DICIONÁRIO:
CEM FRAGMENTOS BIOGRÁFICOS
A IDADE MéDIA EM TRAjETóRIAS
Tempestiva
Editora Tempestiva, 2020
© Todos os direitos reservados.
Capa: Genilda da Silva Alexandria.
Revisão: Guilherme Queiroz de Souza e
Renata Cristina de Sousa Nascimento.
Edição/diagramação: Ivan Vieira Neto.
Conselho Editorial
Prof.a Dra. Cíntia Régia Rodrigues
Prof. Dr. Fernando Matiolli Vieira
Profa. Dra. Iara Toscano Correia
Profa. Dra. Mônica Martins da Silva
Profa. Dra. Rita de Cássia Oliveira Reis
Prof. Dr. Ronaldo Amaral
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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D546
Dicionário: cem fragmentos biográficos. A idade média em trajetórias /
Guilherme Queiroz de Souza & Renata Cristina de Sousa Nascimento (org.). Goiânia: Tempestiva, 2020.
ISBN 978-65-992343-0-9
1. Dicionário. 2. Biografias. 3. Idade Média. I. Souza, Guilherme Queiroz de. II.
Nascimento, Renata Cristina de Sousa.
CDU: 929”04/14”(038)
CDD: 920.03
OrganizadOres
Guilherme Queiroz de Souza
Renata Cristina de Sousa Nascimento
DICIONÁRIO:
CEM FRAGMENTOS BIOGRÁFICOS
A IDADE MéDIA EM TRAjETóRIAS
Tempestiva
Goiânia, 2020
ANA COMNENA
João Vicente de Medeiros Publio Dias
ana cOmnena (Ἄννα Κομνηνή, transliterado: Anna Komnēnē) – princesa imperial, historiadora e patrocinadora de um círculo literário-filosófico – é sem dúvida uma das figuras de maior destaque na história do Império Romano Oriental.
Ela nasceu em Constantinopla no dia 1º de dezembro de 1083 (Alexíada, 6, viii, 1),
a primeira filha do imperador bizantino Aleixo I Comneno (1081-1118) e da imperatriz Irene Ducena. Ao nascer, recebeu o título porfirogênita (porphyrogēnnitos),
pois concebida no Quarto Púrpura do Palácio Imperial de Constantinopla. Logo
depois, ela foi prometida a Constantino Ducas, com quem Aleixo I compartilhava o trono, e aclamada como imperatriz pelas lideranças do senado e do exército
(Alexíada, 6, viii, 3).
Antes de seu oitavo ano de vida, isto é, em 1091, Ana Comnena foi levada
para viver com sua futura sogra, a ex-imperatriz Maria da Alânia. Ana sugere
que Maria da Alânia causou grande impacto nela, talvez a inspirando em seu
gosto pelos estudos. (Alexíada, 3, i, 4). No prefácio da Alexíada, Ana Comnena
apresenta seu curriculum vitae: afirma que aprendeu o uso correto do idioma
grego e a retórica, leu cuidadosamente os tratados de Aristóteles e os diálogos
de Platão e que fora educada nas artes do quadrívio (Astronomia, Geometria,
Aritmética e Música) (Alexíada, prefácio, i, 2). Além do mais, teria se aprofundado nos estudos da ciência médica, o que lhe permitiu discutir de igual para igual
com os médicos que cuidaram de seu pai em sua velhice e em seu leito de morte
(Alexíada, 15, xi, 3), assim como dar um relatório detalhado sobre a deterioração
da saúde dele na Alexíada (Alexíada, 15, xi, 1-15).
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Além do currículo acima mencionado, Ana Comnena não fornece muitos
detalhes sobre a sua educação. Contudo, seu panegirista, Jorge Torniques, nos
informa que os primeiros tutores de Ana foram eunucos palacianos letrados.
A princípio, seus pais resistiram à idéia, pois temiam que as obras pagãs da
Antiguidade que formavam o núcleo da educação bizantina poderiam exercer uma influência negativa sobre a jovem princesa. Segundo Torniques, foi
somente após o casamento com Nicéforo Briênio – de acordo com ele, a alma
gêmea intelectual de Ana Comnena – que ela pode se dedicar livremente aos
seus estudos (JORGE TORNIQUES, Elogio a Ana Comnena, 263).
