Intuição e Inovação
Felipe G. de Souza F. Loureiro
felipe.loureiro@rioarquitetura.com
1
“(...) nada há no universo que não nos afete.” 1
Gottfried Leibniz
“La verdad es lo que es
y sigue siendo verdad
aunque se piense al revés.”
2
Antonio Machado
Nos últimos anos, a inovação tornou-se o principal tema de discussão entre profissionais de
diversas áreas. A busca pela inovação, considerada por muitos como o grande diferencial
competitivo do século XXI, move cientistas, artistas, designers, homens de negócios... Para
muitos autores, inovar é mais do que desejável: trata-se de uma questão de sobrevivência.
Para aquelas poucas empresas hesitantes quanto à inovação, o escritor de negócios Gary
Hamel tem uma horrível previsão: ‘Em algum outro lugar, numa garagem qualquer, há
um empresário fabricando uma bala de revólver com o nome da sua empresa. Agora
você tem uma opção: atirar antes. Você precisa inovar antes dos inovadores’. 3
Cabe ressaltar que a disseminação de um termo nem sempre corresponde a uma difusão
proporcional do seu verdadeiro significado. Logo, o que realmente é inovação, e como
podemos de fato alcançá-la?
Para o público em geral, o termo inovação pode corresponder simplesmente à criação de
produtos ou técnicas inéditas e revolucionárias. Na verdade, esse tipo de inovação –
conhecido como inovação disruptiva – não ocorre com tanta freqüência. As inovações mais
comuns surgem para aperfeiçoar produtos e técnicas já existentes; são, por isso, chamadas
de incrementais.
1
4
De qualquer forma, seja uma inovação disruptiva ou incremental, o
LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 50.
MACHADO, A. Provérbios e Cantares: Canto XXX. In: VARGAS, F. A. (org.). Poesia Espanhola – Das Origens à
Guerra Civil. São Paulo: Hedra, 2009. p.100.
2
3
KELLEY, T.; LITTMAN, J. A Arte da Inovação. São Paulo: Futura, 2001. p. 18.
4
Para mais definições sobre os diversos tipos de inovação, ver: CHRISTENSEN, C.; ANTHONY, S.; ROTH,
E. O Futuro da Inovação: Usando as Teorias da Inovação para Prever Mudanças no Mercado. Rio de Janeiro: Elsevier,
2007. 322 p.
2
fundamental é destacar que, para que possamos de fato inovar, não basta que tenhamos uma
boa ideia. A inovação é, justamente, uma boa ideia aplicada, ou seja, concretizada e
transformada em um benefício real.
Diante disto, a questão da aplicação da ideia ganha relevância. Esta preocupação com a
execução 5 permeia uma metodologia que ganhou destaque entre os diversos “caminhos para
a inovação” que vêm sendo discutidos recentemente. Esta metodologia é conhecida como
Design Thinking, e sua ideia central é a aplicação da metodologia usada por designers para a
solução de problemas complexos. O processo em si é tão antigo quanto o próprio design: o
termo Design Thinking, cunhado por David Kelley, da consultoria de design IDEO, serve
apenas para identificar essa metodologia, e nos permite acompanhar sua disseminação.
Segundo Tim Brown, CEO da IDEO, o Design Thinking é uma alternativa a uma visão
puramente tecnocêntrica da inovação:
Ninguém quer gerir uma empresa com base apenas em sentimento, intuição e
inspiração, mas fundamentar-se demais no racional e no analítico também pode ser
perigoso. A abordagem integrada que reside no centro do processo de design sugere um
‘terceiro caminho’. 6
A “abordagem integrada” do design está intimamente relacionada à execução das ideias que
conduzem o processo criativo. Como todo processo de design tem como objetivo a criação
de algo, ou seja, pressupõe-se um produto final – seja ele material ou não – podemos dizer
que esta prática permite um exercício constante de criação e execução. Ou seja, se por um
lado o design subentende um processo amplamente criativo, ele também deve considerar
restrições à execução daquele conceito, independente do objetivo final: uma cadeira, uma
marca, uma casa, etc.
Poderíamos afirmar que a inovação é o ofício do designer (sempre que há a preocupação com
a criação de algo novo, evidentemente), já que sua atividade consiste, basicamente, em
transformar ideias em “objetos”. Essa transformação é sempre baseada na busca de um
equilíbrio entre “o que se quer fazer” e “o que se pode fazer” - a concretização da ideia força
Para um panorama da crescente importância dada à “execução” das ideias, ver: BOSSIDY, L; CHARAN, R.
Execução: A Disciplina para Atingir Resultados. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 261 p.
5
6
BROWN, T. Design Thinking: Uma Metodologia Poderosa para Decretar o Fim das Velhas Ideias. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2010. p. 4.
