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Cartografia de novos territórios

2017

A estrutura variável dos territórios contemporâneos torna problemático todo mapeamento. Os aparelhos óticos alteraram radicalmente nossa percepção geográfica. A percepção só pode se fazer por meio de instrumentos, não é mais dada pela experiência. As perspectivas aéreas _ como o GoogleMap _ redefiniram a cultura visual, com sua ilusão do acesso absoluto ao mundo. Os reordenamentos intensivos da paisagem, no entanto, colocam novos desafios para a arte. A arte aérea nos torna conscientes desta nova paisagem abstrata.

CARTOGRAFIA DE NOVOS TERRITÓRIOS A estrutura variável dos territórios contemporâneos torna problemático todo mapeamento. Como cartografar esta geometria em mutação, constituída por megacidades extensas e descontínuas e paisagens massivamente transformadas pela industrialização? O espaço demarcado por monumentos, radiais ou fronteiras implica em visão de longe, distâncias invariáveis, perspectiva central. Nestes novos territórios, porém, não se tem mais referências. Apenas uma variação contínua de orientações, ligadas à observação em movimento. O espaço não é visual: não há horizonte, nem perspectiva, nem limite, contorno ou centro. Estamos sempre no seu interior, no meio. É a questão de uma frota naval: não se vai mais de ponto a outro, mas se toma todo o espaço de um ponto qualquer. Não se trata mais da travessia de um oceano ou continente, mas de um deslocamento sem destinação no espaço e no tempo. Ocupar um espaço aberto, com um movimento turbilhionário cujo efeito pode surgir de qualquer ponto. Perde importância a localização geográfica: trata-se de se espalhar por turbulência no espaço, ocupando-o em todos os pontos1. Um outro tipo de percepção afirma-se aqui. A astronomia criou um padrão de localização para quem está num espaço sem referências: a observação das estrelas. Ela estabelece pontos fixos. Aqui, porém, o observador está sempre em deslocamento, sem referências estáveis. Não se percorre este espaço como o marinheiro, com uma carta astronômica, mas como o nômade ou o submarino atômico: sem pontos fixos. Ocorre uma perda das escalas fixas. Não se tem mais como medir os elementos a partir de uma dimensão qualquer. As referências não têm um modelo visual, que possa servir a um observador imóvel externo. Temos percursos contínuos e sem destinação em espaços não demarcados: tudo o que resta são diferenciais de velocidade, retardamentos e acelerações 2. Difícil mapear este espaço fluído e dinâmico. Os limites administrativos não servem para contornar esses fluxos imperceptíveis, estas relações de proximidade e distância, que se fazem independentemente de toda métrica. São relações não-localizáveis. O território passa a ser a distância crítica entre as situações. 1 2 P. Virilio, L’espace critique, Christian Bourgois ed., Paris, 1984. G. Deleuze / F. Guattari, Mille Plateaux, Minuit, Paris, 1980. 1 Os aparelhos óticos alteraram radicalmente nossa percepção geográfica. Eles projetam a imagem de um mundo que, embora desconectado de nossa experiência individual, parece ser imediatamente acessível. A aproximação do próximo e do longínquo abole nosso conhecimento das distâncias e das dimensões. A percepção completa da situação só pode se fazer por meio de instrumentos. Ocorre uma passagem da visão à visualização. Planos abstratos substituem o mapa topológico, a memória topográfica dá lugar a uma ótica geométrica. Esse modo de percepção busca parâmetros em que o território se configura como resultado de um conjunto de informações, onde heterogeneidade e indeterminação são constitutivas, em vez de ser imediatamente percebida como uma imagem. Uma abordagem que já anuncia as formas mais contemporâneas de se entender os processos de mapeamento, baseados na exploração intensiva e crítica de múltiplas informações. As perspectivas aéreas _ como o GoogleMap _ redefiniram a cultura visual, com sua ambição a uma retórica universal, a ilusão do acesso absoluto ao mundo. Já o sensoriamento por satélite, por remeter a fenômenos não imediatos e fragmentados, se transformou em instrumento de gerenciamento corporativo e governamental. O mapeamento parece ter se tornado um aparato no qual somos incapazes de interferir. Como então cartografar essas grandes escalas? Estamos condenados aos dois extremos, a percepção ocular própria ao indivíduo, por um lado, ou a visualização informacional instrumentalizada, por outro? Poderiam ser desenvolvidas estratégias alternativas de operação? Procedimentos que levem em conta os limites da nossa percepção individual, o caráter invisível dos processos complexos e abstratos, mas que permitam apreender aspectos não revelados pelos aparatos convencionais. * O que está em jogo aqui são os