de contestar a racionalidade do sistema
de responsabilidade objetiva por acidentes de consumo. Se fosse inversa a situação — se, por
hipótese, o direito brasileiro adotasse o sistema subjetivo, e o argentino, o objetivo —, a
racionalidade desse último nortearia do mesmo modo a harmonização, isto é, pela mudança da ordem
jurídica filiada à noção de culpa como fonte da responsabilidade.
A primeira forma de harmonização do direito-custo é a adoção, por um país, do direito vigente em outro do mesmo bloco regional econômico. A
superação do princípio da culpabilidade e do da relatividade, na responsabilidade por acidentes de consumo, no direito argentino, é exemplo de como
se poderia viabilizá-la.
A segunda forma de harmonização do direito empresarial é a alteração do direito vigente nos
países participantes. Se na hipótese anterior, o direito de um dos estados serve de modelo para o dos
demais, na de agora, o modelo reside no direito de países não participantes, ou num paradigma
meramente conceitual, abstrato. O tema que escolho para ilustrar essa forma de harmonização é de
cunho consumerista, também. Trata-se da definição das garantias do empresário pelos vícios em
produtos.
O direito brasileiro optou, na disciplina da matéria, por excluir a possibilidade de exoneração do
empresário por alguns vícios. Fixou claramente a nulidade de cláusula limitativa da responsabilidade
dos fornecedores (válida apenas na hipótese de consumidor pessoa jurídica: CDC, art. 51, I) e
estipulou que as garantias contratuais serão sempre complementares à legal (CDC, art. 50). Não há
margem, no direito consumerista vigente no Brasil, para o empresário ressalvar certas garantias.
Sempre terá o consumidor, diante de qualquer vício de qualidade no produto, o direito de optar pela
substituição deste, redução proporcional do preço ou pela rescisão do contrato, cabendo ao
fornecedor apenas a faculdade de tentar sanar o problema, quando não se trate de produto essencial
ao consumidor (CDC, art. 18, §§ 1º e 3º).
Compare-se, então, a sistemática brasileira com a adotada pelo direito norte-americano. Lá, o
empresário pode limitar a extensão de sua responsabilidade, exigindo-se apenas que o faça de modo
expresso, para não incorrer nas chamadas garantias implícitas referidas no Uniform Commercial
Code. Desse modo, não há predeterminação pelo direito positivo da extensão das garantias
titularizadas pelo consumidor na aquisição de bens; o que se lhe assegura apenas é o pleno
conhecimento das obrigações que o empresário se propõe assumir, abrindo margem inclusive para
negociações entre as partes. Sobre o assunto, vigora ainda no direito norte-americano o MagnusonMoss Warranty Act , de 1975, um disclosure statute, que define os requisitos do termo de garantia
nas vendas de bens, sem o tornar obrigatório, mas assegurando, no caso de sua elaboração, a
transparência na veiculação de informações aos consumidores (cf. Epstein-Nickles, 1976:282/289).
Assim, enquanto no Brasil o legislador se entendeu forçado a limitar bastante a margem de
negociação nas relações de consumo, nos Estados Unidos o consumidor pôde ser tratado de forma
diversa. O fornecedor norte-americano que não confere garantia, ou as limita, apenas tem o dever de
esclarecer suficientemente os consumidores dessa circunstância, para que eles possam tomar a
decisão que melhor lhes aprouver, munidos de todas as informações indispensáveis. Os produtos não
garantidos ou garantidos com restrições custam (ou devem custar) menos, e quem os adquire conhece
(ou deve ter os meios para conhecer) a razão do preço reduzido. Em consequência, os consumidores
podem nortear suas opções, selecionando os riscos que tomarão para si e os que repartirão com os
empresários fornecedores, para pagarem mais ou menos em função da alternativa seguida. Quer
dizer, se o consumidor prefere pagar um preço menor pelo produto menos garantido e correr o risco
de o perder, caso um sério vício se manifeste, ele tem essa opção, comparando o que o mercado
oferece.
Na sistemática adotada pelo direito brasileiro, o legislador substitui o consumidor na aferição da
oportunidade de aderir ou não (e em que medida) à socialização dos riscos inerentes à atividade
econômica de produção de bens. Desse modo, ao atribuir ao empresário responsabilidade total pela
qualidade do produto, o direito acaba, de modo indireto, impondo aos consumidores todos os
encargos que essa opção legislativa forçosamente representa.
No direito argentino, a questão foi, de um certo modo, suscitada no veto imposto pelo Presidente
ao art. 11 da Lei n. 24.240, fundado nas seguintes razões: “la garantía legal proyectada en los arts. 11
y 13 cercenaría la libertad del oferente de poner en el mercado productos con o sin garantía, y la del
consumidor de elegir unos u otros, y significaria como tal limitar el acceso al mercado de ciertos
productos, en general de bajo costo o de uso rápidamente descartable o de rezago, en prejuicio del
consumidor. Que dicha garantía constituye además un requisito legal no exigido por la legislación de
defensa al consumidor de los países más industrializados, tales como las de la Comunidad
Económica europea, Japón o los Estados Unidos de América, y operaría en ese sentido como una
desventaja comparativa al desarollo industrial de bienes de consumo durable y del mercado de tales
bienes, en especial los de bajo costo, en la República Argentina”.
A doutrina, contudo, apontando as limitações do veto — o qual, a rigor, apenas fulminou o prazo
de seis meses para a vigência da garantia —, conclui pela impossibilidade de o empresário se
exonerar de responsabilidade por vícios nos produtos, exceto no caso de venda de bens usados,
reconstituídos ou com defeito (se tal circunstância for claramente comunicada aos consumidores:
Lei n. 24.240, art. 9º) (Farina, 1995:162/163). Em suma, embora pretendida pelo ato presidencial, a
limitação das garantias pelo fornecedor está afastada do direito argentino em razão da vigência de
outros dispositivos legais encontrados na própria lei tutelar dos consumidores (arts. 3º e 37) e nos
Códigos Civil e do Comércio.
Os direitos brasileiro e argentino, desse modo, são igualmente insatisfatórios no tratamento da
matéria relativa à responsabilidade por vícios de qualidade em produto, no que diz respeito à
impossibilidade de o empresário ressalvar determinadas garantias. Poder-se-ia, assim, considerar já
harmonizado esse particular aspecto do direito-custo. O processo de integração, no entanto, pode
servir também à revisão do direito dos países participantes do Mercosul, ao representar, por assim
dizer, uma oportunidade ímpar para a reflexão sobre a melhor sistemática de disciplina jurídica dos
temas em foco, inclusive com a atenção voltada à experiência de outros países não participantes. No
exemplo aqui apresentado, a harmonização poderia se processar mediante a alteração do direito
aplicável ao assunto tanto no Brasil como na Argentina, aprimorando-o.
A segunda forma de harmonização do direito se concretiza pela mudança do direito vigente nos países participantes, para adoção de normas
inspiradas no direito de um país não participante. O direito consumerista acerca de qualidade dos produtos e serviços, vigente no Brasil e na
Argentina, poderia ser alterado para a introdução de simples “regras de transparência”, possibilitando a oferta ao mercado consumidor de produtos
ou serviços com qualidade e preços proporcionais.
A terceira e última forma de harmonização consiste na referência ao direito vigente em um dos
países participantes na interpretação de disposição legal ou normativa de outro país. Essa forma
prescinde de alterações no direito positivo e viabiliza a harmonização reclamada pelo processo
integrativo, no momento da aplicação do direito positivo, e não no de sua elaboração. Exemplifico
com a questão da responsabilidade dos empresários na venda de produtos imperfeitos, quando a
imperfeição é informada ao consumidor.
Produtos imperfeitos existem e — tudo indica — sempre existirão. A falibilidade ínsita ao ser
humano torna vãos os melhores esforços de busca da perfeição. Por mais que o empresário se
empenhe em dotar a empresa dos mais desenvolvidos equipamentos e processos de produção,
aprimore o máximo seu controle de qualidade e invista em treinamento, parte dos produtos que
seguirão de sua indústria para o mercado apresentará impropriedades. É inevitável. Pois bem, há
defeitos que, por sua gravidade ou pelas características do produto, podem lesar enormemente os
consumidores. Eles não podem ser oferecidos ao mercado e cabe ao empresário inutilizá-los,
arcando com os prejuízos. Pense-se na pílula anticoncepcional de composição indevida, sem eficácia
na prevenção da gravidez. Deve esse produto ser descartado, simplesmente. Mas há, de outro lado,
produtos imperfeitos que não oferecem riscos à saúde ou segurança do consumidor. São vícios, no
mais das vezes, pequenos e de importância meramente estética. É o caso do sofá mal-acabado, da
roupa sem caimento ideal, do eletrodoméstico com a pintura arranhada. Embora imperfeitos, tais
produtos podem interessar a consumidores de menor poder aquisitivo, desde que a preço
compensatório.
A responsabilidade do fornecedor desses produtos imperfeitos, vendidos com plena ciência do
consumidor acerca da imperfeição e mediante pagamento de preço menor, não pode ser a mesma que
tem ao vender igual produto sem imperfeição. Isto é, ele não responde pelos vícios informados que
justificaram a redução do preço. Pelos demais vícios (imperfeições que não trazem prejuízos de
relevo ao consumidor), e pelos defeitos (imperfeições que geram danos ao consumidor), terá
evidentemente responsabilidade integral.
No Código brasileiro de defesa do consumidor não existe nenhuma regra expressa no sentido de
possibilitar a limitação da responsabilidade na venda de produtos ostensivamente viciados com
abatimento no preço. Mas, no direito argentino, como referido acima no tratamento da segunda forma
de harmonização, contempla a lei a ressalva de responsabilidade na hipótese se a existência do vício
(lá, fala-se “defeito”) é claramente comunicada aos consumidores. Dessa maneira, na fundamentação
de que, no direito consumerista brasileiro, o fornecedor de produtos viciados não responde pelos
vícios que ostensivamente informar ao consumidor, na prática de abatimento de preço, é plenamente
cabível invocar-se o direito argentino como um argumento a mais. Essa é também uma forma de
harmonização jurídica própria do processo de integração regional, cuja característica mais relevante
é o campo em que se desenvolve: o doutrinário e o jurisprudencial.
A terceira e última forma de harmonização independe de mudança no direito positivo. Opera-se por intermédio da doutrina e jurisprudência, com o
aproveitamento, na interpretação das leis de um dos países participantes, da experiência jurídica de outro país do bloco. Por exemplo, mesmo não
existindo norma expressa no direito brasileiro sobre a exoneração de responsabilidade do empresário pelos vícios que ostensivamente informa aos
consumidores, em venda a preço menor, é cabível invocar--se a previsão constante do direito positivo argentino no exame da matéria.
Dois outros exemplos de harmonização via interpretação se colhem do direito uruguaio. Lá, a ley
que regula las relaciones de consumo, de 2000, contempla normas que não se encontram no Código
de Defesa do Consumidor, mas que podem ser consideradas na aplicação deste. No Uruguai, o
legislador dispôs expressamente que não se considera consumidor “aquele que, sem constituir-se em
destinatário final, adquire, armazena, utiliza ou consome produtos ou serviços com o fim de integrálos em processos de produção, transformação ou comercialização”. A previsão do direito positivo
de outro país integrante do mesmo bloco regional que o Brasil pode servir ao aclaramento da
discussão sobre a aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor em favor de empresários,
questão controvertida na doutrina e jurisprudência nacionais (Cap. 42, item 2). Como dito de modo
expresso na lei uruguaia, também no Brasil não se deve considerar consumidor o empresário que
adquire, armazena, utiliza ou consome produtos ou serviços em sua atividade econômica,
reinserindo-os física ou economicamente no mercado. O segundo exemplo diz respeito à publicidade
comparativa, disciplinada no direito consumerista do Uruguai, mas não no brasileiro (Cap. 9, item
11). Pela harmonização via interpretação, pode-se considerar que, também entre nós, a “publicidade
comparativa é permitida”, se atendidos, na comparação, os requisitos da objetividade e
possibilidade de comprovação, conforme previsto no art. 25 da lei consumerista uruguaia.
Capítulo 4
O EMPRESÁRIO
1. INTRODUÇÃO
Empresário é a pessoa que toma a iniciativa de organizar uma atividade econômica de produção
ou circulação de bens ou serviços. Essa pessoa pode ser tanto a física, que emprega seu dinheiro e
organiza a empresa individualmente, como a jurídica, nascida da união de esforços de seus
integrantes. O direito positivo brasileiro, em diversas passagens, ainda organiza a disciplina
normativa da atividade empresarial, a partir da figura da pessoa física. O Código Civil e a lei de
falências são exemplos. O certo, no entanto, é que as atividades econômicas de alguma relevância —
mesmo as de pequeno porte — são desenvolvidas em sua maioria por pessoas jurídicas, por
sociedades empresárias. O mais adequado, por evidente, seria o ajuste entre o texto legal e a
realidade que se pretende regular, de modo que a disciplina geral da empresa (isto é, do exercício da
atividade empresarial) fosse a relativa ao empresário pessoa jurídica, reservando-se algumas poucas
disposições especiais ao empresário pessoa física. Nem sempre, contudo, os elaboradores de textos
de normas jurídicas possuem essa preocupação.
Por outro lado, em razão dessa opção — considerar ainda a pessoa física o núcleo conceitual das
normas que edita sobre a atividade empresarial —, a lei acaba dando ensejo a confusões entre o
empresário pessoa jurídica e os sócios desta. A confusão aumenta, inclusive, pela distância existente
entre os conceitos técnicos do direito e a linguagem natural. A pessoa jurídica empresária é
cotidianamente denominada “empresa”, e os seus sócios são chamados “empresários”. Em termos
técnicos, contudo, empresa é a atividade, e não a pessoa que a explora; e empresário não é o sócio
da sociedade empresarial, mas a própria sociedade. É necessário, assim, acentuar, de modo enfático,
que o integrante de uma sociedade empresária (o sócio) não é empresário; não está, por conseguinte,
sujeito às normas que definem os direitos e deveres do empresário. Claro que o direito também
disciplina a situação do sócio, garantindo-lhe direitos e imputando-lhe responsabilidades em razão
da exploração da atividade empresarial pela sociedade de que faz parte. Mas não são os direitos e
as responsabilidades do empresário que cabem à pessoa jurídica; são outros, reservados pela lei
para os que se encontram na condição de sócio.
A empresa pode ser explorada por uma pessoa física ou jurídica. No primeiro caso, o exercente da atividade econômica se chama empresário
individual; no segundo, sociedade empresária. Como é a pessoa jurídica que explora a atividade empresarial, não é correto chamar de
“empresário” o sócio da sociedade empresária.
Neste capítulo — e, de resto, em todo o Curso —, o exame das questões em geral terá por foco o
empresário pessoa jurídica. Não se tratará, senão em pouquíssimas passagens, do exercente
individual da atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços, porque esta
figura, na verdade, não possui presença relevante na economia. Ao mencionar “sociedade
empresária”, ou simplesmente “empresário”, a referência será à pessoa jurídica que explora
atividade econômica, e não aos seus sócios. A expressão “empresa” designará a atividade, e nunca a
sociedade.
2. SOCIEDADE EMPRESÁRIA
Como é a própria pessoa jurídica a empresária — e não os seus sócios —, o correto é falar-se
“sociedade empresária”, e não “sociedade empresarial” (isto é, “de empresários”). A sociedade
empresária assume, hoje em dia, duas das cinco formas admitidas pelo direito comercial em vigor: a
de uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada (Ltda.) ou a de uma sociesdade anônima
(S/A). O estudo desses tipos societários está reservado para o volume 2 do Curso, mas, desde já,
alguns conceitos precisam ser apresentados, por razões didáticas.
As pessoas jurídicas empresárias adotam a forma de sociedade limitada (Ltda.) ou de sociedade anônima (S/A).
A sociedade limitada, normalmente relacionada à exploração de atividades econômicas de
pequeno e médio porte, é constituída por um contrato celebrado entre os sócios. O seu ato
constitutivo é, assim, o contrato social, instrumento que eles assinam para ajustarem os seus
interesses recíprocos. Já a sociedade anônima — também chamada “companhia” — se relaciona
normalmente à exploração de grandes atividades econômicas, e o documento básico de disciplina
das relações entre os sócios se denomina estatuto.
O capital social representa, grosso modo, o montante de recursos que os sócios disponibilizam
para a constituição da sociedade. De fato, para existir e dar início às suas atividades, a pessoa
jurídica necessita de dinheiro ou bens, que são providenciados pelos que a constituem. Não se
confunde o capital social com o patrimônio social. Este último é o conjunto de bens e direitos de
titularidade da sociedade (ou seja, tudo que é de sua propriedade). Note-se que, no exato momento
da sua constituição, a sociedade tem em seu patrimônio apenas os recursos inicialmente fornecidos
pelos sócios, mas, se o negócio que ela explora revelar-se frutífero, ocorrerá a ampliação desses
recursos iniciais; caso contrário, a sociedade acabará perdendo uma parte ou a totalidade de tais
recursos, e seu patrimônio será menor que o capital social — podendo vir a ocorrer, inclusive, a
falência.
Em contrapartida à contribuição que o sócio dá ao capital social, é-lhe atribuída uma participação
societária. Se a sociedade é limitada, esta participação se chama “quota” (ou “cota”); se anônima,
“ação” (motivo pelo qual o sócio da S/A é chamado também acionista). A participação societária é
bem integrante do patrimônio de cada sócio, que pode aliená-la ou onerá-la, se atendidas
determinadas condições. A quota ou ação não pertencem à sociedade. Se o sócio possui uma dívida,
o credor poderá, salvo em alguns casos específicos, executá-la sobre a participação societária que
ele titulariza; já o credor da sociedade tem como garantia o patrimônio social, e nunca as partes
representativas do capital social.
As decisões dos sócios são tomadas pela maioria, computando-se esta em função da participação
societária de cada um. Assim, um sócio de sociedade limitada que titularize mais da metade do
capital social compõe, sozinho, a maioria societária. Ele poderá decidir sozinho pela sociedade,
mesmo contra a vontade dos demais sócios, exceto nas hipóteses em que a lei estabelecer quorum
qualificado para a deliberação. Na sociedade anônima, há ações que conferem aos acionistas o
direito de voto no principal órgão deliberativo de sua estrutura, a assembleia geral, e há ações que
não conferem esse direito. O sócio titular da maioria das ações com direito a voto é normalmente o
acionista controlador da companhia.
A sociedade limitada tem como representante legal o administrador, que é escolhido e substituído
pela maioria societária qualificada (unanimidade, três quartos, dois terços ou mais da metade do
capital social). Nada impede, por outro lado, que a administração seja atribuída a mais de uma
pessoa, que atuarão em conjunto ou isoladamente, segundo o previsto no contrato social. Já na
sociedade anônima, a representação legal cabe ao diretor, eleito em assembleia geral (ou pelo
Conselho de Administração da companhia, se este órgão existir).Tanto na limitada como na anônima
o administrador não precisa ser sócio.
3. OBRIGAÇÕES GERAIS DOS EMPRESÁRIOS
Os empresários estão sujeitos, em termos gerais, às seguintes obrigações: a) registrar-se na Junta
Comercial antes de dar início à exploração de sua atividade; b) manter escrituração regular de seus
negócios; c) levantar demonstrações contábeis periódicas.
São obrigações de natureza formal, mas cujo desatendimento gera consequências sérias — em
algumas hipóteses, inclusive, penais. A razão de ser dessas formalidades, que o direito exige dos
exercentes de atividade empresarial, diz respeito ao controle da própria atividade, que interessa não
apenas aos sócios do empreendimento econômico, mas também aos seus credores e parceiros, ao
fisco e, em certa medida, à própria comunidade. O empresário que não cumpre suas obrigações
gerais — o empresário irregular — simplesmente não consegue entabular e desenvolver negócios
com empresários regulares, vender para a Administração Pública, contrair empréstimos bancários,
requerer a recuperação judicial etc. Sua empresa será informal, clandestina e sonegadora de tributos.
4. REGISTRO DE EMPRESAS
O Código Comercial, em 1850, criou os “Tribunais do Comércio”, órgãos que exerciam tanto a
jurisdição em matéria comercial, julgando conflitos que envolviam comerciantes ou a prática de atos
de comércio, como também as funções administrativas de natureza registrária. O registro do
comércio era atribuição de uma repartição daqueles Tribunais, denominada “Junta Comercial”,
perante a qual os comerciantes deviam proceder à sua matrícula e ao depósito de outros documentos
mencionados em lei.
Os “Tribunais do Comércio”, contudo, com competências de natureza jurisdicional e
administrativa, acabavam representando um certo anacronismo. A Constituição Imperial, de 1824, já
estabelecia a separação dos poderes executivo e judicial, e os Tribunais do Comércio ostentavam
uma ambiguidade difícil de se compatibilizar com a estrutura constitucional. Seu perfil, assim,
lembrava mais a figura das antigas corporações de ofício dos comerciantes europeus do que uma
repartição do estado. Em 1875, os Tribunais do Comércio foram extintos, e suas atribuições
jurisdicionais transferidas para a competência dos juízes de direito. As atribuições administrativas
permaneceram a cargo de sete Juntas Comerciais (sediadas no Rio de Janeiro, Belém, São Luís,
Fortaleza, Recife, Salvador e Porto Alegre) e quatorze Inspetorias, organizadas em 1876.
Atualmente, o registro público de interesse para os empresários leva a denominação de “registro
de empresas mercantis e atividades afins”, e está disciplinado pela Lei n. 8.934/94, e pelo Dec. n.
1.800/96. Existe uma Junta Comercial em cada unidade federativa, ou seja, uma em cada Estado e
uma no Distrito Federal.
As sociedades empresárias, independentemente do objeto a que se dedicam, devem se registrar na Junta Comercial do Estado em que estão
sediadas.
A mais importante inovação da lei de 1994 foi a ampliação do âmbito do registro. Até então, fora
as companhias (que se consideravam mercantis independentemente de seu objeto: art. 2º, § 1º, da
LSA), apenas as sociedades limitadas dedicadas à exploração de atividade mercantil, segundo a
teoria dos atos de comércio, podiam ter seus atos constitutivos registrados na Junta Comercial. As
demais limitadas, com objeto social relacionado a atividade civil, tinham negado o pedido de
registro neste órgão e deviam buscar os Registros Civis de Pessoas Jurídicas (RCPJ). Era, por
exemplo, o caso das agências de propaganda e de outras empresas prestadoras de serviços, que nem
sempre conseguiam fazer-se registrar na Junta. A partir da Lei n. 8.934/94, qualquer sociedade com
finalidade econômica, independentemente de seu objeto, podia registrar-se na Junta Comercial. Com
a entrada em vigor do Código Civil, o âmbito do registro pelas Juntas Comerciais voltou a se
restringir (art. 998). Apenas as sociedades empresárias devem ser atualmente registradas nas Juntas.
As sociedades simples são registradas no Registro Civil de Pessoas Jurídicas e as voltadas à
prestação de serviços de advocacia devem ter seus atos constitutivos levados à Ordem dos
Advogados do Brasil — OAB (Lei n. 8.906/94, art. 15, § 1º).
4.1. Órgãos do Registro de Empresas
O registro de empresas encontra-se a cargo do Departamento Nacional do Registro do Comércio
— DNRC, e das Juntas Comerciais. A denominação desses órgãos, estranhamente, não foi
compatibilizada com o novo conceito de “empresa”, adotado pela legislação de 1994. Apenas o
apego à tradição explica a manutenção de denominações criadas em 1961 (a do DNRC), e no século
passado (a das Juntas).
O DNRC é órgão federal, integrante do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior. Suas atribuições não são de execução do registro de empresa (nenhuma sociedade terá os
seus atos constitutivos depositados neste órgão, por exemplo), mas de normatização, disciplina,
supervisão e controle deste registro. Nos termos do art. 4º da Lei n. 8.934/94, é de sua competência a
supervisão e coordenação dos atos praticados pelas Juntas Comerciais, o estabelecimento e a
consolidação de normas ou diretrizes gerais sobre o registro de empresas, a solução de dúvidas
sobre a matéria — mediante a edição de instruções, ou de resposta às consultas das Juntas —, bem
como a fiscalização destas e a atuação supletiva, nos casos de deficiência de serviço. Cabe-lhe,
também, organizar e manter o Cadastro Nacional de Empresas Mercantis, preparar os processos de
autorização para nacionalização ou instalação no Brasil de empresa estrangeira (se a autoridade
competente para a sua apreciação é o Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior),
e, enfim, desenvolver estudos e patrocinar reuniões ou publicações, para o aprimoramento do
registro de empresas.
Embora tenha sido investido nas funções de órgão central disciplinador, fiscalizador e supervisor
do registro de empresas, o DNRC não dispõe de instrumentos de intervenção nas Juntas Comerciais,
caso não adotem suas diretrizes ou deixem de acatar recomendações de correção. A lei estabelece,
apenas, que o DNRC pode representar às autoridades competentes (o Governador do Estado ou do
Distrito Federal, o Ministério Público estadual e outros).
As Juntas Comerciais, por sua vez, têm funções executivas. Cabe--lhes, em essência, a prática dos
atos registrários, como a matrícula de leiloeiro, o arquivamento de sociedade, a autenticação de
livros, e outros. Além disso, é de sua competência a expedição da carteira de exercício profissional,
o assentamento de usos e práticas dos comerciantes e a habilitação e nomeação de tradutores
públicos e intérpretes.
Os órgãos do registro de empresas são, em nível federal, o Departamento Nacional do Registro do Comércio — DNRC, e, em nível estadual, as
Juntas Comerciais. Ao primeiro cabem funções de disciplina, supervisão e fiscalização do registro de empresas; às Juntas, compete executá-lo.
A vinculação hierárquica a que se submetem as Juntas é de natureza híbrida. Em matéria de direito
comercial e atinente ao registro de comércio, ela se encontra sujeita ao DNRC, órgão federal; nas
demais matérias (assim, o direito administrativo e financeiro), o vínculo de subordinação se
estabelece com o governo da unidade federativa que integra. Assim, do mesmo modo que ao DNRC
não cabe, por exemplo, fixar orientações acerca da execução orçamentária da Junta, também não
compete ao Governador do Estado, ou do Distrito Federal, baixar decreto dispondo sobre as
cláusulas indispensáveis ao registro do contrato social. A vinculação hierárquica de natureza híbrida
se manifesta, igualmente, na hipótese de interposição de recurso administrativo, dirigido ao Ministro
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (esfera federal), contra decisões do Plenário da Junta
Comercial (esfera estadual), com base no art. 44, III, da Lei n. 8.934/94. Também deve ser lembrado
que da duplicidade de vínculos hierárquicos decorre, segundo algumas decisões judiciais, a
competência da Justiça Federal para apreciar a validade dos atos da Junta, relacionados ao direito
comercial. Se o registro de uma sociedade limitada é, por exemplo, negado, a pretexto de que o
contrato social não atende aos requisitos da lei, a discussão sobre a pertinência, ou não, do
indeferimento caberia ser feita, de acordo com esse entendimento, perante juízes federais, porque a
Junta, no caso, atuou como órgão executante das normas emanadas pelo DNRC, integrante da
estrutura administrativa da União. Já na hipótese de a Junta, por exemplo, ter inabilitado um licitante,
na concorrência pública para a construção de sua sede, o conhecimento da matéria seria da
competência do juiz estadual, tendo em vista que o objeto da lide, agora, é ato administrativo.
A Junta se estrutura de acordo com a legislação estadual respectiva. Na maioria das unidades
federativas, tem-se preferido revesti-la da natureza de autarquia, com autonomia administrativa e
financeira; noutras, ela é apenas um órgão da administração direta, normalmente integrante da
Secretaria da Justiça. Em qualquer caso, ela deve possuir, por força da legislação federal, os
seguintes órgãos: a Presidência, o Plenário, as Turmas, a Secretaria-Geral e a Procuradoria. A
Presidência é responsável pela direção administrativa da Junta, bem como pela sua representação. O
Plenário é composto por vogais (no mínimo 11 e no máximo 23: Lei n. 10.194/2001), que
representam empresários, advogados, economistas, contadores e a administração pública. Trata-se
do órgão deliberativo de maior hierarquia, na estrutura da Junta. Os membros do Plenário dividem-se
em Turmas, compostas por 3 vogais cada, que também são órgãos deliberativos. Por fim, a
Secretaria-Geral executa os atos de registro e desempenha tarefas de suporte administrativo; e a
Procuradoria exerce funções de consultoria, advocacia judicial nos feitos de interesse da Junta, e de
fiscalização da aplicação da lei, regulamentos e normas.
4.2. Atos do Registro de Empresas
São três os atos compreendidos pelo registro de empresas: a matrícula, o arquivamento e a
autenticação (Lei n. 8.934/94, art. 32). A matrícula e seu cancelamento dizem respeito a alguns
profissionais cuja atividade é, muito por tradição, sujeita ao controle das Juntas. São os leiloeiros,
tradutores públicos e intérpretes comerciais, trapicheiros e administradores de armazéns-gerais.
Estes agentes apenas exercem suas atividades de forma regular, quando matriculados no registro de
empresas.
O arquivamento se refere à grande generalidade dos atos levados ao registro de empresas. Assim,
os de constituição, alteração, dissolução e extinção de sociedades empresárias são arquivados na
Junta. Também serão objeto de arquivamento a firma individual (com que o empresário pessoa física
explora sua empresa), os atos relativos a consórcio e grupo de sociedades, as autorizações de
empresas estrangeiras e as declarações de microempresa. Do mesmo modo, será arquivado qualquer
documento que, por lei, deva ser registrado pela Junta Comercial, como, por exemplo, as atas de
assembleias gerais de sociedades anônimas. Esses documentos todos, de registro obrigatório, só
produzem efeitos jurídicos válidos, após a formalidade do arquivamento.
Não se devem omitir, por fim, os documentos que não estão sujeitos a registro obrigatório, mas
são do interesse de empresários ou das empresas, como as procurações com a cláusula ad negotia.
Se o empresário desejar, para conferir maior segurança às suas relações jurídicas e dotar certos atos
de maior publicidade, ele poderá registrar esses documentos na Junta. O ato registrário será, neste
caso também, o arquivamento. Porém, como o registro desses documentos é meramente facultativo,
não pode ser tomado como condição de validade ou eficácia do negócio jurídico a que
correspondem.
O terceiro ato do registro de empresas é a autenticação, relacionada aos instrumentos de
escrituração (livros contábeis, fichas, balanços e outras demonstrações financeiras etc.) impostos por
lei aos empresários em geral.
Os atos do registro de empresas praticados pelas Juntas Comerciais são a matrícula, o arquivamento e a autenticação.
Os atos do registro de empresas têm alcance formal, apenas. Quer dizer, a Junta não aprecia o
mérito do ato praticado, mas exclusivamente a observância das formalidades exigidas pela lei, pelo
decreto regulamentar e pelas instruções do DNRC. Assim, se a maioria dos sócios de uma sociedade
limitada resolve expulsar um minoritário que está concorrendo com a própria sociedade, não caberá
à Junta verificar se é verdadeiro ou não o fato ensejador da expulsão. Sua competência se exaure na
apreciação dos requisitos formais de validade e eficácia do instrumento — por exemplo, se a
alteração contratual está assinada pela maioria societária, se o contrato social não contém cláusula
restritiva de sua alteração apenas com a assinatura da maioria, se consta a qualificação completa dos
sócios etc. Se ela extrapolar suas atribuições, indeferindo o arquivamento pelo mérito, será cabível
mandado de segurança contra o despacho denegatório de registro, em favor dos sócios majoritários.
Da mesma forma, caberá, em favor do minoritário expulso, a revisão judicial do despacho
concessivo, se a Junta registrar o ato, a despeito da inobservância de determinada formalidade.
4.3. Procedimentos e Regimes
Os atos sujeitos a arquivamento devem ser encaminhados à Junta Comercial nos 30 dias seguintes
à sua assinatura (salvo no caso de ata de assembleia de sócio na sociedade limitada, que deve ser
encaminhada no prazo de 20 dias — CC, art. 1.075, § 2º). Por exemplo, a alteração do contrato
social de uma sociedade limitada, que admita um novo sócio, deve ser entregue ao protocolo da Junta
dentro daquele prazo. Nesta hipótese, os efeitos do registro se produzirão a partir da data da
assinatura do documento. Ou seja, o sócio será considerado participante da sociedade desde a data
constante da alteração contratual, embora o arquivamento possua data posterior. Se o prazo da lei,
contudo, não for observado, o arquivamento só produzirá efeitos a partir do ato administrativo
concessivo do registro, que será proferido pelo vogal ou pelo funcionário da Junta. Nesta última
hipótese, o ingressante somente será considerado legalmente sócio, a partir da data do arquivamento,
mesmo que posterior à data em que havia contratado sua entrada na sociedade.
Como se afirmou acima, a Junta tem competência apenas para apreciar a forma do ato submetido
ao seu exame, para fins de arquivamento. Se constatar a existência de vício formal sanável, a Junta
Comercial concederá 30 dias para que o interessado corrija o ato (na linguagem da lei, o “processo
será colocado em exigência”). Prevê a lei que, ultrapassado esse prazo, o saneamento do vício será
tratado como novo pedido, incidindo as taxas correspondentes (art. 40, § 3º). Se a parte não se
conformar com a exigência, poderá, nos mesmos 30 dias, apresentar um pedido de reconsideração,
hipótese em que se opera a interrupção do prazo para o seu atendimento (o Dec. n. 1.800/96, no art.
65, § 2º, fala, incorretamente, em suspensão). Mantida a decisão que determina o saneamento do
vício, será ainda interponível recurso ao Plenário e, na sequência, ao Ministro do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior. O julgamento deste último encerra a instância administrativa, restando
ao interessado apenas a via judicial para discussão da validade da exigência.
Se insanável o vício constatado pela Junta, será o arquivamento indeferido, podendo o interessado
valer-se dos mesmos pedidos revisionais e recursos administrativos acima. Insanável é o vício que
compromete um requisito de validade do ato submetido a exame. Por exemplo, um contrato de
sociedade celebrado por pessoa incapaz, sem a devida assistência ou representação legal. Distinguese dos vícios sanáveis, na medida em que estes últimos não comprometem a validade do ato, mas
apenas a sua eficácia ou registrabilidade. Exemplo de vício sanável é o de contrato de sociedade a
que falte cláusula declaratória do objeto. A única consequência da distinção entre uma e outra
categoria de vício está relacionada ao pagamento das taxas de serviço, na hipótese de reapresentação
do documento, nos 30 dias seguintes ao indeferimento. Se a Junta considerar insanável vício que, na
verdade, não o é, o interessado que reapresentar o instrumento no prazo legal poderá exigir a
dispensa do pagamento de novas taxas.
A matrícula, o arquivamento e a autenticação de atos pela Junta Comercial submetem-se a dois
regimes distintos: de um lado, o regime de decisão colegiada; de outro, o de decisão singular.
Trata-se de um sistema desburocratizante, implantado, com outras denominações (regime ordinário e
sumário, respectivamente), no então registro do comércio, em 1981. O regime de decisão colegiada
é reservado para a tramitação de atos de maior complexidade, enquanto o de decisão singular se
observa no registro dos menos complexos. Em termos precisos, submete-se à decisão colegiada das
Turmas o arquivamento de atos relacionados às sociedades anônimas, consórcios e grupos de
sociedade, bem como os pertinentes às operações de transformação, incorporação, fusão e cisão (Lei
n. 8.934/94, art. 41, I). Submete-se, por outro lado, à decisão colegiada em Plenário o julgamento de
recursos administrativos interpostos contra atos praticados pelos demais órgãos da Junta (Lei n.
8.934/94, arts. 19 e 41, II). Ao seu turno, o regime de decisão singular é observado no registro de
todos os demais atos, como a alteração de contrato de sociedade limitada, a matrícula de leiloeiro, a
autenticação do livro de registro de duplicatas etc. Neste caso, a análise do atendimento às
formalidades legais é feita individualmente por um vogal, ou mesmo por funcionário da Junta com
comprovados conhecimentos de direito comercial e registro de empresas, em ambos os casos
designados pelo Presidente (Lei n. 8.934/94, art. 42).
Existem dois regimes de tramitação de processos no âmbito do registro de empresas: o regime de decisão singular e o de decisão colegiada. O
primeiro diz respeito aos atos em geral, enquanto o último está reservado aos atos mais complexos e julgamento de recursos.
Os atos submetidos a registro devem ser apreciados pela Junta no prazo legal. Para os atos
sujeitos ao regime de decisão colegiada, a lei prescreveu o prazo de 5 dias úteis; para os demais, 2
dias úteis, sempre a contar do protocolo na Junta. Se o prazo é ultrapassado, considera-se registrado
o ato para todos os efeitos legais. É a aprovação por decurso de prazo, bastante comum no direito
administrativo (o instituto existe, por exemplo, na expedição de licença para construção, na
aprovação de atos de concentração pelo CADE etc.). O registro por decurso de prazo, contudo,
poderá vir a ser desconstituído se, a pedido de qualquer interessado, a Procuradoria identificar no
ato a inobservância de alguma formalidade legal inafastável (Lei n. 8.934/94, art. 43).
4.4. Consequências da Falta do Registro: Sociedade Empresária
Irregular
A principal sanção imposta à sociedade empresária que explora irregularmente sua atividade
econômica, isto é, que funciona sem registro na Junta Comercial, é a responsabilidade ilimitada dos
sócios pelas obrigações da sociedade. O arquivamento do ato constitutivo da pessoa jurídica —
contrato social da limitada, ou os estatutos da anônima — no registro de empresas é condição para a
limitação da responsabilidade dos sócios. A natureza desta responsabilidade limitada — se direta ou
subsidiária — depende da posição adotada pelo sócio na gestão dos negócios sociais. O sócio que
se apresentou como representante da sociedade tem responsabilidade direta, enquanto os demais,
subsidiária (CC, art. 990), a menos que tenham tido a intenção de constituir uma sociedade anônima,
hipótese em que responderão solidária, direta e ilimitadamente pelas obrigações nascidas da
atividade irregular. A matéria será aprofundada noutra oportunidade (Cap. 28, item 6). Por ora,
importa deixar assente que os sócios poderão vir a responder com o seu próprio patrimônio, por
todas as obrigações da sociedade, se não for providenciado o registro do respectivo ato constitutivo
na Junta Comercial.
Além dessa sanção, a sociedade empresária irregular não tem legitimidade ativa para o pedido de
falência de outro comerciante (LF, art. 97, § 1º) e não pode requerer a recuperação judicial (LF, art.
51, V).
A falta do registro na Junta Comercial importa, também, a aplicação de sanções de natureza fiscal
e administrativa. Assim, o descumprimento da obrigação comercial acarretará a impossibilidade de
inscrição da pessoa jurídica no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), e nos cadastros
estaduais e municipais; também impossibilitará a matrícula do empresário no Instituto Nacional da
Seguridade Social. Aliás, são simultâneos o registro na Junta e a matrícula no INSS (Lei n. 8.212/92,
art. 49, I). A falta do CNPJ, inclusive, além de dar ensejo à incidência de multa pela inobservância
da obrigação tributária instrumental, impede o empresário de entabular negócios regulares; sua
atividade fica forçosamente restrita ao universo da economia informal.
4.5. Empresário Rural e Pequeno Empresário
Ao dispor sobre a obrigação geral imposta aos empresários de se inscreverem na Junta Comercial
antes de darem início à exploração de sua atividade, cuidou a lei de excepcionar duas hipóteses: a
dos empresários rurais e pequenos empresários. Estes, embora explorem profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, merecem tratamento
específico por razões diversas.
Atividade econômica rural é a explorada normalmente fora da cidade. Certas atividades
produtivas não são costumeiramente exploradas em meio urbano, por razões de diversas ordens
(materiais, culturais, econômicas ou jurídicas). São rurais, por exemplo, as atividades econômicas de
plantação de vegetais destinadas a alimentos, fonte energética ou matéria-prima (agricultura,
reflorestamento), a criação de animais para abate, reprodução, competição ou lazer (pecuária,
suinocultura, granja, equinocultura) e o extrativismo vegetal (corte de árvores), animal (caça e pesca)
e mineral (mineradoras, garimpo).
As atividades rurais, no Brasil, são exploradas em dois tipos radicalmente diferentes de
organizações econômicas. Tomando-se a produção de alimentos, por exemplo, encontra-se na
economia brasileira, de um lado, a agroindústria (ou agronegócio) e, de outro, a agricultura familiar.
Naquela, emprega-se tecnologia avançada e mão de obra assalariada (permanente e temporária), há a
especialização de culturas em grandes áreas de cultivo; na familiar, trabalham o dono da terra e seus
familiares, um ou outro empregado, e são relativamente mais diversificadas as culturas e menores as
áreas de cultivo. Convém registrar que, ao contrário de outros países, principalmente na Europa, em
que a pequena propriedade rural sempre teve e continua tendo importância econômica no
encaminhamento da questão agrícola, entre nós, a produção de alimentos é altamente industrializada e
concentra--se em grandes empresas rurais. Por isso a reforma agrária, no Brasil, apesar do que
parece ter sido o entendimento dos constituintes de 1988 (CF, art. 187, § 2º), não é solução de
nenhum problema econômico, como foi para outros povos; destina-se a solucionar apenas problemas
sociais de enorme gravidade (pobreza, desemprego no campo, crescimento desordenado das cidades,
violência urbana etc.).
Em vista destas características da agricultura brasileira, o Código Civil reservou para o exercente
de atividade rural um tratamento específico (arts. 971 e 984). Ele está dispensado de requerer sua
inscrição no registro das empresas, mas pode fazê-lo. Se optar por se registrar na Junta Comercial,
será considerado empresário e submeter--se-á ao regime correspondente. Neste caso, deve manter
escrituração regular, levantar balanços periódicos e pode falir ou requerer a recuperação judicial.
Sujeita-se, também, às sanções da irregularidade no cumprimento das obrigações gerais dos
empresários. Caso, porém, o empresário rural não requeira a inscrição no registro das empresas, não
se considera juridicamente empresário e seu regime será o do direito civil (claro, se a atividade for
exercida em sociedade, os seus atos constitutivos devem ser levados ao Registro Civil de Pessoas
Jurídicas). A primeira — regime de direito empresarial — deve ser a opção do agronegócio, da
grande indústria agrícola; a última — regime de direito civil —, a predominante entre os titulares de
negócios rurais familiares.
Estão dispensados da exigência de prévio registro na Junta Comercial, imposta aos empresários em geral, os pequenos empresários (isto é, os
microempresários e empresários de pequeno porte) e os empresários rurais. Estes últimos, se quiserem, podem requerer o registro na Junta
Comercial, mas ficarão sujeitos ao mesmo regime dos demais empresários: dever de escrituração e levantamento de balanços anuais, decretação
de falência e requerimento de recuperação judicial.
O microempresário e o empresário de pequeno porte, por sua vez, têm constitucionalmente
assegurado o direito a tratamento jurídico diferenciado, com o objetivo de estimular-lhes o
crescimento com a simplificação, redução ou eliminação de obrigações administrativas, tributárias,
previdenciárias e creditícias (CF, art. 179). O Código Civil, aparentemente em consonância com o
preceito constitucional, dispensou o “pequeno empresário” da obrigação geral de registro na Junta
Comercial (art. 970). O art. 68 da Lei Complementar n. 123/2006 (Estatuto de 2006) define pequeno
empresário como o empresário individual caracterizado como microempresa e cuja receita bruta
anual não ultrapasse R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais). O pequeno empresário do Código Civil,
se for optante pelo Simples e atender às demais exigências legais, será considerado
“microempreendedor individual”, para fins de gozar de determinados benefícios tributários. Deste
modo, a lei acaba criando uma classificação pouco clara, em que o pequeno empresário tem receita
bruta menor que o microempresário e o empresário de pequeno porte. Apenas o pequeno
empresário, como definido pela lei complementar, está dispensado de inscrição na Junta Comercial.
4.6. Inatividade da Empresa
Uma das inovações trazidas pela lei de 1994 é a figura da inatividade da empresa (art. 60). Tratase da situação em que se encontra a sociedade que não solicita arquivamento de qualquer documento,
por mais de uma década. A inatividade, que pode também dizer respeito a empresários individuais,
parece-me criação do direito brasileiro. Não conheço instituto similar no direito comparado.
A sistemática é a seguinte: se a sociedade empresária não praticou, em dez anos, nenhum ato
sujeito a registro, ela deve tomar a iniciativa de comunicar à Junta a sua intenção de manter-se em
funcionamento. A hipótese, evidentemente, diz respeito às sociedades limitadas, e não às anônimas.
Somente as primeiras podem passar tanto tempo sem praticar ato passível de arquivamento e, mesmo
assim, não incorrer em qualquer irregularidade. A companhia que se encontra nessa situação,
necessariamente deixou de dar cumprimento a certas obrigações legais (levantamento de
demonstrações financeiras, renovação do mandato de diretores, realização de assembleias ordinárias
etc.). Pois bem, se a sociedade não providenciar a comunicação de intenção de funcionamento, a
Junta instaura um procedimento para o cancelamento do registro, passando a considerar a empresa
inativa.
A inatividade da empresa decorre da falta de arquivamento de qualquer documento na Junta Comercial, no período de dez anos.
Prevê a lei que a Junta, após o cancelamento do arquivamento, deve comunicar o fato às
autoridades arrecadadoras (isto é, à receita federal, estadual e municipal, bem como ao INSS e à
Caixa Econômica Federal, que administra o FGTS), para que elas adotem as providências que o caso
recomenda; em geral, a responsabilização do sócio ou sócios que exerciam a gerência da sociedade
dissolvida.
A inatividade da empresa e o consequente cancelamento do registro da sociedade não significam o
mesmo que a sua dissolução determinada administrativamente. Ou seja, a figura da inatividade não
corresponde a uma terceira modalidade de dissolução de sociedade. O direito societário brasileiro
conhece apenas a dissolução judicial (determinada pelo juiz) e a amigável (avençada entre os
sócios). Não existe instrumento legal para a sua imposição por ato da autoridade administrativa
encarregada do registro — a Junta Comercial. Se a sociedade, a despeito da decretação de sua
inatividade, continuar a funcionar, será considerada empresária irregular, sofrendo as consequências
já examinadas (item 4.3). É este o seu status jurídico.
5. ESCRITURAÇÃO
Os empresários têm o dever de manter a escrituração dos negócios de que participam (CC, art.
1.179). Ou seja, o exercício regular da atividade empresarial pressupõe a organização de uma
contabilidade, a cargo de profissionais habilitados. Não há empresário regular que possa prescindir
dos serviços do contador, seja contratando-o como empregado, seja como profissional autônomo.
Historicamente, o primeiro instrumento de escrituração foi o livro mercantil , ou simplesmente livro.
Hoje em dia, embora existam quatros outros instrumentos igualmente admitidos pelo registro de
empresas (a saber: conjunto de fichas ou folhas soltas, conjunto de folhas contínuas, microfichas
geradas por microfilmagem de saída direta de computador e o livro digital), a expressão livro
conserva ainda o sentido genérico designativo do instrumento de que o empresário se vale, para dar
cumprimento ao dever legal de escrituração do seu negócio.
“A consciência do comerciante está escrita nos seus livros; neles é que o comerciante registra todas as suas ações; são, para ele, uma espécie
de garantia (...). Quando surgem contestações, é preciso que a consciência do juiz fique esclarecida; e é então que os livros são necessários, pois
que eles são os confidentes das ações do comerciante” (Exposição de Motivos do Código de Comércio Napoleônico, de 1807; Valverde,
1960:25).
A escrituração das operações realizadas pelo empresário atende, inicialmente, uma necessidade
do próprio exercente da atividade econômica. O comerciante, na Idade Média, logo sentiu que era
condição indispensável, para o controle de seu negócio, registrar os valores que recebia e despendia,
que tomava emprestado ou emprestava, dos créditos concedidos e das obrigações assumidas. Para
que, ao término de uma feira, ou do ano, o comerciante pudesse avaliar os resultados de seu
comércio, com vistas a manter ou alterar suas decisões negociais daí em diante, ele necessitava de
registros desse tipo. A primeira função da escrita mercantil — num sentido meramente esquemático,
e não histórico — tem natureza gerencial.
Outra função dos registros das operações realizadas pelo comerciante estava relacionada à
necessidade de demonstração dos resultados da atividade comercial para outras pessoas. Muitas
vezes, o comerciante possuía sócios em determinadas expedições, com os quais repartiria os lucros.
A demonstração da justeza do valor que o comerciante trazia ao sócio, a título de participação nos
resultados da empreitada, dependia da confiança depositada nos números apresentados, os quais
eram extraídos dos registros. Em decorrência desse uso, o lançamento dos valores passou a reclamar
uma certa técnica, um padrão que pudesse ser compreendido por qualquer pessoa minimamente
familiarizada com o respectivo método. Enquanto a escrituração tem apenas função gerencial, o
próprio comerciante decide como vai nomear os valores que registra, quais agrupará sob
determinadas rubricas, se cabe fazer provisões ou não. Quando, porém, a escrituração passa a ter
função documental, ela não pode mais ser feita sem critérios uniformes e reconhecidos como
pertinentes pelos destinatários. Assim, entre os séculos XIV e XV, na península itálica, começou a se
desenvolver o sistema de “partidas dobradas”, em que cada operação é lançada duas vezes, a crédito
de uma pessoa e a débito de outra, dando início à construção de um saber específico, crescentemente
complexo, que é a contabilidade (Valverde, 1960:21/23).
A terceira função da escrituração do empresário é fiscal, isto é, está relacionada ao controle da
incidência e pagamento de tributos. Pesquisas arqueológicas revelam a existência de registros de
operações econômicas, para servirem ao controle das finanças públicas, já na Babilônia da
Antiguidade (Sandroni, 1985:66). O poder político feudal e o estado moderno, aos seus tempos,
tributaram as operações comerciais, mas foi, principalmente, a partir do desenvolvimento propiciado
pela Revolução Industrial, e em razão das necessidades ligadas à sua função fiscal, que os registros
das operações realizadas pelos empresários passam a ser normatizados, e não podem mais ser feitos
por pessoas não especializadas. A primeira lei a tornar obrigatória a escrituração mercantil foi a
ordenança sobre o câmbio, editada em 1539, no reinado de Francisco I, em França. Esta norma
impunha a prévia autorização estatal para o exercício da atividade de câmbio, e a escrituração de
todas as operações era exigida para fins de controle dos agentes autorizados. Posteriormente, em
1673, a obrigatoriedade foi estendida pelo direito francês a todos os comerciantes (Valverde,
1960:23/24; Ripert-Roblot, 1947:312/313).
A escrituração possui, portanto, três funções. Serve de instrumento à tomada de decisões
administrativas, financeiras e comerciais, por parte dos empresários e dos dirigentes da empresa;
serve de suporte para informações do interesse de terceiros, como sócios, investidores, parceiros
empresariais, bancos credores ou órgão público licitante; e serve também para a fiscalização do
cumprimento de obrigações legais, inclusive e principalmente de natureza fiscal. Em suma, serve ao
controle interno e externo do exercício da atividade empresarial (Nigro, 1978:259/307). No direito
brasileiro, a previsão genérica do dever de escrituração está no art. 1.179 do Código Civil, para a
sociedade empresária limitada e demais empresários, e no art. 177 da LSA, para a anônima.
São três as funções da escrituração: gerencial, documental e fiscal.
O empresário está obrigado a manter livros (ou outra modalidade de instrumento de escrituração),
que são documentos unilaterais, que registram atos e fatos reputados importantes pela lei para o
regular funcionamento da empresa. Os livros que os empresários devem possuir, contudo, não são
todos “contábeis”, em sentido estrito. Quer dizer, alguns servem à memória dos valores relacionados
às operações de compra e venda, mútuo, liquidação de obrigações etc. — em síntese, o quanto o
empresário deve gastar ou receber, num determinado período. Outros servem à memória de dados
fáticos, como o livro de registro de empregados (CLT, art. 41) ou o de atas das assembleias gerais
(LSA, art. 100, IV), ou da prática de atos jurídicos, como o livro de registro de transferência de
ações nominativas (LSA, art. 100, II). Chamem-se os primeiros livros contábeis, e os outros livros
simplesmente memoriais.
A disciplina da escrituração de um livro contábil pode se encontrar na legislação comercial ou
tributária. Em função disso, a doutrina costuma classificar os livros em mercantis ou fiscais. Não
existe, contudo, nenhuma diferença entre os livros de uma ou outra dessas categorias, no tocante aos
requisitos de sua escrituração, às hipóteses de exibição judicial, ou perante autoridade
administrativa, e às responsabilidades do empresário pela sua falta ou irregularidade. A
classificação, assim, não se justifica senão para fins didáticos: ao direito comercial, enquanto
disciplina curricular, cabe enumerar os livros mercantis; ao direito tributário, os fiscais. Reafirmese, contudo, que é idêntico o regime jurídico atinente aos livros contábeis exigidos pela lei comercial
e pela lei tributária.
Os livros simplesmente memoriais, por sua vez, são obrigatórios pela legislação mercantil ou
trabalhista — o direito do trabalho impõe aos empregadores a escrituração de dois livros: o de
registro de empregados (CLT, art. 41) e o denominado Inspeção do Trabalho (CLT, art. 628, § 1 º)
—, e sua confecção costuma ser menos complexa que a dos livros contábeis. A diferença principal é
a de que neles não é necessária uma contabilidade, mas apenas o assentamento de dados fáticos e,
eventualmente, a aposição da assinatura dos sujeitos do ato ou negócio jurídico objeto de registro. À
semelhança dos contábeis, os livros simplesmente memoriais também podem ser elaborados em
instrumento alternativo, como as microfichas geradas por meio de microfilmagem de saída direta de
computador. Há, por fim, livros simplesmente memoriais de escrituração imposta apenas a
determinados empresários, e tendo em vista o atendimento a objetivos de outros ramos do direito. É
o caso dos livros registro de entrada e saída e registro de uso de placas de experiência, que o
Código de Trânsito Brasileiro impõe aos empresários que reformam, recuperam, compram, vendem
ou desmontam veículos, usados ou novos (Lei n. 9.503/97, art. 330), para fins de repressão a ilícitos
penais.
5.1. Espécies de Livros
Os livros contábeis e os simplesmente memoriais se classificam, segundo a exigibilidade de sua
escrituração, em obrigatórios e facultativos. Obrigatórios são os livros cuja escrituração é imposta
aos empresários; a sua falta implica sanções. Já os facultativos (por vezes, chamados auxiliares) são
os que o empresário escritura para fins gerenciais, ou seja, exclusivamente para extrair subsídios às
decisões que deve tomar à frente da empresa; por evidente, sua falta não implica sanções.
O primeiro livro obrigatório, referido em legislação de direito comercial, que se deve mencionar
é o Diário. O Código Comercial, em 1850, já o obrigava a todos os comerciantes, juntamente com
outro livro — o Copiador de Cartas. Em 1969, a lei aboliu a obrigatoriedade deste último, mas
manteve a do Diário (Dec.-lei n. 486/69, arts. 5º e 11). O Código Civil também prevê a
obrigatoriedade apenas deste livro, esclarecendo que pode ser substituído por fichas no caso de
escrituração mecanizada ou eletrônica (art. 1.180). Trata-se de livro contábil, em que se devem
lançar, dia a dia, diretamente ou por reprodução, os atos ou operações da atividade empresarial, bem
como os atos que modificam ou podem modificar o patrimônio do empresário. Até 1984, todos os
empresários comerciais, independentemente de seu porte econômico, ou ramo de atividade a que se
dedicavam, ou tipo societário de que se revestiam, estavam obrigados à escrituração desse livro.
Como nenhum empresário estava dispensado de o possuir, a doutrina o classificava como livro
obrigatório comum (Requião, 1971:132).
Em 1984, a lei passou a dispensar ao microempresário (e, posteriormente, também ao empresário
de pequeno porte) tratamento favorecido, visando criar condições mais favoráveis ao seu
desenvolvimento. Nesse contexto, preocupou-se a lei em abrandar ou, por vezes, suprimir a
obrigação de manter escrituração. Este tema será objeto de estudo à frente (subitem 5.8). Por
enquanto, basta o registro de que o livro obrigatório comum (Diário) tem a sua escrituração imposta
aos empresários em geral, mas não aos microempresários e empresários de pequeno porte.
Outro livro contábil que a legislação mercantil disciplina é o Registro de Duplicatas (Lei n.
5.474/68, art. 19). Sua obrigatoriedade não diz respeito a todos os empresários, mas somente aos que
emitem duplicata mercantil ou de prestação de serviços. A exigência alcança até mesmo os
microempresários e empresários de pequeno porte, caso eles pretendam sacar a duplicata, para
cobrança dos devedores ou desconto bancário. Note-se que a emissão de duplicata é sempre
facultativa; em nenhum caso está o comerciante ou o prestador de serviços obrigado a documentar o
seu crédito por meio especificamente deste título. Contudo, se optar por sua emissão, o empresário
fica sujeito à obrigatória escrituração daquele livro. Desse modo, se o empresário, de qualquer porte
econômico, não emite duplicatas, preferindo documentar os créditos que titulariza por meio de outros
instrumentos (nota promissória, contratos, cartas comerciais etc.), não se pode exigir-lhe a
escrituração do Registro de Duplicatas. Entre os simplesmente memoriais, são obrigatórios pela
legislação de direito comercial os livros próprios das sociedades anônimas (LSA, art. 100), em que
são registradas as atas das assembleias gerais e de outros órgãos societários, a presença dos
acionistas nas assembleias gerais, os dados cadastrais dos acionistas, os atos de transferência da
titularidade das ações nominativas. Também as limitadas que realizam assembleias de sócios devem
escriturar o livro de atas da assembleia (CC, art. 1.075, § 1º), as que possuem conselho fiscal, o
livro de atas e pareceres do conselho fiscal (art. 1.069, II), e aquelas cujos administradores não são
nomeados no contrato social, mas em ato separado, o livro de atas da administração, em que devem
ser lavrados os termos de posse (art. 1.062).
Por fim, os livros facultativos. Neste grupo pode-se incluir qualquer tipo de registro ordenado e
uniforme que os empresários realizam, para controle do andamento de seus negócios, ou memória de
decisões. Não é comum esta prática, mas, em tese, nada impede que um empresário crie métodos
próprios de contabilizar os seus negócios e os utilize. Claro que o livro facultativo tem valor
meramente gerencial e, mesmo quando autenticado pela Junta Comercial, não terá a eficácia
probatória que a lei confere aos livros obrigatórios. O direito argentino, a propósito, contempla
norma positiva expressa estabelecendo que os livros facultativos não podem servir de prova em
favor do comerciante, salvo se os obrigatórios se tiverem perdido sem culpa a ele imputável.
5.2. Regularidade na Escrituração
A confecção dos livros simplesmente memoriais não apresenta a mesma complexidade que a
escrituração dos contábeis. Claro que, por vezes, a redação de uma ata de assembleia geral exige
conhecimentos técnicos especializados, para que a deliberação dos acionistas produza validamente
todos os efeitos jurídicos pretendidos. Em geral, contudo, costuma ser menos complexa a elaboração
dos livros que prescindem da forma contábil. De qualquer modo, a escrituração se considera regular
quando atende a determinadas condições preceituadas em lei, ou seja, aos requisitos intrínsecos e
extrínsecos.
Os requisitos intrínsecos da escrituração mercantil dizem respeito à técnica apropriada de sua
elaboração. Em primeiro lugar, o uso do idioma português é obrigatório. Não se considera regular o
livro mercantil, qualquer que seja, escriturado em língua estrangeira. Além disso, não podem existir
intervalos, entrelinhas, borraduras, rasuras, emendas, anotações à margem ou notas de rodapé.
Qualquer ocorrência desse tipo, ou mesmo indício de adulteração, compromete a confiabilidade dos
registros correspondentes, ainda que não haja prova de má-fé ou fraude. Quando se trata de livro
contábil, os requisitos intrínsecos estão relacionados aos métodos de contabilidade geralmente
aceitos entre os profissionais da área, e são detalhados pelo art. 1.183 do Código Civil (art. 2º do
Dec.-lei n. 486/69). Quer dizer, além das condições já referidas, o livro contábil deve ainda
observar os seguintes parâmetros: moeda nacional, individuação (ou seja, a consignação expressa
das principais características dos documentos que dão sustentação ao lançamento: Dec. n. 64.567/69,
art. 2º), clareza e ordem cronológica de dia, mês e ano.
Código Civil
Art. 1.183. A escrituração será feita em idioma e moeda corrente nacionais e em forma contábil, por ordem cronológica de dia, mês e ano, sem
intervalos em branco, nem entrelinhas, borrões, rasuras, emendas ou transportes para as margens.
Os requisitos extrínsecos visam conferir segurança jurídica ao livro. São formalidades que
definem a responsabilidade pela escrituração — identificando o empresário e o seu contador — e,
em tese, podem dificultar alterações nos lançamentos feitos. São três: termo de abertura, termo de
encerramento e autenticação da Junta Comercial. Pela lógica, a primeira providência do contador
contratado pelo empresário seria lavrar o termo de abertura para, na sequência, proceder aos
lançamentos das operações. Quando terminasse o livro, o contador lavraria o termo de encerramento
e o encaminharia à Junta, para a autenticação. Na prática, contudo, não é necessariamente assim. A
Junta autentica livros em branco, desde que tenham sido já lavrados os termos de abertura e
encerramento (IN-DNRC n. 65/97, art. 5º, I).
5.3. Processos de Escrituração
Já vai longe no tempo a figura do antigo “guarda-livros”, a quem os comerciantes encarregavam a
tarefa de, manualmente, lançar os registros contábeis e fazer as demais anotações e cópias de
correspondência, indispensáveis ao controle da atividade comercial. Nesta época, utilizavam-se
livros encadernados e com páginas numeradas tipograficamente, adquiridos em papelarias. No
Brasil, a primeira grande transformação, neste cenário, ocorreu em 1967, quando se passou a admitir,
em substituição ao processo manual, o mecanográfico. Isto é, o contador, valendo-se de uma
“máquina de escrever”, datilografava os lançamentos em fichas soltas que, posteriormente, eram
encadernadas junto com as folhas dos termos de abertura e de encerramento. Feito isto, o livro assim
organizado era legalizado pela Junta Comercial. Em 1968, foi regulamentada a microfilmagem dos
documentos, inclusive livros e demais instrumentos contábeis. Em 1972, ocorreu outra grande
transformação no sistema de escrituração mercantil, que foi a disciplina do processo eletrônico. Os
computadores imprimiam os lançamentos contábeis em “formulário contínuo, com as subdivisões
numeradas tipograficamente”. Em seguida, as subdivisões eram destacadas e encadernadas para,
junto com os termos de abertura e encerramento, serem levadas à Junta.
A partir dos anos 1990, com a disseminação, no Brasil, do uso do microcomputador (os Personal
Computers) entre empresários e contadores, os lançamentos contábeis passaram a ser digitados em
programas de cálculo e, posteriormente, impressos em folhas soltas. Encadernadas junto com os
termos legais, são então levadas à autenticação pela Junta. Há, ainda, a alternativa de microfichas
geradas por meio de microfilmagem de saída direta de computador (COM), cuja utilização é
admitida pelo DNRC.
Os processos mecanográfico, eletrônico e com o uso de microcomputador mencionados até aqui,
embora representem inegável avanço em relação à escrita manual, na verdade acabam, tanto quanto
esta, gerando lançamentos em meio-papel. A partir de 2006, o DNRC passou a admitir a elaboração,
processamento e armazenamento da escrituração do empresário exclusivamente em meio eletrônico.
Denominou a alternativa de livro digital, instrumento contábil que pode, mas não precisa, ser
impresso em papel. O livro digital é autenticado pelas Juntas Comerciais eletronicamente, mediante a
aposição de certificado digital e selo cronológico digital, na conformidade das regras da
Infraestrutura Brasileira de Chaves Públicas — ICP-Brasil (IN 102/2006). Alguns empresários,
aliás, são obrigados a manter sua escrituração em meio eletrônico (isto é, em livros digitais) em
razão de norma tributária (Dec. n. 6.022/2007).
5.4. Extravio e Perda da Escrituração
A falta de um instrumento de escrituração obrigatório implica sanções ao empresário. Deste
modo, ocorrendo extravio, deterioração ou destruição de livros, fichas ou microfichas já autenticadas
pela Junta Comercial, o empresário deve adotar certas providências, exigidas pelo registro de
empresas, para não sofrer as sanções relacionadas à falta da escrituração. Em primeiro lugar, é
necessário providenciar a publicação, em jornal de grande circulação na sede do estabelecimento
correspondente, de um aviso relativo à ocorrência. Em segundo, nas quarenta e oito horas que se
seguirem à publicação, o empresário deve apresentar na Junta Comercial uma comunicação, com
detalhado relato do fato. Após essas providências, o empresário poderá recompor sua escrituração,
adotando o mesmo número de ordem do instrumento extraviado ou perdido, para fins de a submeter à
autenticação. A segunda via do livro ou instrumento de escrituração, após o atendimento destas
cautelas e formalidades, produzirá, em princípio, os mesmos efeitos jurídicos da primeira. Claro
que, uma vez demonstrada a fraude na substituição do livro mercantil — o empresário, na verdade,
inutilizou o original —, a segunda via tem a sua eficácia probatória limitada ou comprometida.
Quando presentes as cautelas e formalidades acima, no entanto, presume-se regular a substituição do
instrumento de escrituração, recaindo sobre a parte adversa o ônus de prova de eventuais fraudes.
5.5. Exibição dos Livros
O Código Civil consagra o princípio do sigilo dos livros comerciais (art. 1.190). Considerava-se
que o comerciante tinha o direito de manter reservadas informações que somente lhe diziam respeito,
como os seus ganhos e suas despesas. Claro que a norma se ajusta apenas à figura do comerciante
individual, pessoa física, que explora atividade cujos frutos lhe pertencem unicamente. O princípio
do sigilo da escrituração mercantil está, assim, ligado à tutela da privacidade e tem um sentido
histórico. Com base no dispositivo legal que o assegurava, o comerciante podia legitimamente se
recusar a apresentar seus livros, perante qualquer autoridade, juiz ou Tribunal. No decorrer do
Século XX, o princípio do sigilo da escrita mercantil foi paulatinamente sendo excepcionado e, hoje
em dia, não pode ser oposto contra autoridades fiscais (CC, art. 1.193), ou contra ordem do juiz (CC,
art. 1.191). Sua aplicação ficou, assim, restrita às hipóteses em que a exigência eventualmente parte
de órgãos públicos com atuação estranha à apuração e arrecadação de tributos ou contribuição
previdenciária — por exemplo, os agentes fiscais do meio ambiente, ou de normas municipais de
segurança de uso de imóveis.
Examine-se, primeiro, a exibição dos livros mercantis perante autoridades administrativas com
poderes para a determinar. Perante o Poder Executivo, a exibição dos livros mercantis pode ser
obrigada pelos agentes de fiscalização da receita (federal, estadual ou municipal) ou do INSS. Os
primeiros lastreados no art. 195 do CTN, que afasta a incidência de quaisquer disposições legais
excludentes ou limitativas do poder de a fiscalização tributária examinar os livros dos empresários;
os do INSS, com base no art. 33, § 1º, da Lei n. 8.212/91 (lei do custeio da seguridade social). A
fiscalização nesses dois casos, no entanto, segundo considera a jurisprudência dominante (Súmula
439 do STF), não poderá extravasar certos limites; ou seja, deve se ater apenas aos elementos objeto
de investigação.
“Estão sujeitos à fiscalização tributária, ou previdenciária, quaisquer livros comerciais, limitado o exame aos pontos objeto de investigação”
(Súmula 439 do STF).
Para o exame dos livros do empresário, normalmente, é instaurada uma operação de fiscalização,
com a autuação de um procedimento administrativo da receita, ou do INSS. Trata-se de uma
formalidade preliminar, que serve também de garantia aos empresários, quanto à natureza oficial da
atuação do funcionário público. Seguem-se, então, duas alternativas: ou é expedida uma intimação ao
empresário, para que compareça no posto fiscal, portando seus livros, ou os agentes do órgão
público comparecem ao estabelecimento do empresário, ou ao escritório do seu contador, para ali
mesmo consultá-los. Se a escrituração dos livros objeto de fiscalização não estiver regular, ou se do
seu exame constatarem os fiscais a falta de pagamento do tributo, será lavrado contra o empresário
um auto de infração, que abrangerá, além dos valores sonegados, as multas e encargos da lei.
Além da exibição perante órgãos administrativos, quando é inoperante o princípio do sigilo da
escrituração mercantil, prevê a lei também a sua decretação pelo juiz. Na verdade, quando a prova
de um fato em juízo depende do exame de um livro mercantil, em geral, procede-se comumente à
perícia contábil, com a nomeação do perito pelo juiz e indicação dos assistentes técnicos pelas
partes. Estes profissionais se dirigem, então, ao estabelecimento do empresário, consultam os livros
e, posteriormente, elaboram seus laudos técnicos (ou parecer), que são juntados aos autos judiciais.
Trata-se do procedimento usual, plenamente satisfatório para a produção da prova.
A lei processual, no entanto, disciplina também um outro expediente probatório, relacionado à
escrituração mercantil, que pressupõe a exibição do livro. Trata-se de sistemática existente em
outros direitos, como o argentino por exemplo. Há duas modalidades de exibição judicial: a parcial
(CPC, art. 382) e a total (CPC, art. 381). A primeira se viabiliza com a designação de audiência,
para que o livro seja apresentado ao juiz. Nesta audiência, extrai-se a suma dos elementos que
interessam à demanda (por exemplo, se consta o lançamento do crédito reclamado pela outra parte e
se foi feito de modo regular) e reduz-se a termo. É só. Na exibição parcial, o empresário permanece
na posse do livro, que não ficará retido em cartório. Por tal razão, esta modalidade de exibição do
livro mercantil pode ser decretada pelo juiz de ofício e em qualquer processo de que seja parte o
empresário.
Por sua vez, a exibição total importa a retenção dos livros em cartório e a possibilidade de
depósito em mãos de litigantes, isto é, o desapossamento do empresário que o escritura. Assim, a lei
impede a decretação da medida em toda e qualquer ação, circunscrevendo as hipóteses em que a
exibição total é permitida. Ela só cabe nas ações de liquidação de sociedade, na sucessão por morte
de sócio de sociedade empresária ou de empresário individual, administração ou gestão à conta de
outrem ou em hipótese expressamente prevista por lei. Exemplo desta última encontra-se no art. 105
da LSA, que assegura aos acionistas com pelo menos 5% do capital social a exibição judicial dos
livros da sociedade anônima, quando houver indícios de irregularidades na sua administração; ou no
caso de negativa do direito assegurado aos sócios da sociedade limitada regida supletivamente pelo
regime das sociedades simples, pelo art. 1.021 do Código Civil. Mesmo nestes casos em que a
exibição total é autorizada por lei, o juiz não a pode decretar de ofício, mas apenas para atender a
pedido da parte interessada.
Dois outros requisitos se exigem para a exibição judicial dos livros, tanto na modalidade parcial
quanto na total: quem requer a exibição deve demonstrar legítimo interesse (Valverde, 1960:89/90),
e esta só terá lugar se o empresário que escritura o livro for parte da relação processual.
5.6. Eficácia Probatória dos Livros Mercantis
Seja em razão de perícia contábil, seja por força da exibição determinada pelo juiz, os livros
apresentam uma certa eficácia probatória, cujos contornos são fixados pela legislação civil (CC, art.
226) e processual civil (CPC, arts. 378 a 380).
O livro mercantil, enquanto um documento unilateral, em nenhuma hipótese pode fazer prova
plena. Se o conjunto probatório como um todo sugere que os lançamentos contábeis não
correspondem à verdade dos fatos, não se sustentam em documentos hábeis nem são reforçados por
outras provas testemunhais ou periciais, então o juiz pode conferir--lhe valor relativo, ou mesmo
desconsiderá-lo. Se, entretanto, o seu exame é a única prova produzida nos autos, ou se as
conclusões que dele se extraem são compatíveis com as demais provas, então o juiz irá conferir ao
livro o valor que a lei menciona. Neste sentido, o livro pode fazer prova a favor ou contra o
empresário que o escriturou.
Para fazer prova a favor do seu titular, além da confirmação por outros elementos probatórios
(CC, art. 226, in fine), duas condições são necessárias: a regularidade na escrituração (ou seja, o
atendimento aos requisitos intrínsecos e extrínsecos) e a isonomia das partes litigantes (quer dizer, a
outra parte também deve ser empresário e ter, por isso, como se valer do mesmo meio de prova)
(CPC, art. 379). Presentes tais condições, ao empresário basta a perícia ou a exibição de seu livro
mercantil, para que seja considerado desonerado dos ônus de prova que lhe cabem. Se for o
demandante, nenhuma outra prova terá que produzir para ver julgado procedente o pedido. Se
demandado, terá feito prova do fato desconstitutivo do direito do autor. Mas, se o livro não se
encontra regularmente escriturado, ou se o empresário está litigando contra um consumidor, a
administração pública ou qualquer outro não empresário, a perícia ou a exibição não poderá,
sozinha, ser invocada como desencargo do onus probandi.
Atualmente, o direito brasileiro admite o uso de meios informatizados não somente para a
preparação da escrituração mercantil, como também para a materialização do documento. O papel
não é mais o suporte único para a escrituração mercantil. Desse modo, no Brasil, a exemplo do que
já se verificava há alguns anos no direito de outros países (cf. Lamberterie, 1992), é cabível a prova,
em favor do comerciante, de lançamentos contábeis conservados exclusivamente em meio eletrônico,
desde que autenticados pela Junta Comercial por meio das chaves geradas pela ICP-Brasil
(Infraestrutura Brasileira de Chaves Públicas).
Para fazer prova contra o empresário que o escriturou (CC, art. 226; CPC, art. 378), estas
condições não se exigem. Quer dizer, mesmo que o livro apresente irregularidades na escrituração,
mesmo que a demanda não envolva apenas empresários, a perícia contábil ou a exibição judicial dão
fundamento suficiente para se considerar realizada a prova contrária ao interesse do autor da
escrituração examinada (Amaral Santos, 1976:187/188). Como, no entanto, trata-se o livro mercantil
de documento unilateral, inábil para a produção de plena prova, admite a lei que o empresário
demonstre, por outros meios, que a escrituração não corresponde à verdade dos fatos. Em outros
termos, os dados constantes da escrituração mercantil, quando contrários ao interesse perseguido
pelo empresário em juízo, criam uma presunção relativa em favor do outro litigante.
Os dados contábeis conservados em meio eletrônico fazem prova contra o empresário que os
escriturou. A exigência da autenticação pela Junta, como visto, impõe-se apenas na hipótese de prova
judicial favorável ao autor do instrumento contábil. Para a prova contrária ao empresário
responsável pelo tratamento informatizado das informações contábeis, tal formalidade é dispensável.
Assim, se a parte adversa teve acesso legítimo àqueles dados contábeis, poderá fazer uso deles em
juízo, em oposição ao interesse perseguido ou defendido pelo empresário titular do banco de dados
correspondente.
Os livros podem fazer prova em processo judicial, tanto em favor do empresário que os escriturou, como contrariamente a ele.
Se, por fim, a perícia contábil ou a exibição judicial permitem a sustentação de dados tanto em
favor como contrariamente aos interesses do empresário que escriturou o livro examinado, determina
a lei processual que se considerem estes dados como uma unidade. É o princípio da indivisibilidade
da escrituração contábil, referida no art. 380 do CPC.
5.7. Consequências da Falta de Escrituração
Devem ser distinguidas duas ordens de consequências da falta de escrituração dos livros: de um
lado, as sancionadoras; de outro, as motivadoras. As primeiras importam a penalização do
empresário, inclusive pela imputação de responsabilidade penal; as outras apenas negam o acesso do
empresário a um benefício de que poderia usufruir caso tivesse cumprido a obrigação. São duas as
consequências sancionadoras: na órbita civil, a eventual presunção de veracidade dos fatos alegados
pela parte adversa, em medida judicial de exibição de livros; na órbita penal, a tipificação de crime
falimentar. São duas, também, as motivadoras: inacessibilidade à recuperação judicial e ineficácia
probatória da escrituração.
A medida de exibição judicial de documentos pode ter por objeto a escrituração de um
empresário, e está disciplinada nos arts. 355 a 363 do CPC. O pedido pode ter lugar em qualquer
processo judicial, ou em procedimento preparatório (CPC, art. 844, II e III). Ao requerer a exibição,
o interessado irá aduzir os fatos que pretende provar com a medida. Se o livro obrigatório não for
exibido, ou ostentar irregularidades na parte relevante à demanda, e o empresário tinha a obrigação
legal de exibi-lo, o juiz considerará presumivelmente verdadeiros os fatos articulados pelo outro
litigante (CPC, art. 359, I e II).
A tipificação do crime falimentar, a seu turno, se encontra no art. 178 da Lei de Falências.
Convém acentuar que a falta de escrituração, em si, não é crime. Ou seja, criminoso não é o exercício
da atividade empresarial sem a escrituração prevista na lei; criminoso é falir sem esta escrituração.
Trata-se de crime de perigo a falta ou irregularidade, em caso de falência, dos livros mercantis,
porque elas impossibilitam ao juízo falimentar assentar-se em documento seguro, ao examinar as
diversas habilitações de credores que se apresentam ao processo de falência. Deste modo, há o
perigo de alguém, embora não sendo credor, acabar admitido no quadro de credores (Requião,
1975:152/153).
No campo das consequências motivadoras, o empresário que não cumpre o dever de escriturar
regularmente os seus negócios está impedido de obter o benefício da recuperação judicial (LF, art.
51, V). Pela concordata, o empresário com dificuldades de saldar seus compromissos tem assegurada
em juízo a redução do valor devido ou a ampliação do prazo de pagamento. Para tanto, deve cumprir
certos requisitos que a lei estabelece, entre os quais o de autenticar no registro de empresas os livros
obrigatórios. Outra consequência desta ordem é a ineficácia probatória da escrituração, já que o art.
379 do CPC somente reconhece força probante, em favor do empresário que o escritura, ao livro que
atende aos requisitos intrínsecos e extrínsecos da lei. Em outros termos, se o empresário deixou de
cumprir — ou cumpriu mal — seu dever de manter escrituração regular, ele não se poderá valer, em
demanda contra outro empresário, da prerrogativa que lhe confere a legislação processual.
A lei exige que o empresário conserve em boa guarda a escrituração mercantil, enquanto não
prescritas as ações relativas às obrigações nela contabilizadas ou não operada a decadência (CC, art.
1.194; Dec.-lei n. 486/69, art. 4º). É difícil falar em um prazo geral, que sirva a todos os casos,
exigindo-se, a rigor, o exame casuístico e detalhado de cada lançamento para a definição de um
termo seguro, a partir do qual o empresário poderá se desfazer dos livros. Isto porque há inúmeras
hipóteses de suspensão e interrupção de prazos prescricionais, que não podem ser ignorados. Claro
que, uma vez prescritas todas as ações, poderá o empresário, se for de seu interesse, inutilizar ou
resumir os instrumentos de escrituração. E, neste caso, não poderá sofrer sanção alguma, em
decorrência da inutilização ou alteração.
5.8. Escrituração da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte
Como referido anteriormente (subitem 5.1), a lei impõe à generalidade dos empresários a
escrituração do livro Diário, que é, por esta razão, classificado, na doutrina, como obrigatório
comum. Desta obrigação, contudo, têm sido poupados os empresários de menor porte, de modo
variado, desde 1984.
Naquele ano, foi editado o primeiro Estatuto da Microempresa (Lei n. 7.256/84), que
estabelecia, entre as medidas de amparo e promoção do microempresário, a dispensa de escrituração
mercantil. Enquanto vigorou, os empresários com receita bruta anual inferior ao limite estabelecido
na lei, e que podiam por isso usufruir dos benefícios do Estatuto, não estavam obrigados a escriturar
o Diário. Dez anos após, com a edição do segundo Estatuto (Lei n. 8.864/94), o da Microempresa e
Empresa de Pequeno Porte, a lei restaurou a obrigatoriedade da escrituração, mas determinou que
ela fosse simplificada, postergando para o decreto regulamentar a definição do regime de
escrituração próprio a estas categorias de empresário. O decreto regulamentar, entretanto, não foi
editado.
Em 1996, foi instituído o programa SIMPLES (Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e
Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte ). Durante a vigência deste
programa, o microempresário e o empresário de pequeno porte optantes do SIMPLES não estavam
obrigados à escrituração do Diário, mas de dois outros livros: o Caixa, com registro de toda a
movimentação financeira, inclusive bancária, e o Registro de Inventário, com a relação do estoque
existente ao término de cada ano (Lei n. 9.317/96, art. 7º).
Em 1999, foi editado o terceiro Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, que
revogou os de 1984 e de 1994 e manteve inalterado o programa SIMPLES. Ressalte-se que, entre as
medidas legais de apoio ao microempresário e ao empresário de pequeno porte definidas por esse
Estatuto, não se encontrava nenhuma referente à dispensa ou simplificação da escrituração mercantil.
Em decorrência, o microempresário ou empresário de pequeno porte que não estivesse enquadrado
no SIMPLES — por não poder ou não querer — ficava obrigado a escriturar seus negócios segundo
as mesmas regras dos empresários em geral, até a entrada em vigor do Código Civil em 2003, que
reintroduziu esta medida de apoio aos microempresários e empresários de pequeno porte (art. 1.179,
§ 2º).
Em 2006, foi aprovado o quarto Estatuto, por meio da Lei Complementar n. 123. De acordo com
o art. 26 desta lei, o microempresário e o empresário de pequeno porte optantes do Simples Nacional
(programa tributário sucedâneo do SIMPLES) estão dispensados de qualquer escrituração mercantil,
devendo os não optantes manter o livro Caixa. Os “pequenos empresários”, istó é, os empresários
individuais com receita anual inferior a R$ 36.000,00, estão dispensados de qualquer escrituração
(CC, art. 1.179, § 2º; LD n. 123/2006, art. 68).
Para a completa compreensão da matéria, contudo, não se pode esquecer que o art. 29, VII, do
Estatuto de 2006 determina a exclusão do Simples Nacional quando, in litteris, “houver falta de
escrituração do livro Caixa ou não permitir a identificação da movimentação financeira, inclusive
bancária”. Aparentemente, haveria uma contradição na lei. O que o art. 26 dispensaria (escrituração
do livro Caixa), o art. 29, VII, exigiria indiretamente. Na verdade, a melhor forma de interpretar
esses dispositivos, conferindo sistematicidade ao texto legal, consiste em reconhecer aos optantes
pelo Simples Nacional duas alternativas: ou bem eles mantêm documentação que permita a
identificação da movimentação financeira, inclusive bancária, ou bem escrituram o livro Caixa. Quer
dizer, o optante pelo Simples Nacional somente está dispensado de qualquer escrituração mercantil
se a documentação que mantiver arquivada nos termos do art. 26, II, do Estatuto permitir a
identificação da movimentação financeira, incluindo a bancária. Se os documentos guardados não
têm essa aptidão, a escrituração do livro Caixa deverá ser feita para suprir a deficiência. Em suma, o
optante pelo Simples Nacional tem, na verdade, a escolha entre manter a documentação que permita a
identificação da movimentação financeira, dispensando-se de fazer qualquer escrituração mercantil,
ou escriturar o livro Caixa. Continua, assim, dispensado do dever geral de escrituração imposto aos
empresários, em razão da primeira alternativa ao seu alcance.
Em conclusão, os microempresários e empresários de pequeno porte estão, desde 2006,
dispensados de escrituração mercantil desde que sejam optantes pelo Simples Nacional e mantenham
arquivados documentos referentes ao seu giro empresarial que permitam a identificação da
movimentação financeira, inclusive bancária. Os demais microempresários e empresários de
pequeno porte devem escriturar o livro Caixa, a menos que sejam pequenos empresários segundo a
definição legal.
Ressalte-se, por outro lado, que a sociedade limitada de propósito específico (SPE) constituída
por microempresários ou empresários de pequeno porte optantes do Simples Nacional, para
exploração do comércio nacional ou internacional, não se beneficia da dispensa da escrituração
mercantil. O art. 56, § 2º, IV, do Estatuto (com a redação dada pela LC n. 128/2008) apenas autoriza
a SPE a manter um regime próprio de escrituração mercantil, que compreende dois livros: Diário e
Razão.
6. DEMONSTRAÇÕES CONTÁBEIS PERIÓDICAS
Como visto, o Código Civil impõe aos empresários em geral três obrigações: a de manter
escrituração regular de seus negócios; a de se registrar na Junta Comercial, antes de dar início à
exploração de suas atividades; e, finalmente, a de levantar balanços anuais, patrimonial e de
resultado (art. 1.179). As duas primeiras foram objeto de estudo nos itens anteriores. Examine-se,
agora, a última.
Quando se trata de uma sociedade limitada, a obrigação se resume ao levantamento do balanço
geral do ativo (considerados todos os bens, dinheiro e créditos) e passivo (todas as obrigações de
que é devedora), e a demonstração de resultados (ou “da conta de lucros e perdas”), observadas as
técnicas geralmente aceitas pela contabilidade (CC, art. 1.188). Estes balanços terão por base a
escrituração mercantil elaborada ao longo do exercício, e serão lançados pelo contador no próprio
livro Diário, ou, se este tiver sido substituído por fichas soltas, no livro denominado Balancetes
Diários e Balanços (CC, art. 1.185).
Se, no entanto, a sociedade empresária adota a forma de anônima ou se enquadra no conceito legal
de sociedade de grande porte (Lei n. 11.638/2007, art. 3º, parágrafo único), a disciplina legal é bem
mais detalhada. O balanço patrimonial deve apresentar determinadas contas de ativo (circulante,
realizável a longo prazo e permanente, este último subdividido em imobilizado, diferido e
investimentos) e de passivo (circulante, exigível a longo prazo, resultados futuros e patrimônio
líquido, subdividido este último em capital social, reservas e lucros ou prejuízos acumulados). Em
relação a este tipo de empresário, a lei também exige, além do balanço patrimonial, o levantamento
de quatro outras demonstrações contábeis: lucros ou prejuízos acumulados , resultado do exercício,
dos fluxos de caixa e valor adicionado. Só por estes elementos já se pode notar a grande diferença,
no tocante ao cumprimento das obrigações legais, entre a limitada (desde que não enquadrada no
conceito de sociedade de grande porte) e a anônima.
Quanto à periodicidade para a elaboração das demonstrações contábeis, a exemplo da vigente em
outros países (Alemanha, Espanha, Portugal, Itália e Argentina), é ela, em regra, anual. No Brasil,
existem duas exceções apenas: as sociedades anônimas cujo estatuto estabeleça a distribuição de
dividendos semestrais (LSA, art. 204) e as instituições financeiras (Lei n. 4.595/64, art. 31). Nesses
casos, o período para elaboração do balanço e demais demonstrativos é o semestre. Geralmente,
adotam os empresários em geral o ano civil como referência, embora possam escolher livremente
qualquer período anual, para fins de dar cumprimento à obrigação (salvo, novamente, no caso das
instituições financeiras, que devem levantar o balanço nos dias 30 de junho e 31 de dezembro, por
força da lei).
A periodicidade para a elaboração de demonstrações contábeis é, em regra, anual. Apenas as instituições financeiras e as sociedades
anônimas que distribuem dividendos semestrais estão obrigadas a levantá-las em menor periodicidade.
As consequências para a falta das demonstrações contábeis periódicas são as seguintes: a) o
empresário terá dificuldade de acesso ao crédito bancário, ou a outros serviços prestados pelos
bancos que se valem do balanço como instrumento de aferição da idoneidade econômica e
patrimonial de seus clientes; b) não poderá participar de licitação promovida pelo Poder Público,
tendo em vista as exigências da legislação própria (Lei n. 8.666/93, art. 31, I); c) os administradores
de sociedade anônima e os administradores da limitada responderão, perante os sócios, por
eventuais prejuízos advindos da inexistência do documento.
Finalmente, cabe uma referência aos balanços patrimoniais especial e de determinação. São
instrumentos contábeis que a sociedade empresária providencia, quando necessária a mensuração do
seu patrimônio durante o exercício. Como visto, a obrigação legal impõe aos empresários o
levantamento do balanço patrimonial ao término de um determinado período (anual, em regra;
semestral, excepcionalmente). É o balanço ordinário ou periódico. Existem, contudo, situações
verificadas no transcorrer do período, que reclamam a definição do valor do patrimônio líquido da
sociedade empresária num determinado momento, não coincidente com o término do exercício social.
Nesses casos, levanta-se o balanço especial, ou o de determinação. No primeiro (balanço especial),
mantêm-se os mesmos critérios de apropriação de contas e avaliação dos bens e direitos adotados
pelo balanço ordinário. Não se procede, em outros termos, a nenhuma reavaliação de ativo ou
passivo. Sua finalidade é apenas a de atualizar o balanço, considerando os fatos contábeis
verificados desde o término do exercício até a data de seu levantamento. No último (balanço de
determinação), alteram-se os critérios de apropriação de contas e avaliação dos bens e direitos
adotados pelo balanço ordinário, para atender-se a necessidade específica da sociedade, por
exemplo, a de apurar os haveres de sócio falecido, expulso ou dissidente. Os bens do ativo e
direitos do passivo são, então, reavaliados (a preço de mercado). Os balanços especial e de
determinação não geram desdobramentos de ordem tributária.
Capítulo 5
ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
1. CONCEITO DE ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
Estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o empresário reúne para exploração de sua
atividade econômica. Compreende os bens indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa,
como as mercadorias em estoque, máquinas, veículos, marca e outros sinais distintivos, tecnologia
etc. Trata-se de elemento indissociável à empresa. Não existe como dar início à exploração de
qualquer atividade empresarial, sem a organização de um estabelecimento. Pense-se a hipótese do
empresário interessado no comércio varejista de medicamentos (farmácia). Ele deve adquirir, alugar,
tomar emprestado, ou, de qualquer forma, reunir determinados bens, como por exemplo: os remédios
e outros produtos normalmente comercializados em farmácia, as estantes, balcões e demais itens de
mobiliários, a máquina registradora, balança e equipamentos. Além desses bens, o empresário
deverá encontrar um ponto para o seu estabelecimento, isto é, um imóvel (normalmente alugado), em
que exercerá o comércio.
Ao organizar o estabelecimento, o empresário agrega aos bens reunidos um sobrevalor. Isto é,
enquanto esses bens permanecem articulados em função da empresa, o conjunto alcança, no mercado,
um valor superior à simples soma de cada um deles em separado. Aquele empresário interessado em
se estabelecer no ramo farmacêutico tem, na verdade, duas opções: adquirir uma farmácia já pronta,
ou todos os bens que devem existir numa farmácia. No primeiro caso, irá despender valor maior que
no segundo. Isto porque, ao comprar o estabelecimento já organizado, o empresário paga não apenas
os bens nele integrados, mas também a organização, um “serviço” que o mercado valoriza. As
perspectivas de lucratividade da empresa abrigada no estabelecimento compõem, por outro lado,
importante elemento de sua avaliação, ou seja, é algo por que também se paga.
O estabelecimento é, assim, uma propriedade com características dinâmicas singulares. A
desarticulação de um ou mais bens, por vezes, não compromete o valor do estabelecimento como um
todo. O industrial, ao terceirizar a entrega de suas mercadorias, contratando serviço de uma
transportadora, pode vender os caminhões que possuía. A venda desses bens não repercute
necessariamente no valor da sua indústria. Claro que a desarticulação de bens essenciais — cuja
identificação varia enormemente, de acordo com o tipo de atividade desenvolvida, e o seu porte —
faz desaparecer o estabelecimento e o sobrevalor que gerava. Se o industrial desenvolveu uma
tecnologia especial, responsável pelo sucesso do empreendimento, a cessão do know how pode
significar a acentuada desvalorização do parque fabril.
Este fato econômico — a agregação de sobrevalor aos bens integrantes do estabelecimento
empresarial — não é ignorado pelo direito. Quando o poder público desapropria imóvel, em que
existia um estabelecimento empresarial, deve indenizar tanto o proprietário do imóvel como o
locatário titular do estabelecimento (Barreto Filho, 1969). Por outro lado, o direito admite a
reivindicação do estabelecimento, como um complexo organizado, além da reivindicação de cada um
de seus bens componentes (Correia, 1973:139/141). Finalmente, a proteção desse sobrevalor
pressupõe a disciplina jurídica dos negócios relacionados ao estabelecimento (a locação empresarial
com direito a renovatória, a vedação do restabelecimento do alienante no trespasse etc.), de forma a
garantir que o investimento realizado pelo empresário na organização do estabelecimento não seja
indevidamente apropriado por concorrentes.
Estabelecimento empresarial é o conjunto de bens reunidos pelo empresário para a exploração de sua atividade econômica. A proteção
jurídica do estabelecimento empresarial visa à preservação do investimento realizado na organização da empresa.
O valor agregado ao estabelecimento é referido, no meio empresarial, pela locução inglesa
goodwill of a trade, ou simplesmente goodwill. No meio jurídico, adota-se ora a expressão “fundo
de comércio” (derivada do francês fonds de commerce, e cuja tradução mais ajustada seria, na
verdade, “fundos de comércio”), ora “aviamento” (do italiano avviamento), para designar o
sobrevalor nascido da atividade organizacional do empresário. Prefiro falar em “fundo de empresa”,
tendo em vista que o mesmo fato econômico e suas repercussões jurídicas se verificam na
organização de estabelecimento de qualquer atividade empresarial. Registro que não é correto tomar
por sinônimos “estabelecimento empresarial” e “fundo de empresa”. Este é um atributo daquele; não
são, portanto, a mesma coisa. Precise-se: o estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o
empresário reúne para explorar uma atividade econômica, e o fundo de empresa é o valor agregado
ao referido conjunto, em razão da mesma atividade.
A sociedade empresária pode ser titular de mais de um estabelecimento. Nesse caso, aquele que
ela considerar mais importante será a sede, e o outro ou outros as filiais ou sucursais (para as
instituições financeiras, usa-se a expressão “agência”, para mencionar os diversos estabelecimentos).
Em relação a cada um dos seus estabelecimentos, a sociedade empresária exerce os mesmos direitos,
sendo irrelevante a distinção entre sede e filiais, para o direito comercial. Para os objetivos das
regras de competência judicial, no entanto, ganha relevo a identificação da categoria própria do
estabelecimento, porque a ação contra a sociedade empresária deve ser proposta no foro do lugar de
sua sede, ou no de sua filial, segundo a origem da obrigação (CPC, art. 100, IV, a e b). Quando se
trata, por outro lado, de pedido de falência ou de recuperação judicial, o juízo competente será o do
principal estabelecimento da sociedade devedora, sob o ponto de vista econômico,
independentemente de ser a sede ou uma filial (LF, art. 3º). A distinção, por conseguinte, entre as
duas espécies de estabelecimento do mesmo empresário (sede ou filial), abstraídos os aspectos
pertinentes à competência judicial, não apresenta maiores desdobramentos para o direito (Ferreira,
1962, 6:30/42).
Por fim, registre-se que o desenvolvimento do comércio eletrônico via internete importou a
criação do estabelecimento virtual, que o consumidor ou adquirente de produtos ou serviços acessa
exclusivamente por via de transmissão e recepção eletrônica de dados. Aqui, cuidarei apenas do
estabelecimento físico — isto é, o acessível por deslocamento no espaço; do virtual, cuido mais à
frente (Cap. 36, item 2).
2. NATUREZA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
Existem nada menos que nove teorias diferentes sobre a natureza do estabelecimento, compondo
um leque de visões que vão desde a personificação do complexo de bens até a negativa de sua
relevância para o direito (cf. Barreto Filho, 1969:77/109; Correia, 1973:121/134; Ferrara,
1952:161/162). Da rica discussão, basta apenas destacar três pontos essenciais: 1º) o
estabelecimento empresarial não é sujeito de direito; 2º) o estabelecimento empresarial é um bem;
3º) o estabelecimento empresarial integra o patrimônio da sociedade empresária. Esses tópicos são
suficientes para a completa e adequada compreensão do instituto e dispensam maiores considerações
sobre o infértil debate acerca da natureza do estabelecimento empresarial.
O estabelecimento empresarial não pode ser confundido com a sociedade empresária (sujeito de direito), nem com a empresa (atividade
econômica).
Ao se afirmar que o estabelecimento empresarial não é sujeito de direito, o que se pretende
afastar é a noção de personalização desse complexo de bens, presente em algumas proposições da
segunda metade do século XIX, principalmente na Alemanha, que procuravam criar um conceito legal
capaz de justificar a relativa autonomia entre a empresa e o empresário. Falo aqui da tese da empresa
em si (Unternehmen an sich), cujos precursores são Endemann e Wilhelm. Procurou-se, na
oportunidade, explorar a noção do estabelecimento como uma pessoa jurídica. A tentativa de
personalização do estabelecimento, contudo, não logrou êxito, inclusive no direito brasileiro, em que
se mostra totalmente incompatível com as normas vigentes. Considerar o estabelecimento
empresarial uma pessoa jurídica é errado, segundo o disposto na legislação brasileira. Sujeito de
direito é a sociedade empresária, que, reunindo os bens necessários ou úteis ao desenvolvimento da
empresa, organiza um complexo com características dinâmicas próprias. A ela, e não ao
estabelecimento empresarial, imputam-se as obrigações e asseguram-se os direitos relacionados com
a empresa.
Ao seu turno, a afirmação de que o estabelecimento empresarial é bem serve para classificá-lo
entre os objetos de propriedade, diferenciando-o da empresa propriamente dita. Antigas formulações
da doutrina italiana sobre a empresa, que a pretendiam um fenômeno poliédrico, sustentavam que o
estabelecimento era o seu perfil patrimonial ou objetivo (Asquini, 1943), estabelecendo uma
identidade parcial entre os conceitos. Mesmo no linguajar cotidiano, encontra-se referência ao local
de exploração da atividade econômica pela palavra “empresa”. Em termos técnicos, contudo, esta
relação semântica é inadequada. Empresa é a atividade econômica desenvolvida no estabelecimento,
e não se confunde com o complexo de bens nele reunidos. Assim, o estabelecimento empresarial
pode ser alienado, onerado, arrestado ou penhorado, mas a empresa não.
Por fim, a definição de que o estabelecimento empresarial integra o patrimônio da sociedade
empresária, composto pelos bens empregados na implantação e desenvolvimento da atividade
econômica, importa a superação da discussão acerca da separação do patrimônio do empresário (a
teoria do estabelecimento como patrimônio de afetação). De fato, enquanto se tem em mira a figura
do empresário individual, a pessoa física que explora a atividade econômica, cabe distinguir, entre
os bens do seu patrimônio, os que estão empregados nessa atividade dos demais (a residência do
empresário e sua família, o carro etc.). Essa distinção não tem o alcance de poupar os bens não
empregados na empresa, no momento da responsabilização do empresário individual. Em princípio,
todos os bens do patrimônio de certa pessoa, no direito brasileiro, respondem pelas obrigações
dessa pessoa (há exceções, como o bem de família, os inalienáveis etc.). Mas a distinção era
importante, ao se considerar a questão da sucessão na chamada firma individual. De qualquer forma,
como atualmente as empresas de alguma relevância (para o direito e para a economia) são pessoas
jurídicas, revestidas da forma de sociedade limitada ou anônima, a questão perdeu toda a sua
pertinência. O estabelecimento empresarial e o ativo do patrimônio social se confundem (cf.
Ferreira, 1962, 6:4/6).
Na classificação geral dos bens, estabelecida pelo Código Civil, o estabelecimento empresarial é
uma universalidade de fato (art. 90), por encerrar um conjunto de bens pertinentes ao empresário
(cuja propriedade titulariza ou dos quais é locador, comodatário, arrendatário etc.) e destinados à
mesma finalidade, de servir à exploração de empresa.
3. ELEMENTOS DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
O estabelecimento empresarial é composto por elementos materiais e imateriais. No primeiro
grupo, encontram-se as mercadorias do estoque, os mobiliários, utensílios, veículos, maquinaria e
todos os demais bens corpóreos que o empresário utiliza na exploração de sua atividade econômica.
A propósito desses, importa destacar que a sua proteção jurídica não é diferente da liberada às
demais coisas (corpóreas). Quer dizer, se o empresário tem desrespeitado seu direito de propriedade
sobre uma mercadoria do estoque, a sua proteção, no âmbito penal e civil, será idêntica à que o
direito dá a qualquer outra pessoa não empresária, na mesma situação. O direito comercial, por outro
lado, não possui normas específicas sobre a tutela dessa parte do estabelecimento empresarial. Os
elementos imateriais do estabelecimento empresarial são, principalmente, os bens industriais
(patente de invenção, de modelo de utilidade, registro de desenho industrial, marca registrada, nome
empresarial e título de estabelecimento) e o ponto (local em que se explora a atividade econômica).
Abrange esse grupo institutos jurídicos tradicionalmente estudados pelo direito comercial.
Há autores que consideram, entre os elementos incorpóreos do estabelecimento, o aviamento, que
é o potencial de lucratividade da empresa (por exemplo Waldemar Ferreira, 1962, 6:209). Mas não é
correta essa afirmação. Conforme destaca a doutrina, o aviamento é um atributo da empresa, e não
um bem de propriedade do empresário (cf. Correia, 1973:119; Ferrara, 1952:167; Barreto Filho,
1969:169). Quando se negocia o estabelecimento empresarial, a definição do preço a ser pago pelo
adquirente se baseia fundamentalmente no aviamento, isto é, nas perspectivas de lucratividade que a
empresa explorada no local pode gerar. Isto não significa que se trate de elemento integrante do
complexo de bens a ser transacionado. Significa unicamente que a articulação desses bens, na
exploração de uma atividade econômica, agregou-lhes um valor que o mercado reconhece.
Aviamento é, a rigor, sinônimo de fundo de empresa, ou seja, designam ambas expressões o
sobrevalor, agregado aos bens do estabelecimento empresarial em razão da sua racional organização
pelo empresário.
Outro equívoco reside na consideração da clientela como elemento do estabelecimento
empresarial. Clientela é o conjunto de pessoas que habitualmente consomem os produtos ou serviços
fornecidos por um empresário. Embora até seja possível falar-se em um direito à clientela, cuja
tutela se faz por meio da repressão à concorrência desleal (Colombo, 1979:172/173), não se deve
confundi-la com os bens do patrimônio da sociedade empresária. De fato, não deriva da tutela
jurídica a necessária natureza de bem do objeto tutelado. A proteção jurídica conferida ao
empresário, no sentido de não se ver tolhido da clientela conquistada, em razão de condutas
condenáveis de seus concorrentes, não significa que essa se tornou propriedade daquele. Muito pelo
contrário, a noção de clientela como objeto de domínio do empresário é imprópria, porque cuida de
um conjunto de pessoas — a clientela é isso, nada mais —, insuscetíveis de apropriação, para o
direito em vigor.
4. A PROTEÇÃO AO PONTO: LOCAÇÃO EMPRESARIAL
Ao se estabelecer, uma das principais questões que o empresário deve equacionar diz respeito à
localização do seu negócio. Em função do vulto do empreendimento, do tipo de atividade, do perfil
da clientela potencial, tem fundamental importância o local em que se situa o estabelecimento. A
distância em relação às fontes de insumo ou aos mercados consumidores, por exemplo, representa
elemento de custo da atividade industrial. Para determinados comércios de varejo de produtos
alimentícios será útil a proximidade a alguns equipamentos urbanos, como parada de ônibus,
estações do metropolitano, vias de grande afluxo de pessoas. Para a comercialização de material
escolar, fornecimento de cópias xerográficas, venda de livros etc. é importante a vizinhança a uma
instituição de ensino. Por outro lado, alguns ramos de comércio e serviços concentram-se em certas
regiões da cidade, as quais se tornam referência para os consumidores. Criam-se como que ruas
especializadas: a avenida Paulista é conhecida, mesmo fora de São Paulo, como um centro
financeiro, em que se concentram agências da quase totalidade dos bancos operantes no país.
O ponto — também chamado de “propriedade comercial” — é o local em que o empresário se
estabelece. É um dos fatores decisivos para o sucesso do seu empreendimento. Por essa razão, o
interesse voltado à permanência no ponto é prestigiado pelo direito. Não apenas porque a mudança
do estabelecimento empresarial costuma trazer transtornos, despesas, suspensão da atividade, perda
de tempo, mas principalmente porque pode acarretar prejuízos ou redução de faturamento em função
da nova localização, o empresário tem interesse em manter o seu negócio no local em que se
encontra. Claro que, por vezes, a mudança pode se revelar um fator de crescimento da atividade
econômica explorada, mas isto cabe ao empresário dimensionar. Se ele considera mais útil ao seu
negócio permanecer no local em que se encontra estabelecido, este seu interesse é legítimo e goza de
tutela jurídica. Proponho denominar-se direito de inerência ao ponto o interesse, juridicamente
protegido, do empresário relativo à permanência de sua atividade no local onde se encontra
estabelecido.
Ponto é o local em que se encontra o estabelecimento empresarial. A proteção jurídica do ponto decorre da sua importância para o sucesso da
empresa.
Quando o empresário é o proprietário do imóvel em que se estabeleceu, o seu direito de inerência
ao ponto é assegurado pelo direito de propriedade de que é titular. Quando, entretanto, ele não é o
proprietário, mas o locatário do prédio em que se situa o estabelecimento, a proteção do seu direito
de inerência ao ponto decorre de uma disciplina específica de certos contratos de locação não
residencial que assegura, dadas algumas condições, a prorrogação compulsória.
O direito brasileiro passou a tutelar o direito de inerência ao ponto do locatário, em 1934, por
meio de um diploma legal que ficou conhecido como lei de luvas. De acordo com a sistemática então
introduzida, o comerciante e o industrial que locasse imóvel para a exploração de sua atividade, por
prazo determinado de no mínimo 5 anos, e não tivesse mudado de ramo nos 3 últimos, podia pleitear
a renovação compulsória do vínculo locatício. Presentes tais pressupostos, o contrato de locação era
renovado, independentemente da vontade do locador. A lei de locação predial urbana vigente (LL:
Lei n. 8.245/91, art. 51) manteve o instituto e, a partir da experiência com a aplicação judicial da lei
de luvas, aprimorou-o em muitos aspectos. Um dos mais importantes foi a extensão do benefício às
pessoas jurídicas com fins lucrativos exercentes de atividades civis, mudança que caracterizou o
descarte da teoria dos atos de comércio na disciplina da matéria. Com a entrada em vigor do Código
Civil, e adotando-se os conceitos nele empregados, pode-se dizer que titularizam o direito à
renovação compulsória do contrato de locação os empresários (individual ou sociedade empresária)
e a sociedade simples.
4.1. Requisitos da Locação Empresarial
Classificam-se as locações prediais urbanas em duas categorias: a residencial e a não residencial.
Nesta última, encontram-se os contratos em que o locatário é autorizado a explorar, no prédio
locado, uma atividade econômica (anote-se que também são não residenciais as locações com outras
finalidades, tais as filantrópicas, associativas, culturais, moradia de diretor etc.). Por outro lado, se o
locatário, na locação não residencial, é titular de direito de inerência ao ponto, e pode pleitear
judicialmente a renovação compulsória do contrato, então a locação é empresarial. Nem toda
locação, em que o imóvel abriga a exploração de atividade econômica, portanto, dá ao empresário
direito à renovação. É necessário, para que a locação seja empresarial, o atendimento aos seguintes
requisitos do art. 51 da LL: a) contrato escrito, com prazo determinado (requisito formal); b) mínimo
de 5 anos de relação locatícia (requisito temporal); c) exploração da mesma atividade econômica
por pelo menos 3 anos ininterruptos (requisito material).
Lei de Locações
Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a renovação do contrato, por igual prazo, desde que,
cumulativamente:
I — o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado;
II — o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos seja de cinco anos;
III — o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos.
O atendimento ao requisito formal geralmente não desperta problemas. Se o contrato é oral ou,
sendo escrito, estabelece prazo de duração indeterminado, a locação não é empresarial. Não tem o
empresário, neste caso, direito de permanecer no prédio locado. Quer dizer, a qualquer tempo,
mesmo que transcorridos já 5 anos de relação locatícia, o locador poderá denunciar o contrato
mediante aviso escrito ao locatário, com a antecedência mínima de 30 dias (LL, art. 56). Raramente o
empresário tem interesse em locar imóvel, para a sua atividade, sem prazo determinado de duração,
porque a instabilidade do vínculo indeterminado, derivada da prerrogativa de o locador retomar o
imóvel a qualquer tempo, é, em geral, incompatível com o desenvolvimento de atividade econômica.
O requisito temporal se refere ao prazo da relação locatícia: para se caracterizar como
empresarial, é necessário que a locação tenha no mínimo 5 anos. De duas maneiras se preenche o
requisito: se o contrato é firmado com este prazo, ou superior, ou se a soma dos prazos determinados
de contratos sucessivos alcança a mesma marca (accessio temporis). Assim, se as partes, sempre por
escrito, celebram inicialmente um contrato por 3 anos e, vencido este, contratam nova locação do
mesmo imóvel, agora por 2 anos, este último contrato poderá ser renovado compulsoriamente, visto
que a relação locatícia perdura pelo quinquênio legal. A soma dos prazos pode ser invocada pelo
locatário, ou pelo seu cessionário ou sucessor.
Em relação, ainda, à soma de prazos contratuais para o atendimento ao requisito temporal, devese examinar uma situação bastante corriqueira, consistente em alguma demora na formalização do
novo contrato de locação entre as partes. É, sem dúvida, comum que, entremeando dois contratos
escritos, transcorra um pequeno lapso de tempo sem instrumento escrito, correspondente ao momento
em que locador e locatário estavam desenvolvendo tratativas acerca da renovação do vínculo. Claro
que a locação, nesse período, existiu, e as obrigações correspondentes (pagamento do aluguel e
encargos, posse do bem etc.) foram cumpridas pelas partes, mas não havendo instrumento escrito,
deve-se considerar o vínculo contratual sem prazo determinado. Em razão da existência de um
contrato oral entre dois contratos escritos, o cabimento da soma destes é, consequentemente,
discutível. Em outros termos, o interregno sem contrato escrito descaracteriza a locação empresarial?
Na lei de luvas, não havia sequer a previsão da accessio, de modo que se admitia a renovação do
contrato, desde que o tempo de negociação tivesse sido curto (algo como 2 ou 3 meses). Este
entendimento, contudo, não se coaduna com o texto da lei de 1991, que exige “prazos ininterruptos”.
No rigor do direito vigente, qualquer lapso temporal entre dois contratos escritos, ainda que
diminuto, impede a soma dos respectivos prazos. A questão, contudo, é controvertível: Nascimento
Franco, com respaldo em pronunciamentos jurisprudenciais, admite a soma de prazos, a despeito do
interregno sem instrumento escrito, mesmo sob a vigência da lei de 1991 (1994:84/92). Segundo esse
autorizado entendimento, a aceitação da renovatória, no caso, tem o objetivo de coibir eventual
tentativa do locador de frustrar os direitos do locatário.
Uma derradeira questão se coloca, pertinente à admissibilidade da consideração, na accessio, do
tempo de vigência de um contrato escrito com prazo indeterminado. Claro que o contrato a renovar
deve ter sido firmado com prazo determinado, para que se atenda ao requisito formal da renovação,
mas seria possível aditar a este, para alcançar os 5 anos exigidos, o tempo de relação locatícia
anterior, em que o instrumento contratual escrito não estipulava prazo de duração? A lei nada dispõe
sobre essa situação particular. Contudo, a adição do tempo de vigência do primeiro contrato escrito
(o indeterminado) ao prazo determinado do segundo atende aos objetivos do regime de locação
empresarial, que é justamente o de tutelar a inerência ao ponto do locatário. Por esta razão, deve-se
admitir a somatória no caso.
Finalmente, no que diz respeito ao requisito material, impõe-se a exploração, ininterrupta, pelo
locatário, de uma mesma atividade econômica no prédio locado, por pelo menos 3 anos. Este
requisito de caracterização da locação empresarial está relacionado com o sobrevalor agregado ao
imóvel, em razão da exploração de uma atividade econômica no local, de sorte a transformá-lo em
referência para os consumidores. Ora, esse sobrevalor só existe após uma certa permanência da
atividade no ponto, que foi estimada pelo legislador em 3 anos. De acordo com a regra estabelecida,
sem a exploração de uma mesma atividade no prédio locado, pelo prazo em questão, o empresário
locatário não cria, com o seu estabelecimento, nenhuma referência aos consumidores digna de tutela
jurídica. O seu fundo de empresa não merece proteção do direito porque não transcorreu um tempo
considerado mínimo, pela lei, para a consolidação de uma clientela. O requisito material deve estar
atendido à data do ajuizamento da ação renovatória (Buzaid, 1957:292/293). Assim, num contrato
com prazo determinado de 5 anos, a exploração do mesmo ramo de atividade econômica deve ter se
iniciado, no mais tardar, até o décimo oitavo mês de sua vigência. Se houver, depois, mudança no
ramo de atividade explorado, o locatário perde o direito de inerência ao ponto.
4.2. Exceção de Retomada
Na locação empresarial, o direito do locatário de inerência ao ponto tem o seu fundamento na lei
ordinária (LL, art. 51). De outro lado, o direito de propriedade do locador é constitucionalmente
garantido (CF, art. 5º, XXII). Por esta razão, a tutela do interesse na renovação do contrato de
locação, que aproveita ao locatário, não pode importar o esvaziamento do direito real de
propriedade titularizado pelo locador. Uma disposição de lei ordinária que contemplasse o locatário
com uma tutela incompatível com a proteção à propriedade seria, com certeza, inconstitucional.
Neste sentido, sempre que houver conflito entre os direitos — do locatário, voltado à renovação da
locação, e do locador, no tocante ao uso pleno do seu bem —, prevalecerá o fundado no texto
constitucional, em detrimento do previsto na legislação ordinária. Em outros termos, em
determinadas situações, apesar de a locação atender aos requisitos do art. 51 da LL, ela não será
renovada porque, se o fosse, o direito de propriedade do locador restaria desprestigiado. Ainda que
a ação renovatória tenha sido aforada no interregno legal, com o estrito atendimento às condições
estabelecidas, ela não deverá ser julgada procedente, porque um direito de índole constitucional não
pode ser limitado por lei. A renovação compulsória do contrato de locação empresarial, com efeito,
só terá validade se for compatível com o exercício do direito de propriedade pelo locador.
A renovação compulsória do contrato de locação empresarial não pode ser incompatível com o exercício do direito de propriedade, pelo
locador. Por essa razão, admite-se a exceção de retomada, na ação renovatória.
A lei de locações assinala algumas das hipóteses em que a oposição dos interesses dos
contratantes da locação empresarial é resolvida em favor do locador, não reconhecendo o direito de
inerência ao ponto. Evidentemente, trata-se de uma referência exemplificativa, não exaustiva, da lei.
Ou seja, em qualquer caso, se a renovação compulsória da relação locatícia importar a
impossibilidade de o locador exercer plenamente o seu direito de propriedade, ainda que a hipótese
não se encontre especificamente contemplada na lei como fator impeditivo da renovação, esta não
pode ocorrer, porque o contrário representaria desobediência à norma constitucional assecuratória
daquele direito. As situações previstas na lei (LL, arts. 52 e 72, II e III) são as seguintes: a)
realização de obras no imóvel, que importem sua radical transformação, por exigência do Poder
Público; b) reformas no imóvel, que o valorizem, pretendidas pelo locador; c) insuficiência da
proposta apresentada pelo locatário, na ação renovatória; d) proposta melhor de terceiros; e)
transferência de estabelecimento existente há mais de um ano, pertencente ao cônjuge, ascendente ou
descendente do locador, ou a sociedade por ele controlada; f) uso próprio.
Nessas situações — e nas demais em que ficar caracterizada a impossibilidade de pleno exercício
do direito constitucional de propriedade, se prorrogado o contrato de locação empresarial — o
locador pode resistir eficazmente à pretensão do locatário, voltada à renovação do vínculo locatício.
Entre o interesse de o empresário conservar o ponto, em cuja criação investiu recursos materiais e
intelectuais, e o do proprietário, no sentido de tirar dos seus bens os mais rentáveis frutos, o sistema
jurídico prestigia o último. Em outros termos, apenas quando compatível com o interesse do dono do
imóvel, tem o locatário direito à renovação compulsória.
Merece destaque, a propósito, a hipótese de retomada por alegação de uso próprio pelo locador.
O legislador assegurou ao proprietário a exceção, mas pretendeu limitá-la, ao vedar a exploração no
prédio de atividade econômica de idêntico ramo ao do locatário. A vedação apenas não se aplicaria,
nos termos da lei, na hipótese de locação-gerência, ou seja, na locação cujo objeto é o imóvel e
também o estabelecimento empresarial nele instalado (LL, art. 52, § 1º). A limitação operada,
contudo, não sobrevive à análise de sua constitucionalidade. O locador é titular de um direito
garantido na Carta Magna. A lei ordinária, por evidente, pode disciplinar o exercício desse direito,
inclusive para o compatibilizar com a função social, também determinada pela Constituição (arts. 5º,
XXIII, e 170, II). Entretanto, a lei não pode impedir o uso, gozo e disposição do bem pelo seu
proprietário, sob pena de invalidade.
Quando o direito de propriedade do locador entra em conflito com o direito de inerência ao ponto
do locatário, está em questão uma simples oposição de interesses privados, individuais. Nem sequer
se compromete a continuidade da empresa explorada pelo locatário, posto que a retomada do prédio
significa, estritamente, apenas a mudança do local da exploração da atividade econômica. Neste
contexto, não haveria razões para se invocar alguma restrição constitucional ao pleno exercício do
direito de propriedade, de modo a se prestigiar a inerência ao ponto. Nenhum interesse social ou
metaindividual é atingido ou prejudicado, com a retomada do prédio pelo locador. Assim sendo,
deve-se entender de modo absoluto e ilimitado a prerrogativa do locador de impedir a renovação
compulsória do contrato de locação, sob a alegação de uso próprio. Quer dizer, o locador pode
manifestar oposição à renovatória, por pretender usar o bem diretamente, para quaisquer finalidades.
Isto abrange desde a hipótese de moradia do locador e sua família, até a de exploração de atividade
econômica idêntica à do locatário.
É inconstitucional, portanto, a limitação do art. 52, § 1º, da LL, à alegação de uso próprio como
fator impeditivo da renovação do contrato de locação. Pode, dessa forma, o locador arguir, na
contestação à ação renovatória, o seu interesse em retomar o bem, para nele explorar igual ramo de
atividade do locatário. Claro está, por outro lado, que é devida, na hipótese, a indenização em favor
do locatário, pela perda do ponto, sempre que tiver sido ele o responsável pela organização do
estabelecimento empresarial naquele lugar.
4.3. Ação Renovatória
O direito de inerência ao ponto é exercido por meio de uma ação judicial própria, denominada
renovatória. Esta ação deve ser proposta pelo locatário no prazo de decadência assinalado pela lei,
isto é, entre 1 ano e 6 meses antes do término do prazo do contrato a renovar. Em termos práticos, a
renovação deve ser pleiteada pelo locatário no transcurso dos primeiros 6 meses do último período
anual de vigência do contrato de locação. Se o locatário não conseguir negociar com o locador, antes
do fim desse prazo, a assinatura de novo contrato de locação por escrito, deve promover a ação
renovatória, para assegurar o seu direito. Como é decadencial o prazo, não se interrompe, nem se
suspende.
Note-se que a perda do prazo para a ação renovatória não importa o fim do vínculo locatício. Na
verdade, encerrado o prazo contratual determinado, se as partes simplesmente continuarem
cumprindo as obrigações próprias da locação, considera-se prorrogado o vínculo. Neste caso,
contudo, a locação perde a sua natureza empresarial e o locatário sujeita-se à retomada do bem, pelo
locador, mediante simples aviso com 30 dias de antecedência.
O direito à renovação compulsória do contrato de locação empresarial é exercido pelo locatário, por meio de uma ação judicial específica: a
renovatória.
Na petição inicial, além de comprovar o atendimento aos requisitos da locação empresarial e o
exato cumprimento do contrato, inclusive quanto ao pagamento dos impostos e taxas que lhe cabia, o
locatário deve apresentar uma proposta de aluguel para o novo período locatício. Diz a lei que a
proposta deve indicar, de modo claro e preciso, as condições negociais oferecidas para a renovação
(LL, art. 71, IV). O mérito da contestação do locador pode ter três fundamentos: a) desatendimento
dos requisitos da locação empresarial; b) decadência do direito à renovação; c) exceção de
retomada. No primeiro e segundo casos, a improcedência da renovatória não significa,
necessariamente, o fim do vínculo locatício. A decisão judicial apenas não reconhece o direito do
locatário à renovação compulsória, mas não obsta o prosseguimento da locação não residencial (cf.
Franco-Gondo, 1968:255/256). No último caso, entretanto, ao decretar a improcedência da ação, o
juiz determinará a expedição de mandado de despejo, para a desocupação do imóvel, em 30 dias
(art. 74).
4.4. Indenização do Ponto
O empresário, por vezes, apesar de preencher os requisitos legalmente estabelecidos para pleitear
a renovação compulsória do contrato, não consegue ver julgada procedente a sua renovatória, em
virtude do acolhimento de exceção de retomada arguida pelo locador. Trata-se, como visto (item
4.2), de uma decorrência do princípio da supremacia constitucional. O legislador ordinário não pode
assegurar ao inquilino um direito que importe o esvaziamento da propriedade, porque isto seria
inconstitucional. A forma de se compatibilizar a retomada do bem com os legítimos interesses do
locatário — que criou o fundo de empresa — é a sua indenização pela perda do ponto. De fato, o
empresário constitui no prédio, por ele locado para o exercício da atividade empresarial, um ponto
de referência para os consumidores. Se, em seguida, outro negociante ocupa o mesmo imóvel, para
explorar atividade afim, há um inquestionável enriquecimento indevido, posto que este último
usufrui, sem a necessária retribuição, dos efeitos do investimento, material e intelectual, feito pelo
anterior ocupante do imóvel, ao instalar ali a sua empresa. Para que não se verifique o
enriquecimento indevido, a obediência ao mandamento constitucional protetivo do direito de
propriedade exige a previsão legal de mecanismos de compensação, em favor do empresário que
perde o ponto.
Não é qualquer hipótese de desacolhimento da ação renovatória que dá ensejo à indenização em
favor do locatário. Apenas se a improcedência decorre do atendimento à exceção de retomada
apresentada pelo locador, terá o empresário o ressarcimento pela perda do ponto. As duas outras
hipóteses de mérito de contestação — desatendimento dos requisitos da locação empresarial ou
perda do prazo para a proprositura da ação —, se acolhidas, não importam o dever de indenizar.
Também não conduz ao ressarcimento o insucesso da ação renovatória, em razão de matéria
preliminar. Dito de outra forma, os pressupostos para o empresário ter direito à indenização pela
perda do ponto são três: a) caracterização da locação como empresarial, com o atendimento aos
requisitos formal, temporal e material; b) ajuizamento da ação renovatória dentro do prazo; c)
acolhimento de exceção de retomada.
Presentes, pois, estes pressupostos, caberá a indenização pela perda do ponto nas seguintes
hipóteses: a) se a exceção de retomada foi a existência de proposta melhor de terceiro; b) se o
locador demorou mais de 3 meses, contados da entrega do imóvel, para dar-lhe o destino alegado na
exceção de retomada (por exemplo: realização de obras, transferência de estabelecimento de
descendente etc.); c) exploração, no imóvel, da mesma atividade do locatário; d) insinceridade da
exceção de retomada. Desta lista, apenas as duas primeiras são especificamente mencionadas na lei
(LL, art. 52, § 3º), decorrendo as demais dos princípios gerais de direito, que vedam o
enriquecimento indevido e tutelam a boa-fé.
Se caracterizada a locação empresarial e proposta a ação renovatória dentro do prazo, o locatário terá, em determinadas situações, direito à
indenização pela perda do ponto, caso o locador obtenha a retomada do imóvel.
Acerca da hipótese c, de exploração do mesmo ramo de atividade do locatário, importa ressalvar
a situação da locação-gerência, aquela que abrange não só o imóvel, mas também um
estabelecimento empresarial nele abrigado. Se, por exemplo, um empresário, estabelecido em prédio
de sua propriedade, resolve afastar-se temporariamente do negócio, ele pode se utilizar do
mecanismo da locação-gerência, isto é, ele pode alugar o seu imóvel a outro empresário, junto com o
estabelecimento empresarial (cf. Ripert-Roblot, 1946:473/484). Nesse caso, o responsável pela
criação, no local, de um ponto de referência dos consumidores não é o locatário-gerente, mas o
locador, que, antes, ali explorava a atividade. Na locação-gerência, é cabível a ação renovatória e,
entre as exceções de retomada, pode o locador invocar sua pretensão de retomar o exercício da
empresa, no imóvel objeto de contrato. Embora o ramo de negócio seja o mesmo que o do locatário,
a indenização pela perda do ponto não é cabível, por faltar o fundamento do enriquecimento
indevido.
A indenização deve cobrir os prejuízos e lucros cessantes em decorrência tanto da mudança como
da perda do lugar e desvalorização do fundo. Em suma, tudo que o empresário perdeu e o que
razoavelmente deixou de lucrar em razão da retomada do imóvel (LL, art. 52, § 3º). Observe-se que o
ponto não se confunde com os demais elementos integrantes do estabelecimento, nem com este
tampouco. Assim, mesmo se o locatário levantar todos os bens — materiais ou imateriais — por ele
instalados no prédio locado, o ponto, enquanto referência aos consumidores, permanecerá pelo
menos por algum tempo. O locupletamento, nessa situação, ocorre se é explorada a mesma atividade
do locatário, no local, ainda que sob outro nome, com instalações diversas, pessoal próprio etc.,
sendo por isso devida a indenização.
5. “SHOPPING CENTER”
O proprietário de um terreno que nele constrói prédio destinado a abrigar um estabelecimento
empresarial e, depois de concluída a obra, loca-o a pessoa interessada em explorar atividade
econômica no local, dá ao seu bem certo fim rentável. Ele, proprietário, contudo, não é empresário.
Se, no mesmo terreno, construir um prédio constituído de espaços relativamente autônomos, para fins
de os alugar a quaisquer pessoas interessadas em explorar atividade econômica no lugar, ele ainda
não pode ser considerado empresário. Continua apenas o titular de propriedade imobiliária (uma
“galeria”), de que extrai renda. Se, finalmente, o prédio é constituído de espaços relativamente
autônomos, e o proprietário organiza a distribuição desses espaços, de forma a locá-los para
pessoas interessadas em explorar determinadas atividades econômicas predefinidas, ele já se pode
considerar empresário. Ele é titular de empresa do ramo shopping center.
No empreendimento denominado shopping center, o empresário deve organizar os gêneros de
atividade econômica (comércio ou prestação de serviços) que se instalarão no grande
estabelecimento. A ideia básica do negócio é pôr à disposição dos consumidores, num local único,
de cômodo acesso e seguro, a mais variada sorte de produtos e serviços. Assim, as ocupações dos
espaços devem ser planejadas, atendendo às múltiplas necessidades do consumidor. Geralmente, não
podem faltar num shopping center certas modalidades de serviços (correios, cinemas, lazer etc.) ou
comércio (restaurantes, lanchonetes, papelarias etc.), mesmo que a sua principal atividade seja
estritamente definida (utilidades domésticas, moda, material de construção etc.), pois o objetivo do
empreendimento volta-se ao atendimento de muitas das necessidades dos consumidores. É esta
concentração variada de fornecedores que acaba por atrair maior clientela, redundando benefício
para todos os negociantes instalados no shopping.
O empreendimento compreende, inclusive, uma relativa organização da competição empresarial.
Este aspecto do negócio abrange não apenas as promoções de venda conjuntas (em épocas de grande
apelo consumista, como Natal ou Dia das Mães), a definição de ramos de atividades que podem ou
devem ser exploradas com maior ou menor visibilidade, em razão das evoluções do mercado de
consumo, como também a proibição da competição autofágica (o lojista se compromete a não manter
outro estabelecimento nas cercanias). Sem a organização da concorrência interna, não se pode
considerar shopping center uma simples concentração de lojas num mesmo prédio. Neste sentido, o
empresário titular do shopping deve ficar atento às exigências do consumo, às marcas em ascensão,
aos novos serviços e tecnologias, aos modismos, bem como ao potencial econômico de cada
negociante instalado no complexo. Finalmente, o empreendimento dessa natureza pressupõe
investimentos em publicidade, instalações comuns, aprimoramento das condições de comodidade,
decoração e segurança do prédio etc. Mesmo para enfrentar a concorrência entre os shopping
centers, o empresário deve constantemente ajustar o complexo às imposições do mercado de
consumo (por exemplo: substituindo ou subtraindo lojas âncoras, oferecendo produtos da moda,
melhorando a praça de alimentação).
Em suma, o empresário que explora shopping center desenvolve atividade econômica bastante
singular, que não se reduz a um simples negócio imobiliário. Há todo um planejamento de
distribuição do espaço (o tenant mix), de sorte a oferecer aos consumidores uma variada gama de
produtos, marcas, além de atrativos na área de lazer e restauração. Ao locar uma loja, o
empreendedor não pode perder de vista o complexo em sua inteireza, devendo atentar à necessária
combinação da diversidade de ofertas, fator inerente ao sucesso do empreendimento. Se no shopping
já há uma farmácia estabelecida, não se justifica, pela lógica do negócio, locar espaço para outra. Se
o consumidor está nutrindo particular afeição por certa marca de doceria, o empreendedor deve
procurar atrair o titular desta, ou um franqueado, propondo-lhe condições vantajosas para se
estabelecer no shopping. Por sua vez, o lojista, ao ocupar espaço no centro de compras, passa a fazer
parte de um sistema empresarial, devendo se submeter às normas fixadas quanto ao horário de
funcionamento, padrão dos produtos oferecidos, layout, bem como participar das promoções
conjuntas de vendas, contribuir para a manutenção dos espaços comuns, integrar a associação dos
lojistas etc. Pode-se, portanto, compreender que nem o empreendedor de shopping center é um
locador comum, nem o lojista um locatário comum.
É de tal forma especialíssima a situação das partes no contrato entre o empreendedor do shopping
center e o lojista, que alguns doutrinadores põem em questão a sua natureza. Orlando Gomes, por
exemplo, considera-o um contrato atípico misto, no que é seguido por Alfredo Buzaid (revendo
anterior entendimento sobre o assunto), Fernando Albino e Nascimento Franco, entre outros. Rubens
Requião, a seu turno, vê na relação jurídica entre o empreendedor e o lojista uma coligação de
contratos, entre os quais o de locação. Há, inclusive, sugestões de denominação específica para este
tipo de vínculo: contrato de estabelecimento (Alfredo Buzaid) ou de centro comercial (Villaça
Azevedo). A lei, entretanto, prestigia o entendimento de parte da doutrina que considera de natureza
locatícia a relação jurídica entre o empreendedor do shopping center e o empresário que nele se
estabelece. Autores como Washington de Barros Monteiro, Caio Mário da Silva Pereira e Modesto
Carvalhosa, embora admitam a existência de aspectos muito específicos na relação contratual em
foco, não os consideram suficientes à descaracterização da natureza locatícia (cf. em Arruda-Lobo,
1984, e Pinto-Oliveira, 1991).