3
o designer a trabalhar com diversas condicionantes, em um processo extremamente complexo
que demanda sensibilidade, conhecimento técnico e um enorme poder de síntese.
Essa síntese, identificada por Brown como “um terceiro caminho”, está presente também
em outras teorias da inovação: Dee Hock 7 usa o termo “era caórdica” para denominar o
atual momento, sugerindo que a inovação “reside” entre a ordem e o caos. Daniel H. Pink
, por sua vez, anuncia a “revolução do lado direito do cérebro”, defendendo a “valorização”
8
do lado direito do cérebro, que seria o “lado emotivo”, em contraposição à hegemonia do
lado esquerdo, que seria “o lado racional”. Segundo o autor, o sucesso só pode ser alcançado
através do equilíbrio entre o emocional e o racional. O que podemos perceber é uma
convergência de ideias entre os três autores, no sentido de equilibrar os agrupamentos
criação/emoção/caos e execução/lógica/ordem. Em outras palavras, os três autores
acreditam que já não é mais possível pensar o mundo – e especialmente as pessoas – como
um mecanismo que pode ser compreendido unicamente através de uma única lente, seja ela
exclusivamente emocional ou unicamente baseada no raciocínio analítico.
Durante o século XX, “aprendemos” a encarar o Iluminismo como um momento no qual o
desenvolvimento intelectual despertou a humanidade da “escuridão” da Idade Média. Este
período é geralmente associado a uma ruptura radical com a visão de mundo dominante até
então. O determinismo mecanicista, formulado por Descartes no início do século XVII,
reduziu o mundo a um sistema matemático, que poderia ser inteiramente conhecido através
da razão. A concepção cartesiana considera um universo formado apenas por “quantidades”,
negando a existência real de qualquer aspecto qualitativo.
Para Descartes, quando vejo uma maçã vermelha, a única coisa real em minha visão é a
extensão – a massa, o tamanho – da maçã. A cor vermelha, que é uma qualidade da maçã, na
verdade não existe na maçã em si, mas apenas na minha mente, e é, portanto, um elemento
subjetivo que pode ser descartado. Dessa forma, iniciou-se a construção de uma visão de
mundo – ou cosmovisão - baseada pura e simplesmente no pensamento analítico, que lida
apenas com as quantidades, em contraposição às concepções escolásticas correntes à época,
que buscavam a integração entre a tradição da Grécia clássica e o Cristianismo. Assim,
podemos dizer que Descartes promoveu uma “revolução do lado esquerdo do cérebro”,
7
HOCK, D. Nascimento da Era Caórdica. São Paulo: Cultrix, 1999. 295 p.
8
PINK, D. H. O Cérebro do Futuro: A Revolução do Lado Direito do Cérebro. São Paulo: Campus, 2007. 280 p.
4
porém sem intenção de buscar um equilíbrio com o “outro lado” 9. Por isso, podemos dizer
que a escolha de um “terceiro caminho”, entre o racional e o emocional, o objetivo e o
subjetivo, é na verdade um resgate – e uma releitura – de um princípio básico presente na
visão de mundo pré- cartesiana. Nesse sentido, a “revolução do lado direito” é, na verdade,
uma contra-revolução um tanto tardia, que não tem o objetivo de dominar ou negar o
conhecimento atual, mas sim complementá-lo e torná-lo mais completo.
O primeiro passo neste caminho é abandonar os sistemas reducionistas, que tentam
simplificar a realidade. Para lidar com uma realidade complexa, precisamos de uma
abordagem igualmente complexa. O design é sempre complexo, por mais simples que possa
parecer, justamente porque, no design, nenhum aspecto pode ser ignorado. Todos nós
percebemos isso no nosso dia-a-dia. Muitas vezes, encontramos defeitos em detalhes que
aparentemente não fazem parte da “função principal” do objeto: uma bela panela pode ser
completamente inútil se seu cabo ficar muito quente; uma camisa com caimento perfeito
pode ser descartada se uma costura arranhar a pele de quem a vestir.
