A QUESTÃO URBANA
Manuel Castells, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1983.
PROCESSO HISTÓRICO DE URBANIZAÇÃO
A história do processo de urbanização parece indicado para abordar a questão urbana, pois
ele nos introduz no âmago da problemática do desenvolvimento das sociedades e revelanos, ao mesmo tempo, uma imprecisão conceitual ideologicamente determinada.
O processo de formação das cidades está na base das redes urbanas e condiciona a
organização social do espaço, sendo absolutamente necessário estudar a produção das
formas espaciais a partir da estrutura social de base.
Uma problemática sociológica da urbanização deve considerá-la enquanto processo de
organização e desenvolvimento, partindo da relação entre forças produtivas, classes sociais
e formas culturais (dentre as quais o espaço). Uma investigação deste tipo deve, com a
ajuda de seus instrumentos conceituais, explicar situações históricas específicas, bastante
ricas para que apareçam as linhas de força do fenômeno estudado, a organização do espaço.
FENÔMENO URBANO: DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS E REALIDADES
HISTÓRICAS.
Na selva de definições sutis com que nos enriqueceram os sociólogos, podemos distinguir
dois sentidos, extremamente distintos, do termo urbanização:
1. Concentração espacial de uma população, a partir de certos limites de dimensão
e densidade;
2. Difusão do sistema de valores, atitudes e comportamentos denominado “cultura
urbana”.
Adiantamos nossa conclusão essencial sobre “cultura urbana”: trata-se, de fato, do sistema
cultural característico da sociedade industrial capitalista.
Equivalência entre os termos urbanização e industrialização, construindo as dicotomias
correspondentes rural/urbana e emprego agrícola/emprego industrial, pois a tendência
culturalista da análise da urbanização fundamenta-se em uma premissa: a correspondência
entre certo tipo técnico de produção, um sistema de valores e uma forma específica de
organização do espaço
ECONÔMICO
Tipo Técnico de Produção
INDÚSTRIA
SOCIAL
Sistema de Valores
MODERNISMO
AMBIENTAL
Forma Específica
CIDADE
Segundo H. T. Eldrigo, a urbanização se caracteriza como um processo de concentração da
população em dois níveis: 1. A proliferação de pontos de concentração; 2. O aumento do
tamanho de cada um destes pontos.
Urbano seria uma forma especial de ocupação do espaço por uma população, resultando
disso uma forte concentração e de uma diferenciação funcional e social maior. Entretanto, a
partir de que nível de dimensão e de densidade uma unidade espacial pode ser considerada
como urbana?
Investigações arqueológicas mostraram que os primeiros aglomerados sedentários e com
forte densidade de população aparecem no fim do neolítico, quando as técnicas e as
condições sociais e naturais do trabalho permitiram aos agricultores produzir mais do que
tinham necessidade para subsistir. A partir deste momento, um sistema de divisão e de
distribuição se desenvolve , como expressão e desdobramento de uma capacidade técnica e
de um nível de organização social. As cidades são a forma residencial adotada pelos
membros da sociedade cuja presença direta nos locais de produção agrícola não era
necessária, e só puderam existir graças ao excedente produzido pelo trabalho da terra. São
centros religiosos, administrativos e políticos, expressão espacial de uma complexidade
social determinada pelo processo de apropriação e de reinvestimento do produto do
trabalho.
Trata-se de um novo sistema social, mas que não está separado do tipo rural, nem é
posterior a ele, pois os dois estão intimamente ligados no âmago do mesmo processo de
produção das formas sociais, mesmo que, do ponto de vista destas próprias formas,
estejamos em presença de duas situações diferentes.
Caracterização dos primeiros aglomerados urbanos, segundo V. Gordon Childe: existência
de especialistas não produtivos trabalhando em tempo integral (padres, funcionários,
operários de serviços), população de tamanho suficiente, arte específica, uso da escrita e
dos números, trabalho científico, sistema de impostos que concentra o excedente da
produção, aparelho do estado, arquitetura pública (monumentos), comércio com o exterior,
existência de classes sociais.
CIDADE É O LUGAR GEOGRÁFICO ONDE SE INSTALA A SUPERESTRUTURA
POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DE UMA SOCIEDADE QUE CHEGOU A UM PONTO
DE DESENVOLVIMENTO TÉCNICO E SOCIAL (NATURAL E CULTURAL) DE TAL
ORDEM QUE EXISTE UMA DIFERENCIAÇÃO DO PRODUTO EM REPRODUÇÃO
SIMPLES E AMPLIADA DA FORÇA DE TRABALHO, CHEGANDO A UM SISTEMA
DE DISTRIBUIÇÃO E DE TROCA, QUE SUPÕE A EXISTÊNCIA: 1. DE UM
SISTEMA DE CLASSES SOCIAIS; 2. DE UM SISTEMA POLÍTICO PERMITINDO AO
MESMO TEMPO O FUNCIONAMENTO DO CONJUNTO SOCIAL E O DOMÍNIO DE
UMA CLASSE; 3. DE UM SISTEMA INSTITUCIONAL DE INVESTIMENTO, EM
PARTICULAR NO QUE CONCERNE À CULTURA E À TÉCNICA; 4. DE UM
SISTEMA DE TROCA COM O EXTERIOR.