limites da figuração, a incapacidade da mente humana para representar as enormes forças da natureza e da metrópole. Uma forma de representar uma organização da produção e do espaço, uma rede de poder e controle, que ainda são de difícil compreensão por nossa imaginação. Não temos ainda o equipamento perceptivo necessário para enfrentar essas novas dimensões espaciais. Estes espaços desconcertantes tornam impossível o uso da antiga linguagem dos volumes, já que não podem ser apreendidos. Esta mutação do espaço ultrapassou a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição 2 no mundo exterior. Uma situação, em que uma nova experiência da tecnologia da cidade transcende todos os velhos hábitos de percepção corporal, que as descrições de Benjamim da Paris baudelariana só anunciam. Uma disjunção entre o corpo e o ambiente urbano que indica nossa incapacidade de compreender os processos complexos de reestruturação da metrópole contemporânea, de mapear a enorme rede global de produção e comunicação descentradas em que estamos presos como indivíduos. Todas as tentativas de mapear a cidade através da experiência da rua _ a deriva benjaminiana ou os planos afetivos dos situacionistas _ implicavam a expectativa de uma renovação da percepção. Mas, no universo totalmente construído e elaborado do capitalismo tardio, não há lugar para essa renovação3. Se na cidade tradicional, do mercado, a experiência limitada e imediata dos indivíduos era ainda capaz de abranger a forma social e econômica que a regula, hoje isso não ocorre mais. A legibilidade da paisagem das cidades era relacionada à imaginabilidade, à capacidade de evocar uma imagem forte no observador. Pressupunha referências visuais, um domínio sensorial do espaço, através da experiência e da observação ocular. Mas a configuração atual impede o mapeamento mental das paisagens urbanas. As cidades não permitem mais que as pessoas tenham, em sua imaginação, uma localização, correta e contínua com relação ao resto do tecido urbano. A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais com o lugar onde ela se dá. Essas coordenadas estruturais não são mais acessíveis à experiência imediata do vivido e, em geral, nem conceituadas pelas pessoas. Dá-se um colapso da experiência, pressuposto das intervenções artísticas que visavam um reordenamento do espaço urbano e da sua apreensão pelo observador passante. Hoje têm-se sujeitos individuais inseridos em um conjunto multidimensional de realidades radicalmente descontínuas. Um espaço abstrato, homogêneo e fragmentário. O espaço urbano perdeu situabilidade _ uma inscrição precisa em dimensões geográficas, acessíveis à experiência individual. Instaura-se um problema de incomensurabilidade entre o construído e o projeto, o edificado e o entorno, os diferentes espaços da cidade. Torna-se impossível representar. Aquilo que a imagem fotográfica, por mais abrangente que seja, não dá conta. O espaço hoje é sobrecarregado por dimensões mais abstratas. O problema de mapeamento, de posicionamento do indivíduo neste sistema global complexo, é também de representabilidade: embora afetados no cotidiano pelos espaços das corporações, não temos como modelá-los 3 F. Jameson, Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism, Duke UP, NY, 1991. 3 mentalmente, ainda que de forma abstrata. Ocorre uma ruptura radical entre a experiência cotidiana e esses modelos de espaços abstratos. As periódicas transformações nos parâmetros da experiência e da percepção do espaço e do tempo, comprimidos pelo desenvolvimento da técnica e dos meios de transporte e comunicações, engendram reavaliações nos modos de representar o mundo. As críticas ao mapa como instrumento totalizante, dedicado à homogenização das diferenças, surgem quando se torna evidente a falta de meios para representar as mudanças de dimensões do espaço-tempo4. As novas dimensões do mundo globalizado exigem uma nova cartografia: das dinâmicas, dos fluxos, das reconfigurações permanentes e variáveis. As perspectivas aéreas redefiniram a cultura visual, com sua ambição a uma retórica universal, mas guardavam uma proximidade aos mapas: obedeciam às determinações do espaço legível. Espaço–tempo não-visuais, ao contrário, evidenciam os limites do mapeamento convencional. * Como a arte enfrenta essa questão? Os reordenamentos intensivos da paisagem colocam novos problemas de percepção e representação. A arte deve nos tornar conscientes desta nova paisagem abstrata, cujas linhas transcendem nossas concepções da natureza. Aqui, simplesmente observar não é solução. A arte aérea tem foco no espaço não-visual. O engajamento com as grandes escalas leva à substituição da paisagem imediata por uma nova paisagem: abstrata, dotada de escalas de tempo – espaço que escapam à experiência