Estes problemas surgem simplesmente porque os designers também “erram”. A visão
holística, que deveria ser um pressuposto para o processo de design, pode ser contaminada e
“mutilada”. Durante o processo de design, o apego a ideologias e “correntes estéticas” pode
levar a escolhas que ignorem ou minimizem alguns aspectos que deveriam merecer mais
atenção. Por que isso ocorre? Porque, por mais que tentemos ser “racionais” e “imparciais”
perante a realidade, somente temos acesso à nossa visão da realidade, e esta visão será sempre
parcial e incompleta. Muitas vezes, isso leva a uma confusão entre a realidade em si e uma
leitura pessoal da realidade, como identificado pelo sociólogo francês Edgar Morin, que
afirma que “(...) a realidade não é facilmente legível. As ideias e as teorias não refletem, mas
traduzem a realidade, que podem traduzir de forma errônea. Nossa realidade não é outra
senão nossa ideia de realidade.” 10
Em
outras
palavras,
ao
buscarmos
seguir
exclusivamente
o
caminho
“execução/lógica/ordem” citado anteriormente, acabamos por nos afastar completamente
da realidade, e, portanto, de uma execução lógica e ordenada. Compreender - e aceitar - este
fato é fundamental. Descartes é um exemplo deste paradigma: ao criar uma teoria que
9 Para
uma crítica aprofundada do reducionismo cartesiano à luz das descobertas da física quântica, ver: SMITH,
W. O Enigma Quântico: Desvendando a Chave Oculta. Campinas: Vide Editorial, 2011.
10
MORIN, E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 2ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 74.
5
buscava excluir qualquer subjetividade, acabou por desconsiderar todas as visões da
realidade, menos a sua própria – que era, sem dúvida, subjetiva.
A grande questão que emerge é: como lidar com esta complexidade? Como verificar a
validade de nossas percepções? Será isso possível? Sim, isso é possível, e essa possibilidade
faz parte da metodologia utilizada pelos designers em seus projetos. A validação da percepção,
entretanto, não é testada com mais ideias e conceitos, mas sim através da prática, da aplicação
na realidade. O trabalho dos designers sempre é avaliado pela sua própria aplicação na execução
e teste dos inúmeros protótipos. Grande parte da efetividade desta metodologia reside nisto:
encarar a realidade como o “teste final”.
Para um objeto de design, a realidade é, sempre, o fim. E exatamente por isso ela deve ser
também o começo. A abordagem essencial do Design Thinking consiste em compreender a
realidade, e trabalhar a partir dela. Isso pode parecer óbvio, mas, se considerarmos grande
parte do debate intelectual ocorrido no século XX, trata-se de uma inovação. O século
passado foi marcado por uma espécie de “racionalidade subjetiva”, algo que podemos
identificar, por exemplo, nos sistemas ideológicos que se multiplicaram na esteira do
cartesianismo.
Todas as ideologias são produtos intelectuais, sistemas fechados que tentam explicar o
funcionamento da realidade a partir de alguns conceitos. Qualquer ideólogo dirá que estes
conceitos foram construídos racionalmente a partir da realidade. Porém, sabemos que eles
podem, no máximo, terem sido extraídos de uma visão que alguém teve da realidade, como
nos diz Pedro Marques de Abreu, professor de Teoria da Arquitetura na Universidade
Técnica de Lisboa:
O conceito informador das ideologias não é nunca testado no confronto com a
realidade, da maneira absoluta como quer ser aplicado. Ele é sempre a interpretação da
História que um indivíduo realiza. Esse indivíduo consegue persuadir alguns –
tornando-os partidários da sua ideologia –, mas não segundo um processo integralmente
racional, que verificasse todas as situações e todas as alternativas. A ‘ideia’ germinal das
ideologias é pois, mais propriamente, um pré-conceito. 11
11
ABREU, P. M. A Insustentável Leveza... das Utopias. p. 5. In: Uma Utopia Sustentável: Arquitectura e Urbanismo no
Espaço Lusófono: que Futuro? Lisboa: Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, 2010.
6
Quando esta “ideia germinal” serve de base para a construção de um sistema – como o
sistema cartesiano -, temos uma ideologia. Ainda segundo Pedro Marques de Abreu, uma
ideologia é, portanto, “(...) o sistema gerado pela extrapolação ad infinitum da ‘ideia’, a
absolutização de um ‘pré-conceito’ arvorado em chave de leitura da História” 12.
Apesar de seu distanciamento em relação à realidade, as ideologias continuam a ser
largamente disseminadas. Muitas pessoas são convencidas através de argumentos
aparentemente lógicos, ainda que tais argumentos ignorem ou simplesmente neguem
veementemente fatos que elas mesmas observam em suas vidas cotidianas. Isso ocorre pois,
nesse tipo de argumentação, a lógica utilizada não é a lógica da realidade, mas sim a “lógica
do sistema”. Logo, todos os argumentos são construídos a partir da ideia germinal, que passa
a ser a única referência de validação. Podemos dizer, então, que uma ideologia só permite
discussões internas, e que todas as discussões possíveis já estão, a priori, vencidas, uma vez
que o sistema encerra todas as possibilidades e impossibilidades. Segundo o filósofo Olavo
de Carvalho, a difusão de uma ideologia normalmente depende mais das emoções que seus
defensores são capazes de despertar do que da análise supostamente racional que teria gerado
o sistema em si:
As ideias influenciam o curso das coisas na sociedade, decerto, menos pela validade
objetiva do seu conteúdo do que por servir de símbolos que condensam sentimentos
coletivos - desejos, ódios, temores, esperanças. É possível, até, que toda ideia brote
desses sentimentos. Mas a transformação do sentimento em ideia tem vários graus
possíveis de elaboração. 13
As ideologias correspondem sempre a uma realidade reduzida. Quando as ideologias são
confrontadas com a realidade, as duas simplesmente não se encaixam. Por isso mesmo, as
ideologias estão constantemente ligadas à ideia de “Revolução”. Esta nada mais é do que
uma tentativa de transformar o mundo, para que ele se adéqüe às ideias que temos sobre ele.
