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Desenhar - fragmento e montagem

2019, Montagens: nos espaços fílmico, expositivo e impresso (ISBN: 978-85-9578-107-8)

Abstract

A montagem é uma operação mencionada com recorrência nas reflexões sobre cinema, literatura e fotografia, mas pouco presente quando se discute desenho. Apesar disso, a montagem lhe é fundamental. No desenho, elaboram-se as partes simultaneamente à sua disposição no campo compositivo. A produção (que entendo como reprodução, explicarei adiante) dos fragmentos ocorre ao mesmo tempo em que eles são dispostos e articulados entre si. Nessa forma de edição, as marcas das emendas confundem-se com a própria estrutura das partes. Partes formadas pela aproximação (ou distância) que mantêm entre si. Tal dificuldade de identificação trata menos do resultado de uma intenção dissimulante do que de uma derivação da própria natureza promíscua do meio gráfico.

Desenhar – fragmento e montagem Nada é puro. O que quer que criemos em desenho (...) se trata da união, pela primeira vez, de duas belezas que formam uma terceira. Pamuk (2014) A montagem é uma operação mencionada com recorrência nas reflexões sobre cinema, literatura e fotografia, mas pouco presente quando se discute desenho. Apesar disso, a montagem lhe é fundamental. No desenho, elaboram- se as partes simultaneamente à sua disposição no campo compositivo. A produção (que entendo como reprodução, explicarei adiante) dos fragmentos ocorre ao mesmo tempo em que eles são dispostos e articulados entre si. Nessa forma de edição, as marcas das emendas confundem- se com a própria estrutura das partes. Partes formadas pela aproximação (ou distância) que mantêm entre si. Tal dificuldade de identificação trata menos do resultado de uma intenção dissimulante do que de uma derivação da própria natureza promíscua do meio gráfico. Promíscua, pois efetivamente dada a misturas, à negociação entre partes de diversas proveniências. Para justificar por que falo de reprodução das partes do desenho ao invés de produção, é preciso discorrer sobre suas codificações. Elas são muitas e variadas e, por mais que tenham a tendência à diferenciação entre si pelo aprofundamento de suas especificidades, todas as manifestações gráficas que delas resultam estão sempre disponíveis para além desses contextos de origem, estão abertas para servir em outras codificações. No desenho de plantas arquitetônicas, por exemplo, as formas, protocolos, parâmetros que o definem tendem a diferenciá-lo das notações coreográficas. Todavia, 34 um desenho arquitetônico produzido de acordo com tais normas, por mais específico que seja, está disponível a ser tomado por alguém que desenhe uma coreografia sem que isto o destitua da arquitetura e sem que a arquitetura seja dele destituída. Como argumenta Molina (2006, p. 174), cada elemento do desenho – gesto, estrutura, imagem – remete a outras séries desses elementos em um encadeamento histórico de referências. Para aqueles que vagueiam entre as m�ltiplas remissões do meio gráfico, contemplar cada desenho envolve testemunhar uma estranha espécie de jogo de espelhos, taumatúrgico e fragmentário, que combina rasgos, derramamentos, arremessos, capturas, fusões e remendos com outras imagens gráficas, mas também com toda a sorte de coisas. Tal disposição do desenho em entregar-se a misturas, em dispor-se a ser desmontado e montado, leva o desenhista a reconhecer o problema da originalidade, pois logo ele percebe que nada inventa, mas apenas recorta e monta partes de um manancial imaginário que lhe serve também de meio e destinação. Seu repertório é construído pelo acúmulo de recorrências a outras produções, de outros repertórios, o que é possível por essa disponibilidade dos desenhos, por essa condição generosamente promíscua. Seria interessante uma reflexão que se aprofundasse em comparar a apropriação que o desenhista faz das imagens com a apropriação que fazemos da linguagem, incluindo aí as questões entre o uso cotidiano mais instrumental e o uso poético de ambas. Como aponta Sardo (2008), na produção artística contemporânea, frequentemente são convocados os