O MITO DA ORIGEM DE SERÁPIS REVISITADO
Rogério Sousa1
Resumo
Apesar do impacto que o culto de Serápis teve no mundo helenístico, as origens do seu culto
permanecem pouco conhecidas. Neste artigo, confrontamos as referências às origens do deus,
as quais sugerem uma proveniência alóctone do culto, com os dados decorrentes da
etimologia e iconografia, as quais apontam claramente para uma origem autóctone do culto de
Serápis.
Palavras-chave: Serápis, Sakara, Alexandria
Abstract
Despite the impact of the cult of Sarapis in the Hellenistic world, the origins of his cult
remain unclear. In this article we put in contrast the references allusive to the origins of the
god, which suggest a foreign origin of the cult, with those relative to the etymology,
iconography and cult of the god, the later pointing out to an autochthonous origin of the cult
of the Sarapis.
Keywords: Sarapis, Saqqara, Alexandria
Rogério Sousa é Doutor em História Antiga pela Universidade do Porto – Portugal e é Investigador Integrado
do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra – Portugal.
1
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A fundação formal do culto de Serápis ocorreu entre os reinados de Ptolemeu I Sóter
e Ptolemeu II Filadelfo, sensivelmente entre 306 a.C. e 282 a.C., e constituiu um poderoso
instrumento político que os primeiros soberanos Lágidas souberam utilizar para congregar,
sob o seu domínio, uma população heterogénea e multicultural constituída majoritariamente
por egípcios e gregos, mas em que também os judeus desempenhavam um papel importante.
A difusão e a penetração do culto, tanto em Alexandria como em todo o mundo helenístico,
indiciam, no entanto, que estamos perante um fenómeno que transcende largamente a esfera
política. O sucesso do culto estava alicerçado na consistência, no alcance e no significado da
mensagem filosófico-teológica que lhe estava associada.
Um dos aspectos mais intrigantes do culto de Serápis diz respeito à própria
proveniência do culto. Segundo a lenda veiculada pelos autores clássicos, não há dúvida de
que Serápis era uma divindade asiática, originária de Sinope, no mar Negro, e revelou-se em
sonhos a Ptolemeu I. Na sequência do sonho, o fundador da dinastia ptolemaica teria trazido a
sua estátua para o Egipto para o tornar no deus tutelar de Alexandria. No tratado Isis e Osíris,
Plutarco descreve o acontecimento do seguinte modo:
Ptolemeu Sóter viu em sonhos o colosso de Plutão que estava em Sinope: ignorava a
sua existência, não conhecendo a sua forma e nunca o tinha visto antes. Nesta visão,
o colosso ordenou-lhe que transportasse o mais depressa possível esta gigantesca
figura para Alexandria. Ptolemeu, que ignorava o lugar em que se erigia, ficou em
apuros, e ao contar a sua visão aos seus amigos, encontrou entre eles um homem
chamado Sosíbio, que tinha visto um colosso parecido ao que o rei tinha visto no seu
sonho. Então Ptolemeu enviou Sóteles e Dioniso, e estes homens, depois de muitas
vicissitudes e longo tempo, apesar de contarem com a ajuda da divina providência,
conseguiram levar furtivamente o colosso. Assim que foi vista aquela figura
transportada, Timóteo e Manéton, o Sebenita, conjecturaram por meio de Cérbero e
o dragão que possuía por emblemas, que se tratava de uma estátua de Plutão, e
persuadiram Ptolemeu de que não representava outro deus a não ser Serápis. Do
lugar donde vinha não usava certamente esse nome, mas uma vez transportado para
Alexandria designou-se assim, uma vez que recebeu dos egípcios o nome de Serápis,
que é precisamente o que utilizam para designar Plutão (PLU. Isis e Osíris, 28).
O relato de Plutarco é interessante por várias razões. Em primeiro lugar, o texto
documenta o debate intercultural em torno da identidade do deus. Desde logo, é importante
sublinhar o carácter inominado deste “deus desconhecido”. O deus não revela a sua
identidade, a qual é vaticinada pelo parecer de dois sábios alexandrinos que personificam as
duas tradições esotéricas, a egípcia e a grega. São mencionados Timóteo, membro dos
Eumólpidas, a família à qual pertenciam os hierofantes dos mistérios eleusinos, e Manéton,
sacerdote de Heliópolis de origem sebenita. Os sábios concordam que o deus representado no
colosso é Plutão (ou Hades) que «recebeu dos egípcios o nome de Serápis, que é precisamente
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o que utilizam para designar Plutão». A fundação do culto de Serápis assentava, portanto,
num diálogo intercultural – podemos mesmo falar de bilinguismo cultural – que se manifestou
desde logo na criação de um culto familiar tanto para egípcios como para gregos. O facto é
que o estatuto universal do deus manifestou-se, desde logo, na sua capacidade para
estabelecer identificações sincréticas com outros deuses, quer estes fossem gregos, como era o
caso de Hades, Zeus ou Dionísio ou egípcios, como Osíris ou Ápis.