De minha parte, considero que entre o empreendedor e o lojista existe um contrato de locação,
embora revestido de cláusulas especiais com vistas ao atendimento das características próprias do
shopping. Estas cláusulas dizem respeito, essencialmente, à remuneração devida pelo lojista ao
empreendedor, e costumam desdobrar o aluguel numa parcela fixa, reajustável segundo índice e
periodicidade contratados, e noutra variável, proporcional ao faturamento do locatário. Para
mensurar o valor da parcela variável do aluguel, o contrato autoriza o locador proceder à auditoria
das contas do locatário, à vistoria das instalações, à fiscalização do movimento econômico ou à
adoção de outras providências úteis à exata definição do seu faturamento. Aliás, em épocas de
grande estímulo ao consumo (assim, o Natal, o Dia das Mães etc.), os shopping centers promovem
sorteios entre os consumidores, que recebem cupons numerados em quantidade proporcional ao valor
da compra realizada. Estes certames, além da finalidade óbvia de atrair consumidores, também
servem para o controle do faturamento dos lojistas.
O shopping center é um empreendimento peculiar, em que espaços comerciais são alugados para empresários com determinados perfis, de
forma que o complexo possa atender diversas necessidades dos consumidores.
Além do aluguel, há outras obrigações de natureza pecuniária assumidas pelo locatário de loja em
shopping center. Geralmente, paga-se uma prestação denominada res sperata, retributiva das
vantagens de se estabelecer num complexo comercial que possui já uma clientela constituída. O
consumidor, por certo, muitas vezes procura o shopping e não especificamente um de seus lojistas. O
fundo de empresa do empreendedor do shopping center (chamado de sobrefundo por Ives Gandra) é,
em certa medida, utilizado pelos locatários, que devem, em contrapartida, remunerá-lo por meio da
res sperata. Também devem os locatários se filiar à associação dos lojistas, pagando a mensalidade
de associado correspondente. Caberá à associação custear despesas de interesse comum,
notadamente com publicidade. Em alguns shopping centers, por fim, é devido em dezembro o dobro
da parte fixa do aluguel, tendo em vista o extraordinário movimento do comércio, em geral, nesta
época do ano.
As obrigações do locatário, relacionadas à específica situação de um negociante estabelecido num
centro de compras, encontram amplo respaldo na lei, que determina a observância das condições
pactuadas com o empreendedor (LL, art. 54, caput). As despesas de manutenção das partes comuns
do shopping, inclusive algumas de natureza extraordinária, podem ser carreadas aos lojistas pelo
contrato de locação, desde que constem do orçamento. A lei só impede sejam cobradas dos lojistas
as despesas com: a) obras de reformas ou acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel;
b) pintura das fachadas, esquadrias externas, empenas, poços de aeração e iluminação; c)
indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados, anteriores ao início da
locação; d) obras ou substituições de equipamentos, que impliquem modificação do projeto original;
e) obras de paisagismo.
Em virtude das particularidades do contrato de locação de espaço comercial em shopping,
discutia-se o cabimento da ação renovatória em favor do lojista (Franco, 1994:63/65; Pinto,
1992:54/57). A dinâmica característica do empreendimento, em certas ocasiões, revela-se
incompatível com a permanência de alguns lojistas. Se, por exemplo, determinada marca de produtos
de perfumaria tem recebido dos consumidores maior aceitação que outra, o shopping, com espaço
locado para o comerciante titular desta última, tem interesse — partilhado por todos os demais
locatários — em substituí-lo pelo titular da marca em ascensão. O exercício do direito de inerência
ao ponto pelo lojista, no entanto, pode entravar o pleno desenvolvimento do complexo. Por esta
razão, uma das consequências da tentativa de descaracterizar o vínculo contratual como locação era a
de afastar a possibilidade de renovação compulsória.
A lei de locações, contudo, admite claramente a renovação compulsória do contrato de locação de
espaços em shopping centers (LL, art. 52, § 2º). Deve-se ressaltar, contudo, que, se a renovação
importa prejuízo ao empreendimento, caberá a exceção de retomada. Trata-se de uma questão de
fato, a ser provada pelo empresário titular do shopping center. Quando a tutela do direito de
inerência redundar injustificável redução de receita do locador, por inadequação do negócio do
locatário às evoluções do mercado de consumo, é decorrência da proteção constitucional do seu
direito de propriedade o impedimento da renovação compulsória da locação. O locatário receberá a
correspondente indenização, pela perda do ponto, se for o caso, mas não poderá o empreendedor
deixar de exercer o seu direito de propriedade — neste caso, traduzido pela faculdade de reorganizar
a oferta dos produtos e serviços, no interior do complexo — para fins de ajustar a exploração
econômica do seu bem às demandas dos consumidores.
6. ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL
O estabelecimento empresarial pode ser vendido pelo empresário que o titulariza. O contrato de
compra e venda de estabelecimento denomina-se trespasse, e é muitas vezes proposto, no meio
empresarial, por meio das expressões “passa-se o ponto”. O trespasse não se confunde com a cessão
de quotas sociais de sociedade limitada ou a alienação de controle de sociedade anônima. São
institutos jurídicos bastante distintos, embora com efeitos econômicos idênticos, na medida em que
são meios de transferência da empresa. No trespasse, o estabelecimento empresarial deixa de
integrar o patrimônio de um empresário (o alienante) e passa para o de outro (o adquirente). O objeto
da venda é o complexo de bens corpóreos e incorpóreos, envolvidos com a exploração de uma
atividade empresarial. Já na cessão de quotas sociais de sociedade limitada ou na alienação de
controle de sociedade anônima, o estabelecimento empresarial não muda de titular. Tanto antes como
após a transação, ele pertencia e continua a pertencer à sociedade empresária. Essa, contudo, tem a
sua composição de sócios alterada. Na cessão de quotas ou alienação de controle, o objeto da venda
é a participação societária. As repercussões da distinção jurídica são significativas, em especial no
que diz respeito à sucessão empresarial, que pode ou não existir no trespasse, mas não existe na
transferência de participação societária.
Exemplifique-se: se Antonio e Benedito pretendem se tornar os titulares da empresa hoje
explorada pela sociedade Bandeirantes Ltda., de que são sócios Carlos e Darcy, há dois caminhos
possíveis. O primeiro é a constituição de uma sociedade entre eles (suponha-se, Primavera Ltda.),
que adquire o estabelecimento empresarial da Bandeirantes Ltda. Nessa hipótese, o contrato entre as
duas sociedades é o trespasse, e será cabível discutir se a adquirente tornou-se, ou não, sucessora da
alienante (isto é, se os credores da Bandeirantes Ltda. poderão, ou não, exercer seus direitos contra
a Primavera Ltda.). No segundo caminho, Antonio adquire as quotas de Carlos e Benedito, as de
Darcy. Não se verifica o trespasse: o estabelecimento empresarial, pertencente à Bandeirantes Ltda.
continua da propriedade da mesma pessoa jurídica. O que se negocia, nessa hipótese, não é o
estabelecimento, mas as quotas representativas do capital da sociedade empresária. Aqui, a questão
da sucessão não se põe, porque os credores da Bandeirantes Ltda. continuam titulares de seus
créditos perante essa pessoa jurídica, independentemente de quem sejam os seus sócios.
6.1. A Questão da Sucessão
O direito de diversos países se preocupa em disciplinar a alienação do estabelecimento
empresarial, para fins de tutelar os interesses dos credores. Na Alemanha, o Handelsgesetzbuch, de
1897, contempla regra que importa a responsabilidade do adquirente do estabelecimento empresarial
pelas obrigações do alienante, quando mantido o nome empresarial (Koller-Roth-Morck,
1996:109/117). O direito francês, por sua vez, desde 1909, admite que os credores do alienante se
oponham à venda do estabelecimento, inclusive para discutir o preço contratado, que deve ser
suficiente para ele solver suas obrigações (Ripert-Roblot, 1947:503/504). Na Argentina, desde
1934, a lei determina que o preço do estabelecimento não pode ser inferior ao total do passivo do
alienante, e o seu pagamento não pode ser realizado senão depois de transcorridos 10 dias da
publicação do anúncio da venda. Essas duas limitações são estabelecidas, para que terceiros possam
reclamar, naquele prazo, junto ao adquirente, a satisfação do crédito titularizado perante o alienante.
Após atender às reclamações dos credores, o adquirente paga ao alienante o saldo do valor
pactuado. Por fim, cabe lembrar o direito italiano, em que disposições do Codice Civile, de 1942,
definem que o adquirente se sub-roga em todas as obrigações ativas e passivas do alienante, salvo as
de caráter pessoal e as expressamente ressalvadas no contrato.
No Brasil, até a entrada em vigor do Código Civil, considerava-se que o passivo não integrava o
estabelecimento (Barreto Filho, 1969:228/229); em consequência, a regra era a de que o adquirente
não se tornava sucessor do alienante. Isto é, os credores de um empresário não podiam, em
princípio, pretender o recebimento de seus créditos de outro empresário, em razão de este haver
adquirido o estabelecimento do primeiro. Admitia-se, então, somente três hipóteses de sucessão: a
assunção de passivo expressa no contrato, as dívidas trabalhistas e fiscais. Com a entrada em vigor
do Código Civil, altera-se por completo o tratamento da matéria: o adquirente do estabelecimento
empresário responde por todas as obrigações relacionadas ao negócio explorado naquele local,
desde que regularmente contabilizadas, e cessa a responsabilidade do alienante por estas obrigações
no prazo de um ano (art. 1.146). Claro está que somente nos trespasses realizados após a vigência do
Código Civil, opera-se a sucessão e liberação nestes termos; nos anteriores, vigora o princípio da
não sub-rogação de passivo em decorrência do trespasse.
O contrato de alienação do estabelecimento empresarial deve ser levado a registro na Junta
Comercial e publicado na imprensa oficial (CC, art. 1.144). Além dessas formalidades, se ao
alienante não restarem bens suficientes para solver o passivo relacionado ao estabelecimento
vendido, a eficácia do contrato ficará na dependência do pagamento de todos os credores ou da
anuência destes. Em decorrência, o empresário que pretende alienar o seu estabelecimento
empresarial deve solicitar o prévio consentimento dos seus credores. Este pode ser expresso (isto é,
dado por escrito) ou tácito (caracterizado pela inércia do credor, nos 30 dias seguintes à notificação
judicial ou extrajudicial). O alienante apenas está dispensado da precaução na hipótese em que
permanece solvente, mesmo após a alienação (CC, art. 1.145). Assim, a sociedade empresária, com
diversas filiais e grande patrimônio, pode se dispensar de obter a anuência dos credores, ao resolver
vender uma delas, caso permaneça com os demais estabelecimentos.
Em suma, o direito brasileiro estabelece uma determinada formalidade, prévia ou concomitante ao
trespasse, que é a anuência expressa ou tácita dos credores, dispensando-a apenas no caso de
solvência do alienante, posterior à transação. Se tal formalidade não é cumprida, a consequência será
altamente prejudicial ao adquirente, pois ele poderá perder o estabelecimento, em favor da
coletividade dos credores, caso o alienante venha a ter a sua falência decretada (LF, art. 129, VI). É
ineficaz, perante a massa falida, a venda do estabelecimento empresarial realizada sem as
precauções acima. O adquirente que não se acautela, no sentido de exigir do alienante a prova da
anuência dos credores ou da sua solvência, perde, em favor da massa falida, o estabelecimento
empresarial que houvera comprado.
Para evitar a ineficácia do trespasse, bem como para administrar diretamente os passivos de
algum modo ligados ao estabelecimento que passa a assumir, o adquirente costuma contratar com o
alienante a assunção de todas as obrigações. É comum — e atende, em geral, à conveniência dos
empresários contratantes — a inserção de cláusula, no trespasse, que transfere ao adquirente a
responsabilidade pela solução das dívidas pendentes do alienante, ligadas ao estabelecimento
transacionado. Normalmente, em anexo ao instrumento contratual, relacionam--se os débitos e
identificam-se os credores e valores correspondentes, para maior segurança quanto à extensão da
obrigação assumida pelo comprador do estabelecimento. Claro que as partes podem também
estabelecer o inverso no contrato de trespasse: o adquirente não assume nenhum passivo do
alienante, e fica este obrigado em regresso a indenizá-lo caso um credor venha a obter sua
responsabilização em juízo.
Considera-se sucessor o adquirente do estabelecimento, quando a obrigação do alienante se encontrava regularmente contabilizada.
Independentemente de regular escrituração, o adquirente é sempre sucessor do alienante, em relação às obrigações trabalhistas e fiscais ligadas
ao estabelecimento.
A regular contabilização da dívida para fins de responsabilização do adquirente do
estabelecimento empresarial não se exige em relação a passivos de duas ordens: trabalhista e
tributário. Também não se verifica relativamente a essas obrigações a liberação do alienante no
prazo de um ano.
De acordo com o art. 448, da CLT, mudanças na propriedade da empresa não afetam os contratos
de trabalho. Essa regra, na verdade, abre ao empregado duas opções: a de demandar o antigo
proprietário do estabelecimento empresarial em que trabalhava, ou o atual. Em qualquer hipótese, o
empresário reclamado não poderá, em contestação, opor-se à pretensão do empregado, com base nos
termos do contrato de trespasse. Se a reclamação foi proposta contra o alienante do estabelecimento
empresarial, em nada o aproveita, perante a Justiça do Trabalho, a cláusula contratual em que
transferiu para o adquirente o passivo que possuía. Da mesma forma, se o demandado é o adquirente,
ele não poderá opor ao ex-empregado do alienante os termos do negócio de trespasse, pelos quais
não se tornou cessionário das dívidas. Em suma, perante o empregado do alienante, as condições
contratadas entre o adquirente e o alienante ou a contabilidade referente ao estabelecimento não
operam efeitos, quer a reclamação tenha sido proposta contra este último, quer contra o primeiro.
Apenas na composição dos interesses dos próprios empresários contratantes, no juízo de regresso,
interessam tais condições: se o adquirente é responsabilizado perante antigo empregado do alienante,
e, pelo instrumento de trespasse, não havia expressamente assumido aquele passivo trabalhista, ou a
dívida não se encontrava regularmente contabilizada, terá direito de regresso para se ressarcir do
prejuízo; o mesmo direito terá o alienante, se o trespasse previa a cessão da dívida, ou mesmo
omisso, estava esta regularmente escriturada.
Em relação ao passivo fiscal, devem-se distinguir, nos termos do art. 133 do CTN, duas situações:
se o alienante deixa de explorar qualquer atividade econômica, ou se continua a exploração de
alguma atividade (mesmo que diferente da explorada no estabelecimento vendido), nos seis meses
seguintes à alienação. No primeiro caso, a responsabilidade do adquirente é direta, e pode o fisco
cobrar dele todas as dívidas tributárias do alienante, originadas da atividade desenvolvida no local
do estabelecimento. No segundo, o adquirente responde de forma subsidiária, quer dizer, apenas no
caso de falência ou insolvência do alienante. Registre-se que a sucessão tributária somente se
caracteriza, em qualquer caso, se o adquirente continuar explorando, no local, idêntica atividade
econômica do alienante. Se alterar o ramo de atividade do estabelecimento, não responde mais pelas
dívidas fiscais do alienante, nem direta, nem subsidiariamente.
Assim, se o empresário é executado por dívida fiscal do antigo titular do seu estabelecimento,
sendo iguais os ramos de atividades ali exploradas por ele e pelo antecessor, terá de realizar a
prova, em embargos à execução, de que o alienante ainda explora alguma atividade econômica. Se
produzida essa prova, conclui-se que o fisco não é titular do direito de responsabilizá-lo, enquanto
não exaurido o patrimônio do alienante; não produzida a prova de que o alienante ainda é empresário
estabelecido em outro local, prossegue-se a execução contra o adquirente. De se registrar, também,
que, perante o fisco, são inoponíveis os termos do trespasse ou a omissão na contabilidade do
alienante, que apenas podem eventualmente fundamentar o direito de regresso. Quer dizer, se o
adquirente for judicialmente responsabilizado por obrigação tributária do alienante, poderá
ressarcir-se junto a esse, se o contrato de trespasse previa a não assunção da dívida objeto da
execução fiscal. Do mesmo modo, se o alienante foi executado por dívida fiscal que, nos termos do
contrato de trespasse, era da responsabilidade do adquirente, terá contra esse o direito de regresso.
6.2. Trespasse e Locação Empresarial
Na maioria dos casos, o estabelecimento empresarial se encontra em prédio locado pela
sociedade empresária. Quando assim é, o trespasse envolve necessariamente a cessão da locação,
que depende de autorização do locador (LL, art. 13) ou pode se ocasionar a rescisão desta em 90
dias seguintes à sua publicação (CC, art. 1.148). O adquirente do estabelecimento empresarial
situado em imóvel locado, desse modo, deve negociar não apenas com o titular do fundo de empresa
(o locatário), como também com o dono do imóvel (o locador), pagando eventualmente luvas a esse
último.
A anuência do locador para a cessão da locação pode ser expressa ou tácita, caracterizando-se a
última pela sua inércia, no prazo de 30 dias, após a notificação do trespasse. Se não manifestada a
concordância do locador, por uma dessas formas, sujeita-se o adquirente à retomada do imóvel, a
qualquer tempo (LL, art. 9º, II). Além disso, o empresário não terá direito à ação renovatória, ainda
que preenchidos os requisitos legais característicos da locação empresarial, mesmo que o locador
não tenha manifestado oposição formal (LL, art. 13, § 1º).
Independente de receber a notificação pleiteando a autorização para a cessão, ou mesmo de
respondê-la, pode o locador, nos 90 dias seguintes à publicação do contrato de alienação na
imprensa oficial, rescindir a locação, se houver justa causa. Caracterizam-na fatos como a não
aprovação do novo fiador apresentado, existência de protestos em nome do adquirente, ou de ações
judiciais intentadas contra este, sua situação patrimonial, econômica ou financeira insatisfatória ao
atendimento das condições normalmente exigidas pelo locador etc. Em ocorrendo a rescisão da
locação empresarial nestes termos, o alienante deve indenizar o adquirente pelos danos decorrentes.
Desse modo, para fins de preservar a integridade de seu investimento, o empresário, ao locar
imóvel para a instalação da empresa, deve negociar com o locador a inserção, no contrato de
locação, da anuência prévia para eventual cessão ou outra disposição contratual expressa que
contemple a sub-rogação. Se não conseguir essa condição negocial no início do vínculo locatício, ele
poderá vir a ter dificuldades para recuperar o investimento, quando do trespasse, caso o locador
imponha luvas excessivas para anuir com a cessão do vínculo locatício.
O adquirente do estabelecimento empresarial, uma vez dada a autorização, pelo locador, para a
cessão ou sub-rogação da locação, poderá se aproveitar dos prazos relativos ao alienante, para fins
de ajuizamento da ação renovatória. Os prazos anteriores podem ser somados aos seus tanto para o
atendimento do requisito temporal, que é o de 5 anos de contrato (LL, art. 51, II), como do requisito
material, que exige 3 anos de exploração do mesmo ramo de atividade (LL, art. 51, III). Desse modo,
imagine-se que o alienante era locatário de um contrato por prazo determinado de 4 anos, e que, após
3, cedeu a locação para o adquirente, com a anuência do locador. Imagine-se, também, que, ao anuir
com a cessão, o locador assinou novo contrato com o adquirente, fixando o prazo de 2 anos de
duração. Nessa hipótese, está caracterizada a locação empresarial, tendo o adquirente do
estabelecimento direito de pleitear a renovação compulsória do vínculo (LL, art. 51, § 1º).
6.3. Cláusula de Não Restabelecimento
O alienante do estabelecimento empresarial que se restabelece em concorrência com o adquirente,
em geral acaba atraindo para o novo local de seus negócios a clientela que formou no antigo. Note-se
que o desvio de clientela, atualmente, deve-se menos ao contato pessoal entre o consumidor e
comerciante, e mais às informações que o empresário alienante detém sobre a realidade do mercado
em que opera. O uso dessas informações na exploração da mesma atividade, no novo
estabelecimento concorrente, é o elemento decisivo para a atração da clientela formada em torno do
outro. Esse fato, por evidente, importa prejuízo ao adquirente que, embora esteja exposto à
concorrência em geral, pagou ao alienante um determinado valor, em razão especificamente do
aviamento do estabelecimento transacionado. Ora, o restabelecimento do alienante pode, por essa
razão, caracterizar enriquecimento indevido. Para evitá-lo, é comum nos contratos de trespasse (e
também em outros atos empresariais, como a cessão de participação societária, a locação de espaço
em shopping center, a rescisão de franquia etc.) a inserção de cláusula proibitiva de
restabelecimento do alienante.
O direito positivo italiano foi o primeiro a disciplinar o assunto, prevendo a interdição do
restabelecimento do alienante, nos 5 anos seguintes ao trespasse. Na Itália, a propósito, os primeiros
julgados considerando irregular a concorrência do alienante datam do início do século XX
(Colombo, 1979:172). É, no entanto, unânime, na doutrina e jurisprudência de diversos países, que a
validade da interdição, mesmo a legalmente prevista, depende de alguns limites. O empresário que
alienou o seu estabelecimento não pode ficar impedido de explorar atividades não concorrentes, ou
ficar vinculado à obrigação de não fazer por prazo indeterminado ou sem delimitações geográficas.
A cláusula de não restabelecimento que vede a exploração de qualquer atividade econômica, ou não
estipule restrições temporais ou territoriais ao impedimento, é inválida. O objetivo da proibição
contratual é impedir o enriquecimento indevido do alienante, por meio do desvio eficaz de clientela.
Ora, se ele se restabelece em atividade não concorrente, ou para atender região inalcançável pelo
potencial econômico do antigo estabelecimento, ou, ainda, depois de transcorrido prazo suficiente
para o adquirente consolidar sua posição no mercado, não se verifica concorrência direta entre os
participantes do contrato de trespasse; consequentemente, não há disputa da mesma clientela, nem
enriquecimento indevido do alienante.
A cláusula de não restabelecimento representa a garantia da integridade do valor despendido pelo adquirente, no trespasse, ao remunerar o
fundo de empresa. Com a entrada em vigor do Código Civil, o alienante, salvo disposição diversa no contrato de trespasse, fica impedido de
concorrer com o adquirente pelo prazo de 5 anos.
Se o instrumento contratual do trespasse, portanto, prevê a cláusula de não restabelecimento, e ela
atende às condições de validade apontadas pela doutrina (isto é, a proibição possui balizas
materiais, temporais e espaciais), então o alienante não poderá competir com o adquirente. Por outro
lado, se o mesmo documento contempla autorização expressa para o restabelecimento do alienante,
porque foi esta uma das condições tratadas entre as partes, deverá o adquirente suportar eventual
perda de clientela, em razão do novo estabelecimento concorrente. Em qualquer caso, se expresso o
trespasse, não haverá dificuldades em se estabelecerem os direitos e obrigações dos contratantes, em
relação à concorrência. Mas, se o instrumento é omisso, se as partes não estabeleceram nenhuma
convenção expressa a respeito do eventual restabelecimento do alienante dispõe a lei que o alienante
não poderá concorrer com o adquirente pelo prazo de 5 anos subsequentes ao trespasse (CC, art.
1.147).
Para ilustrar a discussão da matéria, vale a pena recordar um caso rumoroso da jurisprudência
brasileira (acórdão publicado em RT, 12/180 e, também, na Revista Direito de Empresa n. 1),
relativo a ação judicial, em que uma empresa com sede no Rio de Janeiro, a Companhia Nacional de
Tecidos de Juta, pleiteou indenização do Conde Álvares Penteado, de quem havia adquirido um
estabelecimento empresarial, situado em São Paulo (a Fábrica Santana). O fundamento do pedido era
o fato de o Conde ter se restabelecido, por intermédio da Companhia Paulista de Aniagem, corré da
ação. O advogado da autora foi Carvalho de Mendonça, e, no derradeiro recurso junto ao STF, os
réus contrataram Ruy Barbosa. Embora a decisão final deste famoso feito tenha sido desfavorável ao
adquirente, que não obteve a indenização pretendida, o entendimento de que a cláusula de não
restabelecimento deve ser expressa não se consolidou, não fez jurisprudência.
Mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil, portanto, já predominava, no direito
brasileiro, o entendimento de que, omisso o contrato de trespasse, devia-se reputar implícita a
cláusula de não restabelecimento. Era a lição de Carvalho de Mendonça, Oscar Barreto Filho, Pontes
de Miranda e, em certo sentido, Waldemar Ferreira (com entendimento contrário: Ruy Barbosa).
Quer dizer, o restabelecimento do alienante, em competição direta com o adquirente, era considerado
lícito apenas se o contrato de trespasse contivesse cláusula de autorização expressa. Verificada a
omissão do instrumento, pressupunha-se vedado o restabelecimento do alienante. Se as partes não
haviam contratado em outro sentido, devia-se considerar que a intenção tinha sido a de transferir, do
alienante para o adquirente, todo o potencial econômico representado pelo estabelecimento
empresarial, o que implicava necessariamente a interdição da concorrência, por parte do alienante
(cf. Barreto Filho, 1969:251/253; Barbosa, 1913).
7. FRANQUIA
O estabelecimento empresarial não se organiza facilmente. Aliás, se o mercado valoriza o
aviamento, o fundo de empresa, então reconhece a importância e a dificuldade do trabalho
organizativo que o empresário despende. As pessoas sem experiência na condução de atividades
econômicas poderão sofrer prejuízos consideráveis, ou até mesmo quebrar, se não possuem aptidão.
Nesse contexto, desenvolveram-se serviços de organização da empresa, prestados por profissionais,
que visam a suprir eventuais deficiências do empresário. O contrato de franquia (franchising)
corresponde a um dos mecanismos mais aprimorados de prestação de tais serviços. Ele resulta da
conjugação de dois outros contratos empresariais. De um lado, a licença de uso de marca, e, de
outro, a prestação de serviços de organização de empresa. Sob o ponto de vista do franqueador,
serve o contrato para promover acentuada expansão dos seus negócios, sem os investimentos
exigidos na criação de novos estabelecimentos. Sob o ponto de vista do franqueado, o contrato
viabiliza o investimento em negócios de marca já consolidada junto aos consumidores, e possibilita
o aproveitamento da experiência administrativa e empresarial do franqueador.
Segundo a estrutura básica do negócio, o franqueador autoriza o uso de sua marca e presta aos
franqueados de sua rede os serviços de organização empresarial, enquanto estes pagam os royalties
pelo uso da marca e remuneram os serviços adquiridos, conforme a previsão contratual (cf. Farina,
1994:451/454; Martins, 1961:583/596; Bulgarelli, 1979:486). A venda de produtos, do franqueador
para o franqueado, não é requisito essencial da franquia, mesmo das comerciais; o elemento
indispensável à configuração do contrato é a prestação de serviços de organização empresarial, ou,
por outra, o acesso a um conjunto de informações e conhecimentos, detidos pelo franqueador, que
viabilizam a redução dos riscos na criação do estabelecimento do franqueado (Comparato,
1978:377).
Normalmente, os serviços de organização empresarial se desdobram em três contratos: o
management, relacionado com os sistemas de controle de estoque, de custos e treinamento de
pessoal; o engineering, pertinente à organização do espaço (layout) do estabelecimento do
franqueado; e o marketing, cujo conteúdo diz respeito às técnicas de colocação do produto ou
serviço junto ao consumidor, incluindo a publicidade. Entre as partes do contrato de franquia,
estabelece-se nítida relação de subordinação. O franqueado deverá organizar a sua empresa com
estrita observância das diretrizes gerais e determinações específicas do franqueador. Essa
subordinação empresarial é inerente ao contrato. Não existe franquia sem tal característica. Ela é
indispensável à plena eficiência dos serviços de organização empresarial, que o franqueado adquire.
O franqueador, desse modo, num certo sentido participa do aviamento do franqueado (cf. Silveira,
1984:81/83).
O crescimento do sistema de franquias, no Brasil, a partir dos anos 1990, despertou o interesse de
empresários, no sentido de franquearem seus negócios, e diversos investidores foram atraídos pelas
alternativas abertas pelo segmento. Alguns empresários, no entanto, passaram a conceder franquias
sem se aparelharem de modo conveniente para a prestação dos serviços de organização empresarial.
O surgimento de conflitos entre franqueadores e franqueados foi, assim, inevitável. Em 1994, editouse a Lei n. 8.955, com o objetivo de disciplinar a formação do contrato de franquia. Trata-se de
diploma legal do gênero denominado disclosure statute pelo direito norte-americano. Ou seja,
encerra normas que não regulamentam propriamente o conteúdo de determinada relação jurídicocontratual, mas apenas impõem o dever de transparência nessa relação (cf. Epstein-Nickles,
1976:28/34 e 275/289). A lei brasileira sobre franquias não confere tipicidade ao contrato:
prevalecem entre franqueador e franqueado as condições, termos, encargos, garantias e obrigações
exclusivamente previstos no instrumento contratual entre eles firmado. Procura, apenas, a lei
assegurar ao franqueado o amplo acesso às informações indispensáveis à ponderação das vantagens
e desvantagens relacionadas ao ingresso em determinada rede de franquia. Em outros termos, o
contrato de franquia é atípico porque a lei não define direitos e deveres dos contratantes, mas apenas
obriga os empresários que pretendem franquear seu negócio a expor, anteriormente à conclusão do
acordo, aos interessados algumas informações essenciais.
7.1. Circular de Oferta de Franquia
A Lei n. 8.955/94 introduziu no direito brasileiro um instrumento fundamental para a formação
válida do vínculo entre franqueador e franqueado: a Circular de Oferta de Franquia — COF. Esse
documento equivale ao “dossiê de informação” (basic disclosure document) exigido dos
franqueadores, nos Estados Unidos, desde 1979, em razão do Franchising and Business Opportunity
Ventures Trades Regulations Rule (Abrão, 1984:24). Reúnem-se na COF as informações, dados,
elementos e documentos capazes de apresentar aos interessados na franquia um completo quadro da
situação em que se encontra a rede e a exata extensão das obrigações que serão assumidas pelas
partes, caso vingue o contrato. A COF deve apresentar o conteúdo exigido pela lei (art. 3º), conter
somente informações verídicas, e ser entregue ao interessado em aderir ao sistema, com a
antecedência mínima de dez dias, sob pena de anulabilidade do contrato que vier a ser firmado,
devolução de todos os valores pagos a título de taxa de filiação e royalties, além de indenização (art.
4º).
A lei brasileira sobre franquia não disciplina especificamente os direitos e deveres dos contratantes, durante a execução do contrato. Ela
apenas obriga que os empresários, ao oferecerem franquia, prestem aos interessados informações indispensáveis à avaliação das reais condições
proporcionadas pelo negócio.
As informações, dados, elementos e documentos exigidos para a COF podem ser distribuídos nas
seguintes categorias: a) perfil do franqueador; b) perfil da franquia; c) perfil do franqueado ideal; d)
obrigações do franqueador e direitos do franqueado; e) obrigações do franqueado. Grosso modo,
portanto, a Circular deve se desdobrar em cinco grandes capítulos, correspondentes a essas
categorias de informações exigidas na lei.
No capítulo referente ao perfil do franqueador, a COF deve apresentar o histórico resumido da
empresa franqueadora, com os dados relacionados à época de sua implantação e menção dos
principais fatos que marcam a trajetória do seu desenvolvimento econômico e mercadológico.
Também é exigida a explicitação da forma societária adotada pelo franqueador (vale dizer: se
sociedade limitada ou anônima) e pelas demais empresas a que se encontra diretamente ligado, por
meio, por exemplo, de grupo empresarial, coligação, controle, consórcio ou outras modalidades de
vínculo jurídico ou econômico. A COF deve informar os nomes empresariais do franqueador e das
empresas diretamente ligadas, anotando, se for o caso, a denominação constituída por elemento
fantasia, além dos respectivos endereços. Ainda para fins de delinear o perfil do franqueador,
deverão acompanhar a COF as demonstrações financeiras, inclusive os balanços, relativos aos dois
últimos exercícios. Se o franqueador adota a forma de uma sociedade anônima, os demonstrativos
são os definidos pelo art. 176 da LSA (balanço patrimonial, demonstração dos lucros ou prejuízos
acumulados, do resultado do exercício e das origens e aplicação de recursos). Já se o franqueador
é sociedade limitada, deverá apresentar o balanço patrimonial, que deve levantar ao menos uma vez
por ano, além dos demonstrativos elaborados para o atendimento da legislação tributária, segundo o
regime próprio adotado.
No capítulo relacionado ao perfil da franquia, os interessados devem encontrar as informações
que lhes permitam avaliar a real situação da rede, sob todos os aspectos relevantes, bem como o
potencial de desenvolvimento do negócio. Nesse sentido, o franqueador tem o dever de revelar aos
interessados todas as pendências judiciais (isto é, as ações cautelares, de conhecimento, especiais,
execuções, recursos, notificações etc.) que tenham por objeto o funcionamento do sistema de
franquia, ou que possam eventualmente inviabilizá-lo. No primeiro grupo de pendências, encontramse as promovidas pelos franqueados, ou contra eles, pertinentes às relações entre o franqueador e um
ou mais integrantes da rede de franquia. No segundo grupo as demandas, em que é discutida a
titularidade, caducidade ou validade do registro da marca empregada pelo franqueador, ou mesmo a
juridicidade da cessão ou licença de uso que o beneficia. O rol de pendências judiciais deve
abranger tanto aquelas de que é parte o franqueador, como as que envolvem empresas controladoras
e titulares de marcas, patentes e direitos autorais relacionados com a franquia, bem como os
subfranqueadores. É decorrência do dever de transparência a identificação do número dos autos e do
juízo relativo a cada processo, bem como notícia atualizada sobre a sua tramitação.
Será também no capítulo do perfil da franquia que os interessados devem encontrar informações
especialmente importantes para a análise da conveniência de sua adesão ao sistema. Trata-se das
descrições da franquia, do negócio e das atividades a serem desenvolvidas pelos franqueados.
Exige-se detalhamento na descrição da franquia, e faculta-se a generalidade na do negócio e
atividades. Para fins de elaboração da COF, deve-se distinguir entre franquia e negócio,
considerando o primeiro conceito relacionado ao contrato que se pretende estabelecer entre as
partes, e o último às implicações econômicas deste. O vínculo contratual deve ser detalhadamente
descrito pela Circular, enquanto as suas implicações negociais podem ser descritas de forma
genérica. Entende-se a distinção estabelecida pela lei (art. 3º, IV), já que no capítulo relacionado às
obrigações do franqueado, a COF deve detalhar as repercussões econômicas do contrato, razão pela
qual eventual exigência de detalhamento dessa descrição também no capítulo do perfil da franquia
caracterizaria redundância. Ainda sobre as informações relacionadas ao contrato que será firmado,
caso o interessado manifeste sua adesão ao sistema, exige a lei que a COF se faça acompanhar do
correspondente modelo. Embora a lei se refira unicamente a contrato-padrão, porque esta tem sido,
em larga medida, a prática no setor, é evidente que, inexistindo modelo, a Circular deve ser instruída
pela minuta do contrato que o franqueador se propõe a assinar com os interessados.
Para possibilitar aos pretendentes da franquia o contato direto com os integrantes do sistema, de
modo a viabilizar o levantamento de dados e informes de experiências negociais, no capítulo
referente ao perfil da franquia, a COF deve relacionar nome, endereço e telefone dos franqueados,
subfranqueados e subfranqueadores atuais, e dos que se desligaram da rede nos últimos doze meses.
E, para completar o capítulo, a Circular deve apresentar informação atualizada sobre a situação,
perante o INPI, das marcas e patentes abrangidas pelo contrato de franquia. Isto é, se se trata de
simples depósito, ou se o registro ou patente já foram concedidos, e as respectivas datas, se há
pedido de caducidade ou oposição administrativa ao direito industrial pleiteado, se foi solicitada a
prorrogação, quando cabível etc. Esse item deve necessariamente trazer os elementos que
possibilitem aos interessados qualquer tipo de pesquisa no INPI, como o número da patente, do
certificado ou do processo.
No terceiro capítulo da COF, sobre o perfil do franqueado ideal, devem ser fixados os requisitos
que, necessaria ou preferencialmente, o interessado deve atender para ingressar na rede. A lei se
refere ao grau de escolaridade e à experiência anterior, mas não apenas essas condições subjetivas
podem ser exigidas ou desejadas do interessado, mas quaisquer outras também, como, por exemplo,
idade mínima ou máxima, formação técnica ou superior específica, idoneidade econômica e moral,
residência em determinada cidade ou região. Convém que a COF defina os meios de comprovação
do atendimento das condições subjetivas do franqueado ideal, mencionando, por exemplo, a
necessidade de apresentação de certidões negativas de protesto, de débitos fiscais ou de
distribuidores cíveis, criminais e trabalhistas, ou de documentos probatórios da conclusão de cursos
etc.
O capítulo da Circular acerca das obrigações do franqueador e direitos do franqueado deve
referir-se, de início, à cláusula da territorialidade, importantíssimo aspecto do relacionamento entre
franqueador e franqueado. Os interessados devem ser informados pela COF se a franquia adota o
sistema de exclusividade territorial para os franqueados. Claro que, na hipótese de adoção deste
sistema, fica vedada a possibilidade de atuação além dos limites do território contratado, porque
isso feriria a exclusividade de outros franqueados. A cláusula de territorialidade pode estabelecer,
também, não exatamente a exclusividade, mas a simples preferência do franqueado, por meio de
sistemas de compensação interna da rede. Nesse caso, a definição das condições de atuação além
dos limites do território de cada franqueado devem ser claramente estabelecidas, para que não se
lesem os interesses de nenhum dos integrantes da rede.
A lei não menciona, especificamente, a obrigação de informar os critérios para a definição da
área de atuação (território) de cada franqueado. Isso, contudo, é essencial para a perfeita avaliação
das condições de rentabilidade da franquia e do prazo de amortização do capital investido. Assim,
do dever genérico de transparência, conclui-se a necessidade de tal informação, podendo se definir
na COF, por exemplo, a metodologia a ser empregada em futuras avaliações do potencial de
mercado.
Outro elemento de extrema importância, no capítulo das obrigações do franqueador, é a indicação
dos serviços de organização empresarial com os quais o franqueado poderá contar. Assim, a COF
deve detalhar se o contrato abrange ou não, e em que medida, a prestação dos serviços de supervisão
da rede, treinamento do franqueado e seus empregados, fornecimento de manuais, auxílio na escolha
do ponto, definição do layout e outros normalmente esperados do concedente da franquia. Especial
atenção deve ser dedicada à elaboração (pelo franqueador) ou leitura (pelo franqueado) desse
capítulo, tendo em conta que muitos dos conflitos internos à rede estão relacionados à extensão dos
serviços de organização empresarial, objeto do contrato de franquia.
O maior capítulo da COF é necessariamente o dedicado às obrigações do franqueado, não apenas
em razão da natureza das informações abrangidas, mas principalmente pela extensão do seu objeto.
Em relação a esse tópico, a Circular deve, inicialmente, especificar as atividades que cabem ao
franqueado desenvolver diretamente para a exploração do negócio objeto de contrato; ou seja, as
franquias apresentam diferentes graus de dependência do trabalho pessoal do franqueado, em função
da atividade econômica, porte ou organização administrativa. Em parte delas, o regular
desenvolvimento da empresa pressupõe a presença constante do próprio franqueado no
estabelecimento (ou do sócio-gerente da sociedade franqueada), para cuidar pessoalmente de certos
aspectos do negócio, enquanto noutras franquias essa presença não se exige. A COF deve esclarecer
convenientemente esse aspecto, mencionando as horas semanais de absorção de trabalho do
franqueado e a natureza do seu envolvimento no cotidiano da empresa e da rede.
Também no capítulo referente às obrigações do franqueado, à Circular cabe apresentar
especificações quanto aos valores a serem aportados pelos interessados no investimento. Assim, o
instrumento deve estimar o aporte inicial de capital, abrangendo tanto o relacionado à compra,
implantação e entrada em operação da franquia, quanto o relacionado às instalações, equipamento e
estoque. Além dessas estimativas, a COF deve definir a taxa inicial de filiação (também denominada
“taxa de franquia”) e a caução a ser prestada pelo franqueado. Note-se que os valores
correspondentes à taxa e à caução devem ser exatos, enquanto os demais itens do investimento podem
ser aproximados, recomendando-se a apresentação dos critérios de estimação e de eventuais margens
de erro.
Tudo quanto for devido pelo franqueado ao franqueador, durante a execução do contrato, deve ser
detidamente discriminado pela COF, de modo a aclarar suas bases de cálculo e finalidades. Exige-se
a indicação específica dos pagamentos devidos a título de remuneração pela utilização da marca e
pelos serviços fornecidos, sendo cabível a utilização de percentuais sobre o faturamento. Exige-se,
também, a referência ao aluguel de equipamento ou do ponto, e, se houver algum esquema de
publicidade comum, à contribuição do franqueado para o seu custeio. Do mesmo modo, em havendo
a obrigação de constituição de seguro, o valor mínimo do prêmio deverá ser definido pela Circular.
Note-se que a COF não poderá omitir nenhum desembolso a cargo do franqueado, por mais
específico, incomum ou reduzido que seja. Aliás, convém ao franqueador, em obediência ao dever
genérico de transparência, informar também os itens que, em sua franquia, não serão eventualmente
devidos.
Neste mesmo capítulo, a Circular deve prestar informações claras e detalhadas acerca dos bens,
serviços e insumos que o franqueado se obriga a adquirir, tanto do próprio franqueador quanto de
outros fornecedores. Esses últimos, por sua vez, devem estar identificados pela COF, para que os
interessados possam avaliar concretamente a extensão da obrigação assumida. Por fim, o instrumento
de oferta deve prever a disciplina das relações entre os contratantes após o encerramento da
franquia, tratando em especial dos segredos de empresa a que tem acesso o franqueado, bem como
das condições de concorrência entre este e o franqueador (se haverá, ou não, cláusula de não
restabelecimento e em que termos).
7.2. Registro da Franquia
Os contratos de franquia devem ser registrados no INPI, por exigência da lei (LPI, art. 211). Esse
registro não representa, contudo, requisito de validade ou eficácia do ato, entre as partes
contratantes. A franquia não registrada é plenamente válida e eficaz entre o franqueador e o
franqueado, e a ausência da formalidade não pode ser invocada, por qualquer um deles, a pretexto de
descumprimento de obrigação contratual. Mas o registro é condição para que o negócio produza
efeitos perante terceiros, em especial o fisco e as autoridades monetárias. Sem o registro da franquia,
não se admite a dedução fiscal dos royalties, pagos pela licença do uso de marca, nem a remessa de
dinheiro para o exterior.
Deve-se ressaltar, no entanto, que o registro da franquia é condição de eficácia do ato perante
terceiros, apenas na hipótese em que franqueador e franqueado titularizam direitos perante esses.
Quando ocorre o inverso — os terceiros são credores dos participantes da franquia —, o registro
não pode ser considerado condição de eficácia. É, por exemplo, o caso dos consumidores que,
embora “terceiros” em relação aos participantes do contrato de franquia, não podem ter os seus
direitos prejudicados pela ausência do registro. Nas hipóteses em que o consumidor pode agir contra
o franqueador, em razão de irregularidade do franqueado, a ausência do registro não é fator
excludente de responsabilidade.
Capítulo 6
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
1. INTRODUÇÃO
A história do direito industrial — ramo jurídico muitas vezes referido pela expressão “marcas e
patentes” — tem início na Inglaterra, mais de um século antes da primeira Revolução Industrial, com
a edição do Statute of Monopolies, em 1623, quando, pela primeira vez, a exclusividade no
desenvolvimento de uma atividade econômica deixou de se basear apenas em critérios de
distribuição geográfica de mercados, privilégios nobiliárquicos e outras restrições próprias ao
regime feudal, para prestigiar as inovações nas técnicas, utensílios e ferramentas de produção. O
inventor passou a ter condições de acesso a certas modalidades de monopólio concedidas pela
Coroa, fator essencial para motivá-lo a novas pesquisas e aprimoramentos de suas descobertas. Não
é, aliás, um despropósito imaginar que o pioneirismo do direito inglês, na matéria de proteção aos
inventores, pode ter contribuído decisivamente para o extraordinário processo de industrialização
que teve lugar na Inglaterra, a partir de meados do século XVIII. A segunda norma de direito positivo
que, historicamente, se destaca é a Constituição dos Estados Unidos (1787), cujo art. 1º, § 8.8,
atribui ao congresso da Federação poderes para assegurar aos inventores, por prazo determinado, o
direito de exclusividade sobre a invenção, tendo sido editada a lei correspondente já em 1790. A
França foi o terceiro país a legislar sobre direito dos inventores, em 1791 (Miranda, 1956,
16:207/216).
Outro momento de extrema importância, para a evolução do direito industrial, foi a criação, em
1883, da União de Paris, convenção internacional da qual o Brasil é participante desde o início, e
cujo objetivo principal é a declaração dos princípios da disciplina da propriedade industrial. A
convenção — revista em Bruxelas (1900), Washington (1911), Haia (1925), Londres (1934), Lisboa
(1958) e Estocolmo (1967) — adota conceito amplo de propriedade industrial, abrangendo não
apenas os direitos dos inventores, como também as marcas e outros sinais distintivos da atividade
econômica (denominação de origem, nome e insígnia).
Convenção de Paris
Art. 1º, n. 2: “a proteção da propriedade industrial tem por objeto as patentes de invenção, os modelos de utilidade, os desenhos ou modelos
industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o nome comercial e as indicações de proveniência ou denominações de
origem, bem como a repressão da concorrência desleal”.
A Convenção de Paris, pela abrangência que conferiu ao conceito de propriedade industrial,
consolidou uma nova perspectiva para o tratamento da matéria. Os direitos dos inventores sobre as
invenções, e os dos empresários sobre os sinais distintivos de sua atividade, juntamente com as
regras de repressão à concorrência desleal, passaram a integrar um mesmo ramo jurídico. É certo
que as invenções e os sinais distintivos se identificam enquanto bens imateriais, cuja exploração
econômica pressupõe investimentos importantes para os empresários. É certo, também, que todas as
regras de direito industrial se fundam, direta ou indiretamente, em preceitos de lealdade competitiva.
Mas o conceito amplo de propriedade industrial adotado pela União de Paris não deixa de sugerir
algo de arbitrário. Tanto assim que diversos países, como a Espanha, Alemanha e Argentina, por
exemplo, possuem leis separadas para as invenções, e para as marcas. Nos Estados Unidos, a
Constituição atribui poderes ao Congresso da Federação para disciplinar os direitos dos inventores,
mas não a matéria relativa às marcas. Por esta razão, a legislação federal norte-americana sobre
sinais distintivos dos empresários (trademark) somente é aplicável às operações interestaduais,
cabendo aos Estados legislar sobre direito marcário (Miller-Davis, 1983:148/149).
A história do direito industrial brasileiro, a exemplo do direito comercial, se inicia no processo
de desentrave da nossa economia colonial, no início do século XIX, quando a Corte portuguesa se
encontrava no Brasil, evitando Napoleão. Em 1809, o Príncipe Regente baixou alvará que, entre
outras medidas, reconheceu o direito do inventor ao privilégio da exclusividade, por 14 anos, sobre
as invenções levadas a registro na Real Junta do Comércio. A doutrina brasileira reivindica, a partir
desse fato, um “lugar proeminente” ao nosso país na história do direito industrial, sob a alegação de
que teria sido ele o quarto, no mundo, a disciplinar a matéria (Cerqueira, 1946:6/7). De qualquer
forma, em 1830, tendo já conquistado sua independência política, o Brasil editou lei sobre
invenções, atendendo à previsão constante da Constituição do Império (art. 179, n. 26).
Posteriormente, em 1875, surgiu a primeira lei brasileira sobre marcas, uma resposta à representação
ao governo, apresentada por Ruy Barbosa, que não havia logrado êxito na defesa dos interesses de
um cliente seu — o titular da marca de rapé Areia Preta — por falta de uma legislação protetora (cf.
Ferreira, 1962, 6:259/263).
O direito brasileiro, originariamente, disciplinava em separado as invenções e as marcas. Em
1882, editou-se nova lei sobre patentes, e em 1887 e 1904, outras sobre marcas. O critério de
tratamento da matéria industrial em leis separadas somente foi abandonado em 1923, a partir da
criação da Diretoria Geral da Propriedade Industrial, órgão que passou a centralizar
administrativamente as questões afetas aos seus dois âmbitos. A partir de então, o direito industrial
brasileiro passou a disciplinar, no mesmo diploma legislativo, as patentes de invenções e os
registros de marca. Mas o conceito amplo de propriedade industrial, estabelecido pela União de
Paris, nunca foi integralmente incorporado nas muitas reformas legislativas que se seguiram (1945,
1967, 1969 e 1971). A vigente Lei da Propriedade Industrial (LPI: Lei n. 9.279/96), por exemplo,
aplica-se às invenções, desenhos industriais, marcas, indicações geográficas e à concorrência
desleal, mas não trata do nome empresarial, instituto cuja disciplina é feita pela lei do registro de
empresas (Lei n. 8.934/94).
2. BENS DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
São bens integrantes da propriedade industrial: a invenção, o modelo de utilidade, o desenho
industrial e a marca. O direito de exploração com exclusividade dos dois primeiros se materializa no
ato de concessão da respectiva patente (documentado pela “carta-patente”); em relação aos dois
últimos, concede-se o registro (documentado pelo “certificado”). A concessão da patente ou do
registro compete a uma autarquia federal denominada Instituto Nacional da Propriedade Industrial —
INPI.
O direito industrial é a divisão do direito comercial que protege os interesses dos inventores, designers e empresários em relação às invenções,
modelo de utilidade, desenho industrial e marcas.
Dos quatro bens industriais, a invenção é a única não definida pela lei. Esta ausência de definição
corresponde à tradição legislativa sobre a matéria, nacional e estrangeira (Cerqueira,
1946:211/212), e é plenamente justificável pela extrema dificuldade de se conceituar o instituto.
Todos, de fato, sabem intuitivamente o que é uma invenção e não há dúvidas quanto aos elementos
essenciais que a caracterizam (criação original do espírito humano, ampliação do domínio que o
homem exerce sobre a natureza etc.), mas não é fácil estabelecer os seus exatos contornos
conceituais. Em razão da dificuldade em definir invenção, o legislador prefere se valer de um
critério de exclusão, apresentando uma lista de manifestações do intelecto humano que não se
consideram abrangidas no conceito (LPI, art. 10). Neste sentido, não são invenção: a) as descobertas
e teorias científicas (a teoria da relatividade de Albert Einstein, por exemplo); b) métodos
matemáticos (o cálculo infinitesimal, de Isaac Newton); c) concepções puramente abstratas (a lógica
heterodoxa, de Newton da Costa); d) esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis,
financeiros, educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização (a pedagogia do oprimido, de
Paulo Freire, é exemplo de método educativo); e) obras literárias, arquitetônicas, artísticas e
científicas ou qualquer criação estética e programas de computador (tutelados pelo direito autoral);
f) apresentação de informações, regras de jogo, técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos,
terapêuticos ou de diagnóstico, e os seres vivos naturais.
O modelo de utilidade é, por sua vez, uma espécie de aperfeiçoamento da invenção — já foi
denominado de “pequena invenção”. A lei define o modelo de utilidade como “objeto de uso prático,
ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição,
envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação” (LPI,
art. 9º). Os recursos agregados às invenções, para, de um modo não evidente a um técnico no assunto,
ampliar as possibilidades de sua utilização, são modelos de utilidade. As manifestações intelectuais
excluídas do conceito de invenção também não se compreendem no de modelo de utilidade (LPI, art.
10).
Para se caracterizar como modelo de utilidade, o aperfeiçoamento deve revelar a atividade
inventiva do seu criador. Deve representar um avanço tecnológico, que os técnicos da área reputem
engenhoso. Se o aperfeiçoamento é destituído dessa característica, sua natureza jurídica é a de mera
“adição de invenção” (LPI, art. 76; Strenger, 1996:18). Por outro lado, havendo dúvidas acerca do
correto enquadramento de uma criação industrial — se invenção ou modelo de utilidade —, e não
existindo critério técnico de ampla aceitação capaz de eliminá-las, deve-se considerar o objeto uma
invenção. Como a lei preceitua o conceito de modelo de utilidade, mas não o de invenção, a criação
industrial que não se puder enquadrar com certeza no primeiro (ou em outra categoria do direito
industrial), deve-se considerar enquadrado no segundo.
O desenho industrial (design) é a alteração da forma dos objetos. Está definido, na lei, como “a
forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser
aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa
e que possa servir de tipo de fabricação industrial” (LPI, art. 95). A sua característica de fundo —
que, inclusive, o diferencia dos bens industriais patenteáveis — é a futilidade. Quer dizer, a
alteração que o desenho industrial introduz nos objetos não amplia a sua utilidade, apenas o reveste
de um aspecto diferente. A cadeira de braços que August Endell projetou em 1899, em Jungendstil
(versão alemã do estilo art nouveau), por exemplo, não tem mais utilidade do que qualquer outra
cadeira. Servem todas ao mesmo propósito, o de sentar. Este traço da futilidade é essencial para que
a alteração no objeto seja, sob o ponto de vista jurídico, um desenho industrial, e não um eventual
modelo de utilidade ou uma adição de invenção. Por outro lado, este mesmo traço aproxima o design
da obra de arte. São ambos fúteis, no sentido de que não ampliam as utilidades dos objetos a que se
referem (anote-se, contudo, que os objetos revestidos de desenho industrial têm necessariamente
função utilitária, ao contrário daqueles em que se imprime a arte, desprovidos dessa função).
Lei da Propriedade Industrial
Art. 95. Considera-se desenho industrial a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser
aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação
industrial.
A invenção, o modelo de utilidade, a adição de invenção e o desenho industrial são, assim,
alterações em objetos em graus diferentes. Nos dois primeiros, é indispensável a presença da
atividade inventiva; isto é, a alteração não pode ser uma decorrência óbvia dos conhecimentos
técnicos existentes à época da criação. Presente este requisito, a alteração será considerada invenção
quando for independente; e modelo de utilidade quando acessória de uma invenção. Já no caso de
faltar atividade inventiva, a alteração poderá ser adição de invenção ou desenho industrial. A
primeira existe na hipótese de um pequeno aperfei-çoamento na invenção patenteada, enquanto a
última se manifesta pela mudança de natureza exclusivamente estética. A definição do melhor
enquadramento de uma certa alteração, entre essas quatro categorias, muitas vezes apresenta
dificuldades consideráveis, exigindo percuciência dos técnicos e dos profissionais do direito
envolvidos com a matéria.
O quarto bem industrial é a marca, definida como o sinal distintivo, suscetível de percepção
visual, que identifica, direta ou indiretamente, produtos ou serviços (LPI, art. 122). No Brasil (ao
contrário do que se verifica em outros países, como a França e a Alemanha), os sinais sonoros, ainda
que originais e exclusivos, embora possam também individualizar produtos e serviços, não são
suscetíveis de registro como marca. É o caso, por exemplo, do “plim plim”, adotado pela Rede
Globo de Televisão, no passado, para destacar a veiculação de publicidade da apresentação de
filmes e outros programas (cf. Domingues, 1984:199/201). Também não são marcas as
características de cheiro, gosto ou tato de que se revestem os produtos ou serviços. Os signos não
visuais são tutelados pela disciplina jurídica da concorrência, na medida em que sua usurpação sirva
de meio fraudulento para desviar clientela. Apenas os sinais visualmente perceptíveis podem ser
registrados como marca no INPI. Os exemplos são inúmeros: Coca-cola, Saraiva, Itaú etc.
A doutrina costuma classificar as marcas em nominativas, figurativas ou mistas (Requião,
1971:193/194). No primeiro grupo, estariam as marcas compostas exclusivamente por palavras, que
não apresentam uma particular forma de letras (por exemplo, Revista Direito de Empresa); no
segundo, as marcas consistentes de desenhos ou logotipos (por exemplo, a famosa gravatinha da
Chevrolet); no último, as marcas seriam palavras escritas com letras revestidas de uma particular
forma, ou inseridas em logotipos (por exemplo, Coca-cola). Esta classificação, no entanto, é inútil,
para fins jurídicos. Qualquer que seja o tipo de marca, segundo este critério diferencial, a proteção é
idêntica.
Por fim, vale a pena um registro sobre a marca tridimensional. Para determinados produtos, a
forma serve como fator de distinção. Pense na caneta Bic ou na garrafa da Coca-cola. Eles
apresentam formas eventualmente protegidas como desenho industrial, mas por sua distintividade
também comportam proteção como marcas. A marca é tridimensional sempre que a forma do produto
for um signo, ou, como diz a lei, um sinal distintivo (LPI, art. 122).
2.1. Segredo de Empresa
O inventor — ou o criador de modelo de utilidade —, se pretender patentear sua invenção, deve
estar atento ao fato de que todos passarão a ter conhecimento das inovações que realizou, em seus
detalhes. Providência essencial do procedimento administrativo de concessão da patente é a
publicação do pedido, bem como o irrestrito acesso dos interessados ao relatório descritivo,
reivindicações, resumo e desenhos correspondentes (LPI, art. 30). A publicação, pelo órgão oficial
do INPI (a Revista da Propriedade Industrial), ocorrerá no prazo máximo de 18 meses, a contar do
depósito do pedido ou da data da solicitação de prioridade mais antiga. Essa providência, que
somente não existe na hipótese de invenção de interesse à defesa nacional (LPI, art. 75), é
indispensável para que os demais titulares de patente possam eventualmente se opor a pretensões
lesivas aos seus direitos, e os inventores em geral possam reorientar suas pesquisas.
A publicação da invenção é condição para a concessão da patente. Por esta razão, muitos empresários preferem manter em segredo suas
invenções a pedir a proteção legal.
Pois bem, uma vez divulgados pelo INPI os detalhes da invenção, caberá ao titular do depósito da
patente — e só a ele — zelar para que terceiros não se utilizem indevidamente de sua criação
industrial. A fiscalização dessa eventualidade e a adoção das providências judiciais pertinentes são
da exclusiva alçada do particular interessado. Se assim é, em algumas circunstâncias, poderá
revelar-se mais interessante ao inventor manter segredo acerca de sua invenção, explorando-a sem
requerer a concessão da patente. O risco desta alternativa é a de outro inventor, que chegar aos
mesmos resultados posteriormente, acabar titularizando o direito industrial, por ser o primeiro a
depositar o pedido. Neste sentido, cabe ponderar qual a situação menos desvantajosa: controlar a
invenção depositada e divulgada, ou explorá-la sigilosamente.
O segredo de empresa não está totalmente desamparado no direito brasileiro. Pelo contrário, a lei
tipifica como crime de concorrência desleal a exploração, sem autorização, de “conhecimentos,
informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços,
excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no
assunto”, se o acesso ao segredo foi fraudulento ou derivou de relação contratual ou empregatícia
(LPI, art. 195, XII e XI). Deste modo, a usurpação de segredo de empresa gera responsabilidade
penal e civil, com fundamento na disciplina jurídica da concorrência. Apenas não haverá lesão a
direito de um empresário se o outro, que explora economicamente o mesmo conhecimento secreto,
também o obteve graças às próprias pesquisas. Nesse caso, se nenhum dos dois titulariza a patente,
não haverá concorrência desleal. Por outro lado, quando dois ou mais empresários exploram um
mesmo conhecimento secreto, o primeiro deles a depositar o pedido de patente poderá impedir que
os demais continuem a explorá-lo. A proteção do direito brasileiro ao segredo de empresa — a
exemplo do que se verifica noutros países, como nos Estados Unidos (Weston-Maggs-Schechter,
1950:306/308) —, não dá ensejo à exclusividade de exploração da invenção.
No Brasil, não existe nenhum registro do segredo de empresa. Trata-se de um fato cuja prova deve
se fazer em juízo pelos meios periciais, documentais ou testemunhais. Na França, registra a doutrina,
desenvolveu-se uma prática simples e eficaz de formalização da existência do segredo. O empresário
descreve a invenção em relatório do qual extrai duas vias, envelopando-as em separado. Envia-as,
dentro de um envelope maior, apropriado a esta finalidade, ao Institut National de la Propriété
Industrielle, que registra o recebimento. Um dos envelopes, ainda lacrado, é restituído ao
interessado; o outro permanecerá, também lacrado, no arquivo da repartição pública, pelo prazo de
cinco anos, renovável. Se, neste período, for necessário provar a existência e a anterioridade do
segredo, os envelopes serão abertos (Ripert-Roblot, 1947:398/399).
2.2. Marcas Coletivas e de Certificação
As marcas são sinais distintivos que identificam, direta ou indiretamente, produtos ou serviços. A
identificação se realiza pela aposição do sinal no produto ou no resultado do serviço, na embalagem,
nas notas fiscais expedidas, nos anúncios, nos uniformes dos empregados, nos veículos etc. Dá-se
uma identificação direta se o sinal está relacionado especificamente ao produto ou serviço. A
identificação indireta se realiza por meio de duas outras categorias de marca, introduzidas no direito
brasileiro pela atual legislação: as coletivas e de certificação. De fato, o art. 123 da LPI conceitua:
a) marca de produto ou serviço, como sendo a usada para os individuar, distinguindo-os de outros
idênticos, semelhantes ou afins, de origem diversa; b) marca de certificação, como a que atesta a
conformidade de produto ou serviço a normas ou especificações técnicas; c) marca coletiva, como a
que informa ser o produto ou serviço fornecido por empresário filiado a certa entidade.
As marcas de identificação indireta são a coletiva e a de certificação. Existentes também em
outros direitos (como o norte-americano, francês, alemão e espanhol), estas marcas possuem o traço
comum de transmitirem ao consumidor a informação de que o produto ou serviço possui uma
qualidade destacada, especial, acima da média; seja porque o empresário que os fornece participa de
uma conceituada associação empresarial (a marca coletiva), seja porque foram atendidos
determinados padrões de qualidade (a marca de certificação). Outro elemento comum é a existência
de um regulamento de uso, indispensável ao registro no INPI. Este regulamento estabelecerá as
condições pelas quais um empresário tem direito de usar a marca coletiva ou de certificação, bem
como as hipóteses em que perde o direito. Finalmente, o terceiro aspecto comum às duas categorias é
a desnecessidade de licença para o uso da marca. Se o empresário atende aos pressupostos previstos
no regulamento de uso, está autorizado a usá-la em seus produtos ou serviços, independentemente de
qualquer registro no INPI.
Lei da Propriedade Industrial
Art. 123. Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I — marca de produto ou serviço: aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem diversa;
II — marca de certificação: aquela usada para atestar a conformidade de um produto ou serviço com determinadas normas ou especificações
técnicas, notadamente quanto à qualidade, natureza, material utilizado e metodologia empregada; e
III — marca coletiva: aquela usada para identificar produtos ou serviços provindos de membros de uma determinada entidade.
A diferença entre a marca coletiva e a de certificação diz respeito à natureza do titular do registro.
No caso da coletiva, o titular será sempre uma associação empresarial, ou seja, uma entidade,
sindical ou não, que congrega os empresários de determinado produto, ou de certa região, ou adeptos
de uma específica ideologia (por exemplo, os empresários cristãos, os ecológicos etc.). No caso da
marca de certificação, o titular não é uma associação empresarial, mas um agente econômico
(normalmente, um empresário) cuja atividade é a de avaliar e controlar a produção ou circulação de
bens ou serviços, desenvolvidas por outros agentes. O titular da marca de certificação, aliás, não
pode ter direto interesse comercial ou industrial em relação ao produto ou serviço cuja conformidade
ele atesta (LPI, art. 128, § 3º).
Se o empresário pretende identificar seus produtos com uma marca coletiva ou de certificação, ele
deverá consultar o respectivo regulamento de uso, registrado no INPI, para verificar se atende às
condições nele estipuladas. Normalmente, o regulamento irá estabelecer, entre as condições de uso,
uma contrapartida remuneratória em favor do titular da marca (por exemplo, a taxa de filiação à
associação empresarial, o pagamento dos serviços de controle de qualidade etc.). Atendidas as
condições, a lei considera outorgada a autorização de uso da marca, sem que outra formalidade seja
necessária além das previstas no respectivo regulamento.
Por outro lado, se alguém usa marca coletiva ou de certificação, sem atender às condições
regulamentares correspondentes, as medidas judiciais de coibição e reparação do ilícito cabem
exclusivamente ao titular da marca, isto é, à associação empresarial ou à empresa de avaliação e
controle, às quais o INPI concedeu o registro. O empresário usuário da marca coletiva ou de
certificação não tem ação contra o usurpador, e apenas pode reclamar as providências do titular da
marca, e, caso este permaneça inerte, representar ao INPI, para que promova a extinção do registro
(LPI, art. 151, II).
3. A PROPRIEDADE INTELECTUAL
Os bens sujeitos à tutela jurídica sob a noção de “propriedade industrial” (isto é, as patentes de
invenção, as marcas de produtos ou serviços, o nome empresarial etc.) integram o estabelecimento
empresarial. São, assim, bens imateriais da propriedade do empresário. Há, porém, outros bens da
mesma natureza, cuja tutela segue disciplina diversa, a do direito autoral.
O conjunto destas duas categorias de bens é normalmente denominado “propriedade intelectual”,
numa referência à sua imaterialidade e à origem comum, localizada no exercício de aptidões de
criatividade pelos titulares dos respectivos direitos. A propriedade intelectual, portanto, compreende
tanto as invenções e sinais distintivos da empresa, como as obras científicas, artísticas, literárias e
outras. O direito intelectual, deste modo, é o gênero, do qual são espécies o industrial e o autoral.
Normalmente, o estudo deste último é reservado à doutrina de direito civil, não cuidando dele os
comercialistas. Deve-se, contudo, acentuar que há bens de extraordinária importância econômica
para os empresários que são protegidos, no Brasil e no exterior, pelo direito autoral, e não pelo
industrial, como, por exemplo, os programas de computador (Lei n. 9.609/98; cf. Manso, 1987). Por
esta razão, é necessário pelo menos uma referência genérica às diferenças entre os dois grandes
capítulos do direito intelectual. Além disso, cabe examinar também o critério distintivo entre
desenho industrial e obra de arte, para assinalar as hipóteses de aplicação de cada ramo do direito
de tutela da propriedade intelectual.
3.1. Diferenças entre o Direito Industrial e o Direito Autoral
A proteção liberada ao criador pelo direito industrial diferencia--se da do autoral, em dois
aspectos: em primeiro lugar, quanto à origem do direito; em segundo, quanto à extensão da tutela.
A exclusividade na exploração do bem imaterial conferida pelo direito industrial decorre de um
ato administrativo. O inventor e o designer somente titularizam o direito de exploração exclusiva da
invenção, modelo ou desenho, após a expedição da patente, pelo INPI. Do mesmo modo, o
empresário só se considera titular do direito de exclusividade, em relação à marca, após expedido o
certificado de registro. Em outros termos, o ato administrativo pelo qual o inventor ou o empresário
tem reconhecido o seu direito industrial é de natureza constitutiva, e não declaratória. A
consequência imediata da definição é clara: o direito de exclusividade será titularizado por quem
pedir a patente ou o registro em primeiro lugar. Não interessa quem tenha sido realmente o primeiro
a inventar o objeto, projetar o desenho ou a utilizar comercialmente a marca. O que interessa saber é
quem foi o primeiro a tomar a iniciativa de se dirigir ao INPI, para reivindicar o direito de sua
exploração econômica exclusiva.
Em decorrência da natureza constitutiva do ato de concessão do direito industrial, quem titulariza
a patente pode não ter sido necessariamente a primeira pessoa a proceder à correspondente invenção.
E mesmo que essa pessoa venha a provar, por documentos confiáveis que sejam, ter sido dela a
primeira invenção, não poderá impedir que o titular da patente exerça seu direito de exclusividade,
também contra ela. Ou seja, esta pessoa — a despeito de ter sido a primeira a inventar — somente
poderá explorar economicamente a invenção mediante licença do titular da patente.
Já em relação aos bens que integram a propriedade autoral, a regra não é esta. O direito de
exclusividade do criador de obra científica, artística, literária ou de programa de computador não
decorre de algum ato administrativo concessivo, mas da criação mesma. Se alguém compõe uma
música, surge do próprio ato de composição o direito de exclusividade de sua exploração
econômica. É certo que a legislação de direito autoral prevê o registro dessas obras: o escritor deve
levar seu livro à Biblioteca Nacional, o escultor sua peça à Escola de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, o arquiteto seu projeto ao CREA, e assim por diante (Lei n. 5.988/73, art.
17, mantido em vigor pelo art. 115 da Lei n. 9.610/98). Estes registros, contudo, não têm natureza
constitutiva, mas apenas servem à prova da anterioridade da criação, se e quando necessária ao
exercício do direito autoral. O autor, portanto, pode reivindicar em juízo o reconhecimento de seu
direito de exploração exclusiva da obra, mesmo que não tenha o registro. O inventor, o designer e o
empresário não podem reivindicar idêntica tutela, se não exibirem a patente ou o registro.
Mesmo o registro de programas de computador, embora feito pelo INPI, não tem natureza
constitutiva, porque se cuida de direito de autor. Na verdade, o INPI, neste caso, não desempenha
uma função própria, relacionada à tutela da propriedade industrial, mas atua apenas como o órgão
designado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que, se, no futuro,
entender de passar a incumbência a outra repartição pública, poderá fazê-lo, sem que isto altere a
natureza jurídica do ato registrário, que continuará sendo, no caso, meramente declaratório. Ou seja,
o INPI, quando patenteia uma invenção ou registra desenho industrial ou marca, pratica ato de
natureza constitutiva, fundado no direito industrial; quando, porém, registra um logiciário (software),
pratica ato declaratório, relacionado ao direito autoral.
Se restar demonstrado, portanto, que uma determinada pessoa foi a primeira a criar uma obra
intelectual, artística ou científica, ou um programa de computador, ela será a titular do direito à
exploração exclusiva, mesmo que outra pessoa tenha feito, anteriormente, o registro da mesma obra
nas entidades mencionadas por lei ou designadas pelo MICT.
Uma das diferenças entre o direito industrial e o autoral está relacionada à natureza do registro do objeto, ou da obra. O do primeiro é
constitutivo; o da obra se destina apenas à prova da anterioridade.
A segunda diferença entre os dois sistemas protetivos da proprie-dade intelectual diz respeito à
extensão da tutela. O direito industrial protege não apenas a forma exterior do objeto, como a própria
ideia inventiva, ao passo que o direito autoral apenas protege a forma exterior. Se alguém apresenta
ao INPI um pedido de patente, descrevendo de maneira diferente uma invenção já patenteada, ele não
poderá receber o direito industrial que pleiteia. Isto porque a propriedade, neste caso, está protegida
como a ideia de que decorre a invenção. Ao seu turno, no campo do direito autoral, coíbem-se os
plágios, ou seja, a apropriação irregular de obra alheia, tal como ela se apresenta externamente.
Qualquer um pode publicar um livro, narrando, em primeira pessoa, a história de um homem
obcecado pela ideia de que sua mulher foi adúltera, tema introduzido na literatura brasileira por
Machado de Assis, em Dom Casmurro. Ora, desde que não reproduza trechos do texto machadiano,
este escritor não incorrerá em plágio, embora a sua ideia não seja minimamente original. O pintor
que retratar as coloridas bandeirolas de papel, usadas nas festas juninas do interior paulista, não
estará infringindo os direitos autorais de Volpi (ou seus sucessores), que foi o criador do tema, desde
que não reproduza especificamente nenhuma tela ou gravura dele. Isto porque a proteção liberada
pelo direito autoral não alcança a ideia do autor, mas só a forma pela qual ela se exterioriza, e se
apresenta ao público.
A segunda diferença entre o direito industrial e o autoral está relacionada à extensão da tutela jurídica. Enquanto o primeiro protege a
própria ideia inventiva, o segundo cuida apenas da forma em que a ideia se exterioriza.
A propósito desta segunda diferença, vale relembrar que o programa de computador, por ser
protegido pelo direito autoral, submete--se ao regime próprio desse gênero de propriedade
intelectual. Em decorrência, é possível a qualquer um comercializar logiciários que atendam às
mesmas necessidades dos já existentes no mercado, desde que não os reproduzam (o que configuraria
plágio). Também em virtude deste enquadramento no campo do direito do autor, não é ilícita a
desengenharia dos logiciários, isto é, a descoberta do modo de operação do programa, por meio de
sua desestruturação, como forma de pesquisa de novas alternativas de desenvolvimento da
informática.
3.2. Desenho Industrial e Obra de Arte
Situa-se o desenho industrial no limite entre a atividade de criação industrial e a artística. É,
ademais, muito comum, em grandes museus de arte, a existência de seção dedicada ao design, na qual
se exibem móveis e utensílios dotados de formas esteticamente inovadoras. O primeiro a criar essa
seção, o Museum of Modern Art, de Nova York, exibe até um helicóptero (modelo Bell, projetado
por Arthur Young). A proximidade entre o desenho industrial e a obra de arte derivam da natureza
fútil do ato de criação. Tanto o designer como o artista não contribuem para o aumento das utilidades
que o homem pode esperar dos objetos. A contribuição deles é de outro gênero, ligada basicamente
aos prazeres de fruição visual: uma contribuição estética, portanto. Não é considerada desenho
industrial, contudo, uma obra de caráter exclusivamente artístico, por expressa disposição da lei
(LPI, art. 98).
Como visto, a tutela da criação artística é feita pelo direito do autor, e não pelo industrial. É,
portanto, uma questão doutrinária relevante, para o direito da propriedade intelectual, a distinção
entre o desenho industrial e a obra de arte. Esta discussão não desperta muito o interesse dos artistas
e designers, mas a tecnologia jurídica não a pode evitar, uma vez que é essencial para a definição do
regime tutelar aplicável. Outrossim, não é demais lembrar que a tecnologia do direito se vale de
conceitos operacionais, para fins práticos — solucionar conflitos de interesse. Não tem, e não pode
ter, a pretensão de substituir a reflexão da teoria da arte. Por outro lado, não vale a pena considerar,
nesta discussão, toda e qualquer manifestação artística do homem (literatura, teatro, cinema etc.), mas
apenas a pintura e a escultura, que são as únicas com as quais o desenho industrial pode
eventualmente se confundir.
A distinção jurídica entre desenho industrial e obra de arte (escultura ou pintura) está relacionada
a algumas das funções que os respectivos objetos têm. Note-se que, embora tanto o design como a
manifestação artística revelem o traço comum da futilidade — isto é, não aumentam a utilidade que
uma coisa pode ter — há uma diferença essencial entre os objetos revestidos de desenho industrial e
aqueles em que a arte se materializa. E esta diferença está ligada à sua natureza utilitária ou
simplesmente estética. Para se chegar a um conceito minimamente operacional, no emaranhado do
problema, deve-se partir de uma reflexão (um tanto superficial, admita-se) sobre a função desses
objetos.
Abstraindo-se a questão das motivações dos artistas, e centrando o foco sobre as do consumidor
de arte, pode-se distinguir uma primeira função de qualquer pintura ou escultura, que é a estética.
Elas se destinam, por esta perspectiva, a tornar mais bonito o ambiente em que são colocadas. O
desejo de embelezar — e o que vem a ser bonito ou feio é questão altamente subjetiva,
desinteressante à tecnologia jurídica — é elemento motivador de grande parte das pessoas que
consomem arte. Mas, além da estética, as obras de arte cumprem também outras funções. Geralmente,
são uma referência à condição social de quem as adquire, um símbolo de prestígio, refinamento ou
poder econômico. Quando uma corporação financeira japonesa desembolsa dezenas de milhões de
dólares, para arrematar em leilão um Girassóis de Van Gogh, mais do que procurando algo para
enfeitar a sala de diretoria, ela está fazendo uma demonstração de força. A mesma, guardadas as
proporções, que faz o empresário brasileiro, ao dependurar um Anita Malfatti sobre a lareira de sua
sala de estar. A arte tem, assim, uma função (digo) publicitária.
As duas funções destacadas, a estética e a publicitária, talvez não sejam as mais importantes da
arte. Mas não interessa, aqui, examinar tal aspecto da questão. Fato é que essas funções são as
mesmas que podem ter o desenho industrial. Um serviço Noritake embeleza a mesa e, ao mesmo
tempo, revela a condição econômica do anfitrião. Mas há, aqui, uma diferença fundamental, em
relação à obra de arte. O objeto em que se materializa o desenho industrial possui sempre uma
função principal, de natureza utilitária, que falta às telas e suportes de esculturas. O desenho
industrial, em si, é fútil, no sentido de que não amplia as possibilidades de utilização do objeto a que
é aplicado; mas o objeto tem necessariamente utilidade. Note-se que, pela perspectiva do empresário
que contrata o designer, a função esperada do desenho é a de dotar a mercadoria produzida de um
elemento ornamental (nela mesma ou na embalagem) que a individualize, no mercado, em relação aos
concorrentes (Schulmann, 1991). Para fins jurídicos, a função mercadológica é a decisiva para
distinguir os desenhos registráveis dos não registráveis; é, porém, irrelevante para distanciar o
design das concepções puramente artísticas.
O desenho industrial é diferente da escultura e da pintura (obras de arte) porque o objeto a que se refere tem função utilitária e não apenas
estética, decorativa ou de promoção do seu proprietário.
Em outros termos, a diferença entre desenho industrial e obra de arte está relacionada à inspiração
básica da atividade do designer, desde o seu surgimento, no final do século XIX: a articulação
entre forma e função (Pevsner, 1968; Heskett, 1980:10/49). O objeto meramente utilitário — que só
proporciona uma certa comodidade, sem possuir forma esteticamente destacada — não ostenta
qualquer design. Um jogo de talher comum, destituído de valor estético, que serve apenas para
comer, não possui sua forma protegida pelo direito industrial. Ao contrário do faqueiro
Riemerschmid, dotado de grande originalidade quando lançado no mercado nos anos 1910, e que
ainda hoje agrada por sua graciosa forma. Do mesmo modo, o objeto de pura forma, sem nenhuma
função utilitária (assim, a escultura ou a tela), também não tem sua concepção protegida pelo direito
industrial. Por mais desconfortável que pareça, a cadeira vermelha, azul e amarela, de Gerrit
Rietveld, de 1918, serve para sentar; e é neste particular — quer dizer, no remodelar a forma, sem
eliminar a função — que o desenho industrial de uma cadeira se distingue da escultura de uma
cadeira. Se o objeto resultante da atividade criativa, em suma, não apresenta função utilitária, a
forma correspondente pode ter a proteção do direito autoral, mas não a do direito industrial.
Na distinção entre desenho industrial e obra de arte, pelo aspecto da articulação entre função e
forma do objeto correspondente, há uma exceção a se considerar: as joias. São objetos de utilidade
prática nenhuma, mas provêm de atividade criativa tutelada pelo direito industrial. Brincos, colares,
anéis e pulseiras, ainda que exclusivos, não são obras de arte, mas resultam de desenhos industriais.
Seus criadores são protegidos pelo direito industrial, e não pelo autoral.
4. PATENTEABILIDADE
Os bens industriais patenteáveis são a invenção e o modelo de utilidade. Não basta, contudo, que
o inventor ou o criador do modelo tenha conseguido, em suas pesquisas científicas ou tecnológicas,
um resultado original, para que tenha direito à patente. A lei estabelece diversas condições para a
concessão do direito industrial, às quais se refere, neste caso, pelo neologismo “patenteabilidade”.
São as seguintes: a) novidade; b) atividade inventiva; c) industriabilidade; d) desimpedimento. As
mesmas condições são exigíveis da invenção e do modelo de utilidade, mas, por razões de ordem
exclusivamente didáticas, com vistas a facilitar a exposição do tema, será feita referência somente à
primeira.
4.1. Novidade
Uma invenção atende ao requisito da novidade se é desconhecida dos cientistas ou pesquisadores
especializados. Se os experts não são capazes, pelos conhecimentos que possuem, de descrever um
objeto, o primeiro a fazê-lo será considerado o seu inventor. Nos termos legais, a invenção é nova
quando não compreendida no estado da técnica (LPI, art. 11). A avaliação da novidade do invento,
portanto, depende do conceito de estado da técnica, fundado essencialmente na ideia de divulgação
do trabalho científico e tecnológico.
O estado da técnica abrange, de início, todos os conhecimentos a que pode ter acesso qualquer
pessoa, especialmente os estudiosos de um assunto em particular, no Brasil ou no exterior. São
alcançados pelo conceito os conhecimentos divulgados por qualquer meio, inclusive o oral e o
eletrônico, na data em que o inventor submete a sua invenção ao INPI (depósito do pedido de
patente). Se o objeto reivindicado pelo inventor já se encontra acessível, nestes termos, a qualquer
outra pessoa, então lhe falta o requisito da novidade. Não caberá a proteção do direito industrial,
porque, se a correspondente descrição já se encontra divulgada, o requerente não pode ser tido como
o primeiro a inventar o objeto.
Também se consideram integrantes do estado da técnica alguns conhecimentos não divulgados.
São os descritos em patente depositada, ainda não publicada. Como se examinará mais à frente, o
pedido de patente fica mantido em sigilo pelo INPI, nos 18 meses subsequentes ao depósito (LPI, art.
30), findos os quais a invenção será obrigatoriamente tornada pública (podendo o interessado
eventualmente requerer a antecipação da publicação). Pois bem, de acordo com a lei, o conteúdo
completo de pedido depositado é considerado estado da técnica, a partir da data do depósito, embora
a sua publicação seja posterior. Em outros termos, se o inventor júnior depositou seu pedido, quando
já se encontrava em curso o prazo de sigilo do pedido do inventor sênior, não será considerada nova
a invenção daquele, mesmo que nenhuma delas tenha sido publicada (ou mesmo que o júnior requeira
a antecipação da publicação de seu pedido, em relação à do sênior).
O estado da técnica, desse modo, compreende todos os conhecimentos difundidos no meio
científico, acessível a qualquer pessoa, e todos os reivindicados regularmente por um inventor, por
meio de depósito de patente, mesmo que ainda não tornados públicos. Estes são os contornos básicos
da noção conceitual que permite avaliar o grau de novidade das invenções (LPI, art. 11), mas o
conceito de estado da técnica não está completo, ainda. Devem-se ressalvar algumas formas de
divulgação que não chegam a comprometer a novidade do invento. Assim, se o próprio inventor, nos
12 meses anteriores ao depósito da patente, deu notícias de sua invenção — por exemplo, em
congressos ou por meio de revista acadêmica —, então não se considera que a invenção já integre o
estado da técnica. O mesmo ocorre se a divulgação é feita em razão de fraude, como no caso de o
INPI inadvertidamente publicar a invenção, na tramitação de pedido de patente apresentado por
quem, na verdade, usurpara uma criação intelectual alheia. Outro exemplo é o da divulgação do
invento por quem não estava autorizado a fazê-lo (LPI, art. 12). Nas duas últimas situações, para que
a divulgação não seja considerada integrante do estado da técnica, ela também deve ter-se verificado
no período de 12 meses anteriores ao depósito do pedido de patente. É o chamado “período de
graça”.
Lei da Propriedade Industrial
Art. 11. A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica.
A novidade, portanto, se define a partir de um conceito negativo, de uma exclusão. Novo é o
invento que não se encontra no estado da técnica. A doutrina costuma distinguir novidade de
originalidade, atributo de toda invenção, sob o ponto de vista subjetivo. Original é a qualidade da
concepção, no momento em que ela passa de desconhecida para conhecida, no espírito de uma
pessoa, em razão de seu esforço próprio (quer dizer, fora do processo ensino-aprendizagem). Um
inventor que ignora o funcionamento de um determinado objeto pode chegar ao seu conhecimento, em
razão das pesquisas que realiza. Em sua mente, forma-se uma ideia original. Em seguida, ao tentar
obter a patente, fica sabendo que outro inventor (um ano antes, que seja) havia já depositado a mesma
invenção. A ideia do júnior era original, mas não nova (cf. Cerqueira, 1946:307/309).
4.2. Atividade Inventiva
O segundo requisito para a concessão da patente é a atividade inventiva. Apresenta-a a invenção
que não decorre do estado da técnica de um modo óbvio, para um especialista. Quer dizer, para ser
patenteável, a invenção, além de não compreendida no estado da técnica (novidade), não pode
derivar de forma simples dos conhecimentos nele reunidos. É necessário que a invenção resulte de
um verdadeiro engenho, de um ato de criação intelectual especialmente arguto. Este requisito da
atividade inventiva foi criado pelo direito norte-americano (non-obviousness), em 1952, a partir de
precedentes judiciais, e, hoje em dia, corresponde a preceito básico do direito industrial em diversos
países (a França adotou-o em 1968; a Espanha o admite na lei de 1986; o Brasil o introduziu em
1996).
A atividade inventiva (ou inventividade) é o atributo da invenção que permite distinguir a simples
criação intelectual do engenho. Numa hipotética classificação dos inventores, de acordo com a
capacidade inventiva, haveria pelo menos 3 níveis a considerar: os gênios (em que se enquadraria,
por exemplo, Thomas Edison ou James Watt), os engenhosos e os criativos. Para um leigo, os
avanços que os criativos proporcionam ao estado da técnica podem ser surpreendentes ou instigantes.
Para o especialista, entretanto, tais avanços são óbvios, evidentes, meros desdobramentos
previsíveis dos conhecimentos existentes. Sob o ponto de vista jurídico, apenas as invenções dos
engenhosos e dos gênios podem ser patenteadas, porque só estas se revestem do atributo da atividade
inventiva.
Ressalte-se que a referência à capacidade inventiva dos pesquisadores, que eu acabei de fazer, na
verdade, só pode servir de esquema didático para melhor compreensão do conceito legal (atividade
inventiva). Nenhuma patente poderá ser negada, em função de critérios subjetivos, isto é, das
qualidades apresentadas pela pessoa do inventor. O INPI não pode classificar os inventores, segundo
as respectivas habilidades, para fins de apreciar os pedidos de patente. O exame da patenteabilidade
de uma invenção é sempre objetivo, quer dizer, exaure-se na comparação entre, de um lado, a
descrição submetida à análise e, de outro, o estado da técnica e suas decorrências óbvias.
Lei da Propriedade Industrial
Art. 13. A invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do
estado da técnica.
Art. 14. O modelo de utilidade é dotado de ato inventivo sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira comum ou vulgar do
estado da técnica.
No direito norte-americano, a presença do requisito da non-obviousness, muitas vezes, é feita
pela verificação dos resultados alcançados pelo invento, quando colocado no mercado. Assim, por
exemplo, se há sucesso imediato na sua aceitação pelos consumidores, este fato é considerado sinal
indicativo do atendimento à condição de patenteabilidade. Se, por outro lado, as necessidades dos
consumidores, que se pretendiam atender com o invento, continuam insatisfeitas, é sinal de falta de
atividade inventiva (Miller-Davis, 1983:70/94). O critério pode ser útil à aplicação do direito
industrial brasileiro. De fato, a análise da inventividade, no pedido de patente, pode ser auxiliada
por exames relacionados aos resultados que o invento proporciona, em termos econômicos, à
empresa e aos consumidores. Elementos como a eficiência do produto, a redução de custos, a
simplificação de processos industriais ou a diminuição do tamanho de utensílios e máquinas podem
reforçar a conclusão acerca da presença de atividade inventiva no invento correspondente (cf. BlasiGarcia-Mendes, 1997:129).
O exame dos resultados proporcionados pela invenção, contudo, pode servir unicamente de
critério auxiliar, na análise da inventividade. O essencial, para aferição do atendimento do requisito
da lei, é a ampliação do estado da técnica para além dos limites de suas decorrências óbvias. O
aumento da eficiência de um processo industrial é normalmente associado a uma ampliação desta
ordem, e, por isso, pode contribuir para a análise da patenteabilidade da invenção. Mas, por si só,
não é suficiente para a concessão do direito industrial; assim como, por outro lado, não se justifica o
indeferimento da patente apenas pela falta de maior eficiência na utilização do invento. O decisivo é
a demonstração de que, para um especialista, a invenção não representa uma decorrência óbvia ou
evidente do estado da técnica.
4.3. Industriabilidade
O terceiro requisito da patenteabilidade é a industriabilidade, que se reputa atendido quando
demonstrada a possibilidade de utilização ou produção do invento, por qualquer tipo de indústria
(LPI, art. 15). Aqui, a expressão “indústria” possui um sentido bastante largo, equivalente a atividade
produtiva, e alcança não apenas a transformação de matéria--prima em mercadorias (noção estrita de
atividade industrial), mas também a agricultura, pecuária, construção civil, prestação de serviços etc.
A doutrina brasileira costumava lecionar que esse requisito (a “utilização industrial”) tinha o
propósito de excluir, do campo das criações patenteáveis, as puras concepções intelectuais, como as
descobertas científicas. Em outros termos, o requisito circunscreveria a patenteabilidade às criações
de efeitos práticos (Cerqueira, 1946:340). A lição, contudo, não mais se ajusta aos termos da lei
vigente, perante a qual não se enquadram as concepções teóricas no conceito de invenção (LPI, art.
10, I a III). Quer dizer, toda invenção — tanto a patenteável como a não patenteável — tem, por
definição legal, efeitos práticos. A industriabilidade como condição de patenteabilidade, portanto,
não pode ter o mesmo sentido que a doutrina antigamente apontava.
Na verdade, o que pretende a lei, ao eleger a industriabilidade como condição de
patenteabilidade, é afastar a concessão de patentes a invenções que ainda não podem ser fabricadas,
em razão do estágio evolutivo do estado da técnica, ou que são desvestidas de qualquer utilidade
para o homem. Duas, portanto, são as invenções que não atendem ao requisito da industriabilidade:
as muito avançadas e as inúteis.
Não tem direito a patente, portanto, o criador da invenção que, por se mostrar tão avançada em
relação ao estado da técnica, ainda não pode ser fabricada. Note-se que não está em questão a
fabricação em escala industrial, que pressupõe a viabilidade do custo e a absorção pelo mercado
consumidor. O transistor, por e xemplo, à época de sua invenção, não pôde ser utilizado pela
indústria em larga escala, por uma questão de ordem econômica apenas. Não existia qualquer
dificuldade técnica a impedir sua imediata fabricação, mas os custos eram muito altos. O mesmo
aconteceu com o raio laser e o chip (Blasi-Garcia-Mendes, 1997:131). A inexistência de condições
econômicas para a fabricação em escala industrial não impede a patenteabilidade da invenção. O que
a impede é a inexistência dos conhecimentos técnicos indispensáveis à fabricação do invento. Assim,
se o pedido de patente descreve objeto cuja industrialização depende de outras invenções ainda
inexistentes, embora previsíveis, então lhe falta o requisito da industriabilidade. A patente não
poderá ser concedida, pelo menos enquanto esta circunstância persistir.
Em segundo lugar, também não atendem ao requisito da industriabilidade as invenções sem
qualquer utilidade para o homem. Uma criação simplesmente curiosa ou intelectualmente instigante
não goza da proteção do direito industrial, ainda que represente uma novidade e resulte de inegável
atividade inventiva. Para obter a patente, é indispensável que o inventor demonstre algum tipo de
proveito, para as pessoas em geral ou para as de determinado grupo, em função do uso do invento.
Assim, o fabricante de medicamentos que pretender patentear uma nova droga, deverá demonstrar sua
eficácia terapêutica. Os placebos não podem ser patenteados.
4.4. Desimpedimento
O derradeiro requisito da patenteabilidade é o desimpedimento. Invenções há que, embora novas,
inventivas e industrializáveis, não podem receber a proteção da patente, por razões de ordem
pública. A lei anterior de propriedade industrial vigente no Brasil, por exemplo, excluía da proteção
industrial a invenção de medicamentos. Considerava-se, então, que a descoberta de um novo remédio
era assunto de interesse da saúde pública, de tal forma que a todos os empresários interessados — e
não somente ao inventor — deveria ser possível fabricá-lo. Com isto, estar-se-ia garantindo maior
acesso da população em geral aos avanços da ciência. Em outros termos, os produtos essenciais à
saúde deveriam ser livremente explorados (Cerqueira, 1946:355). Por esta razão, havia, na
legislação anterior, um impedimento à concessão da patente (então chamada de “privilégio”) para a
invenção de remédios.
A nossa atual legislação de propriedade industrial é resultante, em boa parte, da necessidade que
teve o Brasil de responder, a partir da segunda metade dos anos 1980, às crescentes pressões
internacionais — principalmente dos Estados Unidos — no sentido de passar a reconhecer o direito
das indústrias farmacêuticas. O valor social da ampla acessibilidade da população aos avanços da
ciência, na área dos medicamentos, esconde, na verdade, uma falácia. A pesquisa científica
pressupõe investimentos de grande porte, e a exclusividade na fabricação de novas drogas é
condição para o retorno destes. O empresário que apenas se apropria dos resultados da pesquisa
alheia, sem realizar nenhum investimento de monta e sem pagar royalties ao inventor, pode
comercializar o mesmo remédio a preço inferior ao praticado pela indústria responsável pela
invenção. A concorrência desleal acaba, a médio e longo prazo, prejudicando o próprio consumidor.
Claro, porque, se não houver garantia de retorno, novos investimentos em pesquisa simplesmente não
serão feitos. Desse modo, ao descartar o impedimento de patente de remédios, a lei brasileira em
vigor valeu--se da melhor alternativa de tratamento da matéria.
Três sãos os impedimentos existentes no direito brasileiro, atualmente: a) as invenções contrárias
à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas; b) substâncias, matérias,
misturas, elementos ou produtos resultantes de transformação do núcleo atômico, bem como a
modificação de suas propriedades e os processos respectivos; c) seres vivos, ou parte deles (LPI,
art. 18). Esta última hipótese de impedimento possui uma exceção: pode se conceder patente para a
transformação genética introduzida pelo homem em micro-organismos (são os chamados
“transgênicos”).
O direito industrial brasileiro não impede a patente de organismos vivos transgênicos.
Note-se que o desimpedimento à concessão da patente não diz respeito às qualidades intrínsecas,
aos atributos da invenção, como os outros requisitos — novidade, inventividade e industriabilidade.
O impedimento é previsto na lei, a rigor, em atenção a valores sociais estranhos à questão
propriamente técnica da invenção, e está muitas vezes ligado a preceitos éticos. O desimpedimento,
por consequência, é um atributo extrínseco da invenção, e muitas vezes o exame do atendimento a
esse requisito se vê sujeito às nuanças dos valores disseminados na sociedade.
5. REGISTRABILIDADE
Os registros concedidos pelo INPI referem-se a dois diferentes bens industriais: o desenho
industrial (design) e as marcas. O registro do primeiro guarda algumas semelhanças com a patente de
invenção ou de modelo de utilidade (nas leis brasileiras anteriores, aliás, os desenhos industriais
eram patenteados e não registrados), distanciando--se, por vezes, da marca. Por essa razão, ao
contrário da patenteabilidade, a registrabilidade não comporta tratamento geral. São acentuadamente
desiguais, em outros termos, as condições para o registro do desenho industrial e da marca.
5.1. Registro de Desenho Industrial
Há três requisitos para o registro do desenho industrial: a) novidade; b) originalidade; c)
desimpedimento.
Um desenho industrial é novo quando não compreendido no estado da técnica. Os designers,
evidentemente, conhecem os principais trabalhos realizados no campo do desenho industrial, bem
como estão atentos às inovações apresentadas por seus colegas; dedicam-se, inclusive, a estudar
peças clássicas, de modo a aprenderem com as soluções encontradas por seus autores. O conjunto de
conhecimentos resultante das observações e estudos compõe o estado da técnica, legalmente definido
como tudo que foi divulgado, por qualquer meio, até a data do depósito do pedido de registro.
Integra, também, o estado da técnica o desenho depositado no INPI, embora ainda não publicado. A
exemplo do disposto relativamente ao estado da técnica das invenções e modelos de utilidade,
também é concedido um “período de graça”, ao autor do desenho. No caso do design, no entanto, a
lei estabeleceu os 180 dias anteriores ao depósito do pedido de registro, para fins de excluir do
estado da técnica a divulgação feita, nesse período, pelo próprio designer, ou realizada em
decorrência de fraude (LPI, art. 96, § 3º). Prazo menor, portanto, que o relativo às invenções e
modelo de utilidade.
A originalidade, por sua vez, é a apresentação de uma configuração visual distintiva, em relação
aos objetos anteriores (LPI, art. 97). Algumas alterações no desenho registrado por outra pessoa
podem significar novidade (já que não se encontram no estado da técnica); mas se não trouxerem
para o objeto uma característica peculiar, que o faça perfeitamente distinguível dos seus pares, o
registro não poderá ser concedido, em razão da falta de originalidade. Para o exemplo, lembre-se da
famosa cadeira que Charles Mackintosh, arquiteto e designer escocês, projetou para a Hill House,
em 1902. Cadeira de espaldar bem alto, formado por ripas pretas, que lembra uma escada (sete ripas
abaixo do assento, vinte e duas acima). As ripas mais altas são cortadas por traves verticais. Se um
designer submeter ao INPI uma cadeira com estas mesmas características, mas com traves diagonais
sobrepostas às ripas superiores, esta cadeira será eventualmente nova — posto nenhum outro
designer a tivesse projetado, antes —, mas nada original. O resultado visual da nova cadeira não
seria suficientemente distinto do da Mackintosh. A originalidade está para o desenho industrial como
a inventividade está para a invenção. Quer dizer, o direito industrial protege as criações engenhosas
do espírito humano, e não qualquer tipo de inovação trazida aos objetos.
Finalmente, a lei estabelece três impedimentos à concessão do registro de desenho industrial. Não
pode ser registrado o desenho que: a) tem natureza puramente artística (ver item 3.2, acima); b)
ofende a moral e os bons costumes, a honra ou imagem de pessoas, ou atente contra a liberdade de
consciência, crença, culto religioso, ou contra ideias ou sentimentos dignos de respeito e veneração;
c) apresenta forma necessária, comum, vulgar ou determinada essencialmente por considerações
técnicas e funcionais (LPI, arts. 98 e 100).
Os requisitos para o registro de desenho industrial são a novidade, a originalidade e o desimpedimento.
A concessão do registro de desenho industrial independe da prévia verificação, pelo INPI, da sua
novidade e originalidade. Apenas a inexistência dos impedimentos é checada pela autarquia, antes da
expedição do certificado. Se, em momento posterior, restar demonstrado o desatendimento dos
requisitos da registrabilidade, o INPI instaura de ofício o processo de nulidade do registro
concedido (ver item 6.2).
5.2. Registro de Marca
O registro de marca está sujeito a três condições: a) novidade relativa; b) não colidência com
notoriamente conhecida; c) desimpedimento.
A primeira — novidade relativa — é exigida para que a marca cumpra a sua finalidade, de
identificar, direta ou indiretamente, produtos e serviços, destacando-os dos seus concorrentes. Se a
marca não for nova, ela não atenderá essa finalidade. Note-se que não é exigida a novidade absoluta
para a concessão do registro. Não é necessário que o requerente tenha criado o sinal, em sua
expressão linguística, mas que lhe dê, ou ao signo não linguístico escolhido, uma nova utilização. Se
o fabricante de móveis de escritório adota para seus produtos a marca triângulo, ele poderá obter a
proteção do direito industrial, apesar de a expressão não ter sido criada por ele. Aliás, triângulo é
figura geométrica estudada desde a Antiguidade, que todos conhecem nos primeiros anos de escola.
O que é novo, na decisão do fabricante, é chamar móveis de triângulo. A ninguém antes dele pode
ter ocorrido semelhante ideia. Em outros termos, o uso emprestado à expressão linguística (ou ao
signo não linguístico) é que deve se revestir de novidade, para que a marca possa ser registrada.
Em razão do caráter relativo da novidade, a proteção da marca registrada é restrita ao segmento
dos produtos ou serviços a que pertence o objeto marcado. A regra do direito marcário, que se
conhece por “princípio da especificidade”, tem o objetivo de impedir a confusão entre os
consumidores acerca dos produtos ou serviços disponíveis no mercado. Se houver possibilidade de
os consumidores os confundirem, as marcas adotadas para os identificar não podem ser iguais ou
semelhantes.
No exemplo hipotético acima, o fabricante de móveis de escritório terá a sua marca registrada
pelo INPI, na classe 20 (“móveis, espelhos, molduras, produtos (não incluídos em outras classes) de
madeira, cortiça, junco, cana, vime, chifre, marfim, osso, barbatana de baleia, concha, tartaruga,
âmbar, madrepérola, espuma do mar e sucedâneos de todas estas matérias ou de matérias plásticas”).
Nenhum empresário dedicado aos produtos abrangidos na mesma classe poderá utilizar marca
idêntica ou semelhante. O comerciante que vende móveis de piscina, por exemplo, está impedido de
usar a expressão triângulo, para os identificar. Contudo, se uma agência de publicidade pretender
adotar a mesma marca, para os seus serviços, poderá fazê-lo livremente, sem que exista ofensa ao
direito do industrial titular da marca registrada. Aliás, a agência poderá também requerer o registro
da expressão triângulo, como sua marca, uma vez que este será feito agora na classe 35
(“Propaganda; gestão de negócios; administração de negócios; funções de escritório”).
Destaco que duas marcas iguais ou semelhantes até podem ser registradas na mesma classe, desde
que não se verifique a possibilidade de confusão entre os produtos ou serviços a que se referem. É
respeitado o princípio da especificidade, em suma, sempre que o consumidor, diante de certo
produto ou serviço, não possa minimamente confundi-lo com outro identificado com marca igual ou
semelhante. Afastada essa possibilidade, será indiferente se as marcas em questão estão registradas
na mesma classe ou em classes diferentes.
O INPI classifica os produtos e serviços, para facilitar a pesquisa do âmbito da proteção deferida
pelo registro, adotando a Classificação Internacional de Produtos e Serviços (“Classificação de
Nice” — 9ª Edição). A classificação dos produtos e serviços para fins do direito marcário tem a
função de auxiliar a investigação da eventualidade da confusão entre as marcas. As classes não
delimitam, em outros termos, o âmbito do direito de exclusividade concedido ao titular do registro.
A única exceção à regra da especificidade (limitação da tutela ao segmento dos produtos e
serviços suscetíveis de confusão pelo consumidor) diz respeito à marca de alto renome , cuja
proteção é extensiva a todos os ramos de atividade (LPI, art. 125). Trata-se de uma situação
especial, em que se encontram certas marcas, amplamente conhecidas pelos consumidores (por
exemplo, Coca-cola, Natura, Fiat, Pirelli). Nenhum consumidor poderia pensar que um móvel de
escritório com a marca Coca-cola teria sido fabricada pelo mesmo empresário que fornece os
refrigerantes. Mas, como se trata de marca de alto renome, o fabricante de roupas não tem direito de
empregá-la em seus produtos, a despeito da impossibilidade de confusão.
O titular de marca, registrada numa ou mais classes, pode requerer ao INPI que lhe atribua a
qualidade de “alto renome”. Deve fazê-lo necessariamente como meio de defesa (isto é, ao impugnar
o pedido de registro formulado por outrem ou no bojo de pedido de anulação de registro alheio),
segundo o regulamento administrativo do tema (Res. INPI 121/2005). Se a autarquia, diante das
provas apresentadas pelo impugnante ou requerente da anulação do registro, considerar que a marca
dele é mesmo amplamente conhecida, a sua proteção deixará de ser restrita ao segmento de produtos
ou serviços passíveis de confusão e se estenderá para todas as atividades econômicas. Durante o
prazo de 5 anos, ele não precisará produzir prova do alto renome da marca quando impugnar pedidos
formulados por outros empresários ou pleitear a anulação de registro concedido. O titular de marca
de alto renome pode, desse modo, impedir sua utilização por qualquer outro empresário, mesmo os
que oferecem produtos ou serviços em relação aos quais a possibilidade de confusão estaria
completamente afastada.
Pelo “princípio da especificidade”, a proteção da marca registrada é limitada aos produtos e serviços a respeito dos quais podem os
consumidores se confundir, salvo quando o INPI reconhece sua natureza de “marca de alto renome”. Nesta hipótese, a proteção é ampliada para
todos os ramos da atividade econômica.
A proteção especial que a lei dá à marca registrada de alto renome, além de significar a
possibilidade de o titular impedir a utilização de sinal idêntico ou semelhante, em qualquer outro
ramo de atividade econômica, apresenta também outro aspecto, relativo às características essenciais
responsáveis pelo seu amplo conhecimento junto aos consumidores. Quer dizer: a marca de alto
renome não pode ter sua forma distintiva principal utilizada por ninguém.
Quando se trata de marca comum, o titular está protegido contra reproduções e semelhanças,
dentro do mesmo segmento. Mas não pode impedir o uso de signos visuais ou expressões linguísticas
comuns aos concorrentes, ainda que tenha sido o primeiro a ostentá-los em sua marca. São as
chamadas marcas débeis ou frágeis. No campo da indústria farmacêutica, podem-se colher alguns
exemplos, uma vez que os medicamentos são muitas vezes chamados por variações linguísticas do
nome científico de seu componente básico ou do mal que pretende combater (assim: Cefalon e
Cefalit, destinados à atenuação da cefaleia; ou Deltaren e Voltaren; cf. Domingues, 1984:156/164).
Pois bem, uma marca de alto renome recebe a proteção especial mesmo em relação aos signos de uso
comum. É o caso, por exemplo, da marca McDonald’s, de que é titular conhecidíssima rede de fastfood. O prefixo Mc identifica de tal forma a rede, que, embora se trate de sinal linguístico comum —
na composição de nomes pessoais sobretudo —, não pode ser utilizado por nenhum outro
empresário. Ela é, em todo o mundo, de tal forma conhecida por seu prefixo — largamente explorado
nas propagandas e na identificação dos produtos —, que esse fato impede, como ilustra Wolfgang
Berlit (1995:184), o registro de marcas como McChinese.
O segundo requisito para o registro de marca é a não colidência com marca notoriamente
conhecida. Seu fundamento legal se encontra no art. 126 da LPI, que atribui ao INPI poderes para
indeferir de ofício pedido de registro de marca, que reproduza ou imite, ainda que de forma parcial,
uma outra marca, que notoriamente não pertence ao solicitante. Trata-se de disposição introduzida
pela atual lei, pela qual o Brasil finalmente cumpre compromisso internacional, assumido quando de
sua adesão à Convenção da União de Paris, em 1884. Pelo seu art. 6º bis (I), os países unionistas
(isto é, os integrantes da União de Paris) se comprometem a recusar ou invalidar registro, bem como
proibir o uso, de marca que constitua reprodução, imitação ou tradução de uma outra, que se saiba
pertencer a pessoa diversa, nascida ou domiciliada noutro país unionista (sobre o tema, ver Gusmão,
1990).
A marca notoriamente conhecida goza de uma proteção especial, que independe de registro no INPI. Assim, se alguém pretender apropriar-se
de marca que evidentemente não lhe pertence, o seu pedido poderá ser indeferido pelo INPI, mesmo que não exista registro anterior da marca no
Brasil.
O principal objetivo do segundo requisito da registrabilidade é a repressão à contrafação de
marcas (a chamada pirataria). Essa prática ilícita consiste em requerer o registro de marcas ainda
não exploradas pelos seus criadores no Brasil, mas já utilizadas noutros países. Quando o
empresário, responsável pela criação e consolidação da marca no exterior, resolve expandir seus
negócios para o mercado brasileiro, encontra-a registrada em nome de outra pessoa, em princípio o
titular do direito de exclusividade. Demonstrada a notoriedade da marca, o empresário poderá
requerer ao INPI a nulidade do registro anterior, bem como a concessão do direito industrial em seu
nome.
O terceiro requisito é o desimpedimento. O art. 124 da LPI apresenta extensa lista de signos que
não são registráveis como marca. Em alguns incisos (IV, XIII, XV, XVI), na verdade, o legislador
estabelece condições especiais para alguns registros, e não propriamente impedimento. É, por
exemplo, o caso de pseudônimo ou apelido (como Pelé ou Xuxa), cujo registro não é impedido, mas
apenas condicionado à autorização da pessoa notoriamente conhecida por ele. Em outros incisos (V,
VII, XI, XII, XVII, XIX, XXII, XXIII), o legislador se refere à extensão da proteção de bens
imateriais de natureza diversa, o que também não significa impedimento, mas definição dos signos
suscetíveis de compor uma marca. Abstraídas estas hipóteses, restam as seguintes: a) brasão, armas,
medalha, bandeira, emblema, distintivo e monumento oficiais; b) letra, algarismo e data, salvo se
revestidos de suficiente forma distintiva; c) expressão, figura, desenho ou sinal contrário à moral e
aos bons costumes, ou que ofenda a honra ou imagem de pessoas, ou atente contra a liberdade de
consciência, crença, culto religioso ou ideia e sentimento dignos de respeito e veneração; d) sinal de
caráter genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o
produto ou serviço a distinguir, ou suas qualidades, salvo quando revestido de suficiente forma
distintiva; e) as cores e suas denominações, salvo se dispostas ou combinadas de modo peculiar e
distintivo; f) indicação geográfica; g) falsa indicação de origem; h) reprodução ou imitação de título
ou apólice públicos, moeda ou cédula; i) termo técnico usado para distinguir produto ou serviço; j) a
forma necessária, comum ou vulgar, bem como a que não pode ser tecnicamente dissociada de um
produto ou de seu acondicionamento.
Ressalte-se que o impedimento legal obsta o registro do signo como marca, mas não a sua
utilização na identificação de produtos ou serviços. Quer dizer, o empresário pode adotar, por
exemplo, a bandeira nacional estilizada para identificar suas mercadorias ou atividade, mas não
poderá exercer nenhum direito de exclusividade sobre ela. Outro exemplo: o fornecedor de massas
alimentícias pode escolher a expressão Macarrão para identificar seus produtos. Não poderá,
porém, registrá-la como marca, porque se trata de signo genérico, isto é, referente ao gênero ao qual
pertence a mercadoria marcada. Não podendo registrar a expressão como marca, não poderá impedir
o seu uso pelos concorrentes. Somente poderá pleitear o direito industrial, se revestir o signo
Macarrão de uma forma suficientemente distintiva. Se entrelaçar a letra M ao restante da palavra,
digamos. Neste caso, terá a exclusividade de uso da expressão, na forma registrada. Qualquer um
poderá continuar usando a palavra, desde que evite o entrelaçamento característico da marca levada
a registro.
6. PROCESSO ADMINISTRATIVO NO INPI
No passado, o direito industrial de alguns países europeus (a França e a Itália, por exemplo)
adotaram um sistema de tramitação dos pedidos de patente e registro em geral, chamado de livre
concessão. Era caracterizado pela definição de que o processo administrativo, preparatório da
expedição da patente ou do registro, dedicava-se unicamente à verificação do atendimento às
formalidades legais, dispensada análise do mérito do pedido (isto é, o preenchimento das condições
de patenteabilidade ou registrabilidade). Ao sistema de livre-concessão se contrapõe o de exame
prévio, adotado nos Estados Unidos e na Alemanha, por exemplo. Carvalho de Mendonça identifica,
ainda, dois outros sistemas: o de aviso prévio e secreto, criado pelo direito suíço, e o de publicação
preventiva, da legislação inglesa de 1907 (1938:124/125). Atualmente, em parte devido à
globalização, em parte às garantias que proporciona, predomina o sistema de exame prévio. Mesmo
na França — em que foi criado o sistema de livre-concessão —, desde 1978, é feito o exame
limitado da novidade da invenção, ou do caráter distintivo da marca (Ripert-Roblot, 1947:408 e
436/437; Gusmão, 1990:7/8).
O direito industrial brasileiro era filiado ao sistema de exame prévio, desde 1923 (cf. Cerqueira,
1946:364/385). A lei de 1996, no entanto, inovou o tratamento da matéria, adotando um sistema
misto: enquanto os pedidos de patente de invenção e de modelo de utilidade, bem como o de registro
de marca continuam sujeitos ao regime do exame prévio, o de registro de desenho industrial está,
agora, submetido a tramitação mais próxima à do de livre concessão.
Note-se que as particularidades do processo administrativo — quer dizer, se há ou não exame
prévio das condições de patenteabilidade ou de registrabilidade —, ao contrário do que pensou
alguma doutrina (Cerqueira, 1946:763/764), não têm necessária relação com a natureza atributiva ou
declaratória do ato de expedição da patente ou do registro. No Brasil, o ato administrativo praticado
pelo INPI, mesmo quando diz respeito ao registro de desenho industrial, é sempre constitutivo do
direito industrial de exclusividade na exploração econômica do bem (LPI, art. 109). Também importa
acentuar que não existe diferença entre os dois regimes, no que diz respeito ao controle jurisdicional
do ato administrativo praticado pelo INPI. Seja no sistema de exame prévio, seja no de livre
concessão, os interessados podem discutir judicialmente se a concessão do direito industrial pela
autoridade administrativa atendeu aos requisitos legais de patenteabilidade ou de registrabilidade. A
diferença entre os dois sistemas tem pertinência unicamente no âmbito do INPI. Quer dizer, na
tramitação de pedido de direito industrial relacionado à invenção, modelo de utilidade ou marca, a
autarquia examina os requisitos da patenteabilidade ou da registrabilidade antes de decidir o pedido;
na tramitação do relacionado a desenho industrial, os requisitos da registrabilidade serão
examinados posteriormente, e mesmo assim apenas em alguns casos.
6.1. Pedido de Patente
O objetivo do processo administrativo do INPI, deflagrado pela apresentação de um pedido de
patente, é o de verificar se este atende às condições de patenteabilidade (isto é, a novidade, a
inventividade, a industriabilidade e o desimpedimento). As principais fases do pedido são o
depósito, a publicação, o exame e a decisão.
O pedido de patente de invenção ou de modelo de utilidade segue tramitação que compreende quatro fases: depósito, publicação, exame e
decisão.
O depósito é um ato mais complexo que o simples protocolo do pedido, em razão dos efeitos que
produz. Ele assinala não só a anterioridade da apresentação da criação industrial ao INPI — o que
implica a definição do titular do direito, em caso de sobreposição de pedidos —, mas também o
início da contagem de importantes prazos, inclusive o da duração da patente. Para que o pedido
possa ser depositado pelo INPI, ele deve atender a determinados requisitos formais, entre os quais
ressalta o da apresentação das “reivindicações” (LPI, art. 19, III). A definição exata e técnica da
invenção ou modelo de utilidade, cuja patente é pleiteada, se encontra neste capítulo do pedido.
Nele, o requerente deve detalhar os aspectos da sua criação industrial que a individualizam, a ponto
de justificar a proteção legal. O exame de mérito e a própria extensão dos efeitos da patente (LPI, art.
41) dependem das reivindicações apresentadas.
Se o requerente ainda não tem condições de apresentar todos os elementos exigidos para o
depósito, mas quer se assegurar quanto à anterioridade de seu pedido, poderá entregá-lo incompleto
ao INPI, contra recibo datado. Neste caso, o INPI concederá prazo de 30 dias ao requerente para o
atendimento às exigências relacionadas à complementação do depósito. Se tempestivamente
atendidas as exigências, o depósito se considera efetivado na data do recibo; se desatendidas,
arquiva-se o pedido, perdendo o requerente a anterioridade que eventualmente o favorecia. O
depósito de patente só poderá ser alterado pelo depositante, com vistas a melhor esclarecer ou
definir seu objeto, antes da apresentação do pedido de exame (LPI, art. 32).
A publicação é o ato que dá aos interessados a notícia da existência do pedido de concessão de
direito industrial. Trata-se de providência indispensável para a tramitação do processo
administrativo. De fato, é necessário que todos os empresários, inventores e demais pessoas
interessadas possam ter conhecimento preciso e detalhado da reivindicação, para defender seus
interesses. O inventor sênior, que depositou seu pedido de patente em primeiro lugar, só poderá
resistir ao pleito do júnior, se tiver conhecimento da invenção reivindicada por este último. A
indispensabilidade da publicação, para o direito industrial, é fato que justifica, muitas vezes, o
empresário preferir manter em segredo de empresa os avanços tecnológicos que seu departamento de
pesquisa alcançou. Isto porque, uma vez tornada pública a reivindicação, qualquer pessoa terá
acesso a esses avanços, e poderá deles se utilizar, cabendo ao empresário as providências para
descobrir a utilização ilícita e bloqueá-la.
O pedido de patente será mantido em segredo, no INPI, pelo prazo de 18 meses, a contar do
depósito (LPI, art. 30). No vencimento do prazo, será feita a publicação, salvo no caso de patente de
interesse da defesa nacional, que tramita totalmente em sigilo (LPI, art. 75). O requerente pode, se for
do seu interesse, solicitar a antecipação da publicação.
Na fase do exame, o INPI investiga as condições de patenteabilidade. Além do inventor-
depositante, qualquer pessoa pode apresentar ao INPI o pedido de exame, nos 36 meses seguintes à
data do depósito. Melhor dizendo, desde a publicação do pedido, e até o encerramento da fase do
exame, podem os interessados apresentar à autarquia os elementos que possuírem, seja para
demonstrar eventual desatendimento às condições de patenteabilidade (por exemplo, no caso de o
pedido colidir com outra patente, anteriormente depositada ou concedida), seja para contribuir com a
outorga do direito industrial (no caso de um outro empresário interessado na futura exploração da
invenção, mediante licença). Não há, propriamente, um prazo para a apresentação da oposição ou da
contribuição, mas como a lei determina que o exame não pode ter início antes de 60 dias da
publicação do pedido (LPI, art. 31, parágrafo único), a cautela recomenda que se observe este termo
para a providência por parte dos interessados. A fase de exame de patente se conclui com a
elaboração, pelos setores técnicos do INPI, do parecer de mérito, acerca do qual terá o depositante
direito de manifestação, caso seja desfavorável à sua pretensão (LPI, art. 36).
Quando a patente tiver por objeto produtos e processos farmacêuticos, a concessão dependerá de
prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (LPI, art. 229-C). Note-se
que, neste caso, além do INPI, também este outro órgão governamental deverá se pronunciar sobre o
atendimento dos requisitos da patenteabilidade. Não estão em causa, por óbvio, questões como a
eficácia do medicamento e a relevância para a saúde pública em sua comercialização massiva,
assuntos de que tratará ou poderá tratar a ANVISA em procedimentos administrativos próprios. Ao
se manifestar sobre o pedido de patente, ela deverá unicamente manifestar seu entendimento sobre
patenteabilidade de produtos que possam pôr em risco a saúde de seus usuários, e nada mais. É este
o correto entendimento adotado pela Advocacia Geral da União (Parecer n. 337/PGF/EA/2010).
Quando não há risco à saúde, cabe exclusivamente ao INPI conferir os requisitos de patenteabilidade
dos produtos e processos farmacêuticos.
Deferido o pedido, é expedida a carta-patente, o único documento comprobatório da existência
do direito industrial sobre a invenção ou modelo de utilidade.
6.2. Pedido de Registro de Desenho Industrial
O pedido de registro de desenho industrial, como já assinalado, tem a sua tramitação disciplinada,
na lei de 1996, segundo o sistema de livre concessão. Deste modo, feito o depósito do design no
INPI, segue-se a sua imediata publicação e concomitante expedição do certificado. Esta sistemática
apenas não será observada em duas hipóteses: se o interessado solicitar sigilo, ou se o pedido não
preencher as condições mínimas para o registro. No primeiro caso, o processo aguardará a
manifestação do requerente ou a fluência do prazo máximo legal, de 180 dias, quando então terá
seguimento, com a publicação. No segundo, o INPI indeferirá de plano o pedido.
O pedido de registro de desenho industrial é o único, no direito brasileiro, submetido ao sistema de livre concessão, que dispensa o exame da
novidade e originalidade previamente à outorga do direito de exclusividade.
Ressalte-se que a publicação do desenho industrial e a expedição do respectivo certificado
independem do exame, pelo INPI, da novidade e da originalidade. A autarquia, assim, apenas poderá
indeferir o registro, se o pedido esbarrar em algum impedimento legal (por exemplo: trouxer desenho
de natureza puramente artística, contrário à moral ou de forma comum) ou se for desatendida
formalidade essencial ao depósito (por exemplo: mais de vinte variações, falta de explicitação do
campo de aplicação do objeto). Se o design é novo e original, este é assunto a se examinar
eventualmente em outra oportunidade. O depositante, portanto, após a expedição do certificado, já é
o titular do direito industrial de exploração com exclusividade do desenho (LPI, art. 109).
Claro que o sistema, ao dispensar o exame prévio, dá ensejo à concessão do mesmo direito
industrial a duas pessoas diferentes. Como a autoridade administrativa não procede à prévia
verificação da novidade e da originalidade, é possível que dois designers portem certificados de
registro de um mesmo desenho industrial. Como resolver esta questão? Em primeiro lugar, não se
deve descartar a hipótese de acordo entre os titulares do registro, até mesmo para somarem esforços
na defesa dos seus direitos de exploração exclusiva, em relação a terceiros. Não existindo acordo,
qualquer um deles poderá requerer ao INPI o exame do objeto do seu registro (LPI, art. 111). Será,
então, emitido parecer técnico sobre a sua novidade e originalidade. Se o INPI constatar que o
desenho, registrado em nome de quem requereu o exame de mérito, atende aos pressupostos de
registrabilidade, ele instaura ex officio o processo de nulidade do outro registro; se constatar o
desatendimento a tais pressupostos, o processo de nulidade, também instaurado de ofício, direcionase ao próprio registro examinado.
6.3. Pedido de Registro de Marca
Apresentado pedido de registro de marca, o INPI realiza um exame formal preliminar, pertinente à
instrução. Se convenientemente instruído, na forma que a lei determina (LPI, art. 155), o pedido é
depositado. Se a instrução estiver incompleta, mas individuar suficientemente o requerente, o sinal e
a classe da marca, então o INPI expede um recibo e fixa as exigências a serem atendidas pelo
requerente. Caso se dê o atendimento, no prazo de 5 dias, o depósito considera-se realizado na data
do recibo. Finalmente, se a instrução estiver muito incompleta, não possibilitando sequer a
expedição do recibo, o pedido simplesmente não será protocolado. O apresentante não tem direito ao
protocolo, se não instruir minimamente o pedido.
Em seguida ao depósito, é feita a publicação da marca, podendo qualquer interessado, nos 60 dias
seguintes, apresentar oposição. Os empresários — diretamente ou por meio de seus agentes de
propriedade industrial — costumam acompanhar as publicações da Revista da Propriedade
Industrial, para verificarem se não estão sendo apresentados pedidos que possam prejudicar seus
interesses. Muitos têm na marca registrada o mais valioso elemento do estabelecimento empresarial,
de forma a justificar gastos na proteção do respectivo direito. Se um concorrente apresenta pedido de
registro de marca, cujo signo é igual ou semelhante ao da registrada em nome daquele empresário,
terá ele interesse em manifestar oposição. O depositante será intimado das oposições ofertadas para,
nos 60 dias seguintes, defender sua pretensão ao registro.
Na sequência, o INPI realiza o exame das condições da registrabilidade (novidade relativa, não
colidência com marca notória e desimpedimento), podendo, se for o caso, impor exigências ao
depositante. Concluída a fase do exame, decide o pedido, concedendo ou negando o registro da
marca.
6.4. Prioridade
O Brasil, como país unionista — isto é, pertencente à União de Paris —, assumiu compromisso
internacional de conferir prioridade a determinados pedidos de patente ou registro industrial. Nos
termos do art. 4º da Convenção (cuja revisão de Estocolmo, de 1967, foi promulgada pelo Dec. n.
75.572/75), quem apresenta pedido de patente de invenção ou de modelo de utilidade, ou deposita
desenho industrial ou marca em qualquer país unionista tem, durante certo prazo, o direito de
prioridade nos demais países da União. O prazo é de 12 meses para as invenções e modelos de
utilidade, e de 6 para os desenhos industriais e marcas, contados da data do primeiro pedido.
Durante esse período, em virtude da sistemática adotada pela União, os inventores, designers e
empresários são protegidos, em matéria de direito industrial, como se não existissem fronteiras entre
os países membros. Assim, se o inventor pede a patente no Japão (unionista desde 1899), e tem
interesse em explorá-la no Brasil (unionista desde 1884), nos Estados Unidos (desde 1887) e
Argentina (desde 1967), deverá, nos doze meses seguintes à apresentação daquele pedido, promover
o depósito da mesma invenção nos três outros países, de acordo com o direito industrial neles
vigente. Ao fazê-lo, deve reivindicar a prioridade, provando a data em que pediu a patente na
agência japonesa de propriedade industrial. Imagine-se que, na tramitação do processo de patente no
Brasil, verifica-se que outro inventor também depositou igual pedido no INPI. Nesse caso, em
observância da Convenção de Paris, a agência brasileira deve analisar a questão da novidade
considerando, para o primeiro inventor, a data do pedido no Japão, e, para o segundo, a do depósito
no Brasil. A reivindicação da prioridade deve ser feita juntamente com o pedido de patente ou de
registro (LPI, arts. 16, 99 e 127).
7. EXPLORAÇÃO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
A concessão pelo INPI do direito industrial assegura ao titular da patente ou do registro a
faculdade de utilização econômica da invenção, modelo, desenho ou marca, com exclusividade.
Ninguém poderá, em outros termos, fazer uso desses bens, sem a sua licença. Quem usurpa direito
industrial alheio sujeita-se, além das sanções de ordem civil, também à persecução penal (LPI, arts.
183 a 190). A lei, no entanto, contempla uma exceção, ressalvando a situação dos usuários anteriores
de boa-fé. As condições para o tratamento excepcional variam segundo a natureza do bem intelectual.
O direito industrial protege os empresários de boa-fé que já exploravam a invenção, desenho ou marca, na data em que foi solicitada a patente
ou o registro. A proteção dos usuários da marca, no entanto, é diferente da conferida aos usuários de invenção ou desenho.
No tocante a invenção, modelo de utilidade e desenho industrial, é reconhecido ao usuário de boafé o direito de continuar a sua exploração econômica, sem o pagamento de qualquer remuneração em
favor do titular da patente ou do registro (LPI, arts. 45 e 110). Note-se que a exceção não beneficia o
inventor ou o designer que, na data do depósito da patente realizado por outro, não explorava
economicamente a sua criação intelectual. Ou seja, o direito industrial protege a pessoa que primeiro
reivindica a sua proteção, não necessariamente a primeira a conceber o bem intelectual. Isto é
correto. Se, contudo, já havia uma atividade econômica organizada em torno de uma invenção,
modelo ou desenho, não há por que sacrificá-la (e aos empregos e riquezas que gera), em
decorrência da tutela conferida ao primeiro que pleiteou a patente ou registro. São plenamente
compatibilizáveis a proteção liberada em favor das criações industriais e o princípio da preservação
da empresa.
Em relação às marcas, a tutela concedida aos usuários anteriores de boa-fé tem extensão diversa.
No caso das patentes e dos desenhos industriais, esses usuários têm assegurado o direito de
continuarem explorando as atividades econômicas, já existentes ao tempo da apresentação do
depósito, sem o pagamento de royalties ao titular do bem industrial. A faculdade não está sujeita a
nenhuma providência junto ao INPI; é suficiente, para o exercício do direito, que os usuários
disponham de meios de prova da boa-fé e da anterioridade da exploração econômica, para a
eventualidade de virem a ser judicialmente acionados. Em relação à marca, no entanto, a situação é
bem diferente. O usuário de boa-fé, que explorava a marca no Brasil há pelo menos 6 meses, tem
direito de precedência ao registro. Quer dizer, ele não pode simplesmente continuar utilizando a
marca, mas deve apresentar também o seu pedido de registro. E deve fazê-lo, entendo, nos 60 dias
seguintes à publicação do pedido da marca concorrente, que é o prazo assinalado em lei para as
oposições (LPI, art. 158). Negligenciando na providência, o registro será outorgado ao concorrente
que o solicitara, hipótese em que o usuário de boa-fé pode ser impedido de continuar usando a
marca.
7.1. Licença de Direito Industrial
A exploração do direito industrial se realiza direta ou indiretamente. Na primeira forma, o próprio
titular da patente ou do registro assume os riscos da atividade empresarial, fabricando e
comercializando ele mesmo o objeto inventado ou desenhado, ou usando a marca nos produtos ou
serviços que oferece ao mercado. A forma indireta de exploração do direito industrial decorre da
outorga de licença de uso, pelo titular da patente ou do registro em favor de um empresário. Muito
comum, também, é a simultânea exploração direta e indireta do bem industrial.
A licença é o contrato pelo qual o titular de uma patente ou registro, ou o depositante
(licenciador), autoriza a exploração do objeto correspondente pelo outro contratante (licenciado),
sem lhe transferir a propriedade intelectual. A autorização pode ser concedida com ou sem
exclusividade e admite limitações temporais ou territoriais, hipóteses em que os seus efeitos se
circunscrevem aos âmbitos definidos pelas partes. A averbação do instrumento no INPI, embora não
seja requisito de validade do ato, ou de eficácia entre os contratantes, define-se como condição para
que a licença produza efeitos perante terceiros, em especial o fisco e as autoridades monetárias.
Deste modo, a dedutibilidade fiscal dos royalties pagos pelo licenciado ao licenciador, ou a remessa
de divisas para o exterior, a este título, depende da averbação.
Entre as partes é aplicável, subsidiariamente às normas estabelecidas pela legislação de direito
industrial, o regime jurídico do contrato de locação de coisas móveis (CC, arts. 565 a 578);
equiparando-se o licenciador ao locador e o licenciado ao locatário (Cerqueira, 1946:438). Em
decorrência, salvo acordo em contrário das partes, o cancelamento, anulação ou caducidade do
direito industrial, bem como o indeferimento do pedido de patente ou registro, exoneram o
licenciador de suas obrigações e não importam o dever de indenizar o licenciado. Por outro lado,
como se trata de contrato intuitu personae, o licenciado não pode, sem autorização expressa do
licenciador, sublicenciar a patente ou o registro. Também decorre desta característica a rescisão da
licença em virtude de cessão do direito industrial (salvo se o instrumento prevê cláusula de vigência
perante cessionários e está averbado no INPI).
Normalmente, a licença é ato voluntário, um acordo amplamente negociado entre o licenciador e o
licenciado. A lei prevê, contudo, hipóteses em que o titular da patente é obrigado, pelo INPI, a
licenciar o seu uso em favor de terceiros interessados (LPI, arts. 68 a 71). São as seguintes: a)
exercício abusivo do direito, como, por exemplo, a cobrança de preços excessivos; b) abuso do
poder econômico, em que a patente é usada para domínio de mercado; c) falta de exploração integral
do invento ou modelo no Brasil, quando viável economicamente a exploração; d) comercialização
insatisfatória para atendimento das necessidades do mercado; e) dependência de uma patente em
relação a outra, se demonstrada a superioridade da patente dependente, e a intransigência do titular
da dependida em negociar a licença; f) emergência nacional ou interesse público, declarado por ato
do Poder Executivo Federal.
O interessado em explorar a invenção ou modelo, patenteado por outra pessoa, pode, decorridos 3
anos da concessão da patente, requerer ao INPI a licença compulsória, se presente uma das hipóteses
que a lei autoriza. Feito o pedido, o titular será intimado a se manifestar sobre as condições
oferecidas, seguindo-se a instrução do processo e a decisão do INPI, concessiva ou denegatória da
licença. As licenças compulsórias são outorgadas sem exclusividade e com cláusula proibitiva de
sublicenciamento, ficando garantida a remuneração do titular do direito industrial, fixada, se
necessário, mediante arbitramento. O licenciado, no licenciamento compulsório, tem o prazo de 1
ano, para dar início à exploração econômica da patente, sob pena de cassação da licença.