modos, métodos e aspectos de desenhos de outros contextos e campos de saber, como o desenho técnico ou científico, da memória infantil ou da patologia psíquica. Mas tal apropriação, ainda que dedicada a emular as determinações de um código inicial, desloca necessariamente suas finalidades e parâmetros de avaliação, o que coloca o 35 desenhista hoje em uma posição paradoxal de operar na “ficção de autenticidade e genuinidade” com relação a esee código. Um artista que desenhe como um arquiteto necessita organizar elementos dos códigos arquitetônicos em outro contexto de recepção e protocolos, que é o contexto da arte, por meio da sua ficionalização. Ou seja, no contexto da arte contemporânea, a partir da relação mimética com um código de outro contexto, o artista engendraria um outro código que se propõe produtivo e paradoxalmente autoral, um “como se”, por meio de meta-procedimentos que evidenciam o “permanente processo de absorção e expansão” próprio da fluidez das convenções do desenho. Enquanto traça, estendendo a linha, o desenhista recorta e monta simultaneamente. Antes mesmo da elaboração de uma representação, tal ambivalência é fundamental na instauração mínima do traço: a linha fende a superfície em dois planos enquanto os mantém juntos. Corta e une a um só tempo. De modo análogo, no plano das teorizações, como afirma Paixão (2008, p. 40-41), o desenho é “o campo de separação que vive do que põe em relação” tanto por implicar a determinação de uma proveniência entre coisas, um “algo de algo” (um desenho disto ou daquilo), quanto a destituição dessa significação que as vinculara (ao restaurar a passagem da potência ao ato). O desenhista deita marcas que respondem às condições de sua realização, de seu contexto de ação. Marcas fragmentárias em relação ao conjunto das outras marcas precedentes que as motivaram e com as quais passarão a participar da somatória manifesta do desenho, situadas mais ao centro ou nas bordas de algum(ns) dos sistemas que aí se abrigam. Esta ambiguidade do traço que divide e une a um só gesto, se estendida ao processo, permite pensar que o desenhista, ao trabalhar, não apenas recorta elementos gráficos por meio da seleção, mas acaba assumindo os modos de articulação juntamente com as partes. Os elementos 36 gráficos destacados trazem consigo as potencialidades de união com outros elementos, como palavras capazes de insinuar uma gramática, o que parece condizente com a natureza dinâmica, expansiva e canibalizante do desenho, tal qual uma palavra de dupla função: verbo e substantivo. Aquilo que é e que atua em si e sobre si mesmo. Esta disponibilidade do desenho que se oferece ao trabalho dos desenhistas para ser despedaçado e refeito sem ser aniquilado, que se dispõe a ser convulsionado em outros desenhos, é o radical operativo do meio gráfico. Destaco aqui a gravura e suas operações fundamentais de contato, transferência e reprodução. Quando observamos uma tiragem deduzimos a relação entre a imagem que ali se repete e a matriz que a promove em multiplicidade. Conhecendo o funcionamento da impressão, que disciplina e instrumentaliza essa possibilidade do desenho, podemos encontrar, na constatação do encadeamento causal, a sensação confortante de justificar o fenômeno imagético manifesto na superfície sensível do papel. Ao se observar a materialidade da matriz, da tinta, do suporte e deduzir as relações de correspondência com a imagem, é comum atingir certa satisfação esclarecedora, como se ali se revelasse um sentido seguro sobre o acontecido: tal mancha ou linha provém daquele sulco entintado. Antes mesmo de indagar uma significação, a imagem é justificada como fruto de um processo causal. Mas, ao observarmos um desenho, esse tipo de nexo não é estabelecido pela mesma via, pois não se apresentam matrizes como evidências materiais que o justifiquem. Atualmente empregamos a palavra clichê em um sentido figurado, pejorativo, para denotar aquela forma pronta, desgastada pelo uso e empobrecida pela sucessiva reprodução. O termo provém de uma técnica da indústria gráfica capaz de gerar e empregar uma matriz em relevo, também chamada de estereótipo. A técnica