A referência a Sinope é intrigante, já que, embora seja habitualmente situada na Ásia
Menor, pode na realidade ser evocativa da colina do Sinopeión, onde se implantava o
Serapeum de Sakara. É, de resto, o próprio Plutarco que assevera a origem egípcia do culto de
Serápis, mencionando certas fontes que lhe asseguravam que o nome do deus alexandrino
designava afinal o «féretro de Ápis» (PLU. Isis e Osiris, 29); o que actualmente sabemos ser
verdade. Até para os autores clássicos, Serápis tinha, portanto, uma origem autóctone.
É justamente esta origem local que nos é apresentada por pseudo-Calístenes no
Romance de Alexandre. Alexandre, ao encontrar uma estátua do deus, reconheceu a presença
de Serápis como deus omnisciente que protegia a cidade. Para reavivar o seu culto, mandou
erguer um altar – mais tarde conhecido como o grande altar de Alexandre – onde terá
conduzido um sacrifício inaugural acompanhado por uma oração: «Tu és o deus que governa
esta terra, cujo olhar se estende pelo mundo infinito». Uma águia, simbolizando o poder real,
voou, então, sobre o altar, arrebatando um pedaço das entranhas aí depositadas e levou-o para
um antigo recinto templário, onde, mais tarde, se elevaria o Serapeum alexandrino. Aí,
Alexandre encontrou uma estátua divina entronizada que acariciava com a mão direita um
animal multiforme empunhando um ceptro com a mão esquerda, atributos por meio dos quais
facilmente se entrevê o vulto inominado de Serápis. O deus estava acompanhado por uma
virgem e o culto de ambos havia aí sido estabelecido por Sesóstris (Senuseret em egípcio)2.
Curiosamente também Arriano associa Alexandre a Serápis, mas desta feita, situa
esta ligação na Babilónia, pouco antes da morte do soberano macedónio:
Narram também as Efemérides Reais que Píton, Átalo, Demofonte, Pucestas e
Cleómenes, Menidas e Seleuco estiveram de guarda toda a noite no templo de
Serápis para perguntar ao deus se era conveniente e melhor trazer Alexandre ao
templo da divindade e suplicar ao deus pela sua cura. A resposta do deus fora,
2
Silva (2013).
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todavia, que não o deslocassem ao templo, sendo “melhor” que permanecesse onde
3
estava (ARRIANO, VII, 26, 2) .
Esta referência tem sido um dos principais argumentos para defender a origem
estrangeira do culto, já que Serapsi era justamente um dos títulos divinos do deus Enki,
significando “rei das profundezas”. Tal como no relato de Plutarco, que associa o deus
inominado a Serápis e a Plutão, a narrativa de Arriano coloca em evidência outra
manifestação babilónica do deus. Mais do que uma origem babilónica do deus, o que o relato
documenta é a associação o culto de Serápis à morte de Alexandre. Os relatos de Arriano e o
de pseudo-Calístenes apresentam-nos momentos da vida e da morte de Alexandre em que a
presença divina de Serápis já se manifesta. O vulto de Alexandre confundia-se, portanto, com
o de Serápis e, dessa forma, a simbiose insinuada entre ambos adensava a carga simbólica dos
principais lugares sagrados de Alexandria: através deles insinuava-se o perfil de Alexandre no
Serapeum alexandrino (no relato de pseudo-Calístenes) e, inversamente, a presença de Serápis
no Soma onde repousavam os restos mortais de Alexandre (no relato de Arriano). Tais relatos
não conflituam com a fundação do culto de Serápis por Ptolemeu Sóter, antes o reforçam, por
meio da intensidade da relação pessoal que se manifestava entre Alexandre e o deus
inominado4.
As narrativas clássicas da origem do culto parecem mais empenhadas em sublinhar a
associação de Alexandre ao culto de Serápis do que propriamente em identificar uma origem
alóctone.