A revolução cartesiana, por exemplo, conseguiu de fato criar um “novo mundo” no plano
intelectual; porém, no “plano real”, o mundo continuou, obviamente, o mesmo.
Um processo oposto, no qual as ideias se adéquam à realidade, poderia ser considerado como
uma “Evolução”, ou seja, um processo no qual não precisamos descartar absolutamente tudo
12
Ibid. p. 7.
13
CARVALHO, O. Motivos da Filosofia. Artigo publicado em O Globo em 10 de fevereiro de 2001. Disponível
em: http://www.olavodecarvalho.org/semana/motivos.htm. Acesso em: 30/08/2011, às 09:00 h.
7
que já foi concebido, mas convocar um olhar crítico para que sejamos capazes de aproveitar
alguns aspectos e descartar aqueles que não nos servirão. Segundo Pedro Marques de Abreu,
este é o modus-operandi da “Tradição”. Podemos, então, traçar um paralelo entre dois blocos
diametralmente opostos: “Ideologia-Revolução” e “Tradição-Evolução”, conforme
colocado no trecho abaixo:
Existe uma certa simetria entre o conceito de Ideologia e o de Tradição: ambas são
constituídas por um núcleo embrionário e por um processo decorrente. Contudo a
primeira é totalmente abstrata, a segunda totalmente real. A Ideologia é o sistema lógico
construído sobre um pré-conceito (toda ela se desenvolve num mundo mental). A
Tradição é o processo crítico de comparação ou verificação posto em execução a partir
de um acontecimento (de correspondência da realidade do mundo à realidade do Eu).
14
Considerar o conceito de Tradição como parte de uma pesquisa sobre inovação pode soar
como algo estranho. Porém, devemos atentar para o seguinte: Se as ideias que fomentam
uma mudança ou inovação forem realmente “extraídas” da realidade, elas poderão se
encaixar à mesma. Para que isso ocorra, porém, é necessário um processo crítico gradual – a
Tradição -, no qual estas ideias sejam constantemente testadas, ou seja, confrontadas com a
realidade. Conceitos que tenham sido construídos somente a partir de outros conceitos
provavelmente nunca conseguirão deixar o plano das ideias e passar a habitar o mundo real
em sua totalidade. A insistência em transformar o mundo, para que o mesmo se adéqüe a
estes conceitos, será sempre violenta – e frustrada.
A arquitetura moderna, por exemplo, foi em grande parte baseada em uma leitura equivocada
da realidade. O Homem não era – e nem viria a ser – o “Homem Moderno” que habitava os
sonhos utópicos de modernistas como Le Corbusier. Quando seus projetos foram
construídos, muitos se revelaram inabitáveis. Mesmo que a chegada deste “Homem
Moderno” fosse realmente certa e inevitável, antecipar uma transformação tão profunda no
estilo de vida das pessoas nunca poderia dar certo. O conceito de Arquitetura Moderna foi
construído sobre o conceito de Modernidade; esta arquitetura deveria configurar o espaço
onde viveria o Homem Moderno – que também era um conceito. Logo, o conceito de
Arquitetura Moderna estava apoiado somente em outros conceitos, todos eles mais ou
14
ABREU, P. M. Op. Cit.. p. 5.