do clichê é 37 a emblemática instrumentalização da disponibilidade promíscua do desenho em desdobrar-se continuamente, em repetir-se e alterar-se de modo a contribuir com o desenhável. As matrizes do desenho não são de natureza exclusivamente material e sensível, portanto o desenho acaba sendo analisado e discutido por algum critério de semelhança que reivindica intensamente o inteligível, seja pela via visual ou verbal. Ao afirmar que “a escrita é metacódigo da imagem”, Flusser (2002, p. 10) argumenta pela dialética entre imaginação e conceituação: textos e imagens negando-se e reforçando- se uns aos outros. Seja qual for a trajetória histórica dessa relação, é evidente a força do texto na determinação dos modelos representacionais nos últimos cinco séculos. Basta observar a extensa conceituação da perspectiva linear cônica, desdobrando-se recentemente nos modelos computacionais, o que aproxima estranhamente as relvas em estruturas modulares na pintura de Uccello com as relvas renderizadas em jogos eletrônicos. Os textos que conceituam e sistematizam as normas de representação priorizam determinadas experiências visuais, consolidando um olhar hegemônico ao explorar uma noção de desenho como “técnica de representação” baseada nas correspondências da linha de contorno com as experiências sensíveis e viabilizadas por uma série de competências do desenhista (Sardo, 2008). Para Molina (2006, p. 175), representar é um “ato controlado e difícil de evocações e silêncios estabelecidos por meio de signos que somos capazes de decifrar por sua preexistência na memória histórica”. Tais signos podem ser pensados como unidades mínimas em certas técnicas de representação visual, como cada um dos tipos (análogos operacionalmente ao clichê) que compõem a matriz montada para imprimir- se uma página de texto. Cada sistema representacional do desenho determinando as unidades a seu modo, de acordo 38 com suas características. Mas como o desenho não está contido nesses sistemas, sendo, ao contrário, sua condição, ele comumente transgride suas bordas, esburacando-as e desrespeitando essas unidades mínimas. Mesmo que sejam relativamente determináveis em um código específico, os tipos são lançados nas sombras quando um desenho convulsiona em outro. Nesse sentido, se desenhar é uma escrita, sua prática está constantemente aberta, em cada instante, à reinvenção do alfabeto. Conforme lembra Agamben (2007, p. 52), “o ser da imagem é uma geração contínua”. Diego Rayck Referências Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Flusser, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. Molina, Juan José Gómez (org). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2006. Paixão, Pedro Abreu Henriques. Desenho – A transparência dos signos: Estudos de teoria do desenho e de práticas disciplinares sem nome. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. Pamuk, Orham. O meu nome é vermelho. Lisboa: Presença, 2014. Sardo, Delfim. Desenhar o vento. In: Romão, André; Sena, Gonçalo; Luz, Nuno da (orgs). Atlas Projecto de Desenho. Lisboa: Associação Avalanche, 2006. 39 M758 Montagens : nos espaços fílmico, expositivo e impresso / textos de Aline Dias (org.), Diego Rayck, Rodrigo Amboni, �urie �aginuma. – Vitória : Cousa, 2019. 80 p. , fots. Inclui referências bibliográficas ISBN: 978-85-9578-107-8 1. Arte. 2. Criação (Literária, artística, etc.). 3. Arte contemporânea. 4. Cinema e literatura. 5. Espaço e tempo. I. Dias, Aline. II. Rayck, Diego. III. Amboni, Rodrigo. IV. �aginuma, �urie. CDU: 7 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 projeto gráfico e edição: Aline Dias revisão: Eleonora Smits e �urie �aginuma selo agradecimentos aos autores e colaboradores do projeto: Camila Silva, Diego Rayck, Rodrigo Amboni, �urie �aginuma; a FAPES; UFES; Saulo Ribeiro; equipe vão: Aline Dias, Amanda Amaral, Barbara Thomaz, Gisele Ribeiro, Natália Farias, Piêtra Ara�jo, Raquel Garbelotti, �urie �aginuma. Este livro integra o projeto Montagens nos espaços fílmico, expositivo e impresso, realizado com apoio financeiro FAPES, Edital FAPES/CNPq Nº 04/2017 Programa Primeiros Projetos. Distribuição gratuita.