Narrativas etiológicas à parte, a análise dos atributos de Serápis aponta claramente
para uma origem egípcia do deus. As pistas para a origem puramente egípcia do culto de
Serápis conduzem-nos a Mênfis onde, desde a fundação da monarquia faraónica (c. 3000
a.C.), se prestava um culto importante ao touro Ápis (Hap, em egípcio, lit. “corrente”, termo
conotado com o movimento da cheia do Nilo). Estas conotações à cheia detectam-se também
nos autores clássicos. Plutarco assevera que:
Mais razoáveis são aqueles que afirmam que o nome de Serápis, ao derivar de
seústhai e de sousthain, precipitar-se, lançar-se, exprime o movimento que anima o
conjunto do mundo universal (PLU. Isis e Osíris, 29).
3
Cf. Sales (2005: 106).
4
O modelo arquetípico para uma tal identificação entre Alexandre e Serápis remontava à própria tradição
faraónica onde o rei morto se identificava com Osíris. Afinal, como refere Plutarco, «Serápis é o nome comum
aplicado a todos quantos sofrem esta mudança (morte), da mesma forma de Osíris» (PLU, Ísis e Osíris, 28).
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Certo é que tradicionalmente o touro Ápis encarnava a potência viril do faraó
reinante e era tido como o ba (poder divino) do deus Ptah, o deus supremo que presidia sobre
a cidade de Mênfis e que, desde a fundação da monarquia, personificava o alcance universal
da monarquia faraónica5. Sabemos, por fontes historiográficas, que Alexandre sacrificou-se
diante do touro Ápis, num gesto político que pretendia afirmar o respeito pelas tradições
locais, mas que deve também ser visto como o ponto de partida para a definição do culto
helenístico de Serápis6. Na verdade, embora sem qualquer relevo para os autores clássicos,
este gesto de Alexandre documenta eloquentemente todo o movimento intercultural
subsequente que irá enformar e informar o culto alexandrino de Serápis.
Eleito por um conjunto de sinais distintivos, o touro Ápis era cultuado como uma
imagem viva de Ptah no próprio recinto do deus menfita. O touro divino participava em
cerimónias reais, sobretudo por ocasião da coroação e do Heb Sed7, normalmente numa
corrida ritual em que era acompanhado pelo faraó. A fertilidade e força do touro sagrado
simbolizavam o poder e a vitalidade do próprio faraó. Toda a existência destes touros estava
rodeada por um profundo sentido de sacralidade. Instalado no magnífico templo de Ptah, o
touro sagrado detinha domínios privados onde vivia com um harém de vacas e passeava-se
num pátio sagrado especialmente preparado para o efeito em que os peregrinos acorriam em
grande número em busca de sinais oraculares8. Após a sua morte, era decretado um luto
nacional que se prolongava por setenta dias, ao longo dos quais o touro sagrado era
cuidadosamente mumificado. Sintomático da grande importância deste processo é o recinto
descoberto no complexo sagrado de Ptah, onde se encontravam magníficas e monumentais
mesas de embalsamamento talhadas em alabastro especialmente confeccionadas para a
mumificação dos touros sagrados. Na sequência deste processo, o touro identificava-se com
Osíris, o deus dos mortos, passando, então, a ser designado Osir-Hap, ou seja, «Ápis
defunto». É esta manifestação funerária que está na base da designação helenizada, Serápis,
difundida no mundo greco-romano, como assevera o próprio Plutarco:
5
Sousa (2011: 165). Cf. também Acúrcio (2001: 81-82).
6
Rodrigues (2001: 46).
7
Cerimonial de regeneração do poder real celebrado, em teoria, trinta anos após a coroação do monarca.
8
Bagnall, Rathbone (2004: 97).
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A maior parte dos egípcios estima que este nome (Serápis) é composto pelos de
Osíris e de Ápis, estabelecendo assim, e querendo ensinar-nos que, em Ápis, se deve
ver uma bela imagem da alma de Osíris (PLU. Isis e Osíris, 29).
A identificação entre Osíris e Serápis decorre, portanto, da manifestação funerária do
touro Ápis e não da sua origem directa no culto de Osíris. Na verdade, na expressão Osir-Hap,
o termo «Osíris» é usado como um título e não para designar especificamente o deus Osíris.