Leitura possível de certos tipos urbanos significativos.
Cidades imperiais, como Roma, acumulam as características já enunciadas com as funções
comerciais e de gestão que decorrem da concentração em um mesmo aglomerado, de um
poder exercido, pela conquista, sobre um vasto território. Da mesma forma, a penetração
romana em outras civilizações toma a forma de uma colonização urbana, suporte ao mesmo
tempo das funções administrativas e de exploração mercantil, fazendo da cidade não um
local de produção, mas de gestão e de domínio, ligado à primazia social do aparelho
político-administrativo.
Por esta razão, a queda do Império romano no ocidente ocasiona quase o desaparecimento
da forma sócio-espacial da cidade, pois tendo as funções político-administrativas centrais
sido substituídas pelas dominações locais dos senhores feudais, não houve outro
fundamento social a encargo das cidades a não ser o das divisões da administração da Igreja
ou a colonização e a defesa das regiões fronteiras.
A cidade da Idade Média renasce a partir de uma nova dinâmica social inserida na estrutura
social precedente, e se edifica pela reunião de uma fortaleza preexistente, em torno do qual
se organizara um núcleo de habitação e serviços, e de um mercado, sobreturdo a partir das
novas rotas comerciais abertas pelas Cruzadas. Esta base permite a organização das
instituições político-administrativas donferindo à cidade uma coerência interna e uma
autonomia maior frente ao exterior. Esta especificidade política da cidade faz dela um
mundo próprio, definindo suas fronteiras enquanto sistema social, encontrando seu
fundamento histórico na ideologia de pertencer à cidade.
Urbanização e a Primeira Revolução Industrial.
A urbanização ligada à primeira revolução industrial e inserida no desenvolvimento do tipo
de produção capitalista, é um processo de organização do espaço que repousa sobre dois
conjuntos de fatos fundamentais:
1. a decomposição prévia das estruturas sociais agrárias e a emigração da população para
centros urbanos já existentes, fornecendo a força de trabalho, essencial à
industrialização.
2. A passagem de uma economia doméstica para uma economia de manufatura, e depois
para uma economia de fábrica o que quer dizer, ao mesmo tempo concentração de mãode-obra, criação de um mercado e constituição de um meio industrial.
As cidades atraem a indústria devido a estes dois fatores essenciais (mão-de-obra e
mercado) e, por sua vez, a indústria desenvolve novas possibilidades de empregos e suscita
serviços.
Mas o processo inverso também é importante: onde há elementos funcionais, em particular
matérias primas e meios de transporte, a indústria coloniza e provoca a urbanização.
Nestes dois casos, o elemento dominante é a indústria, que organiza inteiramente a
paisagem urbana. Este domínio, no entanto, não é um fato tecnológico, mas a expressão da
lógica capitalista que está na base da industrialização. A “desordem urbana” não existe de
fato. Ela representa a organização espacial proveniente do mercado, e que decorre da
ausência de controle social da atividade industrial.
A problemática atual da urbanização gira em torno de quatro dados fundamentais e de uma
questão extremamente delicada:
1. A aceleração do ritmo da urbanização no contexto mundial.
2. A concentração deste crescimento urbano nas regiões ditas “subdesenvolvidas”, sem
correspondência com o crescimento econômico que acompanhou a primeira
urbanização nos países capitalistas industrializados.
3. O aparecimento de novas formas urbanas e, em particular, de grandes metrópoles.
4. A relação do fenômeno urbano com novas formas de articulação social provenientes do
modo de produção capitalista e que tendem a ultrapassá-lo.
Questão teórica da urbanização
Qual é o processo de produção social das formas espaciais de uma sociedade e, por sua
vez, quais as relações entre o espaço constituído e as transformações estruturais de uma
sociedade, no interior de um conjunto intersocial caracterizado por relações de
dependência?
FORMAÇÃO DE REGIÕES METROPOLITANAS NAS SOCIEDADES INDUSTRIAIS
CAPITALISTAS
O que distingue a região metropolitana de uma grande cidade é a difusão no espaço das
atividades, das funções e dos grupos, e sua interdependência segundo uma dinâmica social
amplamente independente da ligação geográfica.
No momento da Segunda revolução industrial, a generalização da energia elétrica e a
utilização do bonde permitiram a ampliação das concentrações urbanas de mão-de-obra em
volta das unidades de produção industrial cada vez maiores. Os transportes coletivos
asseguraram a integração das diferentes zonas e atividades da metrópole, distribuindo os
fluxos internos segundo uma relação tempo/espaço suportável. O automóvel contribuiu
para a dispersão urbana, com enormes zonas de residência individual, espalhadas por toda a
região, e ligadas pelas vias de circulação rápida aos diferentes setores funcionais. Os
transportes cotidianos de produtos de consumo corrente beneficiam-se igualmente de tal
mobilidade: sem a distribuição cotidiana por caminhão dos produtos agrícolas colhidos ou
estocados na região, nenhuma grande metrópole poderia subsistir.