Como mencionado acima, Ana Comnena havia sido prometida a Constantino Ducas, filho do imperador Miguel VII Ducas (1071-1078). Na época da
ascensão de Aleixo I, Constantino era ainda uma criança de sete anos. Aleixo o
coroou co-imperador a fim de recompensar o apoio dado por Maria da Alânia,
ex-imperatriz e mãe de Constantino, ao seu plano de tomar o poder. Esse apoio
deu traços de legitimidade ao golpe militar que deu início ao seu governo. A
posição de Constantino Ducas era, porém, frágil e ficou ainda mais vulnerável com o nascimento de João Comneno, o primeiro filho de sexo masculino de
Aleixo I e Irene Ducena, em 1087. Ao contrário de Ana Comnena, João Comneno
foi coroado imperador somente no seu quinto ano de vida, em 1092 (VARZOS,
1984, p. 204). Nesse ínterim, Constantino Ducas deixou de ser aclamado junto a
Aleixo. Cálculos políticos explicam essa “demora”. Ainda assim, o noivado entre
Ana Comnena e Constantino Ducas foi mantido. Talvez a decisão de enviar a jovem Ana para morar com sua futura sogra tenha sido uma forma de compensar
a mãe de Constantino pela evidente quebra do acordo firmado em 1081, quando
Aleixo tomou o poder.
As consequências desses desenvolvimentos interfamiliares podem ser
observadas dois anos depois, em 1094, quando Aleixo enfrentou uma conspiração de assassinato liderada por Nicéforo Diógenes com a qual Maria da Alânia,
a mãe de seu futuro genro Constantino Ducas, estava envolvida (Alexíada, 9,
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v-x). Esse evento selou o fim do noivado entre Ana Comnena e Constantino
Ducas, que faleceu pouco tempo depois. Assim, Aleixo procurou outra união
politicamente vantajosa para sua filha mais velha. Em 1097, ela casou-se, assim, com Nicéforo Briênio, representante de uma importante linhagem, cuja
origem era a cidade de Adrianopla (atual Edirne, Turquia). Ele recebeu na ocasião o título de panhypersebastos e mais tarde o de kaisar (césar), o segundo mais
importante da hierarquia de títulos bizantinos. Por essa razão, Ana Comnena
é constantemente mencionada nas fontes como kaisarissa (VARZOS, 1984, p.
179-181).
Tanto Ana Comnena quanto Nicéforo Briênio se tornaram gradativamente mais influentes junto a Aleixo I. Ela conta como os pedidos de misericórdia feitos por ela e por sua mãe convenceram Aleixo a não cegar os irmãos
Anemas, que haviam conspirado contra ele por volta do ano 1100 (Alexíada,
12, vi, 7-9). Como mencionado acima, Ana Comnena presidiu o conselho de
médicos que cuidavam da saúde de seu pai no final de sua vida. Briênio, por
sua vez, foi confiado pelo imperador com funções militares contra os cruzados
(Alexíada, 10, ix, 8-10) e contra os turcos (Alexíada, 15, v, 7-9), e assistiu Aleixo
em seu trabalho pastoral para converter os hereges paulicianos em Filipópolis,
na Trácia (Alexíada, 14, viii, 9).
Os historiadores João Zonaras e Nicetas Choniates afirmam que Nicéforo Briênio adquiriu uma posição de poder e autoridade no final da vida de
Aleixo, governando o Império como seu regente. Ambos os autores afirmam
que a proximidade da morte do imperador trouxe a tona tensões entre João
Comneno e sua irmã mais velha, Ana Comnena, e que a imperatriz Irene favorecia sua filha mais velha e seu marido, enquanto o imperador doente preferia
seu filho mais velho. Essa insegurança teria forçado João Comneno a reforçar
alianças através de juramentos e, quando Aleixo estava prestes a falecer, ele
se encastelou no palácio imperial com seus aliados, onde estava no momento
da morte do pai, permanecendo lá até se sentir seguro o suficiente para sair
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(VARZOS, 1984, 104f).
Coniates relata também uma tentativa de assassinar João II Comneno
no início de seu reinado organizada por ou em benefício de Ana Comnena e
Nicéforo Briênio. Por causa disso, João II teria inicialmente confiscado bens
de Ana Comnena, mas logo depois a restituiu numa demonstração pública de
conciliação (VARZOS, 1984, p. 184f). Numa monografia recente, Leonora Neville contesta a veracidade desses relatos, pois tanto Zonaras quanto Coniates
eram críticos das políticas estabelecidas pelos Comnenos; portanto, o relato
das mulheres da família conspirando contra os homens seria um libelo com
objetivo de acusar os imperadores dessa dinastia de serem efeminados (NEVILLE, 2016). Embora tal hipótese possa ser questionada, Neville está correta
ao afirmar que é equivocada a imagem prevalente nos Estudos Bizantinos da
vida de Ana Comnena após a morte de Aleixo I, como se ela tivesse sido uma
mulher amargurada vivendo no isolamento de um monastério, destilando
seus ressentimentos na história do reinado de seu pai, a qual ela dedicou o
resto da sua vida a escrever.