Na tradição funerária egípcia, Osíris era efectivamente um título genérico que se aplicava
indiferenciadamente a uma divindade funerária, mais especificamente a um defunto
justificado. É justamente esse facto que está na base da mesma utilização do nome de Serápis
no contexto alexandrino. Como assevera Plutarco, «Serápis é o nome comum aplicado a todos
quantos sofrem esta mudança (morte), da mesma forma de Osíris» (PLU. Ísis e Osíris, 28).
O touro embalsamado era visto como uma manifestação de Osir-Hap, ou seja, uma
manifestação funerária de Ápis. A morte do touro sagrado e a sua subsequente mumificação e
regeneração eram vistas como um mistério profundo, que assinalava o triunfo sobre a morte e
indicava o caminho a seguir para conquistar a imortalidade.
Uma vez preparada a múmia do touro, era chegado o momento de a transportar para
a necrópole. A múmia era colocada numa barca sagrada, para vencer o lago que conduzia à
necrópole. Aí, seria o touro sepultado nas galerias subterrâneas do Serapeum ou «Morada de
Ápis», como era designado em demótico9. Escavadas e ampliadas na Época Greco-Romana,
as grandes galerias do Serapeum de Sakara albergaram várias gerações destas encarnações
taurinas, que emanavam para o Egipto a potência fecundadora do deus primordial, Ptah.
O Serapeum de Sakara era um local da mais alta importância religiosa. Para ele
confluía um grande número de visitantes de todas as proveniências e vivia-se aí uma intensa
atmosfera multicultural10. É forçoso salientar que, ainda antes da ocupação macedónica, se
constituíra aí uma comunidade multicultural que combinava os elementos autóctones
expressos em demótico (o último estádio de evolução da língua egípcia), com aqueles
derivados da cultura grega, cujo peso já era importante. Com toda a probabilidade, foi entre
esta comunidade de sábios do próprio Serapeum menfita que se gerou, de modo espontâneo e
9
Bagnall, Rathbone (2004: 100).
10
Durante o período ptolemaico, Mênfis foi dividida em quarteirões étnicos, cada um deles tendo por centro o
templo respectivo. Entre estes contava-se, pela sua antiguidade, o bairro «Fenício» que venerava a deusa Astarte
e o bairro «Grego», constituído por descendentes de militares gregos que se instalaram no Delta. Bagnall,
Rathbone (2004: 98). Eloquentes exemplos do ambiente multicultural da necrópole menfita no período
ptolemaico são também descritos em Chauveau (2000: 128-140).
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sem preocupações políticas de peso, a matriz de crenças e do culto que, mais tarde, havia de
ser capitalizada pelos soberanos Lágidas e transformar-se no culto alexandrino de Serápis.
A origem do culto de Serápis enraíza-se nesta manifestação funerária do deus Ptah.
A influência do culto menfita do touro sagrado Osir-Hap irá perdurar mesmo após a
helenização do culto de Serápis. A manifestação taurina de Ápis permanecerá sempre um
traço fundamental da iconografia de Serápis, sobretudo quando se pretendia evidenciar os
seus poderes ctónicos e o mistério da sua regeneração no mundo inferior. No próprio
Serapeum de Alexandria, o deus era representado na sua manifestação taurina nas galerias
subterrâneas, certamente de modo complementar à sua representação humana que era
cultuada no templo propriamente dito. Também nos locais de culto espalhados pelo mundo
romano, a iconografia taurina do deus se manteve, sempre conotada com o mistério da
regeneração da luz, como o Serapeum da Vila Adriana ilustra exemplarmente.