7.2. Cessão de Direito Industrial
A cessão de direito industrial é o contrato de transferência da propriedade industrial, e tem por
objeto a patente ou registro, concedidos ou simplesmente depositados. A cessão pode ser total,
quando compreende todos os direitos titularizados pelo cedente, ou parcial. Esta última pode se
limitar quanto ao objeto (cede-se parte das reivindicações depositadas ou patenteadas, por exemplo)
ou quanto à área de atuação do cessionário (transfere-se o direito de exploração econômica com
exclusividade dentro de certo país, por exemplo). Não há cessão temporalmente limitada, na medida
em que ela se define como o ato de transferência da propriedade industrial, e não apenas de
autorização de seu uso (hipótese relacionada a outro contrato intelectual, a licença).
Rege-se a cessão de direito industrial pelas normas atinentes à cessão de direitos, observadas as
disposições específicas da legislação de propriedade industrial (LPI, arts. 58 a 60, 121, 134 e 135).
Por esta razão, o cedente responde, perante o cessionário, pela existência do direito à data da cessão
(CC, art. 295). Ou seja, se for declarado o cancelamento, a nulidade ou caducidade da patente ou do
registro, por fato anterior à transferência, o cessionário poderá rescindir o contrato e pleitear perdas
e danos. O mesmo se verifica caso o objeto do direito industrial não apresente o desempenho
propagado pelo cedente. Com mais precisão: se a invenção ou o modelo de utilidade não revelam a
eficiência que lhes foi atribuída, se o desenho industrial ou a marca não estimulam o consumo na
medida garantida pelo instrumento de cessão, poderá o cessionário optar entre a rescisão do
contrato, com indenização, ou o abatimento proporcional do preço. Não se responsabiliza, contudo, o
cedente pelos resultados unilateralmente esperados pelo cessionário e não obtidos com a exploração
do direito industrial cedido.
A licença de direito industrial está para a cessão, como a locação está para a venda.
Na hipótese de o cedente aperfeiçoar a sua invenção, poderá obter a patente do aperfeiçoamento,
não estando obrigado a transferi-lo ao cessionário. Contudo, em se tratando de cessão total, ele não
poderá explorar o aperfeiçoamento junto com a invenção, sem a licença do cessionário, ou do atual
titular da patente, salvo se o instrumento de cessão dispõe em contrário. De qualquer modo, o
cedente tem o direito moral à revelação de seu nome, quando veiculada pelo cessionário qualquer
notícia sobre o inventor, mesmo após sucessivas cessões.
7.3. “Secondary Meaning” e Degeneração de Marca Notória
Duas são as espécies de marca notória no direito brasileiro: as de alto renome e as notoriamente
conhecidas. Como visto, elas são protegidas de modo especial porque nenhum outro empresário,
concorrente ou não, pode adotá-las, mesmo que esteja completamente afastada a possibilidade de
confusão entre os consumidores.
Dois fenômenos mercadológicos são típicos da marca notória. De um lado, o amplo conhecimento
que os consumidores têm dela acaba dando distintividade a expressões meramente descritivas —
que, não fosse a notoriedade da marca, seriam inaptas a cumprir a função de identificar determinado
produto ou serviço. Trata-se de fenômeno designado pela locação inglesa secondary meaning. A
expressão descritiva do produto ou serviço passa a ter um segundo significado, que é o de identificar
um deles em especial. A notoriedade gera, então, a distintividade. Por exemplo, ninguém pode
registrar com exclusividade a expressão Fruta para identificar as frutas que comercializa, em razão
de seu caráter meramente descritivo. Mas se essa marca acabar se tornando notória na identificação,
pelos consumidores, de um determinado fornecedor desse produto, o amplo conhecimento justificará
a proteção liberada pela lei para as marcas notórias.
Interessa-nos aqui, também, um outro fenômeno mercadológico típico das marcas notórias, que é
exatamente o inverso do secondary meaning. O fenômeno da degeneração, em que a notoriedade
elimina a distintividade.
A degeneração de marca notória é um interessante fenômeno mercadológico, que se verifica
quando os consumidores passam a identificar o gênero do produto pela marca de um de seus
fabricantes (cf. Sampaio, 1995). Marcas como aspirina, gilete e fórmica encontram-se degeneradas,
na medida em que deixaram de identificar certo produto, fornecido por determinado empresário, e
passaram a se referir ao gênero, incluindo produtos concorrentes. A degeneração é altamente
prejudicial ao empresário, porque a marca deixa de cumprir com a sua função essencial. Todos os
investimentos em publicidade para tornar notória a marca podem se perder, pelo exagero da
notoriedade. Os investimentos para reverter processo de degeneração em curso, por sua vez, devem
ser tão ou mais elevados, e sua eficácia não é garantida, podendo até mesmo contribuir para
degenerar mais ainda a marca.
Há quem considere conceitos sinônimos os de degeneração e diluição (Moro, 2003:131). Também
há doutrinadores que tomam a diluição como gênero, do qual a degeneração seria espécie (Barbosa,
2003:816). Bem examinados os institutos, porém, constata-se tratarem de temas diversos. Em comum
se percebe o elevado risco de desvalorização da marca em razão da erosão da distintividade, mas
cessa nesse ponto a convergência. Na verdade, diluição não é, como a degeneração, um fenômeno
mercadológico, algo que se espraia entre os consumidores usuários de uma mesma língua. A diluição
é, na verdade, resultante de práticas adotadas por outros empresários (concorrentes ou não) que
podem levar à perda de valor de uma marca notória.
Não se consegue com facilidade identificar quem provoca a degeneração da marca, no sentido de
ter sido o primeiro a se apropriar da expressão como indicativa do gênero e não da espécie. Mesmo
que o empresário titular da marca tenha motivado ou dado causa à degeneração, a pessoa ou pessoas
que passaram a tomá-la como repertório de sua língua não são identificáveis. Já na diluição, é
sempre prontamente identificável o responsável pela prática empresarial apta a impor desvalor à
marca diluída. No direito norte-americano, em que a noção de diluição se construiu, costumam-se
diferenciar duas hipóteses: de um lado, a diluição-turvação (dilution by blurring) e, de outro, a
diluição--mácula (dilution by tarnishment) (Weston-Maggs-Schechter, 1950:215/224). Na diluiçãoturvação, a marca famosa é diluída em razão de seu uso por outros empresários, na identificação de
negócio, produto ou serviço não concorrente (Schechter-Thomas, 2003:710/711). Aquela associação
imediata entre o signo empregado na marca e o produto, que os investidores em publicidade
procuram despertar nos consumidores, é prejudicada pela existência de outros produtos (não
concorrentes) que ostentam a mesma marca ou parecida. Já a diluição-mácula compromete a
reputação da marca, em razão da qualidade inferior dos negócios, produtos ou serviços não
concorrentes operantes ou oferecidos no mercado por outros empresários (Schechter-Thomas,
2003:715/716).
Ao instituto da diluição (turvação ou mácula) do direito norte-americano corresponde o da
repressão às condutas parasitárias, construído no direito europeu. A coibição da diluição atende, na
common law, ao mesmo objetivo que, nos direitos de tradição românica, busca a responsabilização
por condutas parasitárias. Quando as marcas deixaram de indicar, primordialmente, a origem do
produto e passaram a servir de referência à sua qualidade e reputação, empresários não concorrentes
procuraram se beneficiar, indevidamente, do prestígio associado a marcas conhecidas, e o direito
marcário precisou desenvolver novos padrões para proteger os titulares destas, já que o princípio da
especificidade não se mostrara suficiente ao novo cenário. No direito norte--americano, também por
vezes é invocada a doutrina da expansão para assegurar este círculo de proteção aos titulares de
marcas afamadas (Miler-Davis, 1980:180/181). Não há, portanto, equivalência entre os institutos da
diluição e da degeneração. E se ao titular de marca diluída é reconhecido o direito de sempre buscar
a reparação de seus danos contra o empresário não concorrente responsável pela prática que
desencadeou o processo de desvalorização, ao titular da marca degenerada nem sempre se atribui
este direito.
Em outros países, a degeneração de marcas pode ser causa de extinção do direito industrial (na
Itália, por exemplo; cf. Galgano, 1992:98), ou fundamento para impedir o uso de marca semelhante
por outro empresário. Embora não se afastem tais consequências, a degeneração de marca notória
tem relevância jurídica, no direito brasileiro, especificamente na hipótese de responsabilização civil
de um empresário, por ato prejudicial ao titular do registro. Se, por exemplo, na publicidade de um
televisor, associa-se o produto a uma cerveja bastante conhecida, isto pode — de acordo com as
características da mensagem publicitária — contribuir para o processo de degeneração da marca da
bebida. Este tipo de publicidade, ressalte-se, não é necessariamente lesivo ao direito industrial
titularizado pelo fabricante da cerveja (ver posição contrária de Gusmão, 1989); ela somente importa
responsabilidade do anunciante do televisor, se resta caracterizado o efeito degenerativo do anúncio.
A lei, de fato, ampara o interesse do titular da marca em impedir que a sua citação em publicidade,
comparativa ou não, possa ter efeito degenerativo. De acordo com os arts. 130, III, e 131 da LPI,
zelar pela integridade material e reputação da marca é direito decorrente do depósito ou do registro,
inclusive em relação ao seu uso em propaganda alheia.
8. EXTINÇÃO DO DIREITO INDUSTRIAL
Extingue-se o direito industrial pelas seguintes razões: a) decurso do prazo de duração; b)
caducidade; c) falta de pagamento da retribuição devida ao INPI; d) renúncia do titular; e)
inexistência de representante legal no Brasil, se o titular é domiciliado ou sediado no exterior.
O primeiro fator extintivo está ligado à limitação no tempo do direito de propriedade intelectual.
Ao contrário de outras propriedades, a relacionada a bens industriais, mesmo se usufruída
ininterruptamente pelo seu titular, encontra na fluência de um termo legal o seu fim. Varia para cada
bem imaterial o prazo de duração. A patente de invenção dura 20 anos, contados da data do depósito,
ou 10 da concessão, o que ocorrer por último. Para as patentes de modelo de utilidade, o prazo é de
15 anos, a partir do depósito, ou 7, após a concessão, também o que ocorrer por último. Observe-se
que, tanto para a invenção como para o modelo, na hipótese de retardamento do processo no âmbito
do INPI, em razão de pendência judicial ou por força maior, o prazo não poderá ser contado da
concessão (LPI, art. 40).
No caso da patente, os prazos de duração são improrrogáveis.
O registro de desenho industrial, por sua vez, dura 10 anos, a contar do depósito, admitidas até 3
prorrogações sucessivas, por período de 5 anos cada (LPI, art. 108). Em outros termos, o designer
poderá titularizar a exclusividade sobre a sua criação industrial pelo prazo máximo de 25 anos, a
partir do depósito. Por fim o registro de marca vigora por 10 anos, contados da concessão, sendo
cabíveis sucessivas prorrogações, por igual período. Deste modo, o empresário pode, a rigor,
preservar o seu registro de marca, enquanto considerar interessante (LPI, art. 133). Tanto no caso do
desenho industrial, como no da marca, o pedido de prorrogação deve ser apresentado durante o
último ano de vigência do registro. Perdido o prazo, a lei ainda dá ao titular do direito industrial
mais uma derradeira chance (180 dias para os desenhos, 6 meses para as marcas), desde que pague
retribuição adicional.
Em termos gerais, a patente de invenção dura vinte anos, e a de modelo de utilidade quinze, enquanto o registro de desenho industrial dura dez
anos. Estes prazos são contados do depósito; os dois primeiros não admitem prorrogação, mas o último comporta até três prorrogações
sucessivas, de cinco anos cada.
O registro de marca dura dez anos, contados da concessão, e é sempre prorrogável.
A caducidade é fator extintivo decorrente do abuso ou desuso no exercício do direito industrial.
Em relação à patente, se o titular não explorar (diretamente ou por licença voluntária) a invenção ou
o modelo, de modo a atender às demandas do mercado, mesmo tendo decorridos 3 anos da
concessão, qualquer interessado poderá pleitear a licença compulsória. Decorridos 2 anos do
licenciamento compulsório, a caducidade poderá ser declarada pelo INPI, de ofício ou a
requerimento de interessado no caimento da patente em domínio público, se ainda persistir o abuso
ou o desuso. A declaração de caducidade pressupõe processo administrativo, em que o interessado
tem a oportunidade de se defender (LPI, arts. 80 a 83).
Em relação ao registro de marca, a caducidade se caracteriza pela fluência do prazo de 5 anos
sem exploração econômica no Brasil. O empresário titular do registro deve, no quinquênio
subsequente à concessão, iniciar o uso da marca, imprimindo-a nas embalagens, notas fiscais,
uniformes, veículos e anúncios publicitários. Por outro lado, se ocorrer interrupção de uso, ele
deverá ser retomado antes do transcurso daquele prazo. Cabe anotar que a utilização da marca, feita
com significativas diferenças em relação ao sinal constante do certificado de registro, equivale, para
fins de caducidade, ao desuso. Não existe caducidade do registro de desenho industrial.
A renúncia aos direitos da patente ou do registro, por sua vez, é fator extintivo decorrente de ato
unilateral do seu titular. A lei põe a salvo os direitos de terceiros, como licenciados ou franqueados,
ao condicionar a sua aceitação, pelo INPI, à inexistência de prejuízos para eles. Existindo, portanto,
averbação de licença de uso em vigor, o INPI não poderá aceitar a renúncia desacompanhada de
instrumento de anuência dos contratantes interessados. Finalmente, a derradeira hipótese de extinção
do direito industrial é a falta de representante legal no Brasil, inclusive com poderes para receber
citação judicial, quando domiciliado ou sediado no exterior o titular da patente ou do registro (LPI,
art. 217).
Extinto, por qualquer motivo, o direito industrial, o respectivo objeto cai em domínio público. Isto
significa que qualquer pessoa poderá utilizá-lo e dar-lhe exploração econômica livremente, sem que
o criador possa reclamar, ou exigir remuneração. Além da extinção, outros fatores também importam
o domínio público de bens industriais. Se o processo administrativo de patente, após a publicação, é
arquivado por inércia do requerente em atender às exigências do INPI, a invenção ou o modelo de
utilidade não poderão mais ser patenteados, já que está insuperavelmente comprometida a sua
novidade. Outro exemplo: se o depositante de patente ou registro no exterior não pedir a extensão ao
Brasil de seu direito, no prazo assinalado pela União de Paris, o bem industrial cai em domínio
público, no território brasileiro (salvo se estiver em tramitação processo iniciado antes do término
do prazo de prioridade).
9. NOME EMPRESARIAL
Nome empresarial é aquele utilizado pelo empresário para se identificar, enquanto sujeito
exercente de uma atividade econômica. Se a marca identifica, direta ou indiretamente, os produtos e
serviços, o nome empresarial irá identificar o sujeito de direito que os fornece ao mercado
(normalmente, uma pessoa jurídica revestida da forma de uma sociedade limitada ou anônima). No
passado, quando as atividades comerciais eram, em regra, exploradas individualmente — isto é,
predominavam comerciantes pessoas físicas, e não jurídicas —, era comum a adoção de um nome
específico, um tanto diferente do nome civil, para a identificação do sujeito, enquanto comerciante.
Essa prática, na verdade, correspondia a uma estratégia negocial. Ao adotar a abreviatura,
acompanhada geralmente de referência ao ramo de comércio a que se dedicava, o comerciante se
distinguia — e, indiretamente, aos seus produtos — da concorrência. Era mais fácil ao consumidor
reportar-se ao comerciante pelo nome comercial, do que pelo civil. Em outros termos, com base em
seu nome de batismo, o comerciante costumava criar outro nome, de mais fácil assimilação pelos
consumidores e demais agentes econômicos, passando a usá-lo nos atos de comércio.
Vai longe o tempo em que o empresário se valia deste expediente para se distinguir da
concorrência. Hoje em dia, o nome empresarial não cumpre mais a função mercadológica do
passado. Foi substituído, na função, pela marca. Se antes, os consumidores formulavam o conceito
acerca da qualidade dos produtos, pelo prestígio do nome do comerciante que os vendia, na
economia de massa opera-se uma inversão: conhece-se a marca, e é por meio dela que,
indiretamente, se identifica o empresário. Ou seja, antigamente, a seda era boa porque havia sido
adquirida na Casa de um certo comerciante. Hoje em dia, a empresa é conceituada porque vende a
seda identificada por uma conhecida marca.
Embora o nome de identificação do sujeito que explora a atividade econômica não tenha mais a
mesma importância mercadológica que possuía no passado, ele ainda goza de proteção jurídica em
razão de outro aspecto relevante: a reputação do empresário entre fornecedores e financiadores. De
fato, o nome é, atualmente, uma referência muito mais importante no meio empresarial, do que no
mercado de consumo. E é exatamente em razão do papel que tem, enquanto instrumento de reputação
(boa ou má) do empresário, que o direito não o pode ignorar. Por outro lado, essa função do nome
empresarial (ligada mais às relações do seu titular com outros empresários, e menos às voltadas aos
consumidores) justifica a diferença do tratamento jurídico que lhe é dispensado, frente ao das
marcas.
O nome que identifica o empresário é considerado, em alguns direitos estrangeiros, elemento
integrante do estabelecimento empresarial; constitui, nesses países, bem de propriedade do titular da
empresa, como, aliás, define expressamente a ley de marcas y designaciones argentina, de 1981. A
doutrina brasileira debateu à exaustão a “natureza jurídica” do nome comercial, propondo alguns a
tese do direito pessoal, pela qual o nome é tido como a expressão da personalidade, agregado à
pessoa do comerciante e, consequentemente, inalienável e impenhorável. Corresponde à visão de
Pontes de Miranda (1956, 16:222/231). Contraposta à tese do nome como direito da personalidade,
há a do direito patrimonial, defendida, entre outros, por Clóvis Beviláqua (1908). A distinção entre
nome comercial subjetivo e objetivo é, por outro lado, uma tentativa de conciliar as duas
concepções, ao reconhecer que, além de atributo da personalidade do comerciante (feição subjetiva),
o nome é, ao mesmo tempo, elemento de identificação da própria atividade (feição objetiva). Para
Gama Cerqueira, esta distinção é suficiente para desembaraçar a matéria doutrinária, na medida em
que o sentido objetivo de nome comercial o torna uma propriedade incorpórea, suscetível de
proteção pelo direito industrial (1946:1.174; também Martins, 1957:490).
O Código Civil parece ter optado pela tese do direito pessoal. O art. 1.164 do Código Civil, que
proíbe a alienação do nome empresarial, deve, segundo alguns autores, ser interpretado em
consonância com o art. 16, que inclui o direito ao nome entre os “da personalidade”, que são, por
definição, intransmissíveis (Carvalhosa, 2003: 730/732). Deve-se, no entanto, levar em conta que o mercado de fato atribui ao nome empresarial um valor, como
intangível da empresa. Ora, se há quem, em determinadas circunstâncias, paga pela utilização do
nome empresarial criado pelo exercente de atividade econômica, então negar-lhe a condição de bem
do patrimônio desse último pode ser uma solução legal dissociada da realidade. Se o direito não
reconhecer a natureza patrimonial do nome adotado pelo empresário, os conflitos eventualmente
ligados à sua negociação não poderão ser convenientemente equacionados, na medida em que a
própria juridicidade do negócio é questionável.
9.1. Espécies de Nome Empresarial
Duas são as espécies de nome empresarial: a firma e a denominação. Alguns empresários somente
podem adotar firma, outros apenas denominação, e há, ainda, os que podem optar por uma ou outra
espécie. O empresário individual, por exemplo, só pode adotar nome empresarial da modalidade
firma; a sociedade anônima só denominação; a sociedade limitada pode optar por qualquer uma
delas. As diferenças entre firma e denominação são duas: a primeira diz respeito à estrutura do
nome empresarial; a segunda, à função.
As espécies de nome empresarial são a firma e a denominação. Diferenciam-se quanto à estrutura e a função.
Em termos de estrutura, a firma tem por base necessariamente um nome civil, seja do próprio
empresário individual, seja de sócio da sociedade empresária. Se Antonio da Silva se dedica ao
comércio de antiguidades, ele deverá inscrever como firma o seu nome civil, por extenso (Antonio
da Silva) ou abreviado (A. Silva, Silva), acompanhado ou não de menção ao ramo de atividade (A.
Silva — Antiguidades, Silva — Antiquário). Se ele contrata uma sociedade limitada com Benedito
Costa, a firma social será formada pelo nome deles, por extenso ou abreviado (Silva & Costa Ltda.,
A. Silva & B. Costa Ltda.), admitindo-se a substituição do nome de sócio (ou sócios, se três ou mais)
pela partícula “& Cia.”, bem como a referência ao ramo de atividade explorado (Silva & Cia. Ltda.
— Antiquário, Benedito Costa & Cia. — Comércio de Antiguidades Ltda.). A expressão “razão
social” designa o mesmo que firma, quando titularizada por pessoa jurídica.
A denominação, por sua vez, pode tomar por base qualquer expressão linguística, seja ou não o
nome civil de sócio da sociedade empresária. A sociedade limitada entre Antonio da Silva, Benedito
Costa e Carlos de Souza pode adotar como denominação Silva, Costa & Souza Ltda. ou Antiquário
Bandeirante Ltda.; se constituem uma sociedade anônima, a denominação poderá ser Companhia
Bandeirante de Antiguidades, Antiquário Carlos de Souza Sociedade Anônima ou ABC —
Comércio de Antiguidades S/A. Quando a expressão linguística escolhida pelos sócios para a
estrutura da denominação não é nome civil, chama-se “elemento fantasia”.
Nota-se que a estrutura do nome empresarial nem sempre é suficiente para distinguir a
correspondente espécie, já que tanto a firma como a denominação podem se basear em nomes civis.
Claro, se o nome identifica sociedade anônima, sabe-se que se trata de denominação, porque este
tipo societário não pode adotar firma; por outro lado, como o empresário individual não pode se
identificar por meio de denominação, seu nome empresarial será necessariamente firma. O problema
se coloca, por exemplo, em relação à sociedade limitada, que pode optar entre as duas modalidades
de nome empresarial. Quando uma sociedade deste tipo se identifica a partir do nome civil de seus
sócios (Silva & Cia. Ltda. — Comércio e Indústria ou Benedito Costa Turismo Ltda.), a espécie de
nome empresarial adotada será definida por sua função. Quer dizer, a firma possui uma função que a
denominação não tem: ela serve também de assinatura do empresário. No passado, o representante
legal da sociedade limitada, ao representá-la, não devia se utilizar de sua própria assinatura; a boa
técnica recomendava que ele fizesse uso, nesses casos, de outra assinatura, correspondente à razão
social. Se José Penteado era gerente de Silva & Cia. Ltda., ele devia possuir duas assinaturas: uma,
correspondente ao seu nome civil, para os atos de seu interesse e outra, representativa da firma da
sociedade, para os de interesse desta.
Está em absoluto desuso a prática de dupla assinatura. Há muito tempo, os gerentes de sociedade
adotam o mesmo e único sinal, como assinatura, tanto nos atos de interesse pessoal, como na
qualidade de representante da pessoa jurídica. Assim, a distinção entre firma e denominação, para a
sociedade limitada, acaba se reduzindo a uma questão formal, de importância nenhuma: se na última
página do contrato social, encontra-se o campo “firmas por quem de direito”, com as assinaturas dos
gerentes, então o nome empresarial é do tipo firma; caso não se encontre esse campo, será do tipo
denominação.
9.2. Formação e Proteção do Nome Empresarial
A formação do nome empresarial deve atender a dois princípios: a veracidade e a novidade (Lei
n. 8.934/94, art. 34). O princípio da veracidade proíbe a adoção de nome que veicule informação
falsa sobre o empresário a que se refere. O da novidade impede a adoção de nome igual ou
semelhante ao de outro empresário. Os dois parâmetros se justificam, em última análise, na coibição
da concorrência desleal e na preservação da reputação dos empresários, junto aos seus fornecedores
e financiadores. Para cumprir satisfatoriamente a função de identificar o sujeito de direito exercente
de atividade econômica, o nome empresarial não pode dar ensejo a confusões, e deve ser
suficientemente distinto.
Lei n. 8.934/94
Art. 33. A proteção ao nome empresarial decorre automaticamente do arquivamento dos atos constitutivos de firma individual e de sociedades,
ou de suas alterações.
Art. 34. O nome empresarial obedecerá aos princípios da veracidade e da novidade.
Em razão do princípio da veracidade, a retirada, expulsão ou morte de sócio de sociedade
limitada impõe a alteração da firma, quando o dissidente, expulso ou falecido havia emprestado o
seu nome civil à composição do nome empresarial. Assim, saindo, sendo expulso ou falecendo o
sócio de sociedade limitada, cujo nome empresarial aproveitava o seu nome civil, impõe-se a
mudança para excluir a referência ao dissidente, expulso ou falecido, seja o nome empresarial firma
(CC, art. 1.165) ou denominação (CC, art. 1.158, § 2º, in fine). Quando se trata de sociedade
anônima, o princípio da veracidade é menos restritivo, já que impede apenas a adoção de nome civil
de quem não é “fundador, acionista, ou pessoa que, por qualquer outro modo, tenha concorrido para o
êxito da empresa” (CC, art. 1.160, parágrafo único; Lei n. 6.404/76, art. 3º, § 1º). Deste modo, da
denominação da sociedade anônima pode constar nome civil de quem não é, nunca foi ou deixou de
ser sócio, desde que ele a tenha fundado ou contribuído para o seu êxito.
O princípio da novidade, ao seu turno, representa a garantia de exclusividade do uso do nome
empresarial (CC, art. 1.166). O primeiro empresário que arquivar firma ou denominação, na Junta
Comercial, tem o direito de impedir que outro adote nome igual ou semelhante, já que isso importaria
desrespeito à novidade. O primeiro empresário pode exercer a prerrogativa na esfera administrativa,
opondo-se ao arquivamento do ato constitutivo do concorrente, ou na judicial. A última via é mais
comum, em vista da brevíssima duração dos prazos fixados na Lei n. 8.934/94, para o arquivamento
de ato constitutivo de sociedade empresária.
O DNRC recomenda às Juntas o seguinte critério, na observância do princípio da novidade: a)
devem ser comparados os nomes por inteiro, quando colidem duas firmas individuais ou razões
sociais; b) devem ser comparadas por inteiro, também, as denominações compostas por expressões
comuns, de fantasia, de uso generalizado ou vulgar; c) devem ser, por fim, comparados os núcleos
das denominações compostas por expressões de fantasia incomum. Nessas comparações,
consideram-se iguais as expressões homógrafas e semelhantes as homófonas (IN-DNRC n. 104, art.
8º). São criticáveis tais critérios, tendo em vista a sua generalidade e abstração, frente à
multiplicidade de hipóteses que se podem verificar. Na verdade, os parâmetros fixados pelo DNRC,
para a avaliação da novidade do nome empresarial, se destinam a orientar e uniformizar a atuação
dos órgãos do registro de empresa, mas, por evidente, não estão isentos de questionamento junto ao
Poder Judiciário, caso se revelem inapropriados em algum caso concreto. Até mesmo porque não
possuem alicerce legal, mas regulamentar.
O uso indevido de nome empresarial caracteriza crime de concorrência desleal (LPI, art. 195, V),
cabendo a responsabilização civil do usurpador, pelos danos derivados do desvio de clientela (LPI,
art. 209).
9.3. Diferenças entre Nome Empresarial e Marca
O nome empresarial e a marca se reportam a diferentes “objetos semânticos”. O primeiro
identifica o sujeito de direito (o empresário, pessoa física ou jurídica), enquanto a marca identifica,
direta ou indiretamente, produtos ou serviços. Sob o ponto de vista econômico e mercadológico, é
oportuno e vantajoso adotar-se, nos dois designativos, o mesmo núcleo linguístico. Assim, o Banco
Itaú S/A é o nome empresarial que identifica o sujeito de direito titular da marca de serviços
bancários Itaú. Para o direito, no entanto, é irrelevante se há ou não identidade linguística. A
proteção dispensada a cada designativo será a prevista no correspondente regime jurídico. São
quatro as diferenças entre esses regimes: a) órgão registrário; b) âmbito territorial da tutela; c)
âmbito material; d) âmbito temporal.
O primeiro elemento distintivo entre a proteção do nome e da marca diz respeito ao órgão em que
são registrados. A proteção ao nome empresarial deriva da inscrição da firma individual, ou do
arquivamento do ato constitutivo da sociedade, na Junta Comercial, ao passo que a da marca decorre
do registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Um não substitui o outro, em nenhuma
hipótese. Só têm proteção o nome empresarial arquivado ou registrado na Junta e a marca registrada
no INPI.
A segunda diferença é uma consequência da primeira: a proteção conferida pela Junta Comercial
ao nome se exaure nos limites do Estado a que ela pertence, enquanto que os efeitos do registro de
marca são nacionais (CC, art. 1.166). Ou seja, o empresário sediado em Santa Catarina tem, a partir
do arquivamento de seu ato constitutivo no registro de empresas, protegido o seu nome empresarial
em todo o Estado catarinense. Se abrir filiais no Paraná e no Rio Grande do Sul, terá neles a mesma
proteção. Nenhum outro empresário poderá se estabelecer, ou abrir filial, com nome idêntico ou
semelhante, nestes três Estados. Tais arquivamentos, contudo, não impedem que, em outro Estado da
Federação (Rio de Janeiro, suponha-se), seja arquivado ato constitutivo com nome empresarial
colidente. Ressalte-se, para precisar, que tanto o empresário catarinense pode vender seus produtos
ou serviços no Rio de Janeiro, como o carioca pode fazê-lo em Santa Catarina, Paraná ou Rio
Grande do Sul (desde que não abram filiais). Um, contudo, não poderá impedir que o outro se utilize
do nome registrado na respectiva Junta.
Como o registro do nome empresarial tem abrangência estadual, e não nacional, os seus efeitos
estão restritos aos Estados em que o empresário tem sede ou filial. Para estender a tutela ao país
todo, ele deve providenciar o arquivamento de pedido de proteção ao nome empresarial , nas Juntas
dos demais Estados (CC, art. 1.166, parágrafo único; IN-DNRC n. 104, art. 11, §§ 1º e 2º). O mesmo
não ocorre com a marca, que, registrada no INPI, estará protegida em todo o território brasileiro (e,
até mesmo, nos demais países unionistas, se presentes as condições da Convenção de Paris).
A terceira diferença está relacionada ao âmbito material da tutela. A marca tem a sua proteção
restrita, em razão do princípio da especificidade, ao segmento dos produtos ou serviços passíveis de
confusão pelo consumidor (salvo no caso excepcional da marca de alto renome, cuja proteção é
especial e abrange todas as classes), enquanto o nome empresarial é protegido independentemente do
ramo de atividade econômica a que se dedica o empresário. Como visto acima, a proteção liberada
ao nome empresarial não visa apenas impedir confusão entre os consumidores, mas principalmente
preservar a reputação do titular da empresa, junto aos fornecedores e financiadores. O protesto de
títulos em nome de um pode prejudicar o crédito de outro empresário, com nome igual ou semelhante.
E este prejuízo independe do específico ramo de negócio explorado por eles. Por tal razão, aquele
que primeiro registrar o nome na Junta Comercial pode impedir que outro adote, no Estado
correspondente, nome igual ou semelhante, ainda que as atividades não sejam concorrentes.
Finalmente, a quarta diferença é ligada ao prazo de duração da proteção. Enquanto o direito de
utilização exclusiva da marca extingue--se em dez anos, se não for solicitada pelo interessado a
prorrogação, o do nome empresarial vigora por prazo indeterminado. Enquanto a sociedade estiver
em funcionamento regular, ela terá tutelado o interesse em relação ao nome empresarial. Apenas a
declaração de inatividade da empresa pode importar a extinção do direito ao nome empresarial
contra a vontade de seu titular (Lei n. 8.934/94, art. 60, § 1º, in fine).
O regime protetivo do nome empresarial, assim, difere-se do da marca, nos aspectos assinalados.
Quando colidem nomes, portanto, o critério da anterioridade no Estado ampara o empresário, em
relação a todos os ramos de atividade econômica. Mas, cabe a indagação: e se o conflito for entre
nome empresarial e marca? Imagine-se, com efeito, que o fabricante de produtos de higiene, chamado
Souza & Irmãos Ltda., titular da marca registrada Sol, resolva impedir que o comerciante de
utensílios de banheiro, denominado Comércio e Representação Sol Ltda., seja proibido de utilizar o
seu nome empresarial, em vista da possibilidade de confusão entre os consumidores. Complementese a hipótese, cogitando que o registro do nome na Junta Comercial é anterior ao da marca no INPI.
Como solucionar este conflito? Na lei, não se encontra dispositivo regulando a matéria, mas a
jurisprudência tem normalmente prestigiado a tutela da marca, em detrimento da do nome
empresarial, mesmo quando o registro deste é anterior. Exige-se, contudo, em função do princípio da
especialidade, que o titular da marca e o do nome colidentes operem no mesmo segmento de mercado
(salvo se a marca for de alto renome, quando o empresário goza de proteção em todos os segmentos).
10. TÍTULO DE ESTABELECIMENTO
Além da marca e do nome empresarial, o direito industrial cuida de uma terceira categoria de
sinal distintivo: o título de estabelecimento. Trata-se da designação que o empresário empresta ao
local em que desenvolve sua atividade. Por exemplo: quando o consumidor se dirige à agência do
Banco Itaú S/A, encontra-a identificada pela expressão Itaú. É este o título do estabelecimento, o
designativo referente ao lugar do exercício da atividade. A expressão linguística do título não
precisa coincidir com o núcleo do nome empresarial, nem com a marca. Por razões econômicas e
mercadológicas, entretanto, é comum a adoção, como título de estabelecimento, da própria marca
registrada. Tal alternativa, inclusive, além de ajudar na fixação da marca, possibilita ao empresário a
proteção do sinal identificador do local do exercício do seu negócio, por meio do registro industrial.
Ele pode impedir que concorrentes se utilizem de sinal idêntico ou semelhante, com base no seu
direito marcário.
Quando o título de estabelecimento, contudo, apresenta expressão linguística diversa da da marca
— e não se encontra registrado também como marca no INPI —, o empresário somente poderá
impedir que alguém o imite ou reproduza, com base na repressão à concorrência desleal. A lei
tipifica como crime desta natureza o uso indevido de título de estabelecimento (LPI, art. 195, V), do
que decorre também a responsabilidade civil do infrator, pelos danos decorrentes do desvio de
clientela (LPI, art. 209). Como, por outro lado, não existe atualmente registro do título de
estabelecimento — ele existiu, no Brasil, entre 1934 e 1967, e produzia efeitos restritos ao âmbito do
município —, a prova da anterioridade, no uso do sinal distintivo, pode ser feita por testemunhas ou
documentos de qualquer gênero.
Capítulo 7
DISCIPLINA JURÍDICA DA CONCORRÊNCIA
1. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIVRE-INICIATIVA
O perfil que a Constituição desenhou para a ordem econômica tem natureza neoliberal. Essa
última é uma expressão cujo sentido deve ser precisado. O conceito de liberalismo já é, por si,
plurívoco. Nicola Matteucci, por exemplo, discutindo-o no campo da política, após identificar quatro
diferentes níveis em que se poderia enfocar o conceito (histórico, filosófico, temporal e estrutural),
conclui pela impossibilidade de uma definição satisfatória (Bobbio-Matteucci-Pasquino,
1983:686/705). Se assim é com o conceito de liberalismo, o de neoliberalismo não poderia deixar
de introduzir novas dificuldades na discussão semântica.
Historicamente, a expressão teria sido utilizada pela primeira vez em discursos governamentais
justificadores das medidas de reconstrução das estruturas da economia capitalista, abaladas pela
crise de 1929. Em tal contexto, o neoliberalismo é a forma de se acentuar que o dirigismo estatal,
então implementado, não poderia ser confundido com a planificação econômica centralizada e o
socialismo, experimentados na União Soviética. Embora não fossem tempos de guerra fria, a
Revolução Russa, ainda jovem, inspirava os movimentos operários de todo o mundo ocidental. As
medidas de ingerência do estado, em searas que a ideologia capitalista procurava reservar
ardorosamente aos particulares, não poderiam vir desacompanhadas de uma reafirmação de alguns
princípios liberais. A ideia de um liberalismo renovado — veiculada pela expressão “neoliberal” —
atendia essa necessidade. No final dos anos 1930, desenvolveram-se estudos acadêmicos que
visavam estruturar a doutrina econômica neoliberal, a partir desse contexto político (cf. Sandroni,
1985:214).
Terminada a guerra fria, a mesma expressão se vê utilizada com o significado exatamente oposto,
nos discursos críticos à desarticulação do estado do bem-estar social ou da paralisação do processo
de sua construção. Neoliberal, agora, é o defensor da retração do estado, do fim das políticas
sociais. Não é mais a referência ao liberalismo renovado, mas sim ao liberalismo ressurgente. Se
antes da guerra fria, o neoliberalismo era a defesa do aumento da intromissão do aparato estatal na
economia, depois dela, torna-se o inverso, a defesa da redução da intromissão.
Abstraindo os discursos dos políticos e suas rotulações simplificadoras — que, na verdade, no
contexto de um trabalho tecnológico, não passam de curiosidades —, conceituo neoliberal como o
modelo econômico definido na Constituição que se funda na livre-iniciativa, mas consagra
também outros valores com os quais aquela deve se compatibilizar . A defesa do consumidor, a
proteção ao meio ambiente, a função social da propriedade e os demais princípios elencados pelo
art. 170 da CF como informadores da ordem econômica, bem como a lembrança da valorização do
trabalho como um dos fundamentos dessa ordem, tentam refletir o conceito de que a livre-iniciativa
não é mais que um dos elementos estruturais da economia. Ao delinear o perfil da ordem econômica
com o traço neoliberal, a Constituição, enquanto assegura aos particulares a primazia da produção e
circulação dos bens e serviços, baliza a exploração dessa atividade com a afirmação de valores que
o interesse egoístico do empresariado comumente desrespeita.
Constituição Federal
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I — soberania nacional;
II — propriedade privada;
III — função social da propriedade;
IV — livre concorrência;
V — defesa do consumidor;
VI — defesa do meio ambiente;
VII — redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII — busca do pleno emprego;
IX — tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no
País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos
públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Considera alguma doutrina, a partir do balizamento constitucional da livre iniciativa por valores
de “justiça social e bem-estar coletivo”, que a exploração de atividade econômica com puro objetivo
de lucro e de satisfação pessoal do empresário seria, sob o ponto de vista jurídico, ilegítima. É, por
exemplo, o entendimento de José Afonso da Silva (1976:673). A natureza neoliberal da ordem
econômica prevista pela Constituição não tem, entretanto, tal extensão. A equiparação, em
importância, da livre-iniciativa e dos valores normalmente desconsiderados pelo empresário egoísta
(a defesa do consumidor, a proteção do meio ambiente, a função social da propriedade etc.) apenas
afasta a possibilidade de edição de leis, complementares ou ordinárias, disciplinadoras da atividade
econômica, desatentas a esses valores. O empresário visa, com os lucros gerados pela empresa, ter
meios para atender às necessidades suas e de sua família, em padrão de vida normalmente bem acima
da generalidade das pessoas. Além dessa motivação básica, ele também tem a da busca da satisfação
pessoal: costuma ser extremamente gratificante ao empresário admirar a evolução do
empreendimento que esboçou, organizou e dirigiu, bem como ver nos resultados a realização do seu
projeto. E nada há de ilegítimo nisso. Da norma constitucional ordenadora da economia (o art. 170
da CF) apenas se pode concluir a inconstitucionalidade de regras jurídicas que eventualmente não
reflitam a mesma igualação valorativa, estabelecida no texto fundamental, entre a livre-iniciativa, a
defesa do consumidor, a proteção ao meio ambiente etc.
Para o direito comercial, dois aspectos relevantes se concluem da inserção da livre-iniciativa
entre os fundamentos da ordem econômica. Em primeiro lugar, a constitucionalidade de preceitos de
lei que visam a motivar os particulares à exploração de atividades empresariais. O primado da
autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, por exemplo, quando aplicado ao direito societário,
tem o sentido de limitar o risco, de forma a que as pessoas não receiem investir em atividades
econômicas em razão da possibilidade de elevado comprometimento de seu patrimônio. Outro
exemplo está na aplicação do princípio da autonomia das obrigações cambiais — destinado a
viabilizar a ágil circulação do crédito —, mesmo quando o devedor do título é um consumidor (cf.
Coelho, 1994:202/203). Nesses casos, o princípio constitucional da livre--iniciativa é uma
importante referência à interpretação das normas infraconstitucionais disciplinadoras do exercício de
atividades econômicas.
Em segundo lugar, o prestígio que a liberdade de iniciativa recebe da Constituição significa,
também, o reconhecimento de um direito, titularizado por todos: o de explorarem atividades
empresariais. Disso decorre o dever, imposto à generalidade das pessoas, de respeitarem o mesmo
direito constitucional, bem como a ilicitude dos atos que impeçam o seu pleno exercício. Em duas
direções se projeta a defesa do direito à livre-iniciativa: contra o próprio estado, que somente pode
ingerir-se na economia nos limites constitucionalmente definidos, e contra os demais particulares. O
direito comercial cuida desse segundo aspecto da questão, isto é, das normas jurídicas que tutelam o
exercício do direito à livre-iniciativa, quando ameaçado por concorrência ilícita.
Há duas formas de concorrência que o direito repudia, para fins de prestigiar a livre-iniciativa: a
desleal e a perpetrada com abuso de poder. A primeira é reprimida em nível civil e penal, e envolve
apenas os interesses particulares dos empresários concorrentes (item 2); a segunda, reprimida
também em nível administrativo, compromete as estruturas do livre mercado e são chamadas de
infração da ordem econômica (itens 3 a 7). São modalidades diferentes de repressão a práticas
concorrenciais (item 8).
Essa separação em dois do regime repressivo da concorrência ilícita — de um lado, a desleal,
que não compromete as estruturas da livre concorrência; de outro, a infração da ordem econômica,
que as compromete — está claramente estabelecida no direito brasileiro, em consonância com a
tradição europeia do tratamento da matéria. Na França, Itália, Espanha e Portugal, por exemplo, a
mesma distinção se pode constatar de forma clara; ao passo que nos Estados Unidos ela não é
nitidamente estabelecida (cf. Ripert-Roblot, 1947:335/337; Ferrara, 1952:177/178; Sánchez,
1992:132/139;
Santos-Gonçalves-Marques,
1991:359/360;
Weston-Maggs-Schechter,
1950:573/580).
2. CONCORRÊNCIA DESLEAL
Ao direito constitucional de explorar atividade econômica, expresso no princípio da livreiniciativa como fundamento da organização da economia, corresponde o dever, imposto a todos, de o
respeitar. Em relação ao estado, esse dever se traduz na inconstitucionalidade de exigências
administrativas não fundadas na lei, para o estabelecimento e funcionamento de uma empresa (CF,
art. 170, parágrafo único). Em relação aos particulares, se traduz pela ilicitude de determinadas
práticas concorrenciais. Por ilícita conceituo todas as formas de concorrência sancionadas pela lei,
independentemente da natureza civil, penal ou administrativa da sanção (para uma breve referência
acerca de outras propostas conceituais: Cerqueira, 1946:1.271/1.273; também Miranda, 1956,
17:267/270). Pelo conceito aqui proposto, não se reduz a concorrência ilícita à criminosa.
Uma das hipóteses de concorrência ilícita é a desleal. A concorrência desleal se diferencia da
outra forma de ilicitude competitiva (a infração da ordem econômica), na medida em que as lesões
produzidas pela primeira não alcançam outros interesses além dos do empresário diretamente
vitimado pela prática irregular. Na infração da ordem econômica, a concorrência ilícita ameaça as
estruturas da economia de mercado, e, portanto, um universo muito maior de interesses juridicamente
relevantes são atingidos. Em razão de tal diferença, a lei não se preocupou em estabelecer
mecanismos de repressão administrativa à concorrência desleal, contentando-se com as repressões
civil e penal.
O direito brasileiro reprime duas formas de práticas concorrenciais ilícitas: a “concorrência desleal” e a “infração da ordem econômica”.
É uma questão teórica de difícil elucidação a do conceito de concorrência desleal (cf. Cerqueira,
1946:1.266/1.271; Ripert-Roblot, 1947:336). Não há competição empresarial sem o intuito de
conquista de mercado. Desse modo, o elemento fundamental da concorrência, sua essência mesmo, é
o intuito de alargar a clientela, em prejuízo de concorrentes dedicados ao mesmo segmento de
mercado. O objetivo imediato do empresário em competição é simplesmente o de cativar
consumidores, por meio de recursos (publicidade, melhoria da qualidade, redução do preço etc.) que
os motivem a direcionar suas opções no sentido de adquirirem o produto ou serviço que ele, e não
outro empresário, fornece. Ora, o efeito necessário da competição é a indissociação entre o benefício
de uma empresa e o prejuízo de outra, ou outras. Na concorrência, os empresários objetivam, de
modo claro e indisfarçado, infligir perdas a seus concorrentes, porque é assim que poderão obter
ganhos.
A hipótese em que o empresário ganha sem prejudicar nenhum outro é a da criação de mercados
novos, com introdução de produtos ou serviços até então não fornecidos aos consumidores. Essa
hipótese, contudo, enquanto outros empresários não atuarem no mesmo segmento, não representa
competição — ao contrário, é caso de falta de competição. Por outro lado, quando pessoas
anteriormente excluídas ingressam no mercado de consumo (em virtude, por exemplo, do aumento do
poder aquisitivo de algumas camadas da população), durante certo tempo os empresários que se
adiantam podem lucrar sem infligir perdas aos demais. A médio prazo, contudo, uma vez consolidado
o aumento do mercado, restaura-se a concorrência e as vantagens de uns voltam a significar
desvantagens de outros.
Sendo assim, não é simples diferenciar-se a concorrência leal da desleal. Em ambas, o
empresário tem o intuito de prejudicar concorrentes, retirando-lhes, total ou parcialmente, fatias do
mercado que haviam conquistado. A intencionalidade de causar dano a outro empresário é elemento
presente tanto na concorrência lícita como na ilícita. Nos efeitos produzidos, a alteração nas opções
dos consumidores, também se identificam a concorrência leal e a desleal. São os meios empregados
para a realização dessa finalidade que as distinguem. Há meios idôneos e meios inidôneos de ganhar
consumidores, em detrimento dos concorrentes. Será, assim, pela análise dos recursos utilizados pelo
empresário, que se poderá identificar a deslealdade competitiva. À frente (item 8), ver-se-á que a
outra modalidade de concorrência ilícita — a infração da ordem econômica — não se caracteriza
pelo meio utilizado, mas pelos efeitos potenciais ou efetivos da prática concorrencial.
Como as motivações e os efeitos da concorrência leal e da desleal são idênticos, a diferença entre elas se encontra no meio empregado para
conquistar a preferência dos consumidores.
2.1. Classificação da Concorrência Desleal
Para Gama Cerqueira, pode-se classificar a concorrência desleal em duas categorias: a
específica, que se traduz pela tipificação penal de condutas lesivas aos direitos de propriedade
intelectual titularizados por empresários (isto é, os direitos sobre marcas, patentes, título de
estabelecimento, nome empresarial); e a genérica, que corresponde à responsabilidade
extracontratual (1946:1.271). Adotando-se a mesma noção, proponho precisar-se a classificação nos
seguintes termos: específica, a concorrência desleal sancionada civil e penalmente; genérica, a
sancionada apenas no âmbito civil. Desse modo, as práticas empresariais tipificadas como crime de
concorrência desleal (LPI, art. 195) são formas de concorrência desleal específica; e as não
tipificadas como crime, mas geradoras do direito à indenização por perdas e danos (LPI, art. 209),
são de concorrência desleal genérica.
A concorrência desleal específica se viabiliza por meios inidôneos mais facilmente delineados
(isto é, a violação de segredo de empresa e a indução de consumidor em erro). Já em relação à
genérica, é mais difícil precisar os meios concorrenciais ilícitos. São exemplos de concorrência
desleal genérica o desrespeito aos direitos do consumidor (inobservância do padrão legal de
qualidade, por exemplo) e a sonegação de tributos. Nesses dois casos, os meios inidôneos —
sintetizados pela noção de desrespeito ao direito vigente — permitem ao empresário desleal praticar
preço mais baixo que os concorrentes cumpridores da lei e, em consequência, subtrair-lhes
consumidores.
2.2. Modalidades de Concorrência Desleal Específica
A concorrência desleal específica se viabiliza, basicamente, por meio de fraude na obtenção ou
veiculação de informações sobre empresa concorrente. A fraude na obtenção de informações se
opera por meio de violação de segredo de empresa; a fraude na veiculação, mediante a indução de
consumidores em erro. De fato, a concorrência desleal se diferencia da leal no tocante ao meio
empregado pelo empresário para conquistar clientela de outro. São os meios adotados — e não a
intenção do ato ou seus efeitos — que conferem ilicitude a determinada prática concorrencial. A
violação de segredo de empresa e a indução do consumidor em erro são os meios que, empregados
na conquista de mercados, distinguem a concorrência lícita da desleal específica.
Normalmente, quando a concorrência desleal se traduz no ato de obter informações, essas são
verdadeiras, já que as inverídicas dificilmente poderão ser úteis à definição de uma eficiente
estratégia empresarial. Entretanto, quando a deslealdade diz respeito à veiculação de informações,
costumam ser essas falsas, no sentido de promover o aumento indevido da reputação do infrator, ou o
comprometimento da imagem da vítima. Historicamente, o direito tem dedicado maior atenção a esse
último modo de deslealdade competitiva. Basta, para confirmá-lo, relembrar que a Convenção da
União de Paris, de 1883, ao delinear os contornos da concorrência desleal, no art. 10-bis,
contemplou exemplos que se referem unicamente à fraude na divulgação de informações. Cada vez
mais, no entanto, e em função do progresso das técnicas de processamento de dados, ganha
relevância a outra modalidade de concorrência desleal, a da fraude na obtenção de informações.
A concorrência desleal específica se viabiliza, basicamente, por meio de violação do segredo de empresa ou pela indução do consumidor em
erro.
Na primeira modalidade (concorrência desleal específica por violação do segredo de empresa), o
agente ativo do ilícito tem acesso a informações que a vítima tinha interesse em manter reservadas,
fora do alcance de concorrentes; tal acesso, porém, não se dá por acaso ou por descuido da empresavítima, e sim por invasão a banco de dados, infiltração de empregados ou colaboradores do agente
ativo no corpo funcional da concorrente, ou aliciamento de membros desta.
O primeiro exemplo de violação de segredo de empresa se refere ao acesso não autorizado a
banco de dados. Devido ao desenvolvimento da informática, cada vez mais as empresas se expõem
ao perigo de “espionagem a distância”, sem a infiltração de pessoas no corpo funcional da
concorrente para fins de apropriação de informações. As informações mantidas em banco de dados
podem ser, tecnicamente, acessadas por via telefônica e reproduzidas em meio eletrônico com
rapidez. Sofisticados sistemas de segurança contra tais acessos são desenvolvidos, mas,
proporcionalmente, desenvolvem-se fórmulas de neutralização. Essa prática, assim como a aquisição
das informações por meio dela obtidas, configura concorrência desleal.
A hipótese de infiltração de funcionários no quadro da concorrente é também conhecida por
“espionagem econômica”. A pessoa paga pelo concorrente emprega-se na empr esa vítima, com o fim
de se apropriar de informações, geralmente essenciais sobre a estratégia ou o processo produtivo da
última.
A outra forma de violação de segredo de empresa consiste na “compra” de informações
privilegiadas e envolve empregados graduados, administradores, sócios minoritários ou mesmo
colaboradores (advogados, contadores, representantes comerciais etc.) do empresário atingido pela
concorrência desleal. O aliciamento de trabalhadores ou profissionais que servem à empresa vítima,
além de caracterizar a concorrência ilícita da empresa aliciadora, também importa a
responsabilidade do sujeito aliciado. Este, ao colaborar com o concorrente, descumpre seu dever de
lealdade com a empresa que o havia contratado e poderá ser responsabilizado, se empregado ou exempregado, de acordo com o direito do trabalho. A seu turno, a legislação societária imputa
responsabilidade ao administrador pelo descumprimento do dever de lealdade (LSA, art. 155). Em
situação semelhante se encontra o sócio minoritário, que pode ser expulso da sociedade por falta de
cumprimento de obrigações societárias (CC, art. 1.085). Há, por outro lado, solidariedade entre o
empresário agente da concorrência desleal e o sujeito aliciado (CC, art. 942). O empresário vítima,
assim, poderá optar pela responsabilização do concorrente ou do seu antigo colaborador ou sócio,
para se ressarcir dos prejuízos.
Espionagem econômica, mesmo realizada a distância (hacking) é modalidade de concorrência desleal específica.
Na segunda modalidade de concorrência desleal (isto é, a realizada por indução do consumidor
em erro), o agente ativo da conduta ilícita faz chegar ao conhecimento dos consumidores uma
informação, falsa no conteúdo ou na forma, capaz de os enganar. O engano pode dizer respeito, por
exemplo, à origem do produto ou serviço. O consumidor é levado a crer que certa mercadoria é
produzida por determinada e conceituada empresa, quando isso não corresponde à verdade. Não está
apenas em questão, aqui, a tutela dos interesses dos consumidores, mas também a do empresário que
teve a sua imagem indevidamente utilizada para o lucro de concorrente. De fato, a utilização de
imagem empresarial alheia, sem a devida autorização do titular e a correspondente compensação
econômica, representa uma forma sutil de enriquecimento indevido, e por essa razão é coibida pelo
direito. Outro exemplo: se a empresa de remoção médica pratica preços abaixo da concorrência
porque limita o número de vezes em que o consumidor poderá beneficiar-se dos serviços, mas isso
não é suficientemente aclarado nas peças publicitárias, dá-se a enganosidade por omissão,
condenada pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 37, § 3º). A induç ão do consumidor em erro,
nesse caso, também prejudica os direitos dos concorrentes, porque cria a falsa impressão de que
estes têm preços elevados, ou mesmo extorsivos.
Muitas vezes, quem promove a divulgação do falso não é o empresário concorrente, que procura
se preservar, mas pessoas que, embora sem vínculo formal de subordinação, agem por ordem dele.
Nesse caso, é maior a dificuldade de prova, mas, uma vez estabelecida a ligação entre quem
propagou a falsa informação e o mandante, caracteriza-se a concorrência desleal.
O engano a que se induz o consumidor pode dizer respeito, finalmente, à reputação da própria
empresa infratora, no sentido da valorização. O empresário atribui-se diretamente, ou por meio da
promoção de seus produtos ou serviços, uma qualidade que não possui. Note-se a dificuldade do
estabelecimento de liame específico entre a atitude do autor da concorrência desleal (arrogar
qualidade que não possui) e o dano decorrente de perda de clientela por parte de empresário
concorrente. Não é fácil demonstrar que a redução da participação no mercado de um empresário se
deve ao fato de o outro promover publicidade enganosa sobre si mesmo. Uma vez, no entanto, feita a
demonstração, caberá a responsabilização civil. Por fim, registro que essa derradeira forma de
ilustrar a concorrência desleal por indução do consumidor em erro representa, rigorosamente, a
mesma figura jurídica que a legislação consumerista conceituou como publicidade enganosa (CDC,
art. 36, § 1º).
A publicidade enganosa representa uma espécie de concorrência desleal específica. A mesma propaganda pode, assim, gerar responsabilidade
do anunciante perante consumidores e concorrentes.
2.3. Repressão Civil
A repressão civil à concorrência desleal assegura ao empresário--vítima a devida composição
dos danos sofridos. Quando se cuida de concorrência desleal específica, a caracterização da conduta
como ilícita, ensejadora da reparação civil, não enfrenta maiores problemas. Ou seja, inexistem
dúvidas quanto à natureza desleal da prática de concorrência quando o ato é tipificado como crime,
pelo art. 195 da LPI. Nesse caso, inclusive, aplica-se à repressão civil o disposto no art. 935 do CC;
quer dizer, a existência do fato e sua autoria não podem ser rediscutidas no foro cível, caso se
encontrem já decididas no penal. Se o acusado de crime de concorrência desleal é inocentado no
processo-crime, não poderá ser acolhida a pretensão à indenização civil contra essa pessoa. Se o
acusado, contudo, não foi condenado por falta de provas ou por prescrição da pretensão punitiva, a
ação civil pode ter seguimento.
No caso de concorrência desleal genérica (isto é, não tipificada como crime), a questão da
caracterização da conduta do demandado ganha contornos mais complexos, em vista da
impossibilidade de se diferenciar, quanto à finalidade e aos resultados, a concorrência lícita da
ilícita. De fato, como visto acima, tanto o empresário que compete dentro das condições reputadas
leais, como o que transgride os limites desta, têm idênticos objetivos, quais sejam, o de subtrair
clientela alheia. Será a idoneidade do meio utilizado que possibilitará a distinção entre o que se
permite e o que se condena, na concorrência entre empresas.
A concorrência desleal genérica se caracteriza quando utilizado meio imoral, desonesto ou condenado pelas práticas usuais dos empresários.
O texto legal referente à matéria (concorrência desleal genérica), o art. 209 da LPI, ressalva o
direito a indenização civil por atos de competição desleal não tipificados como crime, quando
“tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos
comerciais, industriais ou prestadores de serviços, ou entre os produtos e serviços postos no
comércio”. A primeira parte da transcrição revela um legislador desatento à referida dificuldade de
repousar na intenção ou no resultado da prática empresarial, a distinção entre a concorrência leal e a
desleal — em ambas, o empresário quer impor prejuízos ao concorrente, porque essa é a condição
de seus ganhos. No restante do dispositivo transcrito, percebe-se que, dos meios fraudulentos para a
realização da concorrência desleal, referiu-se a lei unicamente à indução dos consumidores em erro,
deixando de lado a violação do segredo de empresa e os muitos outros em que a concorrência
desleal genérica pode se traduzir.
A redação imprecisa da norma poderia levar à conclusão de que a concorrência desleal por
violação de segredo de empresa somente geraria a responsabilidade civil na hipótese específica, ou
seja, se também estivesse caracterizada como crime; enquanto a realizada mediante a indução de
consumidores em erro comportaria a repressão civil, mesmo que genérica. Essa interpretação,
contudo, por ser meramente gramatical, deve ser afastada, de forma a se assegurar a indenização aos
empresários cujos segredos foram violados, ainda quando inexistir tipo penal correspondente. A
importância da interpretação teleológica cresce, na medida em que aumentam os recursos de
informática para o acesso não autorizado a bancos de dados, atualmente a mais danosa forma de
violar segredos de empresa.
Na verdade, qualquer meio inidôneo gera a responsabilidade civil por concorrência desleal. A
dificuldade de apontar, de modo exaustivo, a lista de meios desleais é a mesma de distinguir a
concorrência desleal genérica das formas lícitas de competição.
A lei estabelece critérios para a definição do valor da indenização a ser paga ao empresário
vítima de concorrência desleal. Em termos gerais, o art. 208 da LPI preceitua que a “indenização
será determinada pelos benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse
ocorrido”. É, na verdade, apenas uma forma diferente de estabelecer o mesmo critério genérico da
legislação civil, que define o montante da indenização pelo que efetivamente se perdeu mais o que
razoavelmente se deixou de ganhar (CC, art. 402).
Em especial, quanto aos lucros cessantes, o legislador se preocupou em definir que o valor do
ressarcimento será o mais favorável ao prejudicado dentre três possíveis: a) os benefícios que ele
teria se não tivesse existido a deslealdade competitiva; b) os benefícios que o concorrente
condenado auferiu; c) a remuneração que o prejudicado teria recebido se, por meio de licença,
houvesse legitimado a ação do concorrente (LPI, art. 210). É bem verdade que o primeiro critério
tem abrangência maior que a do conceito de lucros cessantes, de sorte que sua utilização dar-se-á
apenas nos casos em que não houve outras perdas. O segundo critério não poderá, por sua vez, ser
utilizado se o autor da concorrência desleal, a despeito dela, não conseguiu auferir benefício
concreto. Finalmente, o último critério é cabível só nas indenizações por práticas que poderiam ser
objeto de licença, como, por exemplo, as de utilização de nome empresarial, sinal de propaganda,
título de estabelecimento ou insígnia alheia. Nenhum dos critérios apontados pela lei, desse modo, se
pode aplicar em qualquer situação. Sempre haverá pelo menos uma hipótese em que determinado
critério se revela inoperante. Não se trata, portanto, de conjunto de alternativas de que sempre
poderão se socorrer as vítimas da concorrência desleal. Em outros termos, entre as vias legais de
fixação dos lucros cessantes, não existe nenhuma que possa, ou mesmo deva, preponderar sobre a
outra de modo definitivo. Será sempre uma mera questão quantitativa a da operacionalização desses
critérios: isto é, aplica-se o que resultar maior valor de indenização.
2.4. Repressão Penal
Lei n. 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial)
Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem:
I — publica, por qualquer meio, falsa afirmação, em detrimento de concorrente, com o fim de obter vantagem;
II — presta ou divulga, acerca de concorrente, falsa informação, com o fim de obter vantagem;
III — emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem;
IV — usa expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos;
V — usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque
produto com essas referências;
VI — substitui, pelo seu próprio nome ou razão social, em produto de outrem, o nome ou razão social deste, sem o seu consentimento;
VII — atribui-se, como meio de propaganda, recompensa ou distinção que não obteve;
VIII — vende ou expõe ou oferece à venda, em recipiente ou invólucro de outrem, produto adulterado ou falsificado, ou dele se utiliza para
negociar com produto da mesma espécie, embora não adulterado ou falsificado, se o fato não constitui crime mais grave;
IX — dá ou promete dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando ao dever do emprego, lhe
proporcione vantagem;
X — recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa, para, faltando ao dever de empregado, proporcionar
vantagem a concorrente do empregador;
XI — divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio
ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve
acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato;
XII — divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se refere o inciso anterior, obtidos por meios
ilícitos ou a que teve acesso mediante fraude; ou
XIII — vende, expõe ou oferece à venda produto, declarando ser objeto de patente depositada, ou concedida, ou de desenho industrial
registrado, que não o seja, ou menciona-o, em anúncio ou papel comercial, como depositado ou patenteado, ou registrado, sem o ser;
XIV — divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de resultados de testes ou outros dados não divulgados, cuja elaboração envolve
esforço considerável e que tenham sido apresentados a entidades governamentais como condição para aprovar a comercialização de produtos.
Pena — detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
A LPI, em seu título sobre crimes contra a propriedade industrial, tipifica condutas de
concorrência desleal (art. 195). A comparação do texto da lei vigente com o da anterior sobre a
matéria (Dec. n. 7.903/45, art. 178) ressalta a substituição das imprecisas expressões “segredo de
fábrica” e “segredo de negócio”, na descrição das condutas criminais, por um conceito que,
malgrado a complexidade, se revela mais apropriado, e que se poderia denominar segredo de
empresa. Este segredo compreende os “conhecimentos, informações ou dados confidenciais,
utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de
conhecimento público ou (...) evidentes para um técnico no assunto” (LPI, art. 185, XI).
A substituição conceitual importou, além de maior precisão, a superação da diferença entre as
duas espécies de segredo mencionadas nos tipos penais da antiga legislação repressora, diferença
que a doutrina apontava residir no objeto da informação mantida sigilosa: “de fábrica” era o segredo
relativo ao processo de produção; “de negócio”, o relacionado aos aspectos especificamente
comerciais da empresa (Delmanto, 1975:238/239). Certamente, não há razões para tal distinção,
tendo em conta que tanto um como outro gênero de informação possuem a mesma importância
estratégica para o desenvolvimento de qualquer gênero de atividade econômica.
A violação de segredo de empresa é conduta típica tanto na hipótese em que o autor do crime é ou
foi colaborador do empresário-vítima, na qualidade de empregado, prestador de serviços
profissionais, administrador, sócio e outros (LPI, art. 195, inciso XI e § 1º), como naquela em que o
autor não manteve qualquer vínculo jurídico com a vítima (idem, inciso XII). Nesse último caso,
incluem-se os espiões a distância (os chamados hackers), que se introduzem, sem autorização, nos
bancos de dados informatizados das empresas, em busca de informações que possam ser negociadas
com concorrentes desleais.
Em França, desde 1988, o simples ato de acessar fraudulentamente, no todo ou em parte, sistema
de tratamento automatizado de dados é crime, mesmo que não haja nenhuma exploração das
informações assim obtidas. Essa representa, apenas, uma hipótese de agravamento da pena (LarguierLarguier, 1994:177). No Brasil, no entanto, o crime não se caracteriza se o invasor apenas se
apropria do segredo, dando-se por satisfeito por considerar atendidas suas necessidades hedônicas
de desafio intelectual. Para a configuração do crime de concorrência desleal, na espécie, será
necessário que o agente ativo divulgue, explore ou se utilize do segredo. Será necessário, por
exemplo, que o hacker transmita as informações, mediante pagamento ou de modo gracioso, a
empresário concorrente, à imprensa ou aos consumidores. Por outro lado, se o invasor, após a
apropriação das informações sigilosas, também praticar ato que importe a destruição ou adulteração
destas, ou o seu comprometimento de qualquer forma, responderá também pelo crime de dano (CP,
art. 163).
3. INFRAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA
Por constituição econômica entende-se o conjunto de normas constitucionais referentes à
economia ou, como se diz mais usualmente, à ordem econômica (Santos-Gonçalves-Marques,
1991:17). No direito brasileiro em vigor, a constituição econômica tem perfil neoliberal. Significa
isso que se baseia nos princípios tradicionais do liberalismo econômico — a propriedade privada, a
liberdade de iniciativa e a de competição —, temperados com a afirmação de certas conquistas
sociais, consolidadas principalmente na última metade do século — a função social da propriedade,
a defesa do consumidor, busca do pleno emprego etc. Por outro lado, entre os elementos basilares da
constituição econômica, prevê-se a repressão ao abuso do poder econômico, que visa à dominação
dos mercados, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário dos lucros (CF, art. 173, § 4º).
Constituição Federal
Art. 173, § 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento
arbitrário dos lucros.
Do perfil neoliberal da constituição econômica brasileira, pode-se concluir a livre concorrência
como uma das estruturas básicas de organização da economia, cujos contornos ganham precisão com
as normas infraconstitucionais repressoras do abuso de poder econômico (ou infração da ordem
econômica, como preferiu denominá-lo o legislador de 1994). O princípio da repressão aos abusos
do poder econômico é, no dizer de Eros Grau, um fragmento do princípio da livre concorrência
(1990:230). Desse modo, a interpretação da legislação antitruste (Lei n. 12.529/2011),
especialmente quanto à caracterização legal das condutas infracionais, não pode ser feita dissociada
da referência constitucional à matéria. A livre concorrência deve ser prestigiada como estrutura
fundamental da ordem econômica e a repressão aos abusos do poder econômico deve servir
unicamente de sua garantia.
O poder econômico, note-se, é um dado de fato inerente ao livre mercado. Se a organização da
economia se pauta na liberdade de iniciativa e de competição, então os agentes econômicos são
necessariamente desiguais, uns mais fortes que outros. Ou seja, conforme assentou Miguel Reale, o
poder econômico não é em si ilícito, mas é o instrumento normal ou natural de produção e circulação
de riquezas nas sociedades constitucionalmente organizadas em função do modelo da economia de
mercado (em Franceschini-Franceschini, 1985:521). Ora, nem a Constituição nem a lei poderiam
ignorar ou pretender a eliminação do poder econômico. O direito somente pode disciplinar o
exercício desse poder, reprimindo as iniciativas que comprometem as estruturas do livre mercado
(cf. Grau, 1990:228/229). É apenas a repressão a certas modalidades de exercício do poder
econômico que a lei pode contemplar, em obediência ao mandamento constitucional. Em outros
termos, nem todas as manifestações de exercício do poder econômico se encontram, pela constituição
econômica, no campo do que a lei pode considerar ilícito administrativo, mas apenas aquelas que
têm ou podem ter o efeito de domínio de mercados, eliminação da concorrência ou aumento
arbitrário dos lucros. Por exemplo, o abuso do poder de controle pelo acionista controlador (LSA,
art. 117) não deixa de ser “econômico” e, mesmo assim, não configura, quando ausentes os elementos
do art. 173, § 4º, da Constituição Federal, infração da ordem econômica.
O poder econômico não é punido por si. O que o direito coíbe é o abuso do poder econômico que ameaça ou pode ameaçar a livre
concorrência.
Se o empresário titular de poder econômico exerce-o ao competir com os demais agentes atuantes
no mesmo mercado, e lucra ou tira vantagens de sua posição destacada, nada há de irregular nisso. É
apenas o jogo competitivo característico do regime capitalista, em que os mais fortes,
economicamente falando, se valem desse fator de supremacia para ampliar a participação no
mercado, evidentemente em detrimento da de outros empresários. O exercício do poder econômico
que não tenha e não possa ter o efeito de dominância de mercado, eliminação da concorrência ou
aumento arbitrário de lucros insere-se nesse jogo e não pode ser, sob o ponto de vista constitucional,
considerado abusivo; e, consequentemente, não pode ser objeto de repressão legal. A Constituição
Federal, ao estruturar a economia brasileira pelo princípio da livre concorrência, admite a
generalidade das práticas empresariais voltadas à conquista de mercados, ainda que derivadas do
exercício do poder econômico. Somente quando a própria competição está em risco, a Constituição,
para a assegurar, reputa abusivo o seu exercício e autoriza à lei a repressão.
Em suma, a Constituição Federal, em seu art. 173, § 4º, delineou as modalidades de exercício do
poder econômico que podem ser consideradas juridicamente abusivas. São aquelas que põem em
risco a própria estrutura do livre mercado. Especificamente, aquelas que podem ocasionar a
dominação de setores da economia, eliminação da competição ou aumento arbitrário de lucros. As
outras formas de exercício do poder econômico, insuscetíveis de produzirem tais efeitos, não são
abusivas, por definição do direito positivo brasileiro vigente. A Constituição não reputa abusivo o
exercício do poder econômico compatível com as estruturas do livre mercado.
A disciplina jurídica da concorrência, que reprime as infrações da ordem econômica, é chamada,
tradicionalmente, de “direito antitruste”. A expressão se liga, por evidente, aos propósitos
originários da atuação estatal, voltados a impedir a formação de grandes conglomerados econômicos.
Claro que hoje se alarga o campo de aplicação desse capítulo da disciplina jurídica da concorrência,
que passa a tutelar as estruturas do livre mercado, também contra outras formas de abuso. Por
tradição, contudo, continua utilizável o nome.
3.1. Órgãos Administrativos de Repressão às Infrações
A repressão administrativa às infrações da ordem econômica compete ao Conselho
Administrativo de Defesa Econômica — CADE.
O CADE foi criado pela Lei n. 4.137/62 como órgão da administração direta federal, vinculado
inicialmente ao Conselho de Ministros e, posteriormente, ao Ministério da Justiça. Houve quem
tentasse fazer vingar a tese de que teria natureza autárquica desde sua origem, com o intuito de
acelerar a efetivação em juízo das decisões administrativas (ver em Franceschini-Franceschini,
1985:470/476; cf. Barbieri Filho, 1984:49/98), mas o entendimento mais correto era mesmo o de
que, a despeito de sua relativa autonomia, o CADE tinha a natureza de simples desdobramento
funcional da administração direta, sem personalidade jurídica própria (Meirelles, 1981:125/140).
Em 1994, o CADE transformou-se em autarquia, o que visou propiciar maior agilidade para
atuação em juízo. Ele é definido legalmente como “entidade judicante com jurisdição em todo o
território nacional” (art. 4º). Bem entendida, tal definição diz respeito à chamada jurisdição
administrativa e não judicial, visto que a autarquia integra o Poder Executivo e não o Judiciário. É,
segundo propõe parte da doutrina de direito público, uma entidade com caráter de órgão
administrativo de função quase judicial, categoria de que seriam exemplos, além do CADE, também
o Tribunal Marítimo, os Conselhos de Contribuintes e outros (cf. Meirelles, 1981:129; Carvalho,
1986:207/210). Aos chamados órgãos administrativos quase judiciais correspondem, contudo,
apenas maiores formalidades na preparação e edição dos respectivos atos. Tais formalidades são
muito semelhantes às praticadas no Judiciário. Mas a solenidade com que reveste os julgamentos,
bem assim o detalhamento legislativo da disciplina de tramitação dos processos administrativos não
são fatores suficientes para alterar a qualidade jurídica dos atos emanados do CADE. Sua natureza é
igual à dos atos emanados dos demais órgãos administrativos. Abstraídas as formalidades, estas sim
quase judiciais, as sanções do CADE têm rigorosamente a mesma natureza administrativa das
aplicadas por qualquer fiscal de normas edilícias de uma Prefeitura, ou pela Polícia de Trânsito, em
estradas estaduais. Seus pronunciamentos, em suma, a despeito das formalidades próximas às dos
órgãos judiciais, não fazem coisa julgada e estão sujeitos sempre à revisão pelo Poder Judiciário, na
mesma medida de todos os demais atos administrativos (CF, art. 5º, XXXV).
Além da competência relacionada à coibição das práticas infracionais, tem o CADE atribuições
preventivas, cabendo nota à relacionada com a aprovação dos atos que possam limitar ou prejudicar
a livre concorrência ou resultar dominação de mercado, como os de concentração empresarial (Lei n.
12.529/2011, art. 88).
O CADE é composto por três órgãos: a) Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, órgão
judicante integrado por um Presidente e seis Conselheiros; b) Superintendência-Geral, à qual
compete, por exemplo, instaurar e instruir os processos administrativos relacionados à infração da
ordem econômica; c) Departamento de Estudos Econômicos, dirigido pelo Economista-Chefe,
incumbido de estudos e pareceres econômicos que subsidiem as decisões da Superintendência e do
Tribunal.
A repressão administrativa às infrações da ordem econômica compete ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), entidade
judicante integrante da administração indireta (autarquia) vinculada ao Ministério da Justiça.
3.2. Natureza da Competência do CADE
A doutrina de direito econômico ensaia uma classificação das experiências legislativas em
matéria de defesa da concorrência reportando-se a dois diferentes sistemas. De um lado, o que
proíbe restrições à concorrência pelos danos potenciais que produzem e, de outro, o que as reprime
somente pelos danos efetivamente produzidos. A tendência do primeiro é a de tomar a concorrência
como um fim em si mesmo (teoria da concorrência-condição), com total abstração dos muitos
outros aspectos econômicos relacionados com a prática anticoncorrencial. A tendência do outro
sistema é a de considerar a concorrência como apenas um dos diversos bens da estrutura do livre
mercado dignos de tutela (teoria da concorrência-meio). Para os ordenamentos econômicos desse
último sistema, a repressão aos acordos, oligopólios, monopólios ou domínio de mercado está
condicionada ao prejuízo ao interesse geral (cf. Santos-Gonçalves-Marques, 1991:361).
O direito norte-americano é exemplo típico de ordenamento filiado ao sistema da concorrênciacondição, e mesmo lá a jurisprudência tem atenuado a rigidez das proibições legais, mediante a
pesquisa das razões motivadoras da prática anticoncorrencial (rule of reason) ou de seu caráter
subsidiário e razoável (ancillary restraint doctrine). Por outro lado, o próprio estatuto legal, o
Sherman Act, de 1890, a primeira lei antitruste norte-americana, submete à prudência do juiz
(discretion of the court) a definição da pena cabível contra as práticas restritivas de mercado
(Sullivan-Harrison, 1988:77/84). Nos Estados Unidos, é amplamente discutido se as condutas
restritivas da concorrência por cartéis devem ser sancionadas sempre que celebrado o contrato de
atuação concertada (“per se” rule of illegality), ou se a punição dependeria da análise da
razoabilidade ou não do procedimento empresarial em referência (rule of reason). No contexto
daquele direito, um acordo de uniformização de preços, por exemplo, pode ser visto ou como
absolutamente injurídico, em si e por si mesmo considerado, independentemente da indagação de
seus efeitos (cf. Sullivan, 1977), ou como jurídico, em razão de sua razoabilidade, caso a principal
função não tenha sido a de limitar a competição. Em outros termos, se duas empresas firmam acordo
de uniformização de preços, com o objetivo de restringir a concorrência, a jurisprudência norteamericana tende a puni-las sempre, ainda que eventualmente os preços concertados sejam razoáveis e
os consumidores se beneficiem. Mas, se a restrição da concorrência não é o objetivo principal do
ajuste, então o exame da razoabilidade dos efeitos ganha realce, devendo ser afastada a punição se a
conduta empresarial for justificável. Essa tendência é identificada pela doutrina, apesar da
dificuldade de se sistematizarem os muitos pronunciamentos judiciais sobre a matéria antitruste
(Sullivan-Harrison, 1988:82; Morgan, 1994:510 e ss.).
Por sua vez, o direito comunitário europeu filia-se ao sistema da concorrência-meio, e a
declaração de inaplicabilidade da legislação comunitária antitruste pressupõe o que se convencionou
chamar de “balanço econômico”, em que tem relevo a melhoria da produção ou distribuição, o
progresso técnico e econômico, os benefícios aos consumidores e a necessidade ou desnecessidade
da restrição, relacionados com a conduta empresarial investigada (Burkhardt, 1995; Santos- Gonçalves-Marques, 1991:383/384 e 431). Na Europa, não se distinguem acordos com função
econômica primordialmente restritiva e acordos com mero efeito subsidiário restritivo, prevalecendo
a análise da razoabilidade dos efeitos em todos os casos, mesmo naqueles em que o objetivo
pretendido pelo empresário ou empresários em atuação concertada seja o de restrição da
concorrência.
Conforme a lição de Benjamin Shieber (1966:97/105), a solução do direito antitruste brasileiro,
desde a edição da lei de 1962, tem sido a de se situar mais próxima ao enfoque europeu no
tratamento da matéria, dando sempre relevância à razoabilidade dos acordos empresariais de efeitos
direta ou indiretamente restritivos. Na aplicação de medidas sancionadoras, o direito brasileiro não
poderia distanciar-se da tendência mundial de considerar todos os efeitos da prática
anticoncorrencial, benéficos ou prejudiciais. A tutela da liberdade de concorrência e repressão às
práticas empresariais restritivas, em geral, repercutem positivamente em todos os demais setores da
estrutura econômica. Contudo, isso pode não se verificar, e de fato não se verifica, em diversas
oportunidades. Não há bom senso, nem assim pode querer a lei, na defesa da competição como um
valor abstrato, em detrimento de efetiva melhoria de níveis de emprego, desenvolvimento
tecnológico, melhor atendimento aos consumidores etc. O CADE, órgão administrativo, é instrumento
da política econômica do Poder Executivo. Há, é certo, garantias institucionais de autonomia,
visando maior imparcialidade de seus julgados. Porém, eles não podem se distanciar dos princípios
básicos norteadores da política econômica implementada pelo Presidente da República, e sua
equipe.
De fato, segundo o que se afirma dos mecanismos constitucionais de prevalência da vontade
popular, ao eleger o Presidente da República, o povo opta por uma determinada forma de tratar o
interesse público (traduzida no programa de governo ou até na inexistência de qualquer tipo de
programa). Empossado na chefia do Poder Executivo, o eleito compõe a sua equipe de governo,
inclusive a responsável pela implementação da política econômica sufragada nas urnas. Ora, a
atuação de qualquer órgão administrativo em descompasso com essa política representa, em última
instância, a negação da vontade popular expressa na eleição presidencial. Abstraindo-se a questão
do funcionamento do poder, muito mais complexa do que faz crer a descrição acima (Coelho,
1992b:75/90), fato é que, juridicamente, a atuação da autarquia antitruste deve estar harmonizada
com a política econômica do governo.
Ora, no contexto, devem-se considerar as muitas hipóteses em que a prática empresarial, embora
tipificada como infração à ordem econômica, repercute favoravelmente em outros aspectos da
economia. Por vezes, a conduta infracional implica maior desenvolvimento econômico regional ou
nacional, decréscimo da taxa de desemprego, geração de tributos, avanços tecnológicos e eficiência
na produção. O CADE não pode simplesmente ignorar eventuais reflexos positivos da prática
empresarial, ao decidir pela aplicação de sanção. Deve, ao contrário, inserir sua atuação na política
econômica (legitimada nas urnas) e, se for o caso, atenuar (Lei n. 12.529/2011, art. 45) ou mesmo
não aplicar a penalidade.
Em outros termos, o CADE, órgão encarregado de apurar a ocorrência do ilícito e julgá-lo, não
dispõe de discricionariedade quando examina a caracterização de infração da ordem econômica. Em
outros termos, o julgamento da existência das práticas infracionais deriva do exercício de
competência vinculada. Não pode, assim, o Conselho considerar infração à ordem econômica a
conduta que o legislador não descreveu como tal, nem pode deixar de considerá-la infração se
corresponder à hipótese legal. Não há interpretação extensiva ou analogia possíveis nessa matéria.
Se os fatos demonstrados no processo administrativo geram a convicção de que agiu o empresário do
modo como a lei caracteriza a infração, então o CADE não poderá deixar de tomá--la por ocorrida.
Ao contrário, se dos fatos colecionados no processo administrativo não decorre essa convicção, mas
sim a de licitude da prática empresarial, então o CADE não poderá considerar a infração existente.
Contudo, à natureza vinculante da competência do CADE para considerar determinada prática
empresarial como ilícita contrapõe-se a discricionariedade para punir ou não o agente econômico
que a perpetrou.
O CADE exerce competência vinculada ao tipificar certa prática empresarial como infração da ordem econômica. Sua competência para
aplicar sanção, contudo, é discricionária.
Inexiste na Lei n. 12.529/2011 dispositivo expresso atributivo de competência discricionária para
não sancionar a infração da ordem econômica. Mas ele não seria realmente indispensável, porque o
seu fundamento repousa, em última análise, na estrutura constitucional do exercício do poder pelo
povo, que obsta interpretações ilimitadas da autonomia administrativa conferida pelo legislador. Há,
por outro lado, isto é certo, dispositivos na legislação antitruste que somente se justificam pela
competência discricionária para a aplicação da sanção. É o caso, por exemplo, do art. 45, pertinente
à gradação da pena, ou do art. 88, § 6º, que autoriza a aprovação de atos restritivos ou prejudiciais
da concorrência.
Antes de encerrar o exame dessa matéria, convém assinalar que a ingerência política na atuação
dos órgãos de defesa da concorrência está se esvaziando, com aumento do prestígio da tecnicidade
das decisões, no mundo todo. A alteração da lei argentina de defesa da concorrência, em 1999,
ilustra bem a tendência, com a transferência da competência para o trato da matéria de um Secretário
de Estado (o de Comércio e Negociações Econômicas Internacionais) para uma autarquia, então
criada, o Tribunal Nacional de Defesa da Concorrência. A despolitização do direito de defesa da
concorrência é exigência do processo de globalização econômica, para o qual a liberdade de
iniciativa e concorrência tem sido, por enquanto, a tônica.
4. CARACTERIZAÇÃO DA INFRAÇÃO DA ORDEM
ECONÔMICA
A caracterização da infração da ordem econômica é feita pela indispensável conjugação de dois
dispositivos da Lei Antitruste, o art. 36 e seu § 3º da Lei n. 12.529/2011. Isto é, a conduta
empresarial correspondente a qualquer um dos incisos do § 3º do art. 36 somente é infracional se o
seu efeito, efetivo ou potencial, no mercado estiver configurado no caput do referido dispositivo;
especificamente, se dela resultar dominação de mercado, eliminação da concorrência ou aumento
arbitrário dos lucros (o exercício abusivo de posição dominante não configura categoria autônoma:
item 4.5). A norma constitucional programadora da Lei Antitruste (CF, art. 173, § 4 º) circunscreve
com clareza o conjunto das condutas empresariais suscetíveis de repressão legal. Diz a Constituição
que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise determinados efeitos lesivos às estruturas
do livre mercado. Assim dispondo, estabelece que outros modos de exercício do poder econômico,
incapazes de redundarem os efeitos assinalados, são, em virtude da proeminência do princípio da
livre competição, plenamente jurídicos, lícitos.
Tome-se um exemplo. É corrente e legítimo, no meio empresarial, conceder tratamento
diferenciado a revendedores, com base exclusivamente em critérios subjetivos. Imagine-se o
fabricante de componentes de veículos automotores terrestres negociando a mesma peça, em igual
quantidade, com dois diferentes revendedores: um deles, tradicional e próspero comerciante, bom
pagador, operando há décadas na atividade e com quem o industrial sempre manteve excelentes e
frutíferas relações; o outro, recém-estabelecido no ramo, desconhecido e com fama de mau pagador.
É justo, técnico, normal e lícito diferenciar, exclusivamente sob o ponto de vista subjetivo, os dois
revendedores, concedendo ao primeiro vantagens comerciais negadas ao outro. Em geral, a
diferenciação nas condições de negócio não produz efeitos senão nas próprias relações privadas
entre os contratantes, inserindo-se a matéria exclusivamente no campo da autonomia da vontade.
Não haverá infração da ordem econômica se os efeitos do tratamento discriminatório não
ultrapassarem os limites das relações negociais entre os empresários envolvidos. Mesmo
ultrapassando tais limites, pode se verificar hipótese em que não é caracterizada infração. Com
efeito, o tratamento discriminatório pode ser, em determinadas situações, mecanismo de implemento
da competitividade. É o caso, por exemplo, em que o fabricante, com o intuito de conquistar o
mercado de uma região distante da sede de sua fábrica, oferece aos distribuidores situados nesse
mercado um desconto, no preço dos produtos, que possa compensar o custo mais elevado do
transporte, negando aos distribuidores mais próximos, operadores de mercados já conquistados, o
mesmo benefício. A discriminação aqui é o fator que propiciará o aumento da competitividade no
mercado em que o empresário pretende ingressar, inexistindo, assim, infração da ordem econômica
(o exemplo é de Cuevas, 1983:553/555). Somente se o tratamento diferenciado, ao produzir efeitos
para além das relações comerciais do exclusivo interesse dos agentes diretamente envolvidos, puder
ocasionar domínio de mercado, eliminação de concorrência ou aumento arbitrário de lucros, então a
própria estrutura do livre mercado estará em risco. Somente assim, a discriminação configura
ilicitude.
Não há, portanto, como caracterizar a infração da ordem econômica, isolando-se o descrito em
cada um dos dispositivos legais componentes da estrutura da hipótese infracional. Aliás, o próprio §
3º do art. 36 da Lei n. 12.529/2011 preceitua expressamente a indispensabilidade da remissão ao
caput do dispositivo daquela lei, ao fixar que as condutas nele exemplificadas são infracionais “na
medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos”. Em suma, a
caracterização da infração da ordem econômica é feita já pelo texto constitucional (art. 173, § 4º),
apenas reproduzido no art. 36, I a IV, da Lei Antitruste. O elenco de condutas apresentado pelo art.
36, § 3º, é meramente exemplificativo dos instrumentos mais utilizados no abuso do poder
econômico, e não esgotam todas as possibilidades de condutas empresariais lesivas às estruturas do
livre mercado.
Nenhuma prática empresarial é infração da ordem econômica se os seus efeitos — potenciais ou reais — não importam dominação de mercado,
eliminação de concorrência ou aumento arbitrário de lucros.
Assim, a mesma prática pode configurar ou não concorrência ilícita, dependendo dos efeitos que gera ou pode gerar.
Há, por outro lado, duas modalidades fundamentais de infração da ordem econômica. De um lado,
aquelas que somente se viabilizam mediante a realização de acordo, ainda que oral, entre
empresários; e, de outro, as que são perpetradas apenas por um agente econômico. As primeiras
denominam-se colusão e podem ser de três categorias: as horizontais, quando envolvem apenas
empresários situados no mesmo estágio da produção e circulação econômica (por exemplo,
industriais concorrentes em atuação concertada); as verticais, quando envolvem empresários
situados em estágios diferentes da produção e circulação econômica (por exemplo: fornecedor e
distribuidores em atuação concertada); ou de concentração, quando empresas passam a submeter-se
à mesma direção econômica com ou sem perda de autonomia jurídica (cf. Faria, 1992:15/18).
4.1. Irrelevância da Culpa
Para se caracterizar a infração da ordem econômica, é irrelevante se os agentes ativos agiram ou
não com culpa. A responsabilidade administrativa, segundo o previsto na lei, decorre de avaliação
objetiva dos efeitos da conduta empresarial. Se a prática em consideração implica ou mesmo pode
implicar certos resultados — os reputados comprometedores das estruturas do livre mercado pelo
art. 173, § 4º, da CF —, então não interessa indagar se o empresário os pretendeu ou, não os
pretendendo, agiu com imprudência, negligência ou imperícia.
Convencionou-se chamar a hipótese de responsabilidade objetiva. Essa categoria, a rigor, é
pertinente à composição das perdas e danos por atos lícitos (responsabilidade do estado, do INSS
por acidente de trabalho, do fornecedor por acidentes de consumo etc.), de modo que a sua
transposição para o direito antitruste deve ser feita com cautelas, porque a responsabilidade por
infração da ordem econômica, embora independa de culpa do agente, configura sempre um ilícito.
A responsabilidade civil ou se funda na culpa (subjetiva) ou na possibilidade de socialização das
repercussões econômicas do dano (objetiva). No primeiro caso, o fundamento da atribuição de
responsabilidade é, em última análise, a manifestação da vontade, isto é, a noção clássica de que
toda obrigação apenas pode originar-se da vontade do devedor. Se uma pessoa produz danos a outra,
há só duas possibilidades: ou poderia tê-los evitado ou não. Se não os poderia ter evitado, a hipótese
é de caso fortuito ou força maior, e inexiste responsabilidade; se poderia e o não fez, manifestou uma
certa vontade. No caso da responsabilidade objetiva, o fundamento último não é a vontade do agente,
mas a possibilidade de o responsável socializar entre as pessoas de determinado grupo as
repercussões econômicas do evento danoso. Na responsabilidade objetiva, o agente responde por ato
lícito, que ele não provocou nem poderia ter evitado. A imputação de responsabilidade, contudo, é
racional e justificável, a despeito da inexistência de vontade em causar danos, porque o agente tem
plenas condições, pela posição econômica que ocupa, de socializar as repercussões do evento
danoso (cf. Coelho, 1997:10/17).
O fabricante, por exemplo, responde objetivamente pelos danos derivados de acidente de
consumo. Quer dizer, ainda que tenha dotado sua empresa da mais moderna tecnologia e mais
apurado controle de qualidade, alguns produtos sairão da linha de montagem defeituosos e poderão
causar lesões a consumidores. Não se caracteriza culpa ou dolo do empresário, na hipótese, já que,
no exemplo, lançou mão dos recursos mais desenvolvidos que o conhecimento humano pôde
engendrar. Na doutrina tradicional da responsabilidade civil, essa hipótese de acidente de consumo
teria a natureza de caso fortuito ou força maior. Na legislação consumerista, inclusive a brasileira, a
responsabilidade é imputável ao fabricante porque ele pode, por meio de mecanismos de
composição do preço de seus produtos, distribuir entre os consumidores as repercussões econômicas
do acidente (Cap. 8, item 7).
A legislação estipuladora de responsabilidade administrativa em geral desconsidera o elemento
subjetivo concernente às intenções do infrator ao descrever os comportamentos infracionais.
Cogitem-se, para ilustração da afirmativa, as multas por descumprimento das posturas edilícias, por
infração às normas de trânsito, por descumprimento de obrigação tributária instrumental, ou as penas
próprias do regime dos servidores públicos. Em todos esses casos, o fundamento da
responsabilização não é a culpa do responsabilizado, mas sim o efeito prejudicial da conduta típica
(para o trânsito, para a administração tributária, para o serviço público etc.).
Portanto, chamar objetiva a responsabilidade por infração da ordem econômica se justifica apenas
por uma semelhança com a categoria do direito civil, consistente na irrelevância da culpa. Mas,
rigorosamente falando, não há objetivização da responsabilidade do agente ativo porque, embora
haja a possibilidade de socialização das repercussões econômicas do dano, nas situações
relacionadas à infração da ordem econômica, a responsabilização decorre sempre de prática ilícita.
A responsabilização administrativa do empresário em virtude de infração da ordem econômica independe de culpa. No entanto, não é técnico
chamar a hipótese de “objetiva”, à semelhança do que se verifica com a responsabilidade civil independente de culpa. Isto porque a infração da
ordem econômica é sempre um ato ilícito.
O legislador antitruste, na verdade, apenas passou a adotar a melhor tradição do direito na
disciplina da imposição de sanções administrativas, desconsiderando o elemento subjetivo e dando
relevo aos efeitos potenciais ou efetivos da conduta empresarial indesejada. Sob a égide do antigo
direito antitruste brasileiro, parte da doutrina considerava indispensável o dolo para a caracterização
do abuso do poder econômico (Medeiros da Silva, 1979:31), questão que está totalmente superada
no contexto do direito atual (cf. Denozza, 1988:44/45).
4.2. Prejuízo à Livre Concorrência ou Livre-Iniciativa
O direito positivo (Lei n. 12.529/2011, art. 36, I) estabelece que os atos de qualquer natureza que
tenham o efeito, potencial ou real, de limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a livreiniciativa são definidos como infração da ordem econômica.
Lei n. 12.529/2011
Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por
objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I — limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre-iniciativa;
II — dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III — aumentar arbitrariamente os lucros; e
IV — exercer de forma abusiva posição dominante.
Há quem distinga entre a livre concorrência e a livre-iniciativa, definindo a primeira como o
princípio norteador dos limites da última. Assim, afirma-se que todos têm direito de se
estabelecerem no exercício de atividade econômica, desde que o façam competitivamente. Para os
fins operacionais de aplicação da legislação antitruste, não tem maior importância a distinção entre
livre concorrência ou liberdade de iniciativa. Se a limitação, falseamento ou prejuízo atingiu a
liberdade de concorrer ou a liberdade de empreender, as repercussões jurídicas são rigorosamente
idênticas.
Limitar a livre concorrência ou a livre-iniciativa é barrar total ou parcialmente, mediante
determinadas práticas empresariais, a possibilidade de acesso de outros empreendedores à atividade
produtiva em questão. Em geral, a obstaculização do acesso decorre do aumento dos custos para
novos estabelecimentos, provocado com vistas a desencorajar eventuais interessados. A venda de
produtos ou serviços por preços abaixo do custo, por exemplo, pode ser suportada temporariamente
por empresários já estabelecidos em dada atividade. Isso, no entanto, aumenta o custo de ingresso na
atividade, porque amplia a previsão de amortização do investimento inicial, ao forçar os preços
daquele mercado para baixo. Aliás, a simples ameaça, dos empresários estabelecidos, no sentido de
virem a praticar preços abaixo do custo já é suficiente para desestimular outros empresários a se
estabelecerem no mesmo segmento de mercado.
Falsear a livre concorrência ou iniciativa significa ocultar a prática restritiva, por meio de atos e
contratos aparentemente compatíveis com as regras de estruturação do livre mercado. A expressão
falsear, também utilizada pelo legislador português, em atenção ao Tratado de Roma, sugere ideia
mais ampla que a de simulação, relativa aos defeitos dos atos jurídicos. Pode haver falseamento da
concorrência, sem que o negócio jurídico que o viabiliza se caracterize como simulado. Imaginem-se
algumas empresas oligopolizadas celebrando contrato de troca de informações sobre custos
operacionais, com vistas a ocultarem a ação concertada na fixação de preços. A caracterização da
infração da ordem econômica e imposição da sanção administrativa independem da prova de
simulação. Quer dizer, as autoridades não precisam demonstrar a existência do defeito do ato
jurídico como condição da sanção, nessa modalidade específica de infração da ordem econômica.
Claro está, por outro lado, que a prática de negócio simulado pode servir de indício de falseamento.
Prejudicar a livre concorrência ou iniciativa, por fim, significa incorrer em qualquer prática
empresarial lesiva às estruturas do mercado, ainda que não limitativas ou falseadoras dessas
estruturas. Trata-se de conduta difícil de se exemplificar em nível conceitual. A previsão normativa
se explica como cautela do legislador, tendo em conta as imprevisíveis e variadíssimas
possibilidades abertas pelas múltiplas formas de relacionamento entre empresas, de que podem
derivar restrições horizontais ou verticais.
Note-se, por fim, que a Constituição Federal menciona como reprimíveis pela lei o abuso do
poder econômico que visa à eliminação da concorrência (art. 173, § 4º). Ora, não é feita específica
referência no texto constitucional à limitação, ao falseamento e ao prejuízo da livre concorrência,
que são formas de eliminação parcial e não total da competição. Nesse contexto, insere-se
interessante questão, suscitada já ao tempo da lei anterior, respeitante à constitucionalidade da
repressão legal às condutas empresariais que apenas em parte eliminam a concorrência. Medeiros da
Silva, examinando a norma correspondente da lei de 1962, que tipificava como abuso do poder
econômico a eliminação parcial da concorrência, manifestou opinião no sentido de que havia
inconstitucionalidade na previsão legal. Para ele, a falta de distinção na Carta Fundamental entre as
diversas formas de eliminação significaria que o constituinte apenas teria reputado abusiva a
eliminação total da competição (1979:32/33). Não considero, contudo, que houvesse
inconstitucionalidade, mesmo no antigo direito antitruste. Ademais, a eliminação total da competição
é fato raro, e as estruturas do livre mercado precisam ser protegidas principalmente contra as
condutas de eliminação parcial, muitíssimo mais comuns.
4.3. Mercado Relevante
Para a caracterização de posição dominante, é indispensável a definição do que se convencionou
chamar por mercado relevante , ou mercado em causa. A dominância nunca diz respeito a toda a
atividade econômica, mas a segmentos delineados, cujos contornos devem ser pesquisados e
estabelecidos para a caracterização da infração da ordem econômica. Como lecionam Santos,
Gonçalves e Marques, a noção de posição dominante é relativa e somente tem sentido com a concreta
definição geográfica e material do mercado em que a dominância se revela (1991:393). Em outros
termos, para configurar o domínio de mercado por determinados empresários, o primeiro aspecto a
precisar é o mercado relevante. Ninguém domina globalmente a economia de um país como o Brasil,
por mais poder econômico e político que concentre. Devem-se, então, especificar os limites do ramo
de fornecimento de produtos ou serviços em que se manifesta o domínio econômico.
Mercado relevante não é conceito que se refere à importância econômica da atividade em consideração.
Os percentuais de participação no mercado de cada empresário possuem relevância e ganham
expressão na medida em que são conferidos em função dos segmentos específicos em que atuam. Tais
participações certamente se reduziriam e se diluiriam, perdendo sentido jurídico-operacional, se a
referência fosse alargada para maiores parcelas ou mesmo para toda a economia do país. A definição
do mercado relevante é feita, assim, em dois níveis: o geográfico e o material.
A delimitação geográfica do mercado é importante, principalmente no Brasil, em razão das
profundas e variadas diferenças regionais existentes em termos econômicos e mesmo culturais. Não
há necessidade de o mercado relevante abranger todo o território nacional, embora em determinadas
hipóteses isso aconteça. Ou seja, a relevância a que se reporta o legislador não é função quantitativa
do maior ou menor tamanho da base territorial do mercado. Não é necessário, por outro lado, que o
mercado relevante mobilize grandes somas de capital, posto que também não é função quantitativa do
volume de recursos monetários que movimenta. O mercado relevante pode ser, também, o
internacional, fato característico da economia globalizada do nosso tempo.
A delimitação material do mercado é feita a partir da perspectiva do consumidor. O mercado
relevante abrange todos os produtos ou serviços pelos quais o consumidor poderia trocar,
razoavelmente, o produto ou serviço acerca de cuja produção ou distribuição se pesquisa a
ocorrência de infração da ordem econômica. Se a mercadoria ou o serviço pode ser perfeitamente
substituído, de acordo com a avaliação do consumidor médio, por outros de igual qualidade,
oferecidos na mesma localidade ou região, então o mercado relevante compreenderá também todos
os outros produtos ou serviços potencialmente substitutos.
A definição geográfica e material do mercado relevante, portanto, somente pode ser feita mediante
análise casuística. A título de exemplo, imagine-se que determinado atacadista de produtos frutíferos
seja responsável por pequena parcela do mercado de frutas frescas, mas está paulatinamente
adquirindo todas as empresas que fornecem bananas para a região sudeste do Brasil. Para se definir
se tal prática configura ou não domínio de mercado relevante, é necessário desenvolver raciocínio a
partir da perspectiva do consumidor da base territorial referida. Assim, se na região sudeste do
Brasil, consome-se qualquer tipo de frutas frescas nas refeições, sendo considerada dispensável a
banana em qualquer circunstância, então o mercado relevante é o das frutas frescas, e o empresário
não está incorrendo em nenhuma conduta infracional, na medida em que participa em pouca escala
desse segmento. Entretanto, se o consumidor morador daquela região faz questão da banana em
determinadas ocasiões, quando não a substitui por nenhuma outra fruta, então o mercado relevante é o
da banana, e o empresário incorre em prática de dominância de mercado ao adquirir todas as
empresas desse segmento mercadológico (cf. Santos-Gonçalves-Marques, 1991:438).
A definição do mercado relevante é casuística e leva em conta duas variáveis, a geográfica e a material. Essa última se delineia a partir da
perspectiva do consumidor.
Uma vez encontrado o mercado relevante, é necessário verificar se o fornecedor, intermediário,
adquirente ou financiador do produto ou serviço (ou da tecnologia neles empregada) controla o
respectivo segmento da atividade econômica. Isto é, se as operações e negócios que desenvolve
repercutem consideravelmente nas decisões adotadas pelos demais agentes econômicos que operam
no mesmo mercado. Há a presunção de tal controle, quando a participação do empresário é da ordem
de vinte por cento (Lei n. 12.529/2011, art. 36, § 2º). Quer dizer, se o agente econômico desenvolve
operações que correspondem a esse percentual, então presume a lei que há o controle do mercado e,
consequentemente, o domínio.
4.4. Aumento Arbitrário de Lucros
No regime capitalista de produção, o lucro é o elemento propulsor da iniciativa dos particulares.
Sem a motivação de ganhos atraentes, dificilmente as pessoas se lançariam a um empreendimento
econômico, suportando seus riscos e percalços. Dariam às suas energias e recursos melhor destino.
Nesse contexto, revela-se plenamente compatível com a constituição econômica brasileira os atos,
negócios e práticas empresariais destinadas à geração de lucros. Quanto maior a perspectiva de
lucro vislumbrada pelo empresário, mais capital e esforço ele se sentirá motivado a investir em
determinada atividade.
Em suma, as estruturas do livre mercado se fortalecem e desenvolvem pela busca de lucros. A
concorrência entre os empresários se alimenta da perspectiva de aumento de lucratividade das
empresas. Há, contudo, limites, balizados pela própria constituição econômica, na geração dos
lucros: eles devem ser justificáveis sob o ponto de vista da lógica da livre competição. Pressupõem-
se que os lucros sem justificação dessa ordem são arbitrários, porque podem chegar a comprometer
as estruturas do livre mercado. Por essa razão, tais condutas são reputadas infracionais. Atente-se,
por outro lado, à conjunção aditiva “e”, do final do § 4º do art. 173 da Constituição Federal; ela
sugere que a lei somente pode reprimir abusos do poder econômico que manifestem os 3 efeitos
potencialmente lesivos à economia liberal (dominação de mercado, eliminação da concorrência e
aumento arbitrário dos lucros). É certo, por outro lado, que esses efeitos, em muitas vezes, se
sobrepõem: quem domina mercado também elimina, pelo menos em parte, a concorrência, e viceversa. Pois bem, da ocasional indissociabilidade desses conceitos decorre uma outra formulação
para a questão: arbitrário é o lucro obtido por práticas anticoncorrenciais, não explicável por
nenhuma outra razão econômica.
Grosso modo, portanto, o lucro que não se justifica, sob o ponto de vista tecnológico,
administrativo, econômico ou financeiro, foi produzido de modo arbitrário, por uma prática
empresarial irregular.
O lucro gerado pela regular exploração de atividade econômica, no contexto da competição
capitalista, nada tem de arbitrário, por maior que seja, se a sua origem está relacionada com
investimentos, desenvolvimento tecnológico, política de marketing, boa administração financeira etc.
Ou seja, a justificação do lucro descaracteriza qualquer tipo de arbitrariedade. Se ficar demonstrado
que a causa dos ganhos auferidos pelo empresário se insere no contexto da regular concorrência, não
existirá o tipo infracional. Reafirme-se, por outro lado, que a caracterização da arbitrariedade dos
lucros não é uma questão quantitativa: o lucro pode ser arbitrário, apesar de sua reduzida expressão,
assim como pode ser elevadíssimo sem que se revele qualquer forma de arbitrariedade.
Lucro arbitrário é aquele que não decorre de inovações tecnológicas, medidas de racionalidade administrativa da empresa ou de outros
fatores justificáveis.
Por fim, e em termos muito gerais, duas são as possibilidades de geração de lucro na empresa
capitalista: aumento da receita ou redução dos custos. A legislação anterior punia como abuso do
poder econômico apenas o lucro injustificável (quer dizer: arbitrário) derivado de aumento do preço
sem justa causa. Pela lei de 1994, é ilícita a produção de lucros arbitrários decorrentes não somente
do aumento dos preços, mas também de receitas de outra natureza, como as de venda de ativos, por
exemplo. Também será caracterizável a infração, se os lucros arbitrários se originarem da redução
de custos. Se o empresário tem exclusivo acesso a determinada fonte de insumo, os seus custos
podem ser menores do que os dos concorrentes e isso pode ter o efeito de gerar lucros arbitrários,
caracterizando-se a infração da ordem econômica (Lei n. 12.529/2011, art. 36, V), ainda que os
preços praticados não se elevem.
4.5. Abuso de Posição Dominante
O previsto no inciso IV do art. 36 da Lei Antitruste é, em vista da interpretação sistemática do
dispositivo, mera redundância. Com efeito, o que significa “exercício de posição dominante de
forma abusiva”? Ou, em outros termos, o que quer dizer “abuso de posição econômica dominante”?
A resposta somente pode se encontrar no próprio texto constitucional, que fixa os contornos
básicos da disciplina da atividade econômica. Deve-se partir, portanto, do art. 173, § 4º, da CF, em
cujos termos se encontram os limites dentro dos quais pode se mover o legislador ordinário, ao
dispor sobre o direito antitruste. No referido dispositivo constitucional, encontra-se referência aos
efeitos lesivos à estrutura do livre mercado abrangidos nos três primeiros incisos do art. 36 da
legislação antitruste. A eliminação da concorrência (inc. I), a dominação de mercado (inc. II) e o
aumento arbitrário de lucros (inc. III) são expressamente mencionados pelo § 4º do art. 173 da
Constituição Federal.
Mas o abuso de posição dominante não foi lembrado pelo constituinte como efeito lesivo à ordem
econômica, que se pudesse distinguir dos demais efeitos compreendidos na mesma disposição
constitucional. Ou seja, o abuso da posição dominante não pode ser considerado pela legislação
ordinária um efeito autônomo, independente dos outros identificados pela norma constitucional. Se
assim eventualmente pretendesse o legislador ordinário, ele estaria incorrendo em
inconstitucionalidade, indo além dos limites fixados pela ordem fundamental vigente. Limitar, falsear
ou prejudicar a concorrência, dominar mercado relevante e aumentar arbitrariamente os lucros são
maneiras de se exercer abusivamente a posição dominante. Não há como incorrer em conduta capaz
de gerar os efeitos referidos no art. 173, § 4º, da Constituição, e reproduzidos nos incisos I a III do
art. 36 da Lei Antitruste, senão por meio do exercício abusivo de posição dominante. O sentido
adequado para a exegese desse dispositivo somente pode ser, por conseguinte, o de síntese da
matéria abrangida já pelos outros incisos do mesmo artigo. Em outros termos, se não for considerado
redundante, a norma em questão (o inciso IV) será necessariamente inválida, por
inconstitucionalidade, já que estaria reprimindo práticas empresariais além da autorização contida na
Constituição Federal. O princípio hermenêutico da inexistência de termos inúteis na lei cede, por
evidente, diante da supremacia constitucional.
4.6. Paralelismo de Preços ou Conduta
A cartelização ordinariamente está acompanhada do alinhamento de preços. Como o objetivo dos
concorrentes em colusão é o de alcançarem os mesmos ganhos que adviriam da monopolização, eles
devem praticar preço próximo, com variações desprezíveis, que definem por meios diretos ou
indiretos. Mas mesmo em segmentos de mercado onde impera a livre competição, pode-se verificar a
prática de preços fixados em valores próximos para produtos concorrentes. O paralelismo na fixação
do preço não é indicativo necessário da existência de colusão entre os agentes econômicos. Assim,
embora a restrição de concorrência por meio do cartel normalmente importe o alinhamento dos
preços, nem sempre estão em colusão os concorrentes que praticam preços alinhados.
A economia conhece e descreve hipóteses em que o alinhamento de preços nada tem de colusivo.
Uma delas é a interdependência dos concorrentes. Quando são homogêneos os produtos, equivalem
as tecnologias empregadas e os custos para a produção se assemelham, é natural supor que os
competidores tendem a praticar preços próximos (Sullivan, 1977:164). Os pãezinhos são vendidos
nas padarias de uma mesma localidade por preços em geral idênticos em razão dessa
interdependência. Os padeiros não fecham nenhum acordo visando a restrição da competição entre
eles. Simplesmente as condições econômicas sob as quais fabricam o produto são de tal modo
semelhantes que os preços naturalmente se aproximam.
Outra hipótese de alinhamento não derivada de cartelização do mercado que a economia estuda é
a liderança de preços. Em segmentos em que atuam uma ou poucas empresas de porte e várias
pequenas, a tendência é de estas últimas alinharem seus preços com os daquelas, seguindo-as nos
aumentos e reduções. A definição do preço mais adequado para o produto não raras vezes demanda
estimativas, avaliações e estudos que os pequenos empresários não têm como custear, sendo mais
fácil para eles imitarem (proporcionalizando) os líderes do setor (Cf. Forgioni, 1998:338). No
mercado de pneumáticos, houve tempo em que pequenos fabricantes costumavam praticar preços
equivalentes a determinado percentual do praticado pelas empresas líderes, sem que houvesse a
mínima conduta concertada entre eles.
Tanto a interdependência dos concorrentes como a liderança de preços podem configurar ato
anticoncorrencial, mesmo não havendo colusão, quando acompanhada de outros elementos como o
controle cruzado dos interdependentes ou a imposição pelo líder do seu preço aos demais players.
Mas interessa sublinhar que, ausentes esses ingredientes, a simples proximidade dos preços
praticados por concorrentes não indica a presença necessária do cartel, já que há alinhamentos
provenientes do regular funcionamento do mercado de livre competição. Exatamente porque o
alinhamento de preços não indica, por si só, a cartelização, as autoridades antitruste sempre se
depararam com o problema de distinguir as situações em que o paralelismo é indício de colusão
daquelas em que ele não o é.
A autoridade antitruste norte-americana (a Federal Trade Commission — FTC), em precedentes
famosos, assentou o entendimento de que a prova da existência de cartelização não depende
necessariamente da existência de um contrato expresso entre os concorrentes em colusão. O mais
citado de todos é o American Tobaco v. United States, julgado pela Suprema Corte em 1946, no qual
se decidiu que a condenação judicial pela formação de cartel não depende necessariamente da prova
de contrato expresso entre as empresas em colusão, bastando demonstrar o concerto das condutas
(Morgan, 1994:269/280). O cartel, assim, é condenável como anticoncorrencial tanto na hipótese de
acerto explícito entre os conluiados, como tácito. Afinal, se conscientemente os concorrentes agem
de modo uniforme, ainda que não tenham feito nenhum acordo, os efeitos deletérios para os
consumidores são idênticos ao de um cartel.
O paralelismo de preços, em suma, pode indicar a colusão fundada num acordo expresso, num
acordo tácito (por vezes, chamado de “paralelismo consciente”) ou simplesmente o regular
funcionamento do mercado. O desafio do direito antitruste consiste em distinguir basicamente essas
duas últimas hipóteses. No enfrentamento dessa questão, considera-se que o paralelismo de preços
não é indício de cartelização tacitamente estabelecida quando há explicação econômica que o
justifica como manifestação do regular funcionamento do mercado. Em outros termos, para que se
configure o ilícito, é necessário um plus factor, isto é, um elemento a mais além do paralelismo de
conduta (Sullivan-Harrison, 1992:125). Essa formulação ficou conhecida como a teoria do “algo
mais que o paralelismo” ou “paralelismo plus”. Por ela, em síntese, do simples fato de concorrentes
praticarem preços próximos não deriva nenhum ilícito concorrencial se é justificável, sob o ponto de
vista econômico, o paralelismo e não há outros elementos caracterizadores de colusão.
De acordo com a doutrina do paralelismo plus não basta à caracterização da infração da ordem econômica o mero alinhamento de preços ou
condutas, sendo necessário algo mais, sem suficiente explicação econômica, para que a autoridade antitruste possa concluir pela existência de
cartel.
A doutrina do paralelismo plus tem sido adotada pelas autoridades antitruste brasileiras. Em
2001, as três grandes fabricantes de papel higiênico reduziram 25% o comprimento dos rolos de
papel de alta qualidade. Note que não se trata, aqui, propriamente de paralelismo de preço, mas de
conduta. O algo a mais tipificador da infração considerado pelo CADE foi o fato de os
supermercados terem recebido destes três fabricantes aviso a respeito da futura redução dos rolos,
antes de qualquer uma delas ter feito a entrega do produto no novo tamanho. Se fosse o caso de
liderança, não se explicaria o aviso prévio simultâneo, porque as empresas seguidoras não teriam
como antever o comportamento do líder. Fica claro que houve troca de informações entre os
concorrentes, característica do cartel. O CADE também adotou a teoria do paralelismo plus ao
instaurar, em 1997, processo para investigar a cartelização na comercialização de aço plano comum,
entre três empresas líderes do segmento. Neste processo, a autoridade antitruste brasileira concluiu
pela caracterização do cartel, considerando como plus a realização de uma reunião entre as empresas
representadas, ocorrida nas dependências de um órgão governamental (SEAE), em que o objetivo era
o de comunicar ao governo os preços que passariam a adotar.
Esses precedentes demonstram o tipo de elemento adicional que o CADE exige para considerar
que o paralelismo de conduta seria indicativo de cartelização. Como se pode notar, o “algo a mais”
tipificador de infração da ordem econômica é exatamente a colusão, o acordo sobre preços a praticar
(ou outra conduta que impacte os preços, como, por exemplo, no caso da redução uniforme do
tamanho do rolo de papel higiênico de alta qualidade). Não existindo esse ingrediente no contato
entre as empresas concorrentes e sendo justificável economicamente o paralelismo de preços ou de
conduta, não há ilícito nenhum.
5. CONDUTAS INFRACIONAIS
A interpretação do art. 36, § 3º, da Lei n. 12.529/2011 não pode ser feita isoladamente. As
condutas descritas nos vinte e quatro incisos do dispositivo não configuram, por si só, infração da
ordem econômica. Para a caracterização do ilícito, é necessário que a conduta descrita tenha ou
possa ter alguns dos efeitos precisamente delineados pela norma constitucional programadora da
legislação antitruste (art. 173, § 4º) e reproduzidos no art. 36, I, II e III, da mesma lei.
Ou seja, haverá infração da ordem econômica somente se a conduta descrita no § 3º do art. 36 da
Lei Antitruste implicar efetivamente, ou puder implicar, em tese, a eliminação da concorrência, o
domínio de mercado ou o aumento arbitrário de lucros. Se a conduta em foco não produzir, mesmo
em termos potenciais, qualquer um dos efeitos lesivos às estruturas do livre mercado não desejados
pelo constituinte, ainda que represente o exercício de um poder econômico, não existirá ilegalidade.
A título de exemplo, considere-se que as franqueadoras normalmente fixam o preço final ao
consumidor dos produtos e serviços de suas franqueadas. Ora, essa situação corresponde ao
comportamento descrito no inciso IX do mesmo art. 36 (“impor, no comércio de bens ou serviços, a
distribuidores ... preços de revenda ”), mas não se caracteriza, em princípio, a infração da ordem
econômica. Isso porque o efeito da imposição de preços não lesa as estruturas do livre mercado —
não elimina a concorrência, não gera lucros arbitrários e não importa dominação de mercado. Ao
contrário, é parte indissociável do negócio da franquia a uniformização da rede, em todos os
aspectos do negócio, inclusive e principalmente quanto aos preços praticados, devendo ser desligada
da franquia a franqueada que desatender a essa definição da franqueadora.
A caracterização das condutas infracionais foi feita, rigorosamente falando, não pela legislação
antitruste, mas sim pela própria Constituição Federal (cf. Faria, 1990:155/161). Esta, no art. 173, §
4º, delimitou com precisão quais condutas empresariais comportam repressão pela lei ordinária.
Além dos limites traçados por esse dispositivo, vigora em plenitude o princípio da livre-iniciativa.
Não pode o legislador, sob pena de inconstitucionalidade, reprimir qualquer tipo de comportamento
que não configure abuso do poder econômico praticado com o objetivo de produzir determinados
efeitos comprometedores das estruturas do livre mercado (eliminação da concorrência, lucratividade
arbitrária ou domínio de mercado). Ao seu turno, o intérprete também não pode ignorar que os
contornos básicos da matéria se esgotam no texto constitucional, devendo sempre contextualizar as
normas da legislação ordinária antitruste.
São as seguintes, portanto, as condutas infracionais exemplificadas pelo art. 36, § 3º, da Lei
Antitruste:
Lei n. 12.529/2011
Art. 36. (...) § 3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos,
caracterizam infração da ordem econômica:
I — acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:
a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;
b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de
clientes, fornecedores, regiões ou períodos;
c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes,
fornecedores, regiões ou períodos;
d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública.
a) Preços concertados — uma das principais modalidades de infração à ordem econômica é o
acordo entre concorrentes para a prática ou fixação de preços e condições de venda. Normalmente
celebrado entre os maiores agentes econômicos do mercado, pode pretender tanto o aumento como a
redução dos preços.
O aumento concertado dos preços com o objetivo de elevação dos praticados pelos participantes
do negócio redunda, sob o ponto de vista econômico, na transferência de renda dos consumidores
para as empresas do oligopólio. Claro que, mesmo em atividades monopolizadas ou oligopolizadas,
há limites econômicos máximos para a definição de preços, além dos quais haverá queda de procura
e de consumo (elasticidade). Mas isso não significará necessariamente diminuição da margem de
lucro, se os principais empresários operando no mercado mantiverem os níveis concertados,
compatibilizando com estes os custos da produção.
Já a redução concertada de preços tem o efeito econômico de obstaculizar o acesso de outros
empresários ao mesmo mercado. A prática de preços baixos, ainda que importe comprometimento
temporário de parte da margem de lucros, dificulta aos novos agentes se aventurem no mesmo
mercado, já que para competirem com alguma chance de sucesso deveriam praticar preços baixos
também. Ora, se isso é factível para empresários já estabelecidos, com participação consolidada no
mercado, para os demais significa elevação dos custos da produção (pela majoração da perspectiva
de amortização do investimento inicial).
Para a configuração da infração, é necessário que haja efetivo acordo entre os agentes envolvidos.
Não basta apenas o efeito da padronização de preços e condições de negócio. É indispensável que
tenha havido realmente algum tipo de entendimento entre os empresários com vistas ao tratamento
concertado da questão. Se muitos agentes de certo segmento de mercado praticam preços uniformes
ou paritários, mas não estabeleceram acordo de nenhum tipo nesse sentido, inexiste concerto e
tampouco infração. É a doutrina do paralelismo plus, já examinada (subitem 4.5).
A composição de preços de produtos e serviços envolve complexidades crescentes. Os cálculos
indispensáveis à sua definição pressupõem pessoal técnico especializado, acesso a informações
diversas, definições econômicas, administrativas e jurídicas, equipamento e logiciário apropriados
etc. Os pequenos e médios empresários muitas vezes valem-se dos preços praticados pelas grandes
empresas, para definirem os seus próprios, uma vez que não têm condições nem recursos para
realizarem cálculo de tamanha complexidade. Sem os meios para fixarem com segurança seus preços,
eles simplesmente aguardam o anúncio da tabela do grande empresário e os estabelecem
proporcionalmente (em geral, para menos). Ora, quem de fora se depara com a situação, poderia
imaginar que está diante da prática descrita em lei. Para que ela se configure, contudo, seria
necessário que tivesse ocorrido algum tipo de entendimento entre os empresários de pequeno e
médio porte, de um lado, e o grande, de outro.
Como se trata de elemento indispensável à caracterização da hipótese infracional, a existência do
acordo deve ser demonstrada pela autoridade administrativa como condição para a aplicação da
sanção (ou, na ação judicial de indenização civil, pelo autor diretamente lesado ou legitimado à
defesa de interesse individual homogêneo, difuso ou coletivo). Claro está que não se exige a
apreensão física do instrumento firmado pelas partes, até porque ele não é requisito formal
necessário à celebração do acordo de preços. Imprescindível, a rigor, é a demonstração de que
ocorreu o encontro de vontades, ainda que feita por meio de indícios externos de prática concertada
(doutrina do conscious parallelism: cf. Sullivan-Harrison, 1988:124/127).
É irrelevante, para essa hipótese infracional, a natureza específica do acordo ou entendimento
estabelecido entre os agentes ativos do ilícito. Normalmente, aliás, na tentativa de fugirem à
incidência da lei, os empresários não firmam instrumento denominado “acordo de preços”, ou algo
que o valha, mas procuram formalizar a sua relação negocial de modo aparentemente inofensivo,
celebrando, por exemplo, um simples ajuste de troca de informações comerciais, por meio do qual
viabilizam o concerto dos preços e condições de venda.
b) Divisão de mercados ou de fontes de fornecimento de matéria-prima — no caso da infração
consistente na divisão de mercados ou de fontes de fornecimento de matéria-prima, é pressuposto da
caracterização da conduta o acordo entre os empresários concorrentes (práticas colusivas). Não
caracteriza o ilícito a simples conservação de posições, mediante redução da agressividade na
competição, não decorrente de qualquer forma de entendimento entre os agentes econômicos. Várias
fórmulas foram desenvolvidas pelas práticas comerciais para a divisão de mercados. Como mostram
Sullivan e Harrison (1992:11/112), a mais usual é a divisão de bases territoriais (um empresário
comercializa seu produto na região sudeste do país e o outro na região nordeste, p. ex.), geralmente
associada aos acordos de preços; mas podem-se também tomar por referencial os adquirentes (um
contratante negocia com tais e quais revendedores e o outro com os demais), os produtos negociados
(um transaciona com linhas de produto com as quais o outro não opera) ou mesmo funções
econômicas (um empresário não vende no varejo e o outro não vende no atacado).
Ressalte-se que a divisão de mercados ou de fontes de fornecimento de matéria-prima será
infracional apenas se visar aos efeitos lesivos à estrutura do livre mercado. Quer dizer, se a divisão
é feita com vistas a racionalizar o escoamento de produtos ou serviços, então não existe qualquer
ilicitude. Assim, o concedente, na comercialização de veículos automotores terrestres, é obrigado
por lei a observar, na atribuição de novas concessões, os critérios de potencial de mercado (Lei n.
6.729/79, art. 5º), com o objetivo de racionalizar a definição das áreas operacionais de
responsabilidade de cada concessionário. Nesse caso, estará certamente dividindo mercados entre os
integrantes de sua rede, mas não há comprometimento da livre concorrência, até porque os
consumidores podem optar por adquirirem os veículos de qualquer estabelecimento (Lei n. 6.729/79,
art. 5º, § 3º).
c) Atuação concertada em licitação pública — a conduta consistente na atuação concertada em
licitação pública, para fins de combinação prévia de preços ou ajuste de vantagens, para se
configurar infração da ordem econômica, deve estar inserida no contexto do abuso do poder
econômico, tal como definido na Constituição (CF, art. 173, § 4º). Se duas ou mais licitantes
combinam previamente os preços ou vantagens, mas apenas com o intuito de obter o contrato
administrativo em licitação, sem outras repercussões quanto às estruturas do livre mercado, estará
caracterizado apenas o ilícito penal do art. 90 da Lei n. 8.666/93, mas não a conduta infracional da
lei antitruste.
II — promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;
d) Conduta comercial uniforme ou concertada — conduta comercial é conceito mais amplo que
o de padronização de preços e condições de venda. Compreende essa última, mas apresenta
contornos de maior amplitude. Se um grande empresário pretende ingressar no mercado de
fornecimento de matérias-primas, no qual já atuam umas poucas e pequenas empresas, ele poderia
tentar reunir os industriais adquirentes do insumo, eventualmente insatisfeitos com — diga-se — a
demora na entrega dos produtos, para acenar-lhes com a possibilidade de melhor atendimento, desde
que de imediato e conjuntamente cancelem todos os pedidos feitos junto àqueles fornecedores.
Note-se que o empresário motivador do cancelamento simultâneo dos pedidos, agente ativo da
hipótese infracional agora em exame, não pratica a conduta comercial uniforme ou concertada, que é
realizada pelos industriais adquirentes da matéria-prima em questão. A lei somente caracteriza como
infração o acordo entre concorrentes, em matéria de concerto de preços e de condições de venda, e
nem toda a conduta comercial uniforme ou concertada diz respeito a esses assuntos. No exemplo
acima, a padronização de comportamentos se revelou no cancelamento simultâneo de pedidos.
A hipótese infracional também é usualmente perpetrada por associações ou entidades de
empresários, que servem de instrumentos à motivação da uniformização ou concerto de condutas
comerciais. Rea-firme-se, contudo, que é indispensável à configuração da infração que o objetivo da
adoção de conduta uniforme ou concertada seja o de eliminar a competição, dominar mercado ou
aumentar arbitrariamente os lucros. Se os jornais com circulação nacional uniformizam as
dimensões-padrões para os seus anúncios, motivados por associação de agências de publicidade,
sem outro intuito a não ser o de racionalizar a veiculação de propaganda, não ocorrerá o ilícito.
III — limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
e) Limitação ou obstáculo ao acesso ao mercado — a conduta infracional de limitação ou
obstáculo ao acesso ao mercado é prática em que incorrem agentes econômicos de modo indireto.
Nada poderia ser feito diretamente voltado a impedir ou dificultar o estabelecimento de novas
empresas, sem que se configurasse ilícito penal. A restrição ou a obstaculização do acesso ao
mercado é resultado, por isso, de operações econômicas, mais ou menos sutis. Normalmente, a
limitação ou obstáculo ao acesso de novos empresários a determinado ramo de atividade econômica
decorrem do aumento dos custos para o estabelecimento de empresas nessa atividade. Aumento que
pode ser ocasionado por muitas e variadas condutas empresariais. Têm, por exemplo, o efeito de
aumentar o custo de instalação de novas empresas: a obtenção de exclusividade para o fornecimento
de bens de capital ou de matéria--prima, a prática de preços abaixo do custo etc.
Nesse sentido, a exclusividade de fornecimento de bens de capital ou de matéria-prima, obtida
pelo empresário já estabelecido em certo segmento de mercado, reserva aos demais apenas a
alternativa de buscarem os insumos junto a outras fontes, eventualmente no exterior. Ora, nesse caso,
os novos empresários deverão custear a importação dos bens de capital ou da matéria-prima,
inexistentes para o detentor da exclusividade. Já a prática de preços abaixo do custo também impede
ou dificulta o acesso de novos empresários ao mercado, na medida em que, para adotarem preço
competitivo, devem necessariamente suportar a dilatação do prazo para a amortização do
investimento inicial.
Uma interessante hipótese de impedimento de entrada de empresa concorrente no mercado foi
examinada por Arnoldo Wald relativamente à cláusula penal por rescisão do contrato de
fornecimento. Segundo a consulta originária de seu parecer, várias empresas distribuidoras de
derivados de petróleo incluíram no instrumento celebrado com os respectivos revendedores uma
cláusula penal exorbitante, com o objetivo de impedir que esses passassem a operar com a Petrobras
Distribuidora S/A (em Franceschini-Franceschini, 1985:506/520). O valor da multa pela rescisão do
contrato de fornecimento é, sob o ponto de vista econômico (embora não necessariamente jurídico),
custo de instalação de novas empresas. Quanto maior a pena contratual nesse caso, maior o entrave
ao ingresso de concorrentes, aos quais cabe oferecer oportunidades negociais aos revendedores que
compensem os encargos contratuais da rescisão.
IV — criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou
financiador de bens ou serviços;
f) Dificultação de constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa — as
dificuldades à constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa podem se referir
especificamente às concorrentes ou aos fornecedores, adquirentes e financiadores. No primeiro caso,
diz-se que há prática restritiva horizontal, enquanto no segundo, vertical. Em ambos, a infração
resulta normalmente de operações comerciais ou econômicas, em geral voltadas a desestimularem
terceiros a contratarem com os concorrentes, adquirentes, fornecedores ou financiadores. Qualquer
atitude diretamente voltada a dificultar a constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa
poderia configurar ilícito penal, de modo que o infrator procurará atingir os mesmos efeitos por via
transversa, por meio de expedientes econômicos mais ou menos sutis. Diga-se que uma indústria
mantenha contrato de fornecimento relativo a dois produtos diferentes com determinado revendedor.
E suponha-se que um concorrente resolva expandir seus negócios para fornecer um desses produtos,
em condições comerciais mais vantajosas. A tendência do revendedor será a de procurar negociar
um produto com cada fabricante. Imagine-se que a primeira indústria, apenas com o intuito de
desestimular o revendedor a contratar com seu concorrente, suspendesse os descontos, dos quais
sempre se beneficiara o revendedor, no preço do produto fornecido só por ela, reservando a mesma
vantagem comercial apenas para a hipótese de aquisição das duas mercadorias.
Assente-se, por oportuno, que não ocorreria a infração de venda casada (tying agreement) na
hipótese sugerida acima, porque a venda de uma mercadoria não está sendo condicionada à aquisição
da outra. O empresário apenas está concedendo certa vantagem para quem adquirir as duas
mercadorias, sem recusar-se a vender qualquer delas em separado.
V — impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias--primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;
g) Obstáculo de acesso a fontes de insumo — a infração de impedir o acesso de concorrentes a
fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologias e aos canais de distribuição é das
modalidades de práticas anticoncorrenciais que pressupõem acordo entre agentes econômicos
(práticas colusivas). Não é possível incorrer-se nessa conduta infracional unilateralmente. O
obstáculo de acesso decorrerá, portanto, de ajuste entre um empresário e o fornecedor do insumo, em
detrimento de concorrente do primeiro e adquirente do segundo.