8
menos descolados da realidade. O arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa descreve um episódio
bastante ilustrativo:
Nosso conceito de arquitetura é baseado na ideia do objeto arquitetônico perfeitamente
articulado. A famosa disputa judicial entre Mies van der Rohe e sua cliente, a Dra. Edith
Farnsworth, a respeito da Casa Farnsworth, é um exemplo da contradição entre
‘arquitetura’ e ‘lar’. Como todos nós sabemos, Mies havia criado uma das casas mais
importantes e esteticamente atraentes de nosso século, mas sua cliente não a considerou
satisfatória como lar. O tribunal, finalmente, decidiu em favor de Mies. Eu não estou
subestimando a arquitetura de Mies; estou apenas destacando o distanciamento em
relação à vida e uma deliberada redução de seu espectro. 15
Embora a casa Farnsworth seja considerada por muitos uma obra-prima da arquitetura, seria
correto afirmar que a obra não foi aprovada no “teste final da realidade”. A visão de Mies
pode ter triunfado como ideia, mas falhou como objeto; ou melhor: a casa Farnsworth é um
sucesso como ícone, mas um fracasso como casa. Mies tentou – e conseguiu – criar uma casa
para o Homem Moderno; porém, como este homem não existe, o arquiteto acabou criando
apenas uma casa onde ninguém saberia morar. Somente uma “abordagem tradicional”
poderia criar, aos poucos, adaptações e inovações que fossem respondendo, paulatinamente,
às pequenas e sucessivas transformações que ocorriam no dia-a-dia. Essa seria a abordagem
de um “design thinker”. Afinal, a compreensão da realidade é um pré-requisito para a inovação.
Como já vimos anteriormente, a visão sistemática das ideologias é sempre um modelo mental
que encerra todas as possibilidades e impossibilidades referentes a cada elemento ou às
relações entre os elementos que constituem o sistema. A ideologia é um mundo à parte, um
mundo puramente abstrato, que pode ou não ter alguma correspondência com o “mundo
real”.
O “mundo real” é irredutível. A realidade existe de forma completa (e complexa), e nós a
percebemos e vivemos de forma completa. Reduzir a realidade através de esquemas mentais
pode, sim, facilitar sua compreensão. Porém, não podemos esquecer de que este modelo é
apenas uma abstração, uma pseudo-realidade que criamos, e que corresponde, no máximo, a
15
PALLASMAA, J. Identity, Intimacy and Domicile: Notes on the Phenomenology of Home. In: The Concept of Home: An
Interdiciplinary View – Simpósio na Universidade de Trondheim, 21-23 de Agosto de 1992. Disponível em:
http://www.uiah.fi/opintoasiat/history2/e_ident.htm. Acesso em: 30/08/2011, às 09:10 h.
9
uma realidade reduzida, que construímos a partir de uma seleção de quais elementos devem
ser considerados e quais devem ser ignorados ou desprezados.
Como vimos, a Era Moderna foi construída a partir de muitos desses sistemas. Porém, o
reducionismo foi se acumulando, uma vez que sistemas abstratos deram origem a outros
sistemas abstratos. Esse processo foi afastando, cada vez mais, a construção intelectual e a
realidade. O universo intelectual tornou-se cada vez mais fechado e auto-referencial, com
conceitos e sistemas ideológicos que só se comunicavam uns com os outros, formando uma
corrente suspensa no ar, sem nenhum ponto de fixação na realidade da experiência humana.
As ideologias e, mais especificamente, o “espírito revolucionário”, sempre buscaram
transgredir e substituir a Tradição, tornando-se as novas bases para um novo mundo. Esta
atitude pode ser percebida, por exemplo, no caráter a - histórico do Modernismo. Porém, se
apagamos nosso passado, apagamos a nós mesmos; nossa identidade é formada, em grande
parte, pela nossa memória. Isso é tanto verdade para cada indivíduo como para povos
inteiros. Logo, é natural que, ao negar as bases tradicionais que foram sendo desenvolvidas
e aperfeiçoadas ao longo dos séculos, o Homem precisasse de algo que substituísse essa
Tradição. As ideologias oferecem um sistema fechado, uma explicação total da realidade, o
que, sem dúvida, pode ser reconfortante. Porém, a zona de conforto criada por esses sistemas
é muito frágil. O psiquiatra austríaco Viktor Frankl identificou o que ele chamou de “um
fenômeno muito difundido no século XX”: a existência de um “vazio existencial”. No século
XX, o Homem ocidental encontrava-se desorientado em relação à sua própria existência:
Nenhum instinto lhe diz o que deve fazer e não há tradição que lhe diga o que ele
deveria fazer; às vezes, ele não sabe sequer o que deseja fazer. Em vez disso, ele deseja
fazer o que os outros fazem (conformismo), ou ele faz o que outras pessoas querem
que ele faça (totalitarismo). 16
Para muitas pessoas, as ideologias preenchiam este vazio. Porém, perante o fracasso das
“alternativas à Tradição”, tornou-se inevitável repensar a forma como nos relacionamos com
o mundo. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman identificou uma situação peculiar no
mundo contemporâneo, ao que ele chamou de “mal-estar da pós-modernidade”.