Não obstante, a caracterização helenista de Serápis transcende em larga medida esta
manifestação taurina, pelo que é importante detectar outras fontes egípcias para a
caracterização do deus. De todas as influências possíveis, é no próprio culto menfita do deus
Ptah que encontramos a melhor e mais completa correspondência com o culto helenístico de
Serápis. Embora esta relação tenha permanecido praticamente insuspeita, a verdade é que
Ptah, o deus supremo cultuado em Mênfis, apresenta todos os aspectos da definição divina do
deus alexandrino e foi seguramente aquele antiquíssimo deus egípcio que forneceu o essencial
da matriz teológica que guindou Serápis ao estatuto de deus universal. Em primeiro lugar,
Ptah, o «Belo de rosto», tal como era evocado num dos seus mais conhecidos epítetos,
personificava o soberano da criação, por excelência. A sua barba divina, larga e rectangular, é
um atributo único entre os deuses egípcios e constitui um símbolo de soberania e era, como
tal, usada unicamente pelo faraó. Como um deus ctónico, Ptah era um deus do mundo inferior
e nessa qualidade era cultuado como o provedor do povo do Egipto. O deus presidia à
fertilidade da terra, ao crescimento da vegetação − um dos seus epítetos era justamente o
«celeiro de Tatenen» ou, em tradução livre, «celeiro da colina primordial». O carácter ctónico
conferia-lhe poder sobre os tesouros minerais e, muito em particular, sobre as riquezas
auríferas. A extracção das riquezas do mundo inferior, como o ouro e as pedras semipreciosas,
estava, assim, sob a sua tutela, bem como o subsequente trabalho artesanal. Mas, acima de
tudo, Ptah era o deus supremo, pré-existente à criação, criador de todas as coisas vivas, deus
incriado, que concebeu o mundo na sua mente (coração) e o enunciou pela palavra por meio
da sua língua. Ptah era, em suma, o pilar cósmico, o poder de luz que unia o céu e a terra.
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A definição egípcia de Ptah corresponde, ponto por ponto, à caracterização
helenística de Serápis, estando certamente na base das suas reputadas prerrogativas de
cosmocrator, soberano universal, deus da fertilidade, dos infernos, mas também da luz e do
Logos criador. Portanto, é na própria caracterização egípcia de Ptah que encontramos a chave
para compreender os posteriores movimentos de identificação sincrética com cultos
helenísticos de Zeus, Hades, Dioniso e até de Hélio, facto que devemos ter em mente para
balizar a plasticidade do culto de Serápis.
O culto de Osíris, embora claramente em segundo plano quando comparado com o
culto de Ptah, não está totalmente ausente da matriz egípcia de Serápis. Seguindo uma
tendência que se verificou um pouco por todo o Egipto, o culto de Osíris foi-se enraizando na
necrópole menfita, sobretudo a partir do período ramséssida (1295-1069 a.C.)11. A inscrição
da Pedra de Chabaka (716-702 a.C.) dá-nos, a este respeito, um claro testemunho, evocando o
resgate do cadáver de Osíris na necrópole menfita, para permanecer resguardado pela escolta
de Ptah-Tatenen12. A razão para a extraordinária difusão do culto de Osíris por todo o Egipto
residia na visão salvífica do Além que emanava do triunfo de Osíris sobre a morte: por meio
de um comportamento ético, cada um podia almejar a ser eleito como um justo no tribunal de
Osíris e, assim, conquistar a imortalidade, transformando-se num deus. A força deste
imaginário foi tal que o culto de Osíris se implantou em todas as principais necrópoles do
país, criando sincretismos com os deuses locais. Em Sakara, a necrópole de Mênfis, Osíris foi
integrado nos cultos locais pelos deuses Osir-Hap e também, sobretudo a partir da Época
Baixa, de Ptah-Sokar-Osíris, uma divindade compósita que conheceu uma difusão notável na
necrópole menfita. Esta divindade resultava da confluência de três deuses ctónicos: Ptah
personificava os poderes regeneradores da terra, Sokar (o deus falcão da necrópole menfita)
simbolizava o poder de luz que renascia no mundo inferior, enquanto Osíris simbolizava a
ressurreição proporcionada aos justos no Além. Reuniam-se, assim, num único deus, várias
noções teológicas que até aí se haviam desenvolvido autonomamente entre si, atestando um
movimento de sincretismo crescente característico da teologia egípcia do I milénio a.C.
11
Modelo mítico do rei bom e civilizador, Osíris foi, segundo o mito, assassinado pelo irmão Set, deus do
deserto que encarnava as forças do caos. Retalhando o corpo do irmão, Set espalhou os seus pedaços por todo o
Egipto. Ísis, esposa e irmã de Osíris, recolheu-os piedosamente e, com a força da magia e do amor, confeccionou
a primeira múmia: por meio dela Osíris ressuscitava e tornava-se rei do mundo inferior onde presidia sobre o
tribunal dos mortos e garantia a reposição da justiça.
12
Pedra de Chabaka, 64 (SOUSA 2011: 69).
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Antes mesmo de se helenizarem e de inaugurarem um movimento de sincretismo
multicultural com outras divindades do mundo grego, os cultos de Ptah, de Ápis e de PtahSokar-Osiris haviam já criado, com os próprios cultos autóctones, uma matriz teológica
sincretista. É, portanto, esta matriz sincrética que está na base da afirmação universalista de
Serápis no contexto alexandrino.