VI — exigir ou conceder exclusividade para divulgação de publicidade nos meios de comunicação de massa;
h) Exclusividade de publicidade — exigir ou conceder vínculo exclusivo na veiculação de
publicidade pode configurar infração da ordem econômica, porque a exclusividade importa
obstáculos à comunicação entre os demais agentes econômicos. Ao obstar a livre veiculação de
informações, com o intuito de dominar mercado, eliminar a concorrência ou aumentar arbitrariamente
os lucros, o infrator atua em descompasso com as estruturas do mercado capitalista. Podem incorrer
na conduta infracional tanto o anunciante como o veículo de comunicação (rádio, TV, jornal, cartazes
externos etc.). Claro, no entanto, que a exclusividade somente poderá decorrer de acordo entre esses
agentes econômicos. O simples fato de um empresário exigir a exclusividade, sem que possua poder
econômico para tornar séria a exigência, não tem qualquer significado para o direito antitruste, já que
não se estabelecerá nenhum obstáculo ao livre trânsito das informações no mercado.
VII — utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros;
i) Oscilação de preços de terceiros — a utilização de meios enganosos para provocar a oscilação
de preços de terceiros, na tentativa de eliminar concorrência, dominar mercados ou aumentar
arbitrariamente os lucros é infração da ordem econômica que caracteriza também o crime de
concorrência desleal, tipificado no inciso II do art. 195 da Lei n. 9.279/96, se tiver sido efetivada
por meio da veiculação, por qualquer meio, de informação falsa sobre o concorrente.
A oscilação pode ser para baixo ou para cima, e nas duas hipóteses há a possibilidade de
prejuízos para a concorrência. Por vezes, a subida de preços de terceiros desestimula o consumo de
seus produtos ou serviços e, por vezes, a queda dos preços pode comprometer a sua margem de
lucros. De um modo ou de outro, o meio enganoso ocasio-na ou pode ocasionar a retirada (ou mesmo
o não ingresso) de outros empresários no segmento de mercado que se pretende dominar.
VIII — regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a
produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;
j) Regulação de mercado — a conduta infracional de regulação do mercado pressupõe
necessariamente a existência de atuação concertada entre pelo menos dois agentes econômicos, não
podendo ocorrer de modo unilateral. São práticas restritivas colusivas, horizontais ou verticais. É
necessário, para o enquadramento da conduta na hipótese legal, que a regulação do mercado tenha o
sentido de limitação ou controle de tecnologia, da própria produção, da distribuição ou do
financiamento dessas. Se agentes econômicos padronizam os critérios de avaliação de desempenho,
por exemplo, sem que a regulação ultrapasse os limites da organização interna das respectivas
empresas, não se caracteriza qualquer infração.
IX — impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes, preços de revenda, descontos, condições de
pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes
com terceiros;
k) Imposição de condições a distribuidores — a imposição de condições a distribuidores é
modalidade de restrição vertical, porque envolve agentes econômicos que se relacionam em fases
diferentes da cadeia de produção e circulação de mercadorias, como, por exemplo, concedente e
concessionários, franqueador e franqueados, industrial e seus revendedores etc. Não configura o
ilícito a previsão contratual de quotas mínimas ou máximas de mercadorias a serem adquiridas pelos
distribuidores, limitação da margem de lucro, descontos ou condições diferenciadas de negócio, ou
qualquer outro fator relativo exclusivamente ao vínculo contratual existente entre o empresário e seus
revendedores. A imposição deve dizer respeito aos negócios desses últimos com terceiros (em geral,
consumidores), conforme estabelece claramente o texto legal. Aliás, para determinados setores da
produção, o próprio direito positivo preceitua a fixação de quotas de bens para a compra pelo
distribuidor. É o que ocorre, exemplificando, com a concessão comercial de veículos automotores
terrestres (Lei n. 6.729/79, art. 6º).
A ilicitude preceituada na norma refere-se à ingerência não prevista em contrato, do industrial ou
atacadista nas relações jurídicas e negociais entre os seus distribuidores e terceiros adquirentes. É,
por exemplo, conduta ilícita do vendedor sujeitar os distribuidores a não revenderem seus produtos a
outros agentes econômicos, normalmente consumidores, que não se dispuserem a adquirir quantidade
mínima das mercadorias distribuídas.
Na franquia, como visto, é ínsito ao sistema, entre outras condutas empresariais padronizadas, o
desenvolvimento de promoções conjuntas, muitas das quais sustentadas em descontos uniformemente
concedidos aos consumidores por toda a rede, durante o prazo da promoção. Nenhum franqueado
pode deixar de conceder exatamente o mesmo desconto, porque a uniformização de conduta
empresarial é inerente à própria estrutura da franquia.
X — discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de
venda ou prestação de serviços;
l) Discriminação de adquirentes ou fornecedores — a repressão administrativa à prática
diferenciada de preços, no direito brasileiro, ao contrário do que se verifica, por exemplo, nos
Estados Unidos, somente tem base jurídica no contexto da tutela das estruturas do livre mercado. Isto
é, a diferenciação será ilícita apenas se visar a eliminação de concorrência, domínio de mercado ou
aumento arbitrário de lucros. Qualquer outra forma de diferenciação ou discriminação, nas relações
entre empresários, deslocada do contexto das práticas restritivas de mercado, será plenamente lícita,
ainda que baseada apenas em critérios subjetivos. Aliás, como visto anteriormente, é usual concederse tratamento diferenciado a revendedores, a partir de critérios exclusivamente subjetivos.
A diferença de preços pode se basear também em critérios objetivos, dizendo respeito a
descontos concedidos em função da quantidade de mercadorias adquiridas, ou do momento do
pedido. Assim, pode o empresário vender seus produtos a preço unitário cotados em relação indireta
com o volume de mercadorias solicitadas (quanto maior este, menor aquele), ou garantindo descontos
apenas àqueles adquirentes que solicitam mercadorias todos os meses do ano. Também em relação às
diferenciações fundadas em critério objetivo, o direito brasileiro exige a contextualização nas
práticas restritivas para a caracterização da infração. Quer dizer, somente estarão presentes os
elementos do tipo infracional se a prática de preços diferenciados tiver por objetivo a limitação da
concorrência, o domínio de mercado ou o aumento arbitrário dos lucros.
Estão alcançadas também pela norma definidora da infração da ordem econômica as assim
chamadas discriminações indiretas, caracterizadas pela uniformização do preço nominal pago por
todos os compradores, acompanhada da concessão de vantagens adicionais, como serviços, somente
a parte dos compradores (cf. Sullivan-Harrison, 1988:318/319).
XI — recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais;
m) Recusa de fornecimento — o princípio da autonomia da vontade sofreu, na passagem do
capitalismo inferior para o superior, uma considerável restrição. De fundamento universal para as
obrigações imputáveis às pessoas, paulatinamente reservou-se ao princípio apenas a margem estreita
da complementação de disposições normativas. No direito do trabalho, por exemplo, pouquíssimos
aspectos da relação de emprego são definidos pela vontade específica do empregador e do
empregado. No direito de tutela dos consumidores, o fornecedor não pode se recusar a vender os
produtos ou prestar os serviços aos consumidores (CDC, arts. 35 e 39, IX). Nas relações de direito
comercial, no entanto, continua em plena vigência o princípio da autonomia da vontade. Nenhum
empresário é obrigado, por qualquer norma jurídica em vigor no Brasil, a contratar a venda de suas
mercadorias ou a prestação de seus serviços com outro empresário intermediário do fornecimento. O
fabricante tem o direito de simplesmente não querer vender os seus produtos a determinado
comerciante, por motivos subjetivos, particulares, pessoais, que somente lhe dizem respeito.
Apenas se configura ilícita a recusa de venda se ela é o instrumento de política empresarial
restritiva; quer dizer, se, pela recusa, puder se verificar o efeito de eliminação da concorrência,
domínio de mercado ou aumento arbitrário de lucros, então haverá infração da ordem econômica.
Caso não ocorram esses efeitos, sequer potencialmente, a recusa de venda não tem importância para
o direito antitruste.
XII — dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra
parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais;
n) Dificultação ou rompimento de relação comercial — a previsão como infracional da conduta
de dificultação ou rompimento de relação comercial, motivada pela resistência do outro contratante
em se submeter a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais, é
indispensável à proteção dos agentes econômicos que procuram ajustar suas condutas às regras
estruturais do livre mercado. Se não existisse a previsão, o empresário que se recusasse a aderir a
condutas restritivas impostas por seus fornecedores ou adquirentes, estaria desprotegido. Isso
serviria, na verdade, como verdadeira motivação à ampliação das práticas restritivas, já que a lei
deixaria ao desabrigo os agentes econômicos com interesse na preservação da liberdade de
competição.
XIII — destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a
operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los;
o) Destruição, inutilização ou açambarque de insumo — a infração da ordem econômica
desenhada no inciso XIII do § 3º do art. 36 da Lei n. 12.529/2011 parece ter sido inspirada em
famoso caso do direito antitruste brasileiro, que ficou conhecido como a “guerra das garrafas”.
Conforme relata Frontini (1974), duas fábricas de refrigerantes competiam pelo mercado de certa
região do Rio Grande do Sul, e uma delas percebeu que os vasilhames de seu produto e os
engradados não retornavam após o consumo. Isso porque a outra empresa retirava os vasilhames de
circulação e os destruía, reaproveitando os engradados com a adulteração da marca. O CADE
considerou a prática abusiva de criação de dificuldades à constituição, ao funcionamento e ao
desenvolvimento de empresa.
XIV — açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia;
p) Obstáculos à exploração ou açambarque de direitos intelectuais — Franceschini, em
percuciente estudo referente ao abuso do poder econômico exercido por meio dos contratos de
tecnologia (em Franceschini-Franceschini, 1985:609/620), aponta dois aspectos na questão da
circulação dos bens imateriais: o estático, referente à não utilização ou não exploração intencional,
em detrimento do interesse coletivo; e o dinâmico, consistente na outorga de licença ou cessão de
direito industrial em termos anticoncorrenciais. Ainda segundo a lição de Franceschini, o desuso de
direito industrial materializado em patente pode caracterizar abuso do poder econômico,
principalmente quando a empresa detentora de certa tecnologia e com presença proeminente no
mercado em que é empregada empenha-se em adquirir as demais patentes exploráveis nesse
mercado, alcançando status monopolístico por via oblíqua. É a hipótese de açambarque de direito
industrial, mencionado pela Lei Antitruste. Sob o aspecto dinâmico, lembra Franceschini que a
licença ou cessão de direitos industriais pode ficar condicionada a práticas restritivas da
concorrência, tais como restrições ao licenciado ou cessionário, preço dos produtos beneficiados
com a tecnologia, proibição de venda a concorrente etc. Mesmo a circulação de registro de marca
pode servir a práticas anticoncorrenciais, como meio de divisão de mercados por exemplo
(Franceschini-Franceschini, 1985:616). Tanto os mecanismos estáticos como os dinâmicos de
utilização anticoncorrencial de direitos industriais são puníveis como infração da ordem econômica
pela atual legislação antitruste.
XV — vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;
q) Venda a preço inferior ao custo — a venda de mercadoria abaixo do preço de custo (preço
predatório) representa necessariamente prejuízo, em termos marginais; mas não é comumente
praticada se chegar a comprometer a lucratividade da empresa, em termos globais. Ou seja, o
empresário próspero apenas vende seus produtos a preço inferior ao respectivo custo como meio de
alcançar posições no mercado que lhe garantam, no futuro, a reposição de perdas temporárias e
localizadas. O objetivo da prática, normalmente, é o de aumentar os custos de competição no
mercado e desencorajar competidores. Se o empresário pratica preços de certas mercadorias
inferiores ao correspondente custo, os concorrentes são forçados a baixar os seus preços também.
Aqueles que ainda não amortizaram o investimento para ingresso naquele mercado terão maiores
dificuldades em competir, os interessados em explorar a mesma atividade são desestimulados, tendo
em vista a ampliação do prazo de amortização do investimento inicial. Anotam os autores que a
simples ameaça de drástica redução de preços, por vezes, já é suficiente para afastar outros
empresários da competição (Denozza, 1988:63/64 e 111/113).
XVI — reter bens de produção ou de consumo, exceto para garantir a cobertura de custos de produção;
r) Retenção de bens — a retenção de bens de produção ou de mercadorias pode ser expediente
utilizado em práticas restritivas, principalmente em negócios de empreitada na construção civil. A
ressalva legal diz respeito à garantia do cumprimento de obrigações, referentes à cobertura dos
custos da produção, hipótese em que a retenção não configura ilícito. Importa relembrar, contudo,
que a retenção de bens, para configurar conduta infracional, deve produzir os efeitos
constitucionalmente considerados lesivos às estruturas do livre mercado (isto é, a eliminação da
concorrência, o domínio de mercado e o aumento arbitrário dos lucros). Se não estiver vinculada a
esses efeitos, a retenção gera apenas responsabilidades de direito privado entre os contratantes.
XVII — cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada;
s) Cessação de atividade de empresa — é bastante característica a prática restritiva consistente
na aquisição de empresas concorrentes, com o objetivo de paralisar a exploração de atividade
econômica. Configura já infração da ordem econômica a simples cessação de determinadas linhas de
produção, mesmo sem a dissolução de sociedade empresária, caso evidentemente esteja relacionada
com os efeitos referidos pelo art. 20 da Lei Antitruste. As justas causas para a cessação de atividade
empresarial podem ser econômicas, relacionadas com a minoração das perspectivas de lucro,
aumento dos custos, redirecionamento das atividades do empresário etc. Somente não são
justificáveis as cessações que objetivam a eliminação da concorrência, domínio de mercado ou
aumento arbitrário dos lucros, referidas no fundamento constitucional da repressão ao abuso do
poder econômico.
XVIII — subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à
utilização de outro ou à aquisição de um bem;
t) Vendas casadas — a venda casada (tying agreement) significa a subordinação da venda de um
produto à compra de outro, ou à utilização de determinado serviço, ou ainda a subordinação da
prestação de serviço à utilização de outro ou à aquisição de certo bem. O Código de Defesa do
Consumidor havia já considerado essa prática comercial como abusiva (art. 39, I), mas esse
diploma, com o âmbito de incidência restrito às relações de consumo, não se aplica aos negócios
entre empresários. A venda casada na relação de direito comercial não é, em si mesma, ilícita. Será
infração da ordem econômica somente se inserida no contexto das práticas restritivas, voltadas à
eliminação da concorrência, domínio de mercados ou aumento arbitrário dos lucros. Essa prática
pode estar ligada à conquista do domínio de certo mercado, a partir da posição dominante já
consolidada em outro. É o que se denomina teoria da alavanca: valendo-se de operações casadas, o
empresário que domina a produção pode, inclusive, estender o seu domínio para o setor da
distribuição, exemplifica Denozza (1988:101/110).
A venda casada pode também se caracterizar indiretamente. Imagine-se o fabricante de dois
diferentes produtos que, para enfrentar a concorrência do fabricante de apenas um deles, resolve
aglutiná-los para torná-los materialmente indissociáveis. O fornecimento do novo produto alcança,
em concreto, os mesmos efeitos lesivos às estruturas do livre mercado que a venda casada, devendo
ser considerado infracional, também.
XIX — exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca.
u) Exercício abusivo de direitos — o exercício abusivo de direitos é definido legalmente como
ato ilícito (CC, art. 187). A legislação antitruste exemplifica a infração da ordem econômica com
essa hipótese, fazendo referência aos direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou
marca. Desse modo, se o empresário, por exemplo, explora patente de invenção de sua titularidade
não com o objetivo exclusivo de auferir lucros de certa atividade econômica, mas como instrumento
de dominação de mercado ou eliminação da concorrência, incorre em ilícito anticoncorrencial.
6. SANÇÕES POR INFRAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA
A legislação antitruste tem, basicamente, a natureza de estatuto de direito administrativo. Por meio
dela, o Poder Executivo Federal pode exercer um dos mais importantes aspectos da política
econômica de governo, voltado à preservação das estruturas da livre competição. As infrações da
ordem econômica correspondem, assim, a ilícitos administrativos.
A lei prevê duas ordens de sanções administrativas: as de natureza pecuniária (art. 37) e as de
natureza não pecuniária (art. 38). No primeiro caso, podem ser impostas sanções de multa contra a
pessoa jurídica empresarial (com valor baseado no faturamento bruto da empresa) e também contra o
seu administrador (proporcional à imposta à pessoa jurídica). Como o abuso do poder econômico
pode ser perpetrado por pessoa física, pessoa jurídica não empresarial (uma associação profissional
ou pessoa jurídica de direito público, por exemplo) ou ente despersonalizado, a lei também cuida de
multa em valor fixo, independentemente do faturamento. Quanto às sanções não pecuniárias, elas
envolvem medidas como a publicação de notícia sobre a ocorrência de prática anticoncorrencial, a
inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor, a proibição de participar de
licitação e outras.
As infrações da ordem econômica são sancionadas, em nível administrativo, mediante a aplicação de penas pecuniárias e não pecuniárias.
Pode ocorrer de a mesma conduta empresarial caracterizar infração da ordem econômica e,
também, crime contra a ordem econômica. Isso se verifica quando a conduta, a um só tempo, é
descrita pelo art. 36 da Lei n. 12.529/2011 e pelos arts. 4º a 6º da Lei n. 8.137/90. Nessa hipótese,
sobrepõem-se as sanções administrativa e penal. Note-se que não há exata similitude entre uma e
outra categoria de ilícitos; quer dizer, pode se verificar de o empresário sancionado por infração da
ordem econômica não cometer crime algum, e vice-versa.
No entanto, se há situações em que a infração da ordem econômica não é acompanhada em tese da
tipificação de conduta criminosa, isso não se repete no campo da responsabilidade civil. Isto é, uma
vez caracterizada a conduta infracional do empresário, estará ele sujeito à sanção administrativa
(imposta pelo CADE) e também à responsabilização civil em juízo. Claro que a prova dos fatos deve
ser produzida pela autoridade administrativa, na primeira hipótese, e pelo demandante, na segunda; e
se a Superintendência-Geral do CADE não provar a infração no processo administrativo, mas o autor
a provar em juízo, poderá ocorrer de o empresário absolvido no Tribunal Administrativo da Defesa
Econômica vir a ser responsabilizado judicialmente; ou vice-versa. Uma questão é a caracterização
em tese da conduta infracional — quando não se pode distinguir hipótese de responsabilização em
apenas uma das esferas, civil ou administrativa; outra questão é a prova de que determinado
empresário incorreu em tal conduta — quando a autoridade administrativa e o juiz podem chegar a
conclusões diferentes.
De fato, a possibilidade de o lesado por infração da ordem econômica demandar perdas e danos
do empresário infrator está especificamente prevista pelo art. 47 da Lei Antitruste, que assegura o
mesmo direito também aos legitimados para a tutela de interesses individuais homogêneos, difusos e
coletivos. A prova da conduta infracional é ônus do autor da demanda, em qualquer hipótese (isto é,
tanto no caso de ação promovida pelo sujeito direta e individualmente lesado, como no de ação para
tutela de interesses individuais homogêneos, difusos e coletivos). A imposição de penalidade
administrativa contra o empresário demandado não é condição para o exercício da ação judicial de
indenização, mas apenas um consistente elemento de prova. Quer dizer, se o lesado ou o legitimado
aguardarem a conclusão do processo administrativo no CADE, antes de ingressarem com a ação de
indenização civil, terão vantagem tanto na hipótese em que sobrevier sancionamento administrativo,
como na oposta. Ocorrendo punição, o lesado ou o legitimado poderão se valer deste resultado no
âmbito administrativo, para facilitar enormemente o desencargo probatório que lhes cabe na esfera
civil, já que a autarquia antitruste terá esmiuçado os fatos de alta complexidade econômica e
delineado as irregularidades. No caso de ausência de penalização, isto deve servir de alerta sobre os
riscos de insucesso da demanda civil, posto que o demandado possui elementos demonstrativos da
licitude de sua prática empresarial.
7. CONTROLE PREVENTIVO DOS ATOS DE
CONCENTRAÇÃO EMPRESARIAL
No início da década de 1990, com o Plano Collor, o Brasil alterou um aspecto fundamental de sua
política econômica relacionada ao comércio exterior. Com a introdução do câmbio flutuante e a
eliminação do controle quantitativo como barreira alfandegária, deu-se início à superação do modelo
de “substituição das importações”. Esse modelo havia tentado, desde o fim da segunda guerra,
redefinir o papel de nosso país no contexto mundial, por meio do desenvolvimento de parque
industrial próprio. A antiga colônia pretendeu, por cerca de quatro décadas, poder alterar sua
posição de tradicional fornecedora de insumos e importadora de bens de consumo.
Ao abandonar o projeto de “substituição das importações”, o Brasil aposta que os laços de
dependência, herdados de seu antigo estatuto de colônia, podem ser rompidos com sua inserção na
economia globalizada do final do século XX. Acredita que a criação de grandes mercados comuns
regionais (no nosso caso, o Mercosul) pode acabar rompendo a divisão entre o centro e a periferia
do sistema capitalista. De outro lado, com a falência do modelo socialista de planificação da
produção, o estado brasileiro — a exemplo da maioria dos estados capitalistas — pôde se permitir
uma retração, em sua interferência na economia.
Nesse contexto econômico, uma consequência mostrou-se inevitável: o aumento da competição
entre os empresários atuantes no nosso país.
O direito antitruste brasileiro foi extremamente sensível a essa mudança no cenário econômico.
Desde a sua criação, em 1962, até a reformulação de 1994, ele assumira inegavelmente a forma de
um direito repressivo. Era costume, inclusive, denominá-lo “direito penal econômico” (p. ex.:
Carvalho, 1986), expressão hoje abandonada. Mesmo o texto de 1994 refletia, ainda, essa forma,
com a predominância de dispositivos reguladores da repressão à infração da ordem econômica, em
relação às normas de caráter preventivo. A aplicação da lei, contudo, em razão das mudanças na
economia, acabou invertendo a equação: o CADE passa a se dedicar muito mais à apreciação dos
atos de concentração do que ao julgamento dos processos administrativos sobre condutas
infracionais. Assumia, assim, a autarquia, paulatinamente, a posição de agente governamental de
disciplina das condições de estruturação do livre mercado, abandonando a de mero órgão repressor.
A reforma da lei antitruste de 2011 reflete a nova feição assumida pelo CADE nos quinze anos
anteriores.
A partir do esgotamento do modelo de “substituição das importações”, acirrou-se a concorrência econômica no Brasil. O CADE, de órgão
essencialmente repressor, passa a atuar cada vez mais como agência de disciplina da livre competição. Ganha destaque, então, a função
preventiva do Conselho, na aprovação de atos de concentração empresarial.
O exame do controle preventivo dos atos de concentração econômica não se fará no presente
capítulo. Ele fica melhor nos dedicados aos atos societários que podem viabilizar limitação ou
prejuízo à concorrência, ou domínio de mercado relevante (Cap. 43, item 3).
8. COMPROVAÇÃO DA CONCORRÊNCIA ILÍCITA
São, como visto, dois os institutos repressores da concorrência ilícita: o relacionado à tutela da
clientela e à propriedade industrial, que coíbe a deslealdade entre os empresários concorrentes (LPI,
art. 209), e o voltado à preservação das estruturas da economia de livre mercado, que pune as
infrações da ordem econômica (Lei n. 12.529/2011). Raramente, a mesma prática empresarial
caracteriza tanto concorrência desleal como infração da ordem econômica. Somente em situações
específicas — como na utilização de meios enganosos para promover a oscilação dos preços de
concorrente —, ambas as modalidades de concorrência ilícita se configuram. Em geral, o empresário
ou queria conquistar a clientela de concorrente ou concorrentes e, para tanto, lançou mão de meios
inidôneos (incorrendo em concorrência desleal), ou pretendia valer-se de seu poder de mercado para
dificultar ou impedir a competição, em prejuízo da “coletividade” (praticando, então, infração da
ordem econômica). Desse modo, em raras oportunidades caberá a aplicação simultânea das sanções
estabelecidas pelos dois diferentes sistemas repressivos da concorrência irregular.
A caracterização da concorrência desleal, conforme visto acima (item 2), não se pode fazer com
recurso aos objetivos ou aos efeitos de determinada prática empresarial. É de todo irrelevante, para
os fins de imputar ao empresário responsabilidade civil por concorrência desleal, a discussão sobre
os objetivos pretendidos ou sobre os efeitos alcançados. Tanto na concorrência legítima, como na
desleal, o empresário quer a mesma coisa: subtrair fatias de mercado de concorrentes; tanto numa
como noutra, os efeitos são os mesmos: ganho para um e perda para outro concorrente.
Se não são os objetivos, nem os efeitos, que caracterizam a concorrência desleal, então se deve
direcionar a pesquisa para os meios empregados.
Há, em outras palavras, meios idôneos e meios inidôneos de conquistar consumidores, em
detrimento de concorrentes. Será pela análise dos recursos utilizados pelo empresário, que se poderá
identificar a deslealdade competitiva. Nesse sentido, quando utilizado meio desonesto, imoral ou
condenável pelas práticas usuais dos empresários, configura-se a ilicitude; utilizado, no entanto,
meio honesto, moral e aceito pelas práticas usuais dos empresários, nunca se poderá configurar a
concorrência desleal.
A concorrência desleal se demonstra pela análise dos meios empregados pelo empresário para conquistar clientela.
Se não é condenável o meio empregado por um determinado empresário, na conquista de fatias de mercado, simplesmente não há concorrência
desleal.
Em outros termos, como são irrelevantes as referências às finalidades da prática empresarial e
aos seus objetivos, na caracterização da concorrência desleal — já que idênticos tais elementos aos
que se encontram em qualquer competição econômica, inclusive as legítimas, regulares e leais —,
então a atenção se deve voltar à análise da idoneidade do meio. Mas o meio não pode ser, neste
contexto, idôneo para uns, e inidôneo para outros; idôneos para certos objetivos, inidôneos para
objetivos diversos; idôneos se produz efeitos socialmente relevantes, inidôneos se não os produz.
Ou o meio, em si considerado, é desonesto, imoral ou condenado pelas práticas usuais dos
empresários, e então se configura a concorrência desleal em qualquer situação; ou o meio é honesto,
moral e aceito pelas práticas usuais dos empresários, e não se configura esse tipo de ilícito
concorrencial, quaisquer que sejam as pessoas, objetivos e efeitos envolvidos. Assente-se, pois, que
o ato de concorrência desleal se demonstra pela prova de que o empresário se valeu, na conquista de
fatias de mercado, de instrumentos desonestos, imorais e repudiados pela generalidade dos
empresários.
Já a infração da ordem econômica se caracteriza por algumas formas de abuso de posição
dominante em determinado segmento de mercado; quais sejam, as práticas empresariais que, por
restringirem ou eliminarem a concorrência, ou importarem aumento arbitrário de preços,
comprometem a organização liberal da economia.
Foi mencionado no estudo dessa modalidade de concorrência ilícita que é a própria Constituição
Federal que define as práticas anti- concorrenciais puníveis (CF, art. 173, § 4º). À lei ordinária
somente cabe reprimir o abuso de poder econômico que tenha certas finalidades: a dominação dos
mercados, a eliminação da concorrência ou o aumento arbitrário dos lucros. As demais formas de
exercício do poder econômico — que não comprometam a própria concorrência — inserem--se no
campo das condutas lícitas, juridicamente ancoradas no princípio geral de livre-iniciativa e
competição (CF, art. 170).
A caracterização da infração da ordem econômica, portanto, se faz pela análise dos objetivos e
efeitos relacionados a determinada prática empresarial. Se o pretendido ou o resultante da prática
enquadra-se nas referências do art. 173, § 4º, da Constituição Federal — quer dizer, seus efeitos
importam dominação de mercado, limitação da concorrência ou aumento arbitrário de lucros —,
então se verifica essa forma de concorrência ilícita, cabendo a responsabilização civil do infrator.
No caso de demonstração da infração da ordem econômica, deve--se inverter a equação da
concorrência desleal. Se para a caracterização desta última, o que interessa é o meio empregado e a
discussão de sua inidoneidade, em contraste com as práticas usuais dos empresários, para a primeira,
o relevante são os objetivos e os efeitos da conduta. O emprego de um mesmo meio pode dar ensejo
à infração da ordem econômica, ou não; depende dos efeitos, potenciais ou concretos, dele
derivados.
A demonstração da infração da ordem econômica se faz pela análise dos objetivos do empresário titular de poder econômico, e dos efeitos que
a prática concorrencial poderia produzir ou, de fato, produziu. É irrelevante o meio empregado.
Deste modo, conclui-se que a inidoneidade do instrumento empregado na conquista de fatias do
mercado é o elemento essencial para a caracterização da concorrência desleal, enquanto a
dominação de mercado, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário dos lucros, por quaisquer
meios, é o da infração da ordem econômica.
Há outros elementos, no entanto, que, embora não se revistam da mesma essencialidade, poderiam
também ser lembrados na distinção entre os dois sistemas de repressão à concorrência ilícita. A
concorrência desleal é sempre ato culposo, enquanto a infração da ordem econômica independe, para
a sua configuração, de culpa. De fato, como espécie de abuso de direito que se viabiliza mediante um
meio necessariamente imoral ou desonesto, não existe concorrência desleal sem culpa. Não pode
existir. Já a infração da ordem econômica independe de tal ingrediente. A análise dos efeitos que
determinada conduta provoca — ou poderia provocar — no mercado relevante é objetiva.
Por fim, a concorrência desleal, em razão de seus efeitos pontuais, normalmente se justifica pela
existência de um fato particular, envolvendo especificamente demandante e demandado, ao passo que
a infração da ordem econômica, por seus efeitos amplos, se justifica em geral por razões de maior
relevância para a economia. Raramente se encontra, nos fatos típicos da concorrência desleal,
referência a assuntos macroeconômicos, como abertura de mercados nacionais, alterações na política
de câmbio, implantação de mercados comuns regionais. Do mesmo modo, são incomuns relatos do
histórico de uma certa e localizada relação negocial, e dos seus problemas de alcance restrito aos
diretamente envolvidos, como elementos configuradores da infração da ordem econômica.
9. DISCIPLINA CONTRATUAL DA CONCORRÊNCIA
É comum os empresários, em seus contratos, inserirem cláusulas em que regulam os respectivos
interesses, no tocante à competição econômica entre eles. Quando se estudou a alienação do
estabelecimento empresarial (Cap. 5), foi feita referência à cláusula de não restabelecimento, em que
o alienante se compromete a não concorrer com o adquirente. Essa cláusula, no caso do contrato de
trespasse, é indispensável para a preservação da integridade do potencial econômico do bem
alienado, já que, na hipótese de o alienante concorrer com o adquirente, parte do potencial — senão
todo ele — é comprometido pelo desvio de clientela. Outro exemplo é a cláusula restritiva de
concorrência inserida nos contratos de locação de loja em shopping center, pela qual o locatário se
compromete a não se estabelecer nas cercanias do complexo, de forma a se afastar a concorrência
autofágica (cf. Comparato, 1995). De fato, há entre o empreendedor do shopping e os locatários nele
estabelecidos um determinado grau de parceria, que justifica e pressupõe a limitação.
As cláusulas contratuais de disciplina da concorrência podem ou não ser válidas, de acordo com
uma série de fatores, a serem especificamente analisados. Para a análise, o critério mais relevante é
o da preservação do livre mercado. Ou seja, as partes podem disciplinar o exercício da concorrência
entre elas, desde que não a eliminem por completo. Em outros termos, a validade da disciplina
contratual da concorrência depende da preservação de margem para a competição (ainda que futura)
entre os contratantes; ou seja, da definição de limites materiais, temporais e espaciais. Em concreto,
a vedação não pode dizer respeito a todas as atividades econômicas, nem deixar de possuir
delimitações no tempo ou no espaço.
É válida a cláusula contratual de não concorrência quando estabelece limites materiais, geográficos e temporais. A proibição irrestrita da
competição entre os contratantes não vale porque significa desrespeito ao princípio básico de organização da economia de livre mercado.
Em relação aos limites materiais, observa-se que a cláusula disciplinando a concorrência é
inválida, se impede o contratante de explorar qualquer atividade econômica. A restrição deve
necessariamente se circunscrever a determinados ramos de comércio, indústria ou serviços. Para as
demais atividades, as partes ficam livres de qualquer obrigação (de não fazer). A propósito da
restrição material, deve-se também considerar inválida a cláusula que impeça o contratante pessoa
física de exercer a sua profissão. Por exemplo, o sócio que se desliga de sociedade de engenheiros
pode, no instrumento de cessão de cotas, ficar impedido de competir com a sociedade, desde que os
termos contratados não alcancem todas as atividades de engenharia para as quais o retirante se
encontra profissionalmente habilitado ou preparado.
Também é inválida a cláusula que vede a concorrência para sempre ou em qualquer lugar. Limites
temporais ou espaciais são exigidos, para que a restrição contratada não importe eliminação total da
concorrência. Trata-se, aqui, de uma alternativa inclusiva; quer dizer, o contrato pode prever limite
no tempo e no espaço, ou só num deles. A restrição contratual limitada apenas geograficamente se
considera feita para sempre, enquanto a limitada apenas no tempo alcança todos os mercados
(Ripert-Roblot, 1947:350). A invalidade existe quando não há simultaneamente limite temporal e
espacial. É igualmente inválida a cláusula de não concorrência que estabelece prazo demasiado
longo, ou defina limites espaciais exagerados, que ultrapassam o potencial de conquista de mercado
que as partes possuem. Desse modo, é nula a cláusula de não estabelecimento que o empreendedor de
shopping center, para evitar a concorrência autofágica, contrata com os lojistas, quando os limites
territoriais nela referidos extrapolam os do mercado sobre o qual pode exercer atração.
O exame da validade da cláusula de disciplina da concorrência também comporta outro ângulo de
abordagem. Há, como se assentou acima, duas modalidades de concorrência ilícita: a desleal e a
infração da ordem econômica. Se a cláusula examinada não instrumentaliza nenhuma dessas
modalidades, ela é válida; caso contrário, não.
O desrespeito pelo contratante da cláusula de disciplina da concorrência — a chamada
concorrência antinegocial — gera responsabilidade contratual, ou seja, o dever de indenizar as
perdas e danos sofridos pela outra parte. Esta infringência aos termos pactuados não importa
necessariamente concorrência desleal (cf. Miranda, 1956, 17:313). De fato, a cláusula de não
concorrência pode ser descumprida pelo contratante, mesmo por meio de concorrência leal, isto é,
sem o uso de meios inidôneos de exploração da atividade econômica.
Capítulo 8
A ATIVIDADE EMPRESARIAL E A
QUALIDADE DO FORNECIMENTO DE BENS
E SERVIÇOS
1. FORNECIMENTO SEM QUALIDADE
A responsabilidade dos empresários no tocante à qualidade do fornecimento de produtos e
serviços é disciplinada no Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). Para a sistematização
dessa disciplina, cabe lançar mão de três conceitos (fornecimento perigoso, defeituoso ou viciado),
correspondentes a diferentes situações jurídicas. Embora elas se entrelacem e se sobreponham em
alguns momentos, devem ser distinguidas para possibilitar a compreensão sistemática do tema.
1.1. Falta de Qualidade por Periculosidade
Todo fornecimento apresenta alguma periculosidade em potencial. Qualquer produto ou serviço
pode oferecer, em maior ou menor grau, risco aos seus consumidores. Até o mais inofensivo ursinho
de pelúcia pode se tornar letal ao bebê que engolir o olhinho de plástico desprendido do brinquedo.
Já uma faca, embora possa servir de arma letal, nem por isso se caracteriza juridicamente como
perigosa. Por outro lado, produtos destinados a garantir a segurança do consumidor, se forem
utilizados inadequadamente, tornam-se perigosos. É o caso, por exemplo, do cinto de segurança que
estrangula o passageiro que, no momento do impacto, utilizava o dispositivo com o banco totalmente
reclinado. É, também, o caso do air bag que, acionado, pode sufocar crianças acomodadas no banco
dianteiro do veículo.
O conceito de produto e serviço perigoso, portanto, deve circunscrever aqueles cuja
periculosidade gera a responsabilização do empresário. Isto é, já que todos os fornecimentos de
produtos ou serviços trazem em si risco potencial, o conceito jurídico de periculosidade não se pode
delinear apenas em função dos perigos a que materialmente se expõem os seus consumidores, mas
pela existência ou não de responsabilidade dos empresários pela indenização decorrente de acidente
de consumo.
O primeiro aspecto a acentuar na definição de periculosidade é a lesão à vida, integridade física
ou patrimônio do consumidor. Se do uso do produto ou serviço não sobrevier dano ao consumidor,
não se caracteriza juridicamente o perigo no fornecimento. É o caso, por exemplo, de produtos
acionados por energia nuclear, mas providos de adequados sistemas de segurança. Outro aspecto
relevante é a inexistência de defeito, seja em sua concepção, execução ou comercialização. Se o
dano experimentado pelo consumidor decorre de impropriedade do produto ou serviço, então a
questão não é pertinente à sua periculosidade, mas sim à defeituosidade. O produto de limpeza que
irrita a pele de determinadas pessoas alérgicas não apresenta qualquer defeito, mas eventualmente
pode se caracterizar como perigoso se o empresário tinha como detectar esse efeito nocivo do
fornecimento, para fins de informar os consumidores, e não o fez. Essa distinção pode repercutir na
extensão da responsabilidade do empresário.
Finalmente, para a conceituação de fornecimento perigoso interessa averiguar a suficiência das
informações acerca de riscos prestadas pelo fornecedor e eventual má utilização do produto ou
serviço pelo consumidor. Aqui, estamos no cerne da questão. Se o produto ou serviço não defeituoso
causar dano ao consumidor, deve-se investigar se esse decorreu de sua má utilização, hipótese em
que não se caracteriza a periculosidade. Fabricantes de faca não respondem pelos cortes produzidos
pela cozinheira em sua mão.
A caracterização de um certo produto ou serviço como perigoso depende da análise das informações que o consumidor possui sobre os riscos
relacionados à sua utilização. Juridicamente falando, nenhum produto ou serviço é, em si mesmo, perigoso.
A inadequação da conduta do consumidor é mensurada a partir das informações prestadas pelo
fornecedor acerca do grau de risco existente no produto ou serviço. Claro que o empresário está
dispensado de veicular informação sobre conhecimento já vulgarizado entre os consumidores, por
exemplo sobre os riscos relacionados ao manuseio de tesouras pontiagudas. No tocante aos
conhecimentos não difundidos entre os consumidores, contudo, as informações devem ser capazes de
orientar a segura utilização do produto ou serviço e, consequentemente, evitar lesão à saúde,
integridade física ou interesse patrimonial do consumidor. Anote-se que, por lei, o empresário está
obrigado a prestar ao consumidor não somente informações sobre os riscos, mas também sobre a
utilização do produto ou serviço.
Perigoso, portanto, é o fornecimento de produtos ou serviços sem impropriedades, que causa dano
aos consumidores em razão da insuficiência ou falta de clareza das informações sobre riscos
prestadas pelo empresário.
1.2. Falta de Qualidade por Defeito
Entre o fornecimento perigoso e o defeituoso há, em comum, a circunstância de ambos causarem
dano à saúde, integridade física ou interesse patrimonial dos consumidores. Distinguem-se, no
entanto, quanto à origem do evento danoso. No fornecimento perigoso, a razão dos prejuízos sofridos
pelo consumidor é a utilização indevida (mal orientada pelo fornecedor) do produto ou serviço,
enquanto no defeituoso aqueles prejuízos decorrem de alguma impropriedade no objeto de consumo.
O conceito de defeito, para a doutrina, gravita em torno das expectativas legitimamente esperadas
pelo consumidor. Calvão da Silva não distingue, como aqui proponho, defeito de perigo e, assim,
considera defeituoso o produto que não atende às expectativas objetivas do público em geral em
relação à segurança oferecida. Em outros termos, o defeito é decorrente da frustração daquilo que
normalmente os consumidores esperam do bem transacionado (1990:633/637). Para Antonio
Benjamin, os defeitos configuram vício de qualidade por insegurança, que conceitua como a
desconformidade à expectativa legítima do consumidor e a capacidade de provocar acidentes
(1991b:46/47). No meu modo de entender a questão, defeito é conceito objetivo, que não se pode
pautar em expectativas dos usuários. Tanto Calvão da Silva como Benjamin pretendem que a
referência às expectativas dos consumidores médios, em detrimento das nutridas pelos consumidores
individualmente considerados, garantiriam objetividade ao conceito. Para mim, no entanto, a
frustração do que legitimamente se espera da segurança do produto e do serviço a que se refere o §
1º, respectivamente, dos arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor é uma questão de
natureza técnica. Não é o desatendimento da expectativa nutrida pelo consumidor, concreta ou
abstratamente considerado, que pode servir de critério à definição da defeituosidade do fornecimento
(cf. Will, 1990). A disparidade entre o esperado e a realidade do produto ou serviço deve ser
apontada pela ciência ou tecnologia especializada. Caso contrário, isto é, configurando-se o defeito a
partir das frustrações que teriam as pessoas enquadráveis num padrão ideal de consumidor, não se
garante ao fornecedor os meios indispensáveis ao cálculo empresarial.
Defeito, portanto, deve ser entendido como a impropriedade no produto ou serviço de que resulta
dano à saúde, integridade física ou interesse patrimonial do consumidor, definindo-se aquela a partir
de elementos técnicos capazes de apontar no fornecimento a frustração de expectativa legitimamente
esperada pelo saber científico ou tecnológico, da época de seu oferecimento ao mercado de
consumo.
Há três espécies de defeitos: de concepção, execução e comercialização. No primeiro caso, a
desconformidade se estabelece entre o projeto empresarial efetivamente elaborado e um projeto
idealmente concebido, de acordo com o estágio de desenvolvimento científico e tecnológico. Se o
empresário, ao projetar o produto ou serviço que pretende oferecer ao mercado de consumo, deixar
de levar em consideração os avanços do saber humano especializado, inclusive no campo da
administração de empresas, poderá ocorrer impropriedade de concepção do fornecimento. No
segundo caso, a desconformidade se verifica entre o projeto e a execução do fornecimento. O
produto é fabricado ou conservado e o serviço é prestado em descompasso com o respectivo projeto
empresarial. Por fim, o defeito de comercialização se caracteriza a partir da desconformidade entre
os meios adequados de utilização do produto ou serviço e as informações acerca deles, prestadas
pelos fornecedores. O empresário deixa de fornecer ao consumidor orientação precisa acerca da
utilização do produto ou serviço e, em virtude de tal omissão, o bem ou comodidade objeto de
consumo danifica-se, ou torna-se imprestável.
Produto ou serviço defeituoso é aquele que apresenta uma impropriedade, de que resultam danos aos consumidores. Há três tipos de defeito: de
concepção, de execução e de comercialização.
Aponte-se para o fato de que o empresário fornece produto ou serviço com defeito (de concepção)
quando não se empenha totalmente na pesquisa de todas as possibilidades concretamente abertas pelo
desenvolvimento científico ou tecnológico, estabelecendo-se um hiato entre o projeto empresarial
que desenvolveu e o que poderia ter desenvolvido. Deve-se, contudo, entender bem a extensão da
responsabilidade civil relacionada com essa disparidade, uma vez que o Código de Defesa do
Consumidor estabelece não se reputar defeituoso certo produto apenas porque outro de melhor
qualidade foi oferecido ao mercado (CDC, art. 12, § 2º). Ou seja, a análise da existência do defeito
de concepção deve se circunscrever aos objetivos do projeto empresarial em exame. Se o
empresário pretende oferecer ao mercado produto de qualidade inferior ao do concorrente, para
atender parcelas de consumidores de menor poder aquisitivo, então a mensuração da
desconformidade entre o projeto empresarial efetivo e aquele que poderia ter sido desenvolvido em
termos ideais não pode ser feita ignorando-se os limites traçados pelo próprio fornecedor. O ponto
de partida será sempre a consideração do objetivo do projeto. Somente depois de definido este,
pode-se comparar determinado projeto com os demais de igual objetivo.
O fabricante de automóveis interessado em lançar no mercado um novo modelo, destinado ao
consumidor de menor poder aquisitivo, não está evidentemente obrigado a incorporar ao seu projeto
todos os progressos alcançados pela pesquisa tecnológica de ponta. Se o fizer, inclusive, o produto
se encarece e o objetivo de atendimento aos consumidores sem grande poder de compra não é
atingido. O empresário não tem o dever de empregar no modelo popular todos os sofisticados
sistemas de ignição, frenagem, eletricidade e outros testados nas pistas de Fórmula 1. Por outro lado,
sempre será possível avaliar se, dentro dos limites circunscritos pelos objetivos do projeto
empresarial e pelo potencial de mercado, o empresário desenvolveu o melhor projeto possível, de
acordo com o estágio evolutivo da tecnologia automobilística referente a veículos de baixo preço.
Portanto, levando-se em conta os objetivos do empresário, se havia condições, dadas pelo
conhecimento humano especializado e pela conjuntura econômica, para a elaboração de um projeto
mais aprimorado do que o realmente desenvolvido, então se pode caracterizar a disparidade
decorrente como defeito de concepção, respondendo o fornecedor pelos danos ocasionados pelo
fornecimento.
Para a caracterização de defeito de concepção, deve-se verificar se o projeto do produto ou serviço aproveitou todos os avanços de que
dispunha a ciência ou tecnologia, levando-se em conta o perfil econômico do consumidor que se pretendeu atender.
A desconformidade entre o projeto e a execução do fornecimento é, dentre as três modalidades de
defeito, a mais simples de se caracterizar. Inclusive, porque se trata de defeito mensurável por
cálculos estatísticos e, em certa medida, inevitáveis. Em relação a essa categoria específica de
defeituosidade, casam-se perfeitamente a teoria da responsabilidade objetiva do fornecedor e a
realidade econômica da produção em massa. Tanto assim que, diferentemente da solução adotada
pela legislação brasileira, a maioria das cortes dos Estados Unidos consideram objetiva a
responsabilidade do empresário apenas no tocante aos defeitos de execução, condicionando o
ressarcimento dos danos decorrentes de defeitos de concepção ou de comercialização à existência de
culpa (Phillips, 1974:4/5).
Por último, há os defeitos de comercialização, caracterizados pela desconformidade entre as
informações liberadas pelos empresários sobre a utilização do produto ou serviço e as cautelas e
providências que devam ser realmente adotadas pelos consumidores para usufruir adequadamente o
bem ou a comodidade, adquiridos no mercado de consumo. Lembre-se que a insuficiência nas
informações sobre os riscos configura não propriamente defeito, mas periculosidade do
fornecimento. Assim, se a dona de casa não for convenientemente instruída sobre como usar um novo
eletrodoméstico, pode ocorrer a danificação do produto, sem outras consequências para a sua saúde
ou integridade física. Caracteriza-se, nessa hipótese, fornecimento defeituoso, porque a insuficiência
das informações refere-se à utilização da mercadoria.
Defeituoso, por conseguinte, é o fornecimento em que o produto ou serviço apresenta
impropriedade na concepção, execução ou comercialização, de que resulta dano à saúde, integridade
física ou interesse econômico do consumidor.
1.3. Falta de Qualidade por Vício
O vício no fornecimento, por fim, se verifica quando os produtos e serviços apresentam
impropriedades inócuas. Isto é, nenhum prejuízo de importância sofre o consumidor em sua saúde,
integridade física ou interesse patrimonial, mas o produto ou serviço é impróprio para as finalidades
a que se destina.
A mesma impropriedade pode se caracterizar como defeito ou vício, em função da superveniência
ou não de danos à saúde, integridade física ou interesse patrimonial do consumidor. Imagine-se uma
falha no processo de fabricação de automóvel, pertinente ao sistema de freios. Se o consumidor
percebe o problema a poucos metros da concessionária da qual acaba de adquirir o veículo e,
cautelosamente, retorna ao estabelecimento do fornecedor, para o devido reparo do produto, então
aquela impropriedade se determina como vício. Se, entretanto, o consumidor já se encontra
transitando por via expressa, quando se manifesta a falha do sistema de frenagem, ocorrendo em
decorrência grave acidente de trânsito, então aquela mesma impropriedade se determina agora como
defeito.
A mesma impropriedade no produto ou serviço pode significar defeito ou vício; será defeito, se causar danos e vício se não os causar.
Claro que, no fornecimento viciado, haverá para o consumidor, no mínimo, perda de tempo ou
despesas com deslocamento até o estabelecimento do fornecedor, para reclamar as providências
atinentes ao vício. Mas, além dessas importunações de pequeno alcance, nenhum outro prejuízo de
relevo sofre o consumidor de produto ou serviço viciado. Se tais importunações, contudo,
redundarem danos consideráveis, como perda de dia de trabalho por exemplo, então a impropriedade
em questão não se pode mais caracterizar como vício inócuo, mas sim como defeito.
Viciado, assim, é o fornecimento em que o produto ou serviço apresenta impropriedade da qual,
no entanto, não sobrevém dano à saúde, integridade física ou interesse patrimonial do consumidor.
1.4. Teoria da Qualidade
No tratamento da matéria da responsabilidade do fornecedor pela qualidade do fornecimento de
produtos e serviços ao mercado de consumo, a doutrina, nacional e estrangeira, costuma revelar certa
imprecisão quanto às três situações jurídicas que entendo devam ser suficientemente distinguidas. Em
termos conceituais, como visto, deve-se discernir entre produto ou serviço perigoso, defeituoso e
viciado, muito em função das diferenças nos regimes de responsabilização do empresário
relativamente a cada uma dessas espécies de fornecimento sem qualidade. A doutrina, com efeito,
tem se utilizado de conceitos que tendem a reduzir, em certa medida, toda a questão da qualidade do
fornecimento de produtos e serviços a uma noção unitária de imperfeição. O perigo apresentado por
produto ou serviço é visto, nesse sentido, como vício de segurança; a falta de informações adequadas
sobre os riscos do fornecimento é definida como defeito de comercialização. Em suma, a relativa
indistinção conceitual entre perigo, defeito e vício, nos produtos e serviços oferecidos ao mercado
pelo empresário, na tentativa de se alcançar uma teoria unitária da qualidade do fornecimento, não
corresponde, segundo entendo, ao mais adequado modo de sistematização da matéria.
Perceba-se que, embora, de um lado, produtos com defeito de fabricação ou concepção
representem sempre perigo ao consumidor, em vista dos danos que podem causar à sua integridade
física ou ao seu patrimônio, de outro, nem toda a periculosidade decorre de defeito. O ConterganThalidomida, a despeito de suas nefastas consequências, não pode ser visto como produto
defeituoso. Não se trata, a rigor, de medicamento oferecido ao mercado com algum tipo de
desconformidade capaz de ocasionar dano ao consumidor, mas sim de produto com efeito
desconhecido da ciência da época do seu lançamento. São duas situações bastante diferentes, às
quais se ligam soluções distintas no campo da responsabilidade do fornecedor.
Proponho, portanto, que o fornecimento se classifique, quanto à questão da responsabilidade do
fornecedor pela qualidade de produtos ou serviços, em perigoso e impróprio, sendo essa segunda
categoria subdividida em danoso e inócuo. O fornecimento perigoso corresponde ao de produtos ou
serviços prejudiciais à saúde e segurança do consumidor, e pelo qual responde o empresário que não
atender satisfatoriamente aos deveres legais de pesquisar e de informar o potencial de risco. O
fornecimento impróprio danoso relaciona-se ao de produtos ou serviços com defeitos, e gera a
responsabilização do empresário pelos danos ocasionados em razão desses. Por fim, o fornecimento
impróprio inócuo compreende os produtos com vícios de qualidade ou de quantidade, e serviços com
vício de qualidade, importando no dever de dar acolhida à opção do consumidor quanto ao
desfazimento do negócio, redução proporcional do preço ou substituição do objeto.
Essa classificação aqui cogitada apenas organiza de forma mais rigorosa os dados pertinentes à
questão da responsabilidade do empresário pela qualidade do fornecimento. Não configura,
propriamente, uma contribuição originalíssima, posto que se pauta em conceitos que, em certa
medida, já se encontram delineados pelo texto da lei tutelar dos consumidores. Apenas a considero
mais útil à abordagem e compreensão dos muitos aspectos relacionados ao tema. Ou seja, a tentativa
de se construir uma teoria unitária da qualidade do fornecimento — com a redução do defeito e da
periculosidade a tipos de vícios, ou outro esquema semelhante —, embora se revista de inegável
valor acadêmico no tocante ao superamento das insuficiências apresentadas pela teoria dos vícios
redibitórios (cf. Benjamin, 1991b:38/43), frustra-se enquanto sistema global de entendimento da
matéria.
Claro que entre a perspectiva unitária e a aqui proposta não se vislumbra qualquer diferença
pertinente à extensão da tutela liberada pela lei em favor dos consumidores. Trata-se, na verdade, de
formas diversas de entendimento e exposição do mesmo conjunto de normas jurídicas. Desse modo,
do fato de se distinguir entre defeituosidade de comercialização e periculosidade, por exemplo, não
se segue que o consumidor atingido por uma das modalidades de fornecimento sem qualidade não
deva ser atendido, caso tenha proposto ação judicial alegando a ocorrência da outra modalidade. Em
matéria de responsabilidade do fornecedor por acidentes de consumo, aliás, ocorre relativa
superposição de teorias, devido à recente e acelerada evolução do reconhecimento dos direitos dos
consumidores. De fato, nem todas as distinções se encontram já suficientemente claras e
sedimentadas, de forma a se conviver com alguma imprecisão conceitual, embora sem prejuízo à
proteção dos interesses legítimos dos consumidores.
2. SUPERAMENTO DO PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE
Nos quadrantes da fase inferior do capitalismo, em que se desenvolvia o processo de acumulação
de capital, as normas jurídicas sobre a responsabilidade civil pautavam-se na ideia de culpabilidade
(cf. Leães, 1987:19/21; Gorassini, 1990:110/112). O excedente social não podia então ter outro
destino que o reinvestimento em atividades produtivas e comerciais, porque o estágio inicial de
evolução do modo de produção capitalista reclamava a concentração de capital nas mãos da classe
burguesa. Em termos superestruturais, pela ideologia do liberalismo econômico, os homens eram
vistos como proprietários livres e iguais, capazes de regular os seus próprios interesses por meio da
vontade manifestada no mercado. A única fonte de obrigações entre os particulares deveria ser a
vontade. Em decorrência, quem impõe prejuízo a outro somente devia ser responsabilizado se se
pudesse caracterizar, na origem da ação danosa, um ato livre de vontade. Isto é, se ao agente
causador do prejuízo tivesse sido possível agir de forma diversa, evitando o efeito danoso de sua
conduta, e mesmo assim ele não o fez, então a sua vontade era a de prejudicar outras pessoas, tendo
sentido obrigá-lo ao ressarcimento dos danos. Mas se não era possível (material ou juridicamente
falando) exigir-se do mesmo agente comportamento diverso, então ele não se responsabiliza pelos
danos experimentados por terceiros, já que na base de sua ação não há uma livre e consciente opção.
Pelo princípio “nenhuma responsabilidade sem culpa”, somente caberia responsabilizar-se o agente causador do dano, se dele pudesse ter
sido exigida conduta diversa. Na raiz, encontra-se a noção liberal de que somente a vontade é fonte de obrigações.
Na fase superior do capitalismo, o excedente gerado pela produção já comporta a criação de
mecanismos de seguridade social, que compreendem inicialmente o atendimento à inatividade e o
socorro às vítimas de acidente de trabalho. Tais mecanismos, a partir dos anos 1960, voltam-se ao
socorro às vítimas de acidente de consumo também. Novamente, está-se diante de profunda
transformação no direito, que somente se pode explicar satisfatoriamente, em última análise, pelas
necessidades evolutivas do modo de produção. A exclusiva destinação do excedente como
reinvestimento, de impulsionadora passa a entrave do desenvolvimento econômico. Perde sentido
falar-se na culpabilidade como fator indispensável à responsabilização dos empresários em
decorrência da exploração de atividade econômica (cf. Melo da Silva, 1974:164/203; Lima,
1973:121/122).
O custo do processo de melhoria qualitativa do mercado de consumo corre por conta dos próprios
consumidores, por meio do repasse ao preço dos produtos ou serviços, de uma quota-parte das
despesas havidas na empresa com o pagamento de seguro ou de indenizações, quebra de contratos ou
investimentos em controle de qualidade (Cap. 1). Esse processo de redistribuição de perdas abrange
também a compensação pela queda de faturamento em razão da solução de pendências em
fornecimentos viciados, mas, principalmente, representa um mecanismo de absorção e diluição dos
ressarcimentos decorrentes de acidente de consumo (fornecimento perigoso ou defeituoso).
Para Guido Alpa, a transferência dos encargos com os acidentes de consumo da empresa
produtora para os consumidores não é tão simples quanto se poderia supor da primeira impressão da
equação teórica aqui apresentada. É o que se infere do seu exame das relações entre produtores e
seguradoras (Alpa-Bessone 1976:373/375). Com certeza, conforme acentua, o modelo de
distribuição das perdas abstratamente considerado é linear e racional, ao passo que a sua atuação em
concreto nem sempre se pode fazer de forma imediata e singela. A manipulação dos preços sujeitase, com efeito, às nuanças da conjuntura econômica, de sorte que os empresários, por vezes, podem
se ver impedidos de repassarem aos consumidores os encargos pelos acidentes de consumo e,
consequentemente, devem a médio prazo suportá-los. Claro que, a longo prazo, o processo de
realocação das perdas encontrará oportunidades de se realizar. Uma vez cessados os obstáculos
conjunturais, que inviabilizavam a momentânea majoração do preço aos consumidores, o repasse
pode se verificar, compensando o empresário as suas perdas pretéritas.
No capitalismo superior, portanto, estão criadas as condições econômicas para o surgimento de
sistemas de seguridade social de acidentes de consumo. Em muitas das unidades federadas dos
Estados Unidos, com variações pertinentes aos limites do dano ressarcível, existe já desde os anos
1970, sistemas de seguridade institucional por acidente de consumo envolvendo veículos
automotores (o denominado no-fault). Em geral, contudo, e ao contrário do que se verifica com os
sistemas de acidentes de trabalho, os de ressarcimento de acidentes de consumo não têm assumido
caráter institucional, e tornam-se efetivos pelo processo de realocação de perdas, implementado pelo
próprio empresário, por meio da fixação do preço. De qualquer forma, institucionalizado ou não, a
criação de mecanismo de socorro social às vítimas dos acidentes de consumo possibilita, às normas
jurídicas sobre a responsabilidade civil do produtor, a superação dos limites do princípio da
culpabilidade.
O empresário ocupa posição econômica que lhe permite, ao fixar o preço de seus produtos ou serviços, distribuir entre os consumidores as
repercussões de um acidente de consumo. Por essa razão, ele pode ser responsabilizado, mesmo que não tenha agido com culpa para o acidente.
Em outros termos, cabe ao empresário criar os meios para que o consumidor envolvido em
fornecimento perigoso, defeituoso ou vicia-do não sofra isoladamente as consequências. A doutrina
dedicada ao tema sempre se referiu à inevitabilidade dos acidentes de consumo (cf., por todos,
Leães, 1987:15/25). Ou seja, há uma margem de periculosidade, defeituosidade e vício no
fornecimento que o mais diligente dos empresários não é capaz de suprimir. Assim, alguns
consumidores — isto é inexorável — acabarão adquirindo produtos ou serviços perigosos ou
impróprios; e não é justo, nem racional, que sofram individualmente os efeitos desse infortúnio,
quando, mediante o mecanismo da realocação das perdas, se pode perfeitamente distribuir entre os
muitos consumidores daquele fornecimento as repercussões econômicas das inevitáveis falhas do
processo produtivo.
O Código de Defesa do Consumidor definiu como objetiva, em regra, a responsabilidade por
fornecimento defeituoso (CDC, arts. 12 a 14). Exceção feita ao comerciante responsável por má
conservação de produto perecível (CDC, art. 13, III) e aos profissionais liberais não caracterizáveis
como elementos de empresa (CDC, art. 14, § 4º), em relação aos quais conservou o princípio da
culpabilidade como fundamento da responsabilização, a todos os demais fornecedores atribuiu
responsabilidade por defeitos no produto ou serviço em termos objetivos.
3. SUPERAMENTO DO PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE
As necessidades ditadas pela acumulação primitiva de capital na fase inferior do capitalismo, que
inviabilizavam a distribuição das perdas relacionadas com acidente de consumo ou com produtos
viciados, em razão da inexistência de excedente social, não se traduziram somente na elaboração do
princípio da culpabilidade. Um outro aspecto da noção superestrutural básica do liberalismo — isto
é, a ideia da vontade como única fonte de obrigação — também correspondia a tais necessidades, de
sorte a possibilitar reinvestimentos crescentes nas atividades produtivas. Trata-se do princípio da
relatividade dos contratos.
De acordo com esse postulado do direito obrigacional, os efeitos jurídicos da manifestação de
vontade somente se podem circunscrever aos participantes da relação contratual. Terceiros estranhos
ao contrato não podem ser atingidos pelos seus efeitos, na medida em que não manifestaram qualquer
vontade nesse sentido (res inter alios acta, aliis neque nocet neque podest). Em princípio, portanto,
se o consumidor de produtos não pudesse identificar a relação contratual a uni-lo ao fornecedor, não
poderia invocar contra ele qualquer direito. Como, normalmente, contrata com varejista, o
consumidor não possuía ação contra o fabricante. Este último, no entanto, é geralmente quem reúne as
condições econômicas e conhecimentos tecnológicos, para responder pela qualidade do produto. O
resultado da observância do princípio da relatividade dos contratos, nas questões emergentes da
relação de consumo, era a desproteção do consumidor de fornecimento viciado e das pessoas
expostas aos acidentes de consumo.
O Judiciário inglês, por exemplo, em 1892, negou acolhimento à pretensão do condutor de uma
diligência, que pleiteava ser indenizado por lesão corporal sofrida em acidente com o veículo.
Apesar de comprovada a sua culpa na conservação da diligência, o demandado não foi condenado,
exatamente porque inexistia qualquer liame contratual entre ele e o demandante. Na verdade, porque
o veículo havia sido lo-cado aos correios, entendeu-se que somente perante esse o demandado
eventualmente poderia ter sido responsabilizado. Curiosa é a preocupação manifestada em alguns
votos, no tocante às possibilidades ilimitadas de litígios, que se abririam caso não fosse estritamente
respeitada a regra da relatividade dos contratos. Do teor de tais votos se pode concluir a deliberada
e consciente irresponsabilização do fornecedor, em nome do interesse geral da comunidade voltado
ao desenvolvimento econômico (cf. Alpa-Bessone, 1987:216/218; Leães, 1987:34/35).
O primeiro julgamento, em que a relatividade dos contratos é superada na apreciação dos
acidentes de consumo, pertence à jurisprudência norte-americana. Em 1916, deu-se ganho de causa
ao proprietário de automóvel, que pleiteava o ressarcimento dos danos sofridos em acidente
motivado por defeito na roda, demandando diretamente o fabricante do veículo. Afastou-se a
alegação da defesa quanto à inextensão de suas obrigações para além do revendedor com quem
mantivera relação contratual.
O direito norte-americano em matéria de responsabilidade do fabricante por fato do produto
registra, a partir de então, rápida evolução no sentido do superamento da relatividade contratual. São
tidas por exceção as jurisdições em que ainda se exige a existência de vínculo contratual entre as
partes, como fundamento para a ação de garantia (cf. Phillips, 1974:74). Atualmente, a teoria jurídica
norte-amerciana considera, além da relatividade estrita entre o adquirente do produto e o varejista, a
existência de três outras espécies de relatividade, a fundamentar a responsabilização de agentes
econômicos perante pessoas com as quais não celebra contrato: a vertical, que liga todos os
fornecedores e intermediários até o destinatário final do produto; a horizontal, entre o varejista e
terceiros atingidos pelo produto; e a diagonal, relacionando o produtor diretamente ao destinatário
final do produto (Calvão da Silva, 1990:296/298). No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor
não condicionou à existência de vínculo contratual o exercício dos direitos relacionados com
fornecimento sem qualidade. O consumidor pode pleitear o ressarcimento dos danos experimentados
ou a substituição do produto viciado, diretamente do fornecedor real (fabricante, construtor ou
produtor), ainda que o tenha adquirido de varejista ou intermediário, e, portanto, não haja
estabelecido qualquer contrato com aquele. O mesmo direito existe no tocante à intermediação na
prestação de serviços, tendo o consumidor ação contra o fornecedor primário. O princípio da
relatividade simplesmente não existe no tratamento das relações de consumo feito pelo direito
brasileiro.
A legislação protetiva dos consumidores não adota o “princípio da relatividade dos contratos”, ao responsabilizar os fornecedores por
perigo, defeito ou vício em produtos ou serviços.
No tocante ao fornecimento perigoso ou defeituoso, o estágio evolutivo da jurisprudência e da
doutrina nacionais já comportava certa responsabilização direta dos fabricantes, fundada por vezes
na teoria da guarda da estrutura do produto desenvolvida pelo direito francês, segundo a qual o
fabricante tem a obrigação de zelar pelo oferecimento de produtos adequadamente fabricados,
respondendo pelos danos sobrevindos do descumprimento de tal dever. Trata-se, sem dúvida, de
concepção que, a despeito dos meritórios objetivos de sua formulação, apresenta lacunas e deixa
muitas críticas sem resposta satisfatória, principalmente quanto à possibilidade da guarda não
material do produto, após a sua inserção na cadeia de circulação de mercadorias (cf. Rodrigues,
1979:115; Leães, 1987:135/136; Dias, 1979, 2:80). Mas, apesar de suas insuficiências, a teoria da
responsabilidade do fabricante pela guarda da estrutura dos produtos possibilitava, em certo grau, a
tutela dos interesses dos consumidores, lesados por fornecimento perigoso ou defeituoso, em ação
voltada diretamente contra o fornecedor real do produto ou o fornecedor primário do serviço.
Já as reclamações dos consumidores por fornecimento de produto viciado não podiam — segundo
a jurisprudência anterior ao CDC — ser endereçadas diretamente ao fabricante, em razão da
inexistência de vínculo contratual entre eles. Idêntica desproteção se verificava também no
fornecimento de serviços, em que o consumidor não podia acionar o fornecedor primário, em virtude
do princípio da relatividade dos contratos. A principal consequência do superamento desse
princípio, pelo Código de Defesa do Consumidor, portanto, se refere aos vícios em produtos ou
serviços. Ao tratar da responsabilidade dos empresários por fornecimento viciado (CDC, arts. 18 a
20), o legislador brasileiro não distinguiu entre aqueles com os quais os consumidores mantêm
imediata relação contratual e os demais agentes da cadeia econômica. Todos, perante o destinatário
final, são igualmente responsáveis, embora depois possam, em regresso, recompor entre si os seus
interesses, em razão da maior ou menor atuação no viciamento do produto ou serviço.
Outro aspecto muito importante relativo à superação do princípio da relatividade diz respeito ao
alargamento da responsabilidade do empresário, por danos decorrentes de fornecimento perigoso e
defeituoso, em favor de qualquer pessoa exposta aos efeitos do perigo ou do defeito. De acordo com
o art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, as vítimas do evento danoso são equiparadas aos
consumidores para os fins da tutela relativa aos acidentes de consumo. São os denominados
espectadores, conjunto de pessoas que usam os produtos e serviços, ou se encontram em contato
direto ou indireto com estes, sem que necessariamente os tenham adquirido, como por exemplo os
membros da família, os vizinhos e os comensais do consumidor (cf. Lima Lopes, 1992:83/86).
A extensão do art. 17, inclusive, supera os limites da relação de consumo definida pelos arts. 2º e
3º do Código de Defesa do Consumidor. Isto é, se o empregado do restaurante sofrer lesões em
decorrência de explosão de garrafa de refrigerante, apesar de inexistir relação de consumo entre ele
(ou o seu empregador) e o fabricante da bebida, será possível demandar este último, nos termos
preceituados pela legislação tutelar do consumidor, tendo em vista a amplitude do superamento do
princípio da relatividade.
Contudo, o Código deixou de fixar, com a devida clareza, o superamento do princípio da
relatividade em determinadas situações, cada vez mais comuns no comércio, tais como as do
sucessor, merchandisor, franqueador e outras. Nesses casos, a doutrina, atenta às características
próprias do contrato interempresarial correspondente, deve delinear as alternativas de tutela
possíveis, face à ausência de norma legal específica.
4. FORNECIMENTO PERIGOSO
Por fornecimento perigoso se entende o relativo a produtos ou serviços não defeituosos,
desacompanhados de informações adequadas acerca dos riscos envolvidos com o seu consumo.
Todas as questões quanto à responsabilidade dos empresários, em razão de fornecimento perigoso,
se resolvem pela avaliação da adequabilidade das informações prestadas ao consumidor sobre os
riscos apresentados pelo produto ou serviço. Deve-se, claro, ter presente a distinção anteriormente
proposta entre fornecimento perigoso e fornecimento impróprio danoso. Ou seja, a avaliação da
adequabilidade das informações sobre riscos é suficiente, para a definição da responsabilidade dos
fornecedores, no tocante apenas aos produtos e serviços não defeituosos, isto é, sem impropriedades
de qualquer natureza.
Nesse sentido, é possível afirmar que para a solução de todas as questões relativas à
responsabilidade por fornecimento perigoso basta ao intérprete da lei considerar a regra segundo a
qual o empresário é obrigado a prestar informações sobre os riscos de seus produtos e serviços,
sendo estas tanto mais ostensivas quanto maior for o perigo a que se expuser o consumidor (CDC,
art. 9º).
4.1. Riscos Normais e Previsíveis
Todos os produtos e serviços podem oferecer risco à saúde e segurança do consumidor,
dependendo do seu uso. Como no fornecimento perigoso não se registra defeito de qualquer espécie
no bem ou comodidade consumidos, afasta-se a hipótese de danos ocorridos independentemente da
ação do consumidor. Na responsabilização dos empresários por perigo no fornecimento, sempre se
poderá identificar uma conduta do consumidor, no manuseio ou desfrute do produto ou serviço, da
qual resultou diretamente o prejuízo à sua saúde, integridade física ou interesse patrimonial. A
responsabilidade do fornecedor se fundamenta racionalmente, nesse contexto, na medida em que se
possa ligar a conduta do consumidor ocasionadora do dano a uma inadequação nas informações
sobre riscos, que acompanhavam o objeto do consumo. Em outros termos, embora a ação do
consumidor tenha sido a causa direta do dano, indiretamente esse se pode atribuir à inexistência ou
insuficiência das informações, sobre os riscos apresentados pelo produto ou serviço.
De início, portanto, deve-se constatar que os danos causados pela ação do consumidor, que não se
possam justificar a partir da inadequação das informações prestadas pelo fornecedor, não geram
responsabilidade por perigo no fornecimento. Assim, o evidente uso inapropriado do objeto do
consumo, como a ingestão de remédios em quantidade excessivamente superior ao prescrito pelo
médico, não acarreta qualquer responsabilidade da indústria farmacêutica. A menos que a bula
contivesse informação que autorizasse o consumidor a acreditar na inocuidade de tal atitude, o
exagero no consumo do remédio e as consequências lesivas decorrentes não se podem imputar ao
fornecedor.
Se o produto ou serviço perigoso não apresenta nenhuma improprie-dade, o acidente de consumo somente pode ter sido causado em razão de
sua utilização indevida pelo próprio consumidor.
A utilização indevida, no entanto, pode ter sido originada pelo desconhecimento do consumidor, acerca dos riscos oferecidos pelo produto ou
serviço. Neste caso, o empresário será o responsável pelo acidente, se não prestou informações suficientes e adequadas.
Também a imprudência do consumidor, no tocante aos riscos normais e previsíveis, não se pode
considerar justificada por inadequação das informações do fornecedor. O fabricante de facas não
está obrigado a advertir os seus consumidores acerca de efeitos letais que o produto pode acarretar.
Desde muito antes da invenção da escrita, todos os homens sabem que a faca pode lesionar
seriamente, ou mesmo matar pessoas. Não seria possível estabelecer-se qualquer liame entre a
qualidade das informações prestadas pelo fabricante da faca e a conduta do consumidor, de que
resultou lesão corporal ou morte de alguém, exatamente em função da normalidade e previsibilidade
do risco oferecido pelo produto em questão. Por isso, o art. 8º do Código de Defesa do Consumidor,
ao determinar que os produtos e serviços não devem expor a saúde e segurança dos consumidores a
riscos, ressalva destes os “normais e previsíveis”.
Ora, a normalidade e previsibilidade dos riscos são função da vulgarização de informações entre
os consumidores. O perigo apresentado pelo uso inadequado de produto de limpeza pode ser normal
e previsível para o consumidor graduado em química, exatamente porque conhece o assunto. Não o é,
contudo, para os consumidores em geral. Já os oferecidos por garrafas de vidro quebradas são
normais e previsíveis para todos, porque se encontra amplamente difundido o conhecimento acerca
desse material. Atualmente, aparelhos com aproveitamento de energia nuclear são perigosos porque
o consumidor tem pouquíssima experiência no seu uso, não os conhece propriamente e não pode,
portanto, prever ou considerar normal qualquer risco. Em relação a tais produtos e serviços pouco
experimentados e pouco conhecidos do consumidor, cabe ao fornecedor informar de modo ostensivo
e adequado os riscos relacionados com a sua utilização. E na medida em que se informa ostensiva e
adequadamente acerca dos riscos, esses passam a ser conhecidos e, portanto, normais e previsíveis
para os consumidores.
Conclui-se, assim, que a análise do conteúdo das expressões normais e previsíveis, adotadas pela
lei para qualificar os riscos admitidos no fornecimento, gravita em torno da adequabilidade das
informações prestadas pelo fornecedor. Em outros termos, abstraindo-se os produtos e serviços já
amplamente conhecidos das pessoas em geral, o fornecedor deve prestar informações com tal
eficiência, que possibilite ao consumidor antever todo o potencial de periculosidade emergente do
bem ou comodidade adquiridos. Informações adequadas, nesse contexto, são as que capacitam o
consumidor a prever os riscos a que se expõe, diante do fornecimento.
4.2. Alto Grau de Periculosidade ou Nocividade
O legislador proíbe o fornecimento de produtos ou serviços com alto grau de nocividade ou
periculosidade à saúde ou segurança do consumidor (CDC, art. 10). E, aqui, novamente o critério
para se definir o elevado grau de perigo é a adequabilidade das informações prestadas pelo
empresário. Explico-me: se o produto ou serviço exigem para o seu seguro consumo uma tal ordem
de cautelas e conhecimentos, que não se conseguiriam transmitir com facilidade ao consumidor, em
razão de sua alta complexidade, então o fornecimento está vedado. Em outros termos, a interpretação
do art. 10 do CDC não deve ser feita a partir do potencial de risco encontrável no produto ou serviço
em si mesmo considerado, de modo a concluir que, por exemplo, nenhum produto com
aproveitamento de energia nuclear poderia ser oferecido ao mercado. A interpretação desse
dispositivo legal deve, ao contrário, apontar para a avaliação da eficácia das informações prestadas
pelo fornecedor, no sentido de capacitar o consumidor a fazer uso seguro do produto ou serviço.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 8º Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os
considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as
informações necessárias e adequadas a seu respeito.
Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de
nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.
Em suma, para se saber se certo fornecimento oferece apenas riscos normais e previsíveis, de
sorte a considerá-lo permitido pelo art. 8º, ou para se saber se o mesmo fornecimento apresenta alto
grau de periculosidade ou nocividade, de modo a considerá-lo proibido pelo art. 10 do CDC, o que
interessa é verificar se há efetiva possibilidade de se transmitirem ao consumidor do referido
fornecimento informações adequadas acerca dos riscos. Ou seja, informações que capacitem o
consumidor do fornecimento em questão ao seguro consumo do produto ou serviço. Se tais
informações puderem ser prestadas, o fornecimento apresenta riscos normais e previsíveis, pois o
consumidor bem informado poderá antever eventuais consequências danosas do ato de consumo. Se,
porém, tais informações não puderem ser facilmente prestadas, porque o uso do produto ou serviço
reclama cautelas e conhecimentos complexos, então o seu oferecimento ao mercado de consumo é
proibido porque expõe o consumidor a alto grau de periculosidade ou nocividade.
Assim, uma vez constatado que se trata de produto ou serviço a respeito de cujos riscos se pode
informar com segurança o respectivo consumidor, encontra-se o empresário em condições de
fornecê-los ao mercado de consumo. Responderá, contudo, por acidentes provocados pelo
consumidor, caso fique comprovada a insuficiência ou inadequação das informações sobre os riscos
que acompanhavam o fornecimento.
A responsabilidade do empresário por periculosidade dos produtos ou serviços é objetiva, e por
isso o cerne da discussão judicial deverá dizer respeito não à sua eventual negligência no
desenvolvimento da atividade econômica, mas sim ao exame da adequabilidade, sob o ponto de vista
técnico, das informações sobre os riscos prestadas. Ou seja, de acordo com os arts. 12 e 14 do CDC,
o empresário responde pelos danos causados por informações insuficientes ou inadequadas, sobre
riscos de produto ou serviço. Ora, se o empresário provar a suficiência e adequação das informações
prestadas, não se verificará a hipótese legal de responsabilização. Além disso, caso se apure, em
perícia técnica, que as informações se encontravam suficientes e adequadas, a causa do dano somente
se poderá imputar ao próprio consumidor, hipótese em que a responsabilidade do fornecedor é
expressamente ressalvada (CDC, art. 12, § 3º, III, e art. 14, § 3º, II).
5. PERICULOSIDADE DO FORNECIMENTO E INFORMAÇÃO
DO CONSUMIDOR
No fornecimento perigoso (isto é, em que o produto ou serviço não apresentam qualquer defeito
ou vício), a obrigação do fornecedor, no sentido de ressarcir os prejuízos sofridos pelo consumidor,
decorre do descumprimento do dever de informá-lo, suficiente e adequadamente, acerca dos riscos a
que se expõe adquirindo aquele bem ou comodidade. O objeto exclusivo da ação de indenização será
a definição, mediante perícia técnica, da qualidade das informações sobre os riscos prestadas pelo
empresário demandado, se estas eram ou não suficientes e adequadas à capacitação do consumidor,
para o consumo seguro do fornecimento em questão.
A periculosidade do fornecimento é sempre definida, portanto, a partir da relação entre as
informações sobre os riscos de consumo prestadas pelo fornecedor e a sua compreensibilidade pelo
consumidor. O fornecimento não é perigoso, portanto, desde que tenha havido o cumprimento do
dever de informar os consumidores acerca dos riscos do produto ou serviço.
A legislação consumerista, entretanto, além do dever de informar sobre riscos, prescreve outros
aos empresários. Por exemplo, o referido no final do art. 9º, que prevê a adoção de medidas de
segurança cabíveis em cada caso em particular. O descumprimento desse dever, de prover os
mecanismos de segurança nos produtos e serviços, contudo, não caracteriza fornecimento perigoso,
mas sim defeituosidade de concepção. São, por vezes, tênues os limites entre o fornecimento
perigoso e o defeito de concepção, ou mesmo de comercialização, porque os elaboradores do texto
normativo não se preocuparam em tratar em dispositivos próprios cada uma dessas situações.
Nesse sentido ainda, pode-se extrair do contido no art. 10 do CDC o dever de o empresário
pesquisar os riscos oferecidos pelo seu fornecimento. A lei se refere, com efeito, a graus de
periculosidade ou nocividade que o fornecedor sabe ou deveria saber. Assim, estabelece-se a
responsabilidade do empresário em manter-se renovadamente atualizado com a pesquisa tecnológica
em todo o mundo, referente ao objeto do seu fornecimento. Ao pretender lançar no mercado novo
produto ou serviço, o fornecedor deve estar certo de que esgotou todas as possibilidades de testes e
investigações científicas ou tecnológicas, concretamente oferecidas pelo estado de desenvolvimento
do conhecimento especializado, observados os limites circunscritos pelo projeto empresarial
correspondente. Se não der atenção a esse dever, contudo, oferecendo ao mercado produto ou
serviço não totalmente testado, estará incorrendo na prática de fornecimento defeituoso (defeito de
concepção) e não propriamente de fornecimento perigoso.
5.1. Dever de Informar sobre Riscos de Consumo
O fornecimento perigoso, como visto, se caracteriza com a prestação de informações insuficientes
ou inadequadas sobre os riscos de consumo, apresentados por produto ou serviço não defeituoso. A
questão que se deve propor em seguida diz respeito, exatamente, à extensão do conceito de
suficiência e adequabilidade das informações sobre os riscos. Em termos gerais, suficientes e
adequadas são as informações cuja compreensão capacita o consumidor a se portar de modo seguro
no consumo do produto ou serviço.
Informações adequadas e suficientes são as que capacitam o consumidor a se portar de modo seguro, ao consumir o produto ou serviço
correspondente.
Para a mensuração desse efeito pedagógico das informações deve--se considerar o padrão de
consumidor do fornecimento em questão. Claro que as pessoas têm diferentes níveis de capacidade
intelectual e de atenção, de sorte que a mesma advertência acerca do manuseio do produto pode ser
entendida de diversos modos pelos destinatários da mensagem. Ora, se o fundamento racional da
responsabilidade objetiva por acidentes de consumo é a possibilidade de o fornecedor socializar os
prejuízos decorrentes, então o cálculo empresarial deve ser assegurado. O fornecedor deve
responder objetivamente pelos acidentes de consumo, porque ele reúne os meios para absorver e
diluir os custos sociais da produção. Consequentemente, a lei deve conferir-lhe instrumentos para
mensurar, por cálculos atuariais, a extensão do encargo que lhe é atribuído.
O cálculo empresarial somente é possível a partir da consideração de padrões ideais de
consumidores. Não há como desenvolvê-lo a partir de pessoas individualmente consideradas. A
suficiência e adequabilidade ou não das informações atinentes ao perigo do fornecimento devem ser,
portanto, aferidas em função da capacidade de intelecção de um consumidor-padrão. Esse, por sua
vez, deve ser considerado em função de cada tipo de fornecimento em particular, sendo infrutífera e
sem sentido a pesquisa do padrão geral de consumidor brasileiro, com vistas a nortear o cálculo de
todo e qualquer empresário estabelecido no Brasil. As informações sobre os riscos de consumo
devem ser elaboradas para os consumidores do produto ou serviço singularmente considerado, para
que se revelem eficazes.
Os fenilcetonúricos, por exemplo, não podem consumir produtos em cuja composição é
empregado o ácido fenilalanina, e, por essa razão, alguns produtos são comercializados com a
advertência “fenil-cetonúricos: contém fenilalanina”. É certo que a expressiva maioria dos
consumidores não tem a mais pálida ideia do sentido dessas palavras, encontradas em latas de
refrigerantes dietéticos ou em envelopes de adoçante à base de aspartame. Isso não significa, porém,
que a informação é inadequada ou insuficiente, uma vez que os fenilcetonúricos representam grupo de
pessoas normalmente submetidas a acompanhamento médico e especialmente informadas acerca dos
riscos apresentados por tais produtos à sua saúde.
O exemplo dos fenilcetonúricos ilustra bem a ideia de que a avaliação da qualidade das
informações sobre riscos no fornecimento deve pautar-se na consideração do consumidor-padrão,
referência elaborada a partir dos consumidores de cada tipo de produto ou serviço. Se se examinasse
a suficiência e adequação da advertência “fenilcetonúricos: contém fenilalanina” a partir de modelo
de consumidor médio em geral, dever-se-ia concluir pelo não atendimento do dever de informar, uma
vez que essa frase é simplesmente ininteligível para a grande maioria das pessoas. Contudo,
considerando os seus destinatários específicos e as informações que eles geralmente já possuem
sobre os riscos oferecidos pelo ácido em questão, pode-se constatar a sua integral suficiência e
adequabilidade.
A avaliação da adequabilidade e suficiência das informações leva em conta o perfil do consumidor-padrão de um produto ou serviço
específico.
Outro aspecto importante na elaboração do padrão de consumidor relaciona-se com a questão da
deficiência de significativa parcela de consumidores, especialmente no mercado de consumo
brasileiro. Para a mensuração da adequação das informações, poderia o empresário construir a
noção de consumidor-padrão considerando apenas os consumidores médios de seu fornecimento.
Poderia, contudo, considerar também os desprovidos de conhecimentos médios. Nas duas hipóteses,
o cálculo empresarial se mostra realizável, mas, por evidente, algumas informações tomadas por
adequadas com a adoção do primeiro critério (o padrão é apenas o consumidor médio) seriam tidas
por inadequadas pelo segundo critério (o padrão é também o consumidor desprovido de
conhecimentos médios). A melhor interpretação do Código de Defesa do Consumidor é a de que, na
aferição da pertinência de informações prestadas aos consumidores, deve-se imaginar como
destinatário o consumidor desprovido de conhecimentos médios. Com essa medida, tutela-se maior
quantidade de pessoas, concretizando a disposição do constituinte e do legislador, no sentido de
liberar proteção eficaz aos consumidores.
Note-se que elaborar a ideia de consumidor-padrão com atenção aos desprovidos de
conhecimentos médios não é o mesmo que considerar todos os consumidores individuadamente. Com
certeza, haverá pessoas exageradamente distraídas ou particularmente desinformadas ou limitadas,
que não podem ser levadas em conta na mensuração da adequabilidade e suficiência das informações
sobre riscos de produtos ou serviços. Exigir-se o contrário do empresário equivaleria a
impossibilitar o cálculo empresarial.
5.2. Adequabilidade e Suficiência das Informações sobre Riscos de
Produtos e Serviços
Em termos gerais, a informação sobre risco de consumo é suficien-te e adequada se for capaz de
instruir o consumidor de certo fornecimento, acerca dos meios seguros de utilização do produto ou
serviço correspondente. Em termos específicos, o Código de Defesa do Consumidor, no art. 31,
estabelece outros requisitos. Segundo o dispositivo, as informações sobre os riscos que os produtos
ou serviços oferecem à saúde e segurança dos consumidores devem ser corretas, claras, precisas,
ostensivas e em língua portuguesa.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua
portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados,
bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
Correta é a informação verdadeira, isto é, correspondente com a realidade do produto ou serviço.
Qualquer dado em desacordo com os reais efeitos proporcionados pelo fornecimento é falso, e não
atende ao dever de veracidade prescrito por lei. Também não deve ser considerada correta a
informação incompleta, que omite informação essencial sobre o perigo relacionado ao produto ou
serviço. A correção da informação compreende sua absoluta exatidão e necessariamente deve
abranger todos os aspectos relevantes à segurança do consumo.
Clara é a informação que pode ser assimilada pelo consumidor médio com facilidade. A
informação pode ser verdadeira sem ter o atributo da clareza se, por exemplo, for elaborada apenas
com expressões e notações científicas inaccessíveis a quem não domina o conhecimento
especializado. A obscuridade não é necessariamente falsidade, mas desinforma na mesma medida.
A precisão da informação é atributo que não se confunde com a correção nem com a clareza. Diz
respeito ao conteúdo específico da informação. Caracteriza-se a precisão pela apresentação de
dados indicativos da exata extensão dos riscos oferecidos pelo produto. Advertências genéricas do
tipo “cuidado: o uso inapropriado desse produto pode causar danos irreparáveis à sua saúde” não
atendem ao ditame legal e também desinformam mais do que informam, pois, apesar de corretas e
claras, são imprecisas.
Relativamente às informações sobre os riscos de consumo, um atributo muito importante é a
ostentação. Atende-se a exigência legal quando se destacam as informações de tal modo, no contexto
da embalagem, oferta, publicidade ou bula, que ao consumidor médio é impossível não ter a atenção
despertada para o seu conteúdo. A ostentação deve ser tanto maior quanto mais elevado for o grau de
periculosidade ou nocividade do fornecimento.
Por fim, as informações sobre os riscos do produto ou serviço devem ser apresentadas em língua
portuguesa. Claro que o uso de algumas expressões em língua estrangeira, se conhecidas dos
consumidores, não torna inadequada ou insuficiente a mensagem. Uma advertência do tipo “não
pressione o spray diretamente sobre os olhos ”, em recipientes de produtos de higiene, é
perfeitamente compreensível por qualquer habitante de cidade brasileira. Se, contudo, aquela palavra
em inglês fosse substituída por dispositivo de vaporização, aí sim a referida advertência seria
inadequada em vista de sua inusualidade.
A inadequação ou insuficiência das informações podem resultar de fator que o direito norteamericano chama de countervailing representation (Phillips, 1974:222/224). Verifica-se quando a
apresentação e embalagem do produto têm características tais que o consumidor é intuitivamente
levado a crer que o seu consumo não oferece qualquer tipo de insegurança. Ocorre como que uma
contrainformação liberada pelo aspecto geral do produto. É a hipótese exemplificativa de detergentes
incolores, acondicionados em garrafas plásticas parecidas com as de água mineral. Também as
marcas podem acabar neutralizando o efeito pedagógico de informações sobre riscos. Ocorre
contrainformação quando se adota, por exemplo, a marca Suave, para produto de limpeza tóxico no
manuseio direto.
6. RISCO DE DESENVOLVIMENTO
A mais intrincada questão em matéria de responsabilidade dos fornecedores por lesão à saúde,
integridade física ou interesse patrimonial dos consumidores de produtos e serviços está relacionada
com a indenizabilidade dos danos decorrentes de risco de desenvolvimento, isto é, de efeitos
desconhecidos que, em tese, todo fornecimento pode apresentar. Deveras, por mais cauteloso e
diligente que o empresário seja, ao pesquisar amplamente as consequências que o novo produto ou
serviço pode acarretar aos seus usuários, valendo-se dos mais avançados métodos e conhecimentos
do saber científico e tecnológico no mundo, é possível que efeitos lesivos do fornecimento apenas
venham a se manifestar após a sua inserção no mercado de consumo. Em outros termos, a discussão
sobre os riscos de desenvolvimento refere-se às responsabilidades do empresário, pelos danos
decorrentes de efeito do fornecimento incognoscível no momento de sua introdução no mercado de
consumo.
6.1. Dever de Pesquisar
Aos empresários o Código de Defesa do Consumidor prescreve o dever de pesquisar. Isto é, eles
não podem oferecer ao mercado de consumo produto ou serviço acerca do qual não conheçam a
exata mensuração do potencial de risco. Esse conhecimento o fornecedor pode buscá-lo diretamente,
por meio da estruturação de departamento de pesquisa em sua empresa, ou indiretamente, por meio
de contato com os resultados mundialmente obtidos pelo desenvolvimento científico e tecnológico. O
que não pode ocorrer é o fornecimento de produto ou serviço, sem que o fornecedor esteja
exaustivamente informado acerca dos riscos a que se expõem os seus consumidores. Da observância
do dever de pesquisar resulta não só o aperfeiçoamento das medidas de segurança envolventes do
fornecimento, mas também a prestação de informações adequadas ao consumidor. A desobediência
ao dever de pesquisar, por sua vez, caracteriza defeito de concepção no fornecimento com a
responsabilidade do fornecedor pelos danos decorrentes.
Para dar cumprimento ao dever de pesquisar, o fornecedor deve esgotar as possibilidades
oferecidas pelo estado da arte. São os objetivos do seu projeto empresarial que fixarão os limites
do esforço de pesquisa. A proposta respeitante ao fornecimento de bens ou comodidades de baixo
custo, tendo em vista o atendimento a consumidor de determinado perfil econômico, condicionará,
certamente, a natureza das pesquisas a serem desenvolvidas. Contudo, mesmo no interior desses
limites, circunscritos pelos condicionantes econômicos do projeto empresarial, será possível
averiguar se o fornecedor adotou, ou não, todas as providências possíveis, no sentido de esclarecer o
potencial de risco do seu fornecimento de baixo custo. Em outros termos, se houve o esgotamento dos
testes e investigações possibilitados pelo estágio de desenvolvimento científico e tecnológico na
aferição dos riscos latentes do fornecimento.
O risco de desenvolvimento está relacionado à possibilidade de o produto ou serviço vir a apresentar efeito danoso, que não poderia ter sido
previsto pelas pesquisas científicas ou tecnológicas realizadas antes de sua colocação no mercado consumidor.
De fato, a despeito do exaurimento das possibilidades oferecidas pelo estado da arte, um risco
não antecipado pela ciência ou tecnologia pode se manifestar após o oferecimento do produto ou
serviço ao mercado consumidor, com gravíssimas consequências aos seus usuários, como se
verificou no lamentável e conhecido caso do calmante Contergan-Thalidomida. Nessa hipótese, se
por suposto já vigorasse o Código de Defesa do Consumidor, o fornecedor brasileiro do
medicamento poderia ou não ser responsabilizado pela indenização dos danos acarretados às vítimas
do acidente de consumo?
Note-se que não se trata, como já se acentuou, de fornecimento perigoso, posto que as informações
prestadas ao consumidor teriam sido adequadas e suficientes, conforme o que o conhecimento
humano especializado podia, realmente, antever. Isto é, o empresário não teria desobedecido o dever
de informar; ao contrário, teria prestado as devidas informações, nos limites reais do
desenvolvimento do saber científico e tecnológico. Como a responsabilidade do empresário por
fornecimento perigoso decorre unicamente da insuficiência ou inadequação das informações acerca
dos riscos ao consumidor, esse não o poderia demandar alegando periculosidade no produto ou
serviço.
Considere-se, também, que no caso não haveria fornecimento defeituoso por impropriedade de
concepção. Isso se pode afirmar, na medida em que o projeto empresarial desenvolvido tivesse
incorporado todos os avanços de pesquisa científica possibilitados pelo estágio de desenvolvimento
da ciência e tecnologia. A diferença entre defeituosidade de concepção (descumprimento do dever de
pesquisar) e incognoscibilidade de efeito danoso (risco de desenvolvimento) se estabelece
precisamente a partir do aproveitamento integral das possibilidades abertas pelo desenvolvimento do
conhecimento humano especializado, pelo estado da arte. Enquanto no defeito de concepção, o
empresário não aproveita tais possibilidades, no fornecimento com efeito danoso incognoscível
ocorre o aproveitamento. Nas lições de Calvão da Silva, o estágio de desenvolvimento da ciência e
da técnica serve de linha fronteiriça entre, de um lado, os defeitos de concepção e informação e, de
outro, os riscos de desenvolvimento (1990:521).
Desse modo, ao fornecer ao mercado consumidor produto ou serviço que, posteriormente,
apresenta riscos, cuja potencialidade não pôde ser antevista pela ciência ou tecnologia, o empresário
não deve ser responsabilizado com fundamento nem na periculosidade (pois prestou informações
sobre riscos adequadas e suficientes), nem na defeituosidade (porque cumpriu o seu dever de
pesquisar). Por outro lado, frustra o espírito tutelar do consumerismo deixar ao desabrigo os
consumidores de fornecimento de potencial latente de risco não revelado durante os testes
preparatórios de sua inserção no mercado. Trata--se de questão bastante complexa e qualquer que
seja a sua solução não se atenderão satisfatoriamente todos os interesses transindividuais envolvidos,
pois ou se inibirá o desenvolvimento científico e tecnológico, ou permanecerão inindenes certos
acidentes de consumo. Daí a discussão acerca da responsabilidade do fornecedor, por risco de
desenvolvimento, aguçar o espírito de doutrinadores e legisladores, em busca do critério mais
ajustado (para uma visão geral da complexidade da matéria, ver Lucan, 1990:519/532).
A diretiva europeia — cujos documentos preparatórios oscilaram entre a admissão e a rejeição da
excludente de responsabilidade por risco de desenvolvimento —, acabou adotando uma solução
ambígua no tocante ao assunto. Ao mesmo tempo que previu não ser o produtor responsável, se
provar a impossibilidade de constatação do defeito no momento em que ofereceu o produto ao
mercado, autorizou o estado--membro a derrogar referida previsão. Portugal, Itália, Alemanha,
França e Áustria não se utilizaram da autorização derrogatória, consagrando nos seus direitos
internos a excludente por risco de desenvolvimento. Mesmo nos Estados Unidos, em que a
responsabilização dos fornecedores por acidente de consumo tradicionalmente foi bastante ampla, já
se admite a escusa por risco de desenvolvimento, depois de séria retração na indústria farmacêutica,
no tocante ao oferecimento de novos remédios e vacinas, motivada pelos rigores da responsabilidade
civil (cf. Calvão da Silva, 1990:524). Ressalta a doutrina que a imprevisibilidade dos riscos dessa
natureza torna insuportáveis os prêmios dos seguros (Bin, 1989:136). A grande controvérsia em todo
o mundo na disciplina da responsabilidade dos empresários, por risco de desenvolvimento, na
verdade apenas reflete a atual insuficiência do excedente social para o atendimento das vítimas desse
tipo de acidente de consumo.
A responsabilização objetiva dos empresários por risco de desenvolvimento pode desestimular a pesquisa de novos produtos, em especial os
farmacêuticos. Por outro lado, deixar o consumidor ao desamparo frustra os objetivos do consumerismo.
O direito brasileiro não trata diretamente do assunto, não obstante a sua relevância para os
usuários de novos produtos e serviços e para o desenvolvimento da pesquisa tecnológica nacional.
Para Antonio Benjamin, o CDC não admitiria o risco de desenvolvimento como excludente de
responsabilização dos empresários, em função de haver incorporado a tese do risco de empresa
(1991b:67). Penso, ao contrário, que a legislação nacional na verdade admite a excludente. O art. 10
do estatuto tutelar dos consumidores estabelece que o fornecedor não pode oferecer ao mercado
produtos ou serviços que saiba, ou devesse saber, apresentarem alto grau de periculosidade ou
nocividade aos consumidores. Ora, à falta de expressa previsão legal sobre o tema, pode-se concluir
que o empresário não está proibido de oferecer produtos e serviços, acerca de cujos riscos o estado
da arte da época do seu lançamento não tem condições de detectar totalmente. Esses riscos o
fornecedor, por evidente, não tem e não pode ter o dever de saber, pois isso equivaleria a obrigá-lo
ao impossível. Por outro lado, o § 1º do mesmo art. 10, ao tratar da descoberta de periculosidade
posteriormente à introdução do produto ou serviço no mercado de consumo, não prevê a indenização
pelos danos supervenientes, mas apenas impõe a obrigação de comunicar o fato às autoridades (que
deverão retirar o produto ou serviço de circulação, caso o fornecedor não o faça) e aos
consumidores.
Assim, pode-se afirmar que o produto ou serviço, que manifeste nocividade apenas depois de sua
inserção na cadeia de circulação econômica, torna-se juridicamente perigoso somente se, uma vez
revelada a real extensão do potencial de risco, omitir-se o fornecedor de proceder à devida
divulgação da descoberta aos consumidores e ao poder público. Lembre-se que a questão da
periculosidade do fornecimento se exaure na análise do cumprimento do dever de informar. Se for
dado pronto atendimento a esse dever, nenhuma responsabilidade poderá advir ao empresário em
razão dos danos ocasionados pelo risco anteriormente desconhecido.
6.2. Estado da Arte
O cerne da questão relativa à responsabilidade do fornecedor, por acidentes de consumo
derivados da inobservância do dever de pesquisar, refere-se à definição do estado da arte da época
do lançamento do produto ou serviço. A partir desse conceito, é possível decidir se o empresário
incorreu eventualmente em defeito de concepção, deixando de esgotar todas as possibilidades de
testes e investigações científicos e tecnológicos existentes na oportunidade, ou não. E,
consequentemente, decidir se os danos advindos da manifestação ulterior do potencial de
periculosidade seriam imprevisíveis, de modo a se caracterizar risco de desenvolvimento, fator
excludente de sua responsabilização.
No direito brasileiro não há conceito normativo de estado da arte. É certo que a Lei da
Propriedade Industrial contempla conceito de estado da técnica (LPI, art. 11, § 1º), para fins da
definição das criações intelectuais que, por sua novidade, podem ser objeto de patente de invenção.
Trata-se, no entanto, de noção um tanto restrita, elaborada a partir da ideia de conhecimentos
tornados públicos por qualquer meio e, portanto, com exclusão da importante área dos segredos de
empresa. Por estado da arte se deve entender o conjunto de conhecimentos acumulados pelos
cientistas e especialistas no mundo todo, ligados ao meio acadêmico ou empresarial, acerca dos
efeitos que o emprego de determinados processos, substâncias, formas ou mecanismos em produtos e
serviços pode acarretar à saúde ou segurança das pessoas a eles expostas, sejam ou não tutelados
pelo direito industrial.
Na aferição da exploração de todos os recursos disponibilizados pelo estado da arte, na fase
preparatória do lançamento de produto ou serviço, não se deve considerar apenas os dados ou
informes científicos e tecnológicos imediatamente ao alcance do fornecedor. O dever de pesquisar,
imposto por lei, obriga o empresário a se reportar, cotidiana e eficientemente, a todas as notícias de
novidade no tratamento científico ou tecnológico do objeto de sua empresa, de molde a manter-se
estritamente atualizado. O decisivo na caracterização do chamado defeito de desenvolvimento, como
ensina Maria Angeles Lucan (1990:521), é que o risco não poderia ter sido previsto por ninguém e
não se o produtor individualmente considerado reunia as condições de descobri-lo.
Para atender ao dever de pesquisar que a lei lhe impõe, o empresário deve manter-se (pessoalmente ou por meio dos seus empregados técnicos)
bem atualizado com as conquistas da ciência ou da tecnologia respeitante aos produtos ou serviços que coloca no mercado.
Na delimitação do dever de pesquisar, por fim, tem sido objeto de preocupação doutrinária
discutir a importância a se atribuir às posições minoritárias do conhecimento especializado e às teses
científicas ainda não inteiramente confirmadas. O critério que se mostra mais ajustado, nesse
particular, parece ser o extensivo. Ou seja, na dúvida, responsabiliza-se o fornecedor. Claro que as
manifestações pseudoconsistentes de saberes autoproclamados alternativos, que o saber acadêmico e
universitário tendem a não reconhecer como interlocutores, não podem servir de padrão para o
cálculo empresarial e, consequentemente, para o julgamento do cumprimento do dever de pesquisar
pelo fornecedor. O que ele não pode ignorar são as dúvidas metodicamente suscitadas por setores
minoritários da pesquisa científica, com os quais o saber acadêmico e universitário costuma manter
diálogo, mesmo que antitético. De tais questionamentos embrionários e por vezes meramente
intuitivos costumam nascer verdadeiras revoluções no saber científico e tecnológico.
Acentue-se que a adoção dessa perspectiva não pressupõe a desqualificação epistemológica dos
saberes autoproclamados alternativos. A despeito das instigantes possibilidades suscitadas pela
questão filosófica acerca dos fundamentos pelos quais o conhecimento acadêmico e universitário
reivindica para si a primazia e a exclusividade no tratamento da verdade, e de outros atributos da
capacidade intelectiva humana — questão esta bem visitada por Foucault, em sua genealogia do
poder —, o fato é que o empresário necessita de critério seguro para estruturar sua empresa, para o
qual nenhuma contribuição pode fornecer, no momento, a reflexão filosófica sobre a hierarquia dos
saberes. Juridicamente falando, os conhecimentos que o meio acadêmico e universitário não elegem
como interlocutores não integram o estado da arte.
No tocante às teses científicas não inteiramente confirmadas, Marino Bin propõe que se proceda à
aferição casuística. Se os possíveis efeitos danosos à saúde das pessoas, provocados por remédio ou
produto químico, forem referidos em estudo científico teórico ainda não testado, o fornecedor deve
postergar o seu lançamento no mercado de consumo, até que experimentos idôneos demonstrem a
insubsistência da hipótese levantada por aquele estudo (1989:137). Assim, caso não dê a devida
consideração à advertência suscitada pela tese científica, precipitando o oferecimento do produto ou
serviço ao consumidor, o fornecedor terá descumprido o dever de pesquisar, e responderá pelos
danos decorrentes de defeito de concepção, se porventura restarem posteriormente confirmadas as
preocupações daquele estudo teórico. Evidentemente, se a nocividade, revelada após a venda do
produto ou serviço, for diversa da referida por esse ou por qualquer outro estudo, o fornecedor
estará isento de responsabilização.
A exclusão de responsabilidade do fornecedor por risco de desenvolvimento está, portanto,
indiretamente prevista pelo Código de Defesa do Consumidor, sintonizado, nesse particular, com a
solução adotada pelo direito de países centrais do capitalismo. Essa causa de exclusão, no entanto,
deverá ser futuramente afastada da disciplina da matéria. Tal possibilidade, aliás expressamente
prevista pela diretiva europeia, está condicionada economicamente pelo estágio de acúmulo de força
de trabalho (excedente social). Quando cálculos atuariais permitirem constatar que o socorro às
vítimas por acidente de consumo, originado por risco de desenvolvimento, não mais comprometeria
os investimentos em pesquisa científica e tecnológica, seguir-se-á a transformação da norma jurídica,
ou de sua interpretação doutrinária e jurisprudencial, no sentido da responsabilização dos
fornecedores também por riscos incognoscíveis no momento da introdução do fornecimento no
mercado. Por enquanto, inviabilizado o cálculo empresarial pela inexistência de excedente, o direito
deve mesmo excluir a responsabilidade do fornecedor por risco de desenvolvimento.
7. FORNECIMENTO DEFEITUOSO
Se o acidente de consumo decorre de conduta negligente do consumidor, no manuseio de produto
ou desfrute de serviço, de duas uma: ou as informações sobre os riscos do fornecimento estavam
adequadas, e então o fornecimento não se determina juridicamente como perigoso, e inexiste
responsabilidade para o fornecedor; ou não estavam, e então se caracteriza para o direito a
periculosidade, e o consumidor será integralmente indenizado.
O acidente de consumo, porém, nem sempre é causado pela conduta do consumidor. Por vezes,
pode decorrer de fatores estranhos à ação do usuário do produto ou serviço. É o caso de
fornecimento defeituoso, em que se verifica impropriedade no bem ou comodidade oferecidos ao
mercado, do qual resultam danos à saúde, à integridade física ou a interesse patrimonial do
consumidor.
Defeito é uma impropriedade, algo que não deveria ser o que é. Distingue-se do perigo, na medida
em que, nesse último, os produtos ou serviços são exatamente o que deveriam ser, embora as
informações sobre os seus riscos não se mostrem suficientes ou adequadas à capacitação do
consumidor para o consumo seguro. No fornecimento defeituoso, haverá sempre disparidade,
dessintonia, desacordo entre um fator ideal e outro real. No defeito de concepção, o descompasso se
estabelece entre o projeto empresarial que poderia ser elaborado, com o aproveitamento de todos os
recursos oferecidos pela ciência e tecnologia para a produção do bem ou serviço em questão, e o
projeto empresarial efetivamente desenvolvido. No defeito de execução, o descompasso se verifica
entre a fabricação ou conservação do produto ou prestação do serviço e o respectivo projeto
empresarial. No defeito de comercialização, por fim, entre o padrão de informações adequadas e
suficientes sobre a utilização do produto e o conjunto de dados a esse respeito efetivamente
transmitido aos consumidores.
O defeito é uma impropriedade do produto ou serviço, uma disparidade entre o que ele deveria ser e o que é.
Na aferição de defeito de concepção, é necessária a análise da relação custo-benefício. É sabido
que o fornecimento de energia elétrica por cabos subterrâneos representaria menor grau de perigo a
todas as pessoas. Em tese, portanto, um projeto de fornecimento de energia elétrica por cabos
suspensos não corresponde ao esgotamento dos avanços tecnológicos e científicos, proporcionados
pela evolução do conhecimento humano. Contudo, o montante que seria dispendido com a execução e
manutenção do sistema subterrâneo de cabos elevaria consideravelmente o preço para o consumidor
da energia elétrica, sem que a correspondente diminuição dos acidentes de consumo pudesse
caracterizar benefício compensador. Em outros termos, não se podem ignorar os limites econômicos
fixados pelos objetivos do projeto empresarial, no exame da pertinência ou defeituosidade do
fornecimento.
Entre as modalidades de defeito de execução, deve-se incluir a hipótese de produtos perecíveis,
inadequadamente conservados pelo fabricante ou por qualquer intermediário, e seus contratados
(como as transportadoras, por exemplo). Os métodos ou cautelas para a conveniente conservação de
produtos perecíveis é capítulo necessário do projeto empresarial referente à introdução desse tipo de
fornecimento. A deterioração do produto motivada pela má conservação configura, assim,
inobservância da parte do projeto relativa ao seu armazenamento e transporte adequados.
O defeito de comercialização, por sua vez, decorre da inadequação ou insuficiência das
informações acerca da utilização do produto, prestadas aos consumidores. Note-se que o dano
decorrente de defeito de comercialização compromete em geral apenas o próprio produto adquirido
pelo consumidor. Se o aparelho eletrodoméstico não é acompanhado de indicações ostensivas sobre
a voltagem adequada ao seu funcionamento e, por isso, o consumidor o conecta à rede errada, os
danos, em geral, atingirão apenas o próprio aparelho. Se as informações, cuja inadequação resultou
prejuízos ao consumidor, referirem-se não mais à utilização, mas sim aos riscos do produto, então a
questão se desloca para o campo da periculosidade.
7.1. Classificação dos Fornecedores
Em matéria de responsabilidade por produtos defeituosos, o legislador nacional distinguiu duas
espécies de fornecedores. De um lado, o fabricante, produtor, construtor e importador e, de outro, o
comerciante.
O conceito de fabricante relaciona-se com a atividade de transformação e compreende os
empresários que industrializam ou manufaturam produtos para oferecê-los ao mercado, tais como as
montadoras de veículos, fábricas de utensílios domésticos, móveis, roupas, remédios, produtos
alimentícios, refrigerantes etc. A noção de fabricante não se circunscreve apenas aos empresários de
maior poderio econômico. O microempresário e o empresário de pequeno porte, ao confeccionarem
bens mais ou menos personalizados, se determinam como fabricantes também. A legislação tutelar de
consumo não distingue os fornecedores, em função de sua força econômica, responsabilizando na
mesma medida a multinacional e a fábrica de fundo de quintal.
Produtor é o empresário dedicado às atividades de fornecimento de produtos extraídos
diretamente da natureza. É o pecuarista, agricultor, caçador ou pescador. Construtor, por sua vez, é o
empresário do ramo imobiliário que ergue prédios ou realiza loteamentos. De acordo com a
legislação nacional, têm eles a mesma responsabilidade dos industriais por fornecimento defeituoso.
Ao atribuir a esses tipos de fornecedores (produtor e construtor) responsabilidade de igual extensão
e natureza da reservada aos fabricantes, o direito brasileiro se revela mais protetor que o dos
estados-membros da Comunidade Europeia, cuja diretiva os exclui expressamente do sistema de
responsabilidade objetiva.
O fabricante, produtor e construtor são designados, doutrinariamente, por fornecedores reais
(Benjamin, 1991b:56).
Importador é o revendedor no Brasil de bens fabricados ou produzidos no exterior. Em termos
econômicos, encontra-se na mesma situação do comerciante, isto é, trata-se de mero intermediário na
cadeia de circulação de riquezas, que não interfere com o processo produtivo, estritamente
considerado. No entanto, o legislador atribuiu-lhe a responsabilidade do fabricante, com vistas a
tornar efetiva a tutela deferida aos consumidores. Se o importador fosse tratado tal como o
comerciante, dificilmente o consumidor teria condições de ser ressarcido em seus danos em face da
complexidade envolvida com a promoção da responsabilização de fabricante ou produtor sediado em
país estrangeiro. O importador é chamado, pelos doutrinadores, de fornecedor presumido (Benjamin,
1991b:56).
7.2. Responsabilidade do Fabricante, Produtor, Construtor e
Importador
O fabricante, produtor, construtor e importador respondem pelos danos causados por fornecimento
defeituoso de produtos (CDC, art. 12). Aquele que sofrer acidente de consumo, decorrente de defeito
de concepção, execução ou comercialização de produto, tem o direito de ser indenizado por todos os
danos decorrentes. A responsabilidade, no caso, é objetiva, independe de culpa da parte dos
empresários.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa,
pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas,
manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
utilização e risco.
Na verdade, o fornecedor real ou presumido, demandado por defeito do produto, deixará de ser
responsabilizado se provar uma das hipóteses aventadas pelo art. 12, § 3º, do CDC. Isto é, a
ilegitimidade passiva, a inexistência do defeito ou a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
No primeiro caso, o empresário deve provar que o produto defeituoso não foi fabricado, produzido,
construído ou importado por ele. Nessa excludente de responsabilização, encaixa-se não somente a
hipótese de equívoco do consumidor na identificação do fornecedor responsável, mas também os
defeitos provocados por produtos falsificados ou com marca usurpada.
A segunda excludente relaciona-se à inexistência de defeitos. Cabe, nesse caso, ao empresário
demonstrar que o produto fornecido ao mercado não apresentava qualquer impropriedade, seja na
concepção, execução ou comercialização. Isto é, deve provar que o projeto empresarial
desenvolvido aproveitou todos os recursos proporcionados pela evolução do saber humano
especializado, que o processo de fabricação do produto observou o projeto empresarial e que as
informações sobre a sua utilização capacitam os consumidores a manuseá-lo apropriadamente. Com
tais provas, demonstra-se a inocorrência de impropriedade de qualquer natureza, no fornecimento do
produto.
A defeituosidade, nos termos da lei, se revela a partir da frustração de expectativas, concernentes
à segurança oferecida pelo consumo do produto em particular (CDC, art. 12, § 1º). Claro que essas
expectativas não podem ser senão as do conhecimento científico e tecnológico especializado, de
modo a possibilitar o cálculo empresarial. Considerar a defeituosidade a partir da perspectiva dos
consumidores impossibilita qualquer antecipação do montante a ser distribuído ao preço do produto,
na socialização de perdas relacionadas a acidentes de consumo. É certo, por outro lado, que a
insuficiência ou inadequação das informações sobre riscos, prestadas pelo fornecedor, podem gerar
falsa expectativa dos consumidores relativamente à segurança do produto; mas, nesse caso, será
responsabilizado o empresário por periculosidade e não por defeituosidade do fornecimento.
A terceira excludente de responsabilização do fornecedor por produtos defeituosos refere-se à
culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros na causação do evento danoso. A rigor, nesse caso, o
empresário irá demonstrar, embora sob outro ângulo, ainda a inexistência do defeito. Pois se o
acidente de consumo decorre exclusivamente de conduta culposa do próprio consumidor ou de
outrem, então é porque o produto não apresenta qualquer impropriedade capaz de deflagrá-lo. A
culpa concorrente da vítima, na responsabilização do fabricante, produtor, construtor ou importador,
não é causa de diminuição do valor da indenização, como ocorre, em regra, nas demais hipóteses de
responsabilidade civil.
O elenco de excludentes do art. 12, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor não é exaustivo. O
fornecedor também é liberado do dever de indenizar em demonstrando a presença, entre as causas do
acidente de consumo, da força maior ou do caso fortuito, desde que posteriores ao fornecimento. A
força maior ou o caso fortuito anteriores ao fornecimento não configuram excludente de
responsabilização, uma vez que o fundamento racional da responsabilidade objetiva do empresário,
por acidente de consumo, se encontra exatamente na constatação da relativa inevitabilidade dos
defeitos no processo produtivo (cf. Alpa, 1989:24). Assim, o mais diligente dos empresários pode
acabar oferecendo ao mercado produtos com defeitos. Ora, se esses não são resultantes de conduta
culposa na organização da empresa, somente se podem explicar pela superveniência de força maior
ou caso fortuito. Contudo, ao se manifestarem esses fatores após a introdução do produto na cadeia
de circulação econômica, não se verificam mais aqueles pressupostos da responsabilização objetiva
do fornecedor. Por esta razão, a prova do caso fortuito e da força maior posteriores ao fornecimento
o libera do ressarcimento dos danos. Com efeito, a manifestação de tais fatores, posteriormente ao
fornecimento, desconstitui qualquer liame causal entre o ato de fornecer produtos ao mercado e os
danos experimentados pelo consumidor. Por exemplo, se o eletrodoméstico é inutilizado por um raio,
não se responsabiliza o empresário pelos prejuízos do consumidor.
Também a excludente por risco de desenvolvimento deve ser lembrada para fundamentar o caráter
exemplificativo do elenco do art. 12, § 3º, do CDC. É certo que proponho diferenciar periculosidade
de defeituosidade do produto, como solução teórica mais útil ao entendimento da matéria relativa às
responsabilidades dos empresários por acidente de consumo. Mas, como o Código de Defesa do
Consumidor não adota essa diferenciação tão claramente, tratando as duas situações nos mesmos
dispositivos (CDC, arts. 12 a 14), mostra-se conveniente a sua referência, na análise das causas de
exclusão de responsabilidade dos fornecedores.
7.3. Responsabilidade do Comerciante
O comerciante é o intermediário no fornecimento de produtos fabricados, construídos ou
produzidos no Brasil ou para aqui importados. O conceito abrange tanto o varejista como o
atacadista, bastando à sua determinação que inexista qualquer atividade industrial ou manufatureira
de sua parte, na circulação econômica do bem. Na sua caracterização, outrossim, são totalmente
irrelevantes os contornos elaborados pela doutrina comercialista, a partir da teoria dos atos de
comércio ou mesmo da empresa. Assim, há fornecedores considerados comerciantes pelo direito
comercial que não o são para o direito do consumidor, tais o industrial, banqueiro e construtor; e há
os considerados comerciantes pelo direito do consumidor, que não o são para o direito comercial,
como a cooperativa. Para a doutrina, o comerciante é denominado fornecedor aparente (Benjamin,
1991b:56).
A responsabilidade do comerciante é ora objetiva, ora subjetiva. É objetiva quando substitui a
dos fornecedores reais ou presumidos. Ou seja, ele responde independentemente de culpa, na medida
em que não se puderem identificar, com facilidade, o fabricante, construtor, produtor ou importador
do produto defeituoso (CDC, art. 13, I e II). Pretendeu o legislador, nessa hipótese, proporcionar aos
consumidores meios de verem ressarcidos os danos sofridos pelo manuseio de produtos defeituosos,
que não apresentam identificação do responsável pelo seu processo de produção ou pela sua
introdução no mercado nacional. Alcança, por exemplo, os produtos artesanais, em que o fabricante
não costuma ser designado, ou os hortifrutigranjeiros, que geralmente são comercializados sem
identificação do produtor, ou ainda imóveis adquiridos por meio de corretores, sem a menção do
respectivo construtor.
É irrelevante, para o consumidor, se o comerciante pode ou não informar-lhe o nome do
fornecedor real ou presumido. Se o produto, em si mesmo considerado, não possibilita a fácil
identificação do fabricante, construtor, produtor ou importador, o comerciante irá responder, e
objetivamente, pelos acidentes de consumo provocados por seus defeitos.
Por outro lado, é subjetiva a responsabilidade do comerciante se o dano tiver sido ocasionado por
má conservação de produtos perecíveis (CDC, art. 13, III). Nesse caso, o comerciante não tem
responsabilidade substitutiva, porque indenizará o consumidor em razão de sua própria negligência
no adequado armazenamento de produtos perecíveis. Verific a-se que o legislador fez referência à má
conservação de produtos perecíveis, o que centra o foco da questão sobre a conduta do comerciante,
e recupera o princípio da culpabilidade. Se tivesse se reportado à deterioração de produtos
perecíveis, durante o tempo em que se encontravam sob a guarda do comerciante, aí sim, teria
consagrado mais uma hipótese de responsabilidade objetiva.
O fato de ser baseada na culpa essa hipótese de responsabilização em nada altera a distribuição
do ônus probatório desenhada pelo legislador. Cabe ao comerciante demandado provar que não
incorreu em prática culposa na conservação do produto. Evidentemente, como se trata de fato
negativo, admite-se em certa medida a prova indiciária, com a demonstração de diligência
empresarial em termos globais. De qualquer forma, não se imporá ao consumidor, em nenhuma
circunstância, a prova diabólica da culpa do comerciante, na conservação do produto perecível.
O comerciante é chamado de fornecedor aparente. A sua responsabilidade é objetiva quando o fornecedor real ou presumido não puder ser
identificado pelo consumidor; e é subjetiva quando conservou indevidamente produtos perecíveis.
O consumidor que sofrer danos em virtude dessa modalidade específica de defeito de execução
(isto é, a má conservação de produtos perecíveis) tem ação contra o comerciante, devendo ser
julgado carecedor se demandar os fornecedores reais ou presumidos. Se alegar má conservação do
produto como fundamento de seu pedido, o consumidor só pode demandar o comerciante. Se, porém,
o consumidor ignorava a causa efetiva do defeito e ajuizou a ação contra o fabricante, imaginando
tratar-se, por exemplo, de defeito de concepção, e, no curso do processo, ficou definido que o dano
decorreu de má conservação, então nesse caso em particular, o réu deve ser condenado e, em
regresso, ressarcir-se perante o comerciante culpado pelo defeito.
7.4. Responsabilidade do Prestador de Serviços
Ao prestador de serviços, por sua vez, reservou a legislação brasileira responsabilidade objetiva
pelos danos ocasionados aos consumidores (CDC, art. 14).
Código de Defesa do Consumidor
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores
por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Em relação aos serviços, pode-se cogitar também de defeito de concepção, execução ou
comercialização. No serviço de lavanderia estruturalmente mal dimensionado, em que se mancham as
roupas claras, em razão de não se as separarem das que soltam tinta, pode-se caracterizar defeito de
concepção. No serviço de dedetização, em que não se protejem adequadamente os produtos
alimentícios da ação do veneno pulverizado, verifica-se defeito de execução. E no serviço bancário,
em que não se informa adequadamente o consumidor acerca das cautelas mínimas no uso do cartão
magnético, ocorre defeito de comercialização.
Libera-se o prestador de serviços da indenização pelos danos decorrentes de fornecimento
defeituoso, se provar a inexistência do defeito ou culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros
(CDC, art. 14, § 3º). Cabe-lhe, portanto, demonstrar em juízo que inexiste descompasso entre o
projeto empresarial do serviço prestado e aquele que, idealmente, decorreria do aproveitamento de
todas as possibilidades abertas pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia; ou entre a
prestação do serviço e o respectivo projeto empresarial; ou entre as informações sobre o desfrute do
serviço e as que, idealmente, capacitariam o consumidor-padrão a usufruí-lo de modo satisfatório.
Não há qualquer distinção, no tocante à circulação dos serviços, entre o intermediário e o
prestador originário. Se o buffet põe à disposição de seus clientes serviço de manobrista prestado
por empresa especializada, ele intermedeia esse serviço e responde por defeitos no seu
fornecimento, cabendo-lhe eventualmente direito de regresso. A agência de turismo, por sua vez,
intermedeia serviços prestados por empresas de transporte aéreo, hotéis, guias e outros. A lei não
trata o intermediário do serviço de forma particular, como faz com o intermediário da venda de
produtos (o comerciante). O consumidor poderá, assim, demandar diretamente tanto o intermediário,
como o prestador originário, pelos prejuízos sofridos em decorrência de defeito no fornecimento.
7.5. Responsabilidade dos Profissionais Liberais
Há uma categoria de prestadores de serviços que se encontra sujeita a disciplina específica no
tocante aos defeitos de fornecimento. Trata-se dos profissionais liberais, que respondem apenas
pelos danos decorrentes de conduta culposa (CDC, art. 14, § 4º). Entende-se que o profissional
liberal presta serviço personalizado, não se caracterizando normalmente qualquer elemento
empresarial, que justifique cogitar-se de exploração de atividade econômica organizada, de forma a
possibilitar a distribuição de perdas entre os seus clientes. Zelmo Denari aponta para o fato de que a
natureza intuitu personae dos serviços prestados pelos profissionais liberais implica a
indispensável confiança estrita do consumidor na pessoa do profissional, a motivar a celebração do
contrato. A adoção do princípio da culpabilidade, contudo, não afasta, ainda segundo Denari, a
inversão do ônus probatório em favor do consumidor, cabendo ao profissional a prova da
inexistência de culpa na prestação do serviço (1991:95).
Costuma a doutrina ressaltar que a norma do art. 14, § 4º, do CDC não se aplicaria às pessoas
jurídicas prestadoras de serviços liberais, como a sociedade de advogados, médicos, dentistas etc.
(cf. Denari, 1991:95; Benjamin, 1991b:79/80). Na verdade, a interpretação mais adequada é a de que
os serviços liberais prestados sob a forma de empresa serão decididos com o superamento do
princípio da culpabilidade, e os desenvolvidos pessoalmente mediante a verificação de culpa. Não
se identificam os conceitos de pessoa jurídica e de empresa. Embora geralmente a atividade
empresarial seja desenvolvida por pessoa jurídica, isso não significa que a pessoa física não possa
ser empresária. Também é certo, por outro lado, que nem sempre a pessoa jurídica é empresária. A
constituição de sociedade entre advogados para repartição de despesas e de resultados, no
desenvolvimento da advocacia, não caracteriza a exploração de atividade empresarial. Permanecem,
na base das relações entre os profissionais sócios dessa sociedade e seus respectivos clientes aquele
elemento de confiança estrita que justifica a análise da culpabilidade no defeito de fornecimento.
Assim, quando a atividade liberal (advocacia, medicina, odontologia etc.) for explorada
empresarialmente, sem a característica da pessoalidade estrita na prestação do serviço, então os
defeitos de fornecimentos serão indenizáveis independentemente de culpa. Já, se a motivação básica
do consumidor ao procurar os serviços liberais é a confiança específica na pessoa do profissional,
mesmo que ele integre pessoa jurídica, não se vislumbra qualquer atividade de empresa, e, portanto,
os defeitos de fornecimento só se devem indenizar se presente a culpa do profissional.
O profissional liberal (advogado, médico, dentista e outros) tem responsabilidade subjetiva pelos defeitos na prestação de serviços, a menos
que sua atividade seja desenvolvida com características de empresa, hipótese em que responde independentemente de culpa.
Para a análise da extensão do tratamento excepcional do art. 14, § 4º, do CDC, revela-se bastante
útil a noção de elemento de empresa adotada pelo direito italiano. De acordo com a noção, o
prestador de serviço intelectual — inclusive o profissional liberal, portanto —, ainda que contrate
terceiros para o auxiliar, não se considera empresário, salvo se for elemento de empresa. O médico
que atende à sua clientela, em consultório mantido junto com colegas, não é empresário, porque,
embora até eventualmente integre pessoa jurídica para a repartição de despesas e de resultados, ele
não pode ser caracterizado como elemento de empresa. Já o mesmo médico, ao organizar um pronto-socorro, empregando clínicos, enfermeiros, pessoal administrativo etc., passa a ser visto como
elemento de empresa, mesmo se continuar dando atendimento médico especializado. Como se vê, o
aspecto referente à formação ou não de pessoa jurídica é irrelevante para a definição da incidência
do tratamento excepcional, baseado no princípio da culpabilidade, reservado aos profissionais
liberais. O decisivo é tratar-se, ou não, de exploração empresarial da atividade.
8. FORNECIMENTO VICIADO
A falta de qualidade no fornecimento nem sempre é causa de danos à saúde, integridade física e
interesse patrimonial do consumidor. Por vezes, o produto ou serviço apresenta impropriedades
inócuas, inofensivas. Nesse caso, o fornecimento se considera viciado e o empresário tem, grosso
modo, o dever de respeitar a opção escolhida pelo consumidor entre as proporcionadas pela lei, para
a solução do vício.
A mesma impropriedade pode se determinar como defeito ou vício, em função de sua inocuidade
(ou não) relativamente à saúde, integridade física ou interesses patrimoniais do consumidor. Se a
conserva alimentícia está estragada, em decorrência de má conservação, falha no processo produtivo
ou qualquer outra razão, mas o consumidor antes de ingeri-la constata o fato, pelo odor ou pela
aparência, está-se diante de fornecimento viciado. Se, contudo, ele ingere aquela mesma conserva,
sofrendo contaminação alimentar, então cuida-se de fornecimento defeituoso.
É certo que, mesmo na hipótese de consumo de produtos ou serviços viciados, sobrevêm em
pequena medida prejuízos aos consumidores. Em geral, há pelo menos as despesas com idas ao
estabelecimento empresarial do fornecedor, e perda de tempo. Se o valor dessas despesas é pequeno,
a ponto de ser absorvido pelo próprio consumidor, pode-se considerar que inexistiram propriamente
prejuízos. É claro que a lei assegura a indenização do consumidor independentemente do montante
das perdas, inclusive em decorrência de fornecimento viciado. Assim, mesmo as despesas
decorrentes daquelas importunações relacionadas com o saneamento do vício, de reduzido valor,
podem ser objeto de ressarcimento, caso o consumidor as demonstre. Já, por outro lado, não
caracteriza vício, mas sim defeito, a existência de prejuí-zos consideráveis relacionados com o
fornecimento, tais a perda de dia de trabalho ou do próprio emprego, lesões, tratamento médico,
lucros cessantes etc.
Não é fácil precisar o limite a partir do qual o fornecimento se determina como viciado ou
defeituoso. A questão envolve, certamente, a dimensão das perdas. Se o liquidificador simplesmente
não funciona, e o consumidor aproveita a sua ida ao estabelecimento do fornecedor para outros fins,
e apresenta sua reclamação, e é prontamente atendido, caracteriza-se inequívoco caso de
fornecimento viciado. Se o liquidificador, no entanto, provoca curto-circuito na rede de alimentação
de energia elétrica e causa pequeno incêndio, verifica-se inequívoca hipótese de fornecimento
defeituoso. Entre ambos os extremos, é difícil situar a fronteira a partir da qual as perdas do
consumidor, pela falta de qualidade do produto ou serviço, não caracteriza mais vício, e sim defeito.
Tal imprecisão conceitual, contudo, não pode trazer qualquer consequência em desfavor dos
consumidores. Se a ação indenizatória fundar-se em responsabilidade por fornecimento viciado,
quando era caso de fornecimento defeituoso, ou vice-versa, isso não tem nenhuma importância, em
razão da natureza embrionária dos conceitos da teoria consumerista.
8.1. Impropriedade nos Produtos e Serviços
O Código de Defesa do Consumidor define impropriedade nos produtos e serviços
respectivamente nos arts. 18, § 6º e 20, § 2º. A interpretação desses dispositivos aponta para a
distinção de dois níveis de impropriedade: intrínseca e extrínseca.
Manifesta-se a impropriedade intrínseca nos produtos, em termos gerais, quando, por qualquer
razão, não se revelam adequados aos fins a que se destinam. A análise do comprometimento das
finalidades do consumo do produto é questão técnica, que não se pode resolver simplesmente pela
perspectiva do próprio consumidor. Nessa categoria de fornecimento viciado, incluem-se os
produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, corrompidos, nocivos à vida ou à saúde e
os perigosos. Aqui, a impropriedade refere-se a atributos da substancialidade do produto,
comprometedores da realização dos fins a que se destina. Nem o consumidor, nem ninguém,
conseguiria utilizá-lo proveitosamente, porque isso é impossível. Anote-se, à margem da questão,
que a venda de produto nocivo ou perigoso somente configura fornecimento viciado se, a despeito da
nocividade ou periculosidade, inocorrerem danos à saúde, integridade física ou interesse patrimonial
do consumidor. Na hipótese de se verificarem tais danos, o fornecimento se determina como
perigoso, se as informações acerca de seus riscos forem insuficientes e inadequadas ao consumo
seguro.