individual. A noção de scanning foi introduzida por Carl Andre e Robert Morris como um modo de ver em grande escala, enfatizando a horizontalidade e a distância. É um tipo de observação que, em vez de fixar-se num objeto, se faz percorrendo horizontalmente uma área. Se faz por varredura. A distância se impõe para cada objeto, o horizonte valendo tanto quanto o centro5. A varredura é também um modo de observação próprio do radar e dos satélites. Sistemas de ver possibilitados por equipamentos avançados de observação. Para grandes extensões, escalas transcontinentais, planetárias. A varredura é um dispositivo que não corresponde mais ao dispositivo ocular, à organização do espaço feita pelo olho. A visão periférica, lateral, horizontal, em vez do foco centrado num objeto, serve para enfrentar a grande escala. Um modo de ver já exigido por configurações pré-históricas, como as linhas de Nazca. Essa trama de linhas traçadas numa planície desértica, pelo simples 4 5 D. Harvey, The Condition of Postmodernity, Blackwell, Cambridge, 1990. R. Morris, Continuous Project Altered Daily, MIT, Cambridge, 1995. 4 método de retirar pedras, feita há cerca de 10 mil anos, provoca impacto quando vista do alto, mas é quase invisível do chão. Aqui são as condições da percepção nessa escala que interessam a Morris. De perto, diz ele, as linhas simplesmente não se revelam. É só ao nos colocarmos numa linha, de modo que ela se estenda até o horizonte, que elas ganham alguma clareza. Além disso, essa definição só ocorre a longa distância, quando o efeito da perspectiva comprime o alongamento e reforça os lados. É só olhando para frente, em vez de para baixo, por causa da grande extensão das linhas, que as irregularidades desaparecem e o padrão retilíneo emerge. Isso se dá quando, posicionados numa linha, a vemos encontrar o horizonte perpendicularmente. Essas linhas instigam uma observação do espaço, não de objetos. Uma vez que essas formas são tão grandes, praticamente incompreensíveis do solo, elas pressupõem uma overview. Contradição intrínseca à grande escala: a visão do observador é pressuposta panóptica, capaz de abarcar as formas abstratas ali delineadas, mas ao mesmo tempo os padrões criados só podem se revelar fragmentariamente. Daí o conceito essencial de mapeamento: fusão do real e do abstrato. O mapa introduz a idéia de uma ‘visão’ que abrange o que nenhum ponto de vista pode abarcar. O mapeamento vem a ser a primeira imagem de uma paisagem que não pode ser apreendida diretamente pelo olho. Um modo de percepção não-ocular. * Não por acaso os artistas iriam também, desde logo, dedicar-se à observação da paisagem industrial e de grandes obras de engenharia, como minas, estradas, barragens e aeroportos. Essas estruturas, denotando uma escala imensa, são um modo radicalmente novo de organizar o terreno. Investigar a forma física desses projetos pode gerar inusitada informação estética. Toda a obra de Robert Smithson gira em torno da percepção de grandes intervenções na paisagem. Ele desenvolveu obras de land art e projetos para grandes áreas industriais, terminais aéreos e minas. A questão para ele reside na relação entre a paisagem e a visão aérea. Nossa noção de vôo ainda depende da antiga idéia de velocidade através do espaço. É preciso desenvolver um novo sentido, baseado no tempo instantâneo, resultando numa imobilização do espaço, mais evidente ainda nas extremas altitudes dos satélites. Para Smithson, os aterros, escavações, estradas e pátios têm potencial estético. Um novo modo de ordenar o terreno, um tipo radical de construção que abarca grandes extensões de terra e água. A experiência mental destas operações é essencial. Nas imagens aéreas, pontos, linhas e manchas 5 estabelecem uma nova sintaxe dos lugares. Esses grandes projetos permitem extrair dos sítios associações que permanecem invisíveis na semântica convencional do espaço. A questão de como criar obras de arte em minas ou ao redor de aeroportos nos confronta com grandes escalas de tempo e espaço. Ao mesmo tempo, essa “arte aérea”, para ser vista do alto, é remota aos olhos do espectador. Aqui não cabe simplesmente observar no plano do olho. A fotografia aérea revela o quão pouco há para ver. Por isso Smithson desenvolveu, paralelamente aos seus projetos e intervenções em grandes áreas industriais, o dispositivo do não-lugar (nonsites). Estes sítios colocam, por causa de sua inacessibilidade geográfica, de suas escalas, a questão da sua apreensão pelo público. Como dar a ver estas situações complexas e distantes? Daí a realização de exposições em galerias com materiais relativos aos lugares. Mas a relação entre o lugar e o não-lugar nunca será um mero registro, uma representação do que existe no local. O não-lugar é uma espécie de mapa que aponta para um lugar