A indústria está cada vez mais liberada com referência a fatores de localização espacial
rígida, tais como matérias primas ou mercados específicos, equanto, ao contrário, depende
cada vez mais de uma mão-de-obra qualificada e do meio técnico e industrial, através das
cadeias de relações funcionais já estabelecidas. A indústria portanto busca acima de tudo
sua inserção no sistema urbano, mais do que sua localização em relação aos elementos
funcionais (matérias primas, recursos, escoamento) que determinavam sua implantação no
primeiro período.
Mas a região metropolitana não é o resultado necessário do simples progresso técnico. Pois
a técnica, longe de constituir um simples fator, é um elemento do conjunto das forças
produtivas, que são, elas mesmas, primordialmente, uma relação social, e comportam
assim, um modo cultural de utilização dos meios de trabalho. Esta ligação material entre
espaço e tecnologia constitui então o laço material mais imediato de uma articulação
profunda entre o conjunto de uma dada estrutura social e esta nova forma urbana. A
dispersão urbana e a formação das regiões metropolitanas estão intimamente ligadas ao tipo
social do capitalismo avançado, designado ideologicamente sob o termo de “sociedade de
massas”.
Por outro lado, a uniformização de uma massa crescente da população, no que diz respeito
ao lugar ocupado nas relações de produção (assalariadas) faz-se acompanhar de uma
diversificação de níveis e de uma hierarquização no próprio interior desta categoria social –
o que, no espaço, resulta numa verdadeira segregação em termos de status, separa e
“marca” os diferentes setores residenciais, se estendendo por um vasto território, que se
tornou o local de desdobramento simbólico.
A integração ideológica da classe operária na ideologia dominante caminha junto com a
separação vivida entre atividade de trabalho, atividade de residência e atividade de “lazer”,
separação que está na base do zoning funcional da metrópole. A valorização da família
nuclear, a importância dos mass media e o domínio da ideologia individualista agem no
sentido de uma atomização das relações e de uma segmentação dos interesses em função de
estratégias particulares, o que, ao nível de espaço, traduz-se pela dispersão das residências
individualizadas, seja no isolamento do barraco ou na solidão dos grandes conjuntos.
MEGALÓPOLE = reunião articulada de várias áreas metropolitanas no interior de uma
mesma unidade funcional e social. Não se trata de uma urbanização generalizada, mas de
uma difusão do habitat e das atividades segundo uma lógica pouco dependente da
contiguidade e intimamente ligada ao funcionamento econômico e, especialmente, às
atividades de gestão.
Ela exprime o domínio da lei do mercado na ocupação do solo e manifesta, ao mesmo
tempo, a concentração técnica e social dos meios de produção e a forma atomizada do
consumo, através da dispersão das residências e dos equipamentos no espaço.
DIVISÃO TÉCNICA = separação no espaço das diferentes funções de um conjunto urbano,
a saber, as atividades produtivas (indústria), de gestão e de emissão de informação, de troca
de bens e de serviços (comércio e diversões), de residência e de equipamento, de circulação
entre as diferentes esferas.
É nesta especialização setorial e na reconstituição das ligações estruturais no conjunto do
aglomerado, que reside o critério fundamental de uma região metropolitana, e não na noção
impressionista de dispersão espacial, que é apenas uma descrição cega do fenômeno.
DIFERENTES NÍVEIS DE INFLUÊNCIA DE UMA METRÓPOLE
Influência primária: movimentos cotidianos entre centro e periferia, compreendendo
sobretudo as migrações alternantes e as compras (contatos diretos);
Influência secundária: contatos indiretos de um tipo quase cotidiano (chamadas telefônicas,
escutar rádio, circulação de jornais);
Influência terciária: compreendendo vastas zonas espacialmente descontínuas (mesmo em
nível mundial: financeira, de edição, informação,etc.)
ESTRUTURA INTERNA DE UMA METRÓPOLE
1. No interior de cada metrópole:
Concentração de atividades terciárias no centro de negócios, atividades industriais na coroa
urbana próxima e dispersão das residências individuais nos terrenos livres circunvizinhos;
Deterioração física da cidade central, fuga da classe média em direção aos subúrbios, e
ocupação do espaço central por novos imigrantes, em especial as minorias étnicas, vítimas
de discriminação do mercado imobiliário;
Movimento de implantação industrial cada vez mais independente da cidade, tendendo a
recriar núcleos funcionais perto dos pontos-chaves das rotas;
Não correspondência total entre as divisões administrativas e a unidade de vida e trabalho.
2. No que diz respeito às ligações estabelecidas entre as metrópoles, culminando na
existência da megalópole:
As ligações fazem-se pelos encadeamentos sucessivos entre as diferentes funções.
Habitantes de uma região trabalham em outra, pólos turísticos atraem população de várias
regiões;
Não existe uma hierarquia de funções, os diversos centros formam uma rede multiforme,
cujos órgãos de transmissão situam-se fora da megalópole;
A produção de conhecimentos e de informação torna-se essencial para a atividade da
megalópole enquanto conjunto, parecendo desempenhar um papel considerável nas
tendências de desenvolvimento deste território.