Por outro lado, a impropriedade extrínseca se revela em função de fatores estranhos à
substancialidade do bem cujos efeitos o legislador considerou semelhantes aos do comprometimento
da finalidade do consumo do produto. Compreende três hipóteses: o vencimento do prazo de
validade, a falsificação ou fraude da mercadoria e a inobservância de normas técnicas
regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação. Note-se que, nesses casos, o produto até
eventualmente poderia se mostrar apropriado ao consumo, mas estabelece a lei a presunção absoluta
de vício. A calça fa bricada pelo usurpador de marca, eventualmente, pode ser tão boa ou até melhor
que a fornecida pelo legítimo titular do direito industrial. Não interessam, no entanto, as qualidades
apresentadas pelos produtos, pois a falsificação da peça de vestuário, decorrente de contrafação,
caracteriza modalidade de viciamento, independentemente daquelas qualidades. O desatendimento de
norma técnica regulamentar de fabricação, distribuição ou apresentação pode, por vezes, não
implicar oferecimento ao mercado de produto imprestável. É isto, no entanto, irrelevante, já que a
desobediência referida já basta à caracterização do fornecimento viciado.
No tocante aos serviços, revela-se a impropriedade intrínseca quando se mostram inadequados
para os fins que razoavelmente deles se esperam. Exemplificativamente, a desinsetização que resulta
ineficaz. O exame da adequabilidade do serviço aos seus fins envolve, segundo entendo, apreciação
técnica e não se pode circunscrever unicamente às expectativas nutridas pelos consumidores. Já a
impropriedade extrínseca decorre do desatendimento de normas regulamentares de prestabilidade.
Claro que, por se cuidar de presunção absoluta da lei, o vício por inobservância de regulamento se
configura ainda no caso de se mostrar eficaz o serviço. Ao juiz cabe, no entanto, sopesar
adequadamente os aspectos particulares de cada caso, de modo a evitar o locupletamento indevido
do consumidor.
O vício pode ser intrínseco ou extrínseco. No primeiro caso, o produto ou serviço é materialmente imprestável às finalidades a que se destinam;
no segundo, sua prestabilidade é comprometida por fatores externos, como a falsificação da marca, vencimento do prazo de validade e outras
presunções legais.
Além da hipótese de impropriedade intrínseca ou extrínseca, a lei também considera o
fornecimento viciado quando se verifica diminuição do valor do bem ou serviço, ou, ainda,
disparidade com as indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem ou publicidade. No
que diz respeito a essa última situação — disparidade com a publicidade —, deve o intérprete levar
em conta as características culturais próprias da atividade publicitária, que busca mobilizar o
imaginário dos consumidores de modo a promover o consumo. Em decorrência disso, há
disparidades entre a realidade do produto ou serviço e a respectiva publicidade que não chegam a
tipificar o ilícito da enganosidade (CDC, art. 37, § 1º), e, consequentemente, não configuram vício de
fornecimento. Apresentar, por exemplo, em filme publicitário uma barra de chocolate flutuando no ar,
ao se ouvir sua denominação entoada melodiosamente por uma bela mulher, não dá ensejo ao
consumidor reclamar por vício decorrente de disparidade entre o veiculado no anúncio e os reais
atributos do produto. Para que a disparidade com a mensagem publicitária caracterize vício de
fornecimento é necessário que se verifique a ilicitude de publicidade enganosa (Cap. 9).
8.2. Superação da Teoria Tradicional dos Vícios
Redibitórios
A teoria tradicional dos vícios redibitórios insere-se na disciplina dos contratos comutativos e
exige, para atendimento dos interesses do contratante lesado, os seguintes requisitos: vínculo
contratual, ocultação da impropriedade, apreciação econômica e indenizabilidade apenas em caso de
má-fé. Quanto aos seus direitos, tradicionalmente se reconheceu apenas a alternativa entre a ação
redibitória e a estimatória (cf., por todos, Silva Pereira, 1963:103/109). Esse é ainda,
genericamente, o regime dos contratos civis e empresariais.
A disciplina dos vícios no CDC é diferente da teoria clássica dos vícios redibitórios, em quatro tópicos: superação do princípio da
relatividade, consideração dos vícios aparentes, irrelevância da apreciação econômica e objetividade na responsabilização.
No âmbito dos contratos comutativos sujeitos à tutela do Código de Defesa do Consumidor,
revolucionaram-se tais requisitos. Como significativa revelação da insuficiência dos princípios
jurídicos do liberalismo econômico, para a efetiva tutela dos consumidores, afastam--se, quase
completamente, os contornos da teoria clássica dos vícios redibitórios, para fundar a proteção contra
o fornecimento viciado em bases substancialmente distintas.
Assim, em primeiro lugar, não se exige em todos os casos a presença de vínculo contratual entre o
consumidor e o fornecedor reclamado. Superando o princípio da relatividade, a lei reconhece a
possibilidade de demanda por vício diretamente contra o fabricante do produto ou o fornecedor
originário do serviço. O direito de reclamação não é restrito ao fornecedor imediato, com quem se
celebra o contrato. Também o titular de produto ou serviço, presenteado por terceiro, tem ação
contra o fornecedor, embora entre eles inexista qualquer relação contratual.
Claro que o consumidor não pode, para reclamar seus direitos, dirigir-se contra qualquer
comerciante estabelecido que também transacione com o produto viciado. O superamento do
princípio da relatividade na disciplina das relações de consumo não tem essa extensão, embora
futuramente possa vir a ter. O consumidor poderá eleger para o recebimento da reclamação, entre
todos os agentes econômicos participantes do fornecimento do produto por ele titularizado, o que se
lhe apresentar mais conveniente. Depois, os empresários se acertarão, em regresso, no tocante às
responsabilidades pela viciação da mercadoria. Aliás, tendo em vista a eventualidade do exercício
do direito de regresso, o consumidor é sempre obrigado a informar ao fabricante reclamado (ou na
petição inicial de sua ação indenizatória) a identidade do comerciante de quem adquiriu o produto.
Alguma doutrina (Amaral Jr., 1992:105/106) cogita da indispensabilidade de vínculo contratual
originário na reclamação por vício, apontando nesse requisito, inclusive, uma das diferenças entre
fornecimento viciado e defeituoso. Contudo, como o referido vínculo contratual originário está
sempre presente em toda introdução de mercadorias na cadeia de circulação econômica, ele não
pode propriamente servir de fator diferencial. Rigorosamente falando, o superamento do princípio da
relatividade desponta em termos diversos, na reclamação por vícios ou por defeitos, mas de acordo
com outros fatores, não pertinentes ao chamado contrato originário. Assim, na viciação do
fornecimento, tem legitimidade para reclamar o titular do direito de propriedade do produto ou o do
direito ao recebimento do serviço, ao passo que na defeituosidade, a reclamação cabe à vítima do
acidente de consumo, ainda que não titularize a propriedade do bem ou o direito à comodidade. Nas
duas hipóteses, não se condiciona o exercício dos direitos pelo consumidor à ligação contratual
direta com o fornecedor. Desde que o empresário tenha participado da circulação econômica do
produto ou do serviço, poderá ser demandado.
Na disciplina do fornecimento viciado, apenas em duas oportunidades o legislador não superou o
princípio da relatividade contratual. Cuida-se da reclamação por vício de qualidade em produtos in
natura de produtor não identificado (CDC, art. 18, § 4º) e por vício de quantidade em produtos
decorrentes de pesagem ou medição feita por instrumento não aferido segundo padrões oficiais
(CDC, art. 19, § 2º). Nesses dois casos, o demandado será sempre o fornecedor imediato, isto é, o
comerciante de quem o consumidor adquiriu diretamente o produto.
Outro elemento da teoria clássica dos vícios redibitórios afastado pelo Código de Defesa do
Consumidor, na disciplina do fornecimento viciado, diz respeito à ocultação da impropriedade. Nos
contratos civis ou comerciais, o vício deve ser oculto para que o contratante lesado possa pleitear a
redibição ou a redução do preço. Na relação de consumo, contudo, responde o fornecedor também
por vício aparente ou de fácil constatação. É inequívoca tal amplitude da responsabilização do
fornecedor diante do disposto no art. 26, que, ao disciplinar a decadência da reclamação, menciona
expressamente vícios dessa natureza.
Também se afasta, na análise do fornecimento viciado, qualquer apreciação da extensão do
prejuízo imposto ao consumidor. Segundo a teoria tradicional dos vícios redibitórios, o contratante
não tem direito a reclamação se os danos decorrentes da viciação do objeto contratual forem de
reduzida monta. Por evidente, nas relações de consumo, essa ressalva seria um despropósito,
conquanto a grande massa dos negócios de que participa o consumidor envolve valores reduzidos.
Por fim, o último requisito da teoria tradicional não acolhida pelo Código de Defesa do
Consumidor diz respeito ao caráter objetivo da responsabilidade do fornecedor pelos danos
decorrentes do viciamento dos produtos ou serviços. Nos contratos referentes à relação de consumo,
mesmo se ficar demonstrado o desconhecimento do fornecedor quanto ao vício objeto de reclamação,
ele poderá ser responsabilizado pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor. Nos
quadrantes da teoria clássica dos vícios redibitórios, o contratante reclamado somente é responsável
pela indenização da outra parte, se ficar provada a sua má-fé.
8.3. Perdas e Danos por Fornecimento Viciado
A lei tutelar dos consumidores, é certo, não menciona especificamente a responsabilidade por
perdas e danos em todas as hipóteses de solução de fornecimento viciado, mas somente na alternativa
referente à ação redibitória (CDC, art. 18, § 1º, II, art. 19, IV e art. 20, II). A doutrina entende, no
entanto, que a omissão localizada do legislador não afasta a conclusão da plena ressarcibilidade dos
danos sofridos pelo consumidor no fornecimento viciado, em razão do previsto, como regra geral,
pelo art. 6º, VI, do Código, que define como direito básico do consumidor a efetiva reparação de
danos patrimoniais e morais (cf., por todos, Nery Jr., 1992:56/61). Trata-se do melhor entendimento
da matéria. Como menciona René Roblot, a jurisprudência francesa tem admitido, mesmo sob a égide
do código civil napoleônico, o tratamento do vendedor profissional ou fabricante, em matéria de
vícios, como contratante de má-fé. Por considerar que ele não poderia ignorar os vícios, por
presumir o seu conhecimento ou por atribuir-lhe o dever de conhecê-los, a Corte de Cassação na
França tem condenado o empresário à completa indenização dos consumidores em decorrência da
venda de produtos viciados (Ripert-Roblot, 1947, 2:587). Ora, se mesmo com fundamento em textos
legislativos oitocentistas, é possível reconhecer o dever de plena indenizabilidade dos consumidores
por fornecimento viciado, então com maior razão se deve interpretar no mesmo sentido a legislação
consumerista.
9. DIREITOS DO CONSUMIDOR NA SOLUÇÃO DOS VÍCIOS
Para fins de disciplinar os direitos do consumidor na solução dos vícios de fornecimento, o
legislador distingue três situações: vício de qualidade no produto (CDC, art. 18), vício de quantidade
no produto (CDC, arts. 18 e 19) e vício de qualidade no serviço (CDC, art. 20). Aparentemente, a lei
considera que o serviço não é suscetível de vício de quantidade, já que não tratou especificamente
dessa hipótese. No entanto, pode-se cogitar do pacote de viagem encurtado em alguns dias, da
lavanderia que deixou de lavar todas as peças que lhe foram entregues, do serviço de dedetização
que não alcançou todos os cômodos da casa para os quais foi encomendado e outros, como exemplos
de serviços quantitativamente viciados. O vício de quantidade no serviço, à falta de expressa
disposição legal correspondente, deve subsumir-se ao previsto pelo art. 20 do CDC, isto é, deve ser
considerado espécie de vício de qualidade no serviço.
As alternativas abertas ao consumidor em razão de fornecimento viciado são, sempre,
excludentes. Uma vez escolhida uma delas, torna--se irretratável a decisão do consumidor. Claro
que, valendo-se da ação executória específica e recebendo o consumidor novamente produto ou
serviço viciado, renovam-se os seus direitos e prazos, sendo-lhe assegurado tanto insistir na mesma
opção como acionar outra. A escolha pela ação estimatória deve ser suficientemente documentada
pelo fornecedor para evitar que consumidor de má-fé possa cumular a redução proporcional do
preço com outra alternativa.
Por evidente, o oferecimento ao mercado de consumo de produtos ou serviços com vícios
declarados, como a venda de mercadorias de ponta de estoque, não se submete ao mesmo regime de
coibição reservado aos fornecimentos viciados em geral. Se o consumidor é suficientemente
esclarecido de que o produto ou serviço em particular apresenta certo e identificado vício de
qualidade ou quantidade, razão pela qual o seu preço é reduzido em relação aos demais da mesma
espécie, marca ou modelo, e ele, de posse dessas informações, concorda em adquiri-lo em vistas de
vantagens econômicas que entende obter na realização do negócio, então não há que se cogitar de
aplicação dos arts. 18 a 20 do CDC. Mais uma vez, o empresário deve documentar suficientemente a
transação para frustrar qualquer abuso da parte do consumidor de má-fé.
9.1. Vício de Qualidade ou de Quantidade no Produto
Se o vício de qualidade ou de quantidade no produto importarem imprestabilidade ou
inadequabilidade do seu consumo, diminuição de valor ou ainda decorrerem de disparidade com as
indicações constantes de recipiente, embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, prevê a lei o
direito de o empresário tentar sanar o vício no prazo de trinta dias (CDC, art. 18, § 1º). O prazo de
saneamento pode ser alterado pela vontade das partes, observado o limite mínimo de sete, e o
máximo de cento e oitenta dias (CDC, art. 18, § 2º). Não se trata, aqui, do prazo de reclamação do
consumidor, que, fixado pelo art. 26, não pode ser reduzido contratualmente (CDC, art. 50, caput).
Trata-se, isto sim, do prazo a que o fornecedor, em princípio, tem direito para tentar eliminar o vício.
Na ampliação contratual do prazo de saneamento, não pode o fornecedor incorrer em prática abusiva.
A cláusula no contrato que estabelecer lapso temporal excessivamente largo para as finalidades do
saneamento do vício é nula (CDC, art. 51, IV), devendo se observar nesse caso o prazo legal de
trinta dias.
Na hipótese de vício de qualidade em produtos, o fornecedor tem direito de tentar eliminá-lo, no prazo de 30 dias. Esse prazo pode ser
contratualmente alterado, desde que se respeitem os limites legais.
Em certas situações, o saneamento do vício é impossível. Pode-se, de antemão, constatar que sua
extensão é tamanha que a substituição das partes viciadas não resolveria o problema ou poderia,
inclusive, agravá-lo com o comprometimento da qualidade ou das características do produto. Outras
vezes, embora factível tecnicamente, revela-se inoportuno o saneamento, pois poderia provocar a
diminuição do valor de troca da mercadoria. E há situações em que o produto é essencial ao
consumidor, como por exemplo a geladeira, fogão, microcomputador etc. Não terá lugar a concessão
do prazo de saneamento nessas situações, em virtude de a eliminação do vício, se realizável, revelarse não só insuficiente ao atendimento dos interesses do consumidor, como também geradora de outros
problemas, por vezes até mais graves. É a previsão do art. 18, § 3º, do CDC.
Vencido o prazo de saneamento, e não solucionado o vício no produto, abrem-se ao consumidor
três alternativas excludentes: a substituição do produto por outro sem vício (ação executória
específica), a rescisão do contrato com a devolução do produto e a restituição imediata da quantia
paga, monetariamente atualizada (ação redibitória), ou a redução proporcional do preço (ação
estimatória). Como nos contratos de consumo, o fornecedor do bem geralmente desenvolve produção
em massa, é-lhe absolutamente possível substituir o produto viciado por outro, razão pela qual a lei
pôde prescrever a ação executória específica.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 18, § 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I — a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;
II — a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III — o abatimento proporcional do preço.
Se o vício de quantidade no produto referir-se à defasagem, para menor, entre o seu conteúdo
líquido e as indicações constantes do respectivo recipiente, embalagem, rotulagem ou mensagem
publicitária, não há que se cogitar em direito do fornecedor ao prazo para tentativa de saneamento do
vício.
Note-se que o vício de quantidade vem mencionado tanto no art. 18 quanto no art. 19 do Código
de Defesa do Consumidor. São, na verdade, duas situações distintas que os elaboradores do texto não
explicitaram de forma suficiente. Incide o art. 18 do CDC, assegurando-se em princípio ao
empresário o direito ao prazo de saneamento, na hipótese de vício de quantidade que afeta a
qualidade do produto, como, por exemplo, o emprego de certa substância em quantidades inferiores à
prescrita pela receita médica, em sua manipulação pelo farmacêutico. Já o art. 19 do CDC, que não
prevê o prazo de saneamento em nenhuma circunstância, refere-se às insuficiências quantitativas no
produto que não alteram a sua qualidade, como na hipótese do pacote de um quilo de açúcar no qual
há apenas oitocentos gramas.
As alternativas abertas ao consumidor em decorrência de vício de quantidade no produto, de
acordo com o art. 19 do CDC, são as seguintes: o pronto saneamento do vício, por meio da
complementação do conteúdo líquido ou da substituição do produto (ação executória específica), a
rescisão do negócio, com a devolução do produto viciado e a restituição da importância paga
devidamente atualizada (ação redibitória) ou o abatimento proporcional do preço (ação
estimatória).
Código de Defesa do Consumidor
Art. 19. Os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de quantidade do produto sempre que, respeitadas as variações decorrentes de
sua natureza, seu conteúdo líquido for inferior às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou de mensagem publicitária,
podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I — o abatimento proporcional do preço;
II — complementação do peso ou medida;
III — a substituição do produto por outro da mesma espécie, marca ou modelo, sem os aludidos vícios.
No fornecimento qualitativa ou quantitativamente viciado de produtos, o consumidor que optar
pela ação executória específica poderá, em se mostrando impossível a substituição do bem por outro
da mesma espécie, optar por produto de tipo, modelo ou marca diferente, desde que também
oferecido ao mercado pelo empresário (CDC, arts. 18, § 4º e 19, § 1º).
9.2. Vício de Qualidade no Serviço
No viciamento de serviços, a lei oferece ao consumidor as seguintes alternativas excludentes: a
reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível (ação executória específica), a
rescisão do contrato com a restituição da quantia paga devidamente atualizada (ação redibitória) ou
a redução proporcional do preço (ação estimatória).
Código de Defesa do Consumidor
Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim
como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir,
alternativamente e à sua escolha:
I — a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;
II — a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III — o abatimento proporcional do preço.
O legislador, ao tratar os direitos dos consumidores de serviços de forma impropriamente
paralela aos dos consumidores de produtos, elaborou sistemática capaz de gerar sérias injustiças.
Com efeito, as alternativas não podem depender todas exclusivamente da vontade do consumidor, tal
como sugerido no caput do art. 20. É certo que, já no inciso I, se revela a condição de pertinência
para a realização da ação executória específica. Isto é, como o serviço, via de regra, comporta
saneamento sem necessidade de reexecução, esta apenas quando cabível poderá ser exigida pelo
consumidor. Ora, a indispensabilidade da reexecução do serviço ou a adoção de outros meios de
saneamento de vício é questão técnica, e não decisão tomada unilateralmente pelo consumidor.
No tocante, entretanto, à alternativa redibitória, não há expressamente no texto legal a previsão da
condição de pertinência, e isso poderá significar, em casos concretos, locupletamento indevido do
consumidor. Imagine-se a pintura de uma casa que, embora não tenha sido realizada estritamente de
acordo com os elevados padrões de qualidade do consumidor, apresenta-se aceitável sob o ponto de
vista técnico e mesmo para a generalidade das pessoas. Impor-se, aqui, a restituição do dinheiro
pago, sem que seja factível ao fornecedor reaver minimamente o conteúdo econômico da sua
prestação, é altamente injusto. Por essa razão, cabe ao juiz, ponderando os aspectos próprios do fato
submetido a julgamento, coibir os abusos e negar ao consumidor a ação redibitória, reconhecendolhe somente a estimatória. Afinal, serviço não é produto, que mesmo viciado sempre se pode restituir
ao empresário na rescisão do negócio.
9.3. Decadência do Direito de Reclamação por Vício
O direito de reclamação por vícios no fornecimento deve ser exercido dentro do prazo
decadencial estipulado no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor. Quer dizer, no prazo de trinta
dias para o fornecimento não durável e de noventa para o durável. Não é fácil precisar o critério de
distinção entre essas duas espécies de fornecimento, cabendo apelar-se a referências intuitivas
acerca do tempo de aproveitamento do bem ou comodidade pelo consumidor. Assim, alimentos e
bebidas são produtos não duráveis, ao passo que eletrodomésticos e livros são duráveis; lavagem de
automóveis e estacionamento são serviços não duráveis, enquanto pintura e consertos mecânicos são
duráveis. Em situações limite, sendo duvidosa a natureza do fornecimento, deve-se reputá-lo durável,
como meio de assegurar amplamente a tutela dos consumidores.
Em se tratando de vício aparente ou de fácil constatação, o prazo começa a fluir da entrega efetiva
do produto ou do término da execução dos serviços, e sendo o vício oculto inicia-se a fluência da sua
manifestação (CDC, art. 26, §§ 1º e 3º). O vício é aparente quando a desconformidade é óbvia,
ostensiva, manifesta, perceptível sem a mínima dificuldade por qualquer pessoa, antes mesmo da
utilização do produto ou serviço; é de fácil constatação, ao se revelar a desconformidade na primeira
tentativa de utilização do produto ou serviço; e é oculto nas demais hipóteses. Note-se que o vício
aparente não se torna oculto em razão da demora do consumidor em constatá-lo. Se o
eletrodoméstico permanece meses encaixotado, e sua primeira utilização e a consequente percepção
da desconformidade ocorre depois de já exaurido o prazo decadencial para a reclamação, o
consumidor não poderá alegar ocultação do vício (cf. Nunes, 1991:37).
Os prazos para o consumidor reclamar seus direitos, na hipótese de fornecimento viciado, é de 30 dias, para produtos ou serviços não duráveis,
e 90 para os duráveis.
O termo inicial para a fluência do prazo varia segundo a natureza do vício. Se é aparente ou de fácil constatação, conta-se da entrega do
produto ou serviço; se oculto, da manifestação do problema.
Estabelece a lei dois fatores obstantes da fluência do prazo decadencial (CDC, art. 26, § 2º).
Trata-se, rigorosamente falando, de hipóteses de suspensão da decadência (Denari, 1991:121/122),
mais uma inovação na teoria do direito trazida pela legislação consumerista (para o direito civil,
com efeito, os prazos de decadência não se interrompem nem se suspendem — Coelho,
2003:374/380). A comprovada reclamação do consumidor e a instauração de inquérito civil pelo
Ministério Público sustam a fluência do prazo legal para o consumidor exercer seus direitos
relativamente ao vício do fornecimento. O prazo volta a correr a partir da resposta do fornecedor,
transmitida de forma inequívoca, ou do encerramento do inquérito civil. Por evidente, tratando-se de
suspensão, deve-se considerar no cômputo do prazo o tempo decorrido anteriormente à
superveniência do fator obstante.
Questão não inteiramente definida pelo texto legal indaga se, para o consumidor evitar o
perecimento de seu direito, basta a simples reclamação junto ao fornecedor ou ao Ministério Público
dentro do prazo do art. 26, ou se também é necessário o aforamento da ação judicial antes da
conclusão desse mesmo prazo. Para Antonio Benjamin, a decadência diz respeito apenas à
reclamação do consumidor, podendo ser promovida a ação judicial mesmo depois de vencido o
termo do art. 26 do CDC, desde que, por certo, tenha se verificado no momento oportuno aquele
reclamo (1991b:131).
Para Cláudia Lima Marques, no entanto, se a lei define como causa obstante da fluência do prazo a
própria formulação de reclamação junto ao fornecedor, então a decadência só pode dizer respeito ao
direito de reclamar em juízo. Se o art. 26 fosse pertinente apenas à reclamação extrajudicial, a sua
formulação não poderia ser definida como causa suspensiva, já que representa o próprio exercício
do direito (1992:204). No mesmo sentido de tomar o prazo de decadência do Código de Defesa do
Consumidor como abrangente do exercício judicial do direito de reclamar a solução dos vícios,
encontra-se a lição de Thereza Alvim. Acentua ela, inclusive, que o despacho do juiz determinando a
citação é o fator impeditivo da consumação da decadência, desde que realizada esta nos termos dos
arts. 219 e 220 do Código de Processo Civil (1991:69/72). Trata-se, a meu ver, da resposta mais
ajustada à indagação. O consumidor deve, portanto, promover o ajuizamento da competente ação,
antes do fim do prazo de trinta ou noventa dias previsto na lei, sob pena de decadência do direito.
10. RELAÇÕES INTEREMPRESARIAIS E QUALIDADE DO
FORNECIMENTO
Muitos dos aspectos das relações dos fornecedores entre si são relevantes para a adequada
interpretação do regramento introduzido pelo Código de Defesa do Consumidor na disciplina privada
da economia. Destacam-se, em primeiro lugar, o exercício do direito de regresso do empresário
condenado a ressarcir o consumidor contra o culpado pelo acidente de consumo ou pela viciação do
fornecimento; em seguida, a responsabilidade do sucessor, do licenciador e do franqueador pelo
fornecimento realizado pelo antecessor, licenciado ou franqueado; e, por último, a responsabilidade
das sociedades controladas, consorciadas, coligadas e integrantes de grupo.
10.1. Direito de Regresso
Como examinado anteriormente, o superamento do princípio da relatividade possibilita ao
consumidor demandar, por acidente de consumo ou por fornecimento viciado, qualquer um dos
agentes econômicos que participam da produção ou circulação do produto ou serviço sem qualidade.
É certo que se preocupou o legislador em ressalvar determinadas situações, em que o superamento
do princípio da relatividade poderia se apresentar inoperante ou injusto. Assim, o comerciante
responde por acidentes de consumo, se não for facilmente identificável o fabricante, construtor,
produtor ou importador, ou, ainda, se negligenciar na conservação de produtos perecíveis (CDC, art.
13); e o fornecedor imediato responde por vícios em produtos in natura sem clara identificação do
produtor (CDC, art. 18, § 5º) ou por vícios de quantidade em produtos originados de pesagem ou
medição, feita com o uso de instrumento não aferido segundo padrões oficiais (CDC, art. 19, § 2º).
Excetuadas, contudo, tais hipóteses em particular, ao consumidor se abre a oportunidade de escolher,
entre os fornecedores imediatos e mediatos, reais, presumidos ou aparentes, qual deles deverá ser
demandado.
Claro que, uma vez decidido quem o consumidor prefere demandar, somente em caso de falência
ou insolvência do demandado poderá este voltar-se contra outro fornecedor alegando idêntico
fundamento. Se for julgada improcedente a postulação judicial do consumidor, por caracterizada a
inexistência de fornecimento perigoso, defeituoso ou viciado, não poderá ser pleiteada igual tutela
contra outro empresário da cadeia econômica. Revela-se, inclusive, de todo conveniente, que os
empresários intercambiem informações, sempre que forem acionados por acidente de consumo, de
modo a evitar, por exemplo, que consumidor de má-fé acione concomitantemente, e pelo mesmo
fundamento, mais de um fornecedor.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 13, parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis,
segundo sua participação na causação do evento danoso.
O direito de regresso é expressamente previsto pela lei tutelar dos consumidores, no parágrafo
único do art. 13, que, a despeito de sua localização na seção destinada aos fatos do produto ou
serviço, aplica--se à generalidade das relações interempresariais. Mas, ao contrário da legislação
consumerista portuguesa, que disciplina especificamente a distribuição dos encargos entre os agentes
econômicos do fornecimento perigoso, defeituoso ou viciado, o nosso direito se limita a assegurar o
regresso na disciplina das relações interempresariais, nada definindo quanto ao seu regime.
Conclui-se, então, que o regime jurídico próprio do exercício do direito de regresso é o civil,
para as questões gerais, e o comercial, para as específicas. Isto significa, por exemplo, que o
fornecedor tem perante o consumidor responsabilidade objetiva, mas somente poderá demandar, em
regresso, outro fornecedor, com fundamento na verificação da culpa. Significa, outrossim, que não
poderá pleitear a inversão de ônus probatório ou o superamento do princípio da relatividade
contratual. Também significa que os empresários podem livremente contratar a distribuição, entre
eles, dos encargos decorrentes da responsabilidade por fornecimento, inexistindo quaisquer limites à
autonomia da vontade nesse âmbito.
Em algumas oportunidades, poderá se revelar injusto, tanto quanto era em relação ao consumidor,
impor-se ao comerciante titular do direito de regresso a prova da ocorrência de vício, ou defeito de
concepção ou de execução no fornecimento. Contudo, o Código de Defesa do Consumidor não pode
ser aplicado além da relação de consumo, salvo nas hipóteses expressamente ressalvadas. Em vista
disso, é altamente oportuno aos empresários, insertos em determinada cadeia de circulação
econômica, celebrarem, com os demais fornecedores, contrato de repartição das responsabilidades
decorrentes da legislação consumerista.
10.2. Responsabilidade do Sucessor
Em relação ao sucessor, impõe-se o exame da extensão de sua responsabilidade pelo passivo
consumerista do antecessor. Note-se que, tecnicamente considerando, apenas é correto chamar de
sucessor ao adquirente de estabelecimento empresarial que, de modo expresso, se sub-roga nas
obrigações do alienante. Sucessão, em termos próprios, não se verifica sempre nesse tipo de contrato
interempresarial (trespasse) nem em todas as operações de assunção de atividade econômica. Há
contratos de transferência de empresa, tais a cessão total de cotas da sociedade limitada ou a
alienação de controle da sociedade anônima, que, embora guardem semelhanças econômicas e
administrativas com a alienação do estabelecimento empresarial, não importam sucessão
empresarial. Note-se que a alienação de participação societária não altera, em nenhuma
circunstância, as responsabilidades da pessoa jurídica. Os seus credores anteriores àquele contrato,
inclusive os consumidores, permanecem rigorosamente titulares dos mesmos direitos.
Na alienação do estabelecimento empresarial, contudo, os consumidores que titularizam crédito
perante o alienante por obrigação decorrente de má qualidade do fornecimento, não estão
adequadamente tutelados pelo Código de Defesa do Consumidor. Com a venda do estabelecimento,
não se transfere necessariamente ao adquirente o passivo do alienante. No direito brasileiro, como
no alemão e no italiano (Cap. 5, item 6.1), o adquirente de estabelecimento empresarial é, em regra,
presumido sucessor do alienante, continue ou não a exploração de idêntica atividade econômica no
local, desde que a obrigação esteja regularmente contabilizada. É certo que, desejando o novo titular
do estabelecimento dar prosseguimento à mesma empresa ali organizada, a cautela recomenda que
ele assuma a obrigação de solver o passivo consumerista do alienante, compensando-se, no preço da
venda, o valor deste. Assim procedendo, tende a manter sua clientela. Mas não tendo havido
expressamente a sub-rogação do passivo consumerista, o adquirente não responderá, em regra, pelas
obrigações do alienante, e, por via de consequência, os consumidores poderão ter dificuldades em
realizar os seus créditos.
O Código Tributário Nacional atribui à pessoa física ou jurídica de direito privado que adquirir
estabelecimento empresarial, e continuar a sua exploração, a responsabilidade pelo passivo fiscal do
anterior titular. Trata-se de responsabilidade subsidiária, se o alienante continuar o exercício de
atividade econômica, ou integral, na hipótese de ele não continuar (CTN, art. 133). Na Consolidação
das Leis do Trabalho, o legislador resguardou os créditos trabalhistas das mudanças na propriedade
da empresa (CLT, art. 448). O Código de Defesa do Consumidor, a exemplo desses outros diplomas,
poderia ter excepcionado o passivo consumerista da disciplina geral das obrigações, pela qual o
adquirente do estabelecimento empresarial não se sub-roga nas dívidas contraídas pelo alienante não
contabilizadas. Não o fazendo, deixou eventualmente ao desabrigo as vítimas de acidentes de
consumo e os prejudicados por fornecimento viciado, já que se o alienante do estabelecimento não
voltar a se restabelecer, hipótese aliás comum, os consumidores seus credores terão consideráveis
dificuldades para executá-lo, e não poderão demandar o adquirente.
Embora o adquirente do estabelecimento empresarial seja, por lei, responsável pelo passivo trabalhista e tributário do alienante, ele não
responde pelo passivo consumerista, porque o CDC é omisso na matéria.
Somente se o adquirente do estabelecimento empresarial, por disposição expressa do instrumento
de trespasse, se sub-rogar em todas as obrigações contraídas pelo alienante, na exploração de
atividade econômica naquele local, ele é considerado sucessor e responde pelas indenizações
devidas por seu antecessor, em virtude de direito titularizado por consumidores.
10.3. Responsabilidade do Licenciador de Direito
Industrial
Introduzindo a questão relativa às responsabilidades do licenciador de direito industrial pela
qualidade do fornecimento prestado pelo licenciado, deve-se recuperar a classificação básica da
propriedade industrial que distingue entre patente e registro (Cap. 6). Aquela pertinente à
exclusividade na exploração econômica de invenção e modelo de utilidade, e este referente aos
desenhos industriais e às marcas.
O licenciador, tanto de patente como de registro industrial, não se subsume necessariamente ao
conceito legal de fornecedor. O titular de patente de invenção, por exemplo, ao licenciar um
fabricante, não participa do processo produtivo, estritamente falando. O simples aproveitamento de
sua criação intelectual na produção de mercadorias não caracteriza o exercício de atividade de
fornecimento de bens ao mercado de consumo. Tanto assim, que exaurido o prazo de duração do
direito industrial, o aproveitamento das ideias do inventor poderá ser feito por qualquer fabricante,
sem a necessidade de licença ou pagamento de royalties. Como se percebe, o titular de direito
industrial não é fornecedor, na hipótese de licença de exploração de patente ou registro por terceiros;
somente o será se ele, além de ter licenciado seu direito, também o explora economicamente para
fornecimento ao mercado de consumo.
A licença de uso de direito industrial é contrato em que o titular ou depositante de patente ou
registro (licenciador) autoriza a sua exploração econômica pelo outro contratante (licenciado).
Trata-se de vínculo obrigacional sujeito à disciplina geral da locação de coisa e às disposições
específicas da Lei de Propriedade Industrial (arts. 61 a 74, 139 e 140).
Se o licenciador de direito industrial também se puder caracterizar como fornecedor, nos termos
do art. 3º do CDC, ele terá responsabilidade pelos produtos ou serviços que diretamente oferecer ao
mercado e, também, pelos oferecidos por seu licenciado ou licenciados. Ou seja, se o licenciador da
patente ou da marca, além de autorizar o licenciado a se utilizar de seus direitos industriais, também
os explora diretamente, para fins de fornecimento de produtos ou serviços ao mercado consumidor,
então ele poderá ser responsabilizado perante os consumidores do licenciado. Isto porque do
consumidor não se pode exigir que conheça os exatos contornos da relação jurídica existente entre os
empresários. Se adquiriu mercadoria, de invenção patenteada por um fornecedor, e ela apresentou
periculosidade, defeito ou vício, então o consumidor poderá demandar o titular da patente, ainda que
aquele produto, especificamente, tenha sido fabricado por um licenciado. O mesmo se diga da
licença de marca. O consumidor poderá demandar o titular do registro, se ele também explora
diretamente o seu direito industrial , mesmo que tenha entabulado negociações com um empresário
licenciado.
O titular de direito industrial, de patente ou registro, somente se exonera de responsabilidade
perante consumidores de seus licenciados, se demonstrar que ele não é, sob o ponto de vista jurídico,
fornecedor. Ou seja, se provar que é apenas inventor, designer ou criador de marcas.
10.4. Responsabilidade do “Merchandisor”
Em regra, o licenciador de uso de marca, que também a explora diretamente, pode ser
responsabilizado pelo fornecimento prestado por um licenciado seu. Há, no entanto, um tipo
específico de licença, em que o licenciador não tem qualquer responsabilidade pelo fornecimento de
produtos ou serviços com sua marca. Trata-se do merchandising, contrato em que o licenciado usa
as marcas registradas ou depositadas do licenciador em produtos ostensivamente diversos dos
fornecidos por esse último.
Por exemplo, o fabricante de roupas, ao estampar o logotipo de famoso refrigerante em suas
camisetas, solicita previamente a autorização ao titular da marca. A licença, no caso, é
merchandising porque o licenciado comercializa produtos (roupas) suficientemente diferenciados
dos fabricados pelo licenciador (bebida), e não existe a possibilidade de o consumidor médio
imaginar que esse último exerça ou tenha condições de exercer qualquer controle de qualidade sobre
mercadorias estranhas ao seu ramo de atividade. Nessa particular forma de licença de uso de marca,
o licenciador (merchandisor) não responde pelos perigos, defeitos ou vícios no fornecimento
praticado pelo licenciado (merchandisee). Igual entendimento é adotado por Atti, para quem cabe
aos consumidores o mínimo dever de individualização da fonte produtora (1989:73/75).
10.5. Responsabilidade do Franqueador
Pela franquia, o empresário (franqueador) licencia o uso de sua marca ao outro contratante
(franqueado) e presta-lhe serviços de organização empresarial, com ou sem venda de produtos. O
objeto principal do contrato é, de um lado, a autorização do uso dos sinais distintivos e, de outro, a
prestação dos serviços de estruturação de empresa pelo franqueador, experiente na exploração do
negócio, ao franqueado. A venda de produtos não é essencial à franquia, embora em muitos casos se
verifique (Cap. 5).
Pelo fornecimento do franqueado aos consumidores responde o franqueador, em razão da outorga
da licença de uso de marca. Porém, como a simples prestação de serviços de organização
empresarial (engineering, marketing ou management), desacompanhada da licença, não caracteriza
a franquia, o prestador de tais serviços não responde pelo fornecimento aos consumidores, prestado
pelo adquirente dos mesmos serviços.
10.6. Sociedades Controladas, Consorciadas, Coligadas e
Integrantes de Grupo
Por fim, no tocante às relações interempresariais, importa examinar-se o disposto nos §§ 2º, 3º e
4º do art. 28 do CDC, referente à responsabilidade das sociedades controladas, consorciadas,
coligadas e integrantes de grupo. A inserção dessa matéria nos desdobramentos do dispositivo
referente à desconsideração da personalidade jurídica é de todo inoportuna, tendo em vista a
significativa distância entre os assuntos.
As sociedades que pertencem ao mesmo grupo têm responsabilidade subsidiária perante os consumidores umas das outras; a controlada
também, perante o consumidor da controladora.
As consorciadas respondem solidariamente e as coligadas apenas se demonstrada a culpa.
Nos termos do art. 28, § 2º, do CDC, as sociedades integrantes de grupos societários e as
controladas têm responsabilidade subsidiária. Grupo de sociedades, segundo o art. 265 da LSA, é a
reunião de socie-dades sob o controle de uma brasileira, mediante convenção pela qual se obrigam a
combinar recursos ou esforços tendo em vista a realização de seus objetos sociais ou a participação
em empreendimentos desenvolvidos conjuntamente. Não basta, à caracterização de grupo societário,
a simples existência de sociedades sujeitas ao mesmo controle. Ainda que desenvolvam atividades
comuns ou combinem recursos, é imprescindível a formalização do grupo por meio da aprovação,
registro e publicação da convenção (LSA, arts. 269 a 271). Assim, ao definir como subsidiária a
responsabilidade de sociedades integrantes de grupo, o Código de Defesa do Consumidor deve ser
interpretado sistematicamente, no sentido de não se aplicar o dispositivo em tela às meras reuniões
de fato. Apenas a sociedade pertencente a grupo formalizado possui responsabilidade subsidiária
pelas obrigações das demais integrantes em matéria de defesa do consumidor.
Em relação às controladas, prevê o art. 28, § 2º, do CDC também a subsidiariedade, que deve ser
entendida como pertinente às obrigações da sociedade controladora. Curiosamente, o legislador não
atribuiu às controladoras a responsabilidade subsidiária pelas obrigações das controladas, mas
somente o inverso. Desse modo, afastadas as hipóteses de grupo societário ou de aplicação da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, a controladora não pode ser responsabilizada pelo
passivo consumerista da controlada.
Importa esclarecer que a responsabilidade subsidiária pressupõe o exaurimento do patrimônio da
principal devedora. Como não se trata de solidariedade, as sociedades integrantes de grupo e as
controladas somente podem ser executadas após a falência da obrigada perante o consumidor. Mais:
é necessário que a fase de liquidação do processo falimentar esteja encerrada e o crédito do
consumidor não tenha sido integralmente satisfeito. Sem tais condições, não é possível promover a
responsabilização das sociedades integrantes de grupo ou controladas. Esta é a diferença essencial
entre a subsidiariedade e a solidariedade.
Em relação às consorciadas, estabelece o Código de Defesa do Consumidor a responsabilidade
solidária. A regra geral (LSA, art. 278, § 1º) prescreve que, nos consórcios, esta não se presume.
Quando, contudo, a obrigação de uma das consorciadas decorrer de relação de consumo, a outra
responderá solidariamente. Acentue-se que a solidariedade limita-se às obrigações relativas ao
objeto do consórcio. Quanto às demais, vigora a regra geral negativa do vínculo solidário. Os atos e
contratos de sociedade em consórcio estranhos ao objeto deste não obrigam solidariamente a
consorciada, mesmo se decorrentes de relação de consumo. O § 3º do art. 28 do CDC comporta
interpretação restritiva, por representar exceção ao princípio geral da não presunção da
solidariedade.
Finalmente, a lei tutelar dos consumidores estipula que as sociedades coligadas respondem apenas
por culpa. São dessa natureza as sociedades em que uma participa com dez por cento ou mais do
capital social da outra, sem a controlar contudo (LSA, art. 243, § 1º). A rigor, não seria necessário
dispor nesse sentido, já que a natureza geral da responsabilidade civil tem a culpa como elemento
essencial. Bastaria ao Código de Defesa do Consumidor silenciar a respeito das sociedades
coligadas para que a responsabilidade delas não existisse senão na hipótese genericamente prevista
pelo art. 927 do Código Civil. Contudo, o legislador parece ter considerado importante a previsão
expressa das condições de responsabilização das coligadas como forma de impedir qualquer
aplicação analógica do prescrito em relação às controladas.
Capítulo 9
A ATIVIDADE EMPRESARIAL E A
PUBLICIDADE
1. A PUBLICIDADE E A TUTELA DO CONSUMIDOR
Segundo uma interpretação romântica da evolução humana, a publicidade e seu extraordinário
potencial de influência na conduta das pessoas teria sido descoberta já pelo homem pré-histórico ao
observar certos aspectos da natureza. Assim, o parente próximo do Pithecanthropus erectus teria
intuído os benefícios da publicidade ao perceber o murmúrio do regato anunciando a existência de
água fresca, o rugido da fêmea no cio chamando a atenção do macho, o canto dos pássaros atraindo
as suas companheiras e os frutos mais intensamente coloridos despertando a voracidade das aves,
como as flores a dos insetos, e propiciando assim que suas sementes se espalhassem para outras
paisagens. Inspirado nas lições da natureza, o homem, desde então, teria feito da publicidade a arma
suprema de competição com os seus semelhantes. Essa é a concepção de Kerner, para quem a
publicidade é instrumento que, eficientemente manuseado, pode erguer os medíocres acima dos que,
embora superiores, deixam de utilizá-la (apud Giacomini Filho, 1991:11).
Essa ideia excessivamente larga de publicidade, que a identifica por todas as partes, não
apresenta qualquer operacionalidade conceitual. Importa, pois, depurá-la para restringir o conceito à
ação humana. Mais especificamente à ação econômica destinada a convencer consumidores a
adquirirem os produtos ou serviços objeto de promoção. Os meios usados na transmissão da
mensagem variam enormemente, compreendendo desde simples panfletos e pequenos anúncios
impressos em jornais, até cartazes externos (outdoor), links patrocinados em ferramentas de busca na
internet e inserções em rádio e TV.
No conceito de publicidade não se enquadram todas as mensagens persuasivas veiculadas pelos
meios de comunicação em massa. Há também aquelas sem conteúdo mercantil, destinadas a público
que não pode juridicamente ser considerado consumidor, tais como as de mensagem política, oferta
de emprego, campanhas públicas de vacinação ou esclarecimento sobre doenças e outras para as
quais se deve reservar o conceito de propaganda. No direito brasileiro, ao contrário do que se
verifica em outros ordenamentos, não era comum distinguirem-se esses dois conceitos. Publicidade e
propaganda muitas vezes foram tidas por expressões sinônimas, como se pode verificar na leitura da
Lei n. 4.680/65, diploma básico de regulamentação da atividade publicitária, que usa indistintamente
ambas as acepções.
A distinção entre publicidade e propaganda foi, em certa medida, adotada pelo Código de Defesa
do Consumidor. Certo é que ao se referir à sanção administrativa cabível contra a publicidade
enganosa ou abusiva, optou o legislador pela expressão contrapropaganda. Mas, salvo nessa
passagem, valeu-se em geral do conceito próprio de publicidade, isto é, a veiculação de mensagens
com o objetivo de motivar pessoas ao consumo.
Publicidade é a ação econômica que visa a motivar o consumo de produtos ou serviços, por meio da veiculação de mensagens persuasivas por
diversas mídias. Não se confunde com a propaganda, cujos objetivos não são mercantis.
A disciplina jurídica da publicidade não se esgota na questão de tutela do consumidor. Há outros
aspectos da atividade publicitária que reclamam regramento jurídico, como os pertinentes às
relações entre a agência, o veículo e o anunciante, a ética profissional, a relação quantitativa entre
publicidade e programação no rádio e TV etc. A disciplina dos deveres do anunciante para com os
destinatários da mensagem publicitária se revela, não obstante a sua significativa importância,
apenas um dos muitos assuntos a serem tratados pelo direito, no tocante à publicidade.
No Brasil, os efeitos da atividade publicitária relativamente ao seu público é matéria abrangida
unicamente pelo Código de Defesa do Consumidor. É esta também a alternativa seguida pelo Code
de la Consommation, em França. A sucinta análise do panorama de direito comparado, no entanto,
possibilita constatar que essa vinculação do assunto à legislação consumerista não corresponde à
opção de legisladores de outros países. Na Itália, por exemplo, há normas sobre o tema na disciplina
geral da difusão radiotelevisiva, em diploma que contempla desde critérios urbanísticos e
administrativos para a outorga de concessão de serviço de transmissão por rádio e televisão, até a
prescrição do pluralismo e imparcialidade como princípios fundamentais do sistema (a “legge
Mammì”). Por evidente, essa opção do legislador italiano, embora abrangente e normatizadora de
diferentes aspectos da comunicação em massa, para o consumerismo se revela insuficiente, pois
importa em deixar ao desabrigo o consumidor exposto a publicidade veiculada em cartazes externos,
jornais, periódicos, embalagens, rotulagens e outros meios não operados pela transmissão
radiotelevisiva. Nos Estados Unidos, por sua vez, grande parte dos problemas relacionados à
publicidade em meios de comunicação em massa — seja a de natureza comercial, seja de qualquer
outro tipo — são resolvidos, no âmbito da common law, a partir da discussão dos limites da
Primeira Emenda à Constituição, que garante a liberdade de expressão (Zuckman-Gaynes-CarterDee, 1983:331/343).
Na Espanha, optou-se em 1988 por uma lei geral sobre publicidade, que, além de disciplinar o
contrato entre anunciante e as agências de propaganda, define e sanciona as publicidades ilícitas
(abusiva, enganosa, desleal, subliminar e irregular). Também em Portugal, vigora, desde 1980, o
Código da Publicidade (o atual é de 1990), em que se regulamenta amplamente a atividade
publicitária, excluindo apenas a propaganda política. Nele, encontram-se também normas pertinentes
aos deveres dos anunciantes para com os consumidores. Trata-se, talvez, da alternativa legislativa
mais adequada, por possibilitar o tratamento sistemático do assunto, e consequentemente liberar
tutela não só ao consumidor, mas a todos os destinatários de mensagem publicitária.
No direito brasileiro, em que a responsabilidade dos anunciantes pelo conteúdo da publicidade é
matéria inscrita unicamente na lei de proteção dos consumidores, somente os seus espectadores que
se possam determinar, juridicamente, como insertos em relação de consumo são, em princípio,
protegidos. O postulante a emprego não pode invocar o Código de Defesa do Consumidor contra o
empresário que anuncia em jornal a existência de vagas em sua empresa, porque entre eles se
estabelece relação jurídica de direito do trabalho. O cidadão também não pode, baseando-se naquele
mesmo código, dirigir-se contra o administrador público que propagandeia suas obras, já que a
relação jurídica que os aproxima é de direito público. Entre o postulante a emprego e o empregador,
e entre o cidadão e o seu representante político, não se estabelece relação de consumo, não
incidindo, por isso, nesses casos o Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor se aplica apenas às relações jurídicas entre o destinatário
final de bens ou serviços e os exercentes de atividade de fornecimento ao mercado de consumo
(CDC, arts. 2º e 3º), cuidando das demais relações o regime jurídico próprio do direito trabalhista,
administrativo, civil ou comercial.
Relação de consumo é aquela que envolve, de um lado, uma pessoa que se pode considerar “consumidor” (nos termos do conceito legal do art.
2º do CDC) e, de outro, uma que se considera “fornecedor” (segundo o definido pelo art. 3º do CDC).
As normas sobre publicidade enganosa ou abusiva do CDC somente se aplicam se o destinatário da mensagem é (ou pode vir a ser)
consumidor, e o anunciante é fornecedor.
Também não se submete às normas sobre publicidade do CDC aquele que, sem exercer qualquer
atividade econômica de fornecimento de bens ou serviços ao mercado, anuncia a venda ou locação
de bens de seu patrimônio. Se eu anunciar, em classificados de jornal, meu carro para venda, a
mensagem não estará sujeita ao CDC, porque não me enquadro no conceito legal de fornecedor, já
que não desenvolvo atividade econômica de comercialização de veículos usados. De fato, inexiste
relação de consumo na hipótese porque, embora o espectador da mensagem seja provavelmente o
destinatário final do objeto do contrato, o anunciante não se enquadra no conceito de fornecedor do
art. 3º do CDC. Trata-se, em suma, aqui de contrato disciplinado pelo direito civil, e portanto
excluído do âmbito de incidência da norma tutelar dos consumidores.
Por último, sequer toda a publicidade comercial é abrangida pelas normas do Código de Defesa
do Consumidor. Há peças publicitárias dirigidas especificamente aos empresários, as quais nem
sempre se subordinam à disciplina da lei tutelar do consumo, exatamente porque se inserem em
relação interempresarial, de direito comercial, e, portanto, igualmente estranha ao âmbito de
incidência do CDC. São dessa natureza a publicidade referente ao próprio meio de comunicação
(outdoor acerca das vantagens de se anunciar em outdoor, comercial de rádio propagando a
eficiência da publicidade radiofônica etc.), a promovida pelas agências de propaganda e as
pertinentes a bens de produção.
É certo, por um lado, que o art. 29 do CDC equipara ao consumidor as pessoas, determináveis ou
não, expostas à publicidade. Essa equiparação, no entanto, não alcança o pretendente ao emprego, o
cidadão ou o empresário expostos respectivamente à propaganda do empregador e do administrador
público, ou à publicidade de insumos. O universo das pessoas albergadas por aquele dispositivo
restringe-se aos consumidores em potencial. Com efeito, o consumidor é sempre pessoa
determinável, posto que, de acordo com o conceito do art. 2º do CDC, ele adquire ou utiliza produto
ou serviço como destinatário final. Participante, pois, de um negócio, o consumidor sempre se pode
identificar a partir do vínculo contratual firmado com o fornecedor. Ele é o comprador na compra e
venda de mercadorias, o adquirente dos serviços, o locatário de bens, o mutuário, o segurado etc. A
equiparação procedida pelo art. 29 do CDC — dispositivo resultante de negociações parlamentares
(cf. Benjamin, 1991:147) — refere-se àqueles que não são partes em contrato de consumo, mas que
podem vir a ser. O legislador os submeteu à idêntica tutela reconhecida aos consumidores, no tocante
às práticas comerciais e contratuais, por considerar que a proteção não estaria completa nesses
campos se a restringisse apenas ao momento posterior à celebração do contrato. Ora, o empregado
envolvido por anúncio de oferta de emprego e o cidadão destinatário da propaganda política não
estão, na hipótese, expostos a práticas comerciais, não são potencialmente consumidores.
Consequentemente, não se encontram sob a guarda das normas previstas no Código de Defesa do
Consumidor acerca da publicidade.
O art. 29 do CDC estabelece que as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais são equiparadas aos consumidores. Com
esta definição, estende-se a tutela do Código aos consumidores em potencial.
Considere-se, no entanto, a eventual aplicação analógica das normas constantes do Código de
Defesa do Consumidor, na solução de pendências envolvendo propaganda de empregador ou de
administrador público, o anúncio do vendedor ou locador civil ou a publicidade comercial de
insumos. À vista da inexistência de disciplina específica do direito do trabalho, do direito público,
do direito civil e comercial, no tocante às responsabilidades do anunciante em relação aos
destinatários do anúncio, pode-se cogitar, se presentes os seus pressupostos, de integração dessas
lacunas legislativas, mediante o emprego da analogia. Por evidente, a aplicação analógica das
normas sobre publicidade, fixadas pela lei tutelar dos consumidores, para além da relação de
consumo, somente se pode verificar no campo da responsabilidade civil e nunca no da
responsabilidade penal ou administrativa. Não caracteriza crime a simples veiculação de
publicidade, ou propaganda, com potencial de enganosidade ou abusividade fora da relação jurídica
de consumo. E, na mesma medida, o Poder Público não pode impor a pena de contrapropaganda aos
anunciantes cujo anúncio dirige-se a pretendentes a emprego, cidadãos, adquirentes de insumos ou
quaisquer outras pessoas que não possam ser conceituadas como consumidores (ou potencialmente
consumidores), isto é, como destinatários finais de bens ou serviços adquiridos de fornecedor.
2. A AUTORREGULAÇÃO PUBLICITÁRIA
A autorregulação publicitária é, no Brasil, a mais interessante experiência de disciplina de
atividade econômica por iniciativa dos próprios agentes nela envolvidos. O seu documento
normativo fundamental é o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária — CBAP, cuja
primeira versão foi aprovada no III Congresso Brasileiro de Propaganda em 1978. De sua aplicação
se encarrega o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária — CONAR, associação civil
constituída em 1980 especificamente para essa finalidade pela Associação Brasileira de Agências de
Propaganda — ABAP, a Associação Brasileira de Anunciantes — ABA, a Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e Televisão — ABERT, a Associação Nacional de Jornais — ANJ, a
Associação Nacional de Editores de Revistas — ANER e a Central de Outdoor.
2.1. Âmbito de Abrangência do Sistema de Autorregulação
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária divide--se em cinco capítulos
(introdução; princípios gerais; categorias especiais de anúncios; responsabilidades; infrações e
penalidades) e possui vinte anexos, pertinentes a determinadas situações específicas (bebidas
alcoólicas; educação, cursos, ensino; empregos e oportunidades; imóveis: venda e aluguel;
investimentos, empréstimos e mercado de capitais; lojas e varejo; médicos, dentistas, veterinários,
parteiras, massagistas, enfermeiros, serviços hospitalares, paramédicos, para-hospitalares, produtos
proteicos, dietéticos, tratamento e dietas; produtos alimentícios; produtos farmacêuticos populares;
produtos de fumo; produtos inibidores de fumo; profissionais liberais; reembolso postal ou vendas
pelo correio; turismo, viagens, excursões, hotelaria; veículos motorizados; vinhos e cervejas;
testemunhais, atestados, endossos; defensivos agrícolas; armas de fogo; ices e bebidas
assemelhadas).
O âmbito de incidência do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária é mais amplo
que o das normas sobre a publicidade existentes no Código de Defesa do Consumidor. Inicialmente,
porque o próprio conceito de publicidade constante do diploma autorregulamentar extrapola o campo
das relações de consumo e compreende também a promoção de ideias, conceitos ou instituições,
inclusive as de intuito não lucrativo. Além disso, as normas dos capítulos referentes a modalidades
específicas de anúncio alcançam relações outras, de índole estritamente não comercial, como os de
oferta de emprego, por exemplo. Está expressamente ressalvada da incidência do CBAP a
propaganda política, mas a publicidade promovida pelo governo e por entidades paraestatais
subordina-se às mesmas normas da publicidade comercial. Por fim, a autorregulação dispõe sobre
aspectos da publicidade, que apenas indiretamente pode interessar aos consumidores, como a
questão pertinente à concorrência desleal (arts. 4º e 32, f).
Em suma, o sistema de autorregulação publicitária trata a publicidade considerando-a sob ângulo
mais abrangente, que não se exaure na tutela dos interesses dos consumidores. Aliás, o objetivo da
autorregulação publicitária em todo o mundo é o de criar regras no interesse da própria atividade
econômica, de modo a evitar que um grande número de anúncios enganosos ou agressivos pudesse
vir a comprometer a credibilidade e eficiência da publicidade como um todo (cf. Calais-Auloy,
1980:86/87). Evidentemente, o consumidor tem os seus direitos protegidos de forma indireta, mas a
principal razão do sistema de autorregulação publicitária é o controle do desenvolvimento da
publicidade, com o sentido de preservar o seu extraordinário potencial econômico.
O Código de Autorregulamentação Publicitária tem âmbito de incidência maior que o das normas sobre publicidade constantes do CDC.
Percebe-se, com nitidez, a diferença de objetivos entre a disciplina consumerista da publicidade e
o sistema de autorregulação, quando se nota a preocupação do CONAR em relação aos chamados
exageros no apelo ao sexo e à nudez, pelas peças publicitárias de produtos de todos os gêneros. Em
1987, ano de particular incremento do uso de modelos despidos em filmes publicitários, foi
determinada a sustação, entre outros, da veiculação do filme Technos Mariner Plus , em que linda e
jovem modelo escolhe roupas para sair e, após colocar o relógio da marca propagandeada no pulso,
sente-se já suficientemente vestida e ganha as ruas totalmente nua. Dois rapazes veem-na e comentam
“que relógio!”. Se estivesse já em vigor o Código de Defesa do Consumidor, não se verificaria
qualquer ilicitude no filme em questão, sequer a da abusividade. Mas como a apresentação pela TV
de cenas de nudez, nos intervalos comerciais da programação normal, realmente deixa
desconfortáveis parcelas de espectadores — perante os quais, por isso, de alguma forma, pode restar
desacreditada a atividade publicitária —, o sistema de autorregulação não pode descuidar do
assunto. Para fins da legislação de tutela do consumidor, contudo, se não houver simulação,
enganosidade ou abusividade, o anúncio com mulheres ou homens nus, ainda que grotesco, apelativo,
indecente etc. não configura qualquer transgressão ao CDC.
Também a utilização do baixo calão em anúncios publicitários representa acentuada preocupação
do sistema de autorregulação, que o proíbe (CBAP, art. 27, § 6º, d), porque efetivamente pode
perturbar significativos segmentos da audiência. Em 1991, o CONAR decidiu: “o título chulo torna o
anúncio inquestionavelmente ofensivo e desrespeitoso para com o consumidor, ferindo a ética
publicitária”. Para a legislação de tutela do consumidor, no entanto, trata-se de tema sem a mesma
relevância, pois o uso do baixo calão na publicidade não tipifica por si só qualquer forma de
ilicitude prevista no CDC.
2.2. Sanções do Sistema de Autorregulação
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária atribui ao CONAR competência para a
imposição de sanções de quatro categorias: advertência, recomendação de alteração ou correção do
anúncio, recomendação de suspensão da veiculação e divulgação da posição do CONAR. O texto
normativo não apresenta as hipóteses de aplicação de cada uma das penalidades, de modo que se
deve concluir a existência de regra, implícita e geral, atributiva ao Conselho de poder discricionário
para mensurar a gravidade da infração cometida e definir a punição adequada. Do exame dos casos
submetidos a julgamento pelo Conselho de Ética daquela associação, no entanto, é possível
concluírem-se alguns critérios.
O CBAP estabelece quatro sanções, a serem discricionariamente aplicadas pelo CONAR: advertência, alteração do anúncio, suspensão da
veiculação e divulgação da posição da entidade.
A penalidade mais branda é a de advertência, e tem sido aplicada contra anúncios que, embora
infrinjam o código, não são potencialmente nocivos aos consumidores ou à atividade publicitária.
Exemplo dessa hipótese se encontra no provimento do recurso interposto contra a sustação dos filmes
denominados Confidências I e Confidências II, em que uma simpaticíssima modelo infantil mostra
às crianças os meios mais adequados para se obter determinado suco, recorrendo a agrados ou
ameaças às mães. O Plenário do Conselho de Ética, por apertada maioria de votos, abrandou a pena
para advertência, impondo-a contra o anunciante e a agência.
A recomendação de alteração ou correção do anúncio é penalidade reservada àqueles casos em
que a mudança na forma ou no conteúdo da publicidade se revela já suficiente para o atendimento às
disposições do CBAP. Por exemplo, o julgamento do caso Têxtil da Xuxa, em que na promoção de
novelo composto por 100% de fios acrílicos ouvia-se balido de carneiro, sempre que a famosa
apresentadora mencionava a palavra lã. A simples supressão do som emitido pelo animal já tornaria
o anúncio aceitável, pois eliminaria a inverídica sugestão de produto natural. Evidentemente, ao
CONAR não cabe apontar senão as partes do anúncio que reclamam adequação. Não deve, com
efeito, elaborar a nova peça publicitária. O próprio anunciante, por meio da mesma agência ou de
outra, deverá providenciar a mudança recomendada, caso seja de seu interesse continuar veiculando
o anúncio.
A recomendação aos veículos no sentido de que sustem a divulgação da publicidade é a terceira e
mais eficiente sanção prevista no CBAP. Cabe na hipótese em que a infringência ao código revela-se
tão grave que somente a proibição da veiculação do anúncio se mostra capaz de tutelar
adequadamente os interesses prestigiados pela autorregulação publicitária. Muitos são os exemplos
dessa modalidade de penalização, podendo-se ilustrá-los com a referência ao filme Você gosta da
sua professora?, em que era sugerido aos alunos presentearem suas professoras com determinado
perfume, objetivando a aprovação na avaliação do rendimento escolar.
E, por fim, prevê o CBAP como sanção mais grave a divulgação da posição do CONAR
relativamente a anunciante, agência ou veículo em face do não acatamento das medidas e
providências por ele preconizadas. Trata-se de pena reservada àqueles que, submetidos às
deliberações do CONAR, não lhe dão o devido cumprimento. É aplicável, também, na hipótese de
reincidência específica de anunciante ou agência já sancionados por desobediência às normas da
autorregulação. Como, por exemplo, no julgamento do anúncio Mulher Completa, veiculado na
mídia impressa e relativo a produtos de beleza, em que o anunciante e a agência, após a
recomendação de suspensão da peça pelo CONAR, apenas introduziram nela alterações formais,
dando ensejo então à aplicação da pena máxima. A pertinência dessa sanção depende
fundamentalmente da credibilidade do CONAR, semeada junto aos consumidores e integrantes do
sistema de autorregulação.
A eficácia das normas autorreguladoras da publicidade é condicio-nada, basicamente, pela
atuação dos organismos envolvidos com a concepção do sistema. As agências de publicidade e os
profissionais da criação devem nortear seus trabalhos pelos princípios e regras constantes do CBAP,
inclusive incentivando o empresário anunciante a conformar suas expectativas às diretrizes desse
código. Os veículos, por sua vez, devem acatar as sanções impostas pelo CONAR, recusando
anúncios que contrariam o CBAP. Às Associações de publicidade, de anunciantes e de veículos,
cabe exercer sua liderança entre os respectivos associados, motivando-os ao permanente respeito às
disposições do código. E o CONAR, finalmente, deve zelar pela aplicação equânime da disciplina
autorregulamentar, inspirando confiança não só nos profissionais da área, como também nos
destinatários da mensagem publicitária.
Apesar das diferenças de objetivos e de âmbito de incidência, o sistema de autorregulação
publicitária e a tutela legal dos consumidores são complementares um do outro. Na aplicação das
normas sobre publicidade estabelecidas pelo CDC, pode-se aproveitar a experiência do CONAR.
Conforme acentua Maurizio Fusi (1989:53), relativamente ao sistema italiano de autorregulação
publicitária, o órgão encarregado de sua aplicação, o Giurì dell’Autodisciplina Pubblicitaria, tal
como o CONAR, possui membros de diferentes profissões e não apenas com formação jurídica, o
que permite valorações diversificadas acerca dos efeitos da publicidade sobre o público. Em razão,
portanto, da contribuição dada por múltiplos enfoques profissionais, ínsita à autorregulação, não se
pode negar-lhe o caráter de verdadeiro modelo para a aplicação das normas jurídicas pertinentes à
complexa problemática da publicidade.
3. PUBLICIDADE SIMULADA
Há, no direito brasileiro, três espécies de publicidade ilícita: a simulada, a enganosa e a abusiva.
Na primeira, o caráter publicitário do anúncio é disfarçado para que o seu destinatário não perceba a
intenção promocional inerente à mensagem veiculada. Na segunda, o anúncio induz o consumidor em
erro, afirmando falsidades ou sonegando informações essenciais acerca do objeto da mensagem. E na
terceira, valores socialmente aceitos são deturpados com objetivos meramente comerciais.
A publicidade simulada é vedada indiretamente pelo Código de Defesa do Consumidor. O art. 36
do CDC prescreve que a mensagem publicitária deve ser fácil e imediatamente identificada pelo
consumidor. Trata-se da introdução no direito nacional do que se convencionou chamar de princípio
da identificabilidade, elemento presente na normatização da publicidade em vários outros diplomas
(CBAP, art. 28, Código da Publicidade português e Legge Mammì), pelo qual se reconhece ao
destinatário da mensagem publicitária o direito de ser informado acerca da natureza publicitária da
mensagem que lhe é dirigida. Essa natureza não pode ser disfarçada ou oculta ao consumidor, que
deve ter plenas condições para se posicionar de maneira adequada frente à gama de informações que
lhe é endereçada.
Um dos princípios da disciplina jurídica da publicidade é o da “identificabilidade”, pelo qual a mensagem não pode ocultar o seu caráter
publicitário.
Em outros termos, como é natural que a veiculação de mensagem destinada a promover produtos
ou serviços revista-se de claro objetivo de persuasão, o destinatário tem legitimamente o interesse de
se precaver, adotando cautelas e reservas que não adotaria diante de outros tipos de veiculação,
como documentários ou filmes de ficção. Tal atitude semidefensiva, que o consumidor tem o direito
de assumir perante a publicidade, pressupõe justamente o que o referido art. 36 do CDC afirma, ou
seja, a possibilidade de sua fácil e imediata identificação.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.
A vedação da publicidade simulada torna ilícitas algumas técnicas de marketing, caracterizadas
pelo oportunismo na abordagem ao consumidor desprevenido. Indefeso, teoricamente ele se encontra
mais suscetível ao acatamento da promoção comercial. Hipótese evidente dessa técnica é a da
publicidade subliminar, que consiste na inserção de mensagens publicitárias, de duração equivalente
a milionésimos de segundo, no transcorrer da exibição de filmes. Em razão da extraordinária rapidez
do contato mantido entre o consumidor e a mensagem, ela se torna perceptível apenas ao seu
inconsciente. Embora a eficácia dessa técnica seja altamente questionável pelos especialistas da
área, o fato é que, para o direito brasileiro, ela é indiscutivelmente proibida, por caracterizar
publicidade simulada.
Outra técnica de larga utilização abrangida pela norma proibitiva da publicidade simulada é a
reportagem publicitária. É muito frequente a veiculação pelos jornais, revistas ou periódicos, de
reportagens sobre assuntos de interesse aparentemente geral dos leitores, mas que, na verdade, com
maior ou menor grau de sutileza, escondem a promoção de produtos, empreendimentos imobiliários,
centros comerciais etc. O tema da matéria jornalística pode ser, por exemplo, a mudança nos hábitos
alimentares da população, mas a sua leitura acaba sugerindo a plena adequação de certo restaurante
aos novos hábitos noticiados. Os encartes ou cadernos dos periódicos voltados ao lazer contêm muita
publicidade oculta dessa natureza. A lei condena tal prática, devendo as editorias informar os
leitores acerca das circunstâncias em que a reportagem foi realizada, distinguindo com clareza
absoluta as mensagens publicitárias eventualmente nela contidas.
Igualmente, as chamadas testemunhais dissimuladas têm a sua licitude comprometida. Cuida-se de
técnica utilizada principalmente na mídia radiofônica em que o locutor, após a comunicação de
notícia imparcial referente ao anunciante, manifesta opinião favorável a este, como se fosse sua e
espontânea. A publicidade governamental faz intenso uso desse meio dissimulado de autopromoção.
A proibição de publicidade simulada, contudo, não alcança as testemunhais ostensivas, disciplinadas
pelo CBAP (Anexo Q), ou seja, aquelas em que o consumidor fácil e prontamente percebe a natureza
publicitária do depoimento prestado.
Também pode ser eventualmente alcançada pela vedação legal da publicidade simulada a técnica
que, no Brasil, se convencionou chamar por merchandising, isto é, a inserção de mensagens
publicitárias no transcorrer de novelas, peças teatrais, programas de televisão, filmes etc. Informa
Maria Elizabete Vilaça Lopes que o conceito originário de merchandising referia-se a certos
métodos empregados nos pontos de venda self-service. Especificamente, relacionava-se com os
critérios de arrumação, localização e apresentação de produtos nas gôndolas de supermercados ou
lojas de conveniência, de modo a chamar a atenção dos consumidores para determinados itens
colocados à altura dos olhos, nas proximidades do caixa recebedor ou nos corredores. É o chamado
vendedor silencioso, ideia que, sutilmente, possibilita transmudar o conceito de merchandising para
o de inclusão disfarçada de chamadas publicitárias no desenrolar de tramas novelísticas ou de outras
apresentações (1992:154/155).
Atente-se que o merchandising não é, necessariamente, ilícito. Desde que empregado de modo
facilmente constatável pelos espectadores, nenhuma irregularidade se verifica. A cena da telenovela,
nesse sentido, deve ser produzida com a preocupação de se revelar claro, evidente e translúcido o
intuito publicitário da referência ao produto ou serviço nela contida. A inserção de esclarecimentos
nos créditos de abertura ou encerramento do capítulo também se revela meio idôneo ao emprego
lícito da técnica. Qualquer outra forma, aliás, que transmita eficientemente ao consumidor a
informação de que ele se encontra diante de publicidade atende ao preceito legal.
Por último, cabe lembrar o infomercial, que as TVs a cabo trouxeram aos televisores brasileiros,
com traduções caracteristicamente malfeitas. Trata-se de venda, por telemarketing, em que a
apresentação do produto é ambientada num programa de auditório. Diante de uma plateia
inicialmente incrédula, que vai aos poucos externando, por meio de interjeições e aplausos, sua
estupefação com a eficiência proclamada do produto, o apresentador destaca os atributos deste. Os
infomerciais, para se adequarem à nossa legislação consumerista, devem explicitar, de forma clara,
sua natureza de peça publicitária (Krohn, 1995:100).
Não obstante a prescrição da ilicitude da publicidade simulada, e da forte presença nos meios de
comunicação dessa categoria de técnica publicitária, omitiu-se o legislador no estabelecimento de
sanções contra o anunciante que a promove. O parágrafo único do art. 67 do projeto de Código de
Defesa do Consumidor aprovado pelo legislativo, é certo, definia-a como crime, mas houve veto
presidencial ao dispositivo, fundamentado em pretensa obscuridade e imprecisão do tipo, de que
decorreria vício de inconstitucionalidade por desrespeito ao princípio da reserva legal (CF, art. 5º,
XXXIX). Por criticável que seja a opção da chefia do executivo — em vista da propriedade dos
termos utilizados pelo legislativo na descrição do tipo ou mesmo em função do antecedente da
autorregulação publicitária, que inquestionavelmente contribuiria na superação de eventuais
imprecisões (cf. Filomeno, 1991:455) —, fato é que inexiste norma penal vigente tipificando a
publicidade simulada.
Por outro lado, o art. 60 do CDC, ao eleger os pressupostos da imposição da contrapropaganda,
cogita apenas da publicidade enganosa e abusiva, não fazendo referência a outras modalidades de
ilícito publicitário. Essa sanção administrativa, portanto, não se pode aplicar contra o anunciante que
promove publicidade simulada. O anunciante, no caso, fica exposto à pena de multa (Dec. n.
2.181/97, art. 19, parágrafo único, II).
Finalmente, também não se encontra consignada na lei de modo expresso a responsabilidade civil
em decorrência de prática de simulação do caráter publicitário de mensagem endereçada ao
consumidor. Será, contudo, cabível invocar-se a regra genérica do art. 927 do Código Civil, para
fundamentar demanda contra o empresário que, por tê-la promovido, causou danos aos consumidores
ou espectadores. Claro que, por se fundar a ação na teoria geral da responsabilidade civil, a
condenação do anunciante, nesse caso, dependerá de prova de culpa. Na melhor das hipóteses para o
consumidor, demonstrada a hipossuficiência de sua condição ou a verossimilhança de suas
alegações, poderá o juiz favorecê-lo com a decretação da inversão do ônus probatório (CDC, art. 6º,
VIII). Tal inversão, contudo, não significa o mesmo que o reconhecimento da responsabilidade
objetiva, porque importa apenas a atribuição ao demandado da prova negativa de culpa, que,
realizada, evita a condenação. Assim, o empresário que demonstrar ter promovido publicidade
simulada sem culpa não é civilmente responsável pelos eventuais danos decorrentes.
4. PUBLICIDADE ENGANOSA
Para explicar ao público leigo alguns aspectos marcantes da ópera, o musicista e compositor
Aaron Copland destaca que a sua audiência pressupõe a aceitação, pelo ouvinte, das convenções
próprias desse gênero de arte. O espectador não pode esperar nada de muito sensato desenvolvido no
cenário operístico, em que cantores líricos dramatizam com exagero os temas da trama. De fato, o
ouvinte não conseguiria entreter-se com o espetáculo se, a cada passo, lhe ocorresse que as pessoas
não costumam ficar cantando suas mazelas e amores tal como apresentado pela ópera. O próprio
tempo é decomposto e reconstruído operisticamente: o soldado José, alertado pelo toque de recolher,
ao invés de entregar-se prontamente ao amor de Carmem, gasta o apertadíssimo tempo que lhe resta
discutindo com a cigana por que deve atender à retreta. Essa submissão às convenções próprias,
acentua ainda Copland, não é marca exclusiva da ópera. Em felicíssima imagem, ele lembra, o teatro
pretende que a quarta parede de um aposento está ali no palco e que os espectadores, por algum
meio milagroso, contemplam cenas da vida real (1939:166). Ora, quem quer usufruir a apresentação
de peça teatral deve aceitar essa convenção.
A publicidade, atividade econômica que pode se revestir de forte acento artístico, tem a sua
quarta parede também, isto é, sua convenção própria que se pode entender e que se deve controlar,
mas cuja aceitação é imposta em alguma medida ao espectador. Em outras palavras, costuma haver
sempre algo de fantasioso (e, portanto, de falso) nas mensagens publicitárias. Nenhuma lingerie é
usada por mulheres feias; nenhum apartamento é comprado por famílias desestruturadas; nenhum
produto é relacionado seriamente com o fracasso pessoal ou profissional. Apenas nos anúncios de
formato bastante simples, não se vislumbra qualquer apelo fantasioso. São desse tipo aquelas peças
publicitárias que se limitam a mostrar a imagem do produto e informar o preço e condições de
pagamento, por exemplo. Basta, contudo, introduzir-se no formato do anúncio um famoso artista ou
desportista como modelo, para que se desperte, já, a fantasia do consumidor: insinua-se que o
produto é consumido, ou pelo menos prestigiado, por pessoas importantes.
A publicidade é, em grande medida, fantasiosa e visa a mobilizar emoções dos espectadores. Há sempre algo de falso, em qualquer anúncio
publicitário.
Muitos exemplos demonstram que, antes de transmitir ideias racionalmente inteligíveis, a
publicidade visa geralmente mobilizar desejos e emoções, conscientes ou não, dos consumidores.
Manipulam, pois, fantasias capazes de despertar, pelo menos, a simpatia do espectador em relação
ao produto ou serviço promovido. O consumo de certa marca de drops faz o casal levitar; o trânsito
congestionado desaparece imediatamente, tão logo dada a partida em determinado automóvel;
conhecido chef cuisinier francês radicado no Brasil assegura categoricamente que utiliza maionese
nacional na confecção de seus pratos mais requintados. São, ou podem ser, mentiras fantasiosas com
as quais o espectador deve contar; ele deve ser inclusive capacitado, pela própria mensagem
publicitária ou por sua experiência de vida, a discernir o verdadeiro do falso. Em outros termos, a
coibição à publicidade enganosa pode e deve ser feita sem o sacrifício da criatividade na produção e
transmissão de anúncios publicitários.
4.1. Falsidade e Enganosidade
Não é a simples veiculação de informações total ou parcialmente falsas que configura o ilícito da
enganosidade. Apesar da redação empregada no art. 37, § 1º, do CDC, a mensagem publicitária pode
conter informações falsas, como por exemplo a levitação dos consumidores do drops em promoção,
e nem por isso representar infração à lei.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 37, § 1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por
qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade,
propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
A presença no anúncio de informações não confirmadas pela experiência dos espectadores não é
fator suficiente para a caracterização de publicidade enganosa. É necessário, ainda, que os dados
falsos tenham efetivo potencial de indução dos consumidores em erro.
O anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor elaborado pela comissão de juristas, fonte
mediata do texto em vigor (DOU, 4 jan. 1989), revelava-se mais adequado no tratamento da matéria,
na medida em que o seu art. 26, § 1º, ao definir publicidade enganosa, circunscrevia o ilícito à
hipótese de criação de dúvidas ou indução em erro. O dispositivo em vigor, como se sabe, sugere
prima facie que a simples existência de informações falsas já estaria a comprometer a licitude da
mensagem publicitária. Essa interpretação meramente literal da norma posta (CDC, art. 37, § 1º),
contudo, não pode prevalecer diante da compreensão global da atividade publicitária. É enganosa a
publicidade capaz de induzir consumidores em erro quanto ao produto ou serviço em promoção. A
mera inserção de informações inverídicas, por si só, nada tem de ilegal, uma vez que pode
representar a lícita tentativa de mobilizar a fantasia do espectador, com objetivos de promover o
consumo. Em outras palavras, para se caracterizar a publicidade enganosa, não basta a veiculação de
inverdades. É necessário também que a informação inverídica seja, pelo seu conteúdo, pela forma de
apresentação, pelo contexto em que se insere ou pelo público a que se dirige, capaz de ludibriar as
pessoas expostas à publicidade.
Pode haver, portanto, algum toque de fantasia (e de falsidade por conseguinte) nas peças
publicitárias. Isso, no entanto, não representa agressão ao direito dos espectadores à mensagem
verdadeira, porque a percepção do fantasioso afasta a enganosidade, descarta a possibilidade de
qualquer afirmação fundada na realidade dos fatos. O espectador, ao assistir filme publicitário de
certa marca de tênis, em que acrobatas fazem arriscadas evoluções no alto de montanha russa, não
está autorizado a crer que a aquisição daquele produto lhe asseguraria igual habilidade. É de tal
forma improvável que o tênis possa ter essa qualidade, que a ligação entre o produto e as acrobacias,
sugerida pelo anúncio, somente deve ser recebida como fantasiosa. A ninguém seria lícito reclamar
do tênis o efeito de habilitar acrobatas, porque simplesmente isso é impossível, não existe. Perceber
que se trata de sugestão falsa destinada apenas a mobilizar as emoções e o espírito de aventura do
espectador é aceitar a quarta parede da publicidade.
Do fato de existirem, em maior ou menor grau, falsidades fantasiosas na promoção publicitária,
não se pode concluir, no entanto, que o empresário estaria autorizado a inserir nos anúncios
informações inverídicas de qualquer natureza. Aquele atributo da publicidade, razão de sua
extraordinária eficácia e causa latente de seu descrédito, pode e deve ser controlado. A
autorregulação, aliás, preocupada em preservar o potencial econômico da atividade, pretende
racionalizar o manuseio da fantasia, evitando que excessivo número de peças publicitárias enganosas
venham a desacreditar o conjunto e comprometer a eficácia e rentabilidade da própria atividade
publicitária. Embora com objetivos diversos, o Código de Defesa do Consumidor, ao conceituar a
enganosidade na publicidade como ilícito, também confere meios de racionalizar e controlar o
manuseio da fantasia na promoção de produtos e serviços.
4.2. Caracterização da Publicidade Enganosa
Pode-se cogitar, inicialmente, de critérios auxiliares de identificação da manipulação legítima do
fantasioso na produção e veiculação de publicidade. Assim, se o próprio anúncio explicita a
inverdade da informação ou da situação representada, se a informação é manifestamente inverídica,
impossível, inexistente, segundo o que se pode concluir da experiência de vida, ou, ainda, liga o
produto ou serviço a personagens como papai noel, Frankstein, fadas e outras, não se verifica prima
facie a prática de publicidade enganosa.
Esses critérios, contudo, são meramente auxiliares. O decisivo é investigar se o conteúdo
transmitido é suscetível de induzir em erro o consumidor do fornecimento em promoção. Se, a partir
da mensagem, se constata que ele pode ser levado a tomar por verdadeira a informação falsa, então
caracteriza-se a publicidade enganosa. Pelo contrário, se, a partir ainda da mensagem, se constata
que o consumidor não tem como tomar por verdadeira a informação falsa, então a publicidade é
lícita, apesar de conter falsidades.
Há publicidade enganosa se o anúncio veicula mensagem falsa como se verdadeira fosse. Se o consumidor tem, pela própria mensagem ou por
sua experiência de vida, condições de perceber a falsidade da informação, não se caracteriza o ilícito.
A equação proposta suscita três questões, cuja discussão contribui para o aclaramento do critério.
Em primeiro lugar, a definição do universo de consumidores que compõe o padrão para se mensurar
o potencial enganoso da publicidade (item 4.3). Em segundo, a natureza e a articulação das muitas
informações veiculadas na peça publicitária em exame (item 4.4). E, por fim, a figura da
enganosidade por omissão, especificamente referida pela lei (CDC, art. 37, § 3º), e que será objeto
de exame no transcorrer da análise dos princípios da veracidade e da transparência (item 4.5).
4.3. Consumidor Padrão
Para se enfrentar a questão relativa ao padrão de consumidor na mensuração do potencial de
enganosidade da publicidade, devem-se assentar duas premissas: interessa considerar apenas o
conjunto de consumidores específico do fornecimento promovido e, dentro desse conjunto,
considerar não somente as pessoas medianamente informadas, mas também os desprovidos de
conhecimentos médios.
Na análise de eventual ilicitude na publicidade, deve-se tomar por referência, inicialmente, o
universo de consumidores do fornecimento em questão. Produtos e serviços mais caros são
normalmente consumidos por pessoas de maior poder aquisitivo, cuja formação e experiência de
vida, em geral, permite mais apurada percepção da realidade dos fatos, e menor suscetibilidade à
crédula aceitação passiva do que a publicidade veicula. Na promoção de imóveis de alto luxo, a
ponderação do potencial de enganosidade das informações transmitidas pode ser, relativamente,
menos rigorosa do que no exame de publicidade de imóveis de padrão médio ou popular.
O empresário que comercializa automóveis importados de luxo pode anunciar preços vantajosos
de leasing dos veículos, comparando--os a preços de venda de concorrentes, sem, necessariamente,
esmiuçar as diferenças entre os dois sistemas, porque o consumidor próprio desse tipo de
fornecimento tem amplas condições de se informar sobre o assunto, caso já não o conheça. Em
situação bastante diferente, no entanto, se encontra o empresário que comercializa automóveis de
menor preço ao sugerir, em seu anúncio, que determinado valor de prestação se refere à venda a
crédito do veículo quando, na verdade, representa a cota mensal de participação em consórcio de
bem durável. Nesse último caso, o destinatário da mensagem, geralmente pessoa de renda e instrução
média, tem o direito de ser suficientemente informado acerca das diferenças dos dois sistemas.
Claro que nem sempre o consumidor de maior poder aquisitivo está amplamente informado sobre
economia e direito, assim como nem sempre o de menor poder desconhece por completo os assuntos
negociais. Além disso, há dados de natureza especificamente técnica, cujo conhecimento independe
da situação econômica do consumidor. Contudo, refletindo em busca de critérios teóricos, pode-se
situar genericamente essa relação. O essencial é que o empresário, ao apreciar a proposta de
campanha publicitária de sua agência, tenha meios de proceder a cálculo, o quanto possível objetivo,
que antecipe, em termos globais, futura apreciação judicial da publicidade a ser veiculada. Nesse
sentido, o primeiro dado a se levar em conta, no exame do potencial enganoso da publicidade, é o de
que a mensagem é dirigida a pessoas que, ao menos potencialmente, são consumidores daquele
específico fornecimento em promoção. Não tem o empresário o dever de se preocupar com as
pessoas que não compõem o perfil de seus consumidores, no momento em que aprecia a veracidade
das informações a serem transmitidas.
Definido o universo dos consumidores em potencial do fornecimento objeto de publicidade, o
padrão a ser considerado na análise de sua eventual natureza enganosa deve compreender não só o
consumidor medianamente informado, mas também o desprovido de conhecimentos médios (cf. Fusi,
1989:45/48). Mesmo entre pessoas de mesmo poder aquisitivo, ou de equivalente formação,
encontrar-se-ão diferentes níveis de capacidade intelectual ou conhecimento de informações
específicas. Para que a proteção dos consumidores, liberada pela lei, seja realmente efetiva, deve-se
considerar que também os mais desprovidos, dentre os consumidores em potencial do fornecimento
em questão, encontram--se abrangidos pela norma tutelar.
O englobamento do consumidor desprovido de conhecimentos médios na construção do conceito
de consumidor padrão — noção indispensável à aferição de eventual enganosidade em anúncio
publicitário — não significa, absolutamente, que todo e qualquer adquirente de produto ou serviço
pode alegar que se enganou e invocar a proteção legal. Afirmar isso seria tornar inexequível o
cálculo empresarial e impossibilitar a socialização de perdas, condição inafastável da tutela dos
consumidores no sistema capitalista. Haverá, por certo, pessoas especialmente limitadas ou
particularmente desatentas, em relação às quais nenhuma cautela do anunciante, por maior que seja,
será suficiente para evitar distorções no entendimento da mensagem publicitária. Bem precisada a
questão, aquele que não puder ser determinado sequer como o menos informado dentre os
consumidores habituais do fornecimento, não deve ser considerado no exame do potencial de
enganosidade da publicidade.
Em outros termos, se o adquirente de produto ou serviço não integra o conjunto de consumidores
habituais do fornecimento objeto de promoção publicitária, eventual entendimento distorcido de sua
parte não pode dar ensejo à caracterização de ilícito. Entender de outro modo a questão equivaleria a
impossibilitar o cálculo empresarial e consequentemente obrigar o empresário ao impossível.
A publicidade se revela enganosa quando sua mensagem pode induzir em erro o menos informado dos consumidores específicos do
fornecimento objeto da promoção publicitária.
4.4. Conteúdo da Mensagem
A mensagem veiculada pelo anúncio deve ser também examinada, para se caracterizar a
publicidade como enganosa. Anote-se, em primeiro lugar, que o potencial de indução em erro deve
necessariamente decorrer do exame da peça publicitária como um todo. Mesmo a publicidade
literalmente verdadeira pode ser tida por enganosa se, globalmente considerada, puder induzir o
consumidor em erro. Como afirmava um extraordinário anúncio de TV do jornal Folha de S. Paulo
(no qual frases verdadeiras e aparentemente positivas acerca da realidade econômica e política da
Alemanha interguerras acompanhavam a construção pontual do retrato de Hitler), pode-se mentir
falando apenas verdades. Por certo, uma vez provando o empresário que as informações veiculadas
em sua publicidade, globalmente consideradas, revelam-se verdadeiras, então não se verifica o
ilícito da enganosidade.
As chamadas ou destaques de anúncios escritos, no mesmo sentido, não devem ser considerados
isoladamente, uma vez que o respectivo texto pode apresentar a devida elucidação das condições do
negócio ou qualidade do fornecimento. Aliás, é técnica publicitária de largo uso, voltada a despertar
a curiosidade do espectador e chamar a sua atenção para o produto ou serviço, a apresentação de
chamadas intrigantes, que o motiva a acompanhar o desenvolvimento do anúncio em busca do
desfazimento da contradição ou do absurdo de início sugeridos. O exemplo típico e bastante usual é o
do comerciante que propaga “queima de estoque” e, em seguida, especifica que está vendendo
determinados produtos a preço ou condições promocionais.
O essencial, no caso de utilização de chamada intrigante, é que se atendam rigorosamente dois
pressupostos. Em primeiro lugar, a própria publicidade deve se encarregar de clarificar o verdadeiro
conteúdo da mensagem. Se o cabal esclarecimento da exata condição de negócio ou das
características do fornecimento, o consumidor só obtém comparecendo ao estabelecimento do
fornecedor, então a publicidade é, sem dúvida, enganosa. Em segundo, o aclaramento da mensagem
deve ser inequívoco. Se a publicidade comporta duas ou mais interpretações, sendo pelo menos uma
delas enganosa, configura-se o ilícito. A contradição ou o absurdo sugerido de início devem ser
totalmente desfeitos no desenvolvimento da mensagem, de modo a se evitar qualquer resquício de
ambiguidade (cf. Benjamin, 1991:203).
Exatamente porque a aferição da enganosidade decorre de exame da mensagem considerada em
sua inteireza, não se pode admitir a utilização de esclarecimentos grafados em tipos minúsculos em
notas de rodapé ou disfarçadamente situados em cantos pouco lidos do anúncio escrito, bem como a
apresentação de rápidas e complexas legendas de ressalvas em filme televisivo. Também não é lícito
o estabelecimento de relações implícitas entre as informações veiculadas, das quais o espectador
pode legitimamente inferir certa característica inexistente no fornecimento. Seria,
exemplificativamente, enganoso o anúncio que afirmasse “deguste o autêntico vinho californiano” e
recomendasse a compra de um produto de vinícola brasileira. Em termos lógicos estritos, inexiste
ligação entre uma e outra proposição. Pode-se sugerir a uma pessoa que experimente vinhos da
Califórnia e que também compre bebida nacional. São, logicamente, duas afirmações independentes.
Contudo, há implícita relação entre elas, de modo que o espectador fica autorizado a imaginar que o
vinho em promoção é o importado (cf. Craswell, apud Benjamin, 1991:204).
Para concluir esse primeiro aspecto relativo à consideração da mensagem em termos globais, na
aferição de publicidade enganosa, deve-se referir ao teaser, técnica publicitária que compreende a
veiculação de anúncios preparatórios de campanha promocional, geralmente enigmáticos. O CBAP a
conceitua como “mensagens que visam criar expectativas ou curiosidade, sobretudo em torno de
produtos a serem lançados” (art. 9º, parágrafo único), para excepcioná-la da proibição geral de
publicidade por anunciante não identificado. Exemplificando: a cidade amanhece com outdoor por
todos os cantos anunciando a breve chegada de algo que vai mudar a vida de todos. Não são dadas
muitas pistas ao espectador que se vê, paulatinamente, consumido pela curiosidade. Surpreendem-se
as pessoas em conversas com os amigos, formulando palpites acerca da natureza do produto
ansiosamente esperado. Algum tempo depois, expectativa já espalhada entre os consumidores, novos
cartazes externos vêm saciar a sede de curiosidade dos circunstantes, apresentando uma nova marca
de sabão em pó. Trata-se de técnica em princípio lícita, até porque os anúncios preparatórios
costumam ser bastante lacunosos. Haverá, contudo, enganosidade se o prometido pelo teaser não se
confirmar pelo fornecimento anunciado, induzindo em erro os consumidores. Em termos outros, nada
há de específico nessa técnica, relativamente à ilicitude da enganosidade, estando as respectivas
peças publicitárias sujeitas à mesma disciplina das demais.
O segundo aspecto relevante a acentuar na reflexão pertinente à mensagem para fins de definição
da prática de publicidade enganosa diz respeito à sua natureza. Há, com efeito, duas fundamentais
espécies de informações veiculadas em publicidade. De um lado, as persuasivas, cujo objetivo é
convencer o espectador a se comportar de uma certa maneira, e, de outro, as descritivas, que apenas
transmitem dados elucidativos acerca do fornecimento em promoção. Claro que o sentido geral de
qualquer peça publicitária é o de persuadir o espectador a consumir o objeto promovido, mediante a
veiculação de informações acerca dele. Por vezes, assim, será difícil discernir exatamente a natureza
persuasiva ou descritiva de uma específica mensagem. A tentativa, contudo, deve ser feita, porque,
rigorosamente falando, as frases persuasivas não podem ser verdadeiras ou falsas. Essas qualidades
dizem respeito exclusivamente às frases descritivas.
Imagine-se filme publicitário em que o modelo com jeito de pessoa confiável, com voz e postura
intimistas, dirige-se ao espectador e afirma “você não deixaria de comprar o melhor apenas porque é
um pouco mais caro, deixaria?”. Essa informação, a rigor, não é verdadeira ou falsa, mas
simplesmente persuasiva. Se o fornecimento a que se refere é, efetivamente, o melhor ou o mais caro,
isso não caracteriza seja a pertinência, seja a impertinência da indagação formulada.
Se a publicidade apenas transmite postulados deônticos, afirmando que o consumidor deve
conduzir-se de certa forma, inexiste qualquer descrição do produto ou serviço promovido. E, assim
sendo, nada é possível aferir quanto à sua veracidade ou falsidade. Os atributos das frases
persuasivas são os de pertinência em relação a fins presumidos (no exemplo acima, pressupõe-se que
o objetivo de todo consumidor sensato é adquirir produtos de qualidade, mesmo pagando mais por
eles), enquanto os das frases descritivas são os de veracidade ou falsidade (caso reportem ou não
adequadamente o seu objeto). Por isso, em termos gerais, enquanto a impertinência de afirmações
persuasivas pode caracterizar o ilícito de publicidade abusiva, a falsidade de afirmações descritivas
pode dar ensejo ao ilícito da enganosidade. Na mesma medida, não se pode tomar por abusiva
publicidade fundada apenas em informações descritivas, ainda que falsas, assim como não se
verifica o ilícito da enganosidade em anúncio pautado exclusivamente em mensagens persuasivas,
ainda que impróprias.
As frases veiculadas por um anúncio podem ser descritivas (“este remédio é eficaz no combate à dor de cabeça”) ou persuasivas (“você merece
ter o carro mais bonito do bairro”). As descritivas podem ser verdadeiras ou falsas, mas as persuasivas não. As primeiras, assim, estão
relacionadas ao ilícito da enganosidade e as outras ao da abusividade.
Nesse passo das considerações acerca da definição do potencial de enganosidade de anúncios
publicitários, cabe referência ao uso de superlativos ou expressões exageradas (puffing ou
exaggerated graphics). São, com efeito, mensagens descritivas cuja veracidade dificilmente pode
ser testada. Ao propagar que o seu produto é o melhor do mundo, o empresário afirma algo que
simplesmente não se pode confirmar ou negar. Há quem considere ilícita a adoção de superlativos ou
de exageros por não ter o anunciante condições de provar sua veracidade (cf. Bernitz-Draper, apud
Benjamin, 1991:201). Anota Waldírio Bulgarelli (1985b:90), porém, que a regra geral do direito da
maioria dos países industrializados aponta para a licitude da adoção de expressões exageradas na
publicidade, desde que inofensivas. Penso que, quanto a esse tema, é necessário relembrar as
convenções próprias da publicidade, que o consumidor, ao longo de sua vida, passa a conhecer e
aceitar. Os superlativos e os exageros são exemplos da manipulação do fantasioso das pessoas, ou
seja, da quarta parede a que me referi inicialmente, com ajuda da imagem de Copland sobre o teatro.
Não há, portanto, nenhum ilícito intrínseco a essas técnicas de publicidade. Evidentemente, em
função da natureza da expressão exagerada ou do superlativo, em sendo factível o teste da
veracidade do afirmado, certamente se configurará a enganosidade caso haja indução de
consumidores em erro.
4.5. Princípio da Veracidade, Princípio da Transparência e
Enganosidade por Omissão
A doutrina assinala que a significativa mudança da evolução da disciplina normativa da
publicidade se verifica quando se passa do princípio da veracidade ao da transparência (Ghidini,
1989:38). Adotando apenas o primeiro, o direito limita-se a coibir a veiculação de publicidade
capaz de enganar os espectadores. Ao incorporar o segundo, o direito define as informações
indispensáveis que o empresário está obrigado a prestar, em sua publicidade, para contribuir com a
tomada de decisão adequada pelo consumidor. Entre um e outro estágio, podem-se registrar situações
intermediárias, como por exemplo a do direito norte-americano de disciplina da publicidade
referente a crédito ao consumidor. Nela, o princípio da transparência se manifesta com feitio
peculiar, na prescrição da regra all or nothing. Isto é, o fornecedor de crédito não está obrigado a
anunciar, em sua publicidade, as condições do mútuo, mas se o fizer, deverá apresentá-las
detalhadamente, prestando as informações definidas pela norma positiva.
Entre nós, no capítulo da proteção contratual, o Código de Defesa do Consumidor contempla
regras das quais se pode concluir a adoção do princípio da transparência. Nesse sentido, ao
consumidor deve ser assegurado o direito de saber, previamente, a exata extensão das obrigações
assumidas por ele e pelo fornecedor (CDC, arts. 46, 52, 54, §§ 3º e 4º). No tocante à publicidade, no
entanto, o legislador nacional não ultrapassou os limites do princípio da veracidade. Anote-se que as
regras relativas à publicidade enganosa constantes do Código de Defesa do Consumidor referem-se
apenas à tutela de interesses difusos e coletivos. No tocante à tutela dos interesses individuais,
simples ou homogêneos, o disposto no art. 37, § 1º, nada acrescenta à proteção que já havia sido
reconhecida a cada consumidor singular no tratamento do fornecimento viciado. A transparência,
portanto, é princípio aplicável apenas à disciplina das relações de consumo individuais e não à das
relações coletivas.
Diante de cada consumidor, o fornecedor tem o dever de informar prévia, ampla e adequadamente,
acerca do seu fornecimento. Diante da coletividade dos consumidores, porém, inexiste esse dever e o
fornecedor está obrigado somente a não enganar em sua publicidade.
Na proteção de direitos individuais simples, o CDC adota o princípio da transparência, mas na dos direitos coletivos, difusos e individuais
homogêneos, o princípio adotado é o da veracidade.
Em função da não adoção do princípio da transparência pelo direito brasileiro, em matéria de
disciplina das relações coletivas de consumo, o empresário não se encontra obrigado a fazer
publicidade de seu fornecimento. A única hipótese de obrigatoriedade de realização de publicidade é
a destinada à divulgação de periculosidade em produto ou serviço, desconhecida antes de sua
introdução no mercado (CDC, art. 10, § 1º). Não está, portanto, também obrigado, em regra, a
promover publicidade com determinado conteúdo. A legislação tutelar dos consumidores não lhe
impõe o dever de subsidiar os espectadores da publicidade com a transmissão de dados úteis à
escolha destes, no sentido de consumir ou não o produto ou serviço anunciado. Isto é, o dever de
informar prévia, ampla e adequadamente, que a lei prescreve ao fornecedor na disciplina das
relações individuais de consumo, não se concretiza por meio da promoção publicitária, mas por meio
do próprio atendimento dispensado em concreto a cada consumidor.
A questão referente à enganosidade por omissão insere-se nesse cenário. Se inexiste obrigação
legal voltada especificamente ao conteúdo da mensagem publicitária, no sentido de circunscrever o
teor das informações que os consumidores têm direito de conhecer, em que medida se pode
considerar certa omissão um fator de enganosidade? A lei menciona o atributo da essencialidade
(CDC, art. 37, § 3º), que se pode concluir apenas mediante análise casuística. Em termos gerais, se o
conhecimento do dado pode influir de forma ponderável na decisão do espectador, no sentido de
adquirir o fornecimento, então se trata de informação essencial.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 37, § 3º Para os efeitos deste Código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto
ou serviço.
Claro que não basta configurar-se que o consumidor demandante em particular, caso tivesse tido
conhecimento do dado, não teria adquirido o bem ou comodidade por razões particulares.
Novamente, o cálculo empresarial somente se viabiliza adotando-se, por referência, a noção de
consumidor-padrão, construída a partir do perfil do menos informado dos consumidores habituais do
fornecimento objeto da publicidade. Estando em julgamento questão referente à enganosidade por
omissão, o juiz deve pautar-se no mesmo critério, ou seja, considerar o conjunto de consumidores
habituais do fornecimento em promoção publicitária, e aferir se o menos informado deles, se tivesse
tido conhecimento do dado omitido na mensagem, teria ou não alterado a sua decisão de adquirir o
bem ou serviço. A enganosidade por omissão, nesse sentido, se caracteriza na hipótese em que é de
tal forma importante o dado omitido, que um consumidor-padrão, assim considerado, deixaria de
concretizar o negócio, se dele soubesse anteriormente.
5. PUBLICIDADE ABUSIVA
A legislação brasileira, a exemplo da vigorante em outros países (como a Itália e a Espanha),
considera ilícita a publicidade abusiva. O legislador não a conceituou propriamente, mas apenas
apresentou hipóteses de sua configuração no art. 37, § 2º, do CDC. Em inegável elenco
exemplificativo, encontram-se como modalidades desse ilícito a publicidade discriminatória,
incitadora da violência, exploradora de medo ou superstições, aproveitadora da deficiência de
julgamento e experiência das crianças, agressiva a valores ambientais ou motivadora de condutas
prejudiciais à saúde e segurança dos consumidores. Analise-se, inicialmente, um a um os exemplos
legais.
5.1. Abuso por Discriminação
A publicidade é discriminatória quando a mensagem veiculada afirma, ou simplesmente sugere, a
pertinência de tratamento discriminatório às pessoas. A Constituição Federal assegura a todos, como
direito fundamental, o tratamento isonômico (CF, art. 5º e incs. I, XLI, XLII), representando ofensa
ao texto constitucional a promoção de produtos ou serviços com desrespeito a esse direito.
Abstraindo-se a intrincadíssima questão do princípio jurídico da igualdade (cf. Coelho,
1992b:91/98), e tentando construir apenas um critério operacional para a norma proibitiva de
publicidade discriminatória, pode-se afirmar que não é admitida a promoção explícita de ideias
preconceituosas ou mesmo simples reforço de preconceitos sociais, por via da publicidade.
Exemplo de publicidade abusiva discriminatória pode-se ver na promovida por um motel carioca,
por meio de anúncios publicados em jornais sob o título “Precisa-se de Secretárias”. A veiculação,
ocorrida no próprio dia das secretárias, descrevia o perfil da pretendente ao cargo ressaltando que
deveria “estar em dia com a academia de ginástica, apreciar música, conhecer bons uísques e vinhos,
ter pressa em agradar o chefe e calma para o resto, voz parecida a um beijo e pele macia”. E, à
semelhança das ofertas de emprego, o anúncio apresentava rol de benefícios, do qual constava a
descrição dos serviços e equipamentos do motel.
Também são inequivocamente discriminatórios os anúncios que propagam, ou simplesmente
insinuam, qualquer conduta racista. Nesse sentido, apesar de ressalvar a ausência de dolo na
hipótese, o CONAR determinou a sustação da veiculação de cartazes externos de uma marca de
vestuário, a Benetton, em que eram apresentadas duas meninas, sendo uma loira com rosto angelical
e outra negra com o penteado sugerindo chifres de diabinho.
A caracterização do ilícito do racismo na publicidade independe da apresentação ou da não
apresentação, no anúncio, de modelos de determinada raça. A abusividade pode existir, por exemplo,
na simples transmissão de script racista contra negros, interpretado por modelo branco. Por outro
lado, a só presença ou a ausência de modelos dessa ou daquela raça não configura discriminação.
Nessa linha de entendimento, o CONAR considerou que o anúncio apresentando mulher negra com
criança branca ao colo, adequado à imagem institucional do anunciante (Benetton), não infringia a
ética publicitária.
Elemento importante ao ponderar a abusividade por discriminação racista, diz respeito ao
contexto, positivo ou negativo, em que se insere no anúncio a referência a certa raça ou
nacionalidade. Por exemplo, promover produtos eletrônicos, de marca originária do Japão, falando
de atributos positivos que a crença popular costuma relacionar aos japoneses (grande capacidade
laborativa, eficiência, honestidade etc.), não pode ser visto como discriminatório. O mesmo se pode
afirmar da promoção de produtos têxteis, por meio de simpáticos modelos do Médio Oriente, ainda
que se referindo à milenar fama de negociantes argutos, atribuída aos povos daquela região. Em
síntese, o exame do clima do anúncio é importante, na aferição desse tipo de ilícito, e, em se tratando
de mensagem publicitária desenvolvida de modo positivo, alegre, com elogio aos costumes e marcas
distintivas de certa raça ou nacionalidade, não se verifica a abusividade discriminatória.
Outro tipo de discriminação comum de se verificar tem por vítima a mulher. A promoção de
produtos de limpeza, alimentos, utilidades domésticas e supermercados dirige-se, é certo,
privilegiadamente ao público feminino e costuma apresentar como modelos mulheres cuidando do
lar, dos filhos e do marido. Nenhuma abusividade discriminatória se pode identificar na publicidade
com esse formato, se não houver reforço à discriminação da mulher, mas simples reprodução do
atual estágio evolutivo das relações de gênero. Claro que o elogio à submissão, assim como a
ridicularização da mulher no desempenho de papéis profissionais, ou do lar, caracterizam abuso.
Nesse contexto, o CONAR já considerou ofensivo à mulher o anúncio denominado Mude de Posição,
veiculado por fabricante de eletrodoméstico em cartazes externos e revistas, que apresentava uma
modelo “de quatro”.
A deficiência física de qualquer espécie também deve receber dos criadores de publicidade o
tratamento adequado não discriminatório. Já foram condenados os filmes Gago, referente a venda de
baterias, e Vesgo, referente a balanceamento de pneus, em razão de veicularem discriminação dessa
natureza.
5.2. Abuso por Incitação à Violência
A publicidade incitadora da violência também é considerada abusiva. Nessa modalidade, inserirse-ia, por exemplo, hipotético anúncio referente a armas de fogo, que apresentasse notícias verídicas
sobre crimes não reprimidos pelo aparato estatal, e promovesse a ideia de justiça pelas próprias
mãos. O CBAP dedica à publicidade de armas de fogo uma disciplina detalhada (Anexo S), que pode
servir de subsídio à aplicação do CDC. Desse modo, entre outros ditames, veda-se o clima
emocional na produção do anúncio, que deve se resumir à apresentação do produto, suas
características, preço e, também, informar o consumidor sobre a exigência de registro pela
autoridade competente, nunca a mencionando como mera formalidade. Além disso, deve evidenciar
que o uso da arma pressupõe treinamento específico, equilíbrio emocional e a observância de
rigorosas cautelas para a sua guarda. Nenhum anúncio sobre armas de fogo deve ser veiculado em
publicação dirigida ao público infantojuvenil ou pela TV antes das 23 horas.
A publicidade pode ser abusiva por incitação à violência independentemente da natureza do
produto ou serviço em promoção. Anúncio sobre moda pode descrever situações ou comportamentos
violentos, sem a devida crítica, hipótese em que se caracteriza o ilícito; como no filme Três
feticheiros, por exemplo, em que o homem arranca à força a peça de roupa íntima da mulher e a
mastiga.
5.3. Abuso por Exploração do Medo e Superstição
A referência, na publicidade, ao medo e à superstição das pessoas deve ser feita com critério,
para se evitar sua exploração. Isso quer dizer que a publicidade pode versar sobre crendices
populares, apresentar modelos com condutas supersticiosas ou com medos infundados, apoiar-se em
crenças etc. O que se encontra vedado na norma é a exploração do medo e da superstição do
consumidor. É necessário, para caracterização da abusividade, que o clima do anúncio sugira a
pertinência do medo infundado ou da superstição, em tom sério ou pseudocientífico. Exemplo típico
desse gênero de ilícito encontra-se no anúncio de amuletos, poções, guias astrológicos etc., nos quais
se assegura, sem a devida sustentação científica, eficiência na busca do amor, da felicidade, da
previsão do futuro ou da sorte. Claro que a publicidade de qualquer tipo de fornecimento pode ser,
criativamente, elaborada a partir das crendices populares, que integram o cotidiano de grande parte
dos consumidores. Assim, promover seguro de vida, falando das superstições sobre a morte, não
infringe o CDC, mas anunciar amuletos poderosos tratando as crendices como dado de realidade
infringe.
5.4. Abuso na Publicidade Dirigida a Crianças
O legislador deveria ter prestado mais atenção na disciplina da publicidade destinada à criança.
Lamentavelmente, a única e ligeiríssima referência ao tema encontra-se na exemplificação legal da
abusividade, em que insere o aproveitamento da deficiência de julgamento e experiência das crianças
(CDC, art. 37, § 2º). O sistema de autorregulação publicitária disciplina a questão de forma mais
adequada e pormenorizada (art. 37 do CBAP), condenando, por exemplo, a publicidade que
transmite ao público infantojuvenil sensação de inferioridade, por não consumir o produto ou serviço
em promoção. Nesse sentido, em 1992, órgãos de proteção ao consumidor do Rio Grande do Sul
consideraram abusivo o anúncio publicitário de tesouras infantis Zivi, cujo filme de TV apresentava
crianças com o referido produto repetindo eufórica e debochadamente para a tela: “eu tenho, você
não tem”.
Na publicidade dirigida ao público infantojuvenil, não se pode incutir qualquer sentimento de inferioridade nos que não consomem o produto
ou serviço anunciado.
Acerca da abusividade contra crianças, deve-se fazer referência ainda a dois filmes da Nestlé
que, submetidos ao Poder Judiciário por ação civil pública, promovida por associação de proteção
ao consumidor, foram considerados abusivos e proibidos de veiculação pública (Direito do
Consumidor, n. 1, p. 222/228). No primeiro filme, chamado Armazém, meninos invadem
furtivamente, e à noite, um estabelecimento empresarial para se apropriar e comer guloseimas da
marca em promoção, quando são surpreendidos pelo guarda; que, no entanto, escorrega em bolinhas
de gude adrede preparadas para a cobertura da fuga. No segundo filme, chamado Perereca, meninos
armados com nojentas pererecas entram na casa de meninas suas vizinhas e, para conseguir as
guloseimas da marca em promoção que se encontram na geladeira, ameaçam-nas com os pegajosos
anfíbios. Fossem os agentes imputáveis, tais ações tipificariam inequívocos furto e roubo
qualificados. Ora, apresentar, em filme publicitário de extraordinária penetração, crianças
envolvidas em ações condenáveis como se fossem normais, importa não só claro aproveitamento da
inexperiência dos espectadores menores, como também séria deturpação de valores sociais.
Registre-se, no entanto, que curiosamente esses mesmos filmes da Nestlé, submetidos ao
julgamento do CONAR, foram considerados adequados à disciplina da autorregulação.
5.5. Abuso por Desrespeito aos Valores Ambientais
O abuso por desrespeito a valores ambientais se caracteriza pela veiculação de mensagem
agressiva ao meio ambiente. Aqui está-se diante de hipótese de dificílima concretização. Com efeito,
ao fabricante de armas pode se revelar realmente vantajoso promover seu fornecimento mesmo
desrespeitando os valores relativos à paz nas relações humanas, assim como ao de brinquedos pode
ocorrer de usufruir vantagem econômica ridicularizando, em sua publicidade, atitudes de lealdade
entre adultos e crianças. Em suma, em determinadas situações, o empresário pode vislumbrar uma
alternativa economicamente adequada que tipifica, no entanto, abuso do direito de anunciar.
Promove, portanto, a publicidade, apostando eventualmente na inércia dos órgãos de proteção aos
consumidores ou na demora das ações judiciais. Existe, no entanto, a perspectiva de retorno
econômico enquanto o anúncio for veiculado, a despeito da abusividade mais ou menos patente.
Contudo, a produção ou veiculação de anúncio agressivo aos valores ambientais, hoje em dia, se
mostra uma alternativa economicamente inconsistente, em razão do extraordinário apelo de que se
reveste a questão ecológica. Nenhuma publicidade de aparelhos de ar condicionado irá lembrar a
suspeita de danos provocados pelo clorofluorcarbono (CFC), liberado pelo produto, à camada de
ozônio da atmosfera. De qualquer modo, a norma do CDC ajuda a prevenir tal forma de abusividade
e, em seu limitado âmbito de incidência, colabora com a preservação do meio ambiente.
Para se tipificar a publicidade abusiva agressora de valores ambientais, não é suficiente a mera
apresentação de situações comumente verificadas, em que pessoas adotam comportamentos
incompatíveis com a consciência ecológica. O ilícito se verifica se há a promoção, ainda que
implícita, do desrespeito à natureza ou ao meio ambiente. Assim, a utilização da imagem da garrafa
vindo ter à praia com mensagem de náufrago, na produção de filme publicitário sobre refrigerantes
armazenados em latas, não caracteriza estímulo à poluição do litoral, conforme já decidiu o CONAR.
5.6. Abuso por Indução a Conduta Nociva à Saúde ou Segurança
do Consumidor
Por fim, menciona a lei o abuso por indução a conduta nociva à saúde ou segurança dos
consumidores. De imediato, associa-se a essa parte do dispositivo legal em questão (CDC, art. 37, §
2º) a publicidade de cigarros, produto comprovadamente danoso à saúde das pessoas. Da definição,
pelo CDC, de abuso nas mensagens publicitárias indutoras de comportamentos nocivos à saúde do
consumidor, poder-se-ia concluir a proibição absoluta dos anúncios de cigarro? Penso que a
resposta a tal indagação é negativa, na medida em que a própria Constituição Federal assegura,
indiretamente, aos fabricantes de tabaco, o direito de anunciar seu produto.
O art. 220, § 4º, do texto fundamental submete a propaganda comercial de tabaco e de outros
produtos às restrições que a lei federal estabelecer com vistas a garantir à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem dela (Lei n. 9.294/96). Estipula, também, que a publicidade conterá,
sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. Ora, desse
dispositivo constitucional pode-se, de um lado, concluir a tutela dos interesses dos consumidores, no
sentido de serem alertados sobre a periculosidade do consumo de cigarros; mas, de outro, pode-se
concluir também o reconhecimento aos fabricantes do tabaco do direito constitucional de anunciar o
seu produto. A lei ordinária que proibisse, em qualquer circunstância, a veiculação de anúncios de
cigarros afrontaria a Constituição Federal. De acordo com os lineamentos fixados pelo constituinte
na matéria, a lei ordinária pode, no máximo, restringir esse tipo de publicidade, mas não a pode
proibir.
Se assim é, a definição de publicidade abusiva por indução a conduta nociva à saúde dos
consumidores, constante do CDC, não pode ser interpretada como extensiva ao tabaco, bebidas
alcoólicas e demais produtos citados pelo art. 220, § 4º, da CF cuja publicidade é
constitucionalmente garantida.
Forma típica de publicidade abusiva por induzir o consumidor a condutas nocivas à sua saúde e
segurança é a de remédios assentada na ideia de automedicação. Fortemente enraizado na cultura
popular brasileira, o hábito de consumir medicamentos sem a devida prescrição do médico é causa
de graves riscos à saúde dos consumidores. Os empresários da indústria farmacêutica só podem
promover publicidade destinada aos usuários dos medicamentos anódinos e de venda livre, ou seja,
dos comercializáveis independentemente de receita médica (“sem tarja”); dos demais, a publicidade
só pode ser feita em publicações especializadas dirigidas direta e especificamente a profissionais e
instituições de saúde (Lei n. 9.294/96, art. 7º). Mesmo no caso dos medicamentos cuja publicidade
aos pacientes é legalmente autorizada, a mensagem publicitária não pode ser prejudicial à saúde dos
consumidores. Se, por exemplo, incentivar ou sugerir a automedicação, ela é abusiva, nos termos do
art. 37, § 2º, do CDC.
5.7. Caracterização da Publicidade Abusiva
Encerrada a análise das formas de publicidade abusiva expressamente tipificadas pelo legislador,
importa retomar, como se afirmou anteriormente, o nítido caráter exemplificativo do elenco
apresentado pelo art. 37, § 2º, do CDC. Não se esgotam, com ênfase, nas hipóteses nele
apresentadas, os tipos de publicidade abusiva, salvo, por evidente, no tocante às consequências na
órbita da repressão penal, em razão do princípio da reserva legal. Mas, se se trata de mera
exemplificação e se o legislador se omitiu na conceituação da abusividade, à doutrina cabe pesquisar
o critério que possibilite nortear a aplicação da norma em referência às hipóteses do ilícito não
explicitamente mencionadas. Em outros termos, é necessário identificar o elemento comum aos
exemplos de publicidade abusiva, que possibilite a formulação de conceito doutrinário geral, a
amparar a configuração do ilícito em anúncios não referidos pelo legislador.
Código de Defesa do Consumidor
Art. 37, § 2º É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a
superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o
consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
Nesse contexto, pode-se afirmar que os empresários têm, reconhecidamente, direito de anunciar os
seus produtos ou serviços. Mas, como ocorre em relação ao exercício de qualquer direito, devem
fazê-lo de modo regular. O abuso de direito se verifica quando o seu titular, podendo optar por
diferentes meios para o exercer, elege a alternativa mais onerosa a outras pessoas, sem nítido
proveito para si. É o que se dá na configuração da publicidade abusiva. O fornecedor pode promover
seu fornecimento de muitos modos (talvez infinitos, em função da inesgotável capacidade criativa do
meio publicitário). Assim, se possui alternativas diversas para exercer o direito de anunciar de que é
titular, deve optar por aquela em que não agride os valores incorporados por espectadores da
mensagem publicitária.
Em outros termos, o critério de identificação da publicidade abusiva é o da agressão aos valores
sociais. Encontra-se essa, em alguma medida, manifesta em todos os exemplos lembrados pelo
legislador (incitação à violência, exploração da criança, agressão ao meio ambiente etc.). Sempre
que o anunciante, para promover comercialmente os seus produtos e serviços, apela para mensagem
agressiva aos valores da sociedade, então ele incorre em prática abusiva, porque poderia
perfeitamente produzir sua publicidade sem se valer de tal recurso.
O critério não se apresenta, no entanto, absolutamente isento de problemas. Ao contrário, é fonte
de sérias e complexas questões, que, não obstante, devem ser enfrentadas pela doutrina. Em primeiro
lugar, a atinente à natureza dos valores agredidos pela peça publicitária (item 5.8.). Em segundo, a
distinção entre valores sociais e problemas pessoais (item 5.9.).
5.8. Agressão aos Valores da Sociedade
Deve-se, de início, atentar para o fato de que os valores agredidos pela publicidade abusiva não
são necessariamente os do consumidor do produto ou serviço em promoção, mas sim os da sociedade
em geral. Com efeito, não há grande eficácia promocional no anúncio ofensivo ao próprio
consumidor do fornecimento, já que o espectador negativamente atingido pela mensagem publicitária
tende a adotar postura antipática em relação ao anunciante e aos seus produtos e serviços. Em geral,
aquela parcela das pessoas expostas à publicidade abusiva que efetivamente consome o bem em
promoção tende a não se sentir realmente agredida. Os criadores, inclusive, desenvolvem
sensibilidade suficiente para conceber peças e campanhas de publicidade empáticas ao consumidor
habitual do fornecimento anunciado.
Anunciar armas de fogo, propagandeando a ideia de justiça pelas próprias mãos, pode representar
um meio atraente de promover esse produto aos olhos de seus consumidores habituais. Para as outras
pessoas, no entanto, que têm legítimo interesse na preservação da ordem estatal, e que não querem se
ver ameaçadas por mensagens de apologia da violência, das quais podem inclusive vir a ser vítimas,
para essas tal formato de publicidade representa séria ofensa. Assim, se a análise da publicidade
enganosa deve ser feita a partir do universo restrito dos consumidores habituais do fornecimento
anunciado, a da abusiva deve considerar a sociedade em geral.
A análise da publicidade enganosa deve partir das condições de discernimento dos consumidores específicos do produto ou serviço
anunciado. Já a análise da publicidade abusiva deve levar em conta os valores disseminados pela sociedade em geral, deixando de lado os dos
consumidores do produto ou serviço anunciado.
A definição de quais são os valores prestigiados pela sociedade, objeto da proteção jurídica
decorrente da vedação de publicidade abusiva, representa um problema à parte. Isso porque,
realisticamente, falar-se de valores da sociedade pressupõe essa como um todo monolítico e
homogêneo. Na sociedade, no entanto, há classes, agrupamentos, ideologias e muitas outras
segmentações que lhe conferem colorido plural, diversificado, dialético. Não existem, a rigor,
valores universais e atemporais, acerca de cujos limites estejam todos em perfeito acordo. O valor
da preservação da vida humana, que se poderia imaginar absoluto e eterno, é altamente controverso
quando se debatem temas como pena de morte, eutanásia ou aborto.
A norma jurídica coibidora da publicidade enganosa reclama, no entanto, operacionalização e,
apesar da natureza aporética da discussão sobre valores, ao intérprete é necessário encontrar o
padrão, o mais próximo possível da realidade dos fatos culturais, para delinear os contornos de sua
incidência. Em outras palavras, é tarefa da doutrina construir o conceito tecnológico de valores da
sociedade, apesar das infindáveis e interessantes questões suscitadas pela riqueza do tema.
Nesse sentido, pode-se afirmar, como ideia introdutória, que a veiculação em publicidade de
condutas tipificadas como ilícito penal, travestidas estas de aceitáveis, toleráveis ou inofensivas,
indica a presença de abusividade. Se o anunciante promove seu negócio com referências positivas,
elogiosas ou simplesmente simpáticas a comportamentos criminosos ou contravencionais, há
inequívoca abusividade. Esse é um critério objetivo e seguro para dar solução jurídica a boa parte
do problema. Contudo, é insuficiente, pois há abuso no direito de anunciar mesmo na apresentação de
comportamentos não típicos para o direito penal, mas ainda assim ofensivos a valores sociais.
Exemplo de abusividade sem referência a condutas penalmente típicas encontra-se frequentemente
na ambientação de filmes publicitários em sala de aula, em geral para promover fornecimentos
destinados ao público infantojuvenil. Sempre o professor é apresentado como pessoa autoritária ou
chata; algumas vezes, inclusive, é corruptível, tolo ou incompetente. Isto é, o criador aproveita os
ingredientes do imaginário (não necessariamente justo) de parte das crianças e jovens brasileiros em
idade escolar e, dando-lhe formato espirituoso, consegue atrair a atenção e, por vezes, a simpatia do
seu público para o produto anunciado. A publicidade aproveita a generalizada concepção de buscar
vantagem a todo momento e a traduz na ideia de que nada de muito interessante pode ser dito por um
professor e nada de muito importante pode acontecer em uma sala de aula. Sob o ponto de vista da
eficácia publicitária, essa caricatura do docente e da escola representa solução adequada, porque se
estabelece forte empatia entre a mensagem e a parcela de espectadores que se veem identificados,
compreendidos e prestigiados pelo anunciante. Em uma palavra, o produto vinga o indefeso aluno
que o consumidor traz dentro de si.
Muitas vezes, porém, essa solução publicitariamente eficaz reforça preconceitos e contribui para
agravar o triste quadro da educação brasileira, podendo, de acordo com as circunstâncias específicas
da peça publicitária em exame, caracterizar o ilícito da abusividade. Por exemplo, antes da vigência
do CDC, o Plenário do CONAR, em recurso extraordinário, confirmou a sustação do filme
Reencontro. Nele, a diretora de estabelecimento escolar chama à sua presença os pais de dois alunos
para tratar de algum peraltismo banal dos filhos. Os pais se reconhecem como velhos colegas de
escola e, após a reunião, vão comemorar o reencontro na lanchonete do anunciante. Durante todo o
filme, pais e filhos ostentam indisfarçável desprezo pela diretora e suas queixas. Ora, se a
repreensão não tinha mesmo fundamento, a conduta saudável e educativa dos pais não é, certamente,
a de ridicularizá-la, mas a de contestá-la com firmeza, a partir de fatos e argumentos em defesa dos
filhos. Persistindo a diretora em sua atitude despropositada, os pais devem simplesmente procurar
outra escola e encerrarem a questão. Nada impediria, por outro lado, independentemente do resultado
da reunião com a direção da escola, a comemoração do reencontro dos velhos amigos no
estabelecimento do anunciante.
Assim, mesmo com a apresentação de condutas não tipificadas penalmente, pode-se incorrer em
publicidade abusiva, ao se distorcerem valores da sociedade. Nessa hipótese, porém, é mais difícil
fixarem-se critérios tão objetivos e seguros, como na da abusividade por reprodução acrítica de
crimes e contravenções.
5.9. Valores Sociais e Questões Individuais
Outro aspecto relevante na precisão do ilícito por abuso do direito de anunciar diz respeito aos
limites entre os valores da sociedade e preconceitos e problemas individuais do intérprete. Impõe-se
a cautela de não tomar esses por aqueles. De fato, a tendência do intérprete da norma é, naturalmente,
a de privilegiar aspectos das relações sociais que lhe são particularmente mais significativos.
Contudo, nesse privilegiamento, pode ocorrer interferência dos seus problemas individuais, de modo
a considerar abusiva a mensagem que, a rigor, apenas o incomoda, e ao segmento de espectadores de
perfil psicológico semelhante. Convenhamos que a ninguém é confortável ver, pela TV, a
ridicularização de personagem com traços idênticos aos seus. Isso, no entanto, não pode
comprometer o esforço de isenção do aplicador do direito.
Acentue-se que o desconforto de parcelas dos espectadores, diante de determinado anúncio
publicitário, não configura, por si só, o ilícito da abusividade. A nenhum esportista agradaria ver a
associação entre a prática de esporte e limitação intelectual insinuada em publicidade. Disso,
contudo, não se pode concluir ofensa à atividade esportiva como um valor social. Da mesma forma,
nenhuma pessoa dedicada aos estudos apreciaria anúncio em que a personagem com esse traço fosse
apresentada como chata, sem graça e assexuada. Nem por isso, se poderia pretender o desrespeito ao
valor social da educação. Em outros termos, apenas o desconforto provocado no espectador em
função da agressão a valor da sociedade em geral pode ser considerado na aferição da
abusividade. O provocado em determinados segmentos dos espectadores em decorrência apenas de
preconceitos ou problemas pessoais, intimamente relacionados com o perfil psicológico deles, não
caracteriza o ilícito.
Essa cautela na distinção entre valores sociais e questões individuais deve ser adotada pelo
intérprete especialmente na análise da eventual abusividade em anúncios que veiculam cenas de
nudez, erotismo ou com uso de baixo calão. Certamente, sempre haverá numerosos espectadores
desconfortáveis com qualquer filme publicitário de TV de que participem modelos nus, mesmo na
promoção de produtos que ninguém usa vestido (chuveiro, por exemplo). O sexo, por outro lado,
nada tem de imoral ou agressivo. Muito pelo contrário, pode ser sadiamente aproveitado na
concepção e produção de anúncios publicitários, o que não irá impedir o desconforto de inúmeros
espectadores. O baixo calão, por sua vez, também não é confortável para muitas pessoas, que
preferem ouvi-lo somente no escuro de uma plateia no teatro. Contudo, não é porque segmentos de
consumidores se sentem perturbados com certos fatos da vida, que outras pessoas devem ser
privadas de seus direitos.
O descompasso entre perturbações individuais e ofensa a valores da sociedade se pode
nitidamente perceber a partir de reflexões acerca da ementa do julgamento proferido pelo CONAR,
em 1991, assim formulada: “a Câmara entendeu inconcebível que, em sã consciência, o comercial,
exibindo dois bebês situados com naturalidade numa cama, pudesse sugerir, provocar ou transmitir a
mais remota ideia de sensualidade”. Ora, se houve representação ao órgão de autorregulação
publicitária nesse caso, é porque alguém se sentiu perturbado pela veiculação de anúncios com bebês
dividindo a mesma cama. Trata-se, no entanto, de distúrbio de âmbito pessoal, que não pode ser
alçado a questão de interesse geral.
Se o anúncio mostra casal de namorados apreciando o vinho em promoção, na sala do
apartamento de um deles, a descontração e intimidade desse momento é plenamente compatível com
a apresentação de modelos semidespidos. A publicidade de lingerie pode ser licitamente associada
a cenas de erotismo. Torcedores falando palavrões no estádio pode ser aproveitado em peças
publicitárias de assinatura de transmissão televisiva de campeonatos de futebol, por exemplo. Já a
reprodução, elogiosa ou simplesmente acrítica, de nudez em conduta delituosa, ou de cena erótica
reproduzindo estupro, ou ainda de pessoa dirigindo impropérios de baixo calão contra autoridade
legalmente investida de competência, são exemplos de publicidade abusiva, em virtude da agressão a
valores sociais nela transmitida.
O ilícito da abusividade não se caracteriza se o desconforto dos espectadores decorre de aspectos próprios ao seu perfil psicológico. É
necessário que um valor social seja agredido.
Considerar suficiente à abusividade o simples desconforto de parcelas de espectadores, ignorando
suas causas específicas e confundindo problemas e preconceitos individuais com questões gerais de
interesse da sociedade, é, também, impossibilitar o cálculo empresarial, que se deve pautar em
padrões discerníveis. Pode haver contingentes de pessoas perturbadas por publicidades de formatos
mais complexos, mas isso não será abusivo, se não estiver em foco um valor prestigiado pela
sociedade; um valor que a agência e o empresário, antes da produção do anúncio, e o juiz, após a sua
veiculação, possam, com relativo grau de certeza, distinguir como geral.
No tema da publicidade abusiva, é natural que se verifique certa distância entre as conclusões
alcançadas no âmbito do sistema de autorregulação publicitária e as decorrentes do preceituado no
Código de Defesa do Consumidor. Os agentes da atividade econômica publicitária dispensam
atenção especial para toda a sorte de efeitos antipáticos, que possam decorrer dos anúncios. O baixo
calão é expressamente vedado pelo CBAP, e o CONAR tem atuado firmemente contra o que
considera exageros no uso de modelos nus nas peças publicitárias. Pois, se segmentos
quantitativamente não desprezíveis de espectadores desgostam de publicidade com determinados
elementos, então a sua adequação às finalidades da própria atividade publicitária é discutível. Já o
direito positivo de tutela dos consumidores restringe o seu âmbito de incidência aos ilícitos da
simulação, enganosidade e abusividade, não se ocupando dos anúncios ineficientes, infelizes,
grotescos ou meramente provocativos.
6. “PUBLICITY”
Certas campanhas publicitárias preveem a estimulação de eventos de repercussão jornalística em
torno da própria publicidade, como um instrumento a mais de promoção do produto ou serviço
anunciado. Assim, filmes publicitários de formato sofisticado são apresentados a personalidades, em
concorridíssimas avant-premières, sendo tratados como verdadeiras obras-primas da arte
cinematográfica. No desfile de Escolas de Samba do Rio de Janeiro, nas competições
automobilísticas de Fórmula 1 ou em shows de famosos artistas organizam-se camarotes especiais
sob o patrocínio da marca em promoção. Fatos pitorescos envolvendo os modelos ou a produção do
anúncio são veiculados pela imprensa. Essa técnica de promoção de eventos em torno da publicidade
se denomina publicity.