Nem a própria associação de Serápis a Ísis – que em grande medida é responsável
pelo excessivo peso que a identificação entre Serápis e Osíris possui actualmente – decorre
especificamente da constelação mitológica de Osíris. Na Época Greco-Romana, o culto de Ísis
estava solidamente implantado na região menfita, assim como o de Hathor, e ambos
sobrepunham-se largamente ao culto local da deusa leonina Sekhmet – que, tradicionalmente,
era tida como a divindade parédre de Ptah. Reflexo da importância crescente de Ísis no
território menfita é a identificação das vacas que davam à luz o touro Ápis com a deusa Ísis,
sendo – também elas – alvo de um culto especial e de um enterramento próprio, neste caso o
Iseum, escavado num dos uadis vizinhos ao Serapeum de Sakara.
Do mesmo modo, também Hórus, o filho divino de Ísis e Osíris, foi integrado na
tríade alexandrina de Serápis sob a designação de Harpócrates (expressão grega que deriva da
forma egípcia, Horpakhered, que significa «Hórus criança») e reflecte a mesma implantação
da constelação divina de Osíris entre os cultos menfitas. Já na Pedra de Chabaka, a grande
obra da criação empreendida por Ptah convergia para a entronização de Hórus, que
personificava simultaneamente o faraó reinante e o coração vivo do deus supremo13.
Em todas as suas dimensões, a teologia tardia de Mênfis preparava os fundamentos
que iriam abrir o caminho para a formulação de Serápis como um deus da fertilidade, do
mundo inferior, mas também como um criador da luz e do mundo por meio do poder da
palavra e, nesse aspecto, constituía já uma tradição precursora da noção do Logos – a mente
divina que preside aos seres –, que seria tão amplamente celebrada pela tradição filosófica
alexandrina14. Extraídas dos velhos textos hieroglíficos e hieráticos, formuladas em demótico,
estas noções foram certamente traduzidas para o grego desde cedo, ainda antes da ocupação
macedónica, originando, assim, um caudal de reflexão que, ao tempo da fundação da dinastia
ptolemaica, estava já em claro florescimento e que, no ambiente multicultural alexandrino,
iria atingir o seu pleno amadurecimento.
13
Sousa (2011: 69;98).
14
Sousa (2011: 168-172).
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É possível que tenha sido o próprio Serapeum de Sakara, então já povoado por uma
comunidade multicultural, que tenha proporcionado a inspiração aos primeiros soberanos
Lágidas, para criar um culto multicultural, e universal, socorrendo-se, para isso, de um matriz
teológica simultaneamente bem enraizada nas tradições locais – portanto susceptível de uma
fácil aceitação – e ao mesmo tempo excepcionalmente propensa a novas sínteses, o que
conferia um enorme potencial político ao culto.
O resultado final deste extraordinário labor concretizou-se no culto alexandrino de
Serápis. A narrativa etiológica transmitida por Plutarco explica a aparência helenística do belo
colosso de Serápis, que se erguia no Grande Serapeum de Alexandria, atribuído ao escultor
ateniense Briáxis15. À iconografia grega do deus foi associada a tradição sincrética autóctone
expressa em demótico. Seria este núcleo que, uma vez traduzido para a língua grega,
constituiria, afinal, a inovação dos cultos alexandrinos no Helenismo. Esta consistência
interna que advinha de um longo e milenar processo de maturação seria afinal o segredo para
o tremendo sucesso que estes cultos iriam conhecer em todo o mundo mediterrânico.
15
O famoso escultor trabalhara no mausoléu de Halicarnasso, uma das sete maravilhas do mundo
antigo. Ver SALES, 2005: 108, nota 25.
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Anexo 1
Figura 1 – Representação de User-Hap. Base do ataúde antropomórfico de Pabasa (período
ptolemaico), Museu Nacional de Arqueologia (desenho do autor).
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Anexo 2
Figura 2 – Ptah, templo cenotáfio de Seti I em Abido, período ramséssida (desenho do autor).
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Anexo 3
Figura 3 – Estátua de Serápis acompanhado por Cérbero. Encontrada em Cortina, a estátua
reproduz a iconografia de uma estátua de culto alexandrina (desenho do autor).
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VOLUME 5 | NÚMERO 2 | P.133-148 | JUL/DEZ 2015
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