17
Atualmente, nem mesmo a fé nas ideologias persiste. Logo, a desorientação é ainda maior, e
mais profunda. Por mais que novas descobertas científicas e novas criações tecnológicas
16
FRANKL, V. Em Busca de Sentido. 25ª Ed. São Leopoldo: Sinodal, 2008. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 131.
17
BAUMAN, Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 272 p.
10
prometam revolucionar, mais uma vez, o mundo em que vivemos, de nada adiantará se
continuarmos carregando este “vazio”. A única forma de reverter esta situação é,
naturalmente, parar de buscar a zona de conforto oferecida pelos sistemas intelectuais;
precisamos voltar a enfrentar a realidade como ela realmente é.
Assim, estendendo a metáfora do “terceiro caminho” para a forma como concebemos o
mundo e como nos relacionamos com ele, podemos dizer que a “revolução do lado direito
do cérebro”, comentada anteriormente, vem para equilibrar não apenas nosso processo
criativo, mas toda a nossa cosmovisão.
Cabe ressaltar, entretanto, que não podemos nos reduzir somente às nossas capacidades
intelectuais. Ao invés de tentar aprender a usar o lado direito do cérebro, precisamos
reaprender a realmente pensar, a refletir de forma completa, holística – pensar como designers.
Mas o que seria, então, pensar como um designer? O que um designer tem de diferente?
A metodologia do design compreende, necessariamente, uma visão incrivelmente abrangente.
Teoricamente, o designer possui a capacidade de compreender os fatores que atuam sobre um
processo ou objeto; além disso, o designer é capaz de criar soluções que respondam a todos
estes fatores enquanto cumprem um objetivo específico. Segundo o filósofo cingalês Ananda
Coomaraswamy, na Idade Média – ou seja, antes de Descartes - “o artista não era um tipo
especial de homem, mas todo homem era um tipo especial de artista.” 18 Esta frase, cunhada
por um filósofo tradicionalista nascido no século XIX, corresponde a um dos conceitos
básico do Design Thinking: todos nós somos designers. Mesmo sem perceber, todos nós
fazemos design, seja cozinhando ou posicionando os móveis na sala de estar. Logo, todo dia,
todos nós solucionamos problemas incrivelmente complexos.
Estes problemas são complexos pois tudo que existe se relaciona com tudo o que mais existe.
Nada está isolado; tudo está integrado a tudo, em diferentes graus de intensidade, é claro. A
própria noção de sustentabilidade, tão em voga atualmente, provém da lembrança–
incrivelmente tardia - desta noção. Porém, como podemos querer compreender um mundo
no qual tudo importa, no qual tudo está ligado a tudo? Como ter qualquer tipo de controle
sobre um mundo que não podemos “transformar”, através do pensamento analítico, em um
objeto finito, inteiramente conhecido? Ora, tudo o que temos para apreender a realidade una
e indivisível é nossa percepção, também ela uma e indivisível. O problema é que, quando
18
COOMARASWAMY, A. K. The Nature of Medieval Art. In: The Essential Ananda K. Coomaraswamy. World
Wisdom, Inc, 2004. p. 175. Tradução do autor.
11
pensamos sobre algo que tenhamos percebido, precisamos, necessariamente, desconstruir e
analisar cada parte desta percepção separadamente. Juntando os pedaços, podemos
reconstruir a impressão que tivemos daquela experiência, mas nunca poderemos reconstruir
a experiência em si. Como podemos, então, combinar percepção e pensamento, a fim de
evitar que a realidade nos escape por entre os dedos?
A chave para uma compreensão completa está em nós mesmos, na nossa capacidade de intuir.
Devido à nossa herança cartesiana, geralmente entendemos a intuição como algo que
sentimos, mas que não conseguirmos explicar; a intuição seria, assim, um pressentimento,
uma espécie de conhecimento “instintivo”, impossível de ser explicado e justificado
“racionalmente”. Porém, intuir é muito mais do que pressentir “sem nenhum motivo
aparente”. A intuição é fruto do conhecimento e de experiências prévias, relacionados e
recombinados através da complexidade de nosso processo cognitivo, como definido por
Olavo de Carvalho:
A intuição de qualquer objeto é intuição de uma forma finita, cujas fronteiras com os
outros objetos nos revelam imediatamente os limites do seu conjunto de possibilidades
de ação e paixão. (...) Ser objeto - real ou imaginário - é ter o poder de apresentar-se
como sistema articulado de possibilidades e impossibilidades condensadas numa forma
instantaneamente apreensível por intuição. 19
Quando percebemos algo, percebemos também suas possibilidades e impossibilidades.