específico, mas um mapa feito de fragmentos (material recolhido, desenhos, cartografia, fotos, filmes, textos) que não pretendem reconstituir sua configuração. Assim, todo reconhecimento do território deve ser entendido como reinscrições de mapas, mais do que experiências das quais os mapas seriam apenas instrumentos. Ininteligível se vista de perto, a situação em grande escala só é completamente intuída pela introdução de um conjunto de informações sobre ela6. O não-lugar implica em não ver. Ele nega a primazia da percepção. Promove um deslocamento do ponto focal, questionando a possibilidade de mapear. Uma reflexão sobre o modo que concebemos o espaço e o tempo, que resultaria em mapas tridimensionais abstratos e combinações complexas de materiais, textos e imagens. Smithson opera um radical deslocamento da noção de ponto de vista, que não é mais uma função de uma posição física, mas de um modo (fotográfico, cinemático, textual) de confronto com a obra 7. Estas situações são paisagens abertas, em que múltiplos e contraditórios pontos de vista revelam um conflito de ângulos e ordens, um senso de simultaneidade que elimina toda referência anterior. Uma área surda é uma região onde toda lógica foi suspensa. Aqui não vigoram relações 6 7 G. Shapiro, Earthwards, University of California Press, Berkeley, 1995. C. Owens, Beyond Recognition, University of California Press, Berkeley, 1992. 6 comensuráveis. As paisagens indiferenciadas da entropia demandam evitar qualquer parâmetro visual ou estrutural de orientação espacial ou temporal 8. A fotografia aqui interessa não apenas por sua capacidade documental, mas principalmente por seu potencial de colagem, montagem e disposição seqüencial. Uma exploração mais radical: em vez de simplesmente fotografar as paisagens do exterior, Smithson coloca-se dentro delas, retratando-as do interior, olhando através delas para outras áreas e focalizando seus elementos em detalhe. Planos abertos, médios ou em close, para baixo ou para cima, mostrando a paisagem nos menores detalhes ou as mais incomensuráveis perspectivas. As fotografias aéreas mostram paisagens terrestres alteradas, não identificáveis _ sem horizonte nem profundidade, sem buracos nem saliências, achatadas, geometrizadas, metomorfoseadas em texturas, em configurações formais a serem interpretadas9. A visão aérea define um modo distinto de percepção do espaço, que não depende mais da posição ortogonal do observador. A vista aérea não está presa a uma estruturação fixa. Ela literalmente não tem sentido: é possível olhá-la de todos os lados, ela é sempre coerente. A fotografia aérea levanta a questão da interpretação. Vistas de muito alto, as dimensões esculturais do espaço são tornadas muito ambíguas: a diferença entre ocos e saliências, convexo e côncavo, apaga-se. Eles transformam o real num texto a ser lido e decifrado10. Para Smithson os vôos à baixa altitude eram mais adequados para este tipo de exploração da paisagem. Estas fotos tornam-se um mapa de longitudes emaranhadas e deslocadas latitudes. Distâncias são medidas em graus de desordem. Uma paisagem que, no limite, desafia toda visualização. 8 R. Sobieszek, Robert Smithson: Photo Works, in Robert Smithson: Photo Works, Los Angeles County Museum of Art, LA, 1993. 9 P. Dubois, L’act photographique et autres essais, ed. Nathan, Paris, 1990. 10 R. Krauss, Le Photographique, ed. Macula, Paris, 1990. 7 CARTOGRAFIA DE NOVOS TERRITÓRIOS A estrutura variável dos territórios contemporâneos torna problemático todo mapeamento. Os aparelhos óticos alteraram radicalmente nossa percepção geográfica. A percepção só pode se fazer por meio de instrumentos, não é mais dada pela experiência. As perspectivas aéreas _ como o GoogleMap _ redefiniram a cultura visual, com sua ilusão do acesso absoluto ao mundo. Os reordenamentos intensivos da paisagem, no entanto, colocam novos desafios para a arte. A arte aérea nos torna conscientes desta nova paisagem abstrata. NELSON BRISSAC PEIXOTO Nelson Brissac é filósofo, trabalhando com questões relativas à arte e ao urbanismo. Doutor pela Universidade de Paris I – Sorbonne, é professor do curso Tecnologias da Inteligência e Design Digital, da PUC-SP. É organizador e curador de Arte/Cidade, um projeto de intervenções urbanas em São Paulo, desde 1994. Publicou: A sedução da barbárie, Brasiliense, 1982; Cenários em ruínas, Brasiliense, 1987. América, Companhia das Letras, 1989; Paisagens Urbanas, Ed. Senac, 1996; Brasmitte, catálogo, 1997; Arte/Cidade Intervenções Urbanas, Editora SENAC, 2002. Está preparando um projeto territorial na região sudeste do Brasil (MacroBR) e coordenando a implantação do CIAC - Centro da Indústria, Arte e Cidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Links www.artecidade.org.br www.mges-brasil.org 8