A publicity é expressamente excluída do âmbito do sistema de autorregulação (CBAP, art. 10) e o
Código de Defesa do Consumidor nem sequer a menciona. Contudo, muitas vezes, a simulação, a
enganosidade e a abusividade podem se manifestar, também, por meio dos eventos promocionais da
própria campanha publicitária. Por isso, impõe--se considerar, para fins jurídicos, a publicity como
um tipo específico de publicidade, sujeitando-a à mesma disciplina.
A simulação, enganosidade ou abusividade podem estar presentes também nos eventos organizados para a divulgação de campanha
publicitária (publicity).
Na estruturação dos eventos promocionais de campanha, devem a agência e o anunciante cuidar
para que não ocorra dissimulação de seu caráter publicitário. A natureza promocional da publicity
deve ser pronta e facilmente identificada pelos seus destinatários. Claro que a agência e o anunciante
não respondem por dissimulação, em razão do modo pelo qual a imprensa noticia o evento, posto que
não exercem total controle sobre esse desdobramento da utilização da técnica da publicity. Mas na
organização do evento, no quanto depender da atuação profissional da agência e das definições do
anunciante, devem se apresentar suficientemente explícitos os objetivos publicitários, para que os
consumidores possam adotar postura adequada em relação ao noticiário correspondente.
Nos eventos da publicity, tal como na própria mensagem a que se referem, não pode existir
enganosidade. A matéria de fato cuja divulgação jornalística é suscitada pelos eventos promocionais
da campanha não pode induzir os espectadores em erro. Aqui, como na questão da enganosidade da
mensagem publicitária propriamente dita, admite-se a mobilização do imaginário dos espectadores
pela transmissão de ideias fantasiosas (e portanto falsas), desde que o consumidor-padrão possa
perceber, por sua experiência de vida ou por elementos da própria publicity, a sua natureza
fantástica.
Também não podem ser organizados eventos promocionais de campanha que transgridam a
vedação da publicidade abusiva. Se, por exemplo, explorar a deficiência de julgamento das crianças
na organização da publicity, ou incorrer em qualquer outra modalidade de abuso do direito de
anunciar, terá o empresário a mesma responsabilidade de quem veicula anúncio abusivo.
A publicidade propriamente dita e a publicity guardam, juridicamente, certa autonomia. Pode se
verificar a situação em que o anúncio em si é lícito, não transgredindo as regras do CDC, mas os
eventos promocionais que o cercam não o são. Nessa hipótese, o juiz deve isolar os eventos da peça
publicitária e, tomando-os por espécie de publicidade, coibir a publicity que se mostrar simulada,
enganosa ou abusiva.
Finalmente, ressalte-se que, após a criação do sistema de autorregulação publicitária e da entrada
em vigor do Código de Defesa do Consumidor, pode ocorrer o aproveitamento da própria repressão
à publicidade antiética ou ilícita como publicity. Trata-se da produção de anúncios
propositadamente transgressores das normas disciplinares da publicidade, com o claro intuito de
provocar a atuação do CONAR ou mesmo do Judiciário, dando ensejo à cobertura jornalística
correspondente. Claro que essa alternativa apresenta seus riscos, como a possibilidade de
condenação pelos órgãos de aplicação das referidas normas, mas pode também gerar polêmica e
divulgação jornalística suficientes para garantir maior exposição do produto.
Esse gênero de publicity, provocadora da atuação dos órgãos repressores da publicidade antiética
ou ilícita, configura, por sua vez, inequívoco abuso do direito de anunciar. É, em suma, uma forma de
publicidade abusiva. Assim, caracterizada a específica intenção de desobedecer à legislação tutelar
dos consumidores e de mover a máquina judiciária com vistas a gerar fatos jornalísticos sobre a
campanha publicitária, deve o juiz ser particularmente rigoroso com o empresário, impondo-lhe
condenação não apenas em função do ilícito perpetrado pelo anúncio, mas acrescentando-lhe também
outra específica pela publicity abusiva. Ou seja, a indenização civil deverá compreender parcela
relativa aos dois ilícitos, o da peça publicitária simulada, enganosa ou abusiva e o da publicity
abusiva. A contrapropaganda deve ser imposta, também, para as duas modalidades de ilicitude,
compreendendo a veiculação de alguns anúncios desfazendo a enganosidade ou a abusividade
decorrente da peça publicitária propriamente dita e de outros desfazendo a abusividade da publicity.
Por fim, deve ser considerada a presença de agravante na hipótese de condenação penal (CDC, art.
76, II).
7. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ANUNCIANTE
O ilícito da enganosidade e da abusividade dão ensejo à responsabilização do anunciante em três
níveis: civil, administrativo e penal. A sanção civil consiste na indenização dos danos, materiais e
morais, decorrentes da veiculação ilícita; a consequência administrativa é a imposição de
contrapropaganda; e a responsabilidade penal decorre da tipificação como crime da conduta de
promover publicidade enganosa ou abusiva.
A publicidade enganosa e a abusiva são sancionadas nos três níveis do direito: civil, penal e administrativo.
No tocante à responsabilidade civil, a definição da ilicitude da publicidade enganosa pelo art. 37,
§ 1º, do CDC nada acrescenta à tutela liberada individualmente aos consumidores pela disciplina do
fornecimento viciado (CDC, arts. 18 a 20). Definiu o legislador, como vício, a disparidade entre a
realidade do produto ou serviço e as indicações constantes de mensagem publicitária. Desse modo,
sob a ótica da tutela dos interesses individuais, simples ou homogêneos, diante de enganosidade na
publicidade, têm os consumidores o direito de optar pela ação executória específica, pela redibitória
ou pela estimatória, sempre acompanhada da correspondente indenização por perdas e danos.
O âmbito de incidência próprio da definição de ilicitude pelo art. 37, § 1º, do CDC é o da tutela
dos interesses coletivos ou difusos. Se não houvesse o legislador previsto a proibição da
publicidade enganosa de modo expresso, os interesses individuais de consumidores vitimados por
enganosidade em anúncios publicitários estariam devidamente resguardados pela disciplina do
fornecimento viciado, mas seria bastante difícil a proteção dos interesses transindividuais.
No que diz respeito à publicidade abusiva, a definição do ilícito pelo art. 37, § 2º, do CDC
também tem o sentido de tutelar interesses transindividuais. Por certo, não existe hipótese de
abusividade lesiva a interesse individual, simples ou homogêneo, pois essa ideia contradiz o próprio
conceito de publicidade abusiva, que se caracteriza apenas com a ofensa a valor social.
O Chefe do Executivo, ao sancionar o projeto de lei do Código de Defesa do Consumidor
aprovado pelo Legislativo, apôs veto ao § 4º do art. 37, que estabelecia especificamente a
responsabilidade civil por perdas e danos do fornecedor que promovesse publicidade enganosa ou
abusiva. Da fundamentação do veto, percebe-se que a intenção primeira foi a de afastar a
possibilidade de imposição de contrapropaganda pelo Judiciário. O ato presidencial envolveu, no
entanto, também a questão relativa à responsabilidade civil, somente em função da exigência
constitucional de os vetos parciais abrangerem todo o dispositivo (CF, art. 66, § 2º). Não há, de fato,
na motivação do veto, qualquer elemento contrário à responsabilização civil do empresário que
promove publicidade enganosa ou abusiva.
A primeira impressão decorrente do veto, portanto, seria a de que a responsabilidade civil por
publicidade enganosa e abusiva, a exemplo do que se verifica quanto à simulada, fundar-se-ia
somente na previsão geral do art. 927 do Código Civil. E, consequentemente, estaria submetida ao
princípio da culpabilidade, a exigir a presença de intenção dolosa do anunciante na caracterização
do ilícito civil. Esse, inclusive, foi o meu entendimento inicial acerca da matéria (cf. Coelho,
1991:161). Melhor analisando a questão, no entanto, não há como insistir na tese da
indispensabilidade da culpa. Ou seja, a tipificação da publicidade enganosa ou abusiva, para fins de
responsabilização civil, independe de qualquer apreciação subjetiva, das intenções do fornecedor.
Mesmo na hipótese de não ter o empresário agido com o intuito de enganar os consumidores ou de
ofender valor social, responde pelos danos advindos de publicidade enganosa ou abusiva.
A responsabilidade civil do anunciante pelos danos que causa com publicidade enganosa ou abusiva é objetiva, independe de culpa ou dolo.
A afirmação da natureza objetiva da responsabilidade do fornecedor, por enganosidade ou
abusividade em mensagens publicitárias, decorre, inclusive, da interpretação sistemática do Código
de Defesa do Consumidor. Pois, se o seu art. 37 nada acrescenta, no plano da proteção individual, ao
que já havia previsto o legislador nos arts. 18 a 20, e na solução do fornecimento viciado, a regra é a
da responsabilidade objetiva, então, no plano da proteção transindividual, não se poderia liberar
tutela de menor abrangência. Não haveria sentido, lógico ou jurídico, em preceituar para o
consumidor individual a proteção da responsabilidade objetiva, reservando-se à coletividade dos
consumidores as dificuldades relacionadas à responsabilidade subjetiva. A interpretação sistemática
da legislação tutelar dos consumidores, portanto, dá bases à responsabilização civil dos empresários
por promoção de publicidade enganosa ou abusiva, independentemente da intenção subjetiva deles.
Estabeleceu o Código de Defesa do Consumidor a inversão do ônus de prova da veracidade e
correção da informação ou comunicação publicitária, atribuindo-o ao fornecedor (CDC, art. 38).
Desse modo, o consumidor, ou o legitimado a agir em nome da coletividade de consumidores (CDC,
art. 82), encontra-se dispensado de provar a enganosidade ou abusividade, na ação indenizatória. Por
definição do legislador, no campo do direito civil, cabe ao demandado demonstrar a inexistência do
ilícito na publicidade. Tem o empresário, portanto, o dever jurídico de manter organizados os dados
fáticos, técnicos e científicos em que embasa sua publicidade, para apresentá-los em juízo se e
quando demandado, sendo a omissão desse dever tipificada como crime, pelo art. 68 do CDC.
8. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA DO
ANUNCIANTE
O empresário patrocinador de publicidade enganosa ou abusiva está sujeito à pena administrativa
da contrapropaganda. Trata-se de sanção determinada pelo Poder Executivo, em qualquer nível, pela
qual se obriga o anunciante a divulgar anúncio capaz de desfazer a lesão decorrente da enganosidade
ou da abusividade. O anúncio corretivo deve ter a mesma forma, frequência e dimensão da
publicidade ilícita, e, de preferência, deve ser transmitido no mesmo veículo, local, espaço e
horário. Revela-se a contrapropaganda a maneira mais eficiente de dar cumprimento à vedação da
publicidade enganosa ou abusiva, pois possibilita a devida informação dos espectadores acerca da
realidade do fornecimento, ou destorce o valor social.
Muitas questões são suscitadas pela figura da contrapropaganda no direito brasileiro. Em primeiro
lugar, a sua natureza exclusivamente administrativa. O veto presidencial aposto no art. 37, § 4º, do
CDC afastou a possibilidade de a sanção ser determinada pelo juiz, ao fixar a condenação do
fornecedor promovente de publicidade enganosa ou abusiva. Pelo texto legislativo que entrou em
vigor, apenas a Administração Pública tem condições de impor a penalidade (CDC, arts. 56, XII, e
60).
Em nível federal, os órgãos administrativos competentes para a tutela dos consumidores, de
acordo com o respectivo regulamento, podem, de ofício ou atendendo a representação de interessado,
instaurar procedimento administrativo para apuração da promoção de publicidade enganosa ou
abusiva. Concedendo ao empresário acusado o mais amplo direito de defesa, pode a autoridade
federal competente, após a conclusão da fase probatória e da apresentação das alegações finais pelas
partes ou por seus advogados, decidir pela imposição da penalidade ou pelo arquivamento do
procedimento. Da decisão, pode a parte insatisfeita interpor recurso, segundo as normas
regulamentares específicas, para a autoridade hierarquicamente superior, até o encerramento da
instância administrativa, também definida pelas normas regulamentares.
Em nível estadual ou municipal, pode também a autoridade administrativa competente impor a
penalidade de contrapropaganda, observados os mesmos pressupostos estabelecidos para o nível
federal, isto é, o devido procedimento administrativo e a garantia de ampla defesa. A previsão da
competência de todas as esferas de governo, no tocante à fiscalização e controle da publicidade de
produtos e serviços, é expressa no art. 55, § 1º, do CDC (cf. Denari, 1991:398/399). É, no entanto,
indispensável a edição de específica e correspondente lei estadual ou municipal tutelar dos
interesses dos consumidores, estabelecendo a penalidade e disciplinando a sua imposição. Isso
porque as penas, em virtude da garantia fundamental da legalidade (CF, art. 5º, II), devem ser
instituídas por lei, e essa, em razão do princípio federativo, deve ser editada pelo órgão legislativo
de cada unidade da Federação determinada a coibir a publicidade enganosa ou abusiva. Apenas para
a autoridade administrativa de nível federal o requisito já se encontra suficientemente atendido pelo
Código de Defesa do Consumidor.
A pena administrativa da contrapropaganda pode ser imposta ao anunciante pelo Poder Executivo Federal, desde que assegurados os direitos
ao devido processo e ao contraditório. Também os Estados e Municípios podem aplicar a sanção, se possuírem leis próprias disciplinando a
matéria.
O Município e o Estado podem impor a contrapropaganda, ainda que a publicidade ilícita tenha
alcance que transponha os limites territoriais da entidade federativa sancionadora. Contudo, a pena
de contrapropaganda, referente à publicidade de veiculação regional ou nacional, determinada por
um Município, não tem eficácia além dos limites de seu território. Também a pena imposta por
autoridade estadual não ultrapassa os limites do Estado. O fornecedor, nessas situações, somente está
obrigado a promover a divulgação do anúncio corretivo em veículo de alcance municipal ou
estadual, respectivamente.
Os procedimentos concomitantemente instaurados por mais de um ente governamental não se
excluem, devendo o fornecedor defender-se em todos. Contudo, uma vez realizada a
contrapropaganda a nível nacional, em atendimento a penalidade imposta pelo governo federal,
perdem objeto os procedimentos estaduais e municipais em andamento, os quais devem ser
arquivados. Na mesma medida, realizada a contrapropaganda com alcance estadual, em cumprimento
de sanção definida pelo Poder Público estadual, perdem objeto os procedimentos em andamento
instaurados pelos Municípios pertencentes ao referido Estado. Ainda sobre o tema, o atendimento de
penalidade de contrapropaganda determinada por Município ou Estado dispensa o fornecedor de
veicular nova contrapropaganda nos respectivos limites territoriais desses entes federativos, caso
venha a ser condenado também em nível federal.
O arquivamento do procedimento administrativo instaurado por um dos entes da federação, por ter
a correspondente autoridade chegado à conclusão de inexistência de irregularidade na mensagem
publicitária, não inibe a instauração ou o prosseguimento de procedimentos administrativos por
outros entes governamentais acerca da mesma publicidade. Pelo contrário, o princípio federativo
garante a autonomia das decisões administrativas de cada nível de governo. Assim, mesmo que a
autoridade federal ou estadual tenha arquivado o procedimento administrativo acerca da
enganosidade ou abusividade de certa publicidade, pode o Município instaurar ou dar
prosseguimento ao seu próprio procedimento e, uma vez concluindo pela irregularidade, impor a
sanção da contrapropaganda.
Cuidando-se a contrapropaganda de medida administrativa, tem o Poder Público competência
para sancionar os fornecedores independentemente de ordem judicial, após o regular procedimento.
Claro que esse ato administrativo está, como os demais, sujeito ao controle jurisdicional e poderá o
apenado pleitear em juízo a sua desconstituição, provando eventual nulidade.
8.1. Efetividade da Contrapropaganda
Questão de suma importância diz respeito à efetividade da sanção de contrapropaganda. Em
outros termos, se o fornecedor simplesmente não divulgar o anúncio corretivo, como deve proceder o
Poder Público que lhe impôs a sanção? O projeto de Código de Defesa do Consumidor aprovado
pelo Legislativo previa a proibição da publicidade de todos os produtos e serviços do fornecedor,
enquanto ele não desse cabal cumprimento à pena. Essa previsão, porém, foi vetada pelo Chefe do
Executivo, de sorte que o texto em vigor deixou de estipular expressamente qualquer mecanismo de
efetivação da contrapropaganda.
Acerca do tema, propõe Mônica Caggiano que o Poder Público pode produzir e divulgar, ele
próprio, o anúncio corretivo, ressarcindo--se em seguida dos respectivos custos junto ao fornecedor
apenado. Isso em virtude da regra constitucional que atribui ao estado o dever de promover a defesa
do consumidor (CF, art. 5º, XXXII), a qual tem o significado de lhe impor atuações concretas
direcionadas à coibição de condutas nocivas à sociedade (1991:62). O entendimento busca
diretamente no texto constitucional a base de sua sustentação e aponta para adequado mecanismo de
efetivação da medida administrativa de imposição de contrapropaganda. Deve, portanto, a autoridade
competente fixar, em sua decisão condenatória, prazo razoável para que o fornecedor providencie a
veiculação do anúncio corretivo, sob pena de promovê-lo diretamente o Poder Público
(evidentemente a expensas do infrator que deverá, oportunamente, ressarcir o erário).
Dificuldade que pode surgir na imposição da contrapropaganda é a avaliação do cumprimento da
pena. A lei não pode sujeitar o fornecedor à aprovação prévia do anúncio corretivo pela autoridade
administrativa, porque haveria no caso censura à liberdade de expressão, inadmissível pela ordem
constitucional vigente (CF, art. 5º, IX). Desse modo, pode ocorrer de a autoridade apenadora não se
sentir satisfeita com a divulgação do anúncio corretivo. Pode entender, com efeito, que os
consumidores não foram suficientemente informados, ou que o valor ofendido não foi
convenientemente restaurado, de modo a permanecer, ainda que parcialmente, a enganosidade ou a
abusividade que deram ensejo à penalização. A autoridade administrativa pode, inclusive, considerar
que a irregularidade recrudesceu, tendo havido no próprio anúncio corretivo nova publicidade
enganosa ou abusiva.
No caso de a autoridade administrativa reputar o anúncio corretivo divulgado pelo fornecedor
insuficiente ao atendimento da pena que lhe foi imposta, é necessária a instauração de outro
procedimento, para a garantia do direito de ampla defesa. No novo procedimento, que poderá seguir
rito sumário de acordo com o regulamento próprio, o fornecedor encaminha as razões por que
entende cumprida a sanção, e a autoridade administrativa aprecia a questão levando em conta esses
argumentos. Convencida de que não se verificou o exato atendimento da penalidade, deve a
autoridade competente fixar novo prazo para a divulgação de anúncio corretivo adequado.
Persistindo a insuficiência, o Poder Público, dispensado de ouvir mais uma vez as alegações de
defesa do infrator, pode promover diretamente a contrapropaganda, dele cobrando em regresso o
respectivo custo de produção e veiculação.
Para se acautelar e evitar maiores gastos, o empresário apenado com contrapropaganda, por sua
própria iniciativa, poderá submeter à autoridade administrativa o projeto de anúncio corretivo,
elaborado por ele ou pela sua agência, formulando consulta a respeito da respectiva adequação ao
atendimento da penalidade imposta. Não poderá a Administração negar-se a atender à consulta, em
razão do direito constitucional de petição assegurado aos particulares (CF, art. 5º, XXXIV, a). O
fornecedor, diante de resposta afirmativa da adequabilidade do projeto e uma vez executando o
anúncio corretivo tal como submetido à apreciação do Poder Público, tem o direito de ver
reconhecido o integral cumprimento da penalidade.
8.2. Natureza da Responsabilidade Administrativa do Anunciante
Em relação às consequências de direito administrativo, a responsabilidade do empresário pela
veiculação de publicidade enganosa ou abusiva independe também de culpa ou dolo. A intenção que
movia o fornecedor ao produzir o anúncio ilícito é totalmente irrelevante para a autoridade
administrativa decidir pela imposição ou não da penalidade de contrapropaganda.
Recorde-se, por fim, que a contrapropaganda só tem cabimento na coibição de enganosidade ou
abusividade veiculada em publicidade inserida em relação de consumo. Não há previsão legal de
imposição da medida contra, por exemplo, o empregador anunciante de oferta de emprego, os
partidos políticos, o particular revendendo produtos usados ou o vendedor de bens ou serviços de
insumo.
9. RESPONSABILIDADE PENAL DO ANUNCIANTE
A moderna doutrina do direito penal ressalta que a acentuada fragmentação desse ramo jurídico
acaba retirando-lhe a esperada eficiência na repressão de condutas socialmente indesejadas. A
custosa e lenta máquina judiciária e a problemática administração dos presídios são dados de
realidade que recomendam, cada dia mais, a revisão de todo o aparato normativo de tipos penais, de
modo a otimizar o aproveitamento dos recursos estatais destinando-os à repressão apenas dos
comportamentos mais seriamente ofensivos à vida em sociedade. O princípio da intervenção
mínima do estado recomenda que se deve reservar à sanção pelo direito penal apenas as infrações
mais graves, valendo-se o legislador de medidas administrativas ou meramente indenizatórias,
sempre que isso se revelar suficiente à tutela dos interesses jurídicos lesados. Claro que a redução
da intervenção penal do estado deve ter o sentido de propiciar melhorias na repressão aos grandes
crimes, especialmente os organizados, aproveitando os recursos hoje consumidos pela coibição à
criminalidade de bagatela. O princípio da intervenção mínima não pode, com efeito, servir de
pretexto à impunidade das classes socialmente abastadas (cf. Flávio Gomes, 1992:88/95).
Na análise de muitos dos tipos penais construídos pelo legislador no Código de Defesa do
Consumidor, em especial os referentes à promoção de publicidade enganosa ou abusiva, a doutrina
penalista tem dedicado referências à desconsideração da tendência sintetizada pelo princípio da
intervenção mínima do estado (cf. Toron, 1990:70/71). Em Portugal, por exemplo, o Código da
Publicidade considera a desobediência à proibição de publicidade enganosa não crime, mas como
contraordenação, submetendo os infratores a coimas de valores diferenciados para as pessoas físicas
e jurídicas.
A melhor alternativa para a coibição da enganosidade ou abusividade na publicidade, parece-me,
seria a introdução no Brasil da experiência do direito de mera ordenação social. Isto é, a conduta
consistente em enganar consumidores ou ofender valores sociais por meio da atividade publicitária
não seria tipificada como crime, mas como contraordenação, cabendo por sanção o pagamento de
multa imposta pelo Poder Executivo. O legislador, no entanto, adotou solução típica de nossa
tradição jurídica e definiu como crime a ação de fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria
saber ser enganosa ou abusiva (CDC, art. 67), reservando pena mais grave à abusividade por
indução a conduta prejudicial ou perigosa à saúde ou segurança do consumidor (CDC, art. 68).
Originariamente, o projeto aprovado pelo Legislativo previa também a tipicidade penal da
publicidade simulada, mas nessa parte foi objeto de veto presidencial.
9.1. Elementos do Tipo do Art. 67 do CDC
A relação de consumo, tal como definida pelos arts. 2º e 3º do CDC, integra o tipo do crime de
promoção de publicidade enganosa ou abusiva (CDC, art. 67). Para que se consuma o ilícito penal, é
necessário que o anúncio veiculador da enganosidade ou abusividade tenha sido produzido e
divulgado a expensas de pessoa determinável como fornecedora (CDC, art. 3º) e seja destinado a
espectadores enquadráveis como consumidores (CDC, art. 2º), pelo menos em potencial (CDC, art.
29). A vítima, no crime de promoção de publicidade abusiva, não é necessariamente consumidor,
mas o corpo de delito deve ser forçosamente um anúncio dirigido aos consumidores. A enganosidade
ou abusividade veiculadas em peças publicitárias insertas em relações jurídicas não caracterizáveis
como de consumo, como por exemplo, a de oferta de emprego (relação de direito do trabalho), a de
propaganda eleitoral (relação de direito público), a de bens ou serviços de insumo (relação de
direito comercial) ou a de revenda de produtos usados (relação de direito civil), não dão ensejo à
tipificação do crime do art. 67 do CDC. Em outros termos, adotando-se a designação sugerida por
Benjamin, trata-se de crime de consumo próprio (1992:115).
Promover publicidade enganosa ou abusiva é praticar crime de consumo próprio; ou seja, apenas se caracteriza o ilícito penal, se o anúncio é
feito por fornecedor e dirigido a consumidor.
Na configuração da publicidade enganosa ou abusiva para fins penais, ao contrário do que se
verifica no âmbito das repercussões de direito civil e administrativo, é imprescindível a presença do
dolo na ação do empresário. Conforme acentua Damásio, em lição fundada na filiação do direito
penal brasileiro ao sistema da descrição específica dos crimes culposos, o tipo do art. 67 do CDC
trata exclusivamente de conduta dolosa. Mesmo na parte em que se reporta à enganosidade ou
abusividade que o agente deveria saber, o legislador não criou tipo penal culposo, mas fez
referência ao dolo eventual. Poderá haver posição divergente na doutrina, considerando na hipótese a
previsão de presunção de culpa. Mas como lembra Damásio, é essa presunção incompatível com o
princípio constitucional do estado de inocência, de modo que o entendimento mais acertado é o de
que o crime de promoção de publicidade enganosa ou abusiva é sempre doloso (1992:100/102).
9.2. Crime Formal e Crime Material de Publicidade Enganosa
Questão interessante acerca da tipicidade do crime de promoção de publicidade enganosa resulta
da entrada em vigor, ainda durante a vacatio legis do Código de Defesa do Consumidor, da Lei n.
8.137/90, que introduziu novos tipos penais tutelares das relações de consumo. No inciso VII do art.
7º dessa lei, prescreveu o legislador pena a quem induzir o consumidor em erro, mediante indicação
ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza ou qualidade de bem ou serviço, utilizando-se de
divulgação publicitária. A discussão gravita em torno da eventual revogação da menção à
publicidade enganosa contida no art. 67 do CDC.
A solução mais ajustada, segundo os penalistas, é a de considerar o crime do art. 67 do CDC
como formal, posto que não integra o tipo qualquer resultado decorrente da ação de fazer ou
promover publicidade enganosa; e interpretar o do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90 como crime
material, uma vez que a ação de induzir consumidor em erro pressupõe um resultado concreto da
divulgação publicitária (cf. Benjamin, 1991:198; Costa Jr., 1991:397). Isto é, se o empresário
promove publicidade com potencial enganoso, mas o resultado concretamente não se verifica e
nenhum consumidor é especificamente ludibriado pelo anúncio, então trata-se de crime apenado com
detenção de três meses a um ano, e multa (CDC, art. 67). Mas se o consumidor é concretamente
enganado pela mensagem publicitária, e adquire produto ou serviço em decorrência disso, então a
pena reservada ao empresário é a de detenção de dois a cinco anos ou multa (Lei n. 8.137/90, art. 7º,
VII).
A rigor, cuida o art. 67 do CDC de crime de mera conduta. Com efeito, diferem-se as hipóteses
de descrição típica de conduta sem resultado, em que o crime se encerra na mera ação do agente (por
exemplo, a violação do domicílio) e a de descrição típica de conduta com vistas a um determinado
resultado, sem que a verificação desse seja imprescindível à configuração do crime (por exemplo, a
extorsão). A doutrina, por vezes, reúne ambas a s situações sob a rubrica de crimes formais (cf.
Noronha, 1978:118); adotando-se, porém, a distinção proposta por Damásio, baseado nas lições em
Grispigni (1977:185), pode--se classificar com maior precisão o crime de promoção de publicidade
enganosa do Código de Defesa do Consumidor como sendo de mera conduta, e o do art. 7º, VII, da
Lei n. 8.137/90, como crime material, por ser necessário à sua consumação o resultado concreto da
indução em erro do consumidor.
Há outra distinção possível de se estabelecer entre o crime do art. 67 do CDC e o do art. 7º, VII,
da Lei n. 8.137/90. Naquele, delineou o legislador hipótese de crime de consumo próprio, em que a
relação jurídica de consumo, tal como preceituada por lei (CDC, arts. 2º e 3º), integra o tipo. Não se
pode pretender a sua incidência em relação jurídica interempresarial, ou disciplinada pelo direito
civil, por exemplo. Já o tipo do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90 estabelece crime de consumo
impróprio, ou seja, pertinente às publicidades insertas em relações jurídicas de qualquer natureza
(cf. Benjamin, 1992:114/115).
O crime de consumo do art. 67 do CDC é de mera conduta e próprio, ao passo que o do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90 é material e impróprio.
Desse modo, o empresário que veicula publicidade enganosa dirigida aos destinatários finais de
seus produtos ou serviços incorre em prática criminosa, ainda que, concretamente, nenhum
espectador tenha sido realmente enganado, ficando sujeito às penas do art. 67 do CDC. Por outro
lado, a pessoa anunciando a venda de seu carro usado, o veículo de propaganda divulgando a sua
eficiência comunicacional, o atacadista fazendo publicidade aos varejistas e o empregador
oferecendo vagas em sua empresa, somente cometem crime se a enganosidade da mensagem
publicitária efetivamente induzir em erro a pessoa com quem vierem a contratar. Submetem-se, em
decorrência, às penas do art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90.
10. RESPONSABILIDADE DA AGÊNCIA DE PROPAGANDA E
DO VEÍCULO DE COMUNICAÇÃO
De início, assente-se que a agência e o veículo respondem pela publicidade de seus próprios
serviços dirigida aos seus próprios consumidores, tal como os demais fornecedores. Quanto a isso,
inexistem especificidades a justificar maiores indagações. Ou seja, na promoção de seu próprio
fornecimento, a agência e o veículo são tratados, pela lei, do mesmo modo que os demais exercentes
de atividades econômicas direcionadas ao mercado consumidor. A questão controvertível diz
respeito à responsabilidade da agência pela criação, e a do veículo pela transmissão, de publicidade
enganosa ou abusiva referente a produtos ou serviços fornecidos por outro empresário, seu
contratante.
Nesse contexto, a agência de propaganda não tem responsabilidade civil ou administrativa pela
concepção, produção ou intermediação na veiculação de publicidade enganosa ou abusiva pertinente
a fornecimento alheio. As repercussões, em nível civil e administrativo, envolvem unicamente o
empresário anunciante. Ele é quem define os objetivos e alguns dos contornos básicos da
publicidade, ao elaborar o briefing, e, em última instância, aprova a proposta de campanha e os
filmes, anúncios e peças publicitárias correspondentes. Nada é feito pela agência de propaganda sem
o conhecimento, a orientação e a aprovação do anunciante, que por tudo assume integral
responsabilidade. Por essa razão, o Código de Defesa do Consumidor não prevê qualquer
responsabilidade da agência, no tocante à indenização por perdas e danos e à produção e veiculação
de anúncio corretivo, quando a publicidade de seu contratante é considerada enganosa ou abusiva.
Para alguns doutrinadores, se houver culpa ou dolo da agência, no desenvolvimento de seu
trabalho, pode ela ser responsabilizada civilmente (Benjamin, 1991:214). Entendo, contudo, que
somente seria cabível tal responsabilização em regresso, perante o anunciante condenado e, ainda
assim, em virtude de inexecução de contrato. Ou seja, para ter direito de ser ressarcido, o empresário
deve provar que a agência de propaganda deixou de atender às suas orientações específicas, ou ao
deliberado em reuniões mantidas com ela, e que, em decorrência de tal atitude, sobreveio-lhe
condenação por publicidade enganosa ou abusiva. Em outras palavras, cabe-lhe demonstrar o
descumprimento do contrato por parte da agência. Cuida-se, portanto, de matéria disciplinada pelo
direito civil, submetida à teoria da responsabilidade contratual e ao princípio da culpabilidade.
O veículo também não responde civil ou administrativamente pela transmissão de mensagem
publicitária alheia julgada enganosa ou abusiva, uma vez que não exerce e não pode exercer qualquer
controle sobre o respectivo conteúdo. O seu dever resume-se a informar a identificação do
anunciante a quem demonstre ter legítimo interesse em sabê-lo.
A agência de propaganda e o veículo não têm responsabilidade civil ou administrativa pelo anúncio enganoso ou abusivo. Poderá, no
entanto, caracterizar-se a responsabilidade penal de pessoas envolvidas com o processo de criação do anúncio.
Preceituou, porém, a lei tutelar dos consumidores a responsabilidade penal dos profissionais de
criação contratados pela agência de publicidade. Da conjugação dos arts. 67 e 75 do CDC, concluise a imputação das mesmas penas definidas para o fornecedor à pessoa que, de qualquer forma,
concorre para a consumação do crime de promoção de publicidade enganosa ou abusiva. Ora, os
profissionais de criação envolvidos na concepção da publicidade, por evidente, concorrem
diretamente para a definição do seu conteúdo, formato e das ideias, valores e contravalores
expressados. Assim, encontram-se sujeitos às mesmas penalidades reservadas ao empresário
anunciante, se tipificada a enganosidade ou abusividade. Cada um dos membros da equipe de
criação, bem como da gerência e diretoria da agência envolvidos especificamente com o trabalho de
concepção do anúncio ilícito, responderá na medida da respectiva culpa.
Os outros profissionais contratados pela agência, envolvidos apenas indiretamente com a
concepção, ou mesmo diretamente com a execução das peças publicitárias, não podem ser
responsabilizados penalmente. Assim, o pessoal de apoio administrativo, modelos, diretor de cena,
responsáveis pela iluminação, cenários, maquiagem, elenco, continuismo e todas as demais pessoas
de cujo trabalho depende a produção do anúncio não são tidas, em princípio, como sujeitas ao art. 75
do CDC. A melhor exegese desse dispositivo é a restritiva, de modo a aplicar-se apenas àqueles
diretamente responsáveis pela enganosidade ou abusividade transmitida pelo anúncio.
Por essa mesma razão, os responsáveis pelo veículo nunca podem ser responsabilizados
penalmente por terem transmitido publicidade enganosa ou abusiva. Claro que sem o concurso de
algum veículo de comunicação, não há como consumar-se materialmente o ilícito. Contudo, a atuação
de muitos outros agentes econômicos também é materialmente imprescindível para a concretização
do crime, mas a ninguém parece plausível imputar-lhes responsabilidade; por exemplo, o jornaleiro,
o fabricante do televisor ou do aparelho de rádio, o locador do imóvel com espaço para outdoor etc.
Por outro lado, não se pode conceder ao veículo de comunicação poderes de julgar os anúncios que
lhe são apresentados, ou, mais grave ainda, impor-lhes o dever de censura. Em suma, a tentativa de
se atribuir responsabilidade às empresas jornalísticas, ao rádio, TV e outros veículos pressupõe
interpretação que conduz a resultados juridicamente absurdos e, assim, deve ser afastada.
11. PUBLICIDADE COMPARATIVA
Uma importante e eficaz técnica de publicidade consiste na comparação entre o produto ou
serviço do anunciante e de seu concorrente. É a publicidade comparativa, em que se vê a inserção de
informações de produtos ou serviços tanto do anunciante como da concorrência, destacando que os
primeiros são de alguma forma superiores aos últimos. Há ordens jurídicas que tratam
especificamente da publicidade comparativa. O direito espanhol, por exemplo, reputa-a publicidade
desleal quando não apoiada em características essenciais, afins e objetivamente demonstráveis, ou se
compara produto ou serviço com outros não similares, desconhecidos ou de presença reduzida no
mercado. O Code de la Consommation francês contempla disposição semelhante. Na lei de tutela
dos consumidores uruguaia, admite-se expressamente a comparação, desde que objetiva e passível
de comprovação. No direito brasileiro, não existem normas jurídicas específicas sobre o tema. Mas,
ainda que claramente identificado o concorrente (ou concorrentes) e suas marcas, a técnica da
publicidade comparativa não pode ser, em princípio, considerada ilícita.
Como no Brasil, conforme já acentuado, a disciplina da atividade publicitária se insere no direito
de proteção aos consumidores, não existe norma jurídica proibindo ou limitando a publicidade
comparativa, em termos específicos. Isto porque, sob a perspectiva do consumidor, a publicidade
comparativa costuma ser altamente proveitosa, na medida em que possibilita o acesso a informações
sobre as diferenças entre os produtos e serviços oferecidos no mercado. Para a legislação
consumerista, apenas se caracterizaria o ilícito, na hipótese de veiculação de informações enganosas
ou de ocorrência de abusividade. Quer dizer, nesses casos, a publicidade comparativa será
sancionada não porque é comparativa, mas sim porque pode enganar os consumidores, ou agredir
valores sociais. Nada há, em outros termos, de específico na publicidade comparativa, que pudesse
representar, por si só, ofensa a direito de consumidor.
Por outro lado, dois aspectos não relacionados diretamente aos direitos dos consumidores têm
sido também destacados, no exame da publicidade comparativa. Em primeiro lugar, a possibilidade
de se verificar concorrência desleal; segundo, a de ofensa a direito marcário do concorrente. O
critério a se considerar, de novo, é o da enganosidade. Se não houver, na comparação veiculada pelo
anúncio, a possibilidade de o destinatário vir a ser enganado, não se verifica nem a concorrência
desleal, nem o desrespeito à marca do concorrente. Se são verídicas as informações levadas ao
destinatário da mensagem publicitária — ou, sendo falsas, não são apresentadas como verídicas —,
então não há enganosidade, elemento indispensável à configuração daqueles ilícitos.
No que diz respeito à concorrência desleal, conforme estudado (Cap. 7), o que caracteriza a
irregularidade da prática concorrencial é o meio utilizado e não as motivações, ou os objetivos do
empresário — sempre iguais aos da concorrência leal, isto é, a conquista de clientela. Ao promover
publicidade comparativa, o empresário possui sempre o objetivo de conquistar fatias dos
consumidores de um ou mais concorrentes, especialmente os mencionados no anúncio. Possui este
objetivo, tanto na hipótese de comparação lícita, como na desleal. O que distingue uma de outra
situação é a veiculação de informações falsas em detrimento de concorrente, em prejuízo da imagem
dele junto aos consumidores. Ou seja, a inidoneidade do meio empregado é o fator decisivo para que
a publicidade comparativa deixe de ser lícita, para os fins da disciplina jurídica da concorrência.
Note-se que a publicidade comparativa pode transmitir informações falsas, mas nem por isso
caracterizar-se como enganosa e desleal. Certa vez, o fabricante de refrigerantes Pepsi veiculou um
engraçado anúncio, no qual afirmava que cientistas haviam realizado pesquisa com dois macacos,
dando a um deles a sua bebida, e ao outro Coca--cola. Após um mês, o símio que consumira o
refrigerante concorrente apresentava melhoras consideráveis em sua coordenação motora, enquanto o
alimentado com Pepsi havia desaparecido. A cena seguinte mostrava o animal dirigindo um bug, na
praia, acompanhado de lindas mulheres. Um terceiro fabricante de refrigerantes aproveitou-se da
oportunidade, e veiculou anúncio mostrando o macaco, também acompanhado de belas modelos,
estacionando seu bug numa barraca da praia, para beber guaraná Antártica. Não há como negar que
esses anúncios apresentam informações totalmente falsas. Não houve pesquisa alguma, macaco
nenhum melhora coordenação motora por consumir refrigerantes, nem muito menos conquista garotas
ou conduz automóveis. Como visto acima (item 4), a veiculação de informações falsas não
caracteriza, por si só, a publicidade enganosa vedada pelo CDC. É necessário que a falsidade seja
ocultada do consumidor; em outras palavras, que as informações falsas sejam apresentadas como
verdadeiras. A questão ganha contornos um tanto diversos, quando se trata de concorrência desleal.
Neste caso, a lei reputa ilícita a veiculação de “afirmação falsa em detrimento de concorrente” (LPI,
art. 195, I). Quer dizer, mesmo que não exista enganosidade, e, portanto, não haja infração ao CDC, a
veiculação de informação falsa poderá significar concorrência desleal, caso a falsidade se refira ao
produto ou serviço concorrente, prejudicando sua imagem junto aos consumidores. Em conclusão: se
há, na publicidade comparativa, informação falsa, mas a falsidade é incapaz, de um lado, de induzir o
consumidor em erro e, de outro, de prejudicar a imagem de concorrente, então é lícita a comparação
(como ocorreu, aliás, no exemplo acima).
Finalmente, em relação aos direitos industriais do concorrente citado na publicidade comparativa,
não existe lesão de qualquer natureza pela simples menção da marca registrada que ele titulariza. É
certo que parte da doutrina condena a publicidade comparativa, como lesiva aos direitos marcários
do empresário. Para José Roberto Gusmão (1989), por exemplo, é irregular — verdadeira
contrafação — a simples menção da marca do concorrente, em anúncios, se não autorizada pelo
titular do registro, ainda que referida menção seja elogiosa. A propósito, o direito francês, com o
intuito de coibir o parasitismo comercial, proíbe a comparação, se o objetivo principal é o de tirar
vantagem da notoriedade de marca alheia (Pizzio, 1996:137/139).
No Brasil, a rigor, irregularidade na publicidade comparativa, frente ao direito industrial, somente
existe em duas hipóteses: 1ª) se, ao mencionar a marca ou marcas da concorrência, o empresário
anunciante as imita em seus produtos ou serviços ou, de qualquer forma, induz em confusão os
destinatários da mensagem (esta é, inclusive, a conduta tipificada como “crime contra a marca”: LPI,
art. 189, I); 2ª) se a publicidade comparativa pode contribuir para a degenerescência da marca (LPI,
arts. 130, III, e 131; Cap. 6, item 7.3). Se não ocorrem tais circunstâncias, porém, a comparação não
ofende direito de propriedade industrial.
A publicidade comparativa não é proibida. Ela, no entanto, como qualquer outra publicidade, deverá atender às regras da Lei da Propriedade Industrial e do Código de Defesa do Consumidor, para que não se caracterize concorrência desleal, usurpação de marca ou lesão a direito
do consumidor.
A comparação na publicidade, em si mesma considerada, não é, portanto, irregular. Aliás, a
concorrência desleal e a ofensa a direito industrial podem ocorrer por meio de anúncios
publicitários, mesmo que não possuam natureza comparativa. O empresário incorre em prática
concorrencial ilícita, se promove publicidade em que veicula falsa afirmação em detrimento de
concorrente, ainda que não apresente qualquer comparação com o seu produto ou serviço. A seu
turno, mesmo sem a apresentação de qualquer informação de cunho comparativo, ocorre lesão a
direito marcário se o anunciante exibe seu produto ostentando marca que imita a de concorrente, ou a
reproduz indevidamente. Em outros termos, o ilícito reside na concorrência desleal ou na usurpação
da marca, e nunca na comparação.
Sob o ponto de vista da ética publicitária, a publicidade comparativa também é admitida, desde
que observados alguns princípios (CBAP, art. 32). Assim, o principal objetivo dos anúncios que
apresentam a comparação entre produtos e serviços de concorrentes deve ser o esclarecimento do
consumidor. Claro que a primazia dada a este aspecto da mensagem não pode significar a
desnaturação da própria atividade publicitária. Quero dizer, a razão fundamental a motivar o
anunciante é, ainda e sempre, o aumento de suas vendas. O que se considera antiética é a mensagem
que compara produtos ou serviços, sem objetividade, apenas ressaltando aspectos exclusivamente
valorativos ou de cunho emocional. A apresentação de depoimentos de consumidores colhidos
aleatoriamente nas ruas, em que é dito preferirem a mercadoria do anunciante a outra,
especificamente identificada, inobserva a regra da autorregulação, porque a comparação não é
objetiva. Note-se que uma publicidade comparativa lícita (segundo o direito nacional vigente)
poderá ser condenável sob o ponto de vista da ética publicitária. A hipótese referida exemplifica o
caso: não há, na comparação subjetiva, ofensa a direito do consumidor, ao direito industrial ou à
disciplina da concorrência; mas desobediência a princípios da ética publicitária.
A publicidade comparativa, portanto, é permitida. Se, contudo, a comparação for enganosa (no
sentido de possibilitar a indução em erro dos consumidores e destinatários da mensagem), ela
transgride a legislação tutelar dos consumidores; se, por outro lado, a comparação veicular
informação falsa em detrimento do concorrente, caracteriza concorrência desleal; se não distinguir
de modo claro as marcas exibidas, dando ensejo a confusão entre os destinatários da mensagem, ou
contribuir para a degenerescência de marca notória, há lesão a direito industrial de concorrente. Não
se verificando nenhuma destas três hipóteses, no entanto, a publicidade que compara produtos ou
serviços do anunciante e da concorrência será absolutamente legal, jurídica; observando-se apenas
que, para atender aos preceitos éticos, ela deve pautar-se em critérios de objetividade.
Segunda Parte
TÍTULOS DE CRÉDITO
Capítulo 10
TEORIA GERAL DOS TÍTULOS DE CRÉDITO
1. CONCEITO DE TÍTULOS DE CRÉDITO
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele
mencionado. Esse conceito, formulado por Vivante e aceito pela unanimidade da doutrina
comercialista, sintetiza com clareza os elementos principais da matéria cambial. Nele se encontram,
ademais, referências aos princípios básicos da disciplina do documento (cartularidade, literalidade e
autonomia), de forma que o seu detalhamento permite a apresentação da teoria geral do direito
cambiário. É uma alternativa para o estudo do tema, mas a doutrina costuma iniciar a abordagem
desse ramo do direito comercial, com uma referência ao conceito de crédito, destacando que ele se
funda numa relação de confiança entre dois sujeitos: o que o concede (credor) e o que dele se
beneficia (devedor). Refere-se, comumente, à importância da circulação do crédito para a economia
e introduz os títulos de crédito como seu principal instrumento (cf. Requião, 1971, 2:297; Martins,
1972; Borges, 1971).
“Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado” (Vivante).
Proponho um caminho algo diferente, que parte do conceito apresentado acima: título de crédito é
um documento. Como documento, ele reporta um fato, ele diz que alguma coisa existe. Em outros
termos, o título prova a existência de uma relação jurídica, especificamente duma relação de crédito;
ele constitui a prova de que certa pessoa é credora de outra; ou de que duas ou mais pessoas são
credoras de outras. Se alguém assina um cheque e o entrega a mim, o título documenta que sou credor
daquela pessoa. A nota promissória, letra de câmbio, duplicata ou qualquer outro título de crédito
também possuem o mesmo significado, também representam obrigação creditícia.
O título de crédito não é o único documento disciplinado pelo direito. Há outros, que também
reportam fatos, que provam que certo sujeito é titular de um direito perante outro, ou perante
qualquer um. O instrumento escrito de contrato de locação documenta, entre outras obrigações, que o
locador é credor dos aluguéis devidos pelo locatário. A escritura pública de compra e venda de
imóvel prova a existência do negócio de aquisição do bem e discrimina as obrigações assumidas
pelas partes. A notificação de lançamento fiscal relata que o contribuinte é obrigado a pagar o tributo
ao estado. A sentença judicial condenatória representa o dever imposto à parte vencida de satisfazer
o direito reconhecido à vencedora. Além desses, muitos outros documentos têm a sua elaboração e
seus efeitos dispostos na lei ou em regulamentos: livros mercantis, nota fiscal, fatura, certificado de
registro de marca, apólice de seguro, diploma de curso superior etc.
O título de crédito se distingue dos demais documentos representativos de direitos e obrigações,
em três aspectos. Em primeiro lugar, ele se refere unicamente a relações creditícias. Não se
documenta num título de crédito nenhuma outra obrigação, de dar, fazer ou não fazer. Apenas o
crédito titularizado por um ou mais sujeitos, perante outro ou outros, consta de um instrumento
cambial. O contrato de locação empresarial, por exemplo, além de assegurar o crédito ao aluguel,
representa o dever de o locador respeitar a posse do locatário sobre o imóvel, ou de suportar a
renovação compulsória do vínculo, na forma da lei. Alguns dos títulos de crédito impróprios
asseguram direitos não creditícios ao seu portador: o warrant e o conhecimento de depósito, por
exemplo, unidos, representam a propriedade de mercadorias depositadas em Armazéns Gerais. A
característica de representar exclusivamente direitos creditórios, por si só, não é suficiente para
distinguir os títulos de crédito dos demais documentos representativos de obrigação. A apólice de
seguro, por exemplo, também representa apenas o crédito eventual do segurado ou do terceiro
beneficiário, perante a seguradora, e não se pode considerar título de crédito.
A segunda diferença entre o título de crédito e muitos dos demais documentos representativos de
obrigação está ligada à facilidade na cobrança do crédito em juízo. Ele é definido pela lei processual
como título executivo extrajudicial (CPC, art. 585, I); possui executividade, quer dizer, dá ao credor
o direito de promover a execução judicial do seu direito. Nem todos os instrumentos escritos que
documentam obrigações creditícias apresentam essa característica. Se o credor não dispuser de
documento a que a lei processual atribua natureza executória, a cobrança do crédito representado
deverá ser feita por meio de ação de conhecimento (ou monitória), normalmente mais morosa que a
execução. Esse atributo dos títulos de crédito — convém ressaltar — também não é exclusivo;
diversos outros documentos representativos de obrigação são também títulos executivos (sentença
judicial, contrato revestido de certas formalidades, apólice de seguro de vida etc.).
Em terceiro lugar, o título de crédito ostenta o atributo da negociabilidade, ou seja, está sujeito a
certa disciplina jurídica, que torna mais fácil a circulação do crédito, a negociação do direito nele
mencionado. A fundamental diferença entre o regime cambiário e a disciplina dos demais
documentos representativos de obrigação (que será chamada, aqui, de regime civil) é relacionada
aos preceitos que facilitam, ao credor, encontrar terceiros interessados em antecipar-lhe o valor da
obrigação (ou parte deste), em troca da titularidade do crédito. Em outros termos, se o credor tem o
seu direito representado por um título de crédito (por exemplo, uma nota promissória, duplicata ou
cheque pós-datado), ele pode facilmente descontá-lo junto ao banco de que é cliente. Na operação
de desconto bancário, o credor do título de crédito (descontário) transfere a titularidade do seu
direito ao banco (descontador) e recebe deste, adiantado, uma parte do valor do crédito. No
vencimento, o banco irá cobrar o devedor, lucrando com a diferença entre o valor facial do título e o
montante antecipado ao credor originário. Nem todos os documentos representativos de obrigação,
contudo, são descontáveis pelos bancos. Documentos sujeitos ao regime civil de circulação não
despertam o mesmo interesse de instituições financeiras, porque elas ficam em situação mais
vulnerável quanto ao recebimento do crédito. A negociabilidade dos títulos de crédito é decorrência
do regime jurídico-cambial, que estabelece regras que dão à pessoa para quem o crédito é
transferido maiores garantias do que as do regime civil. Compreende-se melhor essa diferença, após
o exame dos princípios do direito cambiário.
2. PRINCÍPIOS DO DIREITO CAMBIÁRIO
Do regime jurídico disciplinador dos títulos de crédito, podem-se extrair três princípios:
cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações cambiais. Como o atributo característico
dos títulos de crédito — o elemento que o distingue mais acentuadamente dos demais documentos
representativos de obrigações — é a negociabilidade, a facilidade da circulação do crédito
documentado; e como esse atributo deriva do regime jurídico a que se submetem, não é incorreto
apresentar os seus princípios informadores como os fatores essenciais de caracterização dos títulos
de crédito, como fazem, por exemplo, Fran Martins (1972:9/15), Rubens Requião (1971, 2:299/300)
e Newton de Lucca (1979:47/65).
2.1. Cartularidade
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele
mencionado. Desse adjetivo do conceito se pode extrair a referência ao princípio da cartularidade,
segundo o qual o exercício dos direitos representados por um título de crédito pressupõe a sua posse.
Somente quem exibe a cártula (isto é, o papel em que se lançaram os atos cambiários constitutivos de
crédito) pode pretender a satisfação de uma pretensão relativamente ao direito documentado pelo
título. Quem não se encontra com o título em sua posse, não se presume credor. Um exemplo concreto
de observância desse princípio é a exigência de exibição do original do título de crédito na instrução
da petição inicial de execução. Não basta a apresentação de cópia autêntica do título, porque o
crédito pode ter sido transferido a outra pessoa e apenas o possuidor do documento será legítimo
titular do direito creditício.
Como o título de crédito se revela, essencialmente, um instrumento de circulação do crédito
representado, o princípio da cartularidade é a garantia de que o sujeito que postula a satisfação do
direito é mesmo o seu titular. Cópias autênticas não conferem a mesma garantia, porque quem as
apresenta não se encontra necessariamente na posse do documento original, e pode já tê-lo
transferido a terceiros. A cartularidade é, desse modo, o postulado que evita enriquecimento
indevido de quem, tendo sido credor de um título de crédito, o negociou com terceiros (descontou
num banco, por exemplo). Em virtude dela, quem paga o título deve, cautelarmente, exigir que ele lhe
seja entregue. Em primeiro lugar, para evitar que a cambial, embora paga, seja ainda negociada com
terceiros de boa-fé, que terão direito de exigir novo pagamento; em segundo, para que o pagador
possa exercer, contra outros devedores, o direito de regresso (quando for o caso).
Pelo princípio da cartularidade, o credor do título de crédito deve provar que se encontra na posse do documento para exercer o direito nele
mencionado.
O princípio da cartularidade não se aplica, no direito brasileiro, inteiramente à duplicata
mercantil ou de prestação de serviços. Há hipóteses em que a lei franqueia ao credor desses títulos o
exercício de direitos cambiários, mesmo que não se encontre na posse do documento. Assim, prevê o
protesto por indicações (LD, art. 13, § 1º, in fine), meio pelo qual o credor da duplicata retida pelo
devedor pode protestá-la, apenas fornecendo ao cartório os elementos que a individualizam (nome
do devedor, quantia devida, fatura originária, vencimento etc.); prevê a lei, também, a possibilidade
de execução judicial da duplicata mercantil não restituída pelo devedor, desde que protestada por
indicações e acompanhada do comprovante da entrega e recebimento das mercadorias (LD, art. 15,
II). Em suma, o princípio da cartularidade é excepcionado, em parte, em relação às duplicatas.
Alguns doutrinadores preferem se referir à cartularidade por meio do conceito de “incorporação”,
noção que sugere o amálgama entre documento e direito de crédito (Borges, 1971:12/13). Dizem que
o título incorpora de tal forma o direito creditício mencionado, que a sua entrega a outra pessoa
significa a transferência da titularidade do crédito e o exercício das faculdades derivadas dessa não
se pode pretender sem a posse do documento. As duas consequências da cartularidade se
explicariam, assim, por meio da imagem da incorporação. Trata-se, a rigor, apenas de uma outra via,
para a explicação e compreensão do regime jurídico-cambial.
Para encerrar, registre-se que Newton de Lucca, sustentando-se na doutrina italiana, considera os
títulos de crédito inseridos na classe dos documentos dispositivos. Para ele, a teoria geral dos
documentos deve distinguir entre os meramente probatórios, que cumprem a função processual de
atestar a existência de uma relação jurídica autônoma; os constitutivos, que são essenciais para o
nascimento do direito, embora possam tornar-se dispensáveis no momento seguinte (o exemplo é o da
escritura de compra e venda de imóvel); e, finalmente, os dispositivos, que são sempre necessários
para o exercício do direito nele mencionado (1979:23/24). Em razão do princípio da cartularidade,
os títulos de crédito somente se podem enquadrar na última categoria.
2.2. LITERALIDADE
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele
mencionado. Nessa passagem, o conceito de Vivante se refere ao princípio da literalidade, segundo o
qual somente produzem efeitos jurídico-cambiais os atos lançados no próprio título de crédito. Atos
documentados em instrumentos apartados, ainda que válidos e eficazes entre os sujeitos diretamente
envolvidos, não produzirão efeitos perante o portador do título. O exemplo mais apropriado de
observância do princípio está na quitação dada em recibo separado. Quem paga parcialmente um
título de crédito deve pedir a quitação na própria cártula, pois não poderá se exonerar de pagar o
valor total, se ela vier a ser transferida a terceiro de boa-fé. Outro exemplo de aplicação do
princípio da literalidade se encontra na inexistência do aval, quando o pretenso avalista apenas se
obrigou em instrumento apartado. Se do título não consta a assinatura da pessoa de quem se pretendia
o aval, a garantia simplesmente não existe, em razão do princípio da literalidade.
“O direito decorrente do título é literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à extensão e às modalidades desse direito, é decisivo
exclusivamente o teor do título” (Messineo).
O princípio da literalidade projeta consequências favoráveis e contrárias, tanto para o credor,
como para o devedor. De um lado, nenhum credor pode pleitear mais direitos do que os resultantes
exclusivamente do conteúdo do título de crédito; isso corresponde, para o devedor, a garantia de que
não será obrigado a mais do que o mencionado no documento. De outro lado, o titular do crédito
pode exigir todas as obrigações decorrentes das assinaturas constantes da cambial; o que representa,
para os obrigados, o dever de as satisfazer na exata extensão mencionada no título (Borges,
1971:13). Se alguém deve mais do que a quantia escrita na cambial, só poderá ser cobrado, com base
no título, pelo valor do documento; se deve menos, não poderá exonerar-se de pagar todo o montante
registrado (Martins, 1972:10). Esses aspectos da literalidade são os responsáveis pela facilitação na
circulação do crédito documentado em título de crédito. O terceiro descontador tende a concordar
com a operação de desconto — ou seja, tem maior interesse em adiantar parte do valor do título,
para posteriormente cobrar a totalidade do devedor — porque pode, sem outra providência além da
leitura do documento, certificar-se da existência e extensão do crédito transacionado.
O princípio da literalidade, a exemplo do da cartularidade, não se aplica inteiramente à disciplina
da duplicata, cuja quitação pode ser dada, pelo legítimo portador do título, em documento em
separado (LD, art. 9º, § 1º).
2.3. Autonomia
Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele
mencionado. Agora a referência do conceito de Vivante alcança o mais importante dos princípios do
direito cambial, que é o da autonomia das obrigações documentadas no título de crédito. Segundo
esse princípio, quando um único título documenta mais de uma obrigação, a eventual invalidade de
qualquer delas não prejudica as demais.
Pelo princípio da autonomia das obrigações cambiais, os vícios que comprometem a validade de uma relação jurídica, documentada em título
de crédito, não se estendem às demais relações abrangidas no mesmo documento.
Para exemplificar a observância do princípio, imagine-se um negócio qualquer, de que tenha
originado crédito, documentado numa nota promissória: Antonio vende a Benedito o seu automóvel
usado, consentindo receber metade do preço no prazo de 60 (sessenta) dias. Nesse caso, a nota
representa a obrigação do comprador, na compra e venda do automóvel. O ato de compra será
chamado de “relação fundamental” ou “negócio originário”, porque o título foi emitido com o
propósito inicial de o documentar. Imagine-se, então, que Antonio é devedor de Carlos, em
importância próxima ao valor facial da nota promissória. Se Carlos concordar, o débito de Antonio
poderá ser satisfeito com a transferência do crédito que titulariza em razão da nota (esse ato de
transferência é o endosso). Nessa hipótese, o título que representava, originariamente, apenas a
obrigação de Benedito pagar a Antonio o saldo devedor do valor do automóvel, passou a representar
duas outras relações jurídicas: a de Antonio satisfazendo sua dívida junto a Carlos; e a de Benedito
devedor do título agora em mãos de Carlos. São três relações jurídicas documentadas numa única
nota promissória. Como as obrigações correspondentes são autônomas, umas das outras, eventuais
vícios que venham a comprometer qualquer delas não contagiam as demais. Quer dizer, se o
automóvel adquirido por Benedito possui vício redibitório, isso não o exonera de satisfazer a
obrigação cambial perante Carlos. Os problemas relacionados com a compra e venda do automóvel
usado podem influir na relação jurídica entre os participantes da relação originária do título (isto é,
Antonio e Benedito), mas não interferem minimamente com os direitos dos terceiros de boa-fé para
quem o mesmo título foi transferido.
As implicações do princípio da autonomia representam a garantia efetiva de circulabilidade do
título de crédito. O terceiro descontador não precisa investigar as condições em que o crédito
transacionado teve origem, pois ainda que haja irregularidade, invalidade ou ineficácia na relação
fundamental, ele não terá o seu direito maculado. No exemplo acima, Benedito deve pagar a nota
promissória a Carlos e, depois, demandar Antonio, para receber o ressarcimento do valor
despendido, bem como a indenização correspondente aos danos que sofreu. Note-se que ninguém está
obrigado, juridicamente, a documentar sua obrigação por meio de nota promissória; se aceita fazê-lo,
assume todas as consequências desse ato, inclusive as relacionadas com a circulação cambial do
crédito.
Em decorrência do princípio da autonomia, quem transaciona o crédito com possuidor ilegítimo
do título (aquisição a non domino) tem sua boa-fé tutelada pelo direito cambiário. Se há notícia do
desapossamento da cambial — furto, roubo ou extravio, quando se encontrava nas mãos de seu
legítimo titular —, o exequente terá direito ao recebimento, se demonstrar que, sob o ponto de vista
formal, os atos cambiais lançados no documento poderiam validamente ter-lhe transferido o direito
creditício. O executado apenas se exonera da obrigação se provar que o portador agiu de má-fé ou
cometeu falta grave, deixando de adotar as cautelas minimamente recomendáveis no comércio de
títulos (LU, art. 16).
O princípio da autonomia das obrigações cambiais se desdobra em dois outros subprincípios, o da
abstração e o da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. Qualifico-os de
subprincípios porque, na verdade, nada acrescentam ao que já se encontra determinado pelo
princípio da autonomia. A abstração e a inoponibilidade correspondem a modos diferentes de se
reproduzir o preceito da independência entre as obrigações documentadas no mesmo título de
crédito.
2.3.1. Abstração
Pelo subprincípio da abstração, o título de crédito, quando posto em circulação, se desvincula da
relação fundamental que lhe deu origem. Note-se que a abstração tem por pressuposto a circulação
do título de crédito. Entre os sujeitos que participaram do negócio originário, o título não se
considera desvinculado deste. No exemplo imaginado para a elucidação do princípio da autonomia
das obrigações cambiais, se Antonio não transfere o crédito para Carlos, e procura Benedito para
reclamar o pagamento da parcela devida pela compra do automóvel, por evidente, esse último pode
se liberar da obrigação (atente-se: o comprador pode rescindir a compra e venda civil, em razão de
vícios na coisa adquirida, desde que o faça no prazo decadencial de 6 meses, fixado no art. 445 do
CC; Benedito não será obrigado a pagar a nota promissória para Antonio, apenas se tomou a cautela
de exercer tempestivamente o seu direito).
A abstração, então, somente se verifica se o título circula. Em outros termos, só quando é
transferido para terceiros de boa-fé, opera--se o desligamento entre o documento cambial e a relação
em que teve origem. A consequência disso é a impossibilidade de o devedor exonerar-se de suas
obrigações cambiárias, perante terceiros de boa-fé, em razão de irregularidades, nulidades ou vícios
de qualquer ordem que contaminem a relação fundamental. E ele não se exonera exatamente porque o
título perdeu seus vínculos com tal relação. Ora, se assim é, confirma-se que a abstração não
acrescenta nenhuma consequência de relevo às decorrentes do princípio da autonomia. Daí seu
estatuto de subprincípio.
Quando o título de crédito é posto em circulação, diz-se que se opera a abstração, isto é, a desvinculação do ato ou negócio jurídico que deu
ensejo à sua criação.
Abstração é conceito ambíguo, na doutrina de direito cambiário. De um lado, se refere ao
desligamento da cambial em relação ao negócio originário, numa descrição alternativa às relações
jurídicas derivadas da autonomia das obrigações documentadas num único título; de outro lado, diz
respeito aos títulos de crédito cuja emissão não está condicionada a determinadas causas (os
abstratos, em contraposição aos causais). Para superar a ambiguidade, a expressão será usada, neste
Curso, apenas com o primeiro significado, de desvinculação do instrumento cambiário do ato
jurídico que originariamente representava, motivada pela sua circulação.
2.3.2. Inoponibilidade
Pelo subprincípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, o executado
em virtude de um título de crédito não pode alegar, em seus embargos, matéria de defesa estranha à
sua relação direta com o exequente, salvo provando a má-fé dele. São, em outros termos, inoponíveis
aos terceiros defesas (exceções) não fundadas no título. Ainda no exemplo criado para o princípio da
autonomia, nos embargos de Benedito, interpostos na execução judicial da nota promissória, a
matéria de defesa fica circunscrita apenas à relação jurídica que mantém com o exequente, Carlos.
Que relação é esta? Simples: Benedito é o devedor de uma nota promissória, de que é credor Carlos.
Nada mais. Assim, as exceções admitidas, na execução, dizem respeito somente a tal relação, ou
seja, à nota promissória. Por exemplo: a prescrição do título, a nulidade da nota por não preencher
os requisitos da lei, falsificação etc. (cf. Lucca, 1979:97/103). Não podem ser levantadas, nos
embargos de Benedito, questões relativas ao vício no automóvel adquirido de Antonio, porque essas
são exceções pessoais contra o vendedor do bem, em virtude das quais Carlos não pode ser
responsabilizado nem prejudicado. Como se vê, novamente se retorna ao ponto a que conduz o
princípio da autonomia das obrigações cambiais, justificando a qualificação da inoponibilidade
como subprincípio.
Lei Uniforme
Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o
sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do
devedor.
O simples conhecimento, pelo terceiro, da existência de fato oponível ao credor anterior do título
já é suficiente para caracterizar a má-fé. Não se exige, para o afastamento da presunção de boa-fé, a
prova da ocorrência de conluio entre o exequente e o credor originário da cambial. Basta a ciência
do fato oponível, previamente à circulação do título. Ainda no exemplo adotado, se Carlos sabe que
Benedito, no prazo da lei civil, notificou Antonio de sua intenção de rescindir a compra do
automóvel, em razão da descoberta dos vícios, e mesmo assim concorda em negociar a nota
promissória, sujeita-se à discussão, em juízo, da procedência do reclamo do executado. Será seu
encargo judicial demonstrar que não existia vício oculto no bem que Antonio vendeu a Benedito.
Note-se que o conhecimento pelo terceiro, da insatisfação do devedor cambial, em relação ao
negócio originário, não é causa desconstitutiva do direito creditício. Apenas amplia os limites da
matéria admitida à discussão em juízo. Se o devedor cambial não tem razão em suas alegações, ele
deve pagar o portador do título, ainda que o último tivesse, ao tempo da circulação, conhecimento da
insatisfação dele com a relação fundamental.
3. NATUREZA DA OBRIGAÇÃO CAMBIAL
Diz-se que os devedores de um título de crédito são solidários. Há, inclusive, quem identifique na
solidariedade entre os obrigados cambiais um postulado fundamental da disciplina jurídica dos
títulos de crédito (Miranda, 1956, 34:151). Por outro lado, a própria lei preceitua que o sacador,
aceitante, endossantes ou avalistas são solidaria-mente responsáveis pelo pagamento da letra de
câmbio (LU, art. 47). Mas é necessário tomar cuidado com essa noção, porque a solidariedade
cambial apresenta particularidades (cf. Martins, 1972:164, nota de rodapé).
Define-se a solidariedade passiva pela existência de mais de um devedor obrigado pela dívida
toda (CC, art. 264). Se duas ou mais pessoas são obrigadas perante um sujeito, haverá solidariedade
entre elas se o credor puder exigir a totalidade da obrigação de qualquer uma. Por esse conceito, é
correto afirmar-se a existência da solidariedade entre os devedores do título de crédito, porque
realmente o credor cambiário pode, atendidos determinados pressupostos, exigir de qualquer um
deles o pagamento do valor total da obrigação. Mas a semelhança entre a situação dos devedores
cambiários e os solidários cessa nesse ponto; quer dizer, de comum entre o regime cambial e a
disciplina civil da solidariedade existe apenas o fato de o credor poder exercer seu direito, pelo
valor total, contra qualquer um dos devedores. Quando se trata de discutir a composição, em
regresso, dos interesses desses devedores, a regra aplicável do direito cambial é diferente da
pertinente à solidariedade passiva.
É incorreta a afirmação de que os devedores de um título de crédito são solidários.
O devedor solidário que paga ao credor a totalidade da dívida pode exigir, em regresso, dos
demais devedores a quota-parte cabível a cada um (CC, art. 283). Se são três os obrigados, aquele
que adimpliu a obrigação junto ao titular do crédito, pode cobrar a terça parte do valor pago, de cada
um dos outros dois codevedores. É o regresso típico da solidariedade passiva, que, no entanto, não
se verifica entre devedores cambiais. Em primeiro lugar, nem todos têm direito de regresso: o
aceitante da letra de câmbio ou o subscritor da nota promissória, por exemplo, após pagarem o título
não poderão cobrá-lo de ninguém mais. Em segundo, nem todos os codevedores respondem
regressivamente perante os demais: os devedores anteriores respondem perante os posteriores, mas
esses não podem ser acionados por aqueles. Em terceiro lugar, em regra o regresso cambiário se
exerce pela totalidade e não pela quota-parte do valor da obrigação: apenas excepcionalmente, como
na hipótese de avais simultâneos, é que se verifica, entre os coavalistas, a partição proporcional da
obrigação.
São tão significativas as diferenças, no momento do regresso, entre os devedores cambiais e os
solidários, que considero mais correto afastar-se o paralelo. A natureza da obrigação cambiária
lembra a solidariedade passiva apenas no aspecto externo (a possibilidade de cobrança judicial da
dívida por inteiro, de qualquer um dos devedores), e, por isso, revela-se mais adequado estudar o
tema por uma perspectiva própria; quer dizer, abstraindo-se totalmente o regime da solidariedade
civil. O art. 285 do CC não se aplica às obrigações cambiais, posto que ela interessa a todos os
devedores.
O aspecto mais importante a se ressaltar, no tratamento da natureza da obrigação cambial, é a
existência de hierarquia entre os devedores de um mesmo título de crédito. Em relação a cada título,
a lei irá escolher um para a situação jurídica de devedor principal, reservando aos demais a de
codevedores. Assim, são devedores principais, na letra de câmbio, o aceitante; na nota promissória e
no cheque, o emitente; na duplicata, o sacado. Endossantes e avalistas são, em todos os títulos,
codevedores. Importantes diferenças decorrem dessa hierarquia, entre as quais se pode citar a
antecipação do vencimento do título só na falência do devedor principal, a necessidade do protesto
para a cobrança dos codevedores, e sua facultatividade para a execução contra o devedor principal
etc. Mais: há uma ordem (de anterioridade e posteridade) entre os devedores de um mesmo título,
que define quem tem direito de regresso contra quem. Os posteriores podem regredir contra os
anteriores, mas não vice-versa. Por exemplo, o avalista pode cobrar em regresso de seu avalizado,
mas o inverso não se admite; o endossante de letra de câmbio pode cobrá-la do sacador, mas este
não tem ação contra aquele.
Os devedores de título de crédito não são, portanto, propriamente solidários. Eles se submetem,
ao contrário, a um complexo sistema de regressividade, que é exclusivo da obrigação de natureza
cambial.
4. CLASSIFICAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO
Classificam-se os títulos de crédito segundo quatro critérios: a) quanto ao modelo; b) quanto à
estrutura; c) quanto às hipóteses de emissão; d) quanto à circulação.
Quanto ao modelo, os títulos podem ser vinculados ou livres. No primeiro caso, somente
produzem efeitos cambiais os documentos que atendem ao padrão exigido. É o caso do cheque e da
duplicata. Neles, o emitente não é livre para escolher a disposição formal dos elementos essenciais à
criação do título. O emitente do cheque deve necessariamente fazer uso do papel fornecido pelo
banco sacado, fornecido em talões, via de regra. Os empresários que emitem duplicata, por sua vez,
devem confeccioná-las obedecendo às normas de padronização formal definidas pelo Conselho
Monetário Nacional (LD, art. 27). Já os títulos de modelo livre são aqueles em que, por não existir
padrão de utilização obrigatória, o emitente pode dispor à vontade os elementos essenciais do título.
Pertencem a essa categoria a letra de câmbio e a nota promissória. Assim, qualquer papel,
independentemente da forma adotada, será nota promissória, desde que atendidos os requisitos que a
lei estabeleceu para esse título de crédito. São inteiramente dispensáveis, portanto, os formulários
impressos que se costumam vender nas papelarias.
Há títulos de crédito que podem adotar qualquer forma, desde que atendidos os requisitos da lei (são os de modelo livre), e há os que devem
atender a um padrão obrigatório (os de modelo vinculado).
Quanto à estrutura, os títulos de crédito se classificam em ordem de pagamento e promessa de
pagamento. As ordens de pagamento geram, no momento do saque, três situações jurídicas distintas:
a do sacador, que ordenou a realização do pagamento; a do sacado, para quem a ordem foi dirigida e
que irá cumpri-la, se atendidas as condições para tanto; e a do tomador, que é o beneficiário da
ordem, a pessoa em favor de quem ela foi passada. O cheque, a duplicata e a letra de câmbio são
títulos dotados dessa estrutura. Quando assino um cheque, dou ordem ao banco em que tenho conta,
para que proceda ao pagamento de determinada importância à pessoa para quem entrego o título. De
outro lado, a emissão de promessa de pagamento dá ensejo apenas a duas situações jurídicas, a do
promitente, que assume a obrigação de pagar, e a do beneficiário da promessa. A nota promissória
— o próprio nome o revela — é título pertencente a essa categoria. Por ela, o subscritor promete
pagar a certo sujeito, ou a quem ele repassar o direito, a importância assinalada.
Na ordem, o sacador do título de crédito manda que o sacado pague determinada importância; na promessa, o sacador assume o compromisso
de pagar o valor do título.
Pelo terceiro critério de classificação, que leva em conta as hipóteses de emissão, os títulos
podem ser causais, limitados e não causais (ou abstratos). São títulos causais os que somente podem
ser emitidos nas hipóteses autorizadas por lei. A duplicata mercantil, por exemplo, apenas pode ser
gerada para a documentação de crédito oriundo de compra e venda mercantil. Os títulos limitados
são os que não podem ser emitidos em algumas hipóteses circunscritas pela lei. A letra de câmbio,
por exemplo, não pode ser sacada pelo comerciante, para documentar o crédito nascido da compra e
venda mercantil; a lei das duplicatas o proíbe (LD, art. 2º). Por sua vez, os títulos não causais podem
ser criados em qualquer hipótese. São dessa categoria o cheque e a nota promissória. Atente-se que
essa classificação não está relacionada a diferentes formas de aplicação do regime de circulação
cambial. Títulos causais e limitados circulam, rigorosamente falando, sob o mesmo regime que os
abstratos (isto é, sujeitam-se à cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações cambiais).
Há títulos que só podem ser emitidos em determinadas hipóteses autorizadas por lei (causais), há os que não podem ser emitidos em certos
casos (limitados) e, finalmente, os que podem ser emitidos em qualquer situação (não causais).
De acordo com o derradeiro critério, classificam-se os títulos de crédito em três categorias: a) ao
portador; b) nominativos à ordem; c) nominativos não à ordem. A diferença entre elas reside no ato
que opera a circulação do crédito. Os títulos ao portador não ostentam o nome do credor e, por isso,
circulam por mera tradição; isto é, basta a entrega do documento, para que a titularidade do crédito
se transfira do antigo detentor da cártula para o novo. Os nominativos à ordem identificam o titular
do crédito e se transferem por endosso, que é o ato típico da circulação cambiária. Os nominativos
não à ordem, que também identificam o credor, circulam por cessão civil de crédito.
Registro que a classificação aqui apresentada, relativa à circulação, não coincide com a que se
encontra na doutrina em geral. De fato, usualmente se distinguem os títulos à ordem dos nominativos,
embora com a ressalva de que os dois ostentam o nome do credor. Para a doutrina tradicional,
repetindo lições de Vivante, os nominativos circulariam por meio de documento de transferência ou
registro em livro do emitente. Seria o caso das ações das sociedades anônimas (cf. Martins,
1972:20/21; Requião, 1971, 2:308/309; Borges, 1971:32/33). A solução de Vivante é aplicável ao
direito italiano, tendo em vista que o Codice Civile a adota de forma expressa. Para o direito
brasileiro, entretanto, não faz sentido. Rejeito esse modo de organizar a matéria, portanto, até mesmo
porque a classificação, para ser precisa, além de se limitar aos títulos de crédito próprios (isto é,
cuja disciplina se exaure no direito cambiário), deve incluir também a alternativa dos títulos com a
cláusula “não à ordem”.
Quanto à circulação, os títulos são ao portador ou nominativos, subdividindo-se estes em “à ordem” e “não à ordem”.
Por fim, quero deixar assente que os títulos de crédito impróprios (categoria que engloba o
conhecimento de transporte, os títulos de Armazéns Gerais, as cédulas de crédito e outros) não
devem ser lembrados na apresentação da classificação dos títulos de crédito. Por definição, aqueles
títulos estão sujeitos a regime jurídico próximo ao cambial. Ou seja, trata-se de documentos que
apenas em parte se submetem ao direito cambiário. Daí a ideia de impropriedade na sua
identificação. Ora, como não se encontram totalmente regidos pelo direito cambial, não são títulos de
crédito, não se classificam como tais.
5. TÍTULOS DE CRÉDITO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
O Código Civil de 2002 contém normas sobre os títulos de crédito (arts. 887 a 926) que se
aplicam apenas quando compatíveis com as disposições constantes de lei especial ou se inexistentes
estas (art. 903). De modo sumário, são normas de aplicação supletiva, que se destinam a suprir
lacunas em regramentos jurídicos específicos. De qualquer modo, as normas do Código Civil não
revogam nem afastam a incidência do disposto na Lei Uniforme de Genebra, Lei do Cheque, Lei das
Duplicatas, Decreto n. 1.103/1902 (sobre warrant e conhecimento de depósito) e demais diplomas
legislativos que disciplinam algum título particular (próprio ou impróprio). Apenas quando a lei cria
um novo título de crédito e não o disciplina exaustivamente, nem elege outra legislação cambial
como fonte supletiva de regência da matéria, tem aplicação o previsto pelo Código Civil.
As normas sobre títulos de crédito do Código Civil só se aplicam quando a lei especial (LUG, LC, LD etc.) disciplina o assunto de igual modo.
Se esta contiver dispositivo com comando diverso, não se aplica o Código Civil.
A disciplina estabelecida pelo Código Civil seria também aplicável, segundo alguma doutrina,
aos títulos de crédito inominados ou atípicos, isto é, os criados pelos próprios agentes econômicos
independentemente de previsão legal (por todos, ver Penteado, 1995). De qualquer forma, é
incontroverso que o estudo dos principais títulos de crédito (letra de câmbio, nota promissória,
cheque, duplicata, warrant, cédula de crédito bancário etc.) prescinde, por completo, do exame das
disposições contidas no Código Civil, já que a eles não se aplicam em nenhuma hipótese.
Voltarei a esse tema mais à frente (Cap. 15), oportunidade em que serão tratados com mais vagar
os títulos de crédito não regulados e os inominados.
6. A INFORMÁTICA E O FUTURO DO DIREITO CAMBIÁRIO
Os títulos de crédito surgiram na Idade Média, como instrumentos destinados à facilitação da
circulação do crédito comercial. Após terem cumprido satisfatoriamente a sua função, ao longo dos
séculos, sobrevivendo às mais variadas mudanças nos sistemas econômicos, esses documentos
entram agora em período de decadência, que poderá levar até mesmo ao seu fim como instituto
jurídico. No mínimo, importantes transformações, já em curso, alterarão a substância do direito
cambiário. O quadro é provocado pelo extraordinário progresso no tratamento eletrônico das
informações, o crescente uso dos recursos da informática no cotidiano da atividade de administração
do crédito. De fato, o meio eletrônico vem substituindo paulatina e decisivamente o meio papel como
suporte de informações. O registro da concessão, cobrança e cumprimento do crédito comercial não
fica, por evidente, à margem desse processo, ao qual se refere a doutrina pela noção de
desmaterialização do título de crédito. Quer dizer, os empresários, ao venderem seus produtos ou
serviços a prazo, cada vez mais não têm se valido do documento escrito para o registro da operação.
Procedem, na verdade, à apropriação das informações, acerca do crédito concedido, exclusivamente
em meio eletrônico, e apenas por esse meio as mesmas informações são transmitidas ao banco para
fins de desconto, caução de empréstimos ou controle e cobrança do cumprimento da obrigação pelo
devedor. Os elementos identificadores do crédito concedido, na hipótese de inadimplemento, são
repassados pelos bancos aos cartórios de protesto apenas em meio eletrônico.
É certo que as informações arquivadas em banco de dados eletrônico são a base para a expedição
de alguns documentos (em papel) relativos à operação. Os bancos emitem, a partir delas, o
instrumento para a quitação da dívida, em qualquer agência de qualquer instituição financeira no país
(a “guia de compensação bancária”); os cartórios de protesto dos grandes centros geram a intimação
do devedor, e lavram o instrumento de protesto, igualmente a partir das informações que lhes são
transmitidas em meio eletrônico. Nenhum desses papéis, contudo, é título de crédito. Assim, quando
a obrigação registrada por processo informatizado vem a ser satisfatoriamente cumprida, em seu
vencimento, ela não chega jamais a ser materializada num título escrito. A sua emissão não se
verifica sequer na hipótese de descumprimento do dever pelo adquirente das mercadorias ou
serviços, tendo em vista a executividade da duplicata eletrônica (Cap. 14).
Diante do quadro da desmaterialização dos títulos de crédito, vale a pena repassar rapidamente os
princípios do direito cambiário, com vistas a conferir se eles ainda têm atualidade. Quer dizer, do
que se está falando, hoje em dia, na referência à cartularidade, literalidade e autonomia das
obrigações cambiais? O primeiro estabelece que o exercício dos direitos cambiais pressupõe a
posse do título. Ora, se o documento nem sequer é emitido, não há sentido algum em se condicionar a
cobrança do crédito à posse de um papel inexistente. Representa uma dispensável formalidade
exigir-se a confecção do título em papel, se as relações entre credor e devedor documentaram-se
todas independentemente dele. O princípio da literalidade, por sua vez, preceitua que apenas geram
efeitos cambiais os atos expressamente lançados na cártula. Novamente, não se pode prestigiar
absolutamente o postulado fundamental do direito cambiário, na medida em que não existe mais o
papel, a limitar fisicamente os atos de eficácia cambial. Pode-se, contudo, falar num princípio de
literalidade adaptado ao meio eletrônico: “o que não está no arquivo eletrônico, não está no mundo”.
O fim do papel também põe em questão algumas outras passagens da doutrina cambial, como, por
exemplo, a distinção entre endosso em branco e em preto, a localização apropriada do aval (no
verso ou anverso do documento), a existência de títulos ao portador etc.
O registro da concessão e circulação do crédito em meio eletrônico tornou obsoletos os preceitos do direito cambiário intrinsecamente ligados
à condição de documento dos títulos de crédito. Cartularidade, literalidade (em certa medida), distinção entre atos “em branco” e “em preto”
representam aspectos da disciplina cambial desprovidos de sentido, no ambiente informatizado.
O único dos três princípios da matéria que não apresenta incompatibilidade intrínseca com o
processo de desmaterialização dos títulos de crédito é o da autonomia das obrigações cambiais, e os
seus desdobramentos no da abstração e inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boafé. Será a partir dele que o direito poderá reconstruir a disciplina da ágil circulação do crédito,
quando não existirem mais registros de sua concessão em papel. O próprio conceito de título de
crédito, que Vivante enunciou há quase um século (item 1), está atualmente defasado, em razão da
difusão do suporte eletrônico. Título de crédito não pode mais ser conceituado como o “documento
necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”, mas sim o “documento,
cartular ou eletrônico, que contempla a cláusula cambial, pela qual os coobrigados expressam a
concordância com a circulação do crédito nele mencionado de modo literal e autônomo”.
Esse Curso, embora ainda se debruce sobre o estudo dos títulos de crédito em sua feição
tradicional — útil, sem dúvida, para a completa formação do estudante —, não ignora a extrema
desatualidade desse capítulo da doutrina comercialista.
Capítulo 11
CONSTITUIÇÃO E EXIGIBILIDADE DO
CRÉDITO CAMBIÁRIO
1. INTRODUÇÃO
No estudo da teoria geral dos atos cambiários, deve-se eleger um dos títulos de crédito para
servir de referência. E o mais apropriado, para essa finalidade, é a letra de câmbio, cuja estrutura
possibilita o exame de todos os aspectos relevantes dos atos de constituição e exigibilidade do
crédito cambial. É esta a melhor alternativa, sob o ponto de vista didático, para o desenvolvimento
da matéria (todos os autores, aliás, a adotam: cf., por exemplo, Bulgarelli, 1979b). A opção
apresenta apenas um inconveniente: no Brasil, quase não existe a letra de câmbio. Como o direito
brasileiro criou um título de crédito mais operacional — a duplicata mercantil —, a letra de câmbio
deixou de ser utilizada pelos comerciantes, e, hoje, é até mesmo proibida a sua emissão, na compra e
venda mercantil e na prestação de serviços. O estudo do direito cambiário fica, assim, forçosamente
um tanto defasado com a realidade, porque se inicia por — e se detém no detalhamento de — um
título de pouquíssima utilização, mas que serve, melhor que qualquer outro, à completa apresentação
dos institutos jurídico-cambiários.
A origem histórica da letra de câmbio situa-se na península itálica, durante a Idade Média. Como
se sabe, o sistema europeu de organização política, naquele tempo, era o feudal, caracterizado pela
descentralização do poder — o estado central e forte é criação da Era Moderna. Sendo o poder
espalhado e pontual, cada feudo ou burgo possuía, sob o domínio de um nobre, sua organização
política relativamente autônoma, o que, via de regra, se traduzia na adoção de uma moeda própria.
Os comerciantes necessitavam, assim, de um instrumento que possibilitasse a troca de diferentes
moedas, quando, com o intuito de realizar negócios, deslocavam-se de um lugar para outro. Criou-se,
então, a seguinte sistemática: o banqueiro recebia, em depósito, as moedas com circulação no burgo
de seu estabelecimento, e escrevia uma carta ao banqueiro estabelecido no local de destino do
mercador depositante. Nessa carta, ele dizia ao colega que pagasse ao comerciante, ou a quem ele
indicasse, em moeda local, o equivalente ao montante depositado. Posteriormente, os banqueiros
faziam o encontro de contas das cartas emitidas e recebidas. Dessa carta (em italiano, lettera), que
viabilizava o câmbio de moedas, originou-se a letra de câmbio.
Distinguem-se, usualmente, três períodos na história do título: o italiano, em que a letra está
associada ao deslocamento do titular do crédito e à troca de moedas diferentes (até o último terço do
século XVII); o francês, em que é exigida uma provisão de recursos do emitente junto ao destinatário
(de 1673, com a “ordenança do comércio terrestre”, em França, até o transcorrer do século XIX); e o
alemão, em que a letra adota as características atuais de instrumento suficiente de garantia de direito
creditício, independente de outras relações jurídicas entre as partes (desde 1848, com a edição da
Allgemeine Deutsche Wechselordnung, a lei da União Aduaneira Alemã). A importância do título
para o desenvolvimento do comércio internacional, por outro lado, deu ensejo, no início do século
XX, a iniciativas diplomáticas que redundaram, em 1930, na assinatura da Convenção de Genebra
para a adoção de uma lei uniforme sobre letra de câmbio e nota promissória. Diversos países, na
oportunidade, assumiram o compromisso recíproco de inserirem, nos respectivos direitos, uma
legislação que reproduzisse a lei uniforme proposta pela Convenção (Alemanha, Áustria, Bélgica,
Brasil, Colômbia, Dinamarca, Equador, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Itália,
Iugoslávia, Japão, Luxemburgo, Noruega, Holanda, Polônia, Portugal, Suécia, Suíça,
Tchecoslováquia e Turquia). Uniformizando-se o direito sobre a matéria cambial, os acordos
comerciais entre empresas sediadas em países diferentes podiam ser concluídos com maior
facilidade. Embora a importância da uniformização para o comércio internacional seja, hoje,
reduzida, em razão da globalização do sistema financeiro e do desenvolvimento de outros
instrumentos creditícios mais aperfeiçoados — como, por exemplo, o crédito documentário —, é
indiscutível a sua relevância para o direito.
A disciplina da constituição e exigibilidade do crédito cambiário é objeto da Convenção de Genebra, que prevê a sua uniformização nos
direitos dos países signatários, entre os quais o Brasil.
O Brasil, quando participou da Convenção de Genebra, já possuía um direito cambiário bastante
evoluído, representado pelo Decreto n. 2.044, de 1908. Nesse diploma legislativo de alta qualidade
técnica, encontram-se as características da letra de câmbio introduzidas na Europa, menos de meio
século antes (no início do período alemão). Ou seja, o decreto (recepcionado como lei ordinária, nas
ordens constitucionais subsequentes) disciplina-a como título de crédito de emissão independente de
prévio contrato específico, entre as partes envolvidas. A existência de provisão entre o emitente do
título e o seu destinatário não é condição para o saque. Talvez em razão de contar com aparato
legislativo atualizado, o Brasil acabou retardando o cumprimento da Convenção de Genebra. Apenas
em 1966, foi editada norma com intuito de atender ao compromisso internacional assumido em 1930:
o Decreto n. 57.663, que “promulga as Convenções para adoção de uma Lei Uniforme em matéria de
letras de câmbio e notas promissórias”.
Mas a via escolhida, em 1966, para fazer valer a Convenção de Genebra no direito brasileiro, não
era tecnicamente a correta. O Decreto n. 2.044/08 possui estatuto de lei ordinária, e sua revogação
não pode ocorrer por meio de simples decreto do Poder Executivo, mas apenas por outra lei. O meio
adequado de atender ao compromisso internacional teria sido, assim, o envio de um projeto de lei ao
Poder Legislativo, que reproduzisse o texto uniforme. Após a regular tramitação, aprovação e
sanção, o projeto tornar-se-ia lei vigente, revogando a norma de 1908.
A partir do início dos anos 1970, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se firmou no
sentido de que a lei uniforme de Genebra, malgrado a ausência de apuro técnico no ato que a
introduziu no direito brasileiro, estava em vigor. Porém, a questão não se resolve tão facilmente
assim. A Convenção de Genebra permite que o país, ao aderir, se reserve à faculdade de fazer
algumas pequenas mudanças no texto uniforme, ao introduzi-lo em seu ordenamento. Essas mudanças
somente podem ser as previstas pela mesma Convenção, para fins de se garantir o propósito
fundamental da uniformidade. Pela sistemática adotada, agregaram-se à Convenção dois anexos: o
texto da lei uniforme (Anexo I) e as reservas admitidas (Anexo II). Como o Brasil assinalou 13
reservas, a lei uniforme não vigora inteiramente entre nós. Nas matérias reservadas, permanecem em
vigor as normas correspondentes do Decreto n. 2.044/08 — que compõem a chamada lei cambial
interna. Por outro lado, como não se operou revogação expressa desse decreto, por força do art. 2º,
§ 1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, os dispositivos correspondentes à matéria
não disciplinada pela lei uniforme continuam vigentes.
Em suma, para a delimitação do direito positivo brasileiro sobre letra de câmbio e nota
promissória, devem-se adotar os seguintes critérios: a) em princípio, vigora a lei uniforme de
Genebra (Anexo I da Convenção de 1930); b) em virtude de reservas assinaladas pelo Brasil, não
vigoram da lei uniforme os arts. 10 (reserva do art. 3º do Anexo II), 41, terceira alínea (reserva do
art. 7º do Anexo II), 43, números 2 e 3 (reserva do art. 10 do Anexo II), e 44, quinta e sexta alíneas
(reserva do art. 10 do Anexo II); c) o art. 38 da lei uniforme deve ser completado nos termos do art.
5º do Anexo II, ou seja, as letras de câmbio pagáveis no Brasil devem ser apresentadas ao aceitante
no próprio dia do vencimento; d) a taxa de juros moratórios não é a constante dos arts. 48 e 49 da lei
uniforme, mas a autorizada pelo direito brasileiro para as operações cíveis ou bancárias em geral
(reserva do art. 13 do Anexo II); e) permanecem em vigor do Decreto n. 2.044/08 os arts. 3º (relativo
aos títulos sacados incompletos), 10 (sobre a pluralidade de sacados), 14 (quanto à possibilidade de
aval antecipado), 19, II (em decorrência da reserva ao art. 10 do Anexo II), 20 (salvo quanto às
consequências da inobservância do prazo), 36 (pertinente à ação de anulação de títulos), 48 (quanto à
ação cabível, após a prescrição da execução da letra) e 54, I (referente à denominação “nota
promissória”).
O exato alcance das reservas assinaladas e, em decorrência, a lista de dispositivos vigentes da lei
cambial interna suscitam, na doutrina, algumas divergências (cf. Martins, 1972: 60/77; Mercado Jr.,
1966:133/139). Nenhuma de repercussão prática relevante.
2. SAQUE DA LETRA DE CÂMBIO
Como se trata de uma ordem de pagamento, a letra de câmbio, ao ser emitida, dá ensejo a três
situações jurídicas distintas: a do sacador, a do sacado e a do tomador. Ressalte-se que se fala em
situações jurídicas e não em sujeitos de direito. Quer dizer, a mesma pessoa pode ocupar
simultaneamente mais de uma situação: a lei uniforme, no art. 3º, autoriza o saque da letra à ordem do
próprio sacador (nesse caso, a mesma pessoa ocupa as situações de sacador e tomador) ou sobre ele
(hipótese em que ocupa as situações de sacador e sacado). Essas são as situações jurídicas
correspondentes ao saque da letra, que lembram as posições em que se encontravam, na Idade
Média, o banqueiro que escrevia a carta, o banqueiro destinatário da carta e o comerciante que
depositava seu dinheiro junto ao primeiro para receber, em moeda local, do segundo.
O sacador da letra de câmbio é a pessoa que dá a ordem de pagamento; o sacado, a pessoa para
quem a ordem é dada; e o tomador, o beneficiário da ordem. A letra de câmbio, assim, é a ordem que
o sacador dá ao sacado, no sentido de pagar determinada importância ao tomador. A redação do
título, desse modo, será algo como: “aos trinta e um dias do mês de janeiro de ..., pagará V. S ª
(sacado) por essa única via de letra de câmbio, a importância de $ 100 a Fulano (tomador). Local,
data e assinatura (do sacador)”. Emitido pelo sacador, o título é entregue ao tomador, que deverá
procurar o sacado, normalmente duas vezes: a primeira, para consultá-lo sobre se aceita ou não
cumprir a ordem; caso aceite, a segunda, para receber o pagamento.
O saque da letra, portanto, é o ato de criação do título de crédito. É por meio dele que o sacador
dá nascimento à letra de câmbio. A doutrina comercialista tradicionalmente distingue entre criação e
emissão, ensinando que o primeiro ato corresponde à confecção material do documento, que se
conclui com a aposição da assinatura do sacador no papel; enquanto o último é a entrega do
documento ao tomador, ato pelo qual o título efetivamente ganha importância econômica e passa a
gerar direitos (cf., por todos, Borges, 1971:21/24). A única consequência da distinção entre esses
dois momentos, contudo, diz respeito à situação em que o título já se encontra materialmente
confeccionado, representando a declaração unilateral do sacador no sentido de favorecer o tomador
com a ordem de pagamento, mas a entrega do documento a este é feita contra a sua vontade. Em
outros termos, a distinção é útil para dispor sobre o tratamento jurídico da situação em que o
sacador, após assinar a letra, ainda não está completamente convencido da pertinência do ato
praticado, e quer refletir melhor; mas, por furto, desvio ou simples desencontro, a letra é entregue ao
tomador. Somente nesse caso é relevante a distinção proposta.
Para mim, se a questão no passado despertava algum interesse, especialmente diante da
incoerência do Código Civil brasileiro (cf. Lucca, 1979:89/94), ela perdeu toda a atualidade, com a
entrada em vigor da lei uniforme de Genebra, cujo art. 16 disciplina a matéria, assegurando ao
portador de boa-fé o recebimento do crédito. Distinguir criação e emissão fica, pois, irrelevante, na
medida em que, uma vez confeccionada a cártula, a mesma regra incide na hipótese de posse do
tomador, seja legítima ou ilegítima: se ele estava de boa-fé, terá direito ao crédito. Portanto, nesse
Curso, criação e emissão são sinônimos; designam ambas expressões o mesmo ato cambiário, o
saque do título de crédito.
2.1. Requisitos da Letra de Câmbio
Para que um documento produza os efeitos de letra de câmbio, ele deve atender a determinados
requisitos legais. Sem o atendimento desses, o escrito poderá eventualmente servir à tutela de
direitos, no âmbito civil (quer dizer, como simples instrumento de prova da existência da obrigação,
numa ação de conhecimento), mas não poderá circular, ser protestada ou executada como uma
cambial. Assim, a letra de câmbio é considerada um documento formal, no sentido de que deve
ostentar certos elementos para fundamentar a aplicação do regime jurídico- -cambial. São eles (LU,
arts. 1º e 2º): a) as palavras “letra de câmbio”, insertas no próprio texto do título, na língua
empregada para a sua redação; b) uma ordem incondicional de pagar quantia determinada; c) o nome
da pessoa que deve pagar (sacado); d) o nome da pessoa a quem, ou à ordem de quem, deve ser feito
o pagamento (tomador); e) a assinatura de quem dá a ordem (sacador); f) data do saque; g) lugar do
pagamento ou a menção de um lugar ao lado do nome do sacado; h) lugar do saque ou a menção de
um lugar ao lado do nome do sacador.
O documento para produzir os efeitos da letra de câmbio deve atender aos requisitos essenciais estabelecidos em lei.
Examine-se cada um dos requisitos.
O primeiro (a) se convencionou chamar de “cláusula cambiária”, e é a identificação do tipo de
título de crédito que se pretende gerar, com a confecção daquele documento escrito, em particular.
Em outros termos, se o documento se apresenta como uma letra de câmbio, é dispensável que ostente
a cláusula à ordem, para permitir a circulação cambial. No caso de o instrumento escrito atender a
essa formalidade, presumem-se concordes as partes quanto à sua circulação, seguindo as regras do
direito cambiário. A menção das expressões identificadoras do título de crédito faz presumir a
inserção da cláusula à ordem e, consequentemente, sua transferibilidade mediante endosso.
Note-se que, em Portugal, o título é denominado simplesmente “letra”, e a tradução do texto da lei
uniforme, adotada pelo decreto que a mandou aplicar no Brasil, corresponde à da lei portuguesa. Por
esse motivo, não menciona o dispositivo legal vigente, como deveria, a denominação brasileira do
título, que é “letra de câmbio”. Para Fran Martins, a utilização da palavra “letra” como abreviatura
da designação correta do título, no Brasil, não se poderia admitir, em razão do rigor próprio ao
direito cambial (1972:107/108). Não entendo assim, contudo. Se a lei exige que o título seja
identificado pela forma apropriada, segundo o idioma de sua redação, então é cambiariamente eficaz,
tanto o documento denominado “letra de câmbio”, como o que se apresenta simplesmente como
“letra”, desde que o restante do título esteja em português.
Em relação ao segundo requisito (b), é importante salientar que a letra de câmbio não se
caracteriza na hipótese de ordem condicional de pagamento. O cumprimento da obrigação
materializada no título de crédito não pode ficar sujeito, pelo saque, ao implemento de qualquer
condição, suspensiva ou mesmo resolutiva. Não é letra de câmbio, portanto, um documento redigido
da seguinte forma: “aos trinta e um de janeiro de ...., pagará V. S ª, desde que lhe sejam entregues
as mercadorias solicitadas, por esta única via de letra de câmbio, a importância de (etc.)”. O
destinatário da ordem, se entende que somente deverá pagar a letra, caso sobrevindas determinadas
circunstâncias, deverá simplesmente recusá-la. Se introduzir a condição para os fins de pagamento,
considera-se operada a recusa parcial, embora se possa exigir do sacado o cumprimento da
obrigação, nos termos do aceite modificativo (item 3.1).
A incondicionalidade do pagamento é pressuposto necessário da circulação do título de crédito. O
documento que materializa obrigação sujeita ao implemento de condição não presta à negociação do
crédito, porque o seu descontador não se garante quanto à exigibilidade, posto que dependente da
verificação de fato que não pode ser por ele conhecido. Mesmo nos países em que a disciplina
jurídica da matéria não segue o direito uniforme genebrino, vincula-se a negociabilidade do crédito à
incondicionalidade do pagamento. É, por exemplo, o caso dos Estados Unidos, em que o Uniform
Commercial Code considera a promessa ou ordem incondicional de pagamento um dos requisitos
dos instrumentos negociáveis (cf. Stone, 1984:174; White-Summers, 1972:544/546).
Quanto ao valor do título, admite-se sempre a cláusula de correção monetária e, se a letra é à
vista ou a certo termo da vista, também a fluência de juros entre as datas do saque e da apresentação
a pagamento (LU, art. 5º). Nas demais modalidades de letra de câmbio (em data certa e a certo
termo da data), os juros somente podem ser cobrados, a partir do vencimento, caso se verifique o
inadimplemento da obrigação. Por outro lado, se são discrepantes as menções em algarismos e por
extenso da quantia devida, prevalece a última (LU, art. 6º).
Em razão do terceiro requisito (c), a pessoa para quem a ordem é endereçada deve ser
identificada no texto do título. O sacado da letra de câmbio, convém ressaltar, não está obrigado ao
pagamento senão depois de praticar ato manifestando sua concordância com o atendimento à ordem
recebida (aceite). Assim, embora a lei mencione “a pessoa que deve pagar”, isto não pode ser
entendido como impositivo de qualquer obrigação (Martins, 1972:112). Para o atendimento completo
às formalidades exigidas em lei, deve o sacado da letra de câmbio identificar-se pelo número da
Cédula de Identidade, inscrição no Cadastro de Pessoa Física (CPF), do Título de Eleitor ou da
Carteira Profissional (Lei n. 6.268/75, art. 3º).
O quarto requisito (d) exige a identificação do tomador, a pessoa para quem o título será pago.
Não produz, em decorrência, os efeitos de letra de câmbio o documento emitido “ao portador”, ainda
que presentes os demais requisitos da lei. Claro que, uma vez emitido na forma nominativa, o título
poderá tornar-se ao portador, por meio do endosso em branco. Mas a falta de menção do credor
originário do documento causa sua total ineficácia, para o direito cambiário. De se registrar, também,
que do fato de a lei se referir à “pessoa à ordem de quem deve a letra ser paga”, não se segue a
proibição de inserção, no documento, da cláusula não à ordem, no momento do saque. Pelo
contrário, admite a lei uniforme que o sacador, em querendo evitar a circulação da letra pelo regime
cambiário, saque-a com essa cláusula expressa no texto do título (LU, art. 11, segunda alínea).
Outro requisito essencial da letra de câmbio (e) é a assinatura do sacador, geralmente
acompanhada de seu nome. Dessa assinatura decorre a constituição do crédito cambiário, porque o
sacador torna-se, com o saque, codevedor da letra. Lembre-se, como a letra de câmbio é ordem de
pagamento, o sacador do título está ordenando que o seu destinatário pague a terceiro a importância
assinalada no documento. Desse modo, o devedor principal do título não será ele, sacador, mas sim o
sacado, caso venha a praticar o aceite. Isto é, o sacador garante, em princípio, a aceitação e o
pagamento da letra de câmbio (LU, art. 9º). Se o sacado não aceitar a ordem que lhe foi dirigida ou,
tendo-a aceito, não a cumprir no vencimento, o credor poderá cobrar o sacador, uma vez atendidas as
condições próprias do regime cambial.
A data do saque (f) é, também, requisito essencial para a eficácia cambiária do documento. É farta
a jurisprudência que nega executividade aos títulos de crédito que desatende a esse pressuposto (por
exemplo, em relação à nota promissória: RT, 653/138, 664/175, 676/163, 681/123 e 711/183),
muitas vezes omitido pelo exequente, em vista de sua aparente desimportância.
A letra deve informar o lugar do pagamento ou, pelo menos, mencionar um lugar ao lado do nome
do sacado (g), requisitos que a lei considera equivalentes. Similarmente, o título deve trazer a
identificação do lugar do saque ou, senão, a menção de um lugar ao lado do nome do sacador (h),
elementos também equivalentes. Deve-se acentuar que, faltando ambos os dados da equivalência, o
documento não é uma letra de câmbio. A essencialidade desses requisitos, portanto, é a mesma da
dos anteriores. Contudo, importa registrar que a doutrina tradicionalmente classifica o lugar do
pagamento e o lugar do saque como requisitos não essenciais da letra de câmbio (assim, por
exemplo, Fran Martins, 1972:127/130). Não se justifica, contudo, essa solução, na medida em que a
consequência para a sua falta e a do equivalente é, tal como em relação aos demais requisitos até
aqui examinados, a inexistência de documento cambiário. Na verdade, o único elemento referido na
lei como requisito não essencial é a época do pagamento, cuja falta não tem o mesmo alcance; de
fato, se a letra de câmbio não especificar o momento em que poderá ser exigida a sua paga, reputar-se-á emitida à vista (LU, arts. 1º, n. 4, e 2º, segunda alínea).
2.2. Cláusula-mandato
O saque (assim como os demais atos cambiários) pode ser praticado por procurador, com poderes
especiais. A lei uniforme admite expressamente a hipótese, inclusive para disciplinar a exorbitância
dos poderes pelo mandatário (LU, art. 8º). Desse modo, é plenamente jurídico que a pessoa se
obrigue, em decorrência de ato cambial, por meio de procurador. Com base nisso, disseminou-se a
prática de se inserir, principalmente nos contratos bancários, uma cláusula pela qual o devedor
nomeava a própria instituição financeira credora (ou empresa coligada) como sua mandatária, para
os fins de sacar, na hipótese de inadimplemento, um título de crédito representativo da obrigação. Em
outros termos, o mutuário (devedor) constituía o mutuante (credor) seu procurador, para que ele
emitisse um título (nota promissória, em geral) em nome do primeiro e em seu próprio favor. Essa
autorização contratual foi denominada “cláusula-mandato”.
A sistemática decorrente da cláusula-mandato é, no meu modo de entender, plenamente válida, e
representa, também, a forma mais eficiente de se tutelarem os direitos dos credores. Imagine-se o
contrato de abertura de crédito (cheque especial), em que o mutuário pode utilizar, no todo ou em
parte, recursos que o banco disponibiliza em sua conta de depósito. Nesse caso, não é possível
definir previamente o valor da obrigação, na hipótese de eventual inadimplemento. Fica, assim,
afastada a possibilidade de o mútuo se fazer documentar, desde o início, por um título líquido. Ora,
por meio da cláusula-mandato, o banco credor (por si ou por empresa coligada), agindo em nome do
devedor, emitia um título representativo de seu crédito, para fins de protesto e execução.
“É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste” (Súmula 60 do STJ).
Quando ainda detinha competência para matéria infraconstitucional, o Supremo Tribunal Federal
pronunciou-se pela validade da cláusula (RTJ, 116/749), mas o Superior Tribunal de Justiça acabou
firmando entendimento exatamente oposto (Súmula 60), inclusive em decorrência do art. 51, VIII, do
Código de Defesa do Consumidor. A bem da verdade, no entanto, não existem os problemas que se
costumam identificar na cláusula-mandato, pois se o banco abusar da sua condição de procurador, e
emitir, por exemplo, título por valor superior ao seu crédito, é evidente que a cambial será inválida e
desprovida de liquidez. Se houver protesto e execução do documento, a instituição mandatária, além
de suportar os ônus de sucumbência da execução, responderá pelos danos patrimoniais e morais,
decorrentes do exercício irregular dos poderes de procurador. O melhor, para a disciplina da
matéria, seria a revisão do entendimento jurisprudencial e a revogação do dispositivo do CDC,
acima referido.
2.3. Título em Branco ou Incompleto
A letra de câmbio (e qualquer outro título de crédito) pode ser emitida e circular validamente, em
branco ou incompleta. Quer dizer, os requisitos essenciais da lei não precisam estar totalmente
atendidos no momento em que o sacador assina o documento, ou o entrega ao tomador (cf. Correia,
1973:481/487). Ele, tomador, e a pessoa a quem transferir o direito creditício reputam-se
mandatários do devedor do título. A natureza da relação se aclara quando é considerado o cheque,
título largamente utilizado no Brasil. Quer dizer, se eu passo um cheque em branco e o entrego a
pessoa da minha confiança, que irá oportunamente preencher o seu valor, investi-a de poderes para,
em meu nome, completar o título. Quem, em outros termos, assina título de crédito em branco ou
incompleto, outorga ao portador mandato para o seu oportuno preenchimento. Note-se que o portador
somente se considera mandatário do devedor, enquanto age de boa-fé. Caso venha a exorbitar as
instruções recebidas, ou lance dado inverídico (por exemplo, a data incorreta do saque), não poderá
executar o título de crédito.
A validade da emissão e circulação do título em branco ou incompleto é fundada na lei (Dec. n.
2.044/08, art. 3º) e admitida pela jurisprudência (Súmula 387 do STF). A letra de câmbio deve estar
perfeita, no sentido de atender aos respectivos requisitos legais, no momento que antecede ao
protesto ou à cobrança judicial. Quer dizer, o cartório não pode receber, para protesto, cambial
incompleta; e é nula a execução do título não preenchido na forma da lei.
“A cambial emitida ou aceita com omissões ou em branco, pode ser completada pelo credor de boa-fé antes da cobrança ou do protesto”
(Súmula 387 do STF).
3. ACEITE DA LETRA DE CÂMBIO
A letra de câmbio é uma ordem de pagamento que o sacador endereça ao sacado. Este não se
encontra obrigado a cumprir a ordem contra a sua vontade. Pelo contrário, enquanto não manifesta
sua concordância, por meio de ato lançado no próprio título, o sacado não tem nenhuma obrigação
cambial. Esse ato é o aceite. Por meio dele, o sacado se vincula ao pagamento da letra de câmbio e
se torna o seu devedor principal. Apenas se ele não pagar, no dia do vencimento, é que os
codevedores poderão ser acionados. Assim, ao receber das mãos do sacador a letra de câmbio, o
tomador deve procurar o sacado para apresentar-lhe a letra e consultá-lo sobre a aceitação da ordem.
O aceite introduz, na letra de câmbio, uma nova situação jurídica, a do aceitante; situação em que se
encontra o sacado, após expressar sua concordância com a ordem de pagamento que o sacador lhe
endereçou.
Na letra de câmbio, o aceite é facultativo. Quer dizer, em nenhuma hipótese o sacado é obrigado a
aceitar o título. Mesmo que ele seja devedor do sacador, ou do tomador, em razão de negócio ou ato
jurídico que os vincule, o sacado não está obrigado a documentar sua dívida por um título de crédito.
Suponha-se que Antonio envolveu-se com Benedito em um acidente de trânsito, por culpa deste
último. Mesmo que Benedito reconheça a responsabilidade, e o dever de ressarcir os danos que
causou, ele pode se recusar, validamente, a documentar sua obrigação por meio da letra que Antonio
resolva sacar e lhe endereçar. Não há meios jurídicos que possam vincular o sacado ao pagamento
da letra de câmbio, contrariamente à sua vontade.
Na letra de câmbio, o aceite é sempre facultativo. Isso significa que, mesmo na hipótese de o sacado ser devedor do sacador ou tomador, ele
não está obrigado a representar essa sua dívida por um título de crédito, isto é, por um documento com circulação cambial. Na duplicata, a
regra é diferente.
O aceite decorre da assinatura do sacado no anverso da letra de câmbio. No Brasil, a praxe era
lançá-la à esquerda do documento, no sentido vertical. Admite-se também o aceite no verso do
documento, desde que identificada a natureza do ato praticado pela expressão “aceito”, ou outra
equivalente (LU, art. 25). De qualquer forma, só é aceite o ato praticado no instrumento cambial, em
razão do princípio da literalidade. Se o sacado havia transmitido, por outro meio escrito, ao sacador
ou ao portador a sua intenção de aceitar a obrigação cambiária e, depois, se recusa a assinar o título,
não se pode considerar que ele o aceitou, exatamente porque o ato de aceite não foi lançado na
própria letra de câmbio. Contudo, o sacado responde, como se tivesse aceito, perante a pessoa para
quem eventualmente ele comunicara a sua intenção primeira, de aceite (LU, art. 29).
Na letra de câmbio, como o aceite é sempre facultativo, a recusa do sacado é ato plenamente
válido, nada podendo reclamar contra ela o sacador, o tomador ou os demais envolvidos com o
título. Opera-se, contudo, o vencimento antecipado do título. Quer dizer, se Antonio saca, em dois de
julho, letra de câmbio contra Benedito, em favor de Carlos, com vencimento para trinta de novembro
do mesmo ano, a recusa do aceite torna o título exigível de imediato. Por evidente, Carlos somente
poderá cobrar a letra de Antonio, que, sendo sacador, é codevedor do título. Benedito, que recusou o
aceite, não assumiu nenhuma obrigação cambial. Em suma, a recusa do aceite significa que a ordem
de pagamento dada pelo sacador não foi devidamente prestigiada. Reconhece--se ao tomador, então,
o direito de exigir prontamente do sacador a garantia pela ordem que ele havia emitido. Em relação
ao sacado da letra de câmbio, a recusa do aceite não opera nenhum efeito.
3.1. Recusa Parcial do Aceite
Se o sacado pode recusar totalmente o aceite, pode fazê-lo também de forma parcial. Quem pode
o mais, pode o menos, afirma postulado tradicional da argumentação jurídica pseudológica.
Disciplina a lei duas espécies de recusa parcial: a) o aceite limitativo; b) o aceite modificativo. Pelo
primeiro, o sacado reduz o valor da obrigação que ele assume. O sacador havia lhe ordenado o
pagamento de $ 100 e ele, ao assinar a letra, escreve “aceito até $ 80”. Pelo segundo, o sacado
introduz mudanças nas condições de pagamento da letra de câmbio, postergando o seu vencimento
por exemplo, ou alterando a praça em que deve realizá-lo (esta última hipótese é também
denominada aceite domiciliado).
Tanto na hipótese do aceite limitativo, como na do modificativo, opera-se a recusa parcial do
aceite. Se o sacado concorda em atender parte do valor da ordem, isso significa que ele se recusa a
atender a outra parte; se ele anui pagar o título no vencimento posterior, ele não aceitou pagá-lo no
vencimento preordenado pelo sacador. Desse modo, opera-se, com o aceite limitativo ou
modificativo, o vencimento antecipado do título, podendo o tomador executá-lo, de imediato e pela
totalidade, contra o sacador (cuja ordem desprestigiada ele precisa garantir). Mas, ressalte-se, o
sacado se vincula ao pagamento da letra de câmbio, nos termos do seu aceite (LU, art. 26). Isto é, o
sacador deve honrar o cumprimento do título junto ao tomador (ou outro portador), mas poderá
depois cobrá-lo, em regresso, do aceitante parcial. Por exemplo, se Benedito, ao aceitar a ordem de
$ 100 que Antonio lhe havia endereçado, limitou seu aceite a $ 80, o tomador Carlos pode, de
imediato, exigir o valor total do sacador. Mas, no vencimento previsto no título, Antonio poderá
cobrar de Benedito o valor aceito.
A recusa parcial do aceite manifesta-se na hipótese em que o sacado concorda em obrigar-se por uma parte do valor da letra de câmbio (aceite
limitativo), ou introduz condições de pagamento diversas da estabelecida pelo sacador (aceite modificativo). Nas duas hipóteses, dá-se o
vencimento antecipado do título, e o aceitante se vincula, nos termos do seu aceite.
O sacado pode, também, sujeitar a sua obrigação a condição suspensiva ou resolutiva, o que
também representa uma espécie de aceite modificativo. Viu-se que a letra de câmbio, no saque, não
pode veicular ordem de pagamento condicional. Se o sacador, desse modo, sujeita o pagamento a
condição de qualquer natureza, o documento simplesmente não produz os efeitos de título de crédito.
Mas o sacado, que não está obrigado a nada antes do aceite, pode perfeitamente introduzir uma
condição de pagamento. Opera-se, nesse caso, o vencimento antecipado do título contra o sacador e
também a vinculação do aceitante nos termos do seu aceite. Quer dizer, o sacador deve, de imediato,
cumprir a obrigação cambial perante o titular do crédito e somente poderá atuar em regresso contra o
aceitante, se implementada a condição constante do aceite.
3.2. Cláusula Não Aceitável
A recusa do aceite, total ou parcial, produz efeitos contrários ao sacador (e aos demais
codevedores da letra de câmbio, se houver). Ele se sujeita a pagar o título imediatamente após a
recusa, mesmo que o vencimento preestabelecido seja posterior. Para evitar a antecipação,
provocada pela recusa do aceite, a lei possibilita ao sacador a introdução da cláusula na letra de
câmbio, proibindo a sua apresentação ao sacado antes do vencimento (LU, art. 22). É a chamada
cláusula “não aceitável”. A letra terá, assim, uma redação como a seguinte: “ aos trinta e um de
janeiro de ...., pagará V. S ª por esta única via de letra de câmbio não aceitável, a importância
etc.”. Inserida a cláusula, o tomador (ou o portador) somente poderá apresentar o título ao sacado na
data designada para o seu vencimento. Ora, essa limitação protege o sacador contra a antecipação da
exigibilidade da obrigação, porque a recusa do aceite somente poderá ocorrer depois de vencida a
letra. Note-se que a cláusula “não aceitável” não é exonerativa da responsabilidade do sacador (este
sempre responde pela ordem que expediu), mas apenas evita o vencimento antecipado.
Pela cláusula não aceitável, o sacador proíbe a apresentação da letra de câmbio ao sacado antes do dia designado para o seu vencimento.
Sua utilidade é preservar os coobrigados do título contra a antecipação do vencimento, que decorreria de eventual recusa do aceite.
A lei uniforme também autoriza que o sacador fixe, na letra, uma data limite, antes da qual a sua
apresentação ao sacado é vedada. Trata-se de variante da cláusula não aceitável, e o objetivo é o de
evitar a antecipação do vencimento aquém da data fixada.
A inobservância da cláusula não aceitável não prejudica os interesses do sacador. Quer dizer, se a
letra não aceitável é apresentada ao sacado antes do vencimento (ou antes da data limite fixada pelo
sacador), da eventual recusa do aceite não se segue a possibilidade de cobrança imediata do
sacador. Para exigir o pagamento do sacador, deverá o tomador aguardar o vencimento preordenado
da letra, ou o termo a quo nela fixado para a apresentação.
4. ENDOSSO DA LETRA DE CÂMBIO
O título de crédito é, essencialmente, um documento que facilita a circulação do crédito nele
representado. E facilita, na medida em que o ato responsável pela transferência do crédito a outro
sujeito de direito é objeto de disciplina jurídica específica, que o resguarda nas hipóteses de
insolvência do devedor originário ou de eventuais vícios anteriores, na criação e circulação do
documento. Esse ato é o endosso, pelo qual o credor de um título de crédito com a cláusula à ordem
transmite os seus direitos a outra pessoa. O endosso introduz, na letra de câmbio, duas novas
situações jurídicas: a do endossante e a do endossatário. Na primeira, encontra-se o credor do título
que resolve transferi-lo a outra pessoa; na segunda situação jurídica, essa última, para quem o
crédito foi passado. Em outros termos, pelo endosso, o endossante deixa de ser o credor do título de
crédito, que passa às mãos do endossatário. Logicamente, não se cuida de ato gratuito: o endossante
irá receber do endossatário pelo menos uma parte do valor do título de crédito.
O primeiro endossante da letra de câmbio será sempre o tomador, porque a ordem de pagamento é
sacada em seu benefício.
O endosso é ato típico de circulação cambial e apenas não se admite na hipótese da letra com a
cláusula não à ordem. De fato, se o título apresenta essa cláusula, que pode ser inserida pelo sacador
(LU, art. 11) ou mesmo por endossante (LU, art. 15, segunda alínea), sua circulação não estará sujeita
ao regime jurídico-cambial, mas ao direito civil. O ato de transferência do título nominativo não à
ordem não é o endosso, mas a cessão civil de crédito. As diferenças entre as duas formas de
circulação serão discriminadas mais à frente (item 4.2.); por enquanto, importa ressaltar que a
cláusula à ordem é implícita nos títulos de crédito. Ao chamar o documento representativo de
obrigação por “letra de câmbio”, o emitente já está autorizando a circulação mediante endosso,
mesmo que não o explicite. Para que o documento não possa circular sob o regime do direito
cambiário, é necessária expressa menção à cláusula não à ordem.
Os títulos de crédito possuem, implícita, a cláusula “à ordem”, em virtude da qual se admite a circulação sujeita à disciplina do direito
cambiário. A cláusula “não à ordem”, que deve ser expressa, não impede a circulação do crédito, apenas altera o regime jurídico aplicável.
O endosso normalmente produz dois efeitos: transfere o título ao endossatário e vincula o
endossante ao seu pagamento. Isto é, enquanto o endossatário se torna o novo credor da letra de
câmbio, o endossante passa a ser um de seus codevedores. No exemplo de sempre: se Antonio
(sacador) saca letra contra Benedito (aceitante), em favor de Carlos (tomador), este último pode,
antes do vencimento, negociar o crédito nela representado, e de que é titular, junto a Darcy. Ao
transferir o título — e, com isto, o próprio crédito —, Carlos se identifica como endossante, e Darcy
como endossatário. A partir de então, a letra de câmbio documenta crédito titularizado por Darcy, do
qual são devedores Benedito (devedor principal), Antonio e Carlos (codevedores).
Se não for intuito do endossante assumir a responsabilidade pelo pagamento do título, e com isso
concordar o endossatário, operar-se-á a exoneração da responsabilidade pela cláusula “sem
garantia”, que apenas o endosso admite. Desse modo, se Carlos assinar a letra de câmbio, sob a
expressão “pague-se, sem garantia, a Darcy”, o título terá apenas dois devedores, o aceitante
Benedito e o sacador Antonio.
Não se aplica à letra de câmbio o art. 914 do Código Civil. Esse dispositivo, que isenta, em regra,
o endossante de garantir o pagamento do título, só é aplicável aos títulos de crédito não regulados
(Cap. 15, item 2.1). Como a letra de câmbio é exaustivamente disciplinada na lei, que inclusive
estabelece a regra da responsabilidade do endossante pela solvência do devedor principal (LU, art.
15, primeira parte), não se submete às disposições do Código Civil sobre matéria cambial.
O endosso pode ser em branco, ou em preto. No primeiro caso, o ato de transferência da
titularidade do crédito não identifica o endossatário; no segundo, identifica. Em outros termos, o
endosso pode ser praticado por três formas diferentes: 1ª) a simples assinatura do credor no verso do
título; 2ª) a assinatura do credor, no verso ou no anverso, sob a expressão “pague-se”, ou outra
equivalente; 3ª) a assinatura do credor, no verso ou no anverso, sob a expressão “pague-se a Darcy”.
Nas duas primeiras, caracteriza-se o endosso em branco, posto não identificada a pessoa para quem
o pagamento deve ser feito, ou seja, para quem o crédito foi transferido. Na última forma, o endosso
se considera em preto, porque o endossatário está plenamente identificado: é Darcy. Observo,
também, que a simples assinatura do credor não pode ser, a título de endosso, lançada no anverso da
letra de câmbio, porque, nesse caso, ela produziria os efeitos de aval em branco (LU, arts. 13 e 31).
Com o endosso em branco, a letra de câmbio se torna um título ao portador e passa, por essa
razão, a circular por simples tradição. O portador de uma letra endossada em branco, portanto, pode
transferi-la a outras pessoas, sem assiná-la; ou seja, sem se tornar responsável pelo cumprimento da
obrigação creditícia nela documentada (item 4.3). Na verdade, são cinco as alternativas que possui o
portador de uma letra de câmbio endossada em branco: a) inserir o seu nome no endosso, para
cobrança do crédito; b) inserir o nome de outra pessoa no endosso, transferindo-lhe o crédito sem
assumir responsabilidade cambiária; c) endossar a letra em preto; d) endossá-la em branco; e)
entregar o título, simplesmente, a outra pessoa (cf. Holzhammer 1989:275).
4.1. Endosso Impróprio
Um dos efeitos normais do endosso é a transferência da titularidade do crédito ao endossatário.
Trata-se, como visto, do ato de circulação do crédito representado por título de crédito à ordem. Há,
contudo, hipóteses em que se faz necessário legitimar a posse que determinada pessoa exerce sobre o
documento, sem, contudo, transferir-lhe o crédito. Pelo princípio da cartularidade, somente pode
exercer o direito creditício decorrente da cambial o possuidor do respectivo documento. Uma de
suas decorrências é a de que o portador do título presume-se o seu credor, a menos que o contrário
resulte da cadeia de endossos constantes do mesmo título (LU, art. 16). Por essa razão, a
transferência da posse do documento, normalmente, acompanha a transferência da titularidade do
crédito. Quando é necessário dissociar--se uma da outra, no sentido de legitimar a posse de alguém
sobre o título, sem torná-lo o seu credor, deve-se praticar ato que expresse claramente esta
circunstância. Por outro lado, em razão do princípio da literalidade, esse ato deve forçosamente se
praticar no próprio título de crédito. O endosso impróprio serve para atender esses aspectos do
regime cambiário.
Por meio do endosso impróprio, lança-se na cambial um ato que torna legítima a posse do
endossatário sobre o documento, sem que ele se torne credor. Chama-se impróprio o endosso, nesse
caso, exatamente porque um de seus efeitos normais — a transferência da titularidade do crédito —
não se opera. Existem duas modalidades dessa categoria de ato cambial: o endosso-mandato e o
endosso-caução. Pelo primeiro, o endossatário é investido na condição de mandatário do endossante
(LU, art. 18); pelo outro, é investido na de credor pignoratício do endossante (LU, art. 19).
O “endosso impróprio” destina-se a legitimar a posse de certa pessoa sobre um título de crédito, sem lhe transferir o direito creditício. Admite
duas modalidades: o endosso-mandato e o endosso-caução.
O endosso-mandato é o ato apropriado para o endossante imputar a outra pessoa a tarefa de
proceder à cobrança do crédito representado pelo título. Imagine-se que o credor não possa, no dia
do vencimento, procurar o devedor da letra de câmbio, para receber o pagamento. Poderá,
naturalmente, encarregar um empregado de sua confiança de fazê-lo. Deve, no entanto, praticar na
própria letra um ato, pelo qual se legitime a posse do título por esse empregado. Se o título não
ostentar um ato com tal sentido, o devedor poderá recusar-se a pagá-lo, sob a alegação de que nada o
autoriza a crer que o portador da letra representa realmente o credor. De fato, o devedor somente
estaria validamente desobrigado se pagasse o título a quem se pudesse considerar credor, de acordo
com os endossos constantes da letra. O endosso--mandato se expressa pela assinatura do endossantemandante sob a expressão “pague-se, por procuração, a Darcy”, ou outra equivalente.
Já o endosso-caução é o instrumento adequado para a instituição de penhor sobre o título de
crédito. Imagine-se que Carlos, tomador da letra, pretende contrair empréstimo junto a Darcy, que
exige, para isso, uma garantia real. Essa garantia pode recair, se as partes concordarem, sobre bens
móveis (caso em que se denomina penhor), entre os quais se consideram os títulos de crédito. Como
a garantia pignoratícia se constitui, via de regra, pela efetiva tradição da coisa empenhada (CC, art.
1.431), faz-se necessária a entrega da letra de câmbio ao credor (caucionado), sem que se transfira a
titularidade do crédito representado pela cambial. O ato que viabiliza a constituição da garantia é o
endosso-caução, praticado pelo endossante-caucionário em favor do endossatário-caucionado.
Expressa-se pela fórmula “pague-se, em garantia, a Darcy”, ou outra equivalente, escrita sobre a
assinatura do credor da letra de câmbio.
O endossatário, no endosso-impróprio, pode exercer todos os direitos emergentes da letra de
câmbio, exceto o de transferir a titularidade do crédito (LU, arts. 18 e 19). Assim, o procurador do
credor poderá protestar o título, executá-lo ou mesmo constituir outro mandatário por meio de novo
endosso-mandato. Note-se que o executado, nesse caso, poderá opor ao endossatário-mandatário as
exceções que tiver contra o endossante-mandante, na medida em que aquele o aciona em nome deste.
Do mesmo modo, o endossatário por endosso--caução, para fins de promover a efetivação de sua
garantia pignoratícia, pode protestar e cobrar judicialmente a letra de câmbio. O executado, contudo,
nessa hipótese (e ao contrário da relativa à execução ajuizada pelo endossatário-mandatário), não
poderá opor ao endossatário-caucionado as exceções pessoais que tiver contra o endossantecaucionário, salvo provando a má-fé deles. Aplica-se, portanto, ao endosso--caução, mas não
inteiramente ao endosso-mandato, o subprincípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos
terceiros de boa-fé.
O portador da letra em decorrência de endosso impróprio, na medida em que não é investido na
condição de credor do título, não o pode transferir a outra pessoa. Assim, se vier a endossá-la, o seu
ato terá, por força da lei, a natureza de mero endosso-mandato, e, portanto, não produzirá nenhum
efeito translativo da titularidade do crédito.
O endossatário, no endosso impróprio, pode exercer todos os direitos emergentes da letra de câmbio, exceto o de transferir a titularidade do
crédito, que remanesce nas mãos do endossante-mandante ou caucionário.
Nas relações entre os empresários e os bancos, as três modalidades de endosso podem existir. Em
primeiro lugar, o empresário pode descontar os títulos de crédito que possui junto ao banco,
recebendo o valor deles (ou parte) antecipadamente. Nessa hipótese os títulos se transferem mediante
endosso próprio (por vezes, a lei o chama de endosso translativo). Em segundo lugar, o empresário
pode contratar do banco os serviços de cobrança de títulos. A instituição financeira, aqui, atua como
simples representante do credor e a posse dela sobre o título se deve a um endosso-mandato. Por
último, se o empresário tomou dinheiro emprestado do banco, é possível a constituição de garantia
do cumprimento de suas obrigações por meio do penhor de títulos de crédito, caso em que se pratica
o endosso-caução. Importa ressaltar que, na prática bancária, muitas vezes apenas se colhe a
assinatura do credor no verso do título de crédito, sem a identificação da natureza específica do
endosso praticado. Por outro lado, quando utilizado o meio eletrônico como suporte do título, não se
pode exigir sequer a assinatura manual do empresário. Desse modo, a definição do tipo de endosso
realizado (se próprio ou impróprio; se mandato ou caução), bem como da condição em que se
encontra o banco, ao procurar o devedor do título, dependerá do exame do contrato escrito que deu
base à operação, ou senão das relações entre ele e o seu cliente (o empresário).
4.2. Endosso e Cessão Civil de Crédito
O endosso é o ato de transferência do título de crédito à ordem. Essa cláusula, como já acentuado
anteriormente, é implícita nas cambiais. Quer dizer, se o sacador omite qualquer referência à forma
de circulação do crédito, do simples fato de ter denominado o documento pela expressão “letra de
câmbio”, já decorre a admissibilidade de seu endosso. Para que o título não possa circular sob as
regras do direito cambiário, é necessária a inclusão expressa da cláusula não à ordem.