Repetindo o exemplo usado por Olavo de Carvalho 20, podemos dizer que, quando vemos
um gato, intuímos que ele não pode voar. Esta intuição é possível pois reconhecemos, no
objeto que vemos, a forma que identificamos como “gato”; além disso, sabemos, por
experiências anteriores, que gatos não podem voar. Alguém que nunca tenha visto um gato,
ou que não saiba nada sobre gatos, jamais poderia afirmar isso. Logo, quanto mais soubermos
sobre alguma coisa, mais completa será a intuição que temos dela. Se estudarmos essa coisa
profundamente, analisando todos os seus elementos e todas as relações entre estes
elementos, podemos, ao invés de reduzi-la para que ela torne-se compreensível, realmente
começar a entendê-la em sua realidade, ou seja, em sua totalidade. Quando chegamos a esse
nível de conhecimento sobre algo, chegamos a conclusões e soluções que nos parecem
CARVALHO, O. A metafísica e os fundamentos da objetualidade. In: Apostila do Seminário de Filosofia – Rascunho para
Comentário em Classe. Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant3.htm. Acesso em:
30/08/2011, às 09:30 h.
19
20
CARVALHO, O. Ibid.
12
adequadas. Porém, podemos ter muita dificuldade em explicar nossas conclusões para outras
pessoas; mais difícil ainda é “provar” que estamos certos. Isso ocorre porque conhecemos a
“coisa” em questão tão bem que intuímos uma série de coisas a seu respeito.
Quando intuímos, não intuímos de forma racional ou subjetiva, usando o lado esquerdo ou
o direito do cérebro. Intuímos de forma completa; a completude da nossa percepção – e, na
verdade, de todo o nosso ser - se relaciona com a completude da coisa que está perante nós.
Somente quem compartilha do mesmo conhecimento sobre a mesma coisa pode intuir de
forma semelhante. Logo, talvez não sejamos capazes de provar para ninguém, mas estamos
certos. E sabemos que estamos certos. Essa certeza, que no fundo nada mais é do que o
reconhecimento de uma correspondência com a realidade, também é intuída. Esse processo
combina conhecimento, raciocínio e emoção. De certa forma, o Design Thinking tenta, em sua
metodologia, sistematizar processos que estimulem o desenvolvimento da intuição (conhecer
o objeto de estudo sob várias formas, de forma complexa).
Podemos encontrar um exemplo desta intuição na descrição, feita pelo arquiteto e designer
finlandês Alvar Aalto, do seu processo criativo:
As inúmeras demandas e os diferentes componentes formam uma barreira, e é difícil
que a ideia arquitetônica básica possa emergir de detrás desta barreira. Eu então procedo
da seguinte forma – embora não intencionalmente. Esqueço toda a massa de problemas
por um instante, depois que a atmosfera do trabalho e os inumeráveis requisitos
diferentes tenham mergulhado em meu subconsciente. Então, sigo com um método de
trabalho que é muito similar à arte abstrata. Simplesmente desenho por instinto, não
sínteses arquitetônicas, mas o que muitas vezes são composições infantis, e desta forma,
sobre esta base abstrata, a ideia central gradualmente toma forma, um tipo de substância
universal que me ajuda a criar harmonia entre inumeráveis componentes contraditórios.
21
Como podemos aprender a “intuir” como Alvar Aalto? Basta estudar os problemas que
queremos resolver? De certa forma, sim. Mas, mais importante ainda, é saber como estudar
os problemas. Este processo criativo de Aalto rendeu frutos brilhantes, mas não só porque
ele era capaz de analisar cada elemento corretamente. Aalto possuía, também, um talento
extraordinário para unir e sintetizar as diversas sub-respostas aos diversos sub-problemas
21
AALTO, A. The Trout and the Stream. In: SCHILDT, G. Alvar Aalto in His Own Words. Nova York: Rizzoli,
1997. p. 108. Tradução do Autor.
13
em uma fantástica “resposta” a um “problema”. Aalto era, sem dúvida, um brilhante design
thinker. Podemos dizer que Aalto era capaz de compreender a “incerteza do real”
identificada por Edgar Morin:
(...) importa não ser realista no sentido trivial (adaptar-se ao imediato) nem irrealista no
sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade); importa ser realista no sentido
complexo: compreender a incerteza do real, saber que há algo possível ainda invisível
no real. 22
Um poder de intuição similar pode ser percebido na obra de outro grande arquiteto, este
contemporâneo: o suíço Peter Zumthor. O próprio Zumthor explica o que o faz capaz de
criar algumas das obras mais tocantes deste início de século:
As raízes do nosso entendimento da arquitetura estão em nossa infância, em nossa
juventude; elas estão em nossa biografia. Os estudantes precisam aprender a trabalhar
conscientemente com suas experiências arquitetônicas pessoais. […] Isso é pesquisa;
isso é o trabalho de relembrar. 23
Este processo de rememoração citado por Zumthor nada mais é do que um processo crítico,
que busca confrontar aquilo que é percebido com o depósito de experiências que cada um
de nós possui dentro de si. Isto é, de certa forma, a definição de Tradição. Porém, neste caso,
estamos falando de um processo que ocorre dentro do indivíduo, e que, portanto, só pode
ser realizado por ele mesmo. Somente o indivíduo que realiza esta operação de reflexão crítica
desenvolve sua intuição, podendo, portanto, criar algo de realmente significativo, e que tenha
relação com a realidade. Pedro Marques de Abreu nos lembra que “A Tradição não é objeção
à criatividade, bem pelo contrário. É neste horizonte de rememoração crítica que se resolvem
os obstáculos de comunicação entre a sociedade e o operar contemporâneo da arquitetura.”