Ana Comnena não vivia isolada, mas acompanhada do marido, com
quem ela teve seis filhos, e cercada de um círculo de intelectuais e escritores,
entre os quais Jorge Torniques, Miguel de Éfeso (JORGE TORNIQUES, Elogio a Ana Comnena, 283) e João Tzetzes (VARZOS, 1984, p. 194). Torniques
nos informa que Ana Comnena era profundamente interessada pela filosofia
aristotélica. Embora aparentemente não tenha escrito nada sobre o tema do
próprio punho, ela provavelmente encomendou comentários sobre o corpus
aristotélico a um de seus protegidos. Robert Browning lança a hipótese de que
as discussões aristotélicas promovidas por Ana Comnena não se limitavam a
glosas, mas incluíam um esforço em direção a uma sistematização filosófica
neo-aristotélica (BROWNING, 1962).
O legado intelectual pelo qual Ana Comnena é mais conhecida é a Alexíada,
um relato do reinado de seu pai e a primeira história escrita por uma mulher
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na tradição historiográfica ocidental. Aleixo I não queria que uma história de
seu reinado fosse escrita, mas Irene Ducena decidiu encomendar uma depois
de seu falecimento. Ela incumbiu a tarefa a seu genro, Nicéforo Briênio. Porém,
ele faleceu antes de finalizar a obra, deixando um relato sobre as histórias das
famílias Comneno, Ducas e Briênio até pouco tempo antes da ascensão ao trono
de Aleixo I em 1081, cujo título dado pelo autor é “Materiais de História”. Por um
senso de dever aos pais e ao marido, Ana Comnena decide terminar a obra não
finalizada de Nicéforo Briênio (ALEXÍADA, prefácio, 3). Além do senso de dever
filial e marital, que justificaria junto aos leitores o fato inédito de uma história
escrita por uma mulher, Ana Comnena pode ter intencionado apresentar uma
versão do passado favorável a sua família materna, com a qual ela se sentia mais
ligada e da qual ela se apresentava como herdeira direta (VILIMONOVIČ, 2019).
A Alexíada é uma história com fortes ambições literárias. Seu título, uma
referência a Ilíada de Homero, deixa claro que Ana Comnena projeta seu pai
como um herói de uma obra de natureza épica, o que fica claro quando ela o
retrata como se lutando sozinho contra inimigos externos e internos. Ainda
assim, a autora segue de perto os modelos estabelecidos por Tucídides: foco
na política e na guerra e o uso de fontes testemunhais. Ao contrário de outros autores bizantinos, Ana Comnena faz questão de apresentar suas fontes,
sejam documentos oficiais, sejam testemunhos de generais aposentados. Sua
narrativa é bem estruturada, embora não siga sempre a ordem cronológica dos
eventos, e com personagens complexos. A Providência Divina aparece pouco
em sua obra. Segundo Ana Comnena, na maior parte do tempo, as ações humanas movem a História. O tom geral é obviamente elogioso ao seu pai, mas
a Alexíada não é um panegírico: os pontos baixos durante o reinado de Aleixo, como derrotas militares e tentativas de deposição, são relatados detalhadamente, embora de forma apologética. A Alexíada não somente é uma fonte
primária para os eventos políticos em Bizâncio no final do século XI e início do
XII, mas também para o início do estabelecimento dos povos turcos na Anatólia
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e para a Primeira Cruzada (1094-1099).
Ana Comnena faleceu algum tempo antes de 1155, provavelmente em 1153
no Monastério da Mãe de Deus Cheia de Graça (Theotokos Kecharitomene) fundado por Irene Ducena, que havia determinado em seu documento de fundação
(typikon) que apartamentos deveriam ser construídos como anexo à instituição, os quais estariam a disposição de suas filhas, mas elas não seriam obrigadas a seguir o estilo de vida monástico (NEVILLE, 2016, p. 133-138). É plausível
considerar que Ana Comnena tenha se mudado para lá depois do falecimento
de seu marido sem, contudo, adotar o hábito monástico, pois, segundo Torniques, ela somente o faz no final de sua vida depois de aparentemente sofrer um
derrame (JORGE TORNIQUES, Elogio a Ana Comnena, 309f).
Referências
ANA COMNENA. Alexíada. In: REINSCH, Diether Roderisch (trad.). Anna
Komnene Alexias. Colônia: DuMont, 1996.
BROWNING, Robert. An Unpublished Funeral Oration on Anna Comnena.
Proceedings of the Cambridge Philological Society, New Series, n. 8, vol. 188, 1962,
p. 1-12.
JORGE TORNIQUES, Elogio a Ana Comnena. In: DARROUZÈS, Jean. Georges
et Dèmètrios Tornikès: Lettres et Discours. Paris: Éditions du centre national de
la recherché scientifique, 1970, p. 220-323.
NEVILLE, Leonora. Anna Komnene. The Life and Work of a Medieval Historian.
Oxford: Oxford Univeristy Press, 2016.
VARZOS, Konstantinos. Ή γενεαλογία τών Κομνηνών, 1 vol. Tessalônica: Kentron Vyzantinon Ereunon, 1984.
VILIMONOVIĆ, Larisa Orlov. Structure and Features of Anna Komnene´s Alexiad:
Emergence of a Personal History. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2019.
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