A cláusula obstativa da circulação cambial pode ser inserida pelo sacador ou pelo endossante. No
primeiro caso, desde o início, a letra não poderá ser endossada; no segundo, proíbe-se a circulação
cambial a partir do endosso que a inseriu. Se Darcy, ao endossar o título a Evaristo, pretende
impedir novos endossos, deve inserir no seu ato a cláusula de proibição; quer dizer, deve assinar o
documento sob a fórmula “pague-se a Evaristo, não à ordem”. O ato praticado por Carlos, porque foi
anterior à introdução à cláusula não à ordem, tem a natureza jurídica de endosso. Também é endosso
o ato de Darcy. Contudo, se Evaristo pretender negociar o seu crédito com outra pessoa, não poderá
fazê-lo por endosso.
É importante ressaltar que a cláusula não à ordem não impede, propriamente, a circulação do
crédito. O que ela opera é a mudança do regime jurídico aplicável à circulação. Se o título não
contempla essa cláusula, sua circulação é regida pelo direito cambiário; se a contempla, a circulação
terá o tratamento do direito civil. Em outros termos, enquanto o título à ordem se transfere por
endosso, o não à ordem transfere-se por cessão civil de crédito. São duas as diferenças entre uma e
outra forma de o crédito circular: a) enquanto o endossante, em regra, responde pela solvência do
devedor, o cedente, em regra, responde apenas pela existência do crédito; b) o devedor não pode
alegar contra o endossatário de boa-fé exceções pessoais, mas as pode alegar contra o cessionário.
A cláusula “à ordem”, expressa ou implícita no título, define como cambial a circulação do crédito. Já se o título contém expressamente a
cláusula “não à ordem”, isso significa que será civil o regime de transferência da titularidade do crédito mencionado.
Entre a circulação cambial e a civil existem duas diferenças: enquanto o endossante, em regra, responde pela solvência do devedor, o cedente
geralmente responde apenas pela existência do crédito; o devedor não pode alegar contra o endossatário de boa-fé exceções pessoais, mas pode
suscitá-las contra o cessionário.
Essas diferenças são derivadas da aplicação dos princípios do direito cambiário à circulação do
crédito por endosso. Assim, diga-se que Carlos vendeu um automóvel a Antonio, e este o revendeu a
Benedito. Para documentar a transação, Antonio sacou letra de câmbio, em favor de Carlos, contra
Benedito, que a aceitou. Posteriormente, o tomador, Carlos, transferiu o seu crédito a Darcy. Se, no
vencimento, o aceitante está insolvente, não tem patrimônio para responder por sua obrigação, Darcy
poderá acionar Carlos, para reclamar o pagamento da obrigação? Depende, se recebeu o título por
endosso, poderá fazê--lo, porque o endossante (salvo na hipótese de cláusula sem garantia)
responde pela solvência do devedor. Mas se recebeu a letra por cessão civil de crédito, Darcy não
poderá cobrá-la de Carlos, porque o cedente só responde pela existência do crédito. Quer dizer,
para executar Carlos, Darcy deve provar que lhe foi transmitido um direito inexistente, simulado.
Por outro lado, se Benedito não é insolvente, mas, nos prazos da lei, havia rescindido o contrato de
compra e venda do automóvel, feito com Antonio, em razão de vícios ocultos manifestados na coisa,
estará ele obrigado a honrar o título junto a Darcy? De novo, depende da natureza do ato translativo
do crédito. Se a circulação se deu por endosso, será inoponível a exceção contra o credor do título;
se se deu por cessão civil de crédito, os vícios no automóvel poderão servir à defesa de Benedito
contra Darcy.
Em suma, no exemplo acima, se a letra havia sido emitida com a cláusula não à ordem, a
transferência do crédito, de Carlos para Darcy, é ato sujeito ao direito civil, e a circulação não
desvincula o título do seu negócio originário (no caso, as transações do veículo). Já se a letra foi
sacada com a cláusula à ordem, aquela transferência é endosso, e se submete ao direito cambiário.
Com a circulação, nesse último caso, o título se desvincula do negócio originário.
Para concluir, deve-se lembrar que, em duas situações, o endosso produz os efeitos de cessão
civil de crédito: a) quando praticado após o protesto por falta de pagamento, ou depois de expirado
o prazo para a sua efetivação (LU, art. 20); b) quando praticado em título em que se inseriu a
cláusula não à ordem (LU, art. 15).
4.3. Circulação Cambial e o Plano Collor
No conjunto de diplomas normativos relacionados com o combate à inflação, adotado pelo
Presidente Collor, já no dia 15 de março de 1990, quando tomou posse, encontrava-se a Medida
Provisória n. 165, posteriormente convertida, com pequeníssima alteração, na Lei n. 8.021/90. Por
tais diplomas, o legislador adotou uma série de vedações relativamente a alguns documentos
representativos de obrigações creditícias, com o objetivo de identificar o seu titular. A preocupação
era a de evitar a sonegação de tributos. Duas dessas vedações interferiram com a circulação cambial:
a) a proibição de emissão de títulos ao portador ou nominativo-endossáveis (art. 2º, II); b) a
obrigatoriedade de identificação do beneficiário do pagamento dos títulos (art. 1º). Nasceu, com
essas normas, a questão relativa à sua aplicabilidade à letra de câmbio e, em decorrência, por se
sujeitarem ao mesmo regime jurídico, à nota promissória e à duplicata.
Como mencionado, a disciplina legal da letra de câmbio em vigor no Brasil decorre de sua adesão
à Convenção de Genebra. Claro que o estado participante da Convenção não precisa incorporar o
texto da lei uniforme em sua versão integral, podendo adaptá-lo às suas particularidades. Contudo, as
adaptações não podem ultrapassar as possibilidades autorizadas pelo Anexo II da Convenção, vale
dizer, não podem ferir os limites definidos pelas reservas assinaladas. O estado que adote, em sua
legislação, normas incompatíveis com a essência da lei uniforme, está, a rigor, denunciando a
Convenção. No passado, quando institui-se no direito brasileiro o registro das cambiais, como
condição de sua executividade, a jurisprudência entendeu que, embora não previsto pela Convenção
de Genebra, o requisito, na verdade, era plenamente conciliável com a disciplina internacional do
instituto. As disposições do Plano Collor, contudo, inserem-se em contexto bem diverso, porque a
aplicação do art. 2º, II, da Lei n. 8.021/90 aos títulos de crédito próprios importaria a completa
descaracterização da circulação de efeitos cambiários.
Note-se que a letra de câmbio (LU, art. 1º, n. 6), a nota promissória (LU, art. 75, n. 5) e a
duplicata (LD, art. 2º, § 1º, V) já não admitiam, no saque, a forma ao portador. Aquele dispositivo da
lei do Plano Collor, portanto, apenas inovaria na proibição da forma nominativo-endossável. Em
outros termos, ao se admitir sua aplicação aos títulos cambiais, estaria eliminada a cláusula à ordem
do direito brasileiro. A letra de câmbio, a nota promissória e a duplicata somente se poderiam emitir
com a cláusula não à ordem. Com isto, não se estaria vedando a circulação desses títulos, mas,
apenas o endosso. A negociação do crédito documentado em título de crédito submeter-se-ia, assim,
aos preceitos do direito civil sobre a cessão. As consequências desse entendimento são claras: quem
aceitasse negociar o título, não estaria mais albergado pela inoponibilidade das exceções pessoais e
não poderia se voltar contra quem lhe transferiu o crédito, na hipótese de insolvência do devedor.
Em suma, sem o endosso, o título de crédito se desnatura; perde muito de seu atributo exclusivo, que
é a negociabilidade e passa a ser, apenas, um instrumento a mais entre os representativos de
obrigação, sem nenhuma especificidade que o possa distinguir.
A aplicação, aos títulos de crédito próprios, das normas do Plano Collor acima destacadas
conduziria, a rigor, ao fim do direito cambiário, como um regime específico de disciplina da
circulação do crédito. Uma transformação dessa monta no regramento jurídico brasileiro equivaleria
à denúncia da Convenção de Genebra. Como esta não foi — nem convém que seja — feita, a melhor
interpretação é a de que o art. 2º, II, da Lei n. 8.021/90 não se aplica à letra de câmbio, nota
promissória e duplicata. Trata-se de norma destinada aos títulos de crédito impróprios de
investimento.
Em relação à vedação de pagamento de títulos a beneficiários não identificados, constante do art.
1º, caput, da mesma lei, a solução é outra. Como a sua aplicação às letras de câmbio é compatível
com a essência da convenção internacional que a disciplina, não há como se entrever, nesta
aplicação, qualquer efeito equivalente à denúncia do acordado em Genebra. A regra em questão pode
ser plenamente integrada ao regime jurídico cambial, sem o descaracterizar. Assim, nada impede que
se pratique o endosso em branco, aquele que não identifica o endossatário e que transforma a letra
de câmbio em título ao portador; nada obsta, também, que a letra circule, a partir de então, por mera
tradição, que é o ato próprio de circulação dos títulos ao portador. Contudo, para obedecer ao
ditame legal de identificação da pessoa para quem o título é pago, o endosso em branco deve
necessariamente ser convertido em endosso em preto, no vencimento. Esse procedimento é
inteiramente harmonizado com o previsto pela lei uniforme (LU, art. 14), com a lei cambial interna
(Dec. n. 2.044/08, art. 3º), o art. 19 da Lei n. 8.088/90 e a Súmula 387 do STF, além de se traduzir
num mecanismo que atende aos objetivos de controle fiscal da lei do Plano Collor.
5. AVAL DA LETRA DE CÂMBIO
O aval é o ato cambiário pelo qual uma pessoa (avalista) se compromete a pagar título de crédito,
nas mesmas condições que um devedor desse título (avalizado). Em geral, quando o credor não se
considera inteiramente garantido frente a determinado devedor — porque este não possui situação
econômica estável ou patrimônio suficiente à satisfação da dívida —, é comum a exigência de uma
garantia suplementar, representada pela obrigação assumida por outra pessoa. Se o devedor é
sociedade limitada, de micro, pequeno ou médio porte, o credor normalmente exige que o seu sócio
majoritário se comprometa pessoalmente com o pagamento da dívida. Assim, além do patrimônio da
pessoa jurídica, também o do sócio garante o cumprimento da obrigação. Nessas hipóteses, se o
crédito é documentado numa letra de câmbio, o ato pelo qual a garantia suplementar se viabiliza é o
aval. Usualmente, o avalista garante todo o valor do título, mas a lei admite o aval parcial (LU, art.
30).
O avalizado será sempre um devedor da letra de câmbio (sacador, aceitante ou endossante). A
propósito, cabe lembrar que a lei cambial interna autoriza o aval antecipado, isto é, dado antes do
aceite ou do endosso do título (Dec. n. 2.044/08, art. 14). Assim, o tomador que não conhece o
sacado, ou tem dúvidas sobre a aceitação do título, pode exigir que o sacador, antes de lhe entregar a
letra, encontre quem esteja disposto a garantir o seu pagamento, como avalista do devedor principal.
Duas são as características principais do aval, em relação à obrigação avalizada: de um lado, a
autonomia; de outro, a equivalência. O avalista assume, perante o credor do título, uma obrigação
autônoma, mas equivalente à do avalizado. Ou, para dizer o mesmo, por termos diversos, o aval é
dotado de autonomia substancial e acessoriedade formal (cf. Holzhammer, 1989:289; Gonçalves
Neto, 1987).
O aval representa garantia dada em favor de devedor da letra de câmbio. Ele é autônomo e equivalente à obrigação do avalizado.
Da autonomia do aval seguem-se importantes consequências. Em primeiro lugar, a sua existência,
validade e eficácia não estão condicionadas à da obrigação avalizada. Desse modo, se o credor não
puder exercer, por qualquer razão, o direito contra o avalizado, isto não compromete a obrigação do
avalista. Por exemplo, se o devedor em favor de quem o aval é prestado era incapaz (e não foi
devidamente representado ou assistido no momento da assunção da obrigação cambial), ou se a
assinatura dele no título foi falsificada, esses fatos não desconstituem nem alteram a extensão da
obrigação do avalista. Por outro lado, eventuais direitos que beneficiam o avalizado não se estendem
ao avalista. Se o primeiro obtém, numa recuperação judicial, o direito de postergar o pagamento da
letra de câmbio, o seu avalista não pode se furtar ao cumprimento da obrigação, no vencimento
constante do título. Também em decorrência da autonomia do aval, não pode o avalista, quando
executado em virtude do título de crédito, valer-se das exceções pessoais do avalizado, mas apenas
as suas próprias exceções (por exemplo, pagamento parcial da letra, falta de requisito essencial etc.).
A equivalência do aval, em relação à obrigação avalizada, significa que o avalista é devedor do
título “na mesma maneira que a pessoa por ele afiançada” (LU, art. 32). Note-se que da definição
legal da equivalência não decorre a absoluta identidade de condições entre a obrigação do avalista e
do avalizado, sentido que comprometeria o caráter autônomo dos atos cambiais correspondentes.
Quando a lei preceitua que são iguais as “maneiras” de o avalista e de o avalizado responderem pelo
título, ela apenas estabelece uma posição na cadeia de regresso. Ou seja, todos os que podem exercer
o seu direito de crédito contra determinado devedor do título também podem fazê-lo contra o avalista
dele; assim como todos os que podem ser acionados por determinado devedor, em regresso, também
o podem ser pelo respectivo avalista. Da equivalência decorrem unicamente definições de
anterioridade ou posteridade, na cadeia de regresso, e nunca efeitos incompatíveis com o princípio
da autonomia das obrigações cambiais. Se o avalista é devedor equiparado ao avalizado, isso não
quer dizer que suas respectivas obrigações perderam a independência característica dos atos
cambiários.
Da equiparação do aval à obrigação avalizada não se segue a mesma extensão da obrigação. Quer
dizer, o avalista pode vir a ser obrigado, perante o credor do título, por montante superior àquele
que, em regresso, recuperará junto ao avalizado. É, por exemplo, a situação em que se encontra o
avalista de empresário beneficiado com a recuperação judicial. De fato, se o avalizado obtém, de
acordo com o plano de recuperação aprovado em juízo, a remissão parcial de suas obrigações (isto
é, a redução do montante das dívidas), o credor da cambial poderá executar o avalista pela
integralidade do seu valor, mas esse somente poderá exercer o seu direito creditício na recuperação
judicial, recebendo o pagamento pelo valor a menor (cf. Lucca, 1984).
O aval se pratica por uma das seguintes formas: 1ª) a assinatura do avalista, lançada no anverso
do título; 2ª) a assinatura do avalista, no verso ou anverso, sob a expressão “por aval”, ou outra de
mesmo sentido; 3ª) a assinatura do avalista, no verso ou anverso, sob a expressão “por aval de
Benedito”, ou equivalente. A simples assinatura do avalista não pode ser lançada no verso da letra
de câmbio, porque este é, por definição, o local apropriado para o endosso. Registre-se, também,
que nas duas primeiras formas, como o avalizado não é identificado, reputa--se o aval em branco. Já
na última, o aval é considerado em preto, porque nele se encontra a identificação do avalizado
(Benedito). Quando o avalista não define o devedor em favor de quem está prestando a garantia,
caberá à lei estabelecer o critério de identificação. Assim, para cada título de crédito, o legislador
estabelecerá qual devedor é o beneficiado pelo aval dado nessas circunstâncias. No caso da letra de
câmbio, o avalizado no aval em branco é o sacador (LU, art. 31).
5.1. Avais Simultâneos
O devedor cambial pode ter a sua obrigação garantida por mais de um avalista. É a hipótese de
avais simultâneos, ou coavais. Se o anverso da letra de câmbio apresenta, além da assinatura do
sacador e do aceitante, também a de outras pessoas, define-se que essas praticaram aval em branco.
Outra hipótese é a existência de mais de um aval em preto, em favor do mesmo avalizado. Nos dois
casos, os avalistas são simultâneos, no sentido de que garantem solidariamente o cumprimento da
obrigação avalizada.
Lembre-se que a obrigação cambiária em geral (a do sacador, aceitante, endossantes e qualquer
avalista) é, muitas vezes, conceituada como solidária, porque o credor pode exigir a totalidade do
valor do título de qualquer um dos devedores. Contudo, deve-se acentuar que essa noção doutrinária
não é apropriada, tendo em vista que o exercício do direito de regresso não segue, no direito
cambiário, as regras da solidariedade passiva do direito civil. De fato, se a letra de câmbio é
cobrada, por seu valor integral, de um endossante, este poderá voltar-se contra o aceitante, sacador
ou respectivos avalistas, e dele receber também, em regresso, a totalidade da obrigação cambial. Na
solidariedade passiva não ocorre assim, já que o devedor, após satisfazer a obrigação por inteiro
junto ao credor, tem direito de cobrar, em regresso, a quota-parte de cada um dos demais solidários
(CC, art. 283). Em conclusão, os devedores cambiais não são, em regra, solidários (Cap. 10, item 3).
Apenas se verifica a solidariedade, entre os devedores de um título de crédito, em hipóteses
excepcionais, quando mais de uma pessoa se encontra na mesma situação jurídica. Por exemplo, se
são dois os sacadores da letra de câmbio, haverá solidariedade entre eles; se um dos cossacadores é
cobrado pela totalidade do valor do título, ele pode cobrar do outro cossacador, em regresso, a
metade do montante despendido ou optar por cobrar todo o título, também em regresso, do aceitante.
A mesma solidariedade existirá entre coaceitantes, coendossantes e coavalistas.
Nesse contexto, devem-se distinguir os avais simultâneos dos sucessivos. No primeiro caso, mais
de um avalista assumem responsabilidade solidária (entre eles) em favor do mesmo devedor. Serão
co-avalistas do sacador, do aceitante ou do endossante. Para exemplificar, considere-se que
Fabrício e Germano prestam aval em branco na mesma letra de câmbio. São ambos avalistas do
sacador Antonio. Se um deles pagar a totalidade do valor do título ao endossatário Evaristo, poderá,
regressivamente, cobrar do outro a metade do título, ou de Antonio o montante integral. No segundo
caso (avais sucessivos), o avalista garante o pagamento do título em favor de um devedor, e tem a
sua própria obrigação garantida também por aval. Assim, se Fabrício é o avalista de Benedito,
aceitante da letra, ele se torna devedor do título. Como devedor, pode ter a sua obrigação também
garantida por aval de Germano. Nessa hipótese, Fabrício é avalista do aceitante e Germano,
avalista de avalista, e não existe entre eles nenhuma solidariedade. Quer dizer, se Germano cumpre a
obrigação cambial, ele pode, em regresso, responsabilizar seu avalizado, que é Fabrício, exigindo o
total da letra. Fabrício, por sua vez, não tem direito algum contra Germano, seu avalista, e somente
poderá exercer o regresso contra o seu avalizado, Benedito.
“Avais em branco e superpostos consideram-se simultâneos e não sucessivos” (Súmula 189 do STF).
Pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os “avais em branco e superpostos consideramse simultâneos e não sucessivos” (Súmula 189). Deve-se, contudo, anotar que, a partir da vigência da
lei uniforme, não tem mais aplicação esse preceito em relação à letra de câmbio, posto que ela define
especificamente o devedor avalizado no aval em branco (isto é, o sacador). Em decorrência disso,
todo e qualquer avalista em branco da letra de câmbio somente pode ser considerado coavalista do
mesmo avalizado. Não há mais a possibilidade de outro entendimento, a exigir definições
jurisprudenciais. O mesmo se verifica, por outro lado, em relação à nota promissória e ao cheque,
para os quais a lei também estabelece com clareza quem é o avalizado, na hipótese de aval em
branco (LU, art. 77; LC, art. 30, parágrafo único). Apenas em relação à duplicata ainda é pertinente a
Súmula 189 do STF, tendo em vista o critério complexo de definição do beneficiário do aval em
branco, constante da lei disciplinar desse título (LD, art. 12), segundo o qual o avalizado é, em
princípio, o devedor cuja assinatura se encontra acima da do avalista. Esse critério pode, com efeito,
gerar a dúvida sobre a sucessividade ou simultaneidade dos avais em branco; dúvida que se resolve,
como visto, pela última alternativa.
5.2. Aval e Fiança
O ato civil de garantia correspondente ao aval é a fiança e são duas as diferenças existentes entre
eles. Em primeiro lugar — a mais importante —, o aval é autônomo em relação à obrigação
avalizada, ao passo que a fiança é obrigação acessória. Desse modo, se a obrigação do avalizado,
por qualquer razão, não puder ser exigida pelo credor, isto não prejudicará os seus direitos em
relação ao avalista. Já, se a obrigação afiançada é inexigível, a causa da inexigibilidade macula
igualmente a fiança, que, sendo acessória, tem a sorte da principal. Outra consequência da autonomia
do aval é a inoponibilidade, pelo avalista, das exceções que aproveitariam ao avalizado, sendo certo
que o fiador, em geral, pode alegar contra o credor, as exceções do afiançado (CC, art. 837).
A segunda diferença diz respeito ao benefício de ordem, que pode ser invocado pelo fiador, mas
não pelo avalista. O benefício de ordem é a exoneração da responsabilidade do prestador da garantia
suplementar, em razão da prova da solvência do devedor garantido. O avalista, mesmo que o
avalizado tenha bens suficientes ao integral cumprimento da obrigação cambiária, deve honrar o
título junto ao credor, se acionado, e, depois, cobrá-lo em regresso daquele. O fiador, ao contrário,
poderá indicar bens do afiançado, situados no mesmo Município, livres, desembaraçados e
suficientes à solução da dívida, e, com isto, liberar-se da obrigação assumida. Essa diferença entre o
aval e a fiança costuma não apresentar desdobramentos concretos, na medida em que o credor
costuma condicionar a aceitação da fiança à renúncia, pelo fiador, do benefício de ordem.
5.3. Aval e Garantias Extracartulares
Os bancos, ao emprestarem ou disponibilizarem dinheiro aos seus clientes, normalmente,
formalizam a relação creditícia por meio de dois documentos: de um lado, o instrumento de contrato
de mútuo; de outro, um título de crédito (nota promissória, CCB). O mesmo crédito, portanto,
encontra-se representado em dois diferentes escritos. Na verdade, bastaria qualquer um deles para o
adequado e seguro registro das obrigações do mutuário; contudo adota-se esse procedimento para
que, no contrato, se detalhem melhor as condições do negócio, e, pelo título, possa-se protestar o
devedor, no caso de inadimplência. Nesse contexto, também é comum a existência de um avalista do
mutuário, na cambial, que assina, igualmente, o instrumento de contrato. Isso desperta algumas
questões.
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que os problemas decorrentes da duplicidade de
instrumentos para a representação da mesma obrigação, a de garantia do mútuo, não guarda nenhuma
pertinência com os princípios gerais do direito cambiário. Alguns autores ligam a questão à da
autonomia das obrigações cambiais, procurando explorar a noção de que o aval não se poderia
alargar pelo constante do contrato, em razão da independência característica do regime cambiário. A
rigor, não existe liame nenhum entre os temas. A autonomia é postulado, cujas implicações
pressupõem a circulação do crédito. Ou seja, a sua importância diz respeito à impossibilidade de o
devedor cambial furtar-se ao cumprimento da obrigação, perante terceiro de boa-fé . Se o título não
entra em circulação, não cabe invocar-se a autonomia. Ora, a discussão da extensão das obrigações
do avalista, na hipótese de o contrato estabelecer encargos não previstos no título, independe desse
pressuposto; quer dizer, cabe mesmo se a cambial não circulou.
Segundo, o avalista, que se obrigou no título de crédito, responderá pelos encargos estabelecidos
no instrumento contratual, apenas se também o assinou. Cuida-se, aqui, de discutir a existência de
obrigação do avalista por certos pagamentos (tais como juros, comissão de permanência, multas
etc.), não constantes do título de crédito, mas expressos no contrato de mútuo subjacente. Caso se
verifique que o avalista assinou só a cambial, a previsão de encargos no contrato não o poderá
alcançar. A definição da inextensão das cláusulas contratuais ao devedor cambiário não obrigado
pelo contrato se reflete na jurisprudência (Súmula 26 do STJ).
“O avalista do título de crédito vinculado a contrato de mútuo também responde pelas obrigações pactuadas, quando no contrato figurar
como devedor solidário” (Súmula 26 do STJ).
Em segundo lugar, deve-se considerar a hipótese de a obrigação contraída no instrumento
contratual vir a ser denominada formalmente por “aval”. Ocorre, por exemplo, em contratos de
financiamento outorgado a sociedade empresária, em que se estipula cláusula pela qual o sócio
majoritário da sociedade garante, com o seu patrimônio pessoal, as obrigações da pessoa jurídica, na
qualidade de “avalista”. Trata-se, no entanto, de uma impropriedade técnica. Aval é ato exclusivo de
títulos de crédito e não pode ser firmado senão nos documentos dessa natureza. Na verdade, a
obrigação que o sócio assumiu, na oportunidade, foi a de uma verdadeira fiança, e o nome correto a
adotar seria “fiador” ou “devedor solidário” (cf. Bulgarelli, 1991). Por essa razão, malgrado a
denominação utilizada, o regime jurídico a se aplicar deve ser o do direito civil. Daí decorrem o
benefício de ordem e a acessoriedade da garantia. Havendo, em decorrência, no contrato, obrigações
não mencionadas no título de crédito, a elas se aplicam as regras da fiança, ainda que usada a
expressão “aval” no instrumento.
6. VENCIMENTO
O saque, aceite, endosso e aval são os atos de constituição do crédito cambiário. Por meio de sua
prática, criam-se vínculos jurídicos, pelos quais um sujeito se torna credor de outro, e esse devedor
daquele. O crédito assim constituído será exigível, quando atendidos determinados pressupostos. O
primeiro deles é o vencimento.
O vencimento da letra de câmbio, assim, se define como o fato jurídico que torna exigível o
crédito cambiário nela mencionado. Distingue-se o vencimento ordinário do extraordinário. O
primeiro, normalmente, se verifica com o decurso do tempo. Se o título diz “aos trinta e um de
janeiro de ...., pagará V.S ª por essa única via de letra de câmbio, etc.”, o que tornará exigível do
devedor o montante referido é o suceder dos dias. O fluir do tempo é o fato a que o direito positivo
atribui a qualidade de pressuposto para a cobrança do crédito documentado na cambial. Mas há,
também, outra hipótese de vencimento ordinário, que diz respeito aos títulos à vista. Neles, o fato
que torna exigível a obrigação cambiária é a apresentação da letra de câmbio ao sacado. Se ele,
diante da ordem que lhe dirigiu o sacador, assente em cumpri-la, deve fazê-lo de imediato. Se não
aceita a ordem, o título se torna igualmente exigível desde então, porque o tomador pode cobrá-lo do
sacador.
O vencimento extraordinário da letra de câmbio se dá em duas oportunidades: no caso de recusa
do aceite pelo sacado (LU, art. 43) e na falência do aceitante (Dec. 2.044/08, art. 19, II). Em relação
à primeira, lembre-se que o sacado, na letra de câmbio, não tem nenhuma obrigação cambial se não
praticar o ato de manifestação de sua concordância com a ordem que o sacador lhe endereça. Seu
aceite é sempre facultativo, de forma que a eventualidade da recusa está presente em qualquer letra.
Opera-se a antecipação do vencimento, no caso, a menos que o título tenha sido emitido com a
cláusula “não aceitável”, ou se trate de letra à vista.
Na segunda circunstância em que ocorre o vencimento extraordinário da letra de câmbio, a da
falência do aceitante, a exigibilidade antecipada é garantia dos credores. Note-se que é efeito de
qualquer falência a antecipação do vencimento de todas as obrigações do falido (LF, art. 77). Há, no
entanto, uma grande diferença entre a quebra do devedor principal do título de crédito e a de
codevedor. Quando falir o aceitante da letra, vencerá antecipadamente o título, de modo que o
credor poderá optar entre habilitar seu crédito na massa falida do devedor principal ou cobrá-lo, de
imediato, de qualquer codevedor; enquanto, falindo o sacador ou endossante, o credor pode se
habilitar no processo de falência do codevedor, mas não poderá executar o título contra os demais
obrigados, nem mesmo o devedor principal. E isso porque, na última hipótese, o título não venceu
antecipadamente, mas apenas a obrigação do falido, nele mencionada. A falência do sacador,
endossante e avalista, portanto, não são casos de vencimento extraordinário.
Quando se opera o vencimento antecipado da letra de câmbio, o seu valor se reduz, de acordo
com as taxas bancárias vigentes no local do domicílio do credor (LU, art. 48, in fine).
Classificam-se as letras, segundo o vencimento, em quatro espécies: a) letra com vencimento em
dia certo; b) letra à vista; c) letra a certo termo da vista; d) letra a certo termo da data. A letra de
câmbio em dia certo é aquela em que o sacador escolhe uma data (futura em relação à do saque) para
defini-la como vencimento. Corresponde à modalidade mais usual de título de crédito e se expressa
da seguinte forma: “aos trinta e um de janeiro de ..., pagará V.S ª por essa única via de letra de
câmbio, a importância de $ 100 a fulano etc.”. A letra de câmbio à vista vence com a apresentação
do título ao sacado, e adota texto como o seguinte: “À vista dessa única via de letra de câmbio,
pagará V.Sª a importância de etc.”. Por sua vez, a letra de câmbio a certo termo da vista tem o seu
vencimento definido pelo transcurso de um prazo, fixado pelo sacador, que se inicia na data do aceite
do título. Sua redação é, por exemplo: “três meses após o aceite, pagará V.S ª por essa única via de
letra de câmbio etc.”. Finalmente, a letra de câmbio a certo termo da data é a que vence com o
transcurso de prazo, igualmente fixado pelo sacador, que começa a fluir da data do saque. Seu texto
será algo como: “seis meses desta data, pagará V.S ª por essa única via de letra de câmbio a
fulano, a importância de $ 100. São Paulo, 31 de janeiro de ... etc.”.
7. PAGAMENTO
O pagamento da letra de câmbio extingue uma, algumas ou todas as obrigações cambiais nela
mencionadas, dependendo de quem paga.
Se o devedor principal paga a letra, o ato jurídico correspondente extingue todas as obrigações
documentadas no título. Se o pagamento é realizado pelo aceitante, assim, opera-se a desconstituição
da totalidade dos vínculos creditícios, liberando-se sacador, endossantes e avalistas da letra.
Se, contudo, é o codevedor que paga, o pagamento extingue a obrigação de quem pagou e a dos
devedores posteriores, e aquele que pagou pode exercer, em regresso, o direito creditício contra os
devedores anteriores.
O pagamento de título de crédito extingue uma, algumas ou todas as obrigações nele mencionadas, dependendo de quem o realiza.
Na verdade, a liberação dos devedores cambiários segue uma única regra, que é a de
desfazimento das obrigações posteriores à do devedor que cumpriu a obrigação documentada no
título. Como o devedor principal é o primeiro dos devedores, não há nenhum anterior a ele. Desse
modo, o seu pagamento extingue a totalidade das obrigações porque todos os demais devedores são
posteriores.
A cadeia de anterioridade-posteridade dos devedores cambiais se organiza a partir de três
critérios: a) o devedor principal é o primeiro; b) sacador e endossantes se localizam, pelo critério
cronológico; c) o avalista é o devedor imediatamente posterior ao seu avalizado. Desse modo, se
Antonio saca letra de câmbio contra Benedito (que a aceita), em favor de Carlos, e esse a endossa a
Darcy, que a endossa a Evaristo; e, além disso, se Fabrício presta aval em branco (que beneficia,
como visto, o sacador), Germano avaliza Benedito, Hebe dá aval a Carlos e Irene a Darcy, então
teremos uma letra de câmbio com 7 devedores: o aceitante Benedito, o sacador Antonio, os
endossantes Carlos e Darcy e os avalistas Fabrício, Germano, Hebe e Irene.
A cadeia de anterioridade-posteridade, no caso exemplificado, seguindo-se os critérios acima,
resulta: Benedito-Germano-Antonio--Fabrício-Carlos-Hebe-Darcy-Irene.
O credor Evaristo, no vencimento, deve procurar o devedor principal, para dele obter o
pagamento da letra de câmbio. Se o aceitante paga, todos os devedores são liberados de suas
obrigações. Se não paga, surge daí o direito de cobrança dos codevedores. Deve-se ressaltar que a
apresentação da letra ao devedor principal, para fins de pagamento, é condição inafastável para a
exigibilidade do crédito contra os codevedores. Se o credor não tentou o recebimento do crédito,
amigavelmente, do principal devedor do título, ele não tem, no direito cambiário, condições de
ajuizar ação contra os codevedores. A tentativa de cobrança extrajudicial do devedor principal é
condição sine qua non da exigibilidade do crédito cambial contra os codevedores; ou, como diz
Eunápio Borges, a apresentação da letra ao aceitante é ato preliminar e obrigatório, a que se encontra
condicionado por lei o pagamento do título (1971:99).
Apresentada a letra para pagamento ao aceitante, se ele não pagar, o credor (depois de
providenciar o protesto do título, conforme se examina à frente ) pode escolher qualquer um dos
codevedores para, amigável ou judicialmente, exigir o valor do crédito. Se Evaristo escolhe, no
exemplo acima, Carlos, o pagamento da letra opera a desobrigação dos codevedores posteriores
(Hebe, Darcy e Irene); e Carlos poderá cobrar, em regresso, os anteriores (Benedito, Germano,
Antonio e Fabrício). Caso opte por proceder à cobrança de Fabrício, o pagamento desse importa
apenas a extinção de sua própria obrigação, já que nenhum codevedor se localiza entre ele e Carlos.
Por sua vez, ao pagar a letra, Fabrício passa a titular do crédito, contra os devedores anteriores
(Benedito, Germano e Antonio), podendo exercer seu direito contra qualquer um deles.
7.1. Prazo para Apresentação
A letra deve ser apresentada, ao aceitante, para pagamento, no dia do vencimento. Se o título
vence num dia não útil, a apresentação deve ser feita no primeiro dia útil seguinte (Dec. 2.044/08,
art. 20). Para o direito comercial, útil é o dia com expediente bancário regular. Se é feriado, ou se as
autoridades com competência para o ato suspendem o atendimento bancário, o dia não se considera
útil para todos os efeitos da legislação comercialista. Também compromete a utilidade do dia, para o
direito comercial, a anormalidade do expediente, provocada por greve dos bancários ou qualquer
outra razão (Lei n. 9.492/97, art. 12, § 2º).
A regra de apresentação da letra ao aceitante no dia do vencimento é aplicável aos títulos
pagáveis no Brasil. Nesse caso, somente se admite a apresentação no primeiro dia útil seguinte, se o
vencimento recai em dia não útil. Caso o pagamento deva se realizar no exterior, a regra é diferente,
porque se admite a apresentação feita também nos dois dias úteis seguintes ao vencimento,
independentemente de ter esse recaído em dia útil ou não (LU, art. 38).
A inobservância do prazo de apresentação a pagamento, por si só, não traz nenhuma consequência
de relevo ao portador da letra de câmbio. A lei o estabelece, na verdade, para disciplinar o início da
fluência do prazo para o protesto, cuja desobediência — esta sim — pode ser prejudicial aos
direitos do credor. Apenas se a letra contém cláusula sem despesas, que dispensa o protesto, a
inobservância do prazo de apresentação a pagamento redunda na perda do direito de cobrança (LU,
art. 53). Quando não há essa cláusula, o prazo de apresentação para pagamento apenas serve para
definir o de protesto por falta de pagamento. Com efeito, se inadimplida a obrigação cambiária pelo
devedor principal, o credor da letra em dia certo deve encaminhá-la ao cartório de protesto nos dois
dias úteis seguintes ao que ela é pagável. Ora, a letra é pagável, no Brasil, no dia do seu vencimento,
ou, se não útil esse, no primeiro dia útil seguinte.
Existe, na lei, autorização a qualquer devedor da letra, para depositar o seu valor, na hipótese de
não apresentação tempestiva do título a pagamento (LU, art. 42). Quer dizer, se o endossatário
desobedece o prazo de apresentação a pagamento, o aceitante ou o codevedor podem proceder ao
depósito judicial do valor da cambial, à custa do credor. Corresponde a previsão legal a
circunstância difícil de se verificar, e a possibilidade do depósito não pode ser propriamente
entendida como sanção ao credor negligente.
Note-se, por fim, que sobre as consequências da inobservância do prazo de apresentação a
pagamento, e mesmo sobre a sua extensão, diverge a doutrina, tendo em conta o entendimento acerca
do conteúdo das reservas assinaladas pelo Brasil, ao texto da Lei Uniforme de Genebra. Mercado Jr.
e Fran Martins, por exemplo, reputam revogado o art. 20 do Decreto 2.044/08, e consideram que
vigora, em sua inteireza, o art. 38 da LU, enquanto não houver lei disciplinando a matéria. Para eles,
a letra de câmbio, tanto a pagável no Brasil, como no exterior, devem ser apresentadas ao aceitante
no dia do vencimento ou nos dois dias úteis seguintes (Mercado Jr., 1966:135; Martins,
1972:248/249).
7.2. Cautelas no Pagamento
A doutrina recomenda cautelas para quem paga título de crédito (Requião, 1971, 2:358/359). Em
primeiro lugar, em razão do princípio da literalidade, deve-se exigir a quitação no próprio título, já
que não produz efeitos jurídico-cambiais o ato lançado em instrumento à parte. A outra cautela
decorre do princípio da cartularidade, e consiste em exigir a entrega do título, indispensável para o
exercício do direito de regresso ou, pelo menos, para impedir que o documento seja transferido a
terceiro de boa-fé. Também cabe, por fim, registrar a conferência da regularidade dos endossos
como medida de cautela no pagamento dos títulos de crédito (LU, art. 40).
Atualmente, essas cautelas não se podem exigir mais, em especial dos consumidores, porque a
desmaterialização dos títulos de crédito criou uma nova realidade, em que se mostram desprovidos
de sentido essas noções tradicionais do direito cambiário. O instrumento que o devedor do título de
crédito recebe, da rede bancária, para quitar a obrigação, é a “guia de compensação”. Por meio dela
o pagamento poderá ser realizado em qualquer agência, de qualquer banco. Ora, não cabe imaginar
que o devedor poderia, nesse sistema, adotar as cautelas recomendadas pela doutrina comercialista.
Exatamente para que o pagamento se possa realizar em qualquer agência bancária do país,
possibilidade aberta em benefício do devedor, inclusive, não se pode minimamente cogitar de
contraentrega do título de crédito, devidamente quitado pelo credor.
Conclui-se, dessa maneira, que a inobservância das cautelas tradicionalmente apontadas, para o
pagamento de um título de crédito, não pode prejudicar o devedor, se o credor se utilizou do sistema
financeiro para a cobrança. Mesmo se o pagamento é feito diretamente ao credor, sem a
intermediação da rede bancária, cabe relativizar a inobservância das cautelas próprias do direito
cambiário, se o devedor é tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor.
8. PROTESTO
O protesto — define a lei — é “ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o
descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida” (Lei n. 9.492/97,
art. 1º). Esse conceito de protesto, embora legal, não é o correto. Há protestos que nele não se podem
enquadrar, como o de falta de aceite da letra de câmbio. Como visto, o sacado desse título (ao
contrário do que se verifica em relação à duplicata) não está obrigado a aceitar a ordem de
pagamento que lhe é dirigida. Ao recusar o aceite, ele não descumpre obrigação nenhuma, e, ainda
assim, caberá o protesto por falta de aceite, como condição indispensável ao vencimento antecipado
da letra.
Na verdade, o protesto deve-se definir como ato praticado pelo credor, perante o competente
cartório, para fins de incorporar ao título de crédito a prova de fato relevante para as relações
cambiais. Note-se que é o credor quem protesta; o cartório apenas reduz a termo a vontade expressa
pelo titular do crédito. Por meio desse ato, por outro lado, o credor formaliza a prova de fato
jurídico, cuja ocorrência traz implicações às relações creditícias representadas pela cambial.
Exemplificando: se o tomador da letra procura o sacador, antes do vencimento, e lhe exibe o título
sem a assinatura do sacado, exigindo, sob a alegação de recusa do aceite, que a dívida seja
imediatamente satisfeita, como poderá o mesmo sacador certificar-se da veracidade desse fato?
Note-se que somente se opera o vencimento antecipado da obrigação, se o título foi apresentado
realmente ao sacado e esse o recusou. Ora, a prova da falta de aceite é o protesto da letra. Outro
exemplo: se o endossatário, após o vencimento do título, procura o endossante, para dele exigir o
pagamento, como poderá o codevedor certificar-se de que o devedor principal foi, realmente,
procurado no prazo, para a tentativa amigável de solução da obrigação? Sabe-se que sem tal
pressuposto, não existe a obrigação do codevedor. É o protesto por falta de pagamento que o
provará.
Protesto é o ato praticado pelo credor, perante o competente cartório, para fins de incorporar ao título de crédito a prova de fato relevante
para as relações cambiais, como, por exemplo, a falta de aceite ou de pagamento da letra de câmbio.
Em relação à letra de câmbio, além desses dois tipos (falta de aceite e falta de pagamento), há,
ainda, o protesto por falta de data de aceite. Diz respeito à letra a certo termo da vista, em que o
sacado aceita o título, mas se esquece de mencionar a data em que pratica o ato. Como a letra dessa
categoria tem o seu vencimento definido a partir da aceitação da ordem pelo sacado, o portador pode
protestá-la para suprir a falta do termo inicial do respectivo prazo. Por evidente, a necessidade do
protesto existirá apenas se o aceitante, procurado para escrever a data do aceite no título, recusar-se
a fazê-lo. Nesse caso, ele será intimado para comparecer a cartório e datar o ato, sob pena de
protesto. Importa destacar que o protesto por falta de data de aceite da letra de câmbio a certo
termo da vista é hipótese raríssima, até mesmo porque o credor tem duas outras alternativas de
iguais efeitos jurídicos: a) preencher, ele mesmo, a letra, datando o aceite (Súmula 387 do STF); b)
considerar o aceite praticado no último dia do prazo de apresentação da letra (LU, art. 35).
A jurisprudência, atenta à facultatividade do aceite da letra de câmbio, tem considerado incabível
o protesto por falta de aceite deste título, como forma de preservar a pessoa do sacado dos efeitos
negativos que este ato projeta, mesmo quando não se destina a provar a falta de pagamento (TJSP,
Embargos Infringentes 991.06.019980-6, relatados pelo des. Alexandre Lazzarini).
8.1. Protesto por Falta de Pagamento
Se o aceitante não paga a letra de câmbio, no vencimento, o credor deve protestá-la por falta de
pagamento. Quando se trata de título com vencimento em dia certo, a providência deve ser adotada
nos 2 dias úteis seguintes àquele em que é pagável (LU, art. 44). Para as demais categorias de letra
de câmbio, variam os prazos pouca coisa. Concentre-se a atenção, contudo, na hipótese mais
corriqueira, de título com vencimento em dia certo.
Se o credor perde o prazo para a efetivação do protesto (isto é, para a entrega da cambial no
cartório), a consequência será a inexigibilidade do crédito mencionado na letra, contra os
codevedores e seus avalistas. Se o endossatário, assim, não obedece ao prazo legal para o protesto
por falta de pagamento, ele não poderá cobrar a letra do sacador, endossante e seus avalistas (LU,
art. 53). Continua, é certo, com o direito creditício contra o aceitante e o avalista do aceitante,
devedores perante os quais o desatendimento do prazo não produz efeitos.
Em razão das consequências que a lei estabelece para o descumprimento do prazo para protesto
por falta de pagamento da letra de câmbio, costuma a doutrina distinguir entre o protesto necessário
e o facultativo. No primeiro caso, destaca que a formalização do ato deve ser providenciada dentro
do prazo, para fins de conservação do direito creditício contra os codevedores (sacador e
endossantes) e respectivos avalistas. No segundo, dá relevo ao fato de que a cobrança judicial do
devedor principal (aceitante) e respectivo avalista independe de protesto. No exemplo mencionado
(item 7), se Evaristo perde o prazo da lei, e encaminha o título ao cartório de protesto, depois de
transcorridos dois dias úteis daquele em que era pagável, ou mesmo se ele deixa de protestar a letra,
somente poderá cobrá-la de Benedito e Germano. A falta de observância do prazo é irrelevante,
porque o protesto é facultativo contra esses devedores. Em relação aos demais, contudo, ficam
liberados de suas obrigações cambiais, porque contra os codevedores é necessário o protesto.
O protesto da letra de câmbio dentro do prazo da lei é condição necessária para a cobrança contra o sacador, endossantes e seus avalistas,
mas não contra o aceitante e respectivo avalista.
Anote-se que a letra pode ser sacada com a cláusula “sem despesas” (também chamada “sem
protesto”). Se o caso, o credor está dispensado do protesto cambial, contra quaisquer devedores. Por
outro lado, o endossante e o avalista também podem incluir, nos respectivos atos, a mesma cláusula
e, assim, dispensar o credor da efetivação tempestiva do protesto por falta de pagamento, para fins
de conservação do direito creditício contra eles. No exemplo de sempre, se Carlos, ao endossar a
letra, escreve “pague-se, sem despesas, a Darcy”, e Fabrício assina sob “por aval, sem despesas”,
então o credor Evaristo, perdendo o prazo legal para o protesto por falta de pagamento, poderá ainda
cobrar o título de Benedito (aceitante), Germano (avalista de aceitante), Fabrício (avalista “sem
despesas”) e Carlos (endossante “sem despesas”).
8.2. Pagamento em Cartório
A partir do vencimento do título, incidem juros de mora e correção monetária. Por isso, o
pagamento da letra de câmbio em cartório, para fins de evitar a efetivação do protesto, deve
compreender esses encargos, além do valor do título. Também será devido, na hipótese, o reembolso
das despesas e custas incorridas pelo credor, na tentativa de protestar a cambial.
No passado, adotava-se o entendimento de que os juros somente eram devidos a partir do protesto
da cambial, porque o direito comercial brasileiro, ao contrário do civil, não consagrava o princípio
dies interpellat pro homine. Em outros termos, o Código Comercial, de 1850, era mais formal na
caracterização da mora dos devedores que o Código Civil, de 1916: enquanto esse a reputava
caracterizada pelo simples inadimplemento, aquele a condicionava à interpelação judicial. Com a
vigência da lei uniforme, contudo, não mais é possível sustentar-se tal distinção, na medida em que o
art. 48 assegura ao portador da cambial o direito aos juros “desde a data do vencimento” (cf.
Martins, 1972:287). Em relação à letra de câmbio — e também à nota promissória — a incidência de
juros não depende do protesto.
A correção monetária, por sua vez, é devida em decorrência do previsto na Lei n. 6.899/81, que a
assegura, a partir do vencimento, nas execuções de títulos extrajudiciais. Ora, se o credor pode
exigir, em juízo, a atualização monetária, ele também a pode cobrar do devedor, no âmbito
extrajudicial, ainda que não exista expressa menção no texto do documento creditício. A propósito,
quando é esse o caso, o credor deve, ao encaminhar o título ao cartório de protesto, apresentar
também o demonstrativo do valor atualizado e do critério de atualização (Lei n. 9.492/97, art. 11).
8.3. Cancelamento do Protesto
O protesto, em seus lineamentos conceituais, é ato do credor, para a prova da ocorrência de fato
relevante às relações creditícias. Como ato unilateral do titular do crédito, não deveria, em
princípio, afetar os direitos do devedor. Quem soubesse do protesto de título contra Benedito, não
estaria, rigorosamente falando, autorizado a formular conceito negativo dele. O protesto indicaria, ao
contrário, apenas que Evaristo manifestou sua contrariedade à falta de pagamento da letra, para não
perder o direito de a exigir do sacador, endossantes e seus avalistas. Mas, sabemos todos, não é
assim a reação dos que tomam conhecimento da existência do ato. O protesto, de fato, passou a
cumprir a função de índice de pontualidade de certo sujeito, no cumprimento de suas obrigações.
Quem figura como protestado tem reais dificuldades de acesso a crédito, porque, no meio bancário e
empresarial, a certidão positiva de protesto de títulos é prova de inidoneidade dos que nela figuram
como devedores.
Mais do que ato de conservação de direitos creditícios, o protesto é hoje instrumento extrajudicial
de cobrança. Por essa razão, a lei autoriza o seu cancelamento, quando o devedor paga o título, após
o protesto (Lei n. 9.492/97, art. 26).
O cancelamento do protesto do título cabe na hipótese de o devedor vir a pagá-lo posteriormente.
Procede-se ao cancelamento do protesto por meio de pedido formulado pelo devedor, ou terceiro
interessado (por exemplo, o sucessor), perante o Tabelionato de Protesto de Títulos. O pedido
deverá vir instruído pelo próprio título protestado ou por declaração de anuência do credor. Na
primeira hipótese, o pagamento é presumido pela posse da cambial, em decorrência do princípio da
cartularidade. De fato, se o devedor se encontra com a letra de câmbio protestada em suas mãos, a
presunção é a de que o credor recebeu o que lhe era devido. Caso contrário, não teria se
desapossado do documento. Na outra hipótese, a anuência supre a exibição do título de crédito
objeto de protesto. Se a letra de câmbio não havia circulado, ela é dada pelo tomador (que é o
“credor originário”, a que se reporta o texto legal); se circulou, caberá ao endossatário anuir com o
cancelamento. Note-se que, na hipótese de endosso impróprio, o credor do título ainda é o
endossante, e cabe exclusivamente a ele — e não ao endossatário — a declaração para o
cancelamento.
Por evidente, se o crédito foi registrado em meio magnético, a baixa do protesto dependerá da
declaração de anuência do credor, já que não existe o título protestado.
9. AÇÃO CAMBIAL
Ação cambial é a de cobrança do direito creditício mencionado em título de crédito. Ela se
diferencia das demais ações de cobrança unicamente porque apresenta a particularidade de limitar as
matérias de defesa do devedor, quando o credor é terceiro de boa-fé. Nenhuma outra diferença
existe, quer em termos de pressupostos, condições da ação, procedimento ou demais aspectos de
direito processual civil. Em outros termos, a ação é cambial se o demandante, se terceiro de boa-fé,
tem o direito de invocar a inoponibilidade de exceções pessoais, para postular a desconsideração,
pelo juiz, de matérias de defesa estranhas à sua relação com a parte demandada. Quando admitida
essa desconsideração, a ação é cambial.
Cobram-se, normalmente, os títulos de crédito por execução, já que a lei processual os define
como títulos executivos extrajudiciais (CPC, art. 585, I). E, nesse caso, os embargos à execução
submetem-se aos limites decorrentes do princípio da inoponibilidade. Cabe ressaltar que, sendo o
executado codevedor ou avalista de codevedor, o título de crédito somente apresenta força executiva,
se acompanhado de instrumento de protesto que ateste ter sido protocolizado no prazo legal, junto ao
cartório do lugar do pagamento. Caso não preenchida a condição, não disporá o portador da letra de
título hábil à propositura da medida judicial satisfativa. Qualquer direito que pretenda invocar contra
o sacador, endossante e seus avalistas, dependerá de ação de conhecimento, sem a natureza cambial.
Contra o aceitante e seu avalista, a simples exibição da letra de câmbio, com ou sem protesto, é
suficiente para instaurar-se a execução.
O credor pode executar o título de crédito contra todos os devedores, identificando como
executados, em sua petição inicial, o devedor principal, os codevedores e avalistas da letra. A
ordem de anterioridade-posteridade dos devedores cambiais só interessa, para fins de cobrança
amigável ou para o exercício de direito de regresso. Normalmente, após obter sucesso na cobrança
do crédito contra um dos executados, o credor deve desistir dos demais, ou pedir a suspensão da
execução contra eles, de forma a se evitar o enriquecimento indevido.
A ação cambial é a execução, porque os títulos de crédito são definidos, na legislação processual (CPC, art. 585, I), como títulos executivos
extrajudiciais. Verificando-se, contudo, a prescrição fixada na legislação cambiária, caberá a ação causal, de natureza cognitiva.
Para a ação cambial, fixou a lei uniforme o prazo prescricional (LU, art. 70). A execução da letra
de câmbio, assim, deve ser ajuizada contra o devedor principal e seu avalista, em 3 anos, a contar do
vencimento; contra os codevedores, em 1 ano, contado do protesto (ou do vencimento, no caso de
cláusula “sem despesas”); para o exercício de direito de regresso contra codevedor, em 6 meses, a
partir do pagamento ou do ajuizamento da execução. Como prazos prescricionais, operam--se, em
relação à sua fluência, os fatores de suspensão e interrupção prescritos pelo direito civil, não
existindo nenhuma regra específica do direito cambiário para a matéria.
Prescrita a execução, ninguém poderá ser acionado em virtude da letra de câmbio. No entanto, se
a obrigação que se encontrava representada pelo título de crédito tinha origem extracambial, seu
devedor poderá ser demandado por ação de conhecimento (Dec. n. 2.044/08, art. 48) ou por
monitória, nas quais a letra serve, apenas, como elemento probatório. Essas ações são chamadas de
“causais”, porque discutem a causa da obrigação e não o seu documento. O devedor cuja obrigação
tenha se originado exclusivamente no título de crédito — como é, em geral, o caso do avalista —,
após a prescrição da execução cambial, não poderá ser responsabilizado em nenhuma hipótese
perante o seu credor, já que não há causa subjacente a fundamentar qualquer pretensão ao
recebimento do crédito. Por outro lado, como a ação causal não é cambial, são admitidas quaisquer
matérias de defesa por parte do demandado.
A ação causal (seja de conhecimento ou monitória) prescreve, por sua vez, de acordo com o
disposto na legislação aplicável ao vínculo extracambiário que une as partes da demanda: por
exemplo, o contrato de compra e venda que deu origem ao título, o mútuo que foi cumprido por meio
do endosso etc. Se inexistir regra específica, prescreverão, em 5 anos, contados da data em que
poderiam ter sido propostas (CC, art. 205, § 5º, I). O termo inicial de prescrição da ação causal,
portanto, não é o exaurimento do prazo prescricional da ação cambial, mas a data — que pode
mesmo ser até anterior à do saque do título de crédito — em que a medida poderia ter sido ajuizada.
Capítulo 12
NOTA PROMISSÓRIA
1. REQUISITOS DA NOTA PROMISSÓRIA
A nota promissória é uma promessa de pagamento. Seu saque gera, em decorrência, duas situações
jurídicas distintas: a de quem, ao praticar o saque, promete pagar; e a do beneficiário da promessa. O
primeiro é referido, na lei uniforme, por subscritor (embora não esteja incorreto chamá-lo sacador,
emitente ou promitente); e o segundo é o tomador (por vezes chamado também de sacado). Pela nota
promissória, o subscritor assume o dever de pagar quantia determinada ao tomador, ou a quem esse
ordenar.
O devedor principal da nota promissória é o seu subscritor, aquele que, mediante o saque,
concorda em representar sua dívida perante o tomador, por meio de um documento de efeitos
cambiários. Ao manifestar tal vontade, anui o emitente com a negociação, pelo tomador, do seu
crédito junto a terceiros, os quais passam a titularizar direito creditício autônomo à relação jurídica
primária, de que havia se originado a dívida. Quem concorda em se obrigar por uma nota
promissória, está assentindo com a circulação do crédito correspondente, segundo o regime
cambiário. Ninguém está obrigado ao saque da nota promissória, e o credor não pode impor ao
devedor essa específica alternativa de documentação da relação jurídica que os vincula (salvo se o
obrigado houvera assumido o compromisso de sacar a nota, em contrato).
A nota promissória é uma promessa do subscritor de pagar quantia determinada ao tomador, ou à pessoa a quem esse transferir o título.
Para que produza os efeitos de uma nota promissória, o documento deve atender a determinados
requisitos. Somente se revestido da formalidade prescrita por lei, o instrumento escrito poderá ser
transferido e cobrado, sob o regime do direito cambiário. Caso não atenda aos requisitos que lhe
conferem natureza cambial, o documento produzirá apenas efeitos civis, quer dizer, sua transferência
se opera por cessão civil de crédito e sua cobrança não se beneficia da inoponibilidade das exceções
pessoais aos terceiros de boa-fé. São os seguintes os requisitos da nota promissória (LU, arts. 75 e
76): a) a expressão “nota promissória”, inserta no texto do título, na mesma língua utilizada para a
sua redação; b) a promessa incondicional de pagar quantia determinada; c) nome do tomador; d) data
do saque; e) assinatura do subscritor; f) lugar do saque, ou menção de um lugar ao lado do nome do
subscritor.
Em vista da relação dos elementos indispensáveis a essa espécie de título de crédito, pode-se
concluir, a exemplo do mencionado em relação à letra de câmbio, que não produzirá efeitos cambiais
a nota promissória emitida ao portador, já que o nome do tomador é exigido. Também não poderá ser
considerada nota o título que sem indicação de valor líquido, ou que sujeite a exigibilidade da
promessa a qualquer sorte de condição, suspensiva ou resolutiva. Uma nota, portanto, redige-se
assim: “aos trinta e um de janeiro de ..., pagarei, por essa única via de nota promissória, a fulano
ou à sua ordem, a importância de $ 100. Local e data do saque, assinatura do subscritor”.
Deve-se registrar que, além dos requisitos necessários à nota promissória, a referência à época e
lugar do pagamento também convém ser feita. A falta de menção a esses elementos, contudo, não
desnatura o documento como nota promissória, na medida em que, faltando época do pagamento,
reputa-se o título à vista; e, faltando o lugar, considera-se pagável no local do saque ou no
mencionado ao lado do nome do subscritor.
2. REGIME JURÍDICO DA NOTA PROMISSÓRIA
A nota promissória está disciplinada pelo mesmo regime jurídico aplicável às letras de câmbio.
Todos os aspectos examinados anteriormente (Cap. 11), relativos à constituição e exigibilidade do
crédito cambiário, compõem, em princípio, o quadro jurídico de regência da nota promissória.
Apenas se justificam quatro observações, de modo a ajustar o regime definido para a letra de câmbio
às particularidades desse outro título.
O regime da nota promissória é o da letra de câmbio, com quatro ajustes.
Em primeiro lugar, não se aplicam às notas promissórias as regras da letra de câmbio
incompatíveis com a natureza de promessa de pagamento apresentada por aquelas. Como já
assentado, as letras são ordens de pagamento e, em razão disso, há dispositivos na legislação
referente àquelas que não podem incidir sobre a nota, exatamente porque possui natureza de
promessa, e não de ordem de pagamento. Em geral, são os regradores da apresentação do título ao
sacado, para aceite, e das consequências das condutas derivadas do ato (recusa, total ou parcial, ou
aceitação da ordem). Por exemplo, as normas sobre cláusula “não aceitável”, prazos de apresentação
ao sacado, prazo de respiro, forma do aceite, recusa parcial, vencimento antecipado e outras são
insuscetíveis de aplicação às notas promissórias. Da própria natureza de promessa de pagamento
segue-se a inoperância dos comandos normativos correspondentes.
Em segundo lugar, define a lei que se aplica ao subscritor da nota promissória as regras do
aceitante da letra de câmbio (LU, art. 78). A equiparação decorre do fato de serem ambos os
devedores principais dos respectivos títulos. Desse modo, a prescrição da execução da nota contra o
subscritor é igual à da execução da letra contra o aceitante (quer dizer, 3 anos, nos termos do art. 70
da LU); outro exemplo, o protesto do título é facultativo contra o subscritor da nota promissória,
porque assim é em relação ao aceitante da letra; também, a falência do subscritor antecipa o
vencimento da nota promissória, já que a do aceitante produz o mesmo efeito em relação ao da letra
de câmbio (Dec. n. 2.044/08, art. 19, II).
A terceira observação, relacionada ao ajustamento do regime da letra à disciplina das notas, diz
respeito à figura do avalizado, no aval em branco. Conforme esclarece o legislador, na nota, o
subscritor é o beneficiário do aval desse tipo. Assim, se o avalista não identifica o devedor em favor
do qual está prestando a garantia, considera-se que foi ao subscritor da nota que se pretendeu
beneficiar (LU, art. 77, in fine).
Por fim, cabe ressalvar que a nota promissória admite a modalidade “a certo termo da vista”, por
expressa previsão legal (LU, art. 78). De fato, a partir da regra assentada na primeira observação
acima — isto é, a de que não se aplicam à nota as disposições relativas à letra, incompatíveis com a
sua natureza de promessa de pagamento —, decorreria a conclusão da impossibilidade de saque
daquele tipo de nota promissória. Com efeito, a letra de câmbio a certo termo da vista tem o início da
fluência do prazo de vencimento condicionado ao aceite. Ora, como o aceite simplesmente não existe
na nota promissória, não se poderia transpor o mesmo mecanismo a esse título de crédito. Contudo,
na medida em que a lei disciplinou a figura, tais obstáculos são superados. Funciona assim: o
subscritor promete pagar quantia determinada, ao término de prazo por ele definido e cujo início se
opera a partir do visto, a ser oportunamente dado na nota (“trinta dias após o visto, pagarei por
essa única via de nota promissória etc.”). O portador da cambial, no caso, tem o prazo de um ano, a
contar do saque, para apresentá-la ao visto do subscritor. Praticado o ato, começa a fluir o termo
mencionado no título, e, consumado esse, dá-se o vencimento. Se, por outro lado, o visto é negado
pelo subscritor, caberá ao portador protestar a nota, correndo o prazo de vencimento a partir da data
do protesto.
As quatro observações acima — a) inaplicabilidade das regras incompatíveis com a natureza de
promessa de pagamento da nota; b) equiparação do subscritor da nota ao aceitante da letra; c)
subscritor da nota é o avalizado, no aval em branco; d) a nota promissória a certo termo da vista
vence depois de decorrido o prazo nela mencionado, a partir do visto —, ajustam o regime da letra
de câmbio ao da nota. No tocante ao saque, endosso, aval, vencimento, pagamento, protesto, ação
cambial e prescrição são idênticas as normas aplicáveis aos dois títulos.
Capítulo 13
CHEQUE
1. CONCEITO DE CHEQUE
Cheque é ordem de pagamento à vista, emitida contra um banco, em razão de provisão que o
emitente possui junto ao sacado, proveniente essa de contrato de depósito bancário ou de abertura de
crédito. Para parte da doutrina comercialista, trata-se de título de crédito impróprio, mais bem
definido como meio de pagamento do que como instrumento de circulação creditícia. É o
entendimento, por exemplo, de Fran Martins, que conclui da necessidade da provisão de fundos, do
emitente junto ao sacado, a descaracterização do crédito em abstrato (1986:11). Também Pontes de
Miranda nega ao cheque, expressamente, a condição de título de crédito, afirmando tratar-se de
instrumento de apresentação e resgate , de perfil cambiariforme (1956, 37:10). A maioria dos
autores brasileiros, no entanto, afirma a sua natureza de título de crédito próprio, isto é, sujeito às
regras de circulação e cobrança do direito cambiário (Bulgarelli, 1979:257/258; Borges, 1971:161;
Requião, 1971, 2:397). Da discussão não se seguem consequências de relevo, porque a legislação
disciplinar do cheque é satisfatoriamente detalhada (LC: Lei n. 7.357/85). Se ela fosse lacunosa, aí
sim poderiam existir dúvidas sobre a constituição e circulação do documento — se cambial ou civil
—, cabendo, então, o aprofundamento da discussão sobre a sua natureza, como modo de solucionálas.
O cheque é título de crédito de modelo vinculado, só podendo ser eficazmente emitido no papel
fornecido pelo banco sacado (em talão ou avulso). Por essa razão, não costuma gerar incertezas a
eficácia chéquica de certo documento. Quero dizer, a nota promissória pode ser lançada em qualquer
papel, apresentando os mais variados padrões, já que é título de modelo livre. Assim, por vezes,
discute-se se um documento em particular, a que se denominou “nota promissória”, efetivamente
produz os efeitos cambiários de uma. A superação do problema depende, no caso, da análise do
atendimento aos requisitos legais relativos à promessa (LU, arts. 75 e 76). Mas o mesmo quadro
raramente se encontra, na hipótese de crédito documentado em cheque, devido a sua qualidade de
título de modelo vinculado. De qualquer forma, para se definir se determinado papel, que, embora
atenda aos parâmetros regulamentares de padronização do cheque, teve sua eficácia cambial posta
em questão, o critério será a aferição do atendimento aos requisitos legais do título.
Cheque é a ordem de pagamento à vista, emitida contra um banco, em razão de fundos que o emitente possui junto ao sacado.
Nesse sentido, são essenciais ao cheque (LC, arts. 1º e 2º): a) a palavra “cheque”, escrita no texto
do título, na língua empregada para a sua redação; b) a ordem incondicional de pagar quantia
determinada; c) o nome do banco a quem a ordem é dirigida (sacado); d) data do saque; e) lugar do
saque ou menção de um lugar junto ao nome do emitente; f) assinatura do emitente (sacador).
O primeiro requisito (a) corresponde à “cláusula cambial”, isto é, à manifestação da vontade do
emitente, no sentido de se obrigar por título cuja circulação e cobrança seguem o regime próprio do
direito cambiário. Quando alguém assina um cheque, expressa sua concordância com a negociação
do crédito, pelo sacado, junto a terceiros desconhecidos, perante os quais não poderão ser opostas
exceções fundadas na relação originária do título. Todo o complexo normativo decorrente dos
princípios da cartularidade, literalidade e autonomia das obrigações cambiais, e demais regras
próprias aos títulos de crédito são, desse modo, aceitas pelo emitente, no momento do saque.
Ninguém está obrigado a documentar sua dívida por cheque; se o faz, concorda em vir a pagar,
eventualmente, o valor do título a terceiro portador de boa--fé, mesmo que tenha razões
juridicamente válidas para questionar a existência ou extensão da dívida, perante o credor originário.
Não se trata, assim, de mera formalidade, encerrada em si mesma, a exigência da palavra “cheque”
no texto do documento.
No atendimento ao segundo requisito (b), o cheque precisa o valor que o banco sacado deve pagar
ao credor do título. Entre a indicação por extenso e em algarismos, a primeira prevalece em caso de
divergência (LC, art. 12). Por outro lado, é proibida a previsão de juros, para cobrir o lapso entre o
saque do cheque e o dia de sua liquidação pelo sacado (LC, art. 10); os juros somente poderão ser
exigidos na cobrança judicial do cheque não liquidado, quando incidem a partir da data da entrega do
título ao banco sacado (LC, art. 53, II).
O nome do banco a quem a ordem de pagamento é dirigida deve constar também do título (c),
sendo comum a designação de uma agência da instituição financeira sacada, em que se encontra
centralizada a administração dos fundos titularizados pelo emitente do cheque.
A data do saque (d) deve ser expressa pelo dia, mês e ano em que o sacador preencheu o cheque.
Como se trata de ordem de pagamento à vista, não caberia, em princípio, a inserção de qualquer
outra data no instrumento. Desenvolveu-se, no Brasil, no entanto, a prática de utilizar o cheque como
meio de documentar a concessão de crédito ao consumidor, com a indicação de data futura no campo
próprio do título (pós-datação), representando o acordo das partes quanto ao momento em que o
título deve ser liquidado (item 2). O direito brasileiro já contemplou norma obrigando que o mês se
indicasse por extenso no cheque. Era o Dec. n. 22.393/33, que alguns autores ainda reputam em vigor
(Martins, 1986:40). De qualquer forma, é da conveniência do sacador que o mês se escreva
extensivamente, e não em algarismos, para que se reduzam as possibilidades de adulteração da data.
O lugar do saque (e) é aquele em que se encontra o sacador, no momento em que preenche o
cheque. Sua importância é fundamental, porque o prazo para a apresentação do título ao banco
sacado varia de acordo com a coincidência, ou não, entre o município do local do saque e o da
agência pagadora. Quando coincidentes, o cheque se considera da mesma praça e deve ser
apresentado ao sacado nos 30 dias seguintes ao da emissão; se incoincidentes, ele é de praças
diferentes, e o prazo de apresentação se alarga para 60 dias. Note-se que o sacador deve informar o
lugar em que ele se encontra, quando expede a ordem de pagamento. A força do hábito, no entanto,
faz com que a maioria de nós lancemos, como local de emissão, o município de nossa residência,
ainda que estejamos em viagem pelo país. A segurança das relações jurídicas importa a presunção
absoluta de que o escrito é verdadeiro; quer dizer, não interessa onde de fato se encontrava o
sacador, no momento do saque, mas exclusivamente o constante do título. O credor, ao receber sem
oposição o cheque, manifestou sua concordância com a redução do prazo de apresentação.
Também é requisito essencial do cheque a assinatura do emitente (f), que pode ser mecânica, ou
por processo equivalente, por exemplo eletrônico (LC, art. 2º, parágrafo único). O sacador deve
estar, por outro lado, identificado no cheque, por meio de seu nome e do número de inscrição no
Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), em razão do disposto no art. 3º da Lei n. 6.268/75, e da
disciplina regulamentar do Banco Central.
Há, ainda, um requisito essencial do direito brasileiro, para os cheques superiores a R$ 100,00,
que é a identificação do tomador, da pessoa em favor de quem é passada a ordem de pagamento.
Cheques ao portador somente são liquidados se o valor é de até R$ 100,00, inclusive (Lei
n. 9.069/95, art. 69). Além dos requisitos acima listados, indispensáveis à eficácia chéquica do
documento, convém ao título mencionar o lugar do pagamento, ou indicar um local ao lado do nome
do sacado, para essa finalidade. Caso não se encontre essa menção no cheque, reputa-se pagável no
lugar da emissão, ou no designado ao lado do nome do emitente (LC, art. 2º, I).
1.1. Circulação do Cheque
O cheque tem implícita a cláusula “à ordem”, significa dizer que se transmite normalmente
mediante endosso. O endossante, é claro, torna-se codevedor do título e está sujeito à execução, caso
o cheque seja devolvido pelo banco sacado por insuficiência de fundos. O endosso do cheque admite
a cláusula “sem garantia”, pela qual o endossante não assume, em relação ao título, nenhuma
responsabilidade cambial. Cabe, também, no cheque, o endosso-mandato, em que o endossatário se
investe na condição de mandatário do endossante e não se torna o titular do crédito (LC, art. 26).
Poderá o emitente inserir no cheque a cláusula “não à ordem”, hipótese em que a sua circulação
será regida pelo direito civil. Lembrem--se as duas diferenças entre o endosso e a cessão civil de
crédito: o transmitente responde pela solvência do devedor quando endossante (LC, art. 21), mas não
responde se é cedente; o recebedor está imunizado perante exceções pessoais se endossatário (LC,
art. 25), mas não está quando é cessionário do crédito. Importa registrar que não se confundem o
cheque “não à ordem” e o “não transmissível”, que a legislação uniforme de Genebra, de 1931, prevê
(Anexo II, art. 7º). O primeiro, como se disse, circula de acordo com o regime do direito civil, mas a
sua transmissão e negociação não é vedada. Já o cheque “não transmissível” ostenta cláusula
obstativa de qualquer ato de circulação do crédito, definindo-se, no momento do saque, a única
pessoa em favor da qual o cheque poderá ser liquidado. O Brasil, ao aderir à Convenção de
uniformização da lei do cheque, em 1942, assinalou a reserva que o autoriza a introduzir, em sua
legislação, a cláusula de intransmissibilidade do cheque. Como, no entanto, não cuidou o legislador
de contemplar a hipótese, em 1985, conclui-se que, por enquanto, o direito brasileiro não admite o
cheque “não transmissível”. Qualquer cláusula inserida no cheque, para impedir a sua negociação, é
inválida e ineficaz, reputando-se, no caso, o título plenamente negociável mediante endosso.
O cheque “não à ordem” é transferível mediante cessão civil de crédito. Não se confunde com o cheque “não transmissível”, que não circula.
Sobre a circulação do cheque, importa registrar, finalmente, que a legislação tributária, quando
elege a movimentação financeira como fato imponível de imposto, costuma limitar o número de
endosso que o cheque pode receber, com o objetivo de forçar a verificação da hipótese de
incidência, isto é, a constituição da obrigação de pagar o tributo. De constitucionalidade
questionável, essas limitações impedem que o cheque tenha mais de um endosso. Da vedação de mais
de um endosso, surgem, inclusive, problemas para atividades de fomento mercantil, que geralmente
faturizam cheques pós-datados. Pois bem, nos períodos de incidência de norma tributária limitativa
de endosso, nenhum problema há na transferência do crédito documentado pelo cheque, por meio de
cessão civil. Assim, desde que o tomador, ao transmiti-lo para o endossatário (primeiro e único
endosso), insira a cláusula “não à ordem” no seu ato translativo (LC, art. 21, parágrafo único), o
cheque passa a circular por cessão civil, ato não limitado pela lei tributária. A transmissão do
crédito pode se multiplicar, sem qualquer limitação quantitativa, sob o regime do direito civil. O
banco sacado não pode se recusar a liquidar o cheque, que circulou dessa forma, não interessando o
número de cedentes e cessionários.
1.2. Modalidades
Há quatro modalidades de cheque: a) visado; b) administrativo; c) cruzado; d) para se levar em
conta.
O cheque visado é aquele em que o banco sacado, a pedido do emitente ou do portador legítimo,
lança e assina, no verso, declaração confirmando a existência de fundos suficientes para a liquidação
do título (LC, art. 7º). Somente pode receber visamento o cheque nominativo ainda não endossado.
Ao visar o cheque, o banco sacado deve reservar, da conta de depósito do emitente, numerário
bastante para o pagamento do título, realizando o lançamento de débito correspondente. Os efeitos do
visamento estão limitados ao prazo de apresentação do cheque, de modo que, após o seu transcurso,
caso o cheque não lhe tenha sido apresentado, o banco estorna a reserva, lançando o respectivo
crédito na conta de depósito do emitente. A mesma operação deve ser feita, se o cheque visado é
apresentado ao banco sacado para inutilização.
O visto do cheque não exonera o emitente, endossantes e demais devedores, e não importa
nenhuma obrigação cambial do banco sacado. Em decorrência, sendo o cheque visado apresentado
ao sacado, para liquidação, depois de vencido o prazo de apresentação, e não havendo suficiente
provisão de fundos, ele será restituído ao apresentante, que não poderá responsabilizar o banco pelo
cheque. A instituição financeira somente poderá ser responsabilizada, se deixou de proceder à
reserva que a lei determina, mas isso não em decorrência do direito cambiário, mas sim pelas
normas gerais de responsabilidade civil, por ato culposo. Aliás, no direito brasileiro anterior a
1985, havia o cheque marcado, em que o banco, em vez de liquidar prontamente o título, podia
designar outra data para o pagamento, tornando-se, nesse caso, codevedor da obrigação cambial do
emitente. O cheque marcado não existe mais no direito brasileiro, é incompatível com a legislação
uniforme do assunto. É certo, portanto, que o visamento não produz efeitos iguais aos da marcação,
restando ao credor do cheque visado sem fundo apenas a alternativa de executar o emitente ou
eventuais endossantes e avalistas.
As modalidades de cheque são quatro: visado, administrativo, cruzado e para se levar em conta.
O cheque administrativo é o emitido pelo banco sacado, para liquidação por uma de suas
agências. Nele, emitente e sacado são a mesma pessoa (LC, art. 9º, III); ou seja, a instituição
financeira ocupa, simultaneamente, a situação jurídica de quem dá a ordem de pagamento e a de seu
destinatário. O pressuposto do cheque administrativo, também chamado bancário, é a
nominatividade. Se a lei admitisse sua emissão “ao portador”, poderia o título de uma instituição
financeira conceituada acabar substituindo o papel-moeda. Serve essa modalidade de cheque ao
aumento da segurança no ato de recebimento de valores. O vendedor de imóvel, ao outorgar a
escritura ao comprador, em negócio à vista, normalmente exige o pagamento em cheque
administrativo de banco de primeira linha, porque a probabilidade de esse título não ter fundos é
remotíssima.
A terceira modalidade é a do cheque cruzado. O cruzamento se realiza pela aposição, no anverso
do cheque, de dois traços transversais e paralelos. Tanto o emitente como qualquer portador podem
cruzar o título (LC, art. 44). Há duas espécies de cruzamento: o geral (ou “em branco”), que não
identifica nenhum banco no interior dos dois traços; e o especial (ou “em preto”), em que certo banco
é identificado, por seu nome ou número no sistema financeiro, entre os mesmos traços. O cruzamento
se destina a tornar segura a liquidação de cheques ao portador, já que, uma vez cruzado o título,
sempre seria possível, a partir de consulta aos assentamentos do banco, saber em favor de que
pessoa ele foi liquidado. O cheque não cruzado ao portador pode ser pago diretamente no caixa da
agência sacada, hipótese em que não se poderá conhecer a pessoa que recebeu o correspondente
valor. Claro que a utilidade do cruzamento é reduzida, no direito brasileiro, em razão da
obrigatoriedade da forma nominativa dos cheques superiores a R$ 100,00.
O cheque com cruzamento geral somente pode ser pago a um banco. Desse modo, se o tomador
concordou em receber cheque cruzado, ou ele próprio o cruzou, deverá encaminhá-lo ao banco no
qual mantém conta de depósito, para que esse cobre o título do sacado. Já, se for especial o
cruzamento, o cheque somente poderá ser pago ao banco mencionado no interior dos dois traços; e,
assim, o tomador deverá procurar exatamente a instituição financeira designada no cruzamento e
contratar dela os serviços de recebimento do respectivo valor. Se não possui conta no banco referido
no cruzamento especial, o tomador (ou o endossatário) deveria ter-se recusado a receber o cheque,
porque somente poderá liquidá-lo após contratar depósito bancário com aquela específica
instituição. O pagamento do cheque cruzado se realiza por lançamento na conta de depósito
titularizada pelo credor do título, se o banco encarregado da cobrança é também o sacado.
Por derradeiro, o cheque para se levar em conta é aquele em que o emitente ou o portador
proíbem o pagamento do título em dinheiro. A cláusula “para ser creditado em conta” deve constar
do anverso do cheque, na transversal. A praxe é inseri-la no cruzamento, com expressa menção do
número da conta de depósito do credor. Nessa modalidade, o pagamento do cheque se reveste de
grande segurança, na medida em que ou será liquidado na conta referida pela cláusula especial, ou
não se prestará a nenhuma outra finalidade.
1.3. Prazo de Apresentação
O cheque deve ser apresentado, pelo credor, ao banco sacado, para liquidação, dentro do prazo
assinalado pela lei (LC, art. 33). Para os “da mesma praça”, o prazo é de 30 dias; para os “de praças
diferentes”, 60, sempre a contar do saque. Como referido acima, a definição de uma ou outra
categoria de cheque é feita pela comparação entre o município que consta como local de emissão e o
da agência pagadora. Se coincidentes, o cheque é considerado “da mesma praça”; caso contrário, de
“praças diferentes”. É irrelevante, para os fins de definição do prazo de apresentação do cheque, se
os municípios — do local do saque e do estabelecimento bancário pagador — integram a mesma
câmara de compensação (art. 11 da Res. n. 1.682/90 do Banco Central).
O cheque deve ser apresentado ao banco sacado em 30 dias, se da mesma praça, e em 60, se de praças diferentes.
A inobservância do prazo de apresentação acarreta a perda do direito de executar os endossantes
do cheque, e seus avalistas, se o título é devolvido por insuficiência de fundos (LC, art. 47, II). Em
princípio, o credor conserva o direito de executar o emitente, e seus avalistas, mesmo que não tenha
apresentado o cheque no prazo. Trata-se de possibilidade reconhecida pela jurisprudência, inclusive
em razão da Súmula 600 do STF, que diz: “cabe ação executiva contra o emitente e seus avalistas,
ainda que não apresentado o cheque ao sacado no prazo legal, desde que não prescrita a ação
cambiária”. O tomador (ou endossatário) perderá, no entanto, o direito à execução contra o emitente
numa hipótese particular. Se havia fundos na conta de depósito correspondente, durante o prazo de
apresentação, e estes deixaram de existir, por ato não imputável ao emitente, o credor não dispõe
mais da execução para receber o valor do título (LC, art. 47, § 3º). Imagine-se, por exemplo, que o
cheque foi emitido por um dos titulares de conta bancária conjunta, e o tomador negligenciou na
apresentação tempestiva do cheque ao sacado. Posteriormente, o outro titular da conta retirou todo o
dinheiro nela depositado. Nesse caso, a inobservância do prazo da lei importa a impossibilidade de
executar o emitente do cheque.
Contra o avalista do emitente, a falta de apresentação do título ao sacado no prazo prescrito em lei
não gera nenhuma consequência.
Ressalte-se, outrossim, que o cheque, mesmo após o transcurso dos 30 ou 60 dias da lei, ainda
poderá ser apresentado ao banco sacado, para fins de liquidação. Apenas depois de prescrita a
execução — quer dizer, ultrapassados 6 meses do término do prazo de apresentação —, o sacado
não poderá mais receber e processar o cheque (LC, art. 35, parágrafo único, in fine).
2. CHEQUE PÓS-DATADO
O cheque tem se revelado, no mercado consumidor brasileiro, o instrumento mais ágil e
apropriado à documentação do crédito concedido pelos empresários, fornecedores de mercadorias e
serviços. Ao se parcelar o preço do fornecimento em duas ou mais vezes, tem-se preferido
geralmente, para comodidade de ambas as partes, a entrega pelo consumidor de tantos cheques
quantas forem as parcelas, emitidos com data futura (o cheque pós-datado que, além dos círculos dos
cultores do direito cambiário, todos conhecem por cheque pré-datado). O crescente uso desse tipo
de cheque representa, sem dúvida, um certo desvio da natureza do título, criado para instrumentalizar
pagamentos à vista. A lei checária fulmina com a ineficácia absoluta a inserção, no título, de
qualquer menção contrária ao seu pagamento à vista (LC, art. 32). Ou seja, o banco sacado deve
pagar o cheque de que conste data posterior ao da apresentação, atendidos evidentemente os demais
pressupostos da liquidação (regularidade de assinatura, existência de fundos etc.).
O cheque pós-datado é importante instrumento de concessão de crédito ao consumidor. Embora a pós-datação não produza efeitos perante o
banco sacado, na hipótese de apresentação para liquidação, ela representa um acordo entre tomador e emitente. A apresentação precipitada do
cheque significa o descumprimento do acordo.
O consumidor que emite e entrega cheques pós-datados, correspondentes às prestações em que se
dividiu o preço do fornecimento, corre o risco de os ver apresentados ao sacado, antes da data
estabelecida de comum acordo com o fornecedor. Não poderá, com efeito, o banco, nessa hipótese,
negar-se a liquidar os cheques se houver, em conta, fundos bastantes ou recursos disponíveis
provenientes de contrato de abertura de crédito (conhecido como cheque especial). O consumidor
terá, contudo, direito de demandar contra o fornecedor os prejuízos que sofrer em decorrência da
quebra do contratado entre eles. É plenamente lícito ao emitente e ao credor do cheque definirem, de
comum acordo, prazo mínimo para a apresentação do título à liquidação. A combinação, segundo o
disposto na lei, não gera nenhum efeito perante a instituição financeira sacada, que tem o dever de
simplesmente ignorar qualquer menção que torne o cheque título de pagamento a prazo. No entanto,
como em qualquer outra hipótese de descumprimento de obrigação contratual, o fornecedor que não
observa os termos de seu acordo com o consumidor, deve indenizar as perdas provocadas. Trata-se
de mera aplicação de princípio mais que assente na teoria da responsabilidade contratual.
Se o cheque pós-datado, portanto, apresentado ao sacado antes da data combinada entre
consumidor (emitente) e fornecedor (tomador), for liquidado, cabe a indenização pela inadimplência
da obrigação de não fazer, contratualmente assumida — por via oral ou escrita, por meio de
publicidade (CDC, art. 30) ou de outro meio — pelo credor. A indenização corresponderá à perda
do consumidor em virtude da antecipação do desembolso, e será medida pelos padrões gerais de
remuneração de capital no período, ou pelos juros e encargos derivados da utilização do crédito
aberto pelo sacado (isto é, pelo uso do limite do cheque especial), ou, ainda, pela não remuneração
de recursos do correntista alocados em aplicações financeiras (fundos de investimento geridos pelo
banco sacado), com ou sem cláusula de resgate automático.
Por outro lado, se o cheque pós-datado apresentado em data anterior à combinada retornar ao
empresário fornecedor, em razão de insuficiência de fundos, uma vez promovida a sua execução
judicial, terá o consumidor o direito de, nos embargos, exigir a redução proporcional do valor da
cobrança, para compensação dos prejuízos que sofreu, em particular com o pagamento da taxa do
serviço de compensação bancária e demais encargos contratuais. Além disso, deve o fornecedor
suportar integralmente os ônus da sucumbência, prosseguindo a execução pelo saldo remanescente, se
houver. Na verdade, o ideal seria a legislação consumerista disciplinar as relações entre o
consumidor e o fornecedor marcadas pela adoção de cheques pós-datados, de modo a retirar a
liquidez do título apresentado anteriormente à data que consta como de sua emissão. Desse modo,
tutelar-se-ia o consumidor sem se comprometer a coerência interna da lei checária e os
compromissos internacionais brasileiros. À falta de disciplina na lei, deve-se adotar a redução
proporcional acima aventada, como meio de se prestigiar, ainda que em termos relativos, a vontade
manifestada pelas partes no contrato de consumo.
Além da responsabilidade pelos danos materiais experimentados pelo consumidor, cabe a
condenação do credor do cheque pós-datado de apresentação precipitada, pelos danos morais que o
emitente sofre na hipótese de devolução por insuficiência de fundos. A comunicação aos bancos de
dados mantidos pelo empresariado, para a proteção do crédito (SERASA, Telecheque etc.) ou a
inscrição no Cadastro de Emitentes de Cheques Sem Fundos (CCF) envolve, normalmente, o
consumidor em situações de extremo constrangimento. Pessoas honestas, que nunca passaram cheque
sem fundos, veem dificultado ou mesmo bloqueado o acesso ao crédito, em diversos
estabelecimentos empresariais, em decorrência na verdade do descumprimento, pelo fornecedor, da
obrigação que havia assumido de não apresentar o cheque à liquidação, antes de certa data. Tais
constrangimentos justificam a condenação do tomador do cheque pós-datado, no pagamento de
indenização moral.
Deve ser particularmente agravada a condenação, se o credor protestar o cheque pós-datado
apresentado precipitadamente e devolvido sem fundos.
Em suma, quem concorda em documentar o crédito concedido por cheque pós-datado deve zelar
pela estrita observância do acordo oral feito com o emitente, quanto à oportunidade da apresentação
à liquidação do título. Afinal, foi no interesse de ambas as partes que se adotou essa alternativa de
documentação do crédito, preferindo-a ao saque de nota promissória ou duplicata, uso de cartão de
crédito e outras existentes.
Sobre a pós-datação, cabe, por fim, considerar alguns desdobramentos da definição do cheque
como título “bancável”. Explique-se: as instituições financeiras, no desenvolvimento de suas
atividades típicas, descontam títulos de crédito (duplicatas e notas promissórias, fundamentalmente),
antecipando ao seu credor o valor do crédito a se realizar em data futura — na verdade, parte desse
valor, para lucrar com a diferença — e recebendo-os por endosso. Em princípio, o cheque, no rigor
de seu perfil tradicional de ordem de pagamento à vista, não se presta ao desconto. Contudo, o
larguíssimo uso da pós-datação como forma de documentar a concessão do crédito ao consumidor, e
a aceitação desse instrumento por empresas de fomento mercantil (factoring), forçou as autoridades
monetárias a autorizarem aos bancos o desconto de cheques pós-datados, como a de qualquer outro
título de crédito.
O cheque pós-datado pode servir de título negociável, para fins de desconto bancário ou cessão para empresa de fomento mercantil (factoring).
Em decorrência, se o empresário concede crédito ao consumidor, propondo documentar a
operação por meio do recebimento de cheques pós-datados, é cabível o desconto desse título,
evidentemente antes da data que consta como de emissão, junto a qualquer instituição financeira,
inclusive o banco sacado. Assim, é necessário diferenciarem-se duas situações, em que o portador
do cheque pós-datado apresenta o título ao banco sacado, antes da data que consta como de sua
emissão: a apresentação para fins de liquidação e a apresentação para fins de desconto. Somente na
primeira hipótese verifica-se o descumprimento da obrigação de não fazer contratada com o emitente
do cheque. Na outra, o cheque é mero título bancável e o processamento da liquidação terá início
apenas na pós-data.
Importa, nesse contexto, ressaltar que, sendo o banco descontador do cheque pós-datado também o
sacado, será dele a responsabilidade pelos danos experimentados pelo consumidor emitente, se o
processamento da liquidação do título se iniciar antes da data que consta como de emissão. Ele se
encontra, aqui, na mesma situação do banco descontador não sacado que apresenta precipitadamente,
para fins de liquidação, ao sacado o cheque pós-datado. Quer dizer, está respondendo pelo mal
funcionamento dos serviços bancários.
3. SUSTAÇÃO DO CHEQUE
O pagamento do cheque pode ser sustado pelo emitente em duas hipóteses: a) revogação, também
chamada contraordem (LC, art. 35); b) oposição (LC, art. 36). Em ambas, o objetivo é impedir a
liquidação do cheque, pelo banco sacado; pressupõem, portanto, não tenha essa se realizado à data
da sustação. Cheque regularmente processado e pago não pode ser, por evidente, objeto de
revogação ou oposição.
Ao banco sacado não cabe apreciar as razões do ato. Se pessoa legalmente autorizada à sua
prática, revoga o cheque ou se opõe ao seu pagamento, o sacado deve apenas adotar os
procedimentos administrativos internos, aptos a atender a vontade dela. Se a sustação é, no caso em
particular, medida justa ou abuso de direito, isso não é coisa com que se deva preocupar o banco.
Sua função resume-se a simplesmente garantir a eficácia ao ato unilateral do emitente. A validade ou
invalidade da sustação somente pode ser determinada pelo juiz, cabendo ao prejudicado demandar o
emitente e provar o abuso no exercício do direito.
Autorizam, em geral, a sustação os fatos de desapossamento indevido do talão de cheques ou do
título já emitido (assim a perda, o roubo, furto, apropriação indébita etc.). Note-se que a infundada
sustação do pagamento do cheque tem os mesmos efeitos penais da emissão de cheque sem fundos;
isto é, caracteriza crime de estelionato (CP, art. 171, § 2º, VI). O emitente que a realiza, portanto,
deve ter consistentes razões jurídicas para tanto, posto que, não as tendo, incorre em conduta típica.
Convém, nesse sentido, esclarecer que não autoriza a sustação o descumprimento da obrigação pelo
portador do cheque. Imagine-se que o prestador de serviços não finalize convenientemente a tarefa
contratada, a despeito de ter já em mãos o pagamento, representado por cheque do consumidor. Ora,
o emitente não pode sustar a liquidação do título, a pretexto de preservar seus direitos contratuais e
forçar a terminação dos serviços. Até mesmo porque o cheque pode ter sido transferido, por endosso,
a terceiro de boa-fé, que se encontra amparado pelo direito cambiário. Ao consumidor, no caso, resta
apenas as ações cíveis de responsabilização do empresário inadimplente. Quem emite cheque,
pratica ato de vontade, ao qual nunca está obrigado. Se o faz, concorda com a circulação do crédito,
segundo o regime de direito cambiário. Portanto, submete-se, por sua própria vontade, a ter que
satisfazer o crédito perante terceiro de boa-fé para, depois, demandar quem se enriqueceu
indevidamente, às suas custas.
Ao banco sacado não cabe julgar da relevância da razão apresentada pelo interessado, no ato de sustação de cheque (revogação ou
oposição).
O banco geralmente cobra tarifas consideráveis para acolher a sustação, tendo em vista os custos
e a dificuldade de sua operacionalização. Desde que compatíveis com os parâmetros do mercado,
não há nenhuma irregularidade na cobrança. Irregular, porque não respaldado na lei, é a exigência,
feita por muitos bancos, de exibição, pelo emitente, do simulacro de prova do desapossamento
indevido, o Boletim de Ocorrência Policial. Se ao banco não cabe adentrar as razões do ato de
sustação, não é possível condicionar a revogação ou oposição à apresentação de qualquer
documento. Basta, com efeito, a comunicação escrita do emitente.
As duas formas de sustação do cheque apresentam pequenas diferenças. De um lado, a revogação
é ato exclusivo do emitente, enquanto a oposição pode também ser efetivada pelo portador
legitimado. De outro, o ato revogatório somente produz efeitos a partir do término do prazo de
apresentação, caso essa não se verifique, enquanto os da oposição são imediatos. Dessa última
distinção decorre que a contra-ordem, a rigor, é apenas o ato cambiário pelo qual o emitente pode
limitar a eficácia chéquica do título aos 30 ou 60 dias, seguintes à emissão.
4. CHEQUE SEM FUNDOS
Verificando o banco sacado, no procedimento de liquidação do cheque, não possuir o emitente
fundos suficientes em sua conta de depósito, deve restituir o título a quem lho apresentara, com a
declaração correspondente. Anote-se que o banco deve pagar os cheques seguindo a ordem de
apresentação. Quando dois ou mais cheques são apresentados simultaneamente, não havendo fundos
suficientes para o pagamento, o sacado deve dar preferência aos de data de emissão mais antiga. Se
coincidentes as datas de emissão, prevalece o número inferior (LC, art. 40).
Por norma regulamentar do Banco Central, cada cheque comporta apenas duas apresentações, mas
o credor não se encontra obrigado a realizá-las, em nenhum caso. Ou seja, devolvido o cheque sem
fundos, pode o credor promover a cobrança judicial de imediato, sem a segunda apresentação.
Estabelece a lei que o cheque sem fundos deve ser protestado durante o prazo de apresentação.
Desse modo, se é título da mesma praça, o credor deve encaminhá-lo ao cartório de protesto, nos 30
dias seguintes ao saque; se de praças diferentes, nos 60. A inobservância do prazo para o protesto do
cheque é, contudo, inócua, já que a lei confere os mesmos efeitos conservativos do direito de
cobrança à declaração do sacado ou de Câmara de Compensação, atestando a insuficiência de
fundos. Quer dizer, se o cheque é sem fundos, ele foi apresentado à liquidação perante o sacado e por
esse devolvido com a respectiva declaração (firmada por ele mesmo, ou por Câmara de
Compensação). Caso isso se tenha verificado no prazo de apresentação, a realização ou não do
protesto, dentro ou além desse prazo, não terá mais nenhum efeito cambiário, já que está assegurada a
execução contra endossantes e seus avalistas (LC, art. 47, II).
A declaração de insuficiência de fundos, do banco sacado ou da Câmara de Compensação, não
supre o protesto para fins extracambiais. Somente para a conservação do direito de execução contra
codevedores e respectivos avalistas, opera-se a equiparação de efeitos entre os dois atos. Assim,
para fins de instrução do pedido de falência, com base na impontualidade injustificada do devedor
comerciante, representada pela emissão de cheque sem fundos, é indispensável o protesto do título,
não bastando a declaração.
4.1. Ações Cambiais
A ação cambial é aquela em que o demandado não pode arguir, em sua defesa, matérias estranhas
à sua relação com o demandante, em razão do princípio da inoponibilidade das exceções pessoais
aos terceiros de boa-fé. A generalidade dos títulos de crédito comporta uma única ação cambial, que
é a cobrança por meio de execução. Em relação ao cheque, o legislador prevê duas; além da
execução, cabe também a ação de enriquecimento indevido (LC, art. 61).
A execução do cheque prescreve em 6 meses, a contar do término do prazo de apresentação. É, em
princípio, irrelevante a data em que o cheque foi apresentado ao banco sacado, e a de sua devolução.
O termo inicial do prazo de prescrição será considerado o fim do prazo de apresentação, inclusive se
a apresentação e devolução ocorrem fora desse prazo. Por exemplo, cheque de mesma praça emitido
em 2 de março prescreve em 1º de outubro do mesmo ano. Assim é, se o cheque foi apresentado ao
sacado em 5 de março (dentro do prazo de apresentação, portanto) ou em 5 de abril (além do prazo)
e independentemente das datas em que o banco restituiu o documento ao credor.
Lembre-se, a propósito, que, para fins cambiais, os dias se contam pelos dias (LU, art. 36). Não é
correto, portanto, considerar prescrito o cheque de mesma praça em 7 meses e o de praças diferentes
em 8. A exata aplicação da lei impõe a contagem dos 30 ou 60 dias correspondentes ao prazo de
apresentação, dia a dia, e, em seguida, a soma de 6 meses ao mês do término do prazo. Em outros
termos não se podem contar meses por dias, nem esses por aqueles.
A regra de contagem do prazo prescricional a partir do término do de apresentação comporta
exceção unicamente no caso de cheque pós-datado, se apresentado à liquidação antes da data de
emissão nele escrita. A aplicação da regra geral, nesse caso, de fato importaria benefício ao credor
que descumpriu a obrigação de não fazer assumida perante o emitente — isto é, a de não liquidar o
cheque antes da data acertada de comum acordo entre eles. Os 6 meses prescricionais, na hipótese de
apresentação precipitada de cheque pós-datado, contam-se como se o saque tivesse sido realizado na
data da primeira apresentação ao sacado. Desse modo, se cheque de mesma praça, que ostenta o dia
2 de abril como data de emissão, é apresentado ao sacado em 15 de março, deve-se reputar prescrita
a execução em 14 de outubro do mesmo ano, último dia em que o credor ainda a pode ajuizar.
As ações cambiais do cheque são duas: a execução, que prescreve nos 6 meses seguintes ao término do prazo de apresentação; e a de
enriquecimento indevido, que tem natureza cognitiva e pode ser proposta nos 2 anos seguintes à prescrição da execução.
Nas duas, operam-se os princípios do direito cambiário e, assim, o demandado não pode arguir, na defesa, matéria estranha à sua relação com
o demandante.
Prescrita a execução, o portador do cheque sem fundos poderá, nos 2 anos seguintes, promover a
ação de enriquecimento indevido contra o emitente, endossantes e avalistas (LC, art. 61). Trata-se de
modalidade de ação cambial, de natureza não executiva. O portador do cheque, por meio de processo
de conhecimento, pede a condenação judicial de qualquer devedor cambiário no pagamento do valor
do título, sob o fundamento de que se operou o enriquecimento indevido. De fato, se o cheque está
sem fundos, o demandado locupletou-se sem causa lícita, em prejuízo do demandante, e é essa, em
princípio, a matéria de discussão na ação.
Como a ação de enriquecimento indevido é cambial, se o demandante é o endossatário do cheque
e o demandado é o emitente, não poderá esse último, na contestação, suscitar matérias pertinentes ao
negócio originário do título, matérias que, perante terceiros de boa-fé, não são oponíveis, no regime
de direito cambiário. Frise-se, entretanto, que se a demanda é promovida pelo tomador contra o
emitente, será lícito ao réu contestar o pleito discutindo a relação jurídica originária do título.
Exemplo: se Antonio tomou dinheiro emprestado de Benedito — agiota que cobra juros usurários —,
e procedeu ao pagamento do devido por cheques, que foram regularmente endossados a Carlos,
terceiro de boa-fé, na ação de enriquecimento indevido que o último promover contra aquele não
será cabível contestar a pretensão, discutindo a limitação legal dos juros. Mas se o cheque não
circulou, na ação de enriquecimento indevido que Benedito aforar contra Antonio, será
perfeitamente discutível o excesso de juros.
Após a prescrição das ações cambiais, será ainda possível ao portador do cheque sem fundos
promover a ação causal (LC, art. 62), para fins de discutir as obrigações decorrentes da relação
originária. Claro que a admissão é condicionada à existência de relação extracambial entre os
litigantes, que é o objeto da lide. No exemplo acima, entre Carlos e Antonio não existe nenhuma
outra relação jurídica, a não ser o próprio cheque; por essa razão, o primeiro, depois de prescritas as
ações cambiais, não é mais titular de qualquer direito contra o segundo. Poderá apenas intentar algum
processo contra Benedito, para discutir a relação jurídica que havia justificado a transferência do
título de crédito (mútuo, responsabilidade civil etc.).
4.2. Encargos do Emitente
O emitente de cheque sem fundos é devedor do valor do cheque, acrescido de juros, desde a data
da apresentação ao banco sacado (e não do protesto), correção monetária e reembolso das despesas
em que incorreu o credor (LC, art. 52). Desse modo, as taxas que o portador do cheque
eventualmente pagou para o seu banco, pelo frustrado serviço de compensação, as custas
desembolsadas no cartório de protesto, além das judiciais, são cobráveis do emitente.
4.3. Repressão ao Uso de Cheque sem Fundos
O direito francês, desde 1991, quando a lei despenalizou a conduta de emissão de cheque sem
fundos, tem prestigiado um mecanismo administrativo de sanção, chamado “interdição bancária”. De
acordo com a sistemática então adotada, os cheques de até 100 F (cem francos) são obrigatoriamente
pagos pelos bancos. A lei estabelece a presunção de crédito irrevogável para esses títulos. Em
ocorrendo, no entanto, emissão de cheque sem fundos de valor superior, o banco requisita do cliente
a restituição dos formulários ainda não utilizados e comunica a ocorrência às demais instituições
financeiras em que o emitente possui conta de depósito, para que procedam à mesma requisição
(Larguier--Larguier, 1994:147/148).
No Brasil, contudo, em que a teoria do estado mínimo em matéria penal ainda não germinou,
tipifica-se como crime de estelionato a emissão de cheques sem a suficiente provisão de fundos (CP,
art. 171, § 2º, VI). Como estelionato, a conduta apenas é típica se dolosa, fraudulenta e danosa. Quem
emite cheque sem fundos, por culpa (por exemplo, por negligenciar no controle do saldo), não
incorre em crime, e pode, até o recebimento da denúncia, pagar o cheque e, com isso, obstar a ação
penal (Súmula 554 do STF: “o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o
recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”). No mesmo diapasão, quem
age sem fraude na emissão de cheques sem fundos não comete estelionato nem outro crime. Assim, no
caso de emissão de cheque sem fundos pós- -datado, entende-se não existir crime pela ausência de
indução do tomador em erro (Súmula 246 do STF: “comprovado não ter havido fraude, não se
configura o crime de emissão de cheques sem fundos”). Por fim, se a emissão do título não importou
prejuízo patrimonial ao credor, também não se caracteriza o ilícito penal. O pagamento de aluguel
por cheque sem fundos não é crime porque o locador, antes e depois do recebimento do título,
conserva rigorosamente o mesmo direito, representado pelo crédito do locativo. Quem paga
duplicata com cheque sem fundos não comete crime porque o credor continua titularizando os
mesmos direitos creditícios, após o pagamento. Há conduta típica na hipótese, por exemplo, de
aquisição de bem, por meio de cheque sem fundos: o vendedor sofre o prejuízo patrimonial porque a
propriedade da coisa se transmitiu ao emitente, pela tradição.
A emissão de cheque sem fundos é punida, no Brasil, como crime. Além disso, o emitente está sujeito a sanções de natureza administrativa.
No âmbito administrativo, cabe ao Banco Central disciplinar a repressão ao uso do cheque sem
fundos. A sistemática vigente prevê, em suma, duas sanções: a inscrição no CCF (Cadastro de
Emitentes de Cheques Sem Fundos) e o pagamento da taxa do Serviço de Compensação de Cheques e
Outros Papéis. A primeira é aplicável na segunda devolução do mesmo cheque, e dela decorre a
rescisão do contrato de depósito bancário e a proibição para novos contratos desse gênero, com
qualquer banco (exceto se a conta se destina ao recebimento de salário, a ser movimentada
unicamente por cheques avulsos).
A segunda sanção se aplica a cada devolução do cheque sem fundos. Ela é conhecida, na praxe
bancária, como “multa”, mas, em termos precisos e jurídicos, representa a perda da gratuidade do
serviço de compensação. De fato, as instituições financeiras põem à disposição dos correntistas o
serviço de compensação de cheque e outros papéis, que permite a liquidação dos títulos por meio do
depósito em conta. O credor do cheque (não cruzado), ao invés de se dirigir à agência pagadora para
receber o numerário correspondente, entrega-o ao banco no qual mantém contrato de depósito e ele
se encarrega do recebimento do valor junto ao sacado. O serviço tem sido gratuito para os cheques
com fundo, mas deve ser pago na hipótese de insuficiência de fundos. A tarifação da compensação
frustrada por falta de provisão é expressamente autorizada pelo Banco Central, como medida
repressora dos cheques sem fundos (Res. 1.682/90). Note-se que a taxa do serviço de compensação
pode ser cobrada tanto do emitente do cheque, como do apresentante, que preferiu se utilizar dos
serviços prestados pelo seu banco a se deslocar até a agência pagadora do banco sacado, ganhando
com isso tempo e segurança na operação.
Capítulo 14
DUPLICATA
1. INTRODUÇÃO
A duplicata é título de crédito criado pelo direito brasileiro. Sua origem se encontra no Código
Comercial de 1850, que impunha aos comerciantes atacadistas, na venda aos retalhistas, a emissão
da fatura ou conta — isto é, a relação por escrito das mercadorias entregues. O instrumento devia
ser emitido em duas vias (“por duplicado”, dizia a lei), as quais, assinadas pelas partes, ficariam
uma em poder do comprador, e outra do vendedor. A conta assinada pelo comprador, por sua vez,
era equiparada aos títulos de crédito, inclusive para fins de cobrança judicial. A sistemática do
Código, no entanto, parece não ter sido largamente aplicada, havendo quem atribua a ineficácia da
norma à honestidade no cumprimento das obrigações, que existiria no passado entre comerciantes
(Borges, 1971:204). Não se deve, contudo, esquecer que o baixo grau de alfabetização no Brasil da
era imperial deve ter contribuído para a informalidade das transações, ou seja, para a
impossibilidade de disseminação da prática de documentação escrita das obrigações contratadas.
Com a legislação cambiária de 1908, foi revogada a norma que atribuía à conta assinada os
efeitos de título de crédito, permanecendo em vigor, mas ainda ineficaz, a obrigatoriedade da fatura
em duas vias, nas operações entre comerciantes. Anota a doutrina, também, que o comércio resistiu à
adoção da letra de câmbio e da nota promissória (Requião, 1971, 2:438), continuando, ao que tudo
indica, a prevalecer a informalidade nas transações. A sistemática criada pelos elaboradores do
Código Comercial de 1850 somente foi resgatada, para atender a necessidade de ordem fiscal. Em
1915, o governo tentou tornar obrigatória a emissão das faturas, para fins de controlar a incidência
do imposto do selo. Nos anos 1920, o I Congresso das Associações Comerciais sugeriu a criação,
por lei, de um título — a “duplicata da fatura” — que atendesse às exigências do fisco e
possibilitasse a circulação do crédito. A ideia concretizou-se em lei na década seguinte, quando o
comércio passou a se utilizar do novo título.
A duplicata é título de crédito criado pelo direito brasileiro. À sua larga utilização deve-se a quase inexistência da letra de câmbio no
comércio nacional.
A duplicata, assim, é título nascido como instrumento de controle de incidência de tributos. Os
comerciantes, ao realizarem operações de venda, estavam obrigados a emitir a duplicata e, ao
assiná-las, deveriam inutilizar estampilhas previamente adquiridas nas repartições fiscais (colandoas no título e lançando sobre elas a assinatura). Provavelmente deve-se à ligação com o
procedimento tributário a vulgarização do instituto e o larguíssimo uso da duplicata entre os
comerciantes, no Brasil. De fato, e ao contrário do que se verifica nos países aos quais nosso direito
tradicionalmente se vincula, as letras de câmbio e notas promissórias têm presença insignificante, na
documentação do crédito comercial nas operações de comércio nacional, graças à intensa utilização
do título príncipe do direito brasileiro (assim o chamou Tullio Ascarelli; Martins, 1980:174).
No fim dos anos 1960, já completamente extinta a vetusta prática de controle de incidência de
tributos por inutilização de estampilhas, a disciplina jurídica da duplicata passou por nova mudança,
com a edição da Lei n. 5.474/68 (LD) e do Decreto-Lei n. 436/69, que a alterou parcialmente. A
partir de então, o título passa a ter funções de exclusiva natureza comercial, relacionadas à
constituição, circulação e cobrança do crédito nascido de operações mercantis ou de contratos de
prestação de serviços, desvencilhando-se dos aspectos fiscais que o cercavam.
A diferença essencial entre a letra de câmbio e a duplicata reside no regime aplicável ao aceite.
De fato, enquanto o ato de vinculação do sacado à cambial é sempre facultativo (quer dizer, mesmo
que devedor, o sacado não se encontra obrigado a documentar sua dívida pela letra), no título
brasileiro, a sua vinculação é obrigatória (ou seja, o sacado, quando devedor do sacador, se obriga
ao pagamento da duplicata, ainda que não a assine). É irresistível tentar relacionar o regime jurídico
do aceite da duplicata e alguns traços próprios da cultura brasileira: numa terra em que muitos não
consideram imoral ou vexatório o inadimplemento de dívidas, o crédito não poderia ser
documentado em título de eficácia condicionada a formalidades do devedor. De qualquer forma, é a
figura do aceite obrigatório — e não a causa ligada a operações mercantis, como entende parte da
doutrina (cf. Zortéa, 1983) — a particularidade característica da invenção jurídica nacional. Nesse
sentido, somente se pode reputar produto da influência do direito brasileiro o título de crédito que, a
exemplo da factura conformada argentina, comporta execução mesmo sem a assinatura do devedor.
O extracto de fatura português, a desusada facture protestable, que o direito francês criou em 1967
e aboliu em 1981, e a trade acceptance norte-americana não podem, por tal motivo, ser entendidos
como expansão do título brasileiro.
Por outro lado, é sobretudo importante registrar que a nossa lei da década de 1960, ao aprimorar a
disciplina de institutos típicos da duplicata, como o aceite obrigatório (LD, art. 8º), o protesto por
indicações (LD, art. 13, § 1º) e a execução do título não assinado (LD, art. 15, I), acabou criando —
sem o querer, evidentemente — as condições necessárias ao desenvolvimento dos meios
informatizados de registro, circulação e cobrança do crédito. Nos outros países, a desmaterialização
dos títulos de crédito exigem mudanças no direito positivo. No Brasil, graças à duplicata e ao seu
regime jurídico específico, tais mudanças são por tudo desnecessárias, porque o arcabouço jurídico
do título é plenamente compatível com a nova realidade do registro do crédito comercial.
São duas as duplicatas: a mercantil e a de prestação de serviços. Por razões de ordem
exclusivamente didáticas, tratarei, a partir de agora, apenas da primeira. Da duplicata de prestação
de serviços cuido no item 6, juntamente com a conta de serviços.
2. CAUSALIDADE DA DUPLICATA MERCANTIL
A duplicata mercantil é título causal, no sentido de que a sua emissão somente se pode dar para a
documentação de crédito nascido de compra e venda mercantil. A consequência imediata da
causalidade é, portanto, a insubsistência da duplicata originada de ato ou negócio jurídico diverso.
Assim, se o mutuante saca duplicata, para representar crédito concedido ao mutuário, o documento
não pode ser tratado como tal, malgrado atender aos requisitos formais da lei. Outro exemplo: se o
locador de veículos emite duplicata para cobrar o devido pelo locatário, o ato extrapola a
autorização da lei, que não alcança a atividade de locação. Claro que, sendo endossado a terceiro de
boa-fé, em razão do regime cambiário aplicável à circulação do título (LD, art. 25), a falta de causa
legítima não poderá ser oposta pelo sacado perante o endossatário. A ineficácia do título como
duplicata, em função da irregularidade do saque, somente pode ser invocada contra o sacador, o
endossatário-mandatário ou terceiros de má-fé (quer dizer, os que conhecem o vício na emissão do
título).
Da causalidade da duplicata, note-se bem, não é correto concluir qualquer limitação ou outra
característica atinente à negociação do crédito registrado pelo título. A duplicata mercantil circula
como qualquer outro título de crédito, sujeita ao regime do direito cambiário. Isso significa, em
concreto, que ela comporta endosso, que o endossante responde pela solvência do devedor, que o
executado não pode opor contra terceiros de boa-fé exceções pessoais, que as obrigações dos
avalistas são autônomas em relação às dos avalizados etc. Não é jurídico pretender vinculação entre
a duplicata e a compra e venda mercantil, que lhe deu ensejo, maior do que a existente entre a letra
de câmbio, a nota promissória ou o cheque e as respectivas relações originárias. Pontes de Miranda
(1956, 36:16) e até mesmo Tullio Ascarelli (1946) se preocupam, especialmente, em esclarecer a
questão: a circulação da duplicata se opera segundo o princípio da abstração.
A duplicata mercantil é título causal no sentido de que a sua emissão somente pode ocorrer na hipótese autorizada pela lei: a documentação
de crédito nascido da compra e venda mercantil.
No Brasil, o comerciante somente pode emitir a duplicata para documentar o crédito nascido da
compra e venda mercantil. A lei proíbe qualquer outro título sacado pelo vendedor das mercadorias
(LD, art. 2º), em dispositivo que exclui apenas a juridicidade da letra de câmbio. Com efeito, a nota
promissória e o cheque pós-datado são plenamente admissíveis, no registro do crédito oriundo de
compra e venda mercantil, porque são sacados pelo comprador, escapando assim à proibição da lei.
Até 1968, a emissão da duplicata era obrigatória nas operações a prazo. Hoje vigora a
facultatividade. Em nenhuma situação, o comerciante tem dever de sacá-la, mesmo quando costuma
se utilizar do título, para os negócios em geral. Desse modo, e considerando-se a proibição de saque
de qualquer outro documento cambiário, pode-se dizer que o comerciante tem duas opções: emitir a
duplicata ou não emitir título nenhum. De se notar, também, que a lei impõe ao empresário que opta
pelo saque da duplicata o dever de escriturar um livro obrigatório, o Livro de Registro de
Duplicatas (LD, art. 19). A falência de emitente do título, sem a devida escrituração, caracteriza
crime falimentar (LF, art. 178), mesmo quando o sacador é microempresário ou empresário de
pequeno porte.
O Código Penal, até 1990, para proteger o crédito comercial e reprimir o uso de títulos simulados
para obtenção de financiamento bancário, considerava crime a emissão e o aceite de duplicata não
correspondente a efetiva compra e venda mercantil ou prestação de serviços. A mudança na redação
do tipo do art. 172, operada pela Lei n. 8.137/90, porém, substituiu o bem jurídico protegido. A
partir dela, crime passou a ser expedir duplicata em desacordo com a mercadoria vendida. Desse
modo, a tutela penal redirecionou-se, para amparar não mais o crédito, e sim os consumidores.
Emitir duplicata sem causa, desde então, não é mais conduta típica (Coelho, 1996).
3. ACEITE DA DUPLICATA MERCANTIL
De acordo com a sistemática prevista pela lei — que, hoje, se encontra parcialmente em desuso
—, o comerciante, ao realizar qualquer venda de mercadorias, deve extrair a fatura ou a nota fiscalfatura. Nos dois casos, ele elabora documento escrito e numerado, em que discrimina as
mercadorias vendidas, informando quantidade, preço unitário e total. A duplicata será emitida com
base nesse instrumento. Para o direito comercial, é irrelevante se o documento básico será a fatura
ou a nota fiscal-fatura, servindo ambas à finalidade de preparar a criação da duplicata. Diferenças
há, entre uma e outra forma, apenas para o direito tributário. Esse procedimento deve ser adotado,
tanto para as vendas à vista, como a prazo (LD, arts. 1º e 3º, § 2º).
Emitida a fatura, no mesmo ato poderá ser extraída a duplicata, obedecido o padrão fixado pelo
Conselho Monetário Nacional (LD, art. 27; Res. BC n. 102/68) e atendidos os seguintes elementos:
a) a denominação “duplicata” e a cláusula “à ordem”, autorizando a circulação do título por endosso;
b) data de emissão, que deve ser igual à da fatura; c) os números da fatura e da duplicata, que podem
ou não coincidir tendo em vista a obrigatoriedade da primeira e a facultatividade da segunda; d) data
de vencimento ou cláusula à vista, sendo vedadas as modalidades de vencimento a certo termo; e)
nome e domicílio do vendedor (sacador); f) nome, domicílio e número de inscrição no Cadastro de
Contribuintes do comprador (sacado); g) importância a pagar, em algarismos e por extenso; h) local
de pagamento; i) declaração de concordância, para ser assinada pelo sacado; j) assinatura do
sacador (LD, art. 2º, § 1º).
Nos 30 dias seguintes à emissão, o sacador deve remeter a duplicata ao sacado. Se o título é
emitido à vista, o comprador, ao recebê-lo, deve proceder ao pagamento da importância devida; se a
prazo, ele deve assinar a duplicata, no campo próprio para o aceite, e restituí-la ao sacador, em 10
dias. Isto, por evidente, se não existirem motivos para a recusa do aceite, hipótese em que a duplicata
é devolvida ao vendedor acompanhada da exposição deles (LD, art. 7º e § 1º).
Ressalte-se, contudo, que a recusa do aceite da duplicata não pode ocorrer por simples vontade
do sacado. Quem recebe, como destinatário da ordem de pagamento, uma letra de câmbio para
aceite, pode recusar-se a assumir a obrigação cambial, ainda que o emitente do título seja seu
incontestável credor. Quer dizer, o sacado da letra de câmbio pode negar-se a documentar sua dívida
por título de circulação cambial, simplesmente porque não quer se ver obrigado perante terceiros de
boa-fé. A mesma prerrogativa não é dada ao destinatário da duplicata, já que circunscreve a lei as
hipóteses únicas em que a recusa do aceite é admissível. Fora delas a vinculação do sacado ao título
de crédito independe de sua vontade, posto que previamente definida pelo direito.
Dispõe o art. 8º da lei das duplicatas que a recusa só pode ocorrer nos seguintes casos: a) avaria
ou não recebimento das mercadorias, quando transportadas por conta e risco do vendedor; b) vícios,
defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade; c) divergência nos prazos ou preços
combinados. Em suma, se o comprador das mercadorias é devedor do preço correspondente —
porque o vendedor cumpriu com as suas obrigações, na execução do contrato de compra e venda —,
então ele não pode se recusar a ver sua dívida documentada por um título de efeitos cambiários, a
duplicata.
O aceite da duplicata é obrigatório porque, se não há motivos para a recusa das mercadorias enviadas pelo sacador, o sacado se encontra
vinculado ao pagamento do título, mesmo que não o assine.
Aceite obrigatório, portanto, não é o mesmo que irrecusável. Quando o vendedor não cumpriu
satisfatoriamente suas obrigações, o comprador pode se exonerar do cumprimento das suas. A recusa
do aceite cabe nessa situação. Mas, se houve satisfatória execução do contrato pelo vendedor, a
emissão da duplicata é suficiente para vincular o comprador ao seu pagamento, dispensando-se a sua
assinatura no título, para a formalização do aceite.
Em razão da obrigatoriedade do ato de vinculação do sacado à duplicata, podem-se divisar, em
relação a esse título, três modalidades de aceite: ordinário, por presunção e por comunicação.
A primeira espécie de aceite da duplicata (ordinário) resulta da assinatura do devedor no campo
próprio do documento, isto é, no canto esquerdo inferior do título, segundo o padrão do CMN. Essa
forma de vincular o sacado ao pagamento da duplicata somente cabe na hipótese de utilização do
suporte papel. Se a duplicata é emitida em meio eletrônico, não é materializável a assinatura de
próprio punho.
A duplicata que ostenta o aceite ordinário torna-se título de crédito sem nenhuma especificidade.
Aplicam-se-lhe integralmente, nesse caso, as regras do direito cambiário, inclusive no tocante à
facultatividade do protesto contra o devedor principal e responsabilidade dos codevedores. Ou seja,
a duplicata com aceite ordinário é título executivo extrajudicial contra o sacado e seu avalista,
independentemente de se encontrar protestada, ou não (LD, art. 15, I).
Na execução de duplicata com aceite ordinário, justificam-se maiores cautelas na constatação de
sua causa. Como atualmente o crédito comercial é registrado em meio eletrônico, na maioria das
vezes, torna-se inusual a assinatura da duplicata pelo devedor para obrigar-se por crédito oriundo de
compra e venda mercantil. Assim, os embargos do aceitante, no sentido de se tratar a duplicata
excutida de documento simulado, assinado sob coação, para assegurar o recebimento de juros
usurários, devem ser cuidadosamente apreciados pelo juiz, porque são, com muita chance,
verdadeiros.
O aceite por presunção decorre do recebimento das mercadorias pelo comprador, quando
inexistente recusa formal. Trata-se da forma mais corriqueira de se vincular o sacado ao pagamento
da duplicata. Caracteriza-se o aceite presumido, mesmo que o comprador tenha retido ou inutilizado
a duplicata, ou a tenha restituído sem assinatura. Desde que recebidas as mercadorias, sem a
manifestação formal de recusa, é o comprador devedor cambiário, independentemente da atitude que
adota em relação ao documento que lhe foi enviado.
Com a utilização do meio eletrônico para fins de registro do crédito, o aceite por presunção tende
a substituir definitivamente o ordinário, até mesmo porque a duplicata não se materializa mais num
documento escrito, passível de remessa ao comprador.
Por fim, cabe mencionar-se o aceite por comunicação, introduzido em 1968. Essa modalidade é,
das três, a menos usual, de existência praticamente nenhuma. Opera-se — desde que a instituição
financeira descontadora, mandatária ou caucionada o autorize — mediante a retenção da duplicata
pelo comprador e envio de comunicação escrita ao vendedor, transmitindo seu aceite. O instrumento
da comunicação, necessariamente em suporte papel, pode ser carta, telegrama ou telecópia (fax), não
se admitindo mensagens transmitidas e arquivadas em meio eletrônico (E-mail). O documento, em
que o comprador comunicou ao vendedor o aceite, substitui a duplicata para fins de protesto e
execução (LD, art. 7º, § 2º). A figura está condenada à breve extinção, na medida em que se choca de
frente com o processo de despapelização do registro do crédito.
4. PROTESTO DA DUPLICATA MERCANTIL
A duplicata, diz a lei, é protestável por falta de aceite, devolução ou pagamento (LD, art. 13). Na
verdade, o título de crédito comporta protesto único, que será de uma dessas categorias, de acordo
com a circunstância em que for efetivado. Em outros termos, a duplicata recusada, retida e impaga
será protestada uma só vez; pouco importa o tipo de protesto, porque os seus efeitos são idênticos,
em qualquer hipótese.
Assim, se o credor encaminha a cartório a duplicata sem a assinatura do devedor, antes do
vencimento, o protesto será por falta de aceite. Se encaminha a triplicata não assinada ou as
indicações relativas à duplicata retida, também antes do vencimento, o protesto será tirado por falta
de devolução. Finalmente, se encaminha a duplicata ou triplicata, assinadas ou não, ou apresenta as
indicações da duplicata, depois de vencido o título, o protesto será necessariamente por falta de
pagamento (Lei n. 9.492/97, art. 21, §§ 1º e 2º). São as circunstâncias em que o título é apresentado
ao cartório que definem a natureza do protesto.
O lugar do pagamento é também o do protesto (LD, art. 13, § 3º). Os cartórios devem, por isso,
recusar a protocolização quando verificada — no exame formal prévio, de caráter indispensável — a
discrepância entre a base territorial de sua competência e o constante na duplicata. Caso
protocolizem o título e realizem o protesto, responderão por perdas e danos, se o credor não
conseguir executá-lo contra o sacado, endossante ou avalista (Lei n. 9.492/97, art. 33).
O protesto deve ser providenciado, pelo credor, no prazo de 30 dias, seguintes ao vencimento da
duplicata, sob pena de perda do direito creditício contra os codevedores do título e seus avalistas
(LD, art. 13, § 4º). Deve-se, entretanto, evitar, em relação à duplicata mercantil, a classificação do
protesto em necessário ou facultativo, para fins de conservação do direito cambiário, porque ela
somente tem pertinência quando praticado o aceite ordinário ou por comunicação. Se o aceite é
presumido, o protesto é indispensável (LD, art. 15, II).
4.1. Protesto por Indicações
A retenção da duplicata pelo comprador impede, por óbvio, a sua apresentação pelo vendedor ao
cartório de protesto. Para a efetivação do ato formal, nesse caso, a lei admite que o credor indique
ao cartório os elementos que identificam a duplicata em mãos do sacado. A partir dos dados
escriturados no Livro de Registro de Duplicatas , que o emitente desse título é obrigado a possuir,
extrai-se boleto, com todas as informações exigidas para o protesto (nome e domicílio do devedor,
valor do título, número da fatura e da duplicata etc.). Esse boleto é enviado ao cartório para
processamento do protesto.
Se o sacador desvirtua as indicações da duplicata, aumentando o seu valor por exemplo, ele
responderá pelos danos decorrentes. Não se esqueça que o protesto é ato praticado pelo credor, e o
cartório apenas o reduz a termo, após a observância das formalidades legais.
O protesto da duplicata pode ser feito, em qualquer caso, mediante simples indicações do credor, dispensada a exibição do título ao cartório.
Com a desmaterialização do título de crédito, tornaram-se as indicações a forma mais comum de
protesto. A duplicata, hoje em dia, não é documentada em meio papel. O registro dos elementos que a
caracterizam é feito exclusivamente em meio eletrônico e assim são enviados ao banco, para fins de
desconto, caução ou cobrança. O banco, por sua vez, expede um papel, denominado “guia de
compensação”, que permite ao sacado honrar a obrigação em qualquer agência, de qualquer
instituição no país. Se não ocorrer o pagamento, atendendo às instruções do sacador, o próprio banco
remete, ainda em meio eletrônico, ao cartório, as indicações para o protesto (nas comarcas mais bem
aparelhadas). Com base nessas informações, opera-se a expedição da intimação do devedor. Se não
for realizado o pagamento no prazo, emite-se o instrumento de protesto por indicações, em meio
papel. De posse desse documento, e do comprovante da entrega das mercadorias, o credor poderá
executar o devedor. Ou seja, a duplicata em suporte papel é plenamente dispensável, para a
documentação, circulação e cobrança do crédito, no direito brasileiro, em virtude exatamente do
instituto do protesto por indicações.
4.2. Triplicata
As indicações, conforme acentuado no subitem anterior, correspondem à forma mais utilizada,
hoje em dia, para protesto da duplicata. Mas ainda ocorre de o comerciante expedir, na retenção da
duplicata, uma triplicata, para envio ao cartório. Trata-se não de novo título, mas apenas da segunda
via da duplicata, extraída a partir dos dados escriturados no livro próprio.
A rigor, a lei autoriza o saque da triplicata apenas nas hipóteses de perda ou extravio (LD, art.
23). Mas embora a retenção da duplicata não corresponda a nenhuma das situações previstas
legalmente, não existe prejuízo para as partes na emissão da triplicata também nesse caso. Em outros
termos, na medida em que o credor pode remeter ao cartório de protesto o boleto com as indicações
que individualizam a duplicata retida, também se admite que a triplicata veicule tais informações,
tendo em conta inclusive que a fonte é a mesma: a escrituração mercantil do vendedor.
5. EXECUÇÃO DA DUPLICATA MERCANTIL
A duplicata constitui-se título executivo extrajudicial (CPC, art. 585, I). Em alguns casos, contudo,
ela se reveste de natureza complexa, isto é, depende a sua executividade da reunião de mais de um
instrumento. O tema deve ser analisado de acordo com o devedor contra o qual se direciona a
execução.
Para a cobrança do sacado, o devedor principal da duplicata, importa identificar o tipo de aceite
praticado. A complexidade do título executivo é função, no caso, do ato que vinculou o executado à
obrigação cambial. Quer dizer, se a duplicata ostenta o aceite ordinário (a assinatura do sacado), a
sua exibição é suficiente para o ajuizamento da execução, não se exigindo o protesto. O mesmo
critério é adotado, na hipótese de o aceite ordinário ter sido lançado na triplicata (LD, art. 15, I).
Mas se o aceite é presumido, o título executivo se constitui pela duplicata (ou triplicata) protestada
(ou pelo instrumento de protesto por indicações), acompanhada do comprovante do recebimento das
mercadorias (LD, art. 15, II).
Quer dizer, se o sacado restituiu ao sacador a duplicata assinada, basta esse documento para o
ingresso da execução. Se o sacado a devolveu sem a assinatura, a execução depende de 3
documentos: a duplicata, o instrumento de protesto e o comprovante do recebimento das mercadorias.
Se reteve a duplicata, e o sacador optou pela emissão da triplicata, a execução depende das mesmas
condições, isto é, da exibição da triplicata, do instrumento do seu protesto e da prova do recebimento
das mercadorias. Finalmente, se, diante da retenção da duplicata, procedeu o sacador ao protesto por
indicações, o título executivo será composto por 2 documentos: o instrumento de protesto por
indicações e o comprovante da entrega das mercadorias.
A propósito dessa última hipótese, prevista no art. 15, § 2º, da LD, deve-se criticar a exigência,
feita por alguns juízes, de exibição da duplicata, mesmo quando o protesto se efetivou por indicações
do credor. Na verdade, trata-se de mera formalidade, por tudo dispensável. A emissão da duplicata
em papel, apenas para ser juntada aos autos da execução, quando já apresentado o instrumento de
protesto por indicações e o comprovante do recebimento das mercadorias, não tem nenhum sentido.
Claro que os comerciantes, frente à exigência, têm optado por expedir o documento escrito unilateral
— que nada lhes custa — a orientar seus advogados no sentido de discutirem a juridicidade do
despacho judicial.
A execução da duplicata contra o sacado depende da modalidade de aceite praticado. Se ordinário, basta a exibição do título; se presumido, é
necessário o protesto e a comprovação da entrega das mercadorias.
Se a execução se dirige contra o avalista do sacado, o credor deve exibir o título (duplicata ou
triplicata) de que consta o aval, sendo dispensável o protesto. Por fim, se o executado é endossante
ou avalista de endossante, o título executivo se constitui também com a exibição do título (duplicata
ou triplicata), em que foi praticado o ato cambiário de endosso ou aval, acompanhado do instrumento
de protesto que ateste a protocolização no cartório, antes de transcorridos mais de 30 dias do
vencimento. Nesse caso, vige o disposto no art. 13, § 4º, da LD, que condiciona o exercício do
direito creditício, mencionado na duplicata, à efetivação do protesto no prazo legal apenas contra
“endossantes e respectivos avalistas”. Quer dizer, contra o avalista do sacado, o protesto não é
condição de executividade da duplicata ou triplicata.
Prescreve a execução da duplicata em 3 anos, a contar do vencimento, contra o sacado e seu
avalista; em 1 ano, contado do protesto, contra os endossantes e seus avalistas; e em 1 ano, a partir
do pagamento, para o exercício de direito de regresso contra codevedor (LD, art. 18).
5.1. Juros e Correção Monetária
Ao contrário do que se verifica com os demais títulos de crédito próprios, os juros, em relação à
duplicata, não incidem a partir do vencimento, mas sim do protesto do título. O art. 40 da Lei n.
9.492/97, em incompreensível descompasso com o princípio do dies interpellat pro homine,
estabeleceu que “não havendo prazo assinalado, a data do registro do protesto é o termo inicial de
incidência de juros”. O dispositivo não se aplica à letra de câmbio e à nota promissória, porque o
art. 48 da LU assegura ao credor o direito aos juros desde o vencimento do título; e não se aplica ao
cheque, já que o art. 52, II, da LC refere-se à data da apresentação ao sacado como o início da sua
fluência. Porém, como não há, na lei, nenhum prazo assinalado para o cômputo dos juros da
duplicata, vigora o critério geral de incidência a partir do protesto. Não é essa a sistemática ideal,
posto inexistirem razões plausíveis para a distinção.
Em relação à correção monetária, a solução é diferente. Embora o dispositivo acima (Lei n.
9.492/97, art. 40) também condicione ao protesto o início da incidência da atualização, ele não é
aplicável aos títulos executivos. Para esses, há disposição legal assinalando o vencimento do título
como termo inicial da correção da expressão monetária do devido (Lei n. 6.899/81). A duplicata,
como título executivo extrajudicial, deve ter o seu valor corrigido integralmente, a partir do
vencimento, quando objeto de cobrança judicial.
5.2. Executividade da Duplicata em Meio Eletrônico
O registro do crédito em meio eletrônico (processo que se chama, às vezes, desmaterialização dos
títulos de crédito, numa referência ao abandono do papel como suporte) tem despertado diversas
questões para o direito cambiário. Algumas essenciais, em que a própria sobrevivência do regime
jurídico, ou pelo menos de seus princípios da cartularidade e literalidade, é posta em dúvida (Cap.
10; cf. Abrão, 1975; Frontini, 1996).
Outra ordem de questões despertada pela desmaterialização dos títulos de crédito diz respeito às
alterações, no ordenamento jurídico, necessárias à disciplina da nova realidade. O direito francês
talvez tenha sido o primeiro a se preocupar com o assunto, em 1965, quando a Comissão Gilet
formulou proposta de modernização do sistema de desconto de créditos comerciais, que tentou reunir
a agilidade do processamento eletrônico de dados com a segurança do direito cambiário, por meio
de instrumentos como a fatura protestável. O sistema, implantado em 1967, foi aperfeiçoado com a
introdução, em 1973, da cambial-extrato (lettre de change-relevé ), sacáveis em suporte papel ou em
meio eletrônico (Ripert-Roblot, 1947, 2:136/137). Newton de Lucca, pioneiro do tratamento do tema
na doutrina brasileira, propugnou pela edição de disciplina legal da duplicata-extrato, com o
aproveitamento da experiência francesa (1985).
A questão que proponho aqui, no entanto, é diversa. Para mim, o direito positivo brasileiro,
graças à extraordinária invenção da duplicata, encontra-se suficientemente aparelhado para, sem
alteração legislativa, conferir executividade ao crédito registrado e negociado apenas em suporte
eletrônico.
Precisem-se bem os termos da proposição: o processo judicial, embora já autorizada sua
digitalização pela Lei n. 11.419/2006, ainda costuma ser, na Justiça Cível, totalmente papelizado, ou
seja, desenvolve-se apenas em suporte papel. Os autos materializam o processo pela reunião
cronológica e formal de petições, documentos, decisões e outros escritos. Assim, o título executivo
será forçosamente exibido em juízo como documento ou documentos em suporte papel, não há outro
jeito. Para a execução de título eletrônico, desmaterializado, será necessária a alteração legislativa,
com certeza. O direito em vigor dá sustentação, contudo, à execução da duplicata eletrônica, porque
não exige especificamente a sua exibição em papel, como requisito para liberar a prestação
jurisdicional satisfativa. Institutos assentes no direito cambiário nacional, como são o aceite por
presunção, o protesto por indicações e a execução da duplicata não assinada, permitem que o
empresário, no Brasil, possa informatizar por completo a administração do crédito concedido.
Ao admitir o pagamento a prazo de uma venda, o empresário não precisa registrar em papel o
crédito concedido; pode fazê-lo exclusivamente na fita magnética de seu microcomputador. A
constituição do crédito cambiário, por meio do saque da duplicata eletrônica, se reveste, assim, de
plena juridicidade. Na verdade, o único instrumento que, pelas normas vigentes, deverá ser
suportado em papel, nesse momento, é o Livro de Registro de Duplicatas . A sua falta, contudo, só
traz maiores consequências jurídicas, caso decretada a falência do empresário. No cotidiano da
empresa, portanto, não representa providência inadiável.
O crédito registrado em meio eletrônico será descontado junto ao banco, muitas vezes em tempo
real, também sem a necessidade de papelização. Pela internete, os dados são remetidos aos
computadores da instituição financeira, que credita — abatidos os juros contratados — o seu valor
na conta de depósito do empresário. Nesse momento, expede-se a guia de compensação bancária que,
por correio, é remetida ao devedor da duplicata eletrônica. De posse desse boleto, o sacado procede
ao pagamento da dívida, em qualquer agência de qualquer banco no país. Em alguns casos, quando o
devedor tem o seu microcomputador interligado ao sistema da instituição descontadora, já se
dispensa a papelização da guia, realizando-se o pagamento por transferência bancária eletrônica.
Se a obrigação não é cumprida no vencimento, os dados pertinentes à duplicata eletrônica seguem,
em meio eletrônico, ao cartório de protesto (Lei n. 9.492/97, art. 8º, parágrafo único). Trata-se do
protesto por indicações, instituto típico do direito cambiário brasileiro, criado inicialmente para
tutelar os interesses do sacador, na hipótese de retenção indevida da duplicata pelo sacado. Não há,
na lei, nenhuma obrigatoriedade do papel como veículo de transmissão das indicações para o
protesto, de modo que também é plenamente jurídica a utilização dos meios informáticos para a
realizar.
O instrumento de protesto da duplicata, realizado por indicações, quando acompanhado do
comprovante da entrega das mercadorias, é título executivo extrajudicial. É inteiramente dispensável
a exibição da duplicata, para aparelhar a execução, quando o protesto é feito por indicações do
credor (LD, art. 15, § 2º). O registro eletrônico do título, portanto, é amparado no direito em vigor,
posto que o empresário tem plenas condições para o protestar e executar. Em juízo, basta a
apresentação de dois papéis: o instrumento de protesto por indicações e o comprovante da entrega
das mercadorias.
A duplicata é título executivo extrajudicial, mesmo que seu suporte seja exclusivamente meios informatizados.
Mas a completa despapelização da administração do crédito concedido pressupõe mais uma
providência: a eliminação do comprovante da entrega das mercadorias em suporte papel. De fato, a
racionalização dos procedimentos exige também o registro da entrega em meio eletrônico, e isso
desperta mais uma questão para a doutrina do direito comercial: perde executividade a duplicata
eletrônica protestada por indicações, se a prova da entrega das mercadorias é feita por relatórios
(em papel) produzidos por sistemas eletrônicos de registro do seu recebimento pelo comprador?
Penso que é esta uma questão de fato, a ser resolvida em embargos, caso questionada a validade
da prova da entrega das mercadorias.
Em outros termos, o vendedor pode desenvolver sistema informatizado, contratando com seus
compradores, antes de vender as mercadorias, a possibilidade de utilização de “assinatura
eletrônica”. O emprego das chaves públicas validadas pela ICP-Brasil, com base na criptografia
assimétrica, garante que determinado registro eletrônico somente pode ser feito se certa pessoa, a
única a conhecer senhas e códigos próprios, manifestou a vontade de o gerar. Quer dizer, é possível
a emissão de relatórios pelo sistema do vendedor que pressupõem um específico ato de vontade do
comprador.
É jurídica, portanto, a execução de duplicata eletrônica (isto é, nunca papelizada), com a exibição
em juízo do instrumento de protesto por indicações e do relatório do sistema do credor, que
comprova o recebimento das mercadorias pelo sacado. A veracidade do relatório pode, ou não,
tornar-se matéria controversa, dependendo das alegações dos embargos. Nesse caso, por meio das
perícias judiciais competentes, restará esclarecido se o registro eletrônico do recebimento das
mercadorias somente poderia ter sido gerado com a necessária manifestação de vontade do
comprador, no sentido de que recebera a coisa vendida.
Também pode ser eletrônico o registro do recebimento das mercadorias, servindo o relatório do sistema mantido pelo vendedor de documento
para a execução da duplicata eletrônica.
A rigor, está-se diante de questão muito singela. Imagine-se, para o demonstrar, que a petição
inicial da execução é instruída pelo instrumento de protesto por indicações, acompanhado do canhoto
da nota fiscal, em que o recebimento das mercadorias é firmado por rubrica ilegível e falsa. Ora,
esses dois papéis seriam já suficientes para o processamento da execução, cabendo ao executado
opor a falsificação da assinatura no comprovante da entrega das mercadorias. A falsificação é
matéria de prova a ser elucidada nos embargos, normalmente por perícia. Ora, esse é o mesmo
quadro que se verifica na hipótese de exibição de relatório do sistema do vendedor, registrando o
recebimento das mercadorias pelo comprador. Quer dizer, ou o comprador, usando de suas senhas e
códigos, realmente confirmou o recebimento, ou não. Se resta provado que o sistema do vendedor
somente pode expedir relatório, dando conta do recebimento das mercadorias, na hipótese de o
comprador ter acionado suas senhas e códigos (isto é, ter “firmado a assinatura eletrônica”), então
não há dúvidas de que o documento exibido pelo exequente é hábil para provar o recebimento das
mercadorias, para os fins do art. 15, II, b, da LD.
Conclui-se, então, que o direito brasileiro, independentemente de qualquer alteração legislativa,
já ampara a executividade de duplicata eletrônica, isto é, de título constituído, negociado e
protestado exclusivamente em meios eletrônicos.
6. TÍTULOS DE CRÉDITO POR PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
O crédito do prestador de serviços, segundo a sua natureza empresarial ou profissional, pode ser
documentado por dois títulos diferentes: a duplicata de prestação de serviços (LD, arts. 20 e 21) e a
conta de serviços (LD, art. 22). A duplicata de prestação de serviços pode ser emitida por
sociedades empresárias cuja atividade são serviços. A pessoa física também pode emiti-la, desde
que desenvolva empresarialmente a atividade econômica de fornecedora de serviços ao mercado,
mas essa hipótese é raríssima. A conta, por sua vez, é título para os profissionais liberais e prestador
de serviços eventuais. Cuida-se de título pouco utilizado, já que o cheque pós-datado o substitui com
extraordinárias vantagens.
A duplicata de prestação de serviços está sujeita ao mesmo regime jurídico da duplicata
mercantil. Apenas duas especificidades devem ser destacadas: a) a causa que autoriza sua emissão
não é a compra e venda mercantil, mas a prestação de serviços; b) o protesto por indicações depende
da apresentação, pelo credor, de documento comprobatório da existência do vínculo contratual e da
efetiva prestação dos serviços. Em razão do regime comum desses títulos, encontra-se a sociedade
empresária prestadora de serviços obrigada à escrituração do Livro de Registro de Duplicatas, à
emissão da fatura ou nota fiscal-fatura discriminatória dos serviços contratados etc.
Aplicam-se, além disso, as regras sobre aceite, circulação, protesto e execução previstas para a
duplicata mercantil. Quer dizer, também a duplicata de prestação de serviços é título de aceite
obrigatório, vinculando-se o sacado ao pagamento da cambial, a menos que presente causa
justificativa para a recusa. A lei as menciona: a) incorrespondência entre o título e os serviços
efetivamente prestados; b) vícios ou defeitos na qualidade dos serviços; c) divergência em prazos ou
preços (LD, art. 21). Quando não se verificam tais circunstâncias, o sacado da duplicata de prestação
de serviços é devedor do título e expõe-se à execução, mesmo que não o tenha assinado.
Como os regimes são os mesmos, não há dúvidas de que a duplicata de prestação de serviços
admite, tal como a mercantil, registro exclusivo em meio eletrônico. Observa-se apenas que os
elementos mencionados em lei, para fins de permitir o protesto por indicações (LD, art. 21, § 3º, in
fine: efetiva prestação dos serviços e do vínculo contratual que a autorizou) podem ser provados por
relatórios do sistema do prestador de serviços, cuja geração depende do acionamento, pelo
adquirente, de suas senhas e códigos. Aliás, há tempos os empresários, bancos e cartórios de
protestos não diferenciam o processamento das informações de um ou outro tipo de duplicata.
A duplicata de prestação de serviços também admite o suporte eletrônico.
A conta de serviços, por sua vez, é título emitido pelo profissional liberal ou pelo prestador de
serviços de natureza eventual. Nesse caso, não se exige qualquer escrituração, devendo o credor
emitir a conta, discriminando os serviços prestados por sua natureza e valor, além de mencionar a
data e o local de pagamento e o vínculo contratual que originou o crédito. Não há padrão de
observância obrigatória, para o documento, que, uma vez emitido, deve ser levado ao Cartório de
Títulos e Documentos, para registro e entrega ao adquirente dos serviços. Não realizado o
pagamento, o credor pode protestar a conta e executá-la. Constitui título executivo extrajudicial a
conta de serviços registrada, enviada ao devedor, protestada e acompanhada de comprovação do
vínculo contratual e da efetiva prestação dos serviços (LD, art. 22, § 4º).
Capítulo 15
OUTROS TÍTULOS DE CRÉDITO
1. TÍTULOS DE CRÉDITO IMPRÓPRIOS
Embora os princípios característicos do direito cambiário (cartularidade, literalidade e autonomia
das obrigações cambiais) estejam passando por um processo de revisão, provocado em muito pelo
desenvolvimento da informática, o certo é que, por enquanto, eles ainda se aplicam aos títulos de
crédito. A própria conceituação do instituto gravita em torno deles. Por isso, pode-se afirmar que
título de crédito é o documento representativo de obrigação pecuniária sujeito a regime informado
por tais princípios. Por outro lado, há alguns instrumentos jurídicos sujeitos a disciplina legal que
aproveitam, em parte, os elementos do regime jurídico-cambial. Tais instrumentos não podem ser
considerados títulos de crédito exatamente porque a eles não se aplicam, na totalidade, os princípios
e normas do direito cambiário. Esses instrumentos são normalmente referidos como “títulos de
crédito impróprios”.
Alguns autores adotam conceito mais elástico de título de crédito impróprio, incluindo nessa
categoria o cheque, por se tratar de ordem de pagamento à vista, e, portanto, não representar
operação de crédito, assim como todos os títulos causais, como as duplicatas. Segundo esse
entendimento, apenas a letra de câmbio e a nota promissória seriam, rigorosamente, títulos de crédito
“próprios” (Martins, 1972:26/28).
1.1. Categorias de Títulos de Crédito Impróprios
São quatro as categorias dos títulos de crédito impróprios:
a) Títulos de legitimação. São títulos que asseguram ao seu portador a prestação de um serviço
ou acesso a prêmios em certame promocional ou oficial. Por exemplo: o bilhete do Metrô, passe de
ônibus, ingresso de cinema, cupões premiados do tipo “Achou, ganhou”, volante sorteado da loteria
numérica etc. A esses instrumentos se aplicam os princípios da cartularidade (só pode reclamar o
serviço ou o prêmio aquele que estiver na posse do título de legitimação), da literalidade (o serviço
ou prêmio assegurados pelo título são os previstos no documento e nenhum outro) e da autonomia (se
houver vícios na negociação desses títulos, eles não se transmitem aos novos possuidores). Os títulos
de legitimação, porém, não são títulos executivos e, por isso, não se enquadram inteiramente na
disciplina do regime jurídico cambial; eles não são, em outras palavras, documentos suficientes para
o exercício do direito nele mencionado.
Títulos de crédito impróprios são os instrumentos creditícios que se submetem a regime jurídico semelhante ao do direito cambiário, sem
sujeitarem-se a todas as normas deste. São quatro suas categorias: títulos de legitimação, de investimento, de financiamento e representativos.
b) Títulos de investimento. Os instrumentos jurídicos dessa categoria de título de crédito
impróprio se destinam à captação de recursos pelo emitente. Representam, pode-se dizer, a parcela
de um contrato de mútuo celebrado entre o sacador do título e os seus portadores. Para estes últimos,
a aquisição do título tem o sentido de um investimento, emprego de capital no desenvolvimento de
certa atividade econômica com intuito lucrativo. Entre os títulos de investimento, podem ser
lembrados: as letras imobiliárias (Lei n. 4.380/64), emitidas pelos agentes do Sistema Financeiro da
Habitação, com vistas à obtenção de recursos para o financiamento da aquisição da casa própria; a
letra de câmbio financeira ou cambial financeira (Lei n. 4.728/65), emitida ou aceita por sociedades
de fins econômicos, inclusive instituições financeiras; os certificados de depósito bancário (CDB)
(Lei n. 4.728/65), emitidos pelos bancos de investimento de natureza privada, para depósitos com
prazo superior a 18 meses; o certificado de recebíveis imobiliários (CRI), emitidos pelas
companhias securitizadoras de créditos imobiliários (Lei n. 9.514/97, art. 6º); a letra de crédito
imobiliário (LCI), emitida por bancos, com lastro em créditos imobiliários (Lei n. 10.931/2004, art.
12); a Letra de Arrendamento Mercantil (LAM), de emissão de sociedades de leasing (Lei n.
11.882/2008, art. 2º).
Note-se que existem alguns tipos de títulos com esse perfil econômico (captação e investimento),
mas enquadrados em conceito jurídico distinto. São as debêntures emitidas por sociedades anônimas,
em geral para obter recursos junto ao mercado aberto de capitais, a custo inferior ao do
financiamento bancário. A qualificação jurídica apropriada para as debêntures não tem sido mais a
de título de crédito, embora a doutrina antigamente as estudasse como tais. Elas são consideradas
espécie de valor mobiliário (Cap. 20, item 2).
c) Títulos de financiamento. Há alguns instrumentos cedulares representativos de crédito
decorrente de financiamento aberto por uma instituição financeira. Se houver garantia de direito real
do pagamento do valor financiado, por parte do mutuário, ela é constituída no próprio título,
independentemente de qualquer outro instrumento jurídico. Costumam chamar-se “cédulas de
crédito”, quando o pagamento do financiamento a que se referem é garantido por hipoteca ou penhor.
Inexistindo garantia de direito real, o título é, comumente, denominado “nota de crédito”.
Os títulos de financiamento não se enquadram, completamente, no regime jurídico-cambial por
força de algumas peculiaridades, como a possibilidade de endosso parcial, mas, principalmente, em
razão do princípio da cedularidade, estranho ao direito cambiário. Por esse princípio, a constituição
dos direitos reais de garantia se faz no próprio instrumento de crédito, na própria cédula. Podem ser
destinados ao financiamento da aquisição da casa própria ou de atividade econômica. No primeiro
caso encontra-se a “cédula hipotecária” (Dec.-Lei n. 70/66), que os adquirentes de casa pelo SFH
outorgam ao agente financeiro. Dos títulos de financiamento de atividade econômica trato mais à
frente (item 2.1).
d) Títulos representativos. Sob essa denominação costuma-se designar o instrumento jurídico que
representa a titularidade de mercadorias custodiadas, vale dizer, que se encontram sob os cuidados
de terceiro (não proprietário). Podem tais instrumentos exercer, além dessa função meramente
documental, a de título de crédito, na medida em que possibilitam ao proprietário da mercadoria
custodiada a negociação dela, sem prejuízo da custódia. Os títulos representativos não se encontram
inteiramente sujeitos ao regime jurídico-cambial, porque possuem finalidade originária diversa da
dos títulos de crédito. Estes se destinam a representar obrigação pecuniária; já os títulos
representativos têm por objeto mercadorias custodiadas. Somente em caráter secundário é que os
títulos representativos podem referir-se a obrigações pecuniárias.
Exemplo típico desse título de crédito é o conhecimento de frete (Dec. n. 19.473/30). Sua emissão
cabe às empresas de transporte por água, terra ou ar. A finalidade originária desse instrumento é a
prova do recebimento da mercadoria, pela empresa transportadora, e da obrigação que ela assume de
entregá-la incólume em certo destino. O conhecimento de frete tem, no entanto, função subsidiária, na
medida em que possibilita ao depositante, proprietário da mercadoria despachada, negociá-la
mediante endosso do título. Em certas circunstâncias, no entanto, a lei veda a negociabilidade do
conhecimento de frete (por exemplo, se o título é “não à ordem”, se a mercadoria transportada é
perigosa ou se destinada a armazém-geral — Dec. n. 51.813/63, art. 91). Em se tratando, contudo, de
conhecimento de frete negociável, o seu endosso transfere a propriedade da mercadoria transportada,
que deverá ser entregue, no destino, ao endossatário ou portador legitimado do título.
Outros importantes exemplos de título representativo são os de emissão dos armazéns-gerais,
denominados títulos armazeneiros: o warrant e o conhecimento de depósito, (item 1.2).
1.2. Títulos Armazeneiros
O contrato de depósito de mercadorias em armazém-geral prova-se com o “recibo” emitido pelo depositário. A devolução das mercadorias será feita mediante a
exibição desse documento. Havendo devoluções parciais, estas serão anotadas no verso. A pedido
do depositante, contudo, o armazém-geral pode substituir o recibo por títulos de sua emissão
exclusiva: o warrant e o conhecimento de depósito. São os títulos armazeneiros representativos tanto
das mercadorias depositadas num armazém-geral como das obrigações assumidas por este em razão
do contrato de depósito.
Os títulos de emissão dos armazéns-gerais são criados necessariamente juntos. Se o depositante
não pretender negociar ou dar em garantia as mercadorias durante o prazo em que se encontram
armazenadas, deverá contentar-se com o recibo, documento suficiente para o exercício de seus
direitos. Se, entretanto, puder interessar-lhe sua comercialização ou penhor, deverá solicitar ao
armazém depositário a substituição do recibo pelo warrant e pelo conhecimento de depósito. Nesse
caso, emitidos os títulos armazeneiros, a mercadoria depositada somente poderá ser entregue, em
princípio, a quem exiba ambos os documentos. A devolução das mercadorias a quem porte apenas o
warrant ou o conhecimento de depósito será cabível unicamente em situações excepcionais, adiante
referidas.
Embora tenham origem e finalidade comuns, o conhecimento de depósito e o warrant podem
circular juntos ou em separado (Martins, 1980, 2:298/303). Desse modo, a propriedade plena da
mercadoria depositada — com os atributos correspondentes da livre disponibilidade e onerabilidade
— aliena-se pela transferência ao comprador dos dois títulos unidos. O endossatário apenas do
conhecimento de depósito (em separado do warrant) é proprietário da mercadoria depositada, mas
sua propriedade é limitada, porque falta-lhe o atributo da onerabilidade. Quer dizer, ele pode dispor
da mercadoria depositada e, em geral, exercer todos os direitos de proprietário, exceto o de dá-la
como garantia pignoratícia. Já o endosso do warrant em separado do conhecimento de depósito
importa a constituição de direito real de garantia (penhor) em favor do endossatário. Se o empresário
depositante (ou o endossatário dos dois títulos) necessita, por exemplo, de recursos para o giro de
seu negócio e toma dinheiro emprestado de banco, as mercadorias armazenadas podem servir de
garantia ao pagamento desse mútuo. As mercadorias depositadas não se transferem ao endossatário
do warrant, mas são empenhadas em favor deste.
O primeiro endosso do warrant deve ser mencionado no conhecimento de depósito (cf. Borges,
1971:251/252). Essa providência é exigida em lei para que o futuro endossatário do conhecimento de
depósito saiba que está adquirindo mercadoria onerada, dada em garantia pignoratícia de obrigação
assumida pelo endossante, junto a terceiro (o portador do warrant).
O armazém-geral depositário, se emitiu esses títulos representativos, só poderá entregar as
mercadorias, em princípio, ao legítimo portador dos dois documentos, o warrant e o conhecimento
de depósito. A regra admite duas exceções. Primeira, a entrega ao titular do conhecimento de
depósito endossado em separado, antes do vencimento da obrigação garantida pelo endosso do
warrant, desde que o portador deposite, no armazém-geral, o valor dessa obrigação. Se o
endossatário do warrant precisar executar a garantia, será satisfeito com esse dinheiro, e se o
endossante pagar o mútuo e resgatar o warrant, receberá o mesmo dinheiro. Segunda, a execução da
garantia pignoratícia, após o protesto do warrant, por meio de venda em leilão realizado no próprio
armazém-geral. O saldo do produto da venda — após a dedução do devido a título de impostos, das
despesas com a realização do leilão, preço e encargos da armazenagem e do pagamento ao titular do
warrant — permanece no armazém-geral aguardando o portador do conhecimento de depósito por 8
dias; em seguida, caso não reclamado, o valor deverá ser depositado em juízo.
2. TÍTULOS DE CRÉDITO SUJEITOS AO CÓDIGO CIVIL
Vozes lúcidas, como a de Fábio Konder Comparato (1978:549/550), não foram ouvidas e o
Código Civil acabou disciplinando os títulos de crédito (arts. 887 a 926). Aliás, minha impressão
pessoal, após examinar os poucos elementos legados, é a de que os responsáveis por essa parte do
anteprojeto não tinham muita clareza quanto aos objetivos a serem alcançados com aquela disciplina
da matéria. Inspiraram-se em normas do Código Civil da Itália, cuja consistência era já fortemente
questionada pela doutrina daquele país (Ascarelli, 1959:165/184). Por resultado, temos hoje, na
codificação civil, um conjunto de preceitos de direito cambiário de importância nenhuma. Elas
tendem a não ser aplicadas, porque tratam de situações raríssimas. Teria sido muito mais proveitoso
se o legislador lembrasse de incorporar ao direito interno as normas da Lei Uniforme de Genebra
sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória, dando, enfim, cumprimento à Convenção assinada pelo
Brasil nos anos 1930. Em vez disso, preferiu contemplar a disciplina geral para os títulos de crédito
não regulados em lei específica, objeto que decididamente não reclamava — como ainda não
reclama — prioritária disciplina legal.
As disposições sobre direito cambiário constantes do Código Reale representam o regime geral
dos títulos de crédito não regulados por lei específica (item 2.1). Além disso, para alguns
tecnólogos, encontram--se nelas a disciplina dos títulos de crédito inominados (item 2.2).
2.1. Títulos de Crédito Não Regulados
A natureza de regime geral dos preceitos sobre títulos de crédito do Código Civil decorre do
disposto no seu art. 903, que estabelece: “Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os
títulos de crédito pelo disposto neste Código”. Desse modo, se a lei especial estabeleceu,
diretamente ou por remissão, o regime jurídico aplicável ao título de crédito por ela cuidado, o
Código Civil não se aplica. Ou só se aplica no caso de serem idênticas as normas constantes dele e
da lei especial (Bezerra Filho, 2002:108). Os dispositivos sobre títulos de crédito constantes do
Código Civil somente se aplicarão, enquanto regras gerais do instituto, se uma lei vier a criar, no
futuro, um novo título de crédito, mas não o disciplinar, seja diretamente, seja por meio de remissões
legislativas a outras leis cambiais.
O Código Civil não revogou, portanto, as normas legais existentes disciplinadoras da letra de
câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, cédula e nota de crédito e todos os demais títulos
regulados pela lei (Fiuza, 2002:788). Cada um desses títulos continua disciplinado pelas respectivas
normas, e não pelas da codificação.
Por enquanto, os únicos títulos de crédito sujeitos à disciplina geral do Código Civil são os títulos
do agronegócio criados pela Lei n. 11.076/2004 — o Warrant Agropecuário (WA) e o
Conhecimento de Depósito Agropecuário (CDA). Quando o art. 2º dessa lei estabelece que se
aplicam ao WA e ao CDA as normas de direito cambial, sem fazer específica remissão à LU, devese concluir pela sujeição desses títulos às contidas no Código Civil, com a ressalva das disposições
específicas.
As normas sobre títulos de crédito encontradas no Código Civil aplicam-se apenas aos títulos que não possuírem, na lei específica, a definição
das regras a aplicar (art. 903). Atualmente, os únicos títulos que se encontram nessa situação são os pertinentes à armazenagem de produtos do
agronegócio: Warrant Agropecuário (WA) e Conhecimento de Depósito Agropecuário (CDA), nos termos do art. 2º da Lei n. 11.076/2004.
O exame das disposições do Código Civil sobre matéria cambial, tendo em vista seu âmbito de
aplicação, pode ser didaticamente feito a partir das diferenças em relação ao regime da letra de
câmbio. Em outros termos, conhecendo-se o regime da letra de câmbio (Cap. 11) e apontando-se os
preceitos do Código Civil que não coincidem com os desse regime, circunscrevem-se as normas
próprias aos títulos de crédito que vierem, no futuro, a se submeter à legislação codificada.
São as seguintes tais diferenças:
a) Cláusulas ilegais. Os títulos de crédito que vierem a se submeter à disciplina do Código Civil
não poderão conter cláusula de juros, cláusula “não à ordem” ou cláusula que dispense o devedor do
pagamento das despesas (CC, art. 890). Se as partes convencionarem o pagamento de juros, estes não
serão devidos. Se proibirem o endosso do título, isto será ineficaz, podendo o titular do crédito
transferi-lo cambiariamente. Por fim, nenhum dos devedores pode ser exonerado de sua
responsabilidade pelas despesas com a circulação ou cobrança do título (custas do protesto, por
exemplo).
b) Títulos ao portador. A letra de câmbio não pode ser emitida sem a identificação do
beneficiário da ordem de pagamento. Desse modo, ela é sacada necessariamene na forma nominativa
e só pode tornar-se um título ao portador mediante endosso em branco. Os títulos de crédito que
vierem a se submeter ao Código Civil poderão ser emitidos desde logo na forma ao portador se a lei
específica o autorizar (CC, art. 907). Não se aplica a eles a proibição de pagamento a beneficiário
não identificado (Lei n. 8.021/90, art. 1º), já que sua apresentação ao devedor basta para exigir-se a
prestação neles indicada (art. 905).
c) Responsabilidade do endossante. No endosso dos títulos de crédito que vierem a ser
submetidos ao Código Civil, o endossante não responderá, em regra, pela solvência do devedor.
Para que o endossante desses títulos possa ser cobrado, na hipótese de insolvência do devedor, será
necessária expressa cláusula de responsabilidade no ato do endosso. Fórmulas como “pague-se com
garantia” ou “transfiro a X, assumindo a responsabilidade pelo pagamento” ou outras equivalentes
devem ser exigidas do endossante caso o endossatário queira contar com a responsabilidade dele
(CC, art. 914).
As normas do Código Civil sobre títulos de crédito diferem-se das aplicáveis às letras de câmbio quanto a quatro aspectos: 1) proibição das
cláusulas de juros, “não à ordem” e exoneração de despesas; 2) admissibilidade de títulos ao portador, se autorizado pela lei específica; 3) não
vinculação do endossante ao pagamento do título como regra; 4) forma nominativa de transferência de titularidade.
d) Aval parcial . Os títulos sujeitos à disciplina do Código Civil comportam aval, mas ele não
pode ser parcial (CC, art. 897, parágrafo único). O avalista desses títulos só pode garantir seu valor
total. Na letra de câmbio, ao contrário, o aval parcial é admissível (LU, art. 30), embora raramente
utilizado.
e) Títulos nominativos. São títulos nominativos, segundo o Código Civil, os emitidos em favor de
pessoa cujo nome conste no registro do emitente (art. 921). Não se cuida, portanto, de identificação
do credor no próprio documento cartular, mas sim em assentamentos externos à cártula, que o
emitente possui (isto é, em livros apropriados a essa finalidade). A titularidade da prestação contida
nesse tipo de título transfere-se mediante termo nos registros do emitente (art. 922), ou por endosso
em preto a ser oportunamente averbado a tais registros (art. 923). Não há nada equivalente a essa
forma de circulação do crédito no regime jurídico da letra de câmbio e dos demais títulos de crédito
próprios. Nestes, nominativo é o título que ostenta o nome do credor, transmissível por endosso (se
contiver a cláusula “à ordem”) ou por cessão civil (claúsula “não à ordem”).
2.2. Títulos de Crédito Atípicos (ou Inominados)
Aponta a doutrina como segunda hipótese de aplicação das regras do Código Reale sobre títulos
de crédito os chamados títulos atípicos ou inominados, isto é, os que não se encontram disciplinados
em nenhuma lei específica. A discussão sobre os títulos de crédito inominados é, por vezes,
enraizada na fundamentação que Carvalho de Mendonça apresentava, no início do século passado,
para os títulos à ordem civis (1938:98/99, em nota de rodapé). Embora não haja necessária
correlação entre as matérias, autores como Antonio Mercado Jr. mencionam a posição de Carvalho
de Mendonça como a defesa dos títulos de crédito inominados (1973).
De qualquer forma, há elementos indicando que teria sido intenção de Mauro Brandão Lopes,
autor da versão inicial dessa parte do anteprojeto, a introdução no direito positivo brasileiro dos
títulos de crédito atípicos, isto é, criados exclusivamente pelas partes, independentemente de
previsão legal (Penteado, 1995:33). A presumida intenção de introduzir no direito cambiário
brasileiro a figura do título inominado transpareceria em diversos dispositivos do Código Reale.
Antonio Mercado Jr., tendo à frente o anteprojeto, apontava três: a) a previsão dos contratos atípicos
(afirmando inexistir razão para que a atipicidade também não se verificasse com os títulos de
crédito); b) a limitação aos títulos ao portador da exigência de autorização legal; c) a definição de
título de crédito, conjugando-se com o dispositivo em que os requisitos deste são estabelecidos (para
Mercado Jr., o escrito enquadrado na definição legal e que preenchesse os requisitos seria título de
crédito, mesmo que não previsto em lei) (1973).
Com a admissão, pelo Código Civil, da atipicidade dos títulos de crédito, estaria claramente
rompida a tradição do direito brasileiro de circunscrevê-los aos tipos especificamente previstos pela
lei (numerus clausus) (Boiteux, 2002:26/28).
Os argumentos colecionados em favor da tese da admissibilidade, pelo direito positivo brasileiro,
dos títulos de crédito atípicos ou inominados não são, porém, aceitos pela unanimidade da doutrina.
Partindo exatamente do mesmo dispositivo que menciona a necessidade de o título atender aos
requisitos da lei (letra c do argumento de Mercado Jr.), pelo menos um autor contesta a introdução,
entre nós, dos títulos criados pelos próprios interessados e não pela lei (Bulgarelli, 1979b:65).
Frágeis, portanto, são tanto a defesa como o questionamento da inovação (ver também Lucca,
1979:121/127).
A maior dificuldade que a tese da introdução dos títulos atípicos no direito positivo nacional
enfrenta é a da identificação desses títulos. Como saber, diante de uma declaração de vontade de
pagar quantia líquida, se o instrumento que a materializa é um título de crédito atípico ou um contrato
atípico? Bastaria, como mencionado no art. 889 do Código Civil, que o documento contivesse data,
indicação precisa dos direitos que confere e assinatura do emitente para que fosse considerado título
de crédito inominado? Como examinado anteriormente, um dos requisitos de validade dos títulos
próprios é a cláusula cambiária (Cap. 11, item 2.1), que representa uma formalidade plena de
consequências jurídicas. Uma ordem de pagamento só é letra de câmbio se a expressão “letra de
câmbio” constar do teor do documento; igualmente, uma promessa de pagamento só tem os efeitos
jurídicos de uma nota promissória se dela constar a expressão “nota promissória”, e assim por
diante. A cláusula cambiária identifica o documento como título de crédito, nomeando-o. Mas, para
os títulos de crédito inominados, é evidente que não se pode estabelecer uma formalidade
equivalente, porque eles costumam surgir de hábitos informais na prática cotidiana dos negócios.
Títulos de crédito inominados ou atípicos são os criados pelos particulares independentemente de específica previsão na lei. O melhor exemplo
talvez seja o FICA, instrumento creditício de largo emprego nos negócios pecuários do Centro-Oeste. No meu entender, o Código Civil não
introduziu no direito positivo brasileiro a disciplina dos títulos de crédito inominados. Estes continuam regidos pelas respectivas normas
consuetudinárias.
Penso que não há elementos seguros, no Código Civil, para a doutrina aceitar ou rejeitar a tese
dos títulos de crédito atípicos. O texto da lei não permite nenhuma conclusão sustentável em
argumentos consistentes. Se a intenção do legislador era tratar da matéria, fê-lo imprecisamente. E
penso também que, enquanto não houver clara previsão legal de aplicação das normas do Código
Civil aos títulos de crédito inominados, deve-se considerá-los não sujeitos a elas. Em outros termos,
os títulos de crédito inominados, no meu entendimento, não estão disciplinados no novo Código
Civil. Isto, porém, não significa que eles sejam irregulares, ou que não possam ser criados. Explicome: talvez o melhor exemplo de título de crédito inominado, no Brasil, seja o FICA ou “vaca-papel”,
instrumento creditório largamente utilizado pelo negócio pecuário do Centro-Oeste. É assim
conhecido em razão da primeira palavra empregada em sua redação, que sugere ter o costume
consagrado algo de função próxima à das cláusulas cambiárias: “Fica em meu poder x vacas da raça
y, pertencentes a fulano, obrigando-me a entregar-lhe as referidas vacas quando por ele me forem
exigidas” (sobre o assunto ver Lima, 1971). Mesmo antes do advento do Código Civil e de seu
regramento sobre a matéria cambial, FICAs foram emitidos, negociados e judicialmente cobrados,
valendo--se os juízes do critério de colmatação de lacunas pelos costumes (LINDB, art. 4º). Quando
esse título foi considerado insubsistente ou inválido em juízo, era porque ocultava a prática de usura.
Sustento, em suma, que o Código Civil não disciplina os títulos de crédito inominados, que
continuam sendo produto exclusivo dos costumes que os criam.
3. TÍTULOS BANCÁRIOS
A atividade típica dos bancos consiste na intermediação de crédito. O banco, de um modo
esquemático, capta dinheiro das pessoas que o têm disponível, para fornecê-lo a quem dele precisa.
Essa atividade, por sua fundamental importância para a economia, é fiscalizada e controlada pelos
governos dos diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, assuntos como capitalização e
reservas das instituições financeiras são objeto de regulamentação estatal desde 1863, quando, em
plena Guerra Civil, baixou-se o The National Banking Act (Lovett, 1997:11/13). No Brasil, é crime
punido com reclusão de 1 a 4 anos e multa explorar atividade de intermediação de crédito sem
autorização do Banco Central (Lei n. 7.492/86, art. 16).
Costuma-se classificar as operações bancárias em duas categorias. De um lado, as passivas, em
que o banco se torna devedor do cliente. Representa a captação de dinheiro, traduzida
esquematicamente em crédito concedido ao banco. Quando uma pessoa deposita seu dinheiro na
instituição financeira, adquire certificados de depósito bancário (CDB) ou faz aplicação num fundo
de investimento, torna-se credora de obrigação pecuniária ou pelo menos duma prestação de serviços
da instituição financeira. De outro lado, encontram-se as operações ativas, em que o banco é credor
do cliente. Trata-se do fornecimento de dinheiro, isto é, de crédito concedido pelo banco. Quando o
trabalhador contrai financiamento para aquisição de casa própria, o comerciante desconta suas
duplicatas ou o exportador tem antecipado o valor de contrato de câmbio, passam a ser devedores da
instituição financeira (Cap. 39).
A atividade bancária define-se pela intermediação do crédito. Os bancos captam dinheiro dos clientes que o possuem disponível (operações
passivas) para emprestá-lo aos que dele necessitam (operações ativas). Os títulos de crédito representam, por isso, importante instrumento na
exploração da atividade bancária.
Como a intermediação do crédito é a essência da atividade bancária, os títulos de crédito
naturalmente desempenham função instrumental de relevo, mormente nas operações ativas. É comum
o mútuo bancário documentar-se por contrato e também por nota promissória. O desconto, por sua
vez, é operação financeira necessariamente lastreada em títulos bancários (duplicata eletrônica,
cheque pós-datado etc.). Pois bem, ao lado dos títulos de crédito, pode o crédito dos bancos nas
operações ativas instrumentalizar-se em títulos exclusivos deles, isto é, títulos cuja emissão somente
está autorizada pela lei para documentar direito creditício de banco. São os títulos bancários,
conceito que abrange as cédulas de crédito para financiamento de atividade econômica (item 2.1) e a
cédula de crédito bancário (item 2.2).
3.1. Títulos de Financiamento de Atividade Econômica
A implantação e exploração de atividades econômicas depende de tal forma de acesso regular ao
crédito bancário que a ordem jurídica brasileira, além de contemplar mecanismos que procuram
assegurar o financiamento às atividades empresariais, desenvolve instrumentos negociais próprios
para atendimento às peculiaridades de cada setor da economia. Para ilustrar a relevância conferida
pela ordem jurídica brasileira à obtenção de crédito bancário como condição de desenvolvimento
das empresas, basta lembrar que os microempresários e empresários de pequeno porte titularizam
direito, de alicerce constitucional (CF, art. 179), de acesso facilitado ao crédito bancário, com o
objetivo de assegurar o fortalecimento de sua presença na economia e desenvolvimento nacionais
(LC n. 123/2006, arts. 57 a 61). No plano dos instrumentos negociais, criado pelo direito para
viabilizar o fomento de atividades econômicas, cabe destacar os diversos títulos de financiamento,
introduzidos ou redisciplinados pela lei no contexto das reformas desenvolvimentistas
implementadas a partir da segunda metade dos anos 1960.
Os primeiros desses instrumentos financeiros remodelados foram as cédulas de crédito rural,
redisciplinadas pelo Decreto-Lei n. 167/67, com o objetivo de vocacioná-las ao atendimento, de um
lado, das necessidades de garantia das instituições financiadoras das culturas rurais, e, de outro, das
peculiaridades do empreendimento rural fomentado (cf. Ferreira, 1962, 10:477/478; Bulgarelli,
1979b:492; Rizzardo, 1990:213/249). Seguiram-se às cédulas de crédito rurais outros instrumentos
creditícios. Assim, em 1969, foram criadas as cédulas de crédito industriais, destinadas ao fomento
da atividade industrial (Dec.-Lei n. 413/69); em 1975, as cédulas de crédito à exportação,
representativas de operações de financiamento à exportação ou à produção de bens para exportação,
ou apoio e complementação integrantes e fundamentais da exportação (Lei n. 6.313/75); e,
finalmente, em 1980, surgiram as cédulas de crédito comerciais, relacionadas ao financiamento de
atividade comercial ou de prestação de serviços (Lei n. 6.840/80).
Financiamento é espécie de mútuo bancário, em que o mutuário está obrigado a dar certa
destinação ao dinheiro mutuado. No financiamento, o tomador dos recursos não é inteiramente livre
para os usar onde e como quiser, devendo, ao contrário, ater-se à finalidade declarada da operação
financeira. Desse modo, se a sociedade empresária agrária toma dinheiro emprestado num banco
para financiar o plantio de girassóis com vistas à produção de óleo, deve necessariamente empregar
o dinheiro nessa específica atividade. Ela não pode custear ou investir em outros negócios, ainda que
rurais e mais rentáveis. Por isso, pela vinculação entre os recursos mutuados e os objetivos do
financiamento, a concessão depende, por vezes, de projeto de aplicação consentâneo com a linha de
crédito correspondente; também por isso, o banco financiador está investido de poderes de
fiscalização (Decs.-Leis
n. 167/67 ou 413/69, art. 6º).
Os títulos bancários de financiamento da atividade econômica são as cédulas e notas de crédito rural, industrial, à exportação e comercial.
São documentos representativos das obrigações e garantias relacionadas à concessão de financiamento bancário a empresários desses
segmentos econômicos.
Vale destacar os seguintes aspectos do regime jurídico dos títulos bancários de financiamento da
atividade econômica: a) as cédulas de crédito autorizam a capitalização de juros, no montante de 1%
ao ano (Decs.-Leis n. 167/67 ou 413/69, art. 5º; Súmula 93 do STJ); b) nos financiamentos com
garantia real (pignoratícia ou hipotecária), a cédula é instrumento suficiente para registro da
oneração do bem; c) nos financiamentos sem garantia real, o título bancário costuma denominar-se nota de crédito; d) as cédulas e notas de crédito devem ser levadas a registro no Cartório de
Imóveis, para produzir efeitos perante terceiros; e) vacila a jurisprudência sobre as normas regentes
da execução judicial do título, concluindo alguns julgados que a regulamentação processual dos
Decretos-Leis n. 167/67 e 413/69 não foi revogada pelo Código de Processo Civil de 1973.
3.2. Cédula de Crédito Bancário
Em muitas operações de crédito bancário, não é possível calcular previamente o valor da
obrigação devida pelo cliente do banco. Considere o contrato de abertura de crédito (“cheque
especial”) em que a instituição financeira se compromete a manter dinheiro disponível em conta de
depósito, dentro de certo limite. Como o cliente pode ou não utilizar, no todo ou em parte, por mais
ou menos tempo, os recursos monetários disponibilizados, não há como computar a exata extensão do
débito do correntista, caso não cumpra no prazo contratado a obrigação de restituir ao banco o
dinheiro utilizado. Considere, ademais, que alguns financiamentos são remunerados com base em
taxas de juros variáveis de acordo com o mercado. Como ninguém consegue antecipar o valor de
taxas pós-fixadas, por definição, o montante exato do débito do cliente só se pode calcular após o
inadimplemento da obrigação.
A impossibilidade de antecipar o valor do crédito do banco apresenta uma dificuldade na hora da
cobrança judicial. Como o instrumento de contrato bancário não podia conter o valor certo da
obrigação, falta-lhe a liquidez característica dos títulos executivos. Abre-se, em decorrência, às
instituições financeiras credoras apenas a via da ação de conhecimento, mais demorada e ineficiente
que a execução. A dificuldade foi contornada, inicialmente, pela cláusula-mandato. Por meio desse
mecanismo contratual, o devedor outorgava ao banco credor (ou à sociedade do mesmo grupo
empresarial), no contrato de mútuo ou de abertura de crédito, procuração para, em nome dele, emitir
nota promissória, caso verificado o inadimplemento da obrigação creditícia. A apuração do exato
valor do devido é feita quando da emissão do título de crédito, no qual o mutuante pratica o ato
cambiário de emissão, em nome do mutuário e em seu próprio favor. Esse expediente, não obstante
sua eficiência e legitimidade, foi considerado irregular pela jurisprudência e pelo Código de Defesa
do Consumidor (Cap. 11, item 2.2).
Outro mecanismo de que se têm valido os bancos para recuperar o dinheiro emprestado é a
emissão de extrato da posição devedora, que, acompanhado do instrumento contratual de mútuo ou de
abertura de crédito, constituiria título executivo extrajudicial. Parte da jurisprudência tem acolhido a
tese da executividade desses documentos, mas o assunto ainda não está pacificado nos Tribunais.
Acerca do contrato de abertura de crédito, aliás, o STJ tem entendimento sumulado contrário à
natureza de título executivo (Súmula 233), mas admitindo a cobrança por ação monitória (Súmula
247). O STJ tem entendido também que perde a executividade a própria nota promissória vinculada
ao contrato de abertura de crédito (Súmula 258).
As cédulas de crédito bancário são promessas de pagamento em dinheiro emitidas pelo cliente mutuante em favor de banco mutuário, cuja
liquidez pode decorrer da emissão, pelo credor, de extrato de conta corrente ou planilha de cálculo. Além de facilitar e baratear o acesso ao
crédito bancário, esses títulos dão ensejo à execução judicial em caso de inadimplemento.
Em outubro de 1999, o Presidente da República editou Medida Provisória introduzindo no direito
brasileiro a cédula de crédito bancário. Atualmente, o título é disciplinado nos arts. 26 e seguintes
da Lei n. 10.931/2004. Trata-se de promessa de pagamento em dinheiro, emitida em favor de
instituição financeira, representativa de qualquer modalidade de operação bancária ativa (abertura
de crédito, mútuo, financiamento, desconto etc.). A liquidez que embasa a executividade do título
decorre tanto da menção de valor certo no próprio documento como de extrato de conta corrente
bancária ou planilha de cálculo emitidos pelo banco credor após o inadimplemento da promessa.
Os juros remuneratórios de obrigações documentadas em cédula de crédito bancário podem ser
livremente estipulados e capitalizados, não incidindo limite legal nenhum na mensuração da taxa e na
capitalização dos juros. Além disso, o próprio instrumento cedular basta para a constituição e
registro de garantias reais, inclusive sobre bens imóveis, eficácia jurídica que simplifica e barateia o
acesso ao crédito bancário. O protesto independe do encaminhamento do original da cédula ao
cartório, desde que o banco declare encontrar-se a única via negociável em seu poder. Por fim, as
instituições financeiras podem descontar e redescontar as cédulas de sua titularidade, ou usá-las
como lastro para a securitização mediante a emissão de CCB (Certificado de Cédulas de Crédito
Bancário).
4. TÍTULOS DO AGRONEGÓCIO
O conceito de “agronegócio” é originário do saber econômico. A partir dos estudos de John Davis
e Ray Goldberg, da Universidade de Harvard, iniciados no fim da década de 1950, e da abordagem
temática das “cadeias de produção” (filières), proposta pelos economistas franceses, afastou-se o
tradicional modelo de segmentação da economia em três grandes setores (primário: agricultura,
pecuária, extrativismo etc.; secundário: indústria; terciário: comércio e serviços) e buscou-se a
construção de outro parâmetro conceitual, que abrangesse, como um sistema, todas as atividades
econômicas ligadas aos produtos agrícolas (produção de insumos, cultivo, armazenagem,
financiamento, certificação, industrialização, comercialização etc.).
Esta forma de abordar o tema pode ser transposta para o campo do saber jurídico. O direito do
agronegócio — capítulo do direito comercial que reclama cada vez mais atenção e pesquisa — não
coincide, assim, com o direito agrário empresarial , cujo foco repousa sobre a atividade de
produção no campo, um dos elos da cadeia. Desse modo, se as particularidades derivadas dos riscos
associados ao ciclo biológico, que conferem substrato ao conceito jurídico de agrariedade
(Scaff, 1997:19/22), estão, sem dúvida, presentes no objeto circunscrito pela noção de agronegócio,
nesta acomodam-se muitas outras questões, impermeáveis a tal especialidade. Aproximando-se do
montante da cadeia de produção do agronegócio, os riscos do ciclo biológico eventualmente também
se expressam, mas na produção de insumos, transporte, armazenagem, industrialização, exportação e
comercialização, bem como nos financiamentos respectivos, os riscos empresariais em jogo são bem
diversos.
O Brasil é uma potência do agronegócio. Nossa agricultura e pecuária estão plenamente integradas
ao processo econômico mais amplo de industrialização, comercialização e exportação de
commodities agropecuárias, característico de uma consistente cadeia de produção. Se a agricultura
familiar ainda tem alguma presença na economia nacional, isto se deve, cada vez mais, às nuanças
das políticas públicas. Nos desdobramentos do direito do agronegócio, tem especial relevância o
tratamento dos títulos, especificamente criados pela lei ou pelo regulamento administrativo, para a
mobilização do crédito ou de capitais neste recorte da economia. Desde que o estado brasileiro, nos
anos 1990, preferiu estimular o financiamento privado do setor, estes instrumentos passaram a ter
crescente importância.
“Agronegócio” é um conceito da economia que pode ser aproveitado pela tecnologia jurídica como referência ao direito aplicável à cadeia
econômica de produtos agrícolas e pecuários, envolvendo todas as atividades nela inseridas, desde a produção de insumos até a
comercialização ou exportação, incluindo o transporte, logística, financiamento e investimento.
A lei criou diversos títulos de crédito do agronegócio, sendo alguns referenciados em produtos agrícolas e pecuários (CPR, CDA e WA) e
outros destinados a instrumentalizar o refinanciamento e a securitização dos direitos creditórios oriundos desta cadeia econômica (CDCA, LCA
e CDA). Além desses títulos, cabe menção ao valor mobiliário específico para a agroindústria captar recursos no mercado de capitais (NCA).
Após o exame da questão do suporte papelizado ou eletrônico (item 4.1), cuida-se dos títulos
referenciados a produtos agrícolas ou pecuários (itens 4.2 e 4.3). Por referenciados a produtos do
agronegócio proponho que se entendam os títulos que documentam direitos cujo objeto é, direta ou
indiretamente, uma “commodity agropecuária”. Nesta categoria, o título não assegura
necessariamente um crédito por obrigação pecuniária, desvinculado do contexto econômico de que se
originou, mas eventualmente um direito que pode até mesmo não ser obrigacional, mas real. São
quatro os títulos referenciados a produtos do agronegócio: Cédula de Produto Rural (CPR), simples
ou financeira, Warrant Agropecuário (WA) e Certificado de Depósito Agropecuário (CDA). A
particularidade destes títulos está na referência à
“commodity agropecuária”, que pode servir de: a) objeto da prestação a que se obriga o seu emitente
(CPR-física); b) critério de mensuração de obrigação pecuniária (CPR-financeira); c) objeto da
titularidade do portador (CDA); ou d) garantia real (WA).
Em seguida, cuida-se dos títulos de refinanciamento e securitização dos direitos creditórios do
agronegócio (item 4.4); por fim, embora não seja propriamente um título de crédito, mas valor
mobiliário, a Nota Comercial do Agronegócio (NCA) é objeto de atenção aqui, por razões didáticas
(item 4.5).
4.1. O Suporte dos Títulos do Agronegócio
Os títulos de crédito e os valores mobiliários podem ter dois tipos de suporte: o papel e o
eletrônico (ou escritural). As informações contidas em documento impresso ou em arquivo
eletrônico são as exigidas pela lei ou regulamento administrativo para a caracterização do título ou
valor mobiliário.
Não há nenhuma diferença, no que diz respeito à validade, eficácia ou executividade do título ou
valor mobiliário que decorra do suporte adotado. Se o título ou valor mobiliário é válido, eficaz e
executável, será por tudo indiferente o tipo de suporte adotado, se papel ou meio eletrônico.
Rigorosamente as mesmas funções exercidas pelo papel, como suporte de um instrumento
negocial, são também cumpridas pelo suporte eletrônico, se adotada tecnologia da informação
fundada em criptografia assimétrica (Covas, 2006:469) ou de segurança equivalente que venha a ser
desenvolvida no futuro. Em vista desta equivalência de funções, o direito tem construído um
princípio geral, já insculpido nas leis de muitos países (Cingapura, Estados Unidos, Austrália e mais
22 outros), que veda a discriminação do negócio documentado eletronicamente. O princípio da
equivalência funcional aplica-se ao direito brasileiro, em razão da lacuna legal existente sobre os
negócios eletrônicos e a sua colmatação nos termos indicados pelo art. 4º da LINDB (“quando a lei
for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de
direito”).
Interessante constatar que o título de crédito pode ser emitido num suporte e migrar para o outro.
A transmutação de suporte se verifica, por exemplo, na sua admissão, para fins de negociação entre
investidores, em mercado de balcão organizado (MBO), como, por exemplo, a Cetip S.A. Balcão
Organizado de Ativos e Derivativos (CETIP) ou a Bolsa Brasileira de Mercadorias (BBM). O título
pode ter sido documentado, em sua emissão, em papel, e, enquanto não registrado num MBO, esta
cártula será o seu único suporte. Quer dizer, se houver alguma negociação do crédito documentado,
deve-se formalizá-la por meio de endosso lançado e assinado de punho naquele pedaço de papel.
Uma vez levado a registro num MBO, porém, a cártula deve ficar guardada (custodiada) numa
instituição financeira. Ela deixa de ser o suporte do título de crédito, temporária ou definitivamente.
Não terá sentido de ato cambiário (embora possa eventualmente produzir efeitos civis) qualquer
negócio documentado no papel enquanto for o eletrônico o suporte do título respectivo. Após a
admissão à negociação no MBO, e antes de sua “baixa escritural”, somente produzirão efeitos
cambiários os atos registrados no sistema correspondente.
Os títulos do agronegócio admitem dois suportes: o papel e o meio eletrônico. Enquanto não admitido num mercado de balcão organizado
(MBO), para fins de negociação entre investidores, o suporte é o papel; após a admissão (isto é, o registro no MBO), o suporte do título passa a
ser o eletrônico. Pode voltar a ser o papel, se for necessário à sua execução, extrajudicial ou judicial.
Enquanto o suporte do título é o meio eletrônico, todos os atos concernentes à sua negociação e
liquidação devem ser formalizados no sistema do MBO em que estiver admitido. Se for regularmente
pago no vencimento, ele não retornará ao suporte originário. Tanto a cártula, quanto o arquivo
eletrônico já não terão mais qualquer função representativa de crédito, já que este se extinguiu com o
pagamento. Mas se o devedor não adimplir a obrigação cambial, talvez seja necessária nova
transmutação de suporte: o documento eletrônico pode retornar ao suporte impresso para instruir a
ação de cobrança. Esta nova migração tende a desaparecer com a disseminação do processo judicial
eletrônico.
4.2. Cédula de Produto Rural (CPR)
A Cédula de Produto Rural, disciplinada na Lei n. 8.929/94, é um título extremamente versátil, no
sentido de que se presta a diversas finalidades: aquisição de insumos, financiamento da produção
junto a trading companies ou instituições financeiras, prestação de garantia, instrumentalização da
venda do produto agrícola ou pecuário, investimento especulativo, documento assecuratório do
domínio e posse de commodities etc. Foi introduzido no direito brasileiro em meados dos anos 1990,
no contexto do exaurimento da capacidade do estado brasileiro de financiar as atividades rurais.
Trata-se de um título de crédito regido, obviamente, pelas normas do direito cambial. No Brasil,
observe-se, o “regime cambiário” atualmente é dúplice: pode ser o da Lei Uniforme de Genebra
sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória (LU) ou o Código Civil (CC, arts. 887 a 926). Como a
introdução da CPR na lei é anterior à entrada em vigor do CC, deve-se considerar que ela não se
sujeita às disposições genéricas deste diploma (art. 903), mas às da LU.
São três, por outro lado, as regras de direito cambiário específicas deste título (Lei n. 8.929/94,
art. 10), aplicáveis evidentemente em detrimento das previsões da LU sobre a matéria.
1ª) A CPR não admite endosso em branco. Sempre que o título for negociado, por meio de
endosso lançado na cártula ou por registro eletrônico, deve ser completamente identificado o novo
titular do direito de receber o produto rural (CPR-física) ou ao pagamento referenciado em
cotação do preço de um produto rural (CPR-financeira).
2ª) Os endossantes não respondem pelo cumprimento da obrigação de entregar o produto rural,
mas apenas por sua existência. Quem deve entregar a commodity agrícola ou pecuária ao titular da
CPR é invariavelmente o produtor rural emitente do título. Se ele negociou a CPR com uma
instituição financeira e esta a endossou a uma trading company, por exemplo, a endossatária não
pode exigir da endossante a entrega do produto rural referido no título. A responsabilidade da
instituição financeira, como endossante, se verifica, por exemplo, na hipótese de inexistência de
atividade produtiva rural apta a servir de “lastro” à emissão da CPR.
3ª) O protesto não é necessário para assegurar ao credor originário ou endossatário o direito de
cobrar a CPR de avalistas. A norma cambiária específica aplica-se ao caso de avalista de
endossante, já que, em relação ao do emitente (devedor principal), a facultatividade do protesto para
assegurar o direito de regresso decorre diretamente da aplicação dos arts. 32 e 53 da LU.
A Cédula de Produto Rural (CPR) é um título extremamente versátil que se presta à aquisição de insumos, financiamento da produção,
concessão de garantias, documentação da titularidade do produto, investimento especulativo etc.
A Cédula de Produto Rural é título de crédito que documenta a “promessa de entrega de produtos
rurais” feita por seu emitente. Nela, é especificada determinada quantidade e qualidade de um
produto rural, sem fazer qualquer menção ao seu preço. Este título só pode ser emitido por um
produtor rural, cooperativa ou outra associação de produtores rurais (Lei n. 8.929/94, art. 2º).
Dependendo das características do título em sua emissão, ele pode ou não admitir a liquidação
financeira, isto é, o pagamento em dinheiro em vez da entrega do produto rural. Se não admite a
liquidação por esta via, mas apenas por meio da entrega do produto ao credor ou endossatário do
título, é chamada de CPR-física (item 4.2.1); se admite, CPR-financeira (item 4.2.2).
4.2.1. Cédula de Produto Rural Física
O emitente assume, pela CPR-física, a obrigação de entregar produto rural, na quantidade e
qualidade discriminadas no título. A promessa de entrega é incondicional, não podendo ficar sujeita
à prévia verificação de nenhum ato ou fato, como o pagamento ou outra contrapartida do credor.
A CPR pode ser emitida em qualquer negócio jurídico em que o produtor rural assume a
obrigação de entregar seu produto a outrem. A primeira hipótese a considerar é a compra e venda,
contrato em que o vendedor assume a obrigação de entregar ao comprador o objeto negociado. O
pecuarista, por exemplo, vende ao frigorífico determinada quantidade de bois, prometendo entregálos em 4 (quatro) meses; assume, assim, obrigação possível de ser documentada numa CPR, se assim
for da conveniência das partes. Não é essencial à existência, validade e eficácia do título algum
pagamento prévio do credor ao emitente. Não há esta exigência na lei, e ela seria mesmo
incompatível com a extrema versatilidade da CPR.
Mas não somente na compra e venda o produtor rural assume a obrigação de entregar seu produto.
Também no contexto da outorga de garantias ao financiamento de sua atividade, pode o produtor
rural contrair esta obrigação. O pecuarista que dá em penhor ao banco determinada quantidade de
cabeças de gado, assume a obrigação de entregá-las caso seja necessária a execução da garantia.
Além de instrumento para documentar a obrigação do produtor rural como vendedor ou devedor
pignoratício, também tem servido a CPR de meio de financiamento da produção. O produtor de soja,
por exemplo, adquire os insumos emitindo, em favor do vendedor (de adubo, sementes etc.) uma CPR
referente à parte da produção projetada. Não desembolsa dinheiro para pagar seus fornecedores, mas
obriga-se a entregar-lhes determinada quantidade do que pretende cultivar e colher. O comerciante
de insumos, normalmente, não se interessa pelo produto em si, mas, por meio do endosso da CPR em
favor de uma trading company, por exemplo, recebe em dinheiro o que considerou ajustado aos seus
interesses na operação.
O art. 11 da Lei n. 8.929/94 imputa ao emitente da CPR a responsabilidade por evicção e
preceitua não poder ele invocar, em seu benefício, o caso fortuito ou de força maior. Esta regra, que
visa conferir ao título segurança de extensa envergadura, incide tanto antes, como depois da
concentração (isto é, do ato de escolha que transforma a obrigação de dar coisa incerta na de dar
coisa certa — Coelho, 2003, 2:52/54). Quer dizer, optando o produtor rural por documentar sua
obrigação de dar coisa incerta numa CPR, mesmo após a individuação do produto e enquanto não
cumprir a obrigação de entrega, o emitente responde pela perda, inclusive se não teve culpa.
Por produto rural deve-se entender um conceito amplo, ajustado ao de “agronegócio”. Desse
modo, não somente a entrega de produto agrícola ou pecuário in natura pode ser objeto de CPR, mas
também os beneficiados ou industrializados, como açúcar ou farelo de soja (Buranello, 2009:338).
Sendo o agronegócio um complexo de atividades que se estende desde o fornecimento de insumos até
a comercialização ou exportação, seria incompatível com a abrangência deste conceito a restrição
das hipóteses de emissão de CPR aos produtos in natura.
O titular de uma CPR, seja credor originário ou por endosso, tem o direito de, no vencimento
definido no próprio título (“data da entrega” — art. 3º, II), exigir do emitente o produto, na
quantidade e qualidade nela discriminadas. Se às partes convier o adimplemento parcial da
obrigação, faz-se a anotação, no verso da CPR, do saldo ainda exigível (art. 4º e parágrafo único).
A promessa do emitente de entregar produtos rurais incorporada numa CPR pode ser
cedularmente garantida. Isso significa que nenhum outro instrumento, além da própria cártula, é
necessário para formalizar a constituição da garantia. Dispensa-se, por exemplo, a escritura de
outorga de hipoteca, para registro do ônus no Registro de Imóveis, bastando, para tanto, a exibição
da CPR em que o imóvel rural ou urbano hipotecado está identificado. As garantias podem ser, além
da hipoteca, o penhor e a alienação fiduciária de bens ou direitos do próprio emitente, ou de
terceiros.
4.2.2. Cédula de Produto Rural Financeira
Para admitir a liquidação financeira, a CPR deve cumprir as condições estabelecidas no art. 4º-A
da Lei n. 8.929/94.
Em primeiro lugar, devem constar do teor do título de crédito os elementos indispensáveis à
perfeita precificação da obrigação do emitente: “a instituição responsável por sua apuração ou
divulgação, a praça ou o mercado de formação do preço e o nome do índice”. Nunca conterá a CPR,
mesmo a sua versão financeira, a obrigação de pagar quantia em reais, já definida de antemão. Pelo
contrário, sempre constará do título a discriminação de um produto rural, sua quantidade e qualidade.
Na CPR-financeira, será explicitado como se calcula o preço ou se identifica o índice de preço a ser
considerado na liquidação, a partir dos valores praticados num determinado mercado relacionado a
este produto. Por exemplo, o emitente pode se obrigar a entregar determinada quantidade de cana-deaçúcar ou pagar em dinheiro o seu preço, de acordo com a cotação do Consecana-SP. No dia do
vencimento, multiplica-se a quantidade do produto pelo preço cotado nesta entidade para calcular o
quanto deverá o emitente desembolsar para liquidar financeiramente a CPR.
Por outro lado, apenas podem ser nomeadas instituições idôneas e de credibilidade, segundo
avaliação das partes envolvidas no negócio, que promovam a divulgação periódica
(preferencialmente diária) de cotação dos preços do produto rural objeto da CPR. Emitente, credor
originário e endossatários devem ter ampla facilidade de acesso a esses dados, para que seja certa a
extensão da obrigação documentada na CPR.
Por fim, é indispensável que a cláusula cambial, vale dizer, a denominação “Cédula de Produto
Rural” (Lei n. 8.929/94, art. 3º, I), contemple também a expressão “financeira”.
4.2.3. CPR como Instrumento de Investimento
Como a CPR não tem valor em reais e apenas discrimina a quantidade e qualidade de certo
produto rural, ela se presta, também, a servir de instrumento de investimento. Quem deseja especular
com a variação do preço de uma commodity agrícola pode adquirir CPRs correspondentes, com o
objetivo de ganhar com a diferença das cotações (que ele aposta seja positiva) entre o dia em que
comprou e o dia em que vier a vender o título. Para bem servir como instrumento de investimento, a
CPR é negociável em mercado de balcão organizado (MBO), como, por exemplo, a CETIP ou a
BBM. Quem tomar a iniciativa de promover o registro da CPR no MBO deve manter em custódia a
cártula, pois, a partir de então, o título passa a ter exclusivamente o suporte eletrônico.
Para conferir maior segurança ao investidor, a CPR oferecida ao mercado como alternativa de
investimento pode contar com o aval de uma instituição financeira ou seguradora. Neste caso, o
produtor rural emite o título em favor do próprio avalista e lhe confere, por meio de endossomandato, poderes para negociá-lo, custodiá-lo e registrá-lo em MBO (art. 19, § 4º). Evidentemente,
em se aproximando o título do vencimento (quando se torna exigível a obrigação de entrega do
produto em referência), cada vez menos especuladores se interessarão por adquiri-lo e crescerá o
interesse por parte de empresários dedicados ao agronegócio, principalmente as trading companies.
Os investidores querem ganhar com as variações de preço das commodities, mas, em geral, não têm
interesse na liquidação física da CPR; ao contrário, as trading companies querem o produto, para
poder comercializá-lo ou exportá-lo.
Tanto a CPR-física quanto a CPR-financeira podem servir de instrumento de investimento.
4.3. Certificado de Depósito Agropecuário (CDA) e Warrant
Agropecuário (WA)
Os títulos armazeneiros só podem ser emitidos por um armazém, a pedido do depositário, e são
necessariamente referenciados a mercadorias nele depositadas. Até 2000, não havia, no direito
brasileiro, senão um único e mesmo regime jurídico para todos os tipos de armazéns.
Independentemente do gênero de produtos em que podia se especializar o estabelecimento
armazeneiro, as normas aplicáveis à relação jurídica entre as partes do contrato de depósito e aos
títulos representativos das mercadorias depositadas estavam todas reunidas no Dec. n. 1.102/1903.
Naquele ano, com o advento da Lei n. 9.973/2000, que instituiu o Sistema de Armazenagem de
Produtos Agropecuários , passou o direito nacional a discriminar uma espécie de armazém, para
submetê-lo a regime jurídico específico.
Consentaneamente com a noção de agronegócio como um sistema complexo reunindo diversas
atividades ligadas à produção, distribuição e financiamento de produtos agrícolas e pecuários, os
armazéns atuantes nesta cadeia econômica foram destacados dos demais, pela lei, com vistas a
submetê-los ao regulamento administrativo específico baixado pelo Ministério da Agricultura e do
Abastecimento. Em outros termos, qualquer armazém só pode receber em depósito produtos
agropecuários, seus derivados, subprodutos e resíduos , se estiver devidamente aparelhado e
funcionando conforme este regulamento administrativo. Chamemos tais estabelecimentos
empresariais de armazéns de agronegócio, para distingui-los dos restantes, os armazéns-gerais.
Dois são os objetivos da lei em tratar separadamente os armazéns de agronegócio. O primeiro está
relacionado ao padrão de qualidade dos serviços de armazenagem, que deve ser compatível com a
inserção do Brasil na economia globalizada. O segundo diz respeito à especialização desse tipo de
armazém, que fica dispensado de atividades um tanto estranhas ao seu objeto específico, como as de
manter a sala de “vendas públicas” ou administrar valores consignados (reservadas pela lei aos
armazéns-gerais).
Os títulos armazeneiros de emissão dos armazéns-gerais são o Conhecimento de Depósito e o
Warrant, disciplinados no referido Dec. n. 1.102/1903 (Cap. 15, item 1.2). Já os específicos de
emissão de armazéns de agronegócio são o Conhecimento de Depósito Agropecuário (CDA) e o
Warrant Agropecuário (WA), criados pela Lei n. 11.076/2004. Eles possuem a mesma estrutura e
finalidade. Diferenciam-se, basicamente, quanto ao gênero de produto em que podem ser referenciados e à admissibilidade
de sua negociação em mercado de balcão organizado (MBO). Somente o CDA e o WA podem
representar produtos agrícolas e pecuários armazenados e são negociáveis em MBO.
Os dois títulos são emitidos pelo armazém de agronegócio necessariamente juntos (sempre a
pedido do depositante), mas podem circular separados, dependendo dos negócios que vierem a ser
celebrados tendo os produtos depositados por referência. Enquanto o CDA e o WA permanecerem
sob a mesma titularidade (e, depois de separados, sempre que voltarem a esta condição), asseguram
ao titular a plena propriedade da mercadoria depositada no armazém de agronegócio.
Os títulos serão emitidos pelo armazém de agronegócio em duas vias, sendo as primeiras (vias
negociáveis do CDA e do WA) do depositante e as segundas (na qual colherá o recibo) do emitente
(Lei n. 11.076/2004, art. 8º). As primeiras vias dos títulos podem ser negociadas por meio de
endosso com assinatura de punho, mas, em geral, o depositante terá interesse em ambientar a
negociação num MBO, onde os títulos tendem a ter maior liquidez. Neste caso, as primeiras vias
ficam custodiadas na entidade que promover o registro no MBO, transmutando-se o suporte do CDA
e do WA para o eletrônico.
O endosso do WA separado do CDA investe o endossatário na condição de credor pignoratício
do endossante, recaindo o penhor sobre o produto armazenado. Esta operação tem lugar, por
exemplo, quando o empresário dono das mercadorias depositadas no armazém de agronegócio não
deseja negociá-la no momento (aguarda condições de mercado mais favoráveis, segundo seu
julgamento), mas precisa de capital de giro e o obtém junto aos bancos, dando em garantia do
empréstimo o penhor sobre elas. Na primeira negociação do WA em separado, serão registrados no
sistema do MBO o valor de negociação deste título, taxa de juros, vencimento e outras informações
que permitam aos interessados mensurar a extensão do ônus que recai sobre o produto armazenado
(Lei n. 11.076/2004, art. 17).
Por sua vez, o endosso do CDA em separado do WA investe o endossatário na condição de titular
da propriedade das mercadorias armazenadas, menos um de seus atributos: o da onerabilidade. Quer
dizer, o titular do CDA pode negociar os produtos armazenados, mas não os pode dar em penhor.
Evidentemente, não encontrará no mercado ninguém interessado em pagar-lhe pelo CDA o mesmo
valor que pagaria por produtos livres e desembaraçados. Normalmente, quem adquire o CDA em
separado do WA abate do preço o equivalente à obrigação garantida por este último título. É na
negociação do CDA, isoladamente ou em conjunto com o WA, que se verifica o emprego desses
títulos armazeneiros como instrumento de investimento ou especulação.
A pedido do depositante, o armazém de agronegócio deve emitir dois títulos de crédito (CDA e WA), que, embora sejam criados
necessariamente juntos, podem circular em separado. A circulação em separado do WA importa a constituição de penhor sobre a mercadoria
depositada, sendo o endossatário investido na condição de credor pignoratício do endossante. Já a circulação em separado do CDA importa a
transferência ao endossatário da titularidade da mercadoria depositada, exceto um de seus atributos: o da onerabilidade.
Em princípio, o armazém de agronegócio só pode entregar o produto agrícola ou pecuário nele
depositado a quem lhe exibir as primeiras vias dos dois títulos (além de pagar pelos serviços de
armazenagem). O credor do CDA e do WA que tiver o interesse em levantar a mercadoria do
armazém deve, assim, solicitar a sua “baixa escritural” no MBO e pedir à entidade registradora a
entrega das cártulas (primeiras vias) que, durante a circulação em meio eletrônico, ficaram nela
custodiadas.
O titular apenas do CDA que deseja levantar o produto depositado tem, assim, duas alternativas: a
primeira é resgatar o WA das mãos de quem o titula, pagando a obrigação garantida pelo penhor e
reunindo os dois títulos; a segunda é consignar o valor do WA (principal e juros) junto à entidade
custodiante, recebendo desta um documento comprobatório da consignação. Na segunda hipótese,
providenciada a “baixa escritural” dos títulos, o sujeito se dirige ao armazém de agronegócio, onde,
exibindo a primeira via do CDA e o documento comprobatório da consignação e pagando as
despesas de armazenagem, pode levantar o produto agrícola ou pecuário ali depositado. De sua
parte, a entidade custodiante pagará ao titular do WA, com os recursos nela consignados para esta
finalidade (Lei n. 11.076/2004, art. 21, § 1º, II e §§ 2º e 4º a 6º).
O titular apenas do WA, como visto, é credor pignoratício do primeiro endossante deste título. Se
a obrigação garantida não for honrada no vencimento, abrem-se-lhe as seguintes alternativas: 1ª) se o
titular do CDA havia consignado o valor deste título junto à entidade custodiante, o credor do WA
deve procurá-la para receber seu pagamento; 2ª) se não houve a consignação, ele pode promover a
execução da garantia pignoratícia. Esta execução pode recair diretamente sobre o produto
depositado, hipótese em que será vendido em leilão promovido em bolsa de mercadoria, ou sobre o
CDA correspondente, expropriando-se judicialmente o título de quem o detenha para ser, em seguida,
negociado, juntamente com o WA, em bolsa de mercadoria ou de futuros ou em MBO. Nas duas
alternativas, o produto da venda é empregado, sucessivamente, na liquidação da obrigação garantida
pelo WA, pagamento das despesas de armazenagem e entrega do saldo remanescente ao credor do
CDA (Lei n. 11.076/2004, art. 17, §§ 2º e 3º).
O regime cambial do CDA e do WA é o do Código Civil. Quando os títulos foram instituídos, em
2004, já estava em vigor o art. 903 do CC. Desse modo, enquanto o Conhecimento de Depósito e o
Warrant emitidos por armazéns-gerais continuam regidos pelas normas e preceitos genéricos da LU,
o CDA e o WA submetem-se, em matéria cambial, ao CC. Ademais, a Lei n. 11.076/2004 fixou três
regras cambiais específicas para estes títulos. A exemplo das CPRs, também no caso do CDA e WA,
o endosso deve ser completo e não importa a obrigação do endossante pela entrega do produto, mas
somente pela existência da obrigação; além disso, o protesto não é necessário para conservação do
direito contra endossantes e seus avalistas.
4.4. Refinanciamento do Agronegócio e Securitização
O refinanciamento e a securitização são meios de o financiador de uma atividade econômica,
negociando com instituição financeira ou investidores, “antecipar” a realização de valor financiado,
com o objetivo de dispor de recursos para promover novos financiamentos. O que diferencia a
securitização do refinanciamento é a segregação dos riscos numa sociedade de propósito específico
(a companhia de securitização).
No que diz respeito ao refinanciamento e à securitização no contexto do agronegócio, a lei criou
três títulos: o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA), a Letra de Crédito do
Agronegócio (LCA) e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA). A principal diferença
entre eles diz respeito ao emissor: o CDCA só pode ser emitido por cooperativas ou empresários do
agronegócio, a LCA somente por instituições financeiras e o CRA, por companhia securitizadora de
recebíveis do agronegócio. A disciplina desses títulos se abriga, também, na Lei n. 11.076/2004.
São títulos de crédito sujeitos à regência supletiva do Código Civil (art. 903) e, também, a duas
normas específicas: 1ª) o endosso deve ser completo, não se admitindo os títulos ao portador; 2ª) o
protesto é facultativo para a cobrança contra os coobrigados, isto é, dos endossantes e seus avalistas
(Lei n. 11.076/2004, art. 44). Eles podem servir de instrumento de investimento, facultando a lei sua
negociação em bolsa de valores, de mercadorias e futuros e em MBO.
Os títulos de refinanciamento e securitização do agronegócio são lastreados em direitos creditórios oriundos de atividades empresariais
exploradas nesta cadeia econômica. Variam conforme os sujeitos autorizados por lei para emiti-los: os empresários ou cooperativas emitem o
CDCA, as instituições financeiras, o LCA, e a companhia de securitização de recebíveis do agronegócio, o CDA.
Os títulos de refinanciamento e securitização do agronegócio devem necessariamente lastrear-se
em créditos originados de negócios jurídicos entabulados entre os agentes da cadeia de agribusiness.
Nenhum crédito constituído em operação econômica estranha ao agronegócio pode ser empregado
como lastro desses títulos. Nos termos da lei, os direitos creditórios em questão devem ser
“originários de negócios realizados entre produtores rurais, ou suas cooperativas, e terceiros,
inclusive financiamentos ou empréstimos, relacionados com a produção, comercialização,
beneficiamento ou industrialização de produtos ou insumos agropecuários ou de máquinas e
implementos utilizados na atividade agropecuária” (Lei n. 11.076/2004, art. 23, parágrafo único).
Este conceito legal circunscreve os direitos creditórios do agronegócio.
4.4.1. Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA)
O CDCA pode ser emitido exclusivamente por cooperativas de produtores rurais ou por
sociedades empresárias que exploram atividade de comercialização, beneficiamento ou
industrialização de produtos ou insumos agropecuários, bem como de máquinas e implementos
utilizados na produção agropecuária (Lei n. 11.076/2004, art. 24, parágrafo único). Imagine que uma
indústria vende tratores a prazo aos produtores rurais. Os créditos derivados destas operações de
venda podem servir de lastro para a emissão de um CDCA pela indústria de tratores, para colocação
junto a investidores.
Os direitos creditórios do agronegócio vinculados à CDCA podem estar documentados numa
variada gama de instrumentos jurídicos, como a Duplicata Mercantil, a Nota Promissória Rural,
CPR, CDA e WA. Os créditos oriundos de contratos mercantis podem também lastrear o CDCA, mas
isso não tem sido usual em razão de dificuldades operacionais derivadas da falta de padronização
(Buranello, 2009:371).
Para servirem de lastro à emissão do CDCA, os direitos creditórios do agronegócio devem estar
registrados no MBO e seus respectivos documentos custodiados numa instituição financeira (ou outra
entidade autorizada pela CVM a prestar serviço de custódia de valores mobiliários). Caberá à
instituição custodiante, além da guarda da documentação, realizar a liquidação dos direitos
creditórios vinculados ao CDCA. Para isso, ela deve ser investida em poderes de mandatária do
emitente para cobrar e receber os créditos que lastreiam o título.
A emissão do CDCA implica a constituição de penhor legal sobre os créditos vinculados. Estes,
ademais, são insuscetíveis de qualquer constrição judicial para cobrança de outras obrigações do
emitente do título. Garantias convencionais, como aval, hipoteca ou alienação fiduciária sobre outros
bens do emitente ou de terceiros, podem ser adicionadas ao penhor legal, com o objetivo de tornar o
título mais atraente aos olhos dos potenciais investidores.
O CDCA pode ser emitido em suporte exclusivamente eletrônico, mediante registro em MBO (Lei
n. 11.076/2004, art. 35).
4.4.2. Letra de Crédito do Agronegócio (LCA)
A Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) somente pode ser emitida por institui ções financeiras,
também tendo por lastro créditos decorrentes de operações de financiamento entabuladas com
agentes do agronegócio. Colocada junto a investidores, a LCA viabiliza a captação de recursos para
possibilitar à instituição financeira emitente a realização de novos financiamentos às atividades
econômicas ou outra operação própria a seu objeto.
Tal como no caso do CDCA, os direitos creditórios vinculados à LCA devem estar registrados em
MBO e seus documentos custodiados numa instituição autorizada a prestar este serviço. Também se
estendem aos direitos creditórios que fornecem o lastro à LCA o penhor legal instituído em favor dos
investidores adquirentes do título e a impossibilidade de qualquer constrição judicial por outras
obrigações do emitente. São igualmente aplicáveis à LCA as regras do CDCA atinentes à
admissibilidade de garantias convencionais adicionais e a emissão, circulação e liquidação
exclusivamente em suporte eletrônico.
4.4.3. Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA)
Os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) só podem ser emitidos por companhias
securitizadoras de direitos creditórios do agronegócio. Elas são sociedades anônimas dedicadas à
aquisição de créditos dessa natureza (isto é, apenas os mencionados no parágrafo único do art. 23 da
Lei n. 11.076/2004), especificamente com o objetivo de utilizá-los como lastro para a emissão do
CRA, que será, como o CDCA e a LCA, colocado junto a investidores.
A emissão do CRA pode ser feita sob regime fiduciário ou não, a depender unicamente da
declaração de vontade da companhia securitizadora, expressa no Termo de Securitização. No
primeiro caso, constituir-se-á um patrimônio separado, integrado, de um lado, pelos direitos
creditórios do agronegócio adquiridos (ativos separados), e, de outro, pela obrigação de resgate do
CRA (passivo separado). No regime fiduciário, nenhuma outra obrigação da companhia
securitizadora (à exceção das dívidas trabalhistas e fiscais — art. 76 da Medida Provisória n. 2.15835/2001) pode ser executada sobre os direitos creditórios de agronegócio vinculados à CRA, nem
mesmo em caso de falência (LF, art. 119, IX). No segundo, sendo a emissão feita fora do regime
fiduciário, não há a constituição de patrimônio separado, e qualquer credor da companhia
securitizadora, mesmo que não seja titular de CRA, pode buscar a satisfação de seu crédito mediante
expropriação judicial dos direitos creditórios de agronegócio. Evidentemente, a companhia
securitizadora decidirá se institui ou não o regime fiduciário em cada série de emissão, em função
das condições de mercado, levando em conta que a constituição do patrimônio separado sempre
implicará maiores garantias aos investidores e, portanto, maior atratividade ao CRA.
4.5. Nota Comercial do Agronegócio (NCA)
Qualquer sociedade empresária atuante no agronegócio pode, uma vez cumpridas as condições
legais e regulamentares aplicáveis, captar recursos no mercado de valores mobiliários, mediante a
emissão de ações ou debêntures. Nesses casos, não há nenhuma especificidade derivada de seu
objeto: ela se submeterá ao mesmo regime jurídico das companhias abertas (Cap. 19 e 20, item 2).
Quando se trata, contudo, de captar recursos a curto e médio prazos, em vez do commercial paper
posto à disposição das companhias abertas em geral (Cap. 20, item 5), a sociedade empresária
dedicada a agronegócio terá ao alcance um valor mobiliário específico: a Nota Comercial do
Agronegócio (NCA). Este valor mobiliário está disciplinado na Instrução CVM n. 422, de 20 de
setembro de 2005.
A NCA é uma nota promissória que admite emissão pública, para fins de captação, pelo seu
emitente, de recursos junto ao mercado de valores mobiliários. Seu vencimento é de no máximo 360
dias (art. 5º), revelando-se, assim, um instrumento mais apropriado à captação de recursos para
custeio do agronegócio. Além de companhias abertas, também as fechadas e até mesmo as
sociedades limitadas e cooperativas podem se valer, dentro de certos limites, deste instrumento de
captação de recursos. De acordo com o regulamento da CVM, a emissora deve se dedicar à atividade
de “produção, comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos ou insumos
agropecuários, ou de máquinas e implementos utilizados na atividade agropecuária” (art. 2º). A
captadora que não for sociedade anônima aberta deve requerer o registro como emissora de NCA
(salvo se o prazo de resgate for de até 270 dias, quando estará dispensada desta formalidade).
Para emitir NCA, deve-se atender aos mesmos procedimentos e cautelas que a CVM exige dos
demais agentes captadores de recursos no mercado de valores mobiliários, destinados a garantir
ampla transparência e segurança ao investidor, tais como a contratação de uma instituição financeira
intermediária, a divulgação do prospecto, prestação de contas periódicas à autarquia e ao mercado
etc.
ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO
(O primeiro número refere-se ao capítulo e o segundo, ao item ou subitem.)
Abstração
— subprincípio da: 10:2.3.1
Abuso do poder econômico
Ver Infração da ordem econômica
Accessio temporis
— noção: 5:4.1
Aceite
— cláusula não aceitável: 11:3.2
— conceito: 11:3
— domiciliado: 11:3.1
— duplicata: 14:3
— limitativo: 11:3.1
— modificativo: 11:3.1
— recusa parcial: 11:3.1
Agronegócio
Ver Títulos do agronegócio
— Definição: 15:4
Análise econômica do direito
— e as externalidades: 1:10
— responsabilidade contratual: 1:12
Atividade inventiva
— e adição de invenção: 6:2
— noção: 6:4.2
Atos cambiais
— aceite: 11:3
— aval: 11:5
— endosso: 11:4
— e o Plano Collor: 11:4.3
— saque: 11:2
Atos de comércio
— teoria dos: 1:4
Autonomia cambial
— princípio da: 10:2.3
Aval
— conceito: 11:5
— e fiança: 11:5.2
— e garantias extracartulares: 11:5.3
— simultâneos: 11:5.1
Aviamento
— clientela: 5:1
— noção: 5:1
CADE
— competência: 7:3.2
— natureza: 3:4.2; 7:3.2
— noção: 7:3.1
Cartularidade
— princípio da: 10:2.1
Cédula de crédito
— à exportação: 15:3.1
— bancário: 15:3.2
— comercial: 15:3.1
— de produto rural: 15:4.2
— industrial: 15:3.1
— rural: 15:3.1
Cessão civil de crédito
— e endosso: 11:4.2
Cheque
— administrativo: 13:2.1
— circulação: 13:1.1
— conceito: 13:1
— cruzado: 13:2.1
— modalidades: 13:1.2
— para se levar em conta: 13:1.2
— pós-datado: 13:2
— prazo de apresentação: 13:1.3
— pré-datado: 13:2
— sem fundos: 13:4
— sustação: 13:3
— visado: 13:1.2
Ciência do direito
— noção: 1:9
Competição
Ver Concorrência
CONAR
— abrangência: 9:2.1
— referência: 9:2
— sanções: 9:2.2
Concentração econômica
— conclusão: 7:4
— controle preventivo: 7:7
Concorrência
Ver também Concorrência desleal
— autofágica: 7:9
— direito-custo: 1:12
— disciplina contratual: 7:9
— e o Mercosul: 3:4.2
— ilícita: 7:8
— não restabelecimento: 5:6.3
— prejuízo à livre: 7:4.2
— vantagem competitiva: 3:1
Concorrência desleal
— classificação: 7:2.1
— e impedimentos à patenteabilidade: 6:4.4
— específica: 7:2.2
— noção: 7:2
— publicidade comparativa: 9:11
— repressão civil: 7:2.3
— segredo de empresa: 6:2.1
— usurpação de nome empresarial: 6:9.2
— usurpação de título de estabelecimento: 6:10
Conhecimento de depósito
— do agronegócio: 15:4.3
— título armazeneiro: 15:1.2
Constituição econômica
— conceito: 7:3
— perfil neoliberal: 7:1, 3
Consumidor
— conceito: 9:1
— direito-custo: 1:12
— e o Mercosul: 3:4.2
— informação: 8:5, 5.1, 5.2; 9:4.4
— pagamento de título de crédito: 11:7.2
— qualidade de bens e serviços: 8
— vícios no fornecimento: 3:4.2; 8:9
Conta de serviços
— noção: 14:6
Controle
— direitos do consumidor: 8:10.6
Correção monetária
— cheque: 13:4.2
— duplicata: 14:5.1
— pagamento em cartório: 11:8.2
Culpa
— comerciante: 8:7.3
— e infração da ordem econômica: 7:4.1
— harmonização do direito: 3:4.2
— profissionais liberais: 8:7.5
— publicidade: 9:7
— qualidade de produtos e serviços: 8:2
— sistema no fault: 8:2
Demonstrações contábeis
— balanço de determinação: 4:6
— noção geral: 4:6
— periodicidade: 4:6
Denominação
— formação: 6:9.2
— noção: 6:9.1
Desenho industrial
— e obra de arte: 6:3.2
— noção: 6:2
— originalidade: 6:5.1
— pedido de registro: 6:6.2
— registro: 6:5.1
Design
Ver Desenho industrial
Direito ambiental
— direito-custo: 1:11
— externalidades: 1:10
Direito antitruste
— noção: 7:3
Direito autoral
— e direito industrial: 6:3.1
— obra de arte: 6:3.2
Direito cambiário
— cláusula-mandato: 11:2.2
— constituição do crédito cambiário: 11:1 a 5
— e a informática: 10:5
— natureza da obrigação cambial: 10:3
— princípios: 10:2
Direito comercial
— direito-custo: 1:12
— e o direito empresarial: 1:8
— e o Mercosul: 3:4.2
Direito comparado
— Alemanha: 5:6.1; 6:1, 6; 11:1
— Argentina: 3:4.2; 4:5.1, 5.5; 5:6.1; 6:1, 9; 14:1
— Espanha: 6:1, 4.2; 7:1; 9:1, 11
— EUA: 3:4.2; 5:7, 7.1; 6:1, 2.1, 4.2, 6, 7.3; 7:1, 3.2; 8:1.2, 2, 3, 5.2; 9:1, 4.5; 11:2.1; 14:1
— Europa: 7:3.2; 8:6.1
— França: 1:4, 5; 5:6.1; 6:2.1, 4.2, 6; 7:1, 2.4; 9:1, 11; 13:4.3; 14:1, 5.2
— harmonização: 3:4.1
— Itália: 1:5; 5:6.1, 6.3; 6:6, 7.3; 7:1; 9:1, 2.2; 10:4
— Portugal: 7:1; 9:1; 14:1
— Reino Unido: 6:6; 8:3
— Suíça: 6:6
— Uruguai: 3:4.2; 9:11
Direito-custo
— acidente de trabalho: 1:12
— definição: 1:11
— direito comercial: 1:12
— Mercosul: 4:1
— recuperação de crédito: 1:12
Direito industrial
Ver também Propriedade industrial
— caducidade: 6:8
— cessão de: 6:7.2
— contrafação: 6:5.2
— e direito autoral: 6:3.1
— extinção: 6:8
— licença de: 6:7.1; 8:10.3, 10.4
— período de graça: 6:4.1, 5.1
Direito penal
— cheque sem fundos: 13:4.3
— concorrência desleal: 7:2.4
— duplicata simulada: 14:2
— publicidade enganosa ou abusiva: 9:9
Direito privado
— autonomia da vontade: 1:3
— e o direito público: 1:3
Direito público
— e o direito privado: 1:3
Domínio público
— direito industrial: 6:8
Dumping
— e concorrência: 7:5.s
— social: 3:4.1
Duplicata
— aceite: 14:3
— causalidade: 14:2
— conceito: 14:1
— de prestação de serviços: 14:6
— execução: 14:5
— meio eletrônico: 14:5.2
— protesto: 14:4
— registro de duplicatas: 4:5.1
— triplicata: 14:4.2
Economia
— e direito: 1:10 a 12
— informal: 4:3
— liberalismo: 7:1
— neoliberalismo: 7:1
Empresa
Ver também Microempresário
— e empresário: 4:1
— elemento de: 8:7.5
— inatividade: 4:4.6; 6:9.3
— no direito brasileiro: 1:7
— princípio da preservação: 6:7
— relações interempresariais e consumidor: 8:10
— segredo de: 6:2.1, 6.1; 7:2.2, 2.3, 2.4
— teoria da: 1:5
— teoria da empresa em si: 5:1
Empresário
— como fornecedor: 8:7.1
— conceito: 4:1
— de pequeno porte: ver Microempresário
— individual: 6:9.1
— obrigações gerais: 4:3
— rural: 4:4.5
— sociedade empresária: 4:2
Endosso
— caução: 11:4.1
— conceito: 11:4
— e cessão civil de crédito: 11:4.2
— espécies: 11:4
— impróprio: 11:4.1
— mandato: 11:4.1
Escrituração
— falta de escrituração: 4:5.7
— funções: 4:5
— livros: 4:5.1
— processos: 4:5.3
— registro de duplicata: 14:2
— regularidade: 4:5.2
Espionagem econômica
— referência: 7:2.2
Estabelecimento
Ver também Aviamento, Fundo de comércio e Ponto
— alienação: 5:6; 6:9.2
— conceito: 5:1
— elementos: 5:3
— natureza: 5:5.1
— shopping center: 5:5
— sucessão: 5:6.1; 8:10.2
— título de: 6:10
Estado
— capitalista: 1:2; 1:9
— do bem-estar social: 1:2; 1:9; 7:1
— liberal: 1:3
— socialista: 1:2
Estado da arte
— dever de pesquisar: 8:6.1
— noção: 8:6.2
Estado da técnica
— e design: 6:5.1
— e estado da arte: 8:6.2
— noção: 6:4.1
Execução específica
— direito-custo: 1:12
Externalidades
— internalização das:1:10
— noção: 1:10
Falência
— crime falimentar: 4:5.5, 6
— e teoria da empresa: 1:7
— irregularidade da sociedade: 4:4.4
— trespasse irregular: 5:6.1
Fatura
— noção: 14:3
Fiança
— caracterização: 11:5.3
— e aval: 11:5.2
Firma
— formação: 6:9.2
— noção: 6:9.1
Franquia
— circular de oferta: 5:7.1
— e concorrência: 7:5.k
— e relações de consumo: 8:10.5
— noção: 5:7
— registro: 5:7.2
Fundo de comércio
Ver Estabelecimento
Globalização
— cláusula social: 3:3
— integração econômica: 3:4
Hacking
— crime: 7:2.4
— referência: 7:2.2
História do direito comercial
— brasileiro: 1:6
— direito cambiário: 11:1
— direito industrial: 6:1, 4.4, 10
— escrituração: 4:5, 5.3
— períodos: 1:4
— registro do comércio: 4:4
— Tribunais do Comércio: 4:4
Informática
— duplicata eletrônica: 14:5.2
— e escrituração mercantil: 4:5.3
— e o direito cambiário: 10:3
— espionagem: 7:2.2, 2.3
— prova judiciária: 4:5.5
Infração da ordem econômica
— abuso de posição dominante: 7:4.5
— aumento arbitrário de lucros: 7:4.4
— caracterização: 7:4
— colusão: 7:4
— compromisso de desempenho: 7:3.2
— condutas infracionais: 7:5
— discriminação: 7:5.1
— noção: 7:3
— recusa de fornecimento: 7:5.m
— sanções: 7:6
— venda casada: 7:5.e, w
Inoponibilidade
— subprincípio da: 10:2.3.2
INPI
Ver também Direito industrial
— exame prévio: 6:6
— livre concessão: 6:6, 6.2
— processo administrativo: 6:6
— referência: 6:2
— registro da franquia: 5:7.2
INSS
— acesso aos livros do empresário: 4:5.5
Joias
— proteção pelo direito industrial: 6:3.2
Junta comercial
— competência: 4:4.1, 4.2
— estrutura: 4:4.1
— história: 4:4
Juros
— cheque: 13:4.2
— duplicata: 14:5.1
Letra de câmbio
— requisitos: 11:2.1
Literalidade
— princípio da: 10:2.2
Livre-iniciativa econômica
— e livre concorrência: 7:4.2
— prejuízo: 7:4.2
— princípio constitucional: 7:1
Livros
— classificação: 4:5.1
— Código Brasileiro de Trânsito: 4:5
— exibição judicial: 4:5.5
— extravio ou perda: 4:5.4
— princípio do sigilo: 4:5.5
Locação empresarial
— e teoria da empresa: 1:7
— e trespasse: 5:6.2
— locação-gerência: 5:4.2, 4.4
— requisitos: 5:4.1
— retomada: 5:4.2
Lucros
— aumento arbitrário: 7:4.4
Marca
— alto renome: 6:5.2
— caducidade: 6:8
— cessão: 6:7.2
— coletivas: 6:2.2
— de certificação: 6:2.2
— e nome empresarial: 6:9.3
— licença: 5:7; 6:7.1
— noção: 6:2
— pedido de registro: 6:6.3
— registro: 6:5.2
— sonora: 6:2
Marca notória
— contrafação: 6:5.2
— degeneração: 6:7.3
— noção: 6:5.2
— publicidade comparativa: 9:11
Mercado
— de competição perfeita: 1:10
— divisão de: 7:5.c
— em causa: 7:4.3
— limitar o acesso ao: 7:5.d
— regulação: 7:5.j
— relevante: 7:4.3
Merchandising
— publicidade simulada: 9:3
— responsabilidade perante o consumidor: 8:10.4
Mercosul
— harmonização do direito: 3:4.1
— noção geral: 3:4
Microempresário
— Estatutos: 4:5.1
— pequeno empresário: 4:4.5
— SIMPLES: 4:5.1
Nome empresarial
— elemento fantasia: 6:9.1
— e marca: 6:9.3
— espécies: 6:9.1
— formação: 6:9.2
— noção: 6:9
— proteção: 6:9.2
— razão social: 6:9.1
Nota fiscal-fatura
— noção: 14:3
Nota promissória
— regime: 12:2
— requisitos: 12:1
Obrigação cambial
— natureza: 10:3
Pagamento de título de crédito
— cautelas: 11:7.2
— em cartório: 11:8.2
— prazo para apresentação: 11:7.1
Patente
— atividade inventiva: 6:4.2
— caducidade: 6:8
— cessão: 6:7.2
— defesa nacional: 6:6.1
— desimpedimento: 6:4.4
— industriabilidade: 6:4.3
— licença: 6:7.1
— novidade: 6:4.1
— originalidade: 5:4.1
— patenteabilidade: 6:4
— pedido: 6:6.1
— reivindicações: 6:6.1
Planos econômicos
— Plano Collor: 11:4.3
Ponto
— indenização pela perda: 5:4.4
— noção: 5:4
— trespasse: 5:6, 6.2
Prazos
— apresentação do cheque: 13:1, 1.3
— caducidade: 6:8
— duração do direito industrial: 6:8
— guarda dos livros: 4:5.5
— inatividade: 4:4.5
— licença compulsória: 6:7.1
— pedido de exame: 6:6.1
— período de graça: 6:4.1, 5.1
— prescrição cambial: 11:9; 13:4.1; 14:5
— prioridade: 6:6.4
— publicação de pedido no INPI: 6:2.1, 6.1
— registro na Junta: 4:4.3
— renovatória: 5:4.3
— saneamento de vícios: 8:9.1
— vícios: 8:9.3
Preços
— combinados em licitação pública: 7:5.h
— concertados: 7:5.a
— de revenda: 7:5.k
— excessivos: 7:5.x
— oscilação artificial: 7:5.i
— predatório: 7:5.r
Princípios
— do direito comercial internacional: 3:2
Processo civil
— ação cambial: 11:9
— ação renovatória: 5:4.3
— ações cambiais do cheque: 13:4.1
— direito-custo: 1:12
— execução da duplicata: 14:5
— exibição judicial dos livros: 4:5.5
— inoponibilidade: 10:2.3.2
— prova judicial: 4:5.6
Produtos e serviços
— alta periculosidade: 8:4.2
— defeituosos: 8:1.2, 7
— perigosos: 8:1.1, 4
— riscos normais: 8:4.1
— viciados: 8:1.3, 8, 9
Programa de computador
— proteção: 6:3
— registro: 6:3.1
Propaganda
Ver também Publicidade
— política: 9:1
Propriedade comercial
Ver também Ponto
— noção: 5:4
Propriedade industrial
— adição de invenção: 6:2
— bens da: 6:2
— direito-custo: 1:12
— e propriedade intelectual: 6:3
— exploração: 6:7
— invenção: 6:2
— modelo de utilidade: 6:2
— prioridade: 6:6.4
— segredo de empresa: 6:2.1
— transferência: 6:7.2
Propriedade intelectual
— açambarque: 7:5.p
— noção: 6:3
Protesto
— cancelamento: 11:8.3
— conceito: 11:8
— falta de pagamento: 11:8.1
— pagamento em cartório: 11:8.2
— por indicações: 10:2.1; 14:4.1
Publicidade
Ver também Publicidade abusiva, Publicidade comparativa e Publicidade enganosa
— abusiva: 9:5
— agência de propaganda: 9:10
— autorregulação publicitária: 9:2
— consumidor: 9:1
— contrapropaganda: 9:8.1
— enganosa: 9:4
— enganosidade por omissão: 9:4.5
— exclusividade de: 7:5.g
— Publicity: 9:6
— simulada: 9:3
Publicidade abusiva
— caracterização: 9:5.7, 5.8, 5.9
— discriminação: 9:5.1
— e crianças: 9:5.4
— incitação à violência: 9:5.2
— nocividade à saúde e segurança: 9:5.6
— superstição: 9:5.3
— tabaco: 9:5.6
— valores ambientais: 9:5.5
Publicidade comparativa
— e concorrência desleal: 9:11
— e degeneração de marca notória: 6:7.3
— e direitos do consumidor: 9:11
Publicidade enganosa
— consumidor-padrão: 9:4.3
— enganosidade por omissão: 9:4.5
— falsidade: 9:4.1
— princípio da transparência: 9:4.5
— princípio da veracidade: 9:4.5
— teaser: 9:4.4
Registro de empresas
— atos: 4:4.2
— e teoria da empresa: 1:7
— falta do registro: 4:4.4
— órgãos: 4:4.1
— procedimentos: 4:4.3
— regimes: 4:4.3
Relação de consumo
— referência: 9:1
Responsabilidade administrativa
— anunciante: 9:8, 8.2
— cheque sem fundos: 13:4.3
Responsabilidade civil
— anunciante: 9:7
— comerciante: 8:7.3
— concorrência desleal: 7:2.3
— direito-custo: 1:12
— fabricante, produtor, construtor e importador: 8:7.2
— infração da ordem econômica: 7:6
— objetiva: 1:12; 3:4.2; 7:4.1
— por risco de desenvolvimento: 8:6, 6.1
— prestador de serviços: 8:7.4
— profissionais liberais: 8:7.5
— vícios: 8:8.3
Responsabilidade contratual
— direito-custo: 1:12
— disciplina da concorrência: 7:9
— princípio da relatividade: 3:4.2; 8:3
Riscos
— de desenvolvimento: 8:6
— excludente: 8:7.2
— informações sobre: 8:5.2
— normais e previsíveis: 8:4.1
SDE
— referência: 7:3.1
Seres vivos
— impedimento à patenteabilidade: 6:4.4
Shopping center
— cláusula de não restabelecimento: 5:6.3
— concorrência autofágica: 7:9
— noção: 5:5
— renovação da locação: 5:5
Socialismo
— marxismo: 1:1, 2
Sociedades
— consorciadas: 8:10.6
— controladas e coligadas: 8:10.6
— empresárias: 4:2
— grupo de: 8:10.6
— irregulares: 4:4.4
Software
Ver Programa de computador
Solidariedade
— e o direito cambiário: 10:3
Sucessão
— alienação do estabelecimento: 5:6.1
— consumidor: 8:10.2
— direito à renovação: 5:6.2
— dívidas fiscais: 5:6.1
— dívidas trabalhistas: 5:6.1
— firma: 6:9.2
Súmulas
— STF, 189: 11:5.1
— STF, 246: 13:4.3
— STF, 387: 11:2.3
— STF, 439: 4:5.5
— STF, 554: 13:4.3
— STJ, 26: 11:5.3
— STJ, 60: 11:2.2
Tarifa externa comum
— noção: 3:4
Tecnologia jurídica
— comunidade jurídica do Mercosul: 3:4.2
— noção: 1:9
Teoria da alavanca
— vendas casadas: 7:5.w
Títulos de crédito
Ver também Direito cambiário
— abstração: 10:2.3.1
— ação cambial: 11:9
— atípicos: 15:2.2
— autonomia: 10:2.3
— cartularidade: 10:2.1
— classificação: 10:4
— conceito: 10:1
— conta de serviços: 14:6
— em branco ou incompleto: 11:2.3
— impróprios: 15:1
— inominados: 15:2.2
— inoponibilidade: 10:2.3.2
— literalidade: 10:2.2
— não regulados: 15:2.1
— pagamento: 11:7
— sujeitos ao Código Civil: 15:3
— vencimento: 11:6
Títulos do Agronegócio
— CDA: 15:4.3
— CDCA: 15:4.4.1
— CPR: 15:4.2
— CRA: 15:4.4.3
— Espécies: 15:4
— LCA: 15:4.4.2
— NCA: 4.5
— Suporte: 15:4.1
— WA: 15:4.3
Trespasse
Ver Ponto
Triplicata
— noção: 14:4.2
União aduaneira
— noção: 3:4
União de Paris
— concorrência desleal: 7:2.2
— e a marca notória: 6:5.2
— noção: 6:1
— prioridade: 6:6.4
Warrant
— do agronegócio: 15:4.3
— título armazeneiro: 15:1.2
Zona de Livre Comércio
— NAFTA: 3:4
— noção: 3:4
BIBLIOGRAFIA
ABRÃO, Nelson
1975 Cibernética e títulos de crédito. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 19, 1975.
1984 Da franquia comercial (franchising). São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984.
ACCIOLY, Elizabeth
1996 Mercosul & União Europeia: estrutura jurídico-institucional. Curitiba, Juruá, 1996.
ALPA, Guido — BESSONE, Mario
1976 La responsabilità del produtore. 3ª ed. Milão, Giuffrè, 1987.
ALVIM, Thereza
1991 Código do Consumidor comentado. Obra coletiva. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991.
AMARAL Jr., Alberto do
1991 Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. Obra coletiva coordenada por Juarez de Oliveira. São Paulo, Saraiva,
1991.
AMARAL SANTOS, Moacyr
1976 Comentários ao Código de Processo Civil. 7ª ed. Atualizado por Aricê Moacyr Amaral Santos. Rio de Janeiro, Forense, 1994,
v. IV.
ARRUDA, José Soares & LOBO, Carlos Augusto da Silveira (orgs.)
1984 Shopping centers — aspectos jurídicos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984.
ASCARELLI, Tullio
1945 Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo, Saraiva, 1945.
1946 Causalidade e abstração da “duplicata”. Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, n. 8, 1946.
Problemi giuridici. Milão, Giuffrè, 1959, v. 1.
1962 Corso de diritto commerciale. Ed. espanhola. Barcelona, Bosch, s. d.
ASQUINI, Alberto
1943 Profili dell’impresa. Rivista del diritto commerciale. Milão, Francesco Vallardi, XLI:1-20, 1943.
ATTI, Annalisa
1989 La responsabilità del produttore. Obra coletiva org. por Guido Alpa e outros. In: Trattato di diritto commerciale e di diritto
pubblico dell’economia. Padova, CEDAM, 1989, v. 13.
BAPTISTA, Luiz Olavo
1994 Impacto do Mercosul sobre o sistema legislativo brasileiro. In: Mercosul: das negociações à implantação. São Paulo, LTr,
1994, p. 11/25.
BARBIERI Filho, Carlos
1984 Disciplina jurídica da concorrência. São Paulo, Resenha Tributária, 1984.
BARBOSA, Denis Borges
2003 Uma introdução à propriedade intelectual. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003, sem data da 1ª ed.
BARBOSA, Ruy
1913 As cessões de clientela e a interdicção de concorrência nas alienações de estabelecimentos commerciaes e industriaes.
Rio de Janeiro, 1913, ed. do autor.
BARRETO Filho, Oscar
1959 O fundo de comércio nas desapropriações. São Paulo, FIESP, 1959.
1969 Teoria do estabelecimento comercial. 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 1988.
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e
1991 Código brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. Obra coletiva. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1991.
1991b Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. Obra coletiva coordenada por Juarez de Oliveira. São Paulo, Saraiva,
1991.
1992 O direito penal do consumidor: capítulo do direito penal econômico. Direito do Consumidor. São Paulo, Revista dos Tribunais, n.
1, 1992.
BERLIT, Wolfgang
1995 Das neue Markenrecht. Munchen, Verlag C. H. Beck, 1995.
BETTI, Emilio
1950 Teoria generale del negozio giuridico. 2ª ed. Torino, Torinese, 1950, sem data da 1ª ed.
BEVILÁQUA, Clóvis
1908 Teoria geral do direito civil. 2ª ed. Rio de Janeiro, 1980, edição histórica rev. e atual. por Caio Mário da Silva Pereira.
BEZERRA Filho, Manoel Justino
2002 Dos títulos de crédito — exame crítico do Título VIII do Livro I da Parte Especial do novo Código Civil. RT, n. 798.
BIN, Marino
1989 La responsabilità del produttore. Obra coletiva org. por Guido Alpa e outros. In: Trattato di diritto commerciale e di diritto
pubblico dell’economia. Padova, CEDAM, 1989, v. 13.
BLASI, Gabriel Di & GARCIA, Mario Soerensen & MENDES, Paulo Parente M.
1997 A propriedade industrial. Rio de Janeiro, Forense, 1997.
BOBBIO, Norberto & MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco
1983 Dizionario di Politica. Edição brasileira. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1992.
BORGES, João Eunápio
1959 Curso de direito comercial terrestre. 5ª ed. 2ª tir. Rio de Janeiro, Forense, 1975.
1971 Títulos de crédito. 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1979.
BULGARELLI, Waldirio
1977 Direito comercial. 8ª ed. São Paulo, Atlas, 1981.
1979 Contratos mercantis. 5ª ed. São Paulo, Atlas, 1990.
1979b Títulos de crédito. 10ª ed. São Paulo, Atlas, 1994.
1985 A teoria jurídica da empresa. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985.
1985b Publicidade enganosa — aspectos da regulamentação legal. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, n.
58, 1985.
1991 Garante solidário — uma construção abstrusa? Revista de Direito Mercantil. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 84, 1991.
BURANELLO, Renato
2009 Sistema privado de financiamento do agronegócio. São Paulo, Quartier Latin, 2009.
BURKHARDT, Jürgen
1995 Kartellrecht. Munchen, C. H. Beck, 1995.
BUZAID, Alfredo
1957 Da ação renovatória. 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 1988.
CAGGIANO, Mônica Herman Salem
1991 Código do Consumidor — aspectos constitucionais. RT, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 666, 1991.
CALABRESI, Guido
1961 Some thoughts on risk distribution and the law of torts. The Yale Law Journal, Yale, Yale University Law School, v. 70.4, 1961.
CALAIS-AULOY, Jean
1980 Droit de la consommation. 3ª ed. Paris, Dalloz, 1992.
CALVÃO DA SILVA, João
1990 Responsabilidade civil do produtor. Coimbra, Livr. Almedina, 1990.
CARVALHO, Elbruz Moreira de
1986 Abuso do poder econômico. Rio de Janeiro, Barrister’s Editora, 1986.
CARVALHOSA, Modesto
2003 Comentários ao Código Civil. Coordenação de Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo, Saraiva, 2003, v. 13.
CERQUEIRA, João da Gama
1946 Tratado da Propriedade Industrial. 2ª ed. Rev. e atual. por Luiz Gonzaga do Rio Verde e João Casimiro Costa Neto. São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1982, 2 v.
CHÂTELET, François (org.)
1979 La philosophie — de Kant à Husserl. 2ª ed. Edição portuguesa. Lisboa, Dom Quixote, 1995.
COASE, Ronald
1960 The problem of social cost. Journal of Law and Economics. Chicago, University of Chicago Law School, n. 3, 1960.
COELHO, Fábio Ulhoa
1991 Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. Obra coletiva coordenada por Juarez de Oliveira. São Paulo, Saraiva,
1991.
1992 Roteiro de lógica jurídica. 3ª ed. São Paulo, Max Limonad, 1996.
1992b Direito e poder. São Paulo, Saraiva, 1992.
1994 O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo, Saraiva, 1994.
1995 Direito antitruste brasileiro. São Paulo, Saraiva, 1995.
1995b A análise econômica do direito. Direito (Revista do Programa de Pós- -Graduação em Direito da PUC-SP), São Paulo, Max
Limonad, n. 2, 1995.
1996 Breves notas sobre o crime de duplicata simulada. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, n.
14, 1996.
1997 A natureza subjetiva da responsabilidade civil dos administradores de companhia. Revista Direito de Empresa, São Paulo, Max
Limonad, n. 1, 1997.
2003 Curso de direito civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1.
2004 Curso de direito civil. São Paulo, Saraiva, 2011, v. 2.
2005 Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101, de 9-2-2005). 5ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2008.
COLOMBO, Giovanni E.
1979 L’azienda e il divieto di concorrenza dell’alienante. In: Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico del’economia.
Padova, CEDAM, 1979, v. 3.
COMPARATO, Fábio Konder
1978 Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro, Forense, 1978.
1985 As cláusulas de não concorrência nos “shopping centers”. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 97,
1985.
1986 A função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 63,
julho-setembro de 1986.
COPLAND, Aaron
1939 What to listen in music. Ed. mexicana. México, Fondo de Cultura Económica, 1986.
CORREIA, A. Ferrer
1973 Lições de Direito Comercial. Lisboa, Ed. Lex, 1994, reprint.
COSTA Jr., Paulo José da
1991 Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. Obra coletiva organizada por Juarez de Oliveira. São Paulo, Saraiva,
1991.
COVAS, Silvânio
2006 O título de crédito eletrônico e a Cédula de Crédito Bancário. In Contratos bancários. Coordenação de Ivo Waisberg e Marcos
Rolim Fernandes Fontes. São Paulo, Quartier Latin, 2006.
CUEVAS, Guillermo Cabanellas de las
1983 Derecho antimonopólico y de defensa de la competencia. Buenos Aires, Heliasta, 1983.
DELMANTO, Celso
1975 Crimes de concorrência desleal. São Paulo, José Bushatsky, 1975.
DENARI, Zelmo
1991 Código brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. Obra coletiva. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1991.
DENOZZA, Francesco
1988 Antitrust — leggi antimonopolistiche e tutela dei consumatori nella CEE e negli USA. Bologna, Il Mulino, 1988.
DESPAX, Michel
1957 L’entreprise et le droit. Paris, LGDJ, 1957.
DIAS, Aguiar
1979 Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro, Forense, 1979, 2 v.
DOMINGUES, Douglas Gabriel
1984 Marcas e expressões de propaganda. Rio de Janeiro, Forense, 1984.
ENGELS, Friedrich
1892 Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo, Global, sem data e sem título original.
EPSTEIN, David G. & NICKLES, Steve H.
1976 Consumer law. 2ª ed. 4ª tir. St. Paul, Minn., West, 1989.
ESTRELLA, Hernani
1973 Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro, José Konfino, 1973.
FANELLI, Giuseppe
1950 Introduzione alla teoria giuridica dell’impresa. Milão, Giuffrè, 1950.
FARIA, Werter R.
1990 Constituição econômica. Liberdade de iniciativa e de concorrência. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris, Editor, 1990.
1992 Direito da concorrência e contrato de distribuição. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris, Editor, 1992.
1995 Harmonização Legislativa no Mercosul. Brasília, Associação Brasileira de Estudos da Integração, 1995.
FARINA, Juan M.
1994 Contratos comerciales modernos. Buenos Aires, Astrea, 1994.
1995 Defensa del consumidor y del usuario. Buenos Aires, Astrea, 1995.
FERRARA Jr., Francesco
1945 La teoria giuridica dell’azienda. Firenze, Casa Editrice “Il Castellacio”, 1945.
1952 Gli impreditori e le società. 9ª ed. Atualizado por Francesco Corsi, Milão, Giuffrè, 1994, sem data da 1ª ed.
FERRAZ Jr., Tércio Sampaio
1980 Função social da dogmática jurídica. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980.
1988 Introdução ao estudo do direito. 1ª ed., 2ª tir. São Paulo, Atlas, 1989.
FERREIRA, Waldemar
1962 Tratado de Direito Comercial. São Paulo, Saraiva, 1962.
FILOMENO, José Geraldo Brito
1991 Código brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. Obra Coletiva. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1991.
FIUZA, Ricardo (coord.)
2002 Novo Código Civil comentado. Diversos autores. 1ª ed., 2ª tir. São Paulo, Saraiva, 2002.
FOLSON, Ralph H. & GORDON, Michael W. & SPANOGLE Jr., John A.
1991 International business transactions. St. Paul, MN, West Publishing, 1991.
FORGIONI, Paula Andrea
1998 Os fundamentos do antitruste. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998.
2003 A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil brasileiro. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Malheiros, v.
130, abril-junho de 2003.
FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga & FRANCESCHINI, José Luiz Vicente de Azevedo
1985 Poder econômico: exercício e abuso. Direito antitruste brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985.
FRANCO, Nascimento
1994 Ação Renovatória. São Paulo, Malheiros, 1994.
FRANCO, Nascimento & GONDO, Nisske
1968 Ação renovatória e ação revisional de aluguel. 7ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991.
FRONTINI, Paulo Salvador
1974 A “Guerra das Garrafas”: uma página de direito econômico do plenário do CADE. Revista de Direito Mercantil, São Paulo,
Revista dos Tribunais, n. 13, 1974.
1975 A atividade negocial e seus pressupostos econômicos e políticos. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais,
v. 18, 1975.
1996 Títulos de crédito e títulos circulatórios: que futuro a informática lhes reserva? RT, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 730, 1996.
FUSI, Maurizio
1989 Pubblicità decettiva e valutazione dell’attitudine ad ingannare. In: Diritto e comunicazione pubblicitaria. Organizado por Luigi
Severini. Milão, Giuffrè, 1991.
GALGANO, Francesco
1992 Sommario di Diritto Commerciale. Milão, Giuffrè, 1992.
GHIDINI, Gustavo
1989 Comunicazione pubblicitaria e consumatori. In: Diritto e comunicazione pubblicitaria. Organizado por Luigi Severini. Milão,
Giuffrè, 1991.
GIACOMINI Filho, Gino
1991 Consumidor versus Propaganda. São Paulo, Summus, 1991.
GOMES, Luiz Flávio
1992 Tendências político-criminais quanto à criminalidade de bagatela. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista
dos Tribunais, n. 1, 1992.
GOMES, Orlando
1967 Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980.
GONÇALVES Neto, Alfredo de Assis
1987 Aval — alcance da responsabilidade do avalista. 2ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993.
GORASSINI, Atilio
1990 Contributo per un sistema della responsabilità del produtore. Milão, Giuffrè, 1990.
GRAU, Eros Roberto
1981 Elementos de direito econômico. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981.
1990 A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990.
GRINOVER, Ada Pellegrini
1991 Código brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. Obra coletiva. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1991.
GUERREIRO, José Alexandre Tavares
1978 O Estado e a economia nos contratos privados. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 31, 1978.
GUSMÃO, José Roberto
1989 Publicidade comparativa no direito. O Estado de S. Paulo, caderno “Economia”, 2 ago. 1989, p. 2.
1990 L’aquisition du droit sur la marque au Brésil. Paris, Litec, 1990.
HABERMAS, Jurgen
1968 Technik und Wissenschaft als “Ideologie”. Edição espanhola. 2ª ed. Madri, Tecnos, 1992.
HESKETT, John
1980 Industrial design. London, Thames and Hudson, 1995.
HOLZHAMMER, Richard
1989 Allgemeines handelsrecht und wertpapierrecht. 6ª ed. Viena, Nova York, Springer, 1995.
JESUS, Damásio E.
1977 Direito Penal: parte geral. 4ª ed. São Paulo, Saraiva, 1979, v. 1.
1992 Dolo e culpa no Código de Defesa do Consumidor. Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 1, 1992.
KOLLER, Ingo, ROTH, Wulf-Henning & MORCK, Winfried
1996 Handelsgesetzbuch (kommentar). Munchen, C. H. Beck’sche, 1996.
KROHN, Lauren
1995 Consumer protection and the law — a dictionary. Santa Barbara, ABC-CLIO, 1995.
LAMBERTERIE, Isabelle de
1992 La valeur probatoire des documents informatiques dans les pays de la CEE. Revue Internationale de Droit Comparé. Paris,
SLC, p. 641-685, 1992.
LARGUIER, Jean & LARGUIER, Anne-Marie
1994 Droit Pénal Spécial. 8ª ed. Paris, Dalloz, 1994, sem data da 1ª ed.
LEÃES, Luiz Gastão de Barros
1987 A responsabilidade do fabricante pelo fato do produto. São Paulo, Saraiva, 1987.
LIMA, Alvino
1973 A responsabilidade civil pelo fato de outrem. Rio de Janeiro, Forense, 1973.
LIMA, Domingos Sávio Brandão
1971 O negócio jurídico intitulado FICA e seus problemas na jurisprudência. Cuiabá, s. n., 1971.
LIMPENS, Jean
1956 Territorial expansion of the code. In: The Code Napoleon and the common law world. New York, New York University Press,
1956.
LOBO, Jorge
1993 Da recuperação da empresa no direito comparado. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1993.
LÓPEZ, Juan Torres
1987 Analisis economico del derecho. Madri, Tecnos, 1987.
LORENZETTI, Ricardo Luis
1995 Las normas fundamentales de derecho privado. Santa Fé, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni, 1995.
LOVETT, William A.
1997 Banking and Financial Institutions Law. 4ª ed. St. Paul, West Publishing Co., 1997.
LUCAN, Maria Angeles Parra
1990 Daños por productos y protección del consumidor. Barcelona, Bosch, 1990.
LUCCA, Newton de
1979 Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito. São Paulo, Pioneira, 1979.
1984 O aval. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 53, 1984.
1985 A cambial-extrato. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985.
2003 Comentários ao novo Código Civil. Coordenado por Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro, Forense, 2004, v. XII.
MANSO, Eduardo Vieira
1987 A proteção jurídica do logiciário. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 67, 1987.
MARCONDES, Sylvio
1977 Questões de direito mercantil. São Paulo, Saraiva, 1977.
MARQUES, Cláudia Lima
1992 Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992.
MARTINS, Fran
1957 Curso de direito comercial. 16ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1991.
1961 Contratos e obrigações comerciais. 5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1977.
1972 Títulos de crédito I. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1983.
1980 Títulos de crédito II. 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1983.
1986 O cheque segundo a nova lei. 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1987.
MEDEIROS DA SILVA, Jorge
1979 A lei antitruste brasileira. São Paulo, Resenha Universitária, 1979.
MEIRELLES, Hely Lopes
1981 Estudos e pareceres de direito público. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, v. IV.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de
1980 Elementos de direito administrativo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981.
MELO DA SILVA, Wilson
1974 Responsabilidade sem culpa. 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 1974, sem data da 1ª ed.
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de
1938 Tratado de Direito Comercial Brasileiro. 3ª ed. Atualizada por Achilles Bevilaqua e Roberto Carvalho de Mendonça, Rio de
Janeiro, 1938, sem data da 1ª ed., v. 5, t. I.
MERCADO Jr., Antonio
1966 Nova lei cambial e nova lei do cheque, com cinco estudos. São Paulo, Saraiva, 1966.
1973 Observações sobre o Anteprojeto de Código Civil quanto à matéria “dos títulos de crédito” constante da Parte Especial, Livro I,
Título VIII. Revista de Direito Mercantil, n. 9.
MILLER, Arthur R. & DAVIS, Michael H.
1990 Intellectual Property. St. Paul, Minn., West Pub., 1990.
MORGAN, Thomas D.
1994 Cases and materials on modern antitrust law and its origins. St. Paul, Minn., West Pub., 1994.
MORO, Maitê Cecília Fabbri
2003 Direito de marcas. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003.
NERY Jr., Nelson
1991 Os princípios gerais do Código de Defesa do Consumidor. Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 3, p. 4477, 1992.
NIGRO, Alessandro
1978 Le scritture contabili. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia. Organizado por Francesco Galgano.
Padova, CEDAM, 1978, v. II.
NORONHA, E. Magalhães
1978 Direito penal: introdução e parte geral. 15ª ed. São Paulo, Saraiva, 1978, sem data da 1ª ed., v. 1.
NUNES, Luiz Antonio
1991 A empresa e o Código de Defesa do Consumidor. São Paulo, Artpress, 1991.
PACHECO, Pedro Mercado
1994 El analisis economico del derecho — una reconstrucción teorica. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1994.
PENTEADO, Mauro Rodrigues
1995 Títulos de crédito no projeto de Código Civil. Revista de Direito Mercantil, n. 100.
PEREIRA, Ana Cristina Paulo
1997 Mercosul — o novo quadro jurídico das relações comerciais na América Latina. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1997.
PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie
1958 Traité de l’argumentation. 5ª ed. Bruxelas, Universidade de Bruxelas, 1988.
PEVSNER, Nikolaus
1981 The sources of modern architecture and design. 2ª ed. Edição brasileira. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
PHILLIPS, Jery J.
1974 Products liability (Nutshell series). 3ª ed. St. Paul, Minn., West Pub., 1990, 1ª reimp.
PIGOU, Arthur Cecilio
1928 The economics of welfare. Tradução espanhola. Madrid, M. Aguilar Editor, 1946; 3ª ed. 1928, sem data da 1ª ed.
PINTO, Dinah Sonia Renault
1992 Shopping center — uma nova era empresarial. Rio de Janeiro, Forense, 1992.
PINTO, Roberto Wilson Renault & OLIVEIRA, Fernando A. Albino (orgs.)
1991 Shopping centers (questões jurídicas). São Paulo, Saraiva, 1991.
PIZZIO, Jean-Pierre
1996 Code de la consommation. 2ª ed. Paris, Montchrestien, 1996, sem data da 1ª ed.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti
1956 Tratado de direito privado. 4ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983, divs. vols.
POSNER, Richard A.
1973 Economic analysis of law. 4ª ed. Boston, Little Brown, 1992.
PRADO Jr., Caio
1945 História econômica do Brasil. 21ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1978.
PRATA, Ana
1982 A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra, Livr. Almedina, 1982.
REQUIÃO, Rubens
1971 Curso de direito comercial. 20ª ed. São Paulo, Saraiva, 1991.
1975 Curso de direito falimentar. 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 1979, v. 2.
RIPERT, Georges
1951 Aspects juridiques du capitalisme moderne. Paris, LGDJ, 1951.
RIPERT, Georges & ROBLOT, René
1947 Traité de droit commercial. 14ª ed. Paris, LGDJ, 1991, 2 v.
RIZZARDO, Arnaldo
1990 Contratos de crédito bancário. 4ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999.
ROCCO, Alfredo
1928 Principii di diritto commerciale. Torino, Torinese, 1928.
RODRIGUES, Silvio
1979 Direito civil: responsabilidade civil. 4ª ed. São Paulo, Saraiva, 1979, v. 4, sem data da 1ª ed.
ROMERA, Oscar Eduardo & FERREYRA, Roberto A. Vázquez
1994 Protección y defensa del consumidor. Buenos Aires, Depalma, 1994.
SALOMÃO Filho, Calixto
2003 Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Malheiros, v. 132, 2003.
SAMPAIO, José Eduardo
1995 Os novos conceitos no Código da Propriedade Industrial Português de 1995. Revista da ABPI, São Paulo, ABPI, n. 18, 1995.
SÁNCHEZ, Guillermo J. Jiménez
1992 Lecciones de derecho mercantil. 3ª ed. Madri, Tecnos, 1995.
SANDRONI, Paulo (org.)
1983 Dicionário de Economia. 2ª ed. São Paulo, Best Seller, 1989.
SANTOS, Antonio Carlos, GONÇALVES, Maria Eduarda & MARQUES, Maria Manuel Leitão
1991 Direito Económico. Coimbra, Almedina, 1991.
SCAFF, Fernando Campos
1997 Aspectos fundamentais da empresa agrária. São Paulo, Malheiros, 1997.
SCHECHTER, Roger E. & THOMAS, John R.
2003 Intellectual Property. St. Paul, Minn., West Group, 2003.
SHIEBER, Benjamin M.
1966 Abusos do poder econômico (direito e experiência antitruste no Brasil e nos EUA). São Paulo, Revista dos Tribunais, 1966.
SHULMANN, Denis
1991 Le Design Industriel. Edição brasileira. São Paulo, Papirus, 1994.
SILVA, José Afonso da
1976 Curso de direito constitucional positivo. 9ª ed. São Paulo, Malheiros, 1993, 3ª tir.
SILVA PEREIRA, Caio Mário da
1963 Instituições de direito civil: fonte das obrigações. 5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1981, v. 3.
SILVEIRA, Newton
1984 Licença de uso de marca e outros sinais distintivos. São Paulo, Saraiva, 1984.
STEPHEN, Frank H.
1989 The economics of the law. Edição brasileira. São Paulo, Makron, 1993.
STONE, Bradford
1984 Uniform Commercial Code. 3ª ed. St. Paul, Minn., West Pub., 1989.
STRENGER, Irineu
1996 Marcas e patentes. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1996.
SULLIVAN, E. Thomas & HARRISON, Jeffrey L.
1992, reprint Understanding antitrust and its economic implications. New York, Oakland, Matthew Bender, 1988.
SULLIVAN, Lawrence Anthony
1977 Antitrust. St. Paul, Minn., 1996, West Pub., 6ª reimp.
TORON, Alberto Zacharias
1990 Aspectos penais do Código de Defesa do Consumidor. Revista do Advogado, São Paulo, AASP, n. 33, 1990.
VALVERDE, Trajano de Miranda
1960 Força probante dos livros comerciais. Rio de Janeiro, 1960, Forense.
VICENTE Y GELLA, Agustín
1934 Introducción al derecho mercantil comparado. 2ª ed. Barcelona, Labor, 1934, sem data da 1ª ed.
VILAÇA LOPES, Maria Elizabete
1992 O consumidor e a publicidade. Direito do Consumidor. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 1, p. 149-183, 1992.
VIVANTE, Cesare
1922 Trattato di diritto commerciale. 5ª ed. Milão, Francesco Valardi, 1922, sem data da 1ª ed.
WESTON, Glen E. & MAGGS, Peter B. & SCHECHTER, Roger E.
1950 Unfair trade practices and consumer protection. 5ª ed. St. Paul, Minn., West Pub., 1992.
WHITE, James J. & SUMMERS, Robert S.
1972 Uniform Commercial Code. 3ª ed. St. Paul, Minn., West Pub., 1988.
WILL, Michael R.
1988 Responsabilità per difetto d’informazione nella comunità europea. In: Il danno da prodotti. A cura de Salvatore Patti. Padova,
CEDAM, 1990.
ZORTÉA, Alberto João
1983 A duplicata mercantil e similares no direito estrangeiro. Rio de Janeiro, Forense, 1983.
ZUCKMAN, Harley L., GAYNES, Martin J., CARTER, T. Barton & DEE, Juliet Lushbough
1983 Mass communications law. 3ª ed. St. Paul, Minn., West. Pub.,1988.