24
Logo, a Tradição existe dentro de cada um de nós, o que faz com que, naturalmente, ela
passe a viver também na memória de grupos e povos inteiros.
22
MORIN, E. Op.Cit. p. 74.
23
ZUMTHOR, P. Teaching architecture, learning architecture. In: ZUMTHOR, P. Thinking Architecture. Basiléia,
Boston, Berlin: Birkhauser, Publishers for Architecture, 1999. p. 57-58.
24
ABREU, P. M. Palácios da Memória II: a revelação da arquitectura - Volume I - Secção Teórica - O Processo de Leitura
do Monumento. 2007. 415 f. Tese (Doutorado em Arquitetura) - Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica
de Lisboa, Lisboa. 2007. p. 375
14
Assim, podemos concluir que uma abordagem “tradicional” pode, sim, ser um caminho para
a inovação. Esta abordagem consiste em tentar compreender a realidade como ela é,
observando como esta realidade é percebida por nós. É importante destacar que a abordagem
tradicional não é, de forma alguma, uma nostalgia historicista. A base da Tradição é o
processo crítico que a cria e perpetua. É este processo que nos permite verificar a atual
validade de conceitos desenvolvidos no passado, evitando que a simples repetição acrítica
leve ao desenvolvimento de um automatismo cego. Esta noção levou o filósofo catalão
Eugeni D’Ors a afirmar: “Tudo que permanece fora da tradição é plagiarismo.” 25
O Design Thinking busca desconstruir muitos destes dogmas, a fim de identificar quais
elementos “merecem” ser perpetuados. Este confronto permanente com a realidade é a única
forma de avaliar as ideias que temos acerca do mundo em que vivemos. É também a única
forma de criar obras significativas, que passarão pelo mesmo processo nas mãos das futuras
gerações. Para realizar este processo, precisamos usar todas as ferramentas das quais
dispomos, principalmente nossa intuição. Esta não está no lado esquerdo ou no lado direito
do cérebro – a intuição está em nós, e, mais especificamente, em nossa relação com o mundo
ao nosso redor. Porém, se considerarmos a intuição como algo subjetivo – e podemos de
fato fazê-lo -, então talvez a “revolução do lado direito do cérebro”, anunciada por Daniel
Pink, possa ser encarada como a “revolução da intuição”. Esta revolução teria, na verdade,
um “caráter evolutivo”, uma vez que engloba o resgate de um enfoque tradicional, nos
termos que apresentamos anteriormente. Seu caráter revolucionário está presente em uma
ruptura em relação às práticas que dominaram o século XX , uma vez que a “hegemonia do
lado esquerdo” engessou nossa intuição. Segundo Titus Burckhardt, “A tirania
monopolizadora do mental, mais exatamente do pensamento interessado e ansioso, impede
que as faculdades instintivas da alma se desenvolvam em toda sua generosidade original” 26.
O Design Thinking rompe essa camisa-de-força, abandonando as fórmulas prontas e voltandose para a solução concreta de problemas reais. As metodologias e as teorias podem nos
ajudar, e muito, mas não podemos, nunca, nos deixar seduzir pelo mundo intelectual,
25
D’ORS, E. In: PALLASMAA, J. The Thinking Hand. Wiley, 2009. p.113.
26
BURCKHARDT, T. A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente: Princípios e Métodos. São Paulo: Attar, 2004. p. 227228.
15
esquecendo o mundo real. Afinal, “você não pode se abrir à realidade construindo alguma
coisa em lugar dela.” 27
27
CARVALHO, O. Notas para uma introdução à filosofia. Texto-base para comentário em aula do Seminário de
Filosofia.
São
Paulo:
É-Realizações,
28
de
março
de
2007.
Disponível
em:
http://www.olavodecarvalho.org/textos/notas_introducao.html. Acesso em: 30/08/2011, às